Copyright Bibiane Ferreira, 2019 Todos os direitos reservados, incluindo o de reprodução no todo ou em parte sob qualquer forma. Printed in Brasil / Impresso no Brasil PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS - Bibiane Ferreira EDITORAÇÃO - Bibiane Ferreira CIP-Brasil. Catalogação na fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. H245d Ferreira, Bibiane, 1996As coisas que perdi/Bibiane Ferreira; - Porto Alegre: 2019. ISBN 979-05-465-2724-9
Meu ideal seria escrever ...
Meu ideal seria escrever uma história de terror tão assustadora que impregnasse na mente do leitor para atormentá-lo antes de dormir, que o fizesse não conseguir suportar o escuro e temer a própria sombra. Que crianças, quando ouvissem, chorassem em desespero. Meu ideal seria escrever um romance histórico e poderoso que fizesse o jovem viajar no tempo, que concedesse esperança aos desiludidos e carregasse de sonho e coragem os corações vacilantes. Meu ideal seria escrever um conto tão surpreendente e arrebatador que a velha senhora, em seu leito de morte, lembrasse daquela história oculta, não resolvida e envolvente, ou que o menino rebelde, ao se deparar com ela, se transformasse em um leitor assíduo. Meu ideal seria escrever algo tão poético que transformasse uma pessoa qualquer em um filósofo, e que todos questionassem sobre o sentido da vida ou o real significado dos sentimentos. Meu ideal seria escrever qualquer coisa. E, por isso, com essa ânsia violenta de despejar no papel minha alma, resolvi fazer Escrita Criativa, como se magicamente, a inspiração divina dos escritores recaísse sobre mim e livrasse-me dessa solidão. Mas, todo o terror guardei para mim. Fechado a sete chaves, capaz de assustar, atormentar e apavorar apenas os
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meus dias, pois o medo constante é tão grande e cruel que eu jamais poderia repassar na mesma medida a alguém. Também o romance não posso escrever, porque não sei amar. Jamais poderia fazer alguém acreditar que o amor é para todos, porque não é. Para alguns é inalcançável. Mas ninguém quer ler um fracassado falando sobre seu fracasso. O surpreendente também não me cabe, pois não há surpresa maior que as surpresas da vida. Também não há nada mais trágico ou incógnito que aquela velha senhora já não tenha visto ou que o menino não vá descobrir. E quanto à poesia... Os poetas devem amar o mundo ou odiá-lo, e não me encaixo em nada disso. Que injusto seria fazer com que os outros questionassem minhas próprias dúvidas, ou que dissertassem sobre o que não sou capaz de dissertar. Portanto a filosofia também não cabe a mim. Meu ideal seria gostar do que escrevo. Mas eu não sou uma escritora. Não sou nada, e é exatamente cheia de nadas que escrevo.
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Estranha sensação
Tremo um pouco, mas não é nada que eu não possa suportar, nada que eu já não esperasse. Penso que estou completamente esquecida, ninguém me vê, ninguém pensa em mim e sinto que poderia morrer nesse mesmo instante. Estou completamente solta no vazio, mesmo que continue exatamente onde estava. Apenas tento não pensar em nada, como se quisesse apagar coisas de minha mente e deletar outras de meu coração. O futuro já não existe. Afasto-me da realidade como um mar agitado afasta a lucidez de pescadores. Sou um estado constante, nem sonhando, nem acordada, mas assistindo a mim mesma de fora do corpo, como um sonâmbulo. Justificando a morte por amor e não o amor pela morte. Pareço ver duas pessoas ao longe. Um casal, provavelmente, eles somem e aparecem me deixando confusa com minha própria indecisão. Brincando com minha mente, eles correm. Acho que é a escuridão me cegando como faz com muitos. Só queria estar segura em um lugar perigoso, ou ser a segurança de minha vida. O céu está escuro demais até para a noite, parece que vai chover e sinto a sensação de já ter passado por isso, talvez essa sensação nunca vá embora. Sinto apenas que não pertenço e nunca pertenci a este lugar, com todas essas pessoas que mal conheço, quase consigo ver outra dimensão surgindo. Simplesmente me
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sinto presa a um passado o qual nem mais parece o meu, como uma frase sem sentido com todo o sentido para mim. Ainda assim nada é tão ruim que não possa piorar, mas se piorar não conseguirei me manter viva. A verdade é que quase me esqueço: certas coisas só afetam os vivos, e já estou morta há muito tempo.
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Aniversรกrio
Ela olhava a festa da filha: as crianças brincavam, o cachorro latia, a entrada estava coberta de presentes, a torta ainda estava inteira, mas os docinhos já começavam a sumir. A decoração de fazenda combinou com o vestido verde da aniversariante, que tirava fotos com os convidados. Um aninho era uma data especial. O cachorro latia mais alto, e o som se misturava à música infantil animada. A filha estava linda e sorria para os balões. Todos elogiavam a comida. Já era hora de cantar os parabéns e de cortar o bolo, mas o marido ainda não havia chegado da viagem. A bebê logo ia querer o mamá, e talvez começasse a chorar. Aquele maldito cachorro já estava perturbando. Ela andou até o quintal: podia ver o cão na porta da velha garagem de madeira. Tudo que ela não precisava hoje, no dia do aniversário da sua filha, era ter de correr atrás do cachorro. Se o marido não demorasse tanto, ele mesmo podia dar um jeito. Conforme se aproximava daquela garagem, um zumbido estranho de insetos tomava forma sob os latidos. Uma silhueta pendurada balançava acima de um banco caído... Não era possível que alguém tivesse pendurado a pinhata no lugar errado! O cachorro grunhia. Um cheiro podre vinha de lá. Quando seus olhos se ajustaram à escuridão, em meio ao dia ensolarado de domingo, ela percebeu que,
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no fim das contas, o papai nĂŁo compareceria Ă festa. Engoliu em seco, mandou o cachorro se calar e voltou para, finalmente, cantar os parabĂŠns.
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Tรกxi
Era véspera de eleições e Letícia voltava da casa da amiga, já tarde da noite. Só era preciso andar uma quadra até o ponto de táxi e a rua estava tranquila, todo cidadão responsável deveria estar pensando no futuro do país ou coisa do tipo, Letícia não se importava. Havia apenas um táxi no ponto, e ela entrou. — Boa noite. — Oi. Até o centro quanto dá? — Esse horário, uns 20 reais. — Beleza. Os dois seguiram em silêncio nas ruas desertas da madrugada. Letícia percebeu, na segunda sinaleira que parava, que o motorista a olhava pelo retrovisor. Já era estranho o suficiente parar no sinal àquela hora. Quando pararam no terceiro semáforo, algo prateado reluziu no colo dele, segundos antes de perguntar: — Você sabia que hoje ninguém pode ser preso? Letícia, sem pensar duas vezes, saiu do carro e correu. O carro continuou parado, com a porta aberta, o sinal agora verde, e o motorista ainda a olhando pelo retrovisor. Letícia nunca tinha corrido tanto na vida, e, por mais que estivesse um pouco embriagada, nunca correra tão rápido. Outro táxi passava pela rua e Letícia quase pulou na frente dele, faltavam apenas algumas quadras até em casa, mas
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ela estava exausta. O carro havia andado apenas alguns minutos quando o motorista disse: — Hoje é um dia engraçado. — O quê? — Hoje é um dia engraçado, eu disse. — Por quê? Letícia, confusa e ofegante, ouviu as portas do carro se trancando. — Ninguém pode ser preso.
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CemitĂŠrio
Depois daquele velório, mesmo após todos terem saído, Antônio ficou. Queria assimilar o que a morte significava e verificar quem choraria por aquele pobre moribundo. E desde então, por doze longos anos, sem falta, às 15 horas de toda quinta-feira, Antônio parava o que quer que estivesse fazendo, de onde quer que estivesse, e ia ao cemitério visitar seu próprio túmulo.
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Cemitério de lembranças
Minha avó sempre cantou com o coração a canção dos passarinhos para mim. Que ironia, pois hoje tenho medo deles. Ela me fazia dormir ouvindo algo tão reconfortante quanto seu colo, uma simples canção tão bela e tão saudosa... Mas talvez eu tenha saudade é de quando íamos brincar deitadas no tapete da sala, de esconde-esconde no quintal, ou em cima da carroça. De quando era ela quem me erguia e não ao contrário. De quando ia me ver todo final de tarde ou sempre que eu ligava. Talvez eu tenha saudade dos almoços de domingo, das suas massinhas de pastel e dos casacos de tricô que já não me servem mais, das simples coisas que perdemos a cada dia. Percebo com ela ali, dormindo, o valor de cada momento, a colheita do que plantamos, a vida dando voltas e penso naquela canção da qual já não me lembro mais. Em minhas lembranças tudo valeu a pena. Peço para os dias felizes acabarem felizes, ou então, simplesmente acabarem. Estou aqui, com o coração um pouco vazio, tentando suportar a dor da dúvida e do medo. Tentando entender se a morte é melhor quando premeditada ou inesperada. Estou aqui com a vontade de evitar o inevitável saltando no peito: nunca estamos prontos, não importa quem, como e quando... Nunca vamos estar.
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Estrada incerta
O carro chacoalhava de leve, quase como um balanço de berço. A janela estava aberta e entrava um vento forte que lançava meu cabelo para trás com um pouco de agressividade. Minha pele gelada contrastava com os raios quentes de sol que espiavam entre as árvores. Olhando para cima via-se um colorido suave que encaixava-se perfeitamente com os cheios rápidos e movimentados. As folhas caiam das árvores e dançavam no ar, girando e flutuando, amarelas e verdes. O céu azul macio e as nuvens brancas de algodão. O asfalto cinza escuro, cheio de sombras e linhas bem desenhadas. As casas eram de harmoniosas madeiras. Tudo era belo, tudo era sensação, tudo era natureza, tudo era formado por pequenas cenas entre um sono e outro, uma música e outra, uma mensagem e outra. Íamos rápido nas curvas, íamos corajosos nas retas. Nossos corpos iam, nossos pensamentos ficavam, nossos corações fora do peito. O calor tentava aquecer o frio da dúvida: íamos sem ter certeza de que queríamos ir, de que queríamos chegar. Todas as certezas pertenciam aos outros, não nos sobrara nada. Eu pensava em um corpo caindo entre as folhas, em um corpo balançando entre as árvores, em um corpo repousando no asfalto. Pensava em morte quando devia pensar em vida, em esperança, em qualquer outra coisa. Mas eu não conseguia, porque aquilo estava em mim, aquilo estava
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em meu desejo: qualquer coisa para não enfrentar o futuro, para não enfrentar a chegada a um lugar distante do meu lugar. De onde eu pensava que fosse o meu, porque talvez eu não tenha um lugar, talvez eu não tenha uma época, talvez eu seja alguém que percorre estradas para não percorrer um momento, para não permanecer. Talvez eu seja alguém que não devesse ir, que não devesse tentar... Mas se eu fosse esse alguém, talvez eu fosse aquele corpo entre as folhas, as árvores e o asfalto. Talvez eu não devesse querer e talvez eu não devesse não-querer tanto. Olho a paisagem e me distraio, olho outra coisa e esqueço a paisagem, durmo. Sonho que deveria estar acordada, sonho que deveria acordar. Não há como descansar em incertezas de automóveis ou em inconsistências de ideias. Tampouco há como permanecer acordado quando os olhos cansam de ser olhos, de ser alma, de ser disfarce. As impossibilidades se contrastam e se anulam e se embaraçam. O caminho é novo, o tempo da viagem parece perdido e o ar soa salgado. O desconforto, mesmo familiar, desagrada-me profundamente. Canso da responsabilidade e quero novidade, faço algo que não preciso, digo algo de que me arrependo, adio o que é necessário (mas não acho que seja). Atolo-me em acumulações e deleito-me em apreciações. Aprecio o que não sou, aprecio o que não serei, invejo o que já fui.
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Viagem de aviĂŁo
Mãe e filha, de braços dados, choram, trocam carícias e palavras de afeto. Marido e mulher enlaçam os dedos e apertam as mãos como há muito não faziam. Mas a mulher só consegue pensar nas malas e nas tarefas que precisa acabar. E até mesmo no último momento, pai e filha se olham de forma áspera e acusadora. Ela queria pedir perdão e ele queria dizer que a perdoava, queriam reconquistar o amor esquecido e retomar o abismo da poltrona entre eles. No entanto não havia tempo. Eles precisavam partir. E foi nesse instante que o avião terminou de cair.
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Bruxa!
Ana não chorava, seu semblante sério combinava com seu olhar cortante: ela acusava e condenava a todos com toda a certeza que seus executores não possuíam. Nem mesmo seu corpo exposto era capaz de abalar sua bravura. Enquanto era amarrada a um tronco para que sucumbisse em meio às chamas, ela gritava: — Sou morta por ser mulher e sou humilhada com minha nudez. E se querem saber, por nenhum momento me calaria porque não me arrependo. Faço isso por vocês, Bruxas! Sim, Bruxas, porque todas as mulheres fortes serão consideradas bruxas! Não morro por todos que matei: homens que venderam suas filhas e homens que violaram corpos inocentes. Morro porque vinguei mulheres que não puderam se vingar. Meu sangue é o sangue delas, o seu sangue e eu não me arrependo! Dezenas de mulheres amontoavam-se em torno de Ana, tristes e obstinadas, algumas berravam aos prantos. Seus gritos misturaram-se aos gritos das outras mulheres, protestando, sem poderem ser silenciadas.
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Músicas de infância
Uma das coisas que me marcaram a infância foi a música. Diziam que eu adorava ouvir a galinha magricela e mostravam-me vídeos de bebê, em que sacudia a bundinha de fralda em cima da cama. Mas não me lembro disso. Lembro-me de cantar no quarto, sozinha, por não ter com quem brincar e para não perturbar ninguém. Um aparelho de som no chão e algum CD da Xuxa eram o suficiente para mim. Eu sabia todas as letras de cor e cantava a plenos pulmões. Como não via os clipes, fazia minhas próprias performances teatrais. Eu passava tardes inteiras com a companhia de um CD ou outro, mas sempre os mesmos. Talvez isso seja de família, escutar sempre as mesmas músicas, porque outra coisa de que me lembro era de meu pai ouvindo o mesmo CD do Raul Seixas. Ele lavava o carro, assava o churrasco ou lavava algo no quintal sempre com o mesmo CD. Mas, além disso, ele sempre pulava as mesmas músicas. Faz isso até hoje. Eu até tinha uma curiosidade em ouvir aquelas músicas friamente desprezadas, mas não ousava pedir para deixar tocar, porque já era uma espécie de tradição sempre pular aquelas músicas... Era diferente de minha mãe, que escolhia cuidadosamente os próprios CDs e às vezes mandava fazê-los para que tivessem todas as músicas que gostava de ouvir. Portanto, ela os ouvia inteiros quando ficávamos só nós duas em casa e meu pai saía, porque ele detestava aquelas músicas apaixonadas. Ela deitava no sofá, colocava a música não
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muito alta, fechava os olhos e eu devia deixá-la quieta. Eu ia para a sala ao lado para poder dançar e cantar, porque afinal, eu sabia todas essas músicas de cor também. Mas, de tempos em tempos eu aparecia ao lado dela, de soslaio, e via suas lágrimas descerem sobre as bochechas. Ela percebia minha presença e dizia que estava tudo bem, “é só um anjinho triste que está perto de mim”. Eu não entendia porque esse anjinho gostava tanto de ficar perto ela... e por que ele não podia se alegrar nunca? Já a minha avó era a escolhida para ver minhas performances e me avaliar, a única coisa chata era que minha melhor dança e a mais precária, ambas ganhavam nota 10. Minha avó não sabia achar ruim algo que eu fizesse, ela me amava demais para isso. As músicas dos CDs favoritos dela eu também sabia, e fazia questão de colocar sempre que ia na casa dela. Era legal ver minha avó, com aquela voz fraca, cantar com alegria. Cantávamos sobre peixes fazendo borbulhas de amor, sobre uma estrada de chão e céu azul, até sobre borboletas. As músicas eram leves e belas, assim como nossa relação. Nenhum de nós costumava ouvir músicas demasiado alegres, distantes de nossas realidades ou incabíveis aos nossos sentimentos. Todos nós ouvíamos músicas que gerariam lembranças, cabíveis em nosso futuro e em meu coração. Se alguém perguntar o que é música para mim, direi que é injustiça. Direi que não passo mais tardes inteiras dançando, direi que não me tornei cantora como pensei que faria, direi que não posso mais escutar a voz fraca de minha
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avó ressoar melodias, direi que estou tão distante daquele tempo como jamais pensara. Mesmo não tendo se passado muitos anos, mesmo que a maioria daquelas músicas ainda toquem e sejam ouvidas, aqueles CDs foram riscados e perdidos, assim como os momentos em que tocaram.
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Dark
Natalia liga o carro. Dark, ao ouvir o barulho do motor, começa a latir desesperadamente. Leonardo abre a porta do carro e entra, Dark hesita antes de pular no colo do garoto, receoso como se estivesse pressentindo algo ruim. Partem da cidade logo após o almoço e seguem pela estrada de chão até chegar ao interior, cerca de meia-tarde, onde haviam ido para o enterro do pai de Natalia, o único parente que restara do casal. Saem do enterro ao fim da tarde e partem para a casa do falecido. As coisas começam a dar errado quando, ao chegarem ao portão da propriedade, o carro apaga de repente. Dark começa a rosnar baixinho um som vindo do fundo da garganta e seu pelo se arrepia. Léo sai do carro para conferir o motor e sente que a temperatura caiu bruscamente. Ele para subitamente, assustado, ao perceber os quatro pneus do carro furados. Os três caminham rapidamente para a casa, primeiro entram na mangueira de gado. Natalia sobressalta-se ao ver algo parecido com um amontoado de cabelo no chão, mas Leonardo a acalma dizendo ser apenas crina de cavalo. Em seguida vão para um galpão cheio de tralhas e materiais de trabalho no campo, o cão podia sentir um cheiro estranho, podre e adocicado que fez saliva pingar de sua boca, cheiro de morte. Morcegos voavam silenciosos no céu na noite de lua cheia.
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Enfim chegaram à casa de madeira, escura e velha, rangendo como quem se contorce em uma noite fria. Acenderam o fogo na lareira e a fumaça se espalhou de mansinho, tomando conta de tudo ao seu redor. Eles podiam ver pela janela a escuridão da noite ser tomada aos poucos pela cerração. Natalia entra na cozinha, pega um dos velhos garrafões de vinho na adega de seu pai e uma taça na cristaleira de madeira de sua falecida mãe... Foi quando a imagem percorreu sua mente, a imagem de velhos corpos conhecidos apodrecendo sob a terra, o cheiro de decomposição queimou sua narinas, causando-lhe náuseas, mas nada se comparava ao frio mórbido percorrendo sua espinha. Tudo que lhe fora tão familiar um dia, tudo que lhe fizera sentir-se bem, tudo se tornara parte da carne de um pequeno e imundo verme rastejando sobre o barro. Nada passaria de pedaços de morte sob a terra nada significava simplesmente nada, e era repulsivo. A taça estourou em sua mão, trazendo-a de volta à realidade, suaves gotas de sangue jorravam mornas e reconfortantes, toda sua dor concentrara-se na mão. Foi então que ouviu alguém batendo à porta. Batidas altas e violentas que fizeram ela se sobressaltar, batidas que cortaram a noite silenciosa como uma lâmina corta o pescoço de um animal sendo abatido, animal que sangrará lentamente até seu doloroso fim. Leonardo, sentado em frente ao fogo, observava com
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pesar as chamas trêmulas e vacilantes como sua alma, ouviu apenas Natalia indo até a porta, nenhuma batida, apenas os passos da garota sobre o vidro estilhaçado atrapalharam o devaneio que o silêncio proporcionara-lhe e interromperam suas lágrimas descendo lentamente por sua face. Ele sentia as coisas como não sentia há muito tempo, era tudo tão claro e tão simples como jamais fora, como se uma percepção da realidade, que nunca tivera, estivesse ali agora. O Dobermann levantou-se abruptamente, agitado e correu até o vento frio que vinha dos fundos da casa. O antigo relógio de madeira badalou na parede com uma melodia estrondosa e encantadora. Era meia noite e sete: não era hora de badalar. Leonardo ouviu um uivo de dor do cão, como se enviasse uma mensagem ao mundo dos mortos. Não havia nada do lado de fora, não havia mais ninguém na casa. A cerração e o frio eram tão intensos que não era possível ver além de dois metros à frente. Ele estava sozinho. Como puderam desaparecer e deixa-lo assim? Ele fora fraco, deixara que possuíssem controle sobre ele, justo ele que odiava não ter controle sobre a própria vida. O amor nos enfraquece, pensou, o pior de tudo era perceber que nunca pensou que poderia perdê-los, que nunca deu a devida importância ao que sentia, aos pequenos momentos, à reciprocidade. O pior era que acreditava ter muito quando se tinha pouco, e ter pouco quando se tinha tudo. Nada nunca foi o suficiente para ele.
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Leonardo não percebeu o tempo passar, a madrugada infinita e vasta se arrastava para o amanhecer e ele ainda estava parado à porta encarando o nada. As horas eram apenas números, o tempo era superestimado e insignificante. Esperava o que não viria, quem não chegaria e o que não aconteceria, esperava mesmo assim. Esperava a si mesmo. Esperava o futuro, o destino e, acima de tudo, o passado. O presente já não existia. Sua cabeça latejava dolorosamente e seu sangue congelado bombeava seu desespero. Sua pele tomava um tom azulado de tão fria. Ele podia ouvir a morte chegando. Ela o atraía, chamava, sussurrava em seu ouvido tudo que queria ouvir e o fazia se sentir seguro, estava ali quando ninguém mais estava. Ver o reflexo de seu rosto na taça quebrada no chão fez o seu corpo tremer. Léo apagou o fogo, fechou a casa, foi até a mangueira, encilhou o cavalo de seu sogro e pegou, de um antigo armário do galpão, uma faca de varias gerações, com o cabo entalhado com belos desenhos. Galopou até uma mata de araucárias que ficava do outro lado dos campos, desceu do cavalo, sem se dar o trabalho de prendê-lo em algum lugar. Acendeu o lampião que encontrara ao lado da cama no quarto principal e seguiu o som de água corrente. Parou de andar na beira do riacho de água incrivelmente cristalina com pedras cobertas de musgo. Ao lado de um grande pinheiro, largou o lampião e entrou na água. Concentrou-se apenas na água e na faca contra suas mãos.
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No outro dia, apenas o corpo de Natalia foi encontrado no rio. O corpo de Leonardo estava hĂĄ 5 anos em um tĂşmulo.
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Cidade
Andando no banco de trás do carro do meu pai, vou olhando a cidade passar. O segundo andar do prédio amarelo antigo é cheio de adornos magistrais e de estátuas douradas com expressões insatisfeitas nas paredes, que em nada combinam com o letreiro azul neon piscando na porta do andar baixo, indicando um bar. O prédio ao lado é pouco torto do ângulo que vejo, há janelas tapadas e uma única sacada solitária no último andar; de baixo vem uma clara luz forte que cria sombras espectrais nas paredes brancas e tenho a impressão de nada ser real. Vejo o sinal abrir, leio uma mensagem no celular, pisco com o farol do carro à frente e olho o velocímetro do carro. Abro a janela e a ponta do meu nariz logo se apega ao gelo afiado da noite. O carro passa por um outdoor de uma faculdade em frente a um prédio abandonado e por uma placa indicando uma loja de roupas. Uma cartomante e uma investigadora particular dividem os anúncios do poste. Não consigo me lembrar dos sons daquele passeio, mas lembro-me perfeitamente de ver a cabeça decepada de uma garotinha encarando-me pela cortina da janela de uma casa de madeira.
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Cadรกver
Vi seu corpo se decompor. Ele já não me ouvia há algum tempo, mas a primeira parte da deterioração foi o branco opaco e doentio que seus olhos adquiriram. Depois sua carne começou a desaparecer e seus ossos criaram estranhos ângulos pontiagudos em seu corpo. O peso morto de seu corpo na cama fez surgir um rasgo na pele de suas costas, como escamas de uma criatura reptiliana. Um tumor continuava crescendo em seu abdômen e, ao erguer seus lábios, seus dentes ameaçavam cair. Mas o pior de tudo não foi ver essa decomposição. O pior foi ver toda essa putrefação ainda em vida.
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Possibilidades
Não sei o que meu gato faria caso eu me matasse agora. Acho que tentaria me acordar miando, como faz pela manhã. Ficaria impaciente, iria me cheirar, ou talvez se deitasse comigo e dormisse, como faz nas noites mais frias, considerando que eu ficaria tão fria como aquelas noites. Acredito que ele não ficaria muito tempo sozinho com um cadáver, levaria um dia no máximo. Então ele voltaria para a casa de meus pais, de onde não devia ter saído. Talvez ele me procurasse à noite durante os próximos dias ou ficasse desconfortável com as mudanças. Não sei o que seria dele, mas acho que meus cachorros não sentiriam a minha falta. Eu nunca fui muito presente na vida deles e às vezes me pergunto se não deveria lançá-los à própria sorte com outras pessoas. Pergunto-me se em qualquer outra possibilidade não seriam mais felizes. Às vezes acho que não é tão ruim assim. Penso que, em alguns meses no máximo, eu não importaria mais para quem vi nascer, as crianças também iam me esquecer aos poucos, sorte a delas. Não há nada muito bom para lembrar para quem me conhece como sou agora. Por isso também não tenho amigos que iriam lamentar, não por muito tempo. Pensar em quem me conhece desde criança é que me deixa triste: eles me olham e veem uma menininha, o que eu fui, o que eles amaram. Escrevo isso acumulando muitos
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pedaços de papel amassado, de tanto secar o nariz: choro como criança. Torturar a mim mesma com a possibilidade que me assusta e me assola, tornou-se um costume mórbido, um hábito destruidor. Mas é viciante pensar em cada detalhe, em cada pessoa, em cada ser e em cada esquecimento, cada desinteresse. Imaginar alivia e cansa a vontade da dor.
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Pudim Gelado
Lembro-me dos almoços de domingo na casa de minha avó. Ela fazia questão de fazer o churrasco e de convidar toda a família. Ela reunia todos os filhos, genros, noras e netos. Em algumas vezes, minha tia chegava um pouco antes, já ia tirando os anéis e arremangando as mangas para fazer a maionese. Meus tios, meu pai e meu avô se reuniam no porão para assar a carne, conversar e beber cerveja: basicamente, um assava e os outros olhavam. Minha avó fazia o arroz, a salada e essas outras coisas de almoço de domingo. Já em outras vezes, era a minha avó quem assava a carne no forno e nos esperava com praticamente tudo pronto. Mas eu, como toda criança, ansiava pela sobremesa. Minha prima também. Principalmente no verão, porque a vó fazia pudim gelado. O pudim gelado com certeza era a melhor coisa do final de semana. Ela ficava tão feliz de poder realizar o desejo das netas e ver nossos sorrisos de satisfação no rosto. Reunir a família era uma de suas habilidades. Por ironia do destino, ela adoeceu e não pode mais cozinhar, então todos os filhos separaram-se, espalharam-se, intrigaram-se e afastaram-se. O que reunia aquela família, certamente, era a comida, e não o amor. Os irmãos de minha mãe recusavam-se a cuidar de uma velha
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doente e incapaz de servir. Eu não via mais tanta graça de ir lá aos fins de semana e ver minha avó sem poder andar e sem poder fazer pudim gelado no verão e agasalhos de tricô no inverno. Minha mãe aprendeu a fazer pudim gelado e, quando minha avó morreu, passei a deliciar-me com o mesmo sabor, e ainda assim, outro completamente diferente.
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A lenda da floresta
Em meados do século XV uma garotinha chamada Gao Yukimura viu seus pais e seus irmãos serem brutalmente assassinados pelo Império Japonês, acusados de traição por não terem pagado os impostos. Sua casa foi queimada até o solo e a honra de sua família queimou com ela. Gao fugiu e se escondeu por dias dentro da floresta, desesperada, sozinha, com medo e sem nenhuma esperança. A cada dia que passava a floresta criava vida para ela, sua fome a fazia adentrar mais fundo entre as árvores, ao mesmo tempo em que seu vazio era preenchido pelo ódio. O silêncio gritava, ensurdecia. A escuridão a cegava. A floresta a envolvia. Um dia, já cansada e imunda, Gao viu algo brilhar em meio às folhas no chão, o que acreditou ser mais uma de suas alucinações, mas era uma espada com a lâmina já começando a enferrujar e com alguns vestígios de sangue seco. Uma Katana, deixada por algum samurai, esquecida em alguma batalha. A garota segurou firme o objeto com as duas mãos, e fez um juramento. Jurou vingança. Vingaria sua família, recuperaria sua honra e derramaria seu próprio sangue para firmar sua promessa. Jurou perante sua espada e perante a floresta Aokigahara no Jukai. Durante anos Gao treinou com os meninos de uma aldeia vizinha. Sua espada sempre junto ao seu corpo como se fosse uma extensão de si mesma. Sua alma. Aos vinte
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anos estava pronta para ser um samurai. Gao disfarçou-se de homem e passou a ser Yachi para fazer parte dos samurais do império. Se quiser atacar seu inimigo é melhor conhecê-lo, ganhar sua confiança e torná-lo seu amigo. Após 5 anos servindo bravamente o império, e assim, aprendendo todas as suas fraquezas, Yachi resolveu que chegara a hora de sua tão desejada vingança. Um imperador sem seus samurais não é um imperador. Portanto Yachi envenenou toda a guarda do império e os matou enquanto dormiam. Depois queimou todo o resto, assim como fizeram com sua família. Fogo e sangue se pagam com fogo e sangue. Yachi pensou em se tornar o imperador e tornar o país um lugar de lealdade e prosperidade, porém não poderia se tornar aquilo se jurou destruir e não poderia perder sua honra logo depois de reconquistá-la. Então decidiu que deveria viver para sempre para que pudesse prosperar sua vingança por todas as gerações e por toda a eternidade. Yachi foi até o coração da floresta e firmou um pacto com os ancestrais guardiões da vida e da morte: seu espírito ficaria na floresta para cumprir sua missão e iria embora assim que tivesse terminado. Assim, pegou sua espada e morreu por sua honra com um Harakisi, arrancando as próprias entranhas de seu corpo. Amaldiçoando e condenando sua alma para dentro da espada. Quando a vida se esvaia de si, sentia-se adentrando
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na floresta, fazendo parte dela. Seu espírito clamando por vingança atrairia todos os descendentes do império para dentro da floresta e os faria sentir tudo o que sentiu quando fugia em desespero se embrenhando na mata. Enquanto sua espada estivesse na floresta os faria morrer para recuperar sua honra, assim como morreu, acabando com a própria vida. Reza a lenda de que sua espada ainda está na Floresta dos Suicidas atraindo os destinados a morrer pela fúria de Yukimura.
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Vizinho da frente
Olhando os novos vizinhos fazendo a mudança para a casa da frente, lembro-me do antigo vizinho, que nesse momento confere o lixo com orgulho. Ele sempre foi um baita de um filho da puta, a fruta podre da família. Quando era pequeno despejava rios de ketchup na comida só para provocar o pai, esmagava giz de cera pela casa toda e detestava sorvete só porque a mãe adorava. Fazia de tudo para tirar qualquer um do sério. A mãe era uma coitada que trabalhava o dia todo e quase não dizia uma palavra, sempre cansada. O pai era autista, não tinha muitos amigos além de mim, e tomava conta das crianças. Kimmie, a filha mais nova, era um doce, e a única coisa que fazia de errado era jogar fatias de maçã no quintal para que “os pássaros não ficassem com fome”. Meu amigo demonstrava seu amor de forma diferente e muito criativa: enfeitava um poste de metal para alegrar as crianças. Lembro que na semana do Super Bowl ele pedia meu capacete emprestado. Eu fingia achar besteira, mas na verdade achava toda aquela arte espetacular. A pequena Kimmie também adorava, mas o garoto odiava. Eu pensava que ele só tinha vergonha do pai autista, ou ciúmes da irmã. Todos tentávamos entender seu comportamento até o dia em que Kimmie morreu. Os pais saíram para jantar e deixaram o filho tomando conta da irmã, mas quando voltaram, Kimmie es-
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tava morta ao pé da estaca. Havia comido algo de que tinha alergia ou sido envenenada. A polícia acreditou na alergia, mas soubemos a verdade quando o garoto apareceu, no dia seguinte, com a namorada para jantar, foi a uma festa e comemorou. A partir daquela noite fatídica, meu amigo nunca mais foi o mesmo. Cuidava daquele poste como se cuidasse da filha: passava horas e horas a enfeitá-lo e só vivia para aquilo. Quando o garoto foi embora de casa pensei que as coisas fossem melhorar, mas já era tarde demais. Três meses depois a mulher morreu de um câncer repentino e meu velho amigo começou a mandar mensagens através da estaca. Contava sua história e a de sua mulher, com pedaços do passado e do amor que se foi. Eu era o único que entendia a sua dor. Antes de cometer suicídio na poltrona do corredor, ouvindo sua rádio preferida, ele escreveu um pedido de perdão a Kimmie, por não tê-la salvado do irmão. Espero o monstro ir embora e decido recolher aquele pedaço de ferro do lixo, e guardar em algum lugar no armário da garagem.
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Um universo em um ano
Anos são feitos de quantos meses teremos com quem amamos, quantos finais de semana poderemos passar juntos, de quantas vezes poderemos acenar carinhosamente para alguém e logo mais perceber que aquilo é um adeus. É subir as mesmas escadas todos os dias até não conseguir mais. É a quantidade de vezes que deixamos de beijar ou beijamos alguém que nunca vamos esquecer. É a quantidade de palavras de ódio que se diz para si mesma quando não se reconhece mais. É ouvir quem não podemos ver. É implorar e desacreditar. São sabores novos. É imaginar um corpo se desfigurar, mas não imaginar que isso vai acontecer na hora que acontece. É o medo, os desagrados. Cada coisinha que trará a dor. São as horas que você vai passar com os olhos ardendo, a garganta doendo, o cansaço e a falta de sono. Um ano tem 365 dias se levar em conta quantos deles você estava morto? Mas anos também as são canções que você vai cantar para o céu. São todas as coisas bestas que você vai decorar e alguns detalhes de que não vai esquecer: o cheiro, o lugar, o som, a imagem e as formas de um triste sonho ou de um cruel pesadelo. É um diário, um sorriso, um abraço, um conjunto de pulos, sustos, gritos, movimentos, olhares e suspiros. É a sua rotina entediante, sua aventura emocionante, é um faz e desfaz de posições, um segredo bonito e
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marcante. É um maldito álbum de fotografias que faz você descumprir o que prometeu. Um ano talvez seja uma pessoa, ou várias, mas não todas. É o que elas são obrigadas a se tornarem quando fecham os olhos e têm tudo arrancado de si. Um ano são emoções intensas, não necessariamente uma de cada vez, e não necessariamente precisas. É ver um quadro de paisagem e imaginar uma história de outra pessoa, em outros tempos. Anos que se cruzam, quase que acidentalmente... É aquela velha sensação de alguém que no desespero sentiu uma mão em seu pescoço lhe tirar o ar.
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O que ĂŠ belo hĂĄ de ser eternamente
Eu contemplava seu belo rosto de olhos fechados, deitado ali, coberto com um lençol branco como a morte. Imaginei até quando ele seria bonito daquele jeito: expressões suaves, que me enchiam de vontade de beijá-lo acima das têmporas e acariciá-lo ao lado da boca. Pensava até quando seus músculos seriam fortes, e suas tatuagens vívidas, ou até quando sua voz teria aquele tom alto... Pensava que ele era tão bonito como eu jamais seria. Ele dormia, e eu imaginava se seus sonhos seriam tão bonitos quanto seus cabelos escuros, ou tão excêntricos quanto seu amor por borboletas. Mas não importava quais eram seus sonhos, porque seriam mais felizes que os meus, então eu sempre buscava sonhar os dele; tentava entrar em sua mente, desvendando seus mistérios. Eu contemplava seu belo rosto de olhos fechados, e imaginava quanto tempo demoraria até sua pele se decompor, seus músculos virarem seda e seus ossos se tornarem pó. Eu imaginava se mesmo assim eu ainda o acharia bonito, se meu fascínio perpetuaria todas as barreiras do tempo. E eu achava que sim, que mesmo desfeito em cinzas, eu o amaria com todo meu coração. Que mesmo quando ele fosse nada, ainda assim, seria tudo. E eu imaginava por que ele não pensava da mesma forma. Eu tentava entender por que ele havia se deitado com outra, quando eu o admiraria mesmo depois da morte,
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quando eu o acharia belo mesmo que não fosse. Eu poderia suportar qualquer coisa, mas não que alguém roubasse a sua beleza de mim. Minha mão suava tanto que eu esperava que a faca a qualquer momento escorregasse, e então, eu não conseguiria mais matá-lo... Era esse o problema, eu não conseguia. Eu só queria admirá-lo dormir pelo resto de minha vida: tão vulnerável, tão sereno... Eu não poderia fazer aquilo com ele, que tipo de monstro eu seria se matasse meu amor enquanto dorme? Mas então... ele acordou, e eu lembrei que, afinal, o que é belo há de ser eterno.
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BebĂŞ
Depois da aula, ele corre para mim e eu o seguro em meus braços. Ele sorri e covinhas fofas aparecem em seu sorriso, com alguns dentes faltando. Faz calor e muito sol, as árvores sorriem, as flores cantam e os pássaros se beijam. O dia cheira bem e nós cheiramos ao dia. A água está morna e quando entramos na piscina a risada dele é alta: estou ensinando-o a nadar. Comemos pipoca e sorvete, andamos de bicicleta, balanço, e por fim, corremos com os cachorros. As horas passam e nosso carinho aumenta a cada uma delas. Ao fim da tarde lemos nosso livro preferido e dançamos nossas músicas preferidas. Jantamos sanduíche, bolo e leite com Nescau. Tomamos banho de banheira, colocamos pijama de bichinho e vamos para a cama assistir desenho animado. Beijo seu rosto e o vejo dormir. Tão pequeno e tão lindo. Éramos nós dois contra o mundo... Mas o mundo também estava contra nós. Acordo com esperança e olho para o lado: há apenas o vazio do lençol emaranhado. Lágrimas escorrem-me pelo rosto e vejo a foto de um bebê que nunca cresceu.
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O meu primeiro velรณrio
Era uma tia distante, tia da minha mãe, tia da minha tia... Só sei que era velha e doente. Câncer, talvez. Mas isso acontece toda hora, todos sabem: velhos morrem! Minha mãe me levara para visitar esta tia porque sabia que ela estava morrendo. Foi uma visita legal, melhor do que eu esperava, até. Eu gostava de velhos. Mas o velório não era legal. Por mais que estivesse cheio de crianças que corriam para todo lado (eu, inclusive), minha avó estava chorando: e disso eu não gostava nem um pouco. Então, como toda criança que vai a um lugar que ache assustador, começamos a explorar. Pulamos uma pequena cerca para ver um cachorro bravo que ficava de guarda nos fundos da funerária. Mas nós não contávamos que a porta dos fundos estivesse aberta, e não contávamos que estivessem lá, milhares de caixões. Pelo menos, pareciam-me milhares. As crianças correram, gritaram e fugiram. Mas eu fiquei. Não conseguia acreditar no que via. Havia caixões de crianças, de bebês. Tão pequenos e tão aterrorizantes. Além de velhos, crianças também morriam? Não era certo. Nem um pouco certo. Ninguém havia me dito. Crianças crescem, ficam velhas e, aí sim, morrem.
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Só que, na verdade, isso tambÊm acontece toda hora, mas todos escondem: crianças morrem!
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As coisas que perdi
Perdi a conta a de quantas vezes perdi as coisas. Perdi minha dignidade aquela vez em que caí na escada da escola e aquela outra em que tentei ser eu mesma quando todos estavam tentando ser outras pessoas. Perdi meu celular no táxi, perdi o ônibus pra casa, perdi vinte reais na rua, perdi o horário da primeira aula da manhã, perdi um texto que queria ler no show de talentos, perdi meu brinco na festa, perdi uma cartela de rifas. Perdi histórias quando deletei todas as fotos da câmera fotográfica e quando não consegui recuperar vídeos gravados no celular. Perdi a oportunidade de atravessar a rua naquela terça-feira à tarde e dar um último beijo em meu avô (ainda hoje pergunto-me por que eu só acenei para ela...) Perdi a chance de ter uma última tarde ouvindo choros e resmungos de bebê; perdi a chance de segurá-lo no colo e de vê-lo dormir, e ainda hoje pergunto-me por que entrei no carro naquele dia e parti. Perdi os últimos momentos com minha avó porque tinha que estudar para uma prova da qual não me lembro, porque a culpa é sempre mais recorrente na memória. Também perdi a nitidez de seu rosto porque o tempo dissipa as imagens, mas pelo menos, ainda não perdi da memória o som de sua voz. Perdi amizades por pura incompetência de cativar, e
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as perdi porque não fui suficiente e porque não fiz questão de não perder. Perdi o fôlego lendo rápido demais por puro nervosismo, perdi o sono e o sorriso pensando no que perdi. Perdi a nota trocando a resposta da questão na última hora e perdi os sentidos quando caí e bati o queixo no chão. Perdi meu tempo fazendo um curso que não queria fazer. Perdi o prazo do concurso, da prova, do trabalho, das pessoas, dos animais e da vida.
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Amizades
A verdade é que durante toda minha vida eu jamais pude contar com minhas “amizades”. Fui traída incontáveis vezes pelas pessoas que disseram que eu poderia confiar, e eu, desesperada por sentir-me segura, confiei. Acho que todos nos decepcionamos com aquelas pessoas de quem esperaríamos qualquer coisa, menos decepção. Então fui ficando distante de todas as relações que exigissem qualquer entrega sentimental maior do que pura educação. E todas as vezes que tentei retomar meu eu afetivo, fui apunhalada novamente. Algumas vezes não eram coisas significativas, e talvez as pessoas nem sequer percebessem que estavam me ferindo, mas eram coisas que eu não faria a elas. Aprendi a não esperar nada de bom das pessoas, e quando eu finalmente escolhia alguém em quem depositaria minhas expectativas... Lá estava eu de novo, com um balde de ilusões desfeitas derramando sobre mim. Talvez o problema fosse escolher as pessoas erradas, mas o quanto que se espera é o quanto que não se perdoa. E não perdoando a eles eu não perdoava a mim, cada vez mais ia enterrando a esperança de que não padeceria sozinha. Já o amor nunca foi uma de minhas possibilidades: sempre distante, sempre impossível. Minha família sempre esteve lá, com exceção daqueles que nunca estiveram. O problema é que eu era muito nova e eles envelheceram rápido demais, e novamente percebi
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que estava cada vez mais fundo na solidão. Nunca fui uma pessoa muito boa, e também nunca fui totalmente má, mas a culpa e o medo corrompendo todos os outros sentimentos e, a cada dia foi ficando mais sufocante viver dessa maneira: gastando o tempo imersa na ficção, no álcool, nos sonhos e, principalmente, no passado. Enterrando a necessidade de conversar falando incontrolavelmente coisas sem significado, a qualquer pessoa disposta a ouvir. Desesperada por mudanças que não mudariam nada, acumulando coisas sem utilidade, e decidindo o futuro a partir de um presente sem vontades.
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Caso de amor
O anjo da morte sobe devagar as escadas laranjas, caminha pelo longo corredor mal iluminado, entra no quarto e observa parado à porta. A idosa na cama parece o ouvir chegar e fita a escuridão de suas roupas em silêncio. O restante da família conversa, fingindo despreocupação, não se sentem à vontade e não se olham nos olhos. Menos de meia hora depois as visitas despedem-se de forma breve. A idosa sorri uma última vez e fecha os olhos. Pela janela coberta por finas cortinas, ouvia os sons da praça: um apito, um carro, a noite. O anjo da morte, alisa os cabelos negros e lisos da velha senhora, que tem uma lágrima discreta acomodada entre as rugas, beija-a, e também se vai. Anda solitário pelas ruas frias e abraça mais uma vez o destino.
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Gosto e nĂŁo gosto
Gosto de pintar as unhas, de cortar o cabelo, de ganhar massagem nos pés, nos ombros, no corpo todo. Gosto de cafuné delicado e gosto quando alguém acha o ponto exato em que estava coçando. Gosto de gosto de comida de mãe, gosto de cheiro de roupa limpa e gosto de perfumes que conheço desde bem pequena. Gosto de chegar em casa e ser bem recebida: de carinhos, abraços, lambidas e miados. Gosto de filhotes e gosto de cabelinho de nenê. Gosto de morder, de falar, de dormir até ficar cansada da cama. Gosto de cheiro de livro novo e de episódio toda semana. Gosto de ver a doença passar e o bem prosperar. Gosto de me sentir útil e gosto ganhar presente. Gosto de comer coisa boa, e comer mais ainda. Gosto da água: de banho de mar, de piscina, de cachoeira, de chuveiro quentinho, gosto de banho. Gosto de comprar roupa nova e vestir logo em seguida, gosto de comprar caderno. Gosto dos lugares novos e mais ainda dos lugares velhos. Gosto de rir, mas não gosto de chorar. Não gosto de quando o esmalte descasca, de quando os momentos passam. Não gosto da sensação de precisar mudar algo em mim e ter de cortar o cabelo, não gosto de nunca gostar de mim. Não gosto da dor que precede o alívio, não gosto da dificuldade. Não gosto de, no fim de uma tarde de domingo, perceber que estou longe de quase tudo que gosto. Não gosto de quando o chuveiro queima e me sinto impotente. Não gosto de perder quem eu amo,
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não gosto de ficar sem dormir pensando no que vou fazer quando acordar. Não gosto de me sentir tão imensamente sozinha e tão infinitamente vazia que deixo de gostar dos gostos. Não gosto de chuva, não gosto do medo, não gosto de ser esquecida. Não gosto de muita gente. Não gosto de muita coisa.
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Corte de cabelo
Olhou para o espelho, seus olhos cansados ao acordar, a cama desarrumada atrás de si, seu cabelo emaranhado... Parou. Enrolou seus longos cabelos coloridos entre os dedos e sentiu o cheiro de shampoo, a maciez e o azul dos fios misturando-se ao roxo dos esmaltes... Decidiu que iria cortar. Mudar. Transformar. Pegou a tesoura e foi para o banheiro. Mediu tudo para ter certeza de que ficaria bom, nada poderia dar errado. Começou a cortar: os fios caíam com delicadeza sobre a pia. Os únicos sons que ouvia eram o som afiado da tesoura e o som alegre dos pássaros embalando o amanhecer do dia. Cortava. Junto com as mechas caíam os sonhos. Cortava o passado, os erros, os medos, a culpa. Junto com as mechas caíam amores. Cortava os pulsos. Junto com as mechas, o sangue manchava a pia.
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Desejo mรณrbido
Não sei quando foi que minha paixão mórbida começou. Meus filmes são sangrentos, minhas leituras pavorosas e até mesmo minha escrita mais doce tem um quê de mistério. Está em mim, de forma tão profunda, que consigo ver marcas de outras vidas (e outras mortes) em meu subconsciente. Fui criando resistência ao medo, ao amor e as delicadezas. Não me abalo com violência e tenho uma fome devoradora por vingança e assassinato, mesmo nunca tendo ferido ninguém... gravemente, pelo menos. Sempre fui inofensiva, mesmo que algumas pessoas discordem veemente disso. O problema é que não sei por que sou assim, um pouco perturbada... Eu sinto-me velha. Velha, velha, tão velha, que não consigo ver um futuro. Tudo que enxergo é a desesperança entorpecente do fim. Não há planos. Não há metas. Mas há sonhos, sim. Sonhos do que quero fazer, mas que não acredito que vá conseguir realizar realmente. Meu passado tão curto e tão presente. Com essa pouca experiência e esse marasmo, essa monotonia... tudo é muito igual, tudo é muito simples. Quase não há o que contar, e mesmo assim, sou constantemente atormentada. Pode ser porque o passado ainda é recente e não se perdeu ao recordar dos anos... É que ainda assim, corrói. E quando tento abrir a janela para o destino tudo que vejo é mais do mesmo. Como se o futuro se fundisse com o passado
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em uma espiral inebriante. Não consigo escapar, porque na verdade, não tento. Porque agora virei dependente dela: é essa sombra que faz de mim quem eu sou, que criou e moldou minha personalidade e minhas escolhas. Sempre escolhi ela às outras opções que tive, até quando sabia que era mais saudável escolher qualquer outra coisa. De tanto olhar para trás já não sei mais distinguir as direções. Também não sei distinguir as memórias: quais foram boas e quais não foram. Eu já era assim antes de ver pessoas queridas em um caixão, já era assim antes de meu bichinho de estimação morrer na minha frente e já era assim quando assustava minhas amigas quando iam posar na minha casa, ou quando trancava minha mãe no banheiro até ela gritar. Não sei por que decidi assistir documentários de terror durante a noite, só para ver se ia conseguir dormir depois. Ou por que imaginei quem eu mais amava morrendo, na tentativa de amá-los menos, ou por que os afastava subitamente da minha vida. Nem sei por que ficava escondida durante o tanto de tempo que eu aguentasse, em lugares desconfortáveis. Agora é tudo um grande emaranhado em que me afundo, me escondo e me embaraço, impossibilitada de ser jovem como deveria ser. Não vivi uma infância ou adolescência traumática, muito pelo contrário. Ainda assim, aqui estou eu, lamentando-me novamente de minha morbidez. Essa nuvem de desânimo e desesperança que talvez tenha nascido comigo; nasci de oito meses o que comprova que já nasci ansiosa e muito estressada; que talvez tenha sur-
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gido na escola, ou que talvez venha de minha necessidade insana de tortura interior. Deve ser por isso que junto com todas essas outras mortes que admiro, a minha vem em primeiro lugar. A verdade é que eu deveria estar morta, sou a única que pensa isso, provavelmente, mas eu sinto que não é justo viver com tantas pessoas morrendo... Eu sou uma suicida em potencial, eu sei. Não gosto muito de viver, mas gosto da minha vida, é confuso e sei disso também. Sei de muitas coisas, mas geralmente não sei do que preciso saber, na hora que preciso saber. Meu raciocínio é um tanto atrasado para o quanto eu sou acelerada. Mas a verdade é que a ansiedade salvou minha vida várias vezes. Quando penso em desistir de tudo ela vem e me lembra de todas as atividades que preciso fazer para amanhã e percebo que não posso morrer antes de finalizar todas elas. Talvez seja por isso que deixo algumas para depois, nunca se sabe quando vou precisar de uma desculpa para continuar viva. Penso em largar a faculdade e voltar para casa, cogito arrumar um emprego, planejo viajar, vejo coisas para comprar, sujeira para limpar e decido ir dormir quando sei que deveria fazer algo a respeito. É assim porque eu preciso da procrastinação, porque sou uma suicida fracassada que procrastina a própria morte porque adiou coisas demais e que precisa terminar de viver, antes de poder morrer.
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O grito
O primeiro velório em que havia ido fora o da mãe. Ele tinha apenas sete anos, e a irmã, três. Mas, o que mais lhe marcara naquele dia, fora o grito da irmã. Ela não chorou, apenas tapou os ouvidos, ao ver a mãe morta na cama, e soltou um grito: um som tão horrível que ele poderia imaginar saindo de qualquer criatura horrenda, mas não da irmã, não de um bebê. Ele entendeu, que naquele momento, ela compreendera o real significado da morte. Eles foram criados pelos avós, e tiveram uma infância feliz e amorosa. Só que quando sua irmã tinha quatorze anos, ela adoeceu. A menina ficou fraca, e seus dias resumiam-se a permanecer na cama. A avó não saía de seu lado, e as duas permaneciam em silêncio, de mãos dadas. A garota sempre com um sorriso gentil a oferecer, e a avó chorando por saber que, em breve, perderia outra parte de seu coração. Após seis meses de uma febre pavorosa e incessável, a doença foi embora e levou a garota com ela. Durante o velório, a avó permanecera calma, ao lado do leito de morte, enquanto todos os outros choravam. O que o fez pensar que o desespero dela tinha acabado, e que todas as lágrimas já haviam sido derramadas. Mas, durante a noite, quando o avô saiu e a avó ficou sozinha no quarto, ele foi ver como ela estava... Até o fim de sua vida, ele se perguntaria por que não batera na porta naquela noite. A avó estava nua, de joelhos no chão, e chorava bai-
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xinho para que ninguém ouvisse. Ele pensou em sair, e simplesmente deixar a avó daquele jeito... mas não conseguiu. Continuou paralisado na porta olhando aquela cena de tamanho sofrimento e delicadeza. Ele nunca havia visto a avó de cabelo solto. Eram cabelos volumosos e negros, com alguns fios brancos: ele não fazia ideia do quanto eram longos. Naquele momento, ele decidiu ir embora. Não poderia permanecer ali depois do que havia visto. No fim de tarde do dia seguinte, despediu-se e partiu, mesmo sem ter para onde ir. A ponte da cidade estava movimentada, mas não havia vida: somente seres de rostos vazios e tristes. Ninguém olhava o pôr do sol tingindo o céu de laranja. Ninguém olhava nos olhos dos outros. Estavam perdidamente submersos na própria ansiedade. Homens e mulheres formando apenas um enxame de dor, calados, e ainda assim, zumbindo. Todos com medo de ficar na rua à noite, sem perceber que levavam a noite para a casa, dentro deles. Então ele foi para um quarto de hotel com uma prostituta, e beijaram-se na janela, com o luar refletido em seus rostos. Ele também não sabia que aquilo era o máximo que conseguiria do amor: mulheres caras, paixões baratas e uma dose de embriaguez. E que na manhã seguinte ia perceber que estava ainda mais pobre e mais sozinho. Mais cansado da vida, e mais ácido com os outros. Sem saber que tudo que lhe restara era ir para a praia em busca de respostas e não encontrar nenhuma. Sem saber que esquecer da morte não lhe traria mais vida.
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Na praia, as pessoas eram um pouco mais humanas: sorriam e lembravam-se de olhar o horizonte. Colocavam o pé na areia, e tornavam-se aquilo que jamais seriam de sapatos. Lá, seus zumbidos eram abafados por seus suspiros e pelo barulho das ondas. E toda essa leveza não trazia nada a mais que a pura melancolia. Já estava ficando tarde, o sol ia se por, o mar traria o vento frio e começaria a apagar a existência de todos os que pisaram em sua areia, e isso, ele não seria capaz de suportar. Quando voltou para o hotel, um velho senhor cruzou seu caminho, nos corredores de entrada. Talvez tenha sido atraído pela melodia do piano, que alguma alma inquieta tocava... Aquele senhor, que não tinha os olhos, e mesmo assim o encarava, lembrando-o de que ele era tudo o que não queria ser. Foi então que ele deu as costas e correu. Correu como os jovens da sua idade faziam, mas ele nunca. Correu para sentir-se vivo, ao mesmo tempo em que tentava fugir de sua vida. E ao correr, deixou algumas lágrimas caídas pelo chão. Ao chegar à ponte, finalmente parou. Olhou para o rio, olhou para a paisagem pintada com fortes pinceladas de tintas coloridas à sua frente, e percebeu que a ponte estava quase vazia. Ela era sua para expressar o que sempre precisou: então aquilo saiu de súbito de dentro de si, como se alguém tivesse arrancado... Um grito.
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Rex
Meu primeiro animal de estimação foi um cachorro bravo, velho e rabugento, que não gostava de ninguém. Mas sinto que gostava de mim: uma criança indefesa. Ele era preto e branco, peludo, e não era bonito. Rex. Rex ficou cego, surdo, e não queria mais andar, nem comer. Não tenho certeza da ordem. Meus pais levaram-me até o canil para me despedir, mas não avisaram que seria uma despedida. Dei carinho nele, e não entendi por que mamãe escondia as lágrimas de mim. Lembro de sentir pena e amor. Não queria dar tchau. A vida de Rex acabou o sítio, com um tiro na cabeça, naquele mesmo dia. Meu ai o enterrou na mata mais próxima do local. Minha primeira perda foi sem explicação. Então eu nunca mais o veria? Não! Simples assim. Como tirar um espinho do pé, Rex foi tirado de mim. Não por meu pai, não por um deus, mas por mim. Eu não lembrava mais dele, e me culpava por isso, mesmo tão pequena. Quem não sabe perder desde cedo, não aprende nunca mais.
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Rex 2
O Rex nunca foi para ser meu. Primeiro era do meu pai, depois seria um presente para minha tia, era destinado ao sítio... Mas aquele bichinho, tão pequeno, ir para o meio do mato no frio do inverno? De jeito nenhum. Fiquei mais 3 meses com ele, até o inverno acabar. Mas uma coisa que o Rex sempre foi, é chato: só parava de latir pra chorar. Não sei por que eu o queria tanto pra mim, eu já tinha dois cachorros, bem mais legais. O Rex nem era bonito. Mas ah, fazer o que, o amor é assim... Me obrigaram a me separar dele quando ele ainda tinha 5 meses, um doce bebezinho. Um bebezinho que, a partir daquele dia, estaria longe de mim, amarrado no chão, de baixo de uma árvore, destinado a correr atrás de boi e levar coice de cavalo. E cale a boca, cachorro, vê se cresce! Eu, criança mimada e birrenta que sou, não ia deixar o meu filhote nas garras daquele lugar assombrado. Fiz meu pai comprar a comida dele pra que não tivesse dúvidas, não importava o que dissessem: o Rex era meu. Ele cresceu muito rápido, ficou forte, sempre muito magro, sempre muito assustado, sempre machucado. Aprendeu a não confiar em ninguém. Ele apanhava, brigava com outros cachorros e fugia quando sentia alguma cadela no cio... Era um cachorro selvagem, não era mais o meu bebê. Mas sempre que me via ele chorava, como fazia
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quando era pequeno. O Rex era muito dócil, muito brincalhão, mas aos poucos, foi ficando sério e bravo, avançava em todo mundo. Rosnava com o pelo do pescoço arrepiado e, se tivesse uma oportunidade, mordia sem pensar duas vezes. Tudo que ele queria era correr e tentar caçar algum bicho. Eu tinha 13 anos quando chorei em deixar ele lá pela primeira vez, e durante os 4 anos em que ele morou naquele lugar, todas as vezes em que eu tinha que deixar ele novamente, eu chorava. Chorava porque sabia que em algum momento ele não estaria mais lá. Iriam me dar alguma desculpa esfarrapada ou debochar da desgraça dele. Porque era assim que aquelas pessoas eram. Quando o buscamos de volta, definitivamente, não era o mesmo cachorro. Minha mãe que o ninava no colo para dormir, morria de medo daquele animal agressivo. O Rex não contou o que passou lá. Mas ele não precisava. Toda vez em que eu o deixava seus olhos ficavam mais escuros e mais perigosos. Então, se algum dia eu disser que mataria aqueles desgraçados pelo meu cachorro, não se espante. Porque foi o que fizeram com Rex aos poucos.
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Filhos
Gostaria de entender como uma geração que se preocupa mais com as roupas estarem passadas do que com uma tarde ensolarada se considera preparada para ter filhos. A maior parte dos transtornos psicológicos da vida adulta começa na infância, isso é fato. Mas, ao contrário do que muitos pensam, muitos deles não decorrem de uma infância traumática, pelo contrário, decorrem de uma infância acostumada a não sofrer (e que fique bem claro que isso não tem nada a ver com apanhar ou trabalhar desde cedo, não). O problema é que crianças são tratadas como crianças no momento em que deveriam amadurecer, e como adultas quando deveriam ser apenas crianças. São ensinadas a tratar aquele velho abusador, que é amigo dos pais, com respeito acima do desprezo que sentem. São ensinadas a estudar em escolas boas, em que não tem nenhum amigo. São ensinadas que um bichinho de estimação pode ser substituído por outro e não aprendem que cada momento é único. Essas crianças tiram a vida dos pais, que não podem sofrer sem que se sintam culpados, que colocam uma ingênua ilusão infantil como verdade apenas para que os “pobres pequenos” não sofram... Pobres pais, não se dão conta de que estão afogando os próprios sentimentos e adiando um sofrimento inevitável. Não deixam as crianças perce-
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berem que vão perder a mamãe e o papai e que podem perder o amiguinho ou até mesmo morrer também. Eu nunca tive esse choque de realidade e minha infância foi maravilhosa, porém minha adolescência é atormentada por todos esses anos em que pensei que as pessoas seriam eternas. Essas crianças viram jovens que sentem vergonha de sofrer (e, por isso, sofrem ainda mais), vergonha porque foram criados em um mundo mágico e inexistente, vergonha porque sempre há alguém sofrendo mais (e há, realmente)... Mas a verdade é que isso é problema de quem está sofrendo mais e não deles. O problema deles é aquele. Aquele com que eles não sabem lidar. Nós não sabemos lidar e pouco importa se há algo pior, porque, naquele momento, não há nada pior para nós. Não sabemos perder. Não sabemos lidar com o inesperado. Não sabemos reagir. Não sabemos nos colocar em nosso próprio lugar e somos obrigados a nos colocarmos no lugar dos outros. Falam como se a culpa de termos feito a vida de nossos pais um inferno fosse nossa e não querem que nos sintamos culpados por isso. Então, peço a você que, assim como Brás Cubas, falhe, seja uma pessoa má, seja qualquer coisa de ruim, odeie você mesmo, mas, por favor, não transmita a nenhum ser o legado de nossa miséria. Porque você não sabe sofrer e não saberá criar alguém que também não saberá sofrer.
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Guerra
É engraçado que antes da guerra eu costumava usar branco, a cor que simboliza a paz... Mas agora vejo que também é a que mais destaca o sangue, é a cor que usam os soldados da noite, almejando o mal, convocados para destruir toda a esperança da liberdade que nos foi tomada. Eu grito e ninguém me escuta. Fica impossível ouvir as lamúrias nessa guerra ensurdecedora. Os batimentos cardíacos são o ritmo das bombas. Nada resta a ser feito, a não ser sobreviver. Chegamos ao momento em que desejamos a morte, fascinados, mas sabemos que é tarde demais para qualquer coisa que não seja resistir. Então resisto, sem me encontrar: mutilada, desfeita, cheia de faltas e de medos. Já não sei em que parte termino e a guerra começa, porque agora a guerra está em mim, impregnada como um cheiro forte e pesado: o cheiro da derrota e da podridão dos corpos. Também já não há a velha distância entre os vivos e os mortos. O vazio cospe nos rostos feridos, corrompe, e começo a esquecer de como era ser completa. Rapidamente, perde-se tudo o que se tinha, e percebe-se que o nada vale infinitamente mais que o tudo e é infinitamente maior, porque é o nada: é a guerra, é a dor, somos nós.
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Recital
Eu havia convidado alguns amigos do teatro para irem ao tal recital de piano do “cara Húngaro”, na PUCRS. O fim de tarde estava quente e nublado como fora durante todo o dia, não sei se por esse motivo ou se pelas aves gritando freneticamente, ocultas em meio às árvores, mas eu tinha uma sensação angustiante de mau presságio. Como se elas debochassem de mim enquanto eu andava até a universidade, pressentindo algo ruim. Estava tudo estranhamente vazio, e tive um leve impulso de voltar para a segurança de casa, longe dos cantos maléficos e de um céu ameaçando derramar um temporal sobre minha cabeça. Mas eu contive minha intuição desconfiada e segui para a Igreja. Não faço ideia do porquê fazer um evento em uma igreja, não sou uma pessoa religiosa, mas gosto de observá-las. Só que aquela, mesmo sendo deslumbrante e misteriosa por fora, tinha uma cor amarelada e um pouco doentia, por dentro. Também nunca soube o porquê da maioria dos pianos serem negros ou semelhantes a um caixão. Cheguei um pouco atrasada (para não perder o costume), e percebi que nenhum de meus amigos havia ido. Sentei mais ao fundo, e passei a observar as pessoas: a maioria eram velhos, com roupas elegantes e jeito de rico. O que foi de extrema ironia porque, na casa ao lado da minha, uma senhora estava sentada em uma cadeira de
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plástico no jardim, de chinelo de dedos e com dois cães ao seu redor. Comecei a pensar em qual tipo de velha gostaria de me tornar. Então o músico chegou, e sem demoras, começou a tocar. Levou um tempo para que eu percebesse que ele não estava apenas testando o piano ou algo do tipo. Só me dei conta de que havia realmente começado quando as pessoas começaram a filmar. Então, comecei a prestar atenção, e... não parecia música, não era o que eu esperava. Era tão forte e pesada que eu tinha de concentra-me para não morrer de tanto prender a respiração. Descobri todos os pontos de tensão de meu corpo: todos tensionando mais e mais. Sempre pensei que música clássica era aquilo de notas suaves que eu colocava para relaxar... Mas, à medida que a música avançava, sentia-me mais insegura, era como ser parte da trilha sonora de um suspense agonizante. O ar lá dentro estava tão frio, que toda minha pele estava arrepiada. Eu imaginava que se as luzes estivessem apagadas e o ar estivesse quente como o que soprava das árvores, todos perceberiam que aquele era o som de quem conhece o fim da vida. Não era música, pois era o clamado de palavras inaudíveis. E, subitamente, as notas suavizavam-se, como um engano de emoções, uma trégua, de forma que tudo parecia fácil, bastava arrastar os dedos no piano e exaltar a liberdade... Então a fúria de sons recomeçava, e eu buscava um acolhimento inexistente, o som das fotografias era como
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um disparo de arma de fogo. Todos os maus presságios eram reais. Fui tomada por um desejo intenso de destruição: arrancar cada tecla a cada emoção que, de mim, era arrancada. Tive de suprimir e afundar a vontade de correr para longe da música, de olhos fechados, gritando para quem não era capaz de ouvir (mesmo tão perto), tentando afastar a solidão. Toda a noção de tempo e espaço perdida e inexistente dentro do mundo dos pensamentos: onde tudo é um só e meus eus se confundem. A inquietação do corpo pedia para ser música: elevando-se e caindo a cada troca de notas. E assim acabou, tão rápido quanto começou, mas com um videozinho engraçado na tentativa de abafar a tristeza que permanecia depois do ápice de lembranças de que fomos sobrecarregados. E assim fomos embora. E assim a chuva começou.
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Último show
Há uma semana havia sido o aniversário de 15 anos de Helena, para muitos aquela data era conhecida como “a idade mágica das meninas”, mas não para ela. Sua família, como no ano anterior, decidiu não fazer festa. Eles não esqueceram da data, mas não estavam em um clima agradável para comemorações. Contudo, Helena entendia e não havia ficado triste com isso, porque estava prestes a realizar um de seus maiores sonhos, coisa que nos últimos tempos não imaginava que ainda fosse possível. Ela começou a gostar da banda desde a primeira vez que a ouviu. Sua família, muito católica, não aprovava seu gosto musical, pois dizia que não era comum para garotas da sua idade gostarem daquela “coisa barulhenta”, e que sua alma seria eternamente condenada por ouvir Heavy Metal... Mas Helena não era uma adolescente rebelde, e sabia que merecia ao menos esse presente de aniversário. Então decidiu ir ao show, que ia acontecer na sua cidade, mesmo que sozinha. Ainda assim, uma última vez antes de entrar, pediu a Deus uma chance de poder compartilhar esse momento com alguém que a ame, depois dos últimos dias tão solitários que enfrentara. Com os olhos cheios de lágrimas e o coração cheio de esperança Helena procura por alguém na multidão, alguém que se lembre do quanto a banda foi importante para ela durante suas sessões de quimioterapia... Nesse momento
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ela vê, surpresa, seu avô, hesitando na entrada do show. Helena sempre fora a pessoa mais próxima de seu avô, pode ser que por ser a neta mais nova e não tê-lo conhecido em seus piores dias boêmios, não o julgasse como todos os outros. Seu Aurélio pensava na neta como a última chance de redenção de um velho pecador. Ele não havia sido uma boa pessoa nem mesmo com a própria família, o que lhe resultara em uma longa velhice sem amor. Seu Aurélio quase não via a neta quando pequena, mas ao fazer 11 anos, Helena, talvez por pena, talvez por ser boa demais, começou a visitá-lo em algumas tardes, toda semana. Às vezes eram visitas rápidas, e às vezes só ficavam ali: sentados, esperando o tempo passar, olhando a rua. Suas conversas eram escassas e triviais, mas nada disso importava, porque Helena sempre lhe dava um beijo ao chegar e ao sair, e era o suficiente. Por isso, seu Aurélio vestiu-se de preto, a maneira que achou mais adequada a esse tipo de show, (no qual nunca imaginara que iria, e cujo nome jamais saberia pronunciar) e, ao se olhar no espelho, pensou no tamanho da ironia do que está fazendo. Antes de entrar no evento, ele repensa se a terrível dor de cabeça que ainda sentirá no dia seguinte valerá a pena... Mas também pensa na neta, abre a carteira e olha uma pequena foto da garota guardada ali, sorrindo, com a cabeça raspada por causa do câncer. Helena, que morreu duas semanas antes de completar 14 anos. Então ele sente sua
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presença reconfortante pedindo para que realize ao menos esse último sonho por ela.
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Meus avรณs
Meus avós sempre foram uma incógnita para mim. A única que sinto que conheci de verdade foi minha avó materna. Nós convivíamos mais e conversávamos mais, mas sempre a conheci um pouco triste, velha e doente. Queria ver a beleza de sua juventude e ouvir sua voz maravilhosa da qual todos falavam. Queria ouvi-la cantar, queria que arrumasse meu cabelo como fazia em seu salão de beleza... Queria não só ter tudo o que ela fez por mim, mas que tivesse a oportunidade de fazer mais. Queria saber o que pensava da vida, que histórias me contaria, além daquelas que eu já conhecia. Só consegui conhecer mais de meu avô quando minha avó morreu, antes eu só passava por ele e ia vê-la. É que ele era tão calado, tão quietinho... e era um pouco surdo também, tínhamos que ficar nos repetindo para que ele ouvisse. Os netos mais velhos contavam de brincadeiras que eu, a mais nova, já não tive. Todos gostavam dele, mas toda vez que eu perguntava sobre ele para alguém me respondiam coisas ruins: alcóolatra, bêbado sujo, algumas vezes violento... Aquele não era o meu avô. Não se parecia com aquele velhinho sentado em uma cadeira na porta, cumprimentando todos da rua. Mas era ele. Apesar de amado, era odiado. Meu avô que fugiu da segunda guerra, que se casou com minha avó, que era dono de um mercadinho que depois virou um bar... Vivi 15 anos com ele para conhecê-lo tão pouco, que desperdício!
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Quanto a minha avó paterna, nunca pensei nela sem a doença, nunca gostei de sua companhia pelas perguntas repetitivas e pelo que meu pai contava dela. Uma pessoa ruim, ele dizia com desgosto. Uma pessoa ruim que acolheu a neta abandonada pela mãe e que aguentou desaforos dos filhos. Eles, que tinham opiniões diversas, por serem tão diversos. Em uma conversa sobre a juventude dela, pude conhecer um pouco mais de como aquela mente funcionava, quando ainda funcionava... Gostaria de saber mais sobre sua vida difícil e sobre como se sentia. Ainda posso ir lá e perguntar para ela, claro. Mas ela não irá saber quem pergunta. Não será uma história de avó e neta. Meu avô paterno eu nunca conheci. Não havia como, temos dois séculos de diferença. Fomos impedidos pelo tempo. Meu pai o amava, ainda o ama. Ele virou uma lenda para mim, é quase como se nunca tivesse existido. Muito alto, um péssimo dançarino e um pregador de peças de primeira, segundo minha avó, odiava bailes e adorava dar sustos. Segundo ela também, um velho rico com quem se casara ainda jovem. Um velho rico que, quando criança, trabalhava de pés descalços no campo, porque até os 21 anos não tinha calçados. Segundo meu pai, um homem de princípios, sábio e sério com os negócios. Mas nenhum deles o conheceu jovem. Nenhum deles sabe pelo que passara. Os filhos do primeiro casamento também nunca foram meus tios, por algum motivo, nunca fizeram questão de que eu os conhecesse. Meu avô paterno é um completo mistério, é uma foto em preto e branco na sala, é um belo relógio de
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corda na parede, é um ponto de vista, é um herói antigo e místico... Não é um avô.
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Abas em aberto
Algumas coisas inacabadas e tantas outras há pouco iniciadas. Frutos de curiosidade, obrigação ou um simples tédio. Uma vontade incessante de fazer algo que não se sabe o que é. Divisão de ideias e raciocínio cruzado, embriagado, bagunçado. Histórias recém descobertas, diversões perigosas, redes de mentiras e impacientes responsabilidades. Tudo se confunde e quase se mistura. Na ficção, na realidade ou na quase verdade, nada é um só. O apelo às multifaces é ensurdecedor, provoca, e sempre cedemos. Sobrecarregados de abas (físicas e mentais) em constante atualização, nos perdemos no desconhecido que nós mesmos criamos. Os sons abafados e sufocados são substituídos por músicas de fora, dentro só há o contínuo silêncio maquinal. A luz ofuscante das novas informações cansa os olhos, mas não a alma. Passatempos comuns, outrora impensáveis, logo serão obsoletos e repetidos: a inovação ficou restrita ao lápis e papel. Porém não se busca inovar, se busca saciar. Saciar a vontade do mais, sempre mais. Mais pessoas ausentes, mais conexões indiferentes e mais trabalho e mais esforço, mas de forma tão prática e tão fácil. Janelas abertas para o mundo, onde se fascina ao ver mais do mesmo. As facilidades tornam-se difíceis. É difícil conciliar, é difícil controlar, é difícil descansar. O impulso da modernidade e a carência da companhia oprimem a velha vida pa-
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cata e sossegada. Os impossíveis tornam-se o comum com a chegada da possibilidade de assumir mais tarefas, para alcançar novos objetivos gananciosos. Poucas abas da vida são saudáveis. Poucas abas virtuais são realmente acessíveis. Os registros são refeitos com a esperança de que se possa mudar o passado. As atividades são revisadas com a esperança de que se entenda as escolhas feitas. Nenhum vestígio de erro é deixado para trás, com a esperança de que a consciência seja consolada. Já não se admite fraquezas. Fecho a primeira. Fecho a segunda. Fecho todas. Não resta nada a ser visto, nada a ser esquecido, nada a ser apagado. Nem um passado a ser corrigido. Não há nada. Nunca houve.
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Aventura macabra
Isabelle não estava prestando atenção no que Simon lhe dizia ao telefone, continuava fascinada com aquele livro. No momento estava lendo a parte em que uma detetive é assassinada em sua própria casa. Ao ouvir o amigo chamar seu nome pela segunda vez, finalmente fechou o livro e lhe deu atenção. Ele a convidava para uma festa, onde dizia que todos os jovens da pequena cidade iriam estar. Ela decidiu não ir, prometera aos pais que não sairia de casa enquanto eles estivessem viajando. Desligou o telefone e foi buscar a coelha, do lado de fora da casa. Tudo bem que aquela era a única casa do bairro que estava habitada, mas ela achava as ruas desertas sinistras demais, então trancou todas as portas. Depois do banho foi se deitar e voltou a ler o livro. Olhou para o relógio e já eram 3 horas da manhã. Foi quando o telefone tocou. Ela atendeu, mas só havia uma respiração pesada na linha, então desligou. Logo que apagou a luz, Isabelle dormiu e a chuva começou a cair. Isabelle acordou sentindo-se observada, acendeu a luz e não viu nada além da coelha dormindo aos seus pés. Porém, ao olhar pela janela, viu que a chuva era vermelho-sangue. Isabelle sobressaltou-se, levantando-se da cama. Quando levou a mão ao telefone, ouviu um enorme estrondo vindo de cima. Ela andou até a saída do quarto, quando chegou ao
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corredor, ouviu o choro de uma menininha vindo de trás da porta do quarto ao lado. Quando a abriu, viu sangue e brinquedos quebrados ao redor da menininha, que sorria maldosamente para ela. Isabelle recuou, trêmula e ofegante, e fechou a porta. Ao se virar para voltar para seu quarto, viu um velho senhor vestido de preto, segurando a cabeça da coelha na mão esquerda, a chamar com a mão direita para dentro de seu quarto. Isabelle fechou a porta e, ao virar-se para correr em direção à saída da casa, viu um enorme cachorro preto encarando-a fixamente, rosnando e mostrando os dentes. O cachorro começou a correr em sua direção, o que a fez subir as escadas do sótão em alta velocidade. Lá dentro tudo era escuro e abafado. Isabelle chorava e segurava a cabeça, pensando no que fazer, seus olhos ajustavam-se lentamente à escuridão. Seus pés mergulharam em uma água suja, e o cheiro do ambiente era de mofo e podridão. A água começou tornar-se mais funda e a empurrá-la para o centro do cômodo, para dentro de um buraco negro, assustador e sem fim. Ela tentava, inutilmente, se afastar, gritar e respirar. Enquanto caía no abismo, olhou para cima e viu uma mulher diabólica, com olhos negros e um vestido branco antigo, sujo de lama e sangue, rir satisfeita. Isabelle acordou com um grito, suada e ofegante. O dia já tinha começado a clarear. A coelha dormia pacificamente. Isabelle levantou-se e foi até a janela, e ao olhar
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para o casarĂŁo antigo do outro lado da rua, viu a mulher de seu sonho.
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Deus em forma de criatura
Quando a criatura encantada lhe disse que ele teria direito a apenas um único desejo, ele, muito esperto, soube instantaneamente o que pediria. — Se é assim, quero ter o dom de poder realizar todos os meus desejos, bastando para isso apontar apenas o meu dedo. — Que assim seja, mestre! — disse a criatura com um sorriso irônico. Então a criatura arrancou-lhe os dedos, temendo, algum dia ser desafiada novamente.
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Jake
Era uma noite fria e escura, ventava e chovia fraco. Havia um garotinho de seis anos, em seu quarto, deitado na cama, debaixo das cobertas. O quarto era pouco iluminado e o menino estava quase dormindo. O relógio marcava meia-noite, iniciava a sexta-feira 13. O ursinho de pelúcia chamado Jake, com quem o menino dormia, caiu no chão, ele estendeu a mãozinha para pegá-lo quando uma mão áspera pegou a sua. O menino arregalou os olhos e procurou alguém em volta, mas a mão vinha de baixo da cama. Fechou os olhos e tentou puxar a própria mão de volta e esconder-se entre as cobertas, mas a mão que o segurava era pegajosa e molhada com um líquido quente. Ele sentia o cheiro de sangue. O menino criou coragem e gritou, mas nada saiu de sua boca, aberta em desespero. Acordou e o suor cobria seu corpo, sua mão tinha algo vermelho, seu ursinho estava no chão. Foi quando viu a sombra assustadora no meio da escuridão de um canto de seu quarto. Então a criatura, o monstro mais assustador, terrível e cruel que poderia existir, aquele que invadira sua casa e estava observando-o, estendeu a mão e foi em sua direção. O garotinho choramingou e torceu para ser outra coisa, mas entrou em pânico quando viu e a criatura era um homem: um ser humano sem um pingo de humani-
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dade, com sua roupa preta ensanguentada, com um machado na mĂŁo. E o menino se tornou aquilo que muitos temem, sem necessidade alguma, um pobre fantasma.
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Mundo morto
Outro dia eu estava passando na frente de um cemitério, estava escuro, ia chover, e a chuva apagaria as velas e molharia as flores daqueles entes queridos de alguém, que não sei como ou quando se foram. A chuva também iria tirar a poeira daqueles túmulos que já foram esquecidos... “O esquecimento é inevitável” dissera alguém, que algum dia, também não passará de pó. Estamos condenados a viver assim, no fundo, sempre estamos condenados a algo. Vi uma menina, um pouco mais nova do que eu, parada, encarando o vazio com uma grande tristeza... O resultado de viver em um mundo de mortos. Como uma gélida e antiga estação de trem. Para mim, elas se parecem muito com cemitérios. Sempre senti um certo medo dos dois. Talvez fosse o medo da despedida. Mas o que é o medo em um mundo assustador? Os cemitérios de lembranças em que me afundo, são bem piores do que esses cheios de lápides. De repente, tudo se esvai de suas mãos e você percebe que a vida pode ser bem mais desesperadora que a morte.
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Piso gelado
Abro os olhos no silêncio, o nascer do sol invade aos poucos o ambiente. O meio do salão da escola é tudo que vejo. Ouço crianças rindo no andar de cima. Preciso sair daqui. Por quanto tempo dormi? Uma música começa a tocar: “Somos suspeitos de um crime perfeito mas crimes perfeitos não deixam suspeitos”, eu ouvia deitada no piso gelado do salão e me esquecia de respirar. Passei cerca de 20 minutos comigo mesma e quase não suportei meus pensamentos, meu corpo não suportou muito bem... Com a cabeça a mil, eu não sentia vergonha de ser tão estranha. Disseram até que eu estava com raiva de mim, ou com raiva dos outros, mas eu não diria raiva, e sim que senti a vida se esvaindo aos poucos de mim. Senti como se não existisse. Sentia-me exposta, mas ninguém, nem mesmo eu poderia ter ideia de minhas ideias. Eu pensava sobre infinitos, sobre quantos deles caberiam em cada um, ou até mesmo naquele teto. Tentava criar um novo, único, particular, mas me senti impotente de novo. Quantas pessoas mais privam vontades e sonham acordadas, se negando a acreditar que o mundo é realmente como é e se sentem incompreendidamente perdidas? Pensei sobre coisas passadas, sem nenhum interesse no futuro e refletindo sobre como levarei o presente. De-
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vemos ser gratos pela criação, pois criamos destruição para coisas construídas. Lembrei-me do meu brilho no olhar de criança, tentei ouvir o que o silêncio me contava, talvez fosse uma história sobre o tempo, história incerta. Era uma vez uma garotinha, sobrava-lhe inspiração e faltava-lhe muita esperteza, posso vê-la perdida em um castelo... Seria ela seu próprio fantasma, seu medo? Ela podia enxergar o mundo, mas não via nada. Quantos duplos sentidos existem em uma só intenção?
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O dia antes do suicĂdio
Aquele dia em que tudo dá errado, quando se vê as pessoas erradas. Aquele dia em que um cachorro se encolhe, medroso, do seu guarda-chuva. Aquele dia em que a velha senhora sentada sozinha na calçada, com o olha perdido e desfocado, finalmente te enxerga e você sente pena de si mesmo, porque ela vê tudo o que você esconde. É o dia que você não vai pra casa quando fica cansado porque tem compromisso mais tarde, mas ainda tem de esperar a hora desse compromisso porque ainda é muito cedo. É o dia em que o encontro com as pessoas que você gosta é cancelado minutos antes de você se arrumar e você fica tão aliviado quanto sozinho, então resolve preencher a solidão com comida, música, trabalho, e fica cada vez mais pesado, cada vez mais vazio. É aquele dia em que o silêncio é tão sufocante que é impossível se concentrar em todos os barulhos incessantes. É aquele dia que você fica pensando em mil tarefas a fazer, e não faz nenhuma porque não consegue tomar nenhuma decisão. É o dia em que você não conversa com ninguém, não ganha nenhum abraço... E esse dia fica tão confuso e bagunçado que você simplesmente aceita, em que tudo é tão demorado que você não percebe acabar tão rápido.
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Ônibus
No ônibus, a mulher se levanta apressada. A bolsa enrosca no banco e ela a puxa com força, resmunga e faz uma expressão feroz e um tanto triste, se observar bem. Ela caminha aos solavancos e, quando chega em frente à porta, o ônibus freia bruscamente. A mulher é lançada de cabeça para fora do ônibus, rola pelos degraus e quebra o pescoço na rua. O carro que está passando esmaga metade de seu corpo, espalhando mais sangue pelo asfalto. A bolsa paira ao seu lado. Todos ficam em choque, e só o riso esganiçado da garota do banco de trás é capaz de quebrar o silêncio.
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Adorno
Desde pequena ela gostara de adornos: enfeitava seu quarto com objetos dos mais variados, coisas que sua mãe ia jogar fora, flores, fotografias, recortes de livros... Era uma pequena colecionadora de delicadas inutilidades. Vez que outra, guardava joaninhas mortas em potinhos ou pedaços de coisas quebradas. Recolhia os recados, bilhetes e cartões espalhados pela casa, dentinhos de crianças e convites de aniversário. Desenhava nas mãos, coloria o cabelo e pintava os pequenos lábios. Uma artista das belezas ignoradas... Com o tempo, seu amor por adornos foi crescendo, ficando mais maduro, mais sujo, mais cruel. Colecionava partes da vida adulta: amores desfeitos, crimes imperfeitos, acidentes suspeitos, corpos em decomposição, mortes sem explicação e sofrimento sem solução.
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Beijando a morte
Eu tentava, desesperada, aquecê-lo. Ele estava tão frio que seu gelo passava para a minha pele. Mas todos os meus esforços eram em vão. O prédio estava escuro e apenas uma janela, no último andar, era capaz de iluminar a nossa. Nem a noite era capaz de trazer algum alento: era de um azul escuro e suave, como seu rosto delicado. Ainda assim, ele parecia dormir e eu esperava que acordasse chorando a qualquer momento, despertando-me também... Mas ele permanecia em silêncio e eu continuava ninando, balançando para a frente e para trás, incansavelmente. Quando finalmente o tiraram de mim, dei-lhe um último beijo, e foi como se beijasse a própria morte. Todo meu copo e todo meu espírito foram eternamente envoltos pela gélida morbidade de criança: o que não deveríamos ver, não deveríamos tocar e não deveríamos amar. Meus lábios jamais serão vivos novamente. Sou uma jovem de lábios desencarnados, encaixotados, enterrados e decompostos. Levados embora junto com a vida dele.
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Coisas que são efêmeras
A inocência de uma criança, enquanto ainda acha que o mundo é perfeito. A gravidez de uma mãe que perde um filho. O tempo que passamos com um filhote no colo. Um amor adolescente, um abraço de despedida. O momento em que saboreamos nossa comida preferida. Um dia de sol na praia. O alívio de um banho quente depois de um dia cansativo. A sensação da água gelada quando lavamos o rosto depois de chorar. O perfume de quem amamos na nossa roupa. A descoberta de um novo livro, uma nova história, uma nova vida. A paisagem desconhecida. O calor que aquece por dentro quando tomamos algo quente. A embriaguez para fugir da vida. A falta de fôlego depois de correr atrás dos momentos. O tempo é efêmero porque achamos que ainda o temos, quando, na verdade, já o perdemos. A vida é mais breve que a arte. A efemeridade das coisas é o que dá sentido ao viver.
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Uma nรฃo histรณria de amor
Eles eram vizinhos e se conheceram ainda crianças. Guilherme era uns dois anos mais velho que Marina. Dois anos depois, por ironia ou coincidência, os dois começaram a estudar juntos. Porém, continuavam sem se falar, para não perder o costume, mesmo sentando lado a lado. Foi no primeiro ano do ensino médio que ela começou a perceber seus cabelos negros, seus músculos salientes na educação física e seus dentes incrivelmente brancos... Mas Marina nunca conseguiu olhar dentro da escuridão dos olhos de Guilherme, ela ficava com medo de que ele visse em seus olhos tudo o que sentia. Já no segundo ano, eles conversaram durante uma aula inteira e Marina sentia-se feliz até chegar em casa e descobrir que seu avô tinha morrido enquanto os dois riam um do outro. Uma semana depois Guilherme se mudou para outro estado, a classe ao lado de Marina estava vazia e ninguém parecia perceber ou se importar. No terceiro ano, Marina viu Guilherme em uma festa, ele olhou para ela durante alguns instantes para, em seguida, sair de mão dadas com outra garota. No final do mesmo ano, Marina se apaixonou por outro menino de cabelos e olhos escuros. Os dois nunca mais trocaram nenhuma outra palavra.
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Tatuagens
Quando as portas do trem se abriram, uma borboleta azul bateu as asas, ansiosa contra a noite fria e escura. Atrás dela, seguia um rosnado abafado em meio aos sussurros e gritos da multidão. O calor do hálito daquele lobo era tão pesado quanto a podridão do ar que aquela borboleta cortava com agilidade. A buzina do trem abafou o desespero frágil daquela borboleta, enquanto a fome da fera quase saltava de sua boca. Nem mesmo o lobo imaginara que sairia tanto sangue de uma criatura tão pequena. Ele se divertia recortando a pele desenhada de seu pescoço e lambendo a faca, assim como o lobo lambia os dentes na tatuagem de seu braço.
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