DIA MUNDIAL DA POESIA 2020
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Estar com O meu ouvido escuta até já não se arrepender de ficar de fora e por dentro com os caprichos do espaço com as vaidades do tempo E pelas ruas nuas e vestidas vou apregoando ainda fomes de outras eras de outras errâncias com feras à altura de as fazer cessar – todos os caminhos levam ao mar querem lá voltar talvez até levar-me As mulheres precisam de vontade e paciência a mais para serem bíblicas Fazem-se esperar e desejar onde estão desde sempre tão solitária e somente acompanhadas pois a companhia ou seja o precipício é a sua primeira ciência O meu ouvido escuta a sereia permitindo-lhe as duas pernas e uma cauda Regina Guimarães Poema original produzido por ocasião da oficina de escrita evocativa de Sophia e publicado no livro Instantes, editado pela Biblioteca da Escola Secundária de Amares, 2019.
ANTOLOGIAS
Alves, Hélio Osvaldo (Seleção e tradução) Também eu sou a América Poemas de escritores negros Norte-Americanos 1ª ed Guimarães: Pedra formosa, 1997 ISBN: 972-8118-16-3
Da Mãe ao filho Olha, filho, ouve o que te digo: P’ra mim a vida nunca foi escada de cristal. O que mais tive foram pregos levantados, E farpas, E tábuas podres, E sítios sem tapete no chão - Vazios. Mas tenho vindo Sempre a subir, A chegar a patamares, A dobrar esquinas, E às vezes vou pr’ó escuro Onde não há luz. Por isso, filho, não voltes atrás. Não te sentes nos degraus Pois hás-de ver como são duros. Não caias agora - Porque eu cá vou indo, querido, Cá vou subindo, E p’ra mim a vida nunca foi escada de cristal. Poema Langston Hughe escolhido e traduzido por Hélio Osvaldo Alves
Andresen, Sophia de Mello Breyner (Seleção) Primeiro livro de poesia - Poemas em língua portuguesa para a infância e a adolescência 11ª ed. Lisboa: Caminho, 2008 ISBN: 978-972-21-0597-2 O futebol brasileiro evocado na europa A bola não é inimiga como o touro, numa corrida; e embora seja um utensílio caseiro e que não se usa sem risco, não é o utensílio impessoal, sempre manso, de gesto usual: é um utensílio semivivo, de reação própria como bicho, e que, como bicho, é mister (mais que bicho, como mulher) usar com malícia e atenção dando aos pés astúcia de mão. Poema de João Cabral de Melo Neto escolhido por Sophia de Mello Breyner Andresen
Correia, Manuela, (organizadora) Rosa do Mundo - 2001 poemas para o futuro 3ª ed Lisboa: Assírio & Alvim, 2001 ISBN: 972-37-0633-4 A rosa do mundo Quem sonhou que a beleza passa como um sonho? Por estes lábios vermelhos, com todo o seu magoado orgulho, Tão magoados que nem o prodígio os pode alcançar, Tróia desvaneceu-se em alta chama fúnebre, E morreram os filhos de Usna. Nós passamos e passa o trabalho do mundo: Entre humanas almas, que se agitam e quebram Como as pálidas águas em seu fluxo invernal, Sob as estrelas que passam, sob a espuma do céu, Vive este solitário rosto. Inclinai-vos, arcanjos, em vossa incerta morada: Antes de vós, ou de qualquer palpitante coração, Fatigado e gentil alguém esperava junto ao seu trono; Ele fez do mundo um caminho de erva Para os seus errantes pés. Poema de W. B. Yeats traduzido por José Agostinho Baptista
Correia, Natália (Organização) Antologia da poesia do período barroco 1ª ed Lisboa: Moraes, 1982 A uma despedida Agora, que o silêncio nos convida, Disscursemos um pouco, ó pensamento, Demos um desafogo ao sofrimento, Pois lhe demos a pena sem medida: Enfim, chegou aquela despedida Em que, perdido meu contentamento, O mais que me ficou foi meu tormento, O menos que deixei foi toda a vida: Para que era ficar-me na memória As lembranças de um bem tão malogrado? Falta-me o bem, faltaram-me as lembranças. Se verei outra vez tão doce glória? Mas ó suave engano, ó vão cuidado! Inda eu cuido outra vez em esperanças! Poema de António Barbosa Bacelar escolhido por Natália Correia
Cruz, Gastão (Seleção) Quinze poetas portugueses do seculo XX 1ª ed Lisboa: Assírio e Alvim, 2004 ISBN: 972-37-0984-8 Minibiografia Não me quero com o tempo nem com a moda Olho como um deus para tudo de alto Mas zás! do motor corpo o mau ressalto Me faz a todo o passo errar a coda. Porque envelheço, adoeço, esqueço Quanto a vida é gesto e amor é foda; Diferente me concebo e só do avesso O formato mulher se me acomoda E se nave vier do fundo espaço Cedo raptar-me, assassinar-me, cedo: Logo me leve, subirei sem medo À cena do mais árduo e do mais escasso. Um poema deixo, ao retardador: Meia palavra a bom entendedor. Poema de Luiza Neto Jorge escolhido por Gastão Cruz
Eanes, António Ramalho (Seleção) Os poemas da minha vida 1ª ed Lisboa: Público, 2006 ISBN: 989-619-080-1 Há palavras que nos beijam Há palavras que nos beijam Como se tivessem boca. Palavras de amor, de esperança, De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas Quando a noite perde o rosto; Palavras que se recusam Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas Entre palavras sem cor, Esperadas inesperadas Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama Letra a letra revelado No mármore distraído No papel abandonado)
Palavras que nos transportam Aonde a noite é mais forte, Ao silêncio dos amantes Abraçados contra a morte. Poema de Alexandre O’Neill escolhido por António Ramalho Eanes
Fanha, José; Letria, José Jorge (Seleção e organização) Cem poemas portugueses no feminino 1ª ed Lisboa: Terramar, 2005 ISBN: 972-710-390-1 Mutilações Escreve agora a música que os muros trauteiam como eu dilapidei o meu tesouro. Desenha agora a árvore que rebentou por dentro. Mostra agora o coração com uma flecha no centro. Vivi de brilho e cuspi ouro pela boca. Se ninguém me quis prender foi porque não dei caça não dei luta nem falei em razão de força maior nem sequer do futuro que me escuta. Este livro custa a abrir e aquela porta a fechar. Desata agora a chorar mesmo sem querer mesmo sem sentir. Chora por tudo o que não está para vir. Poema de Regina Guimarães escolhido por José Fanha e José Jorge Letria
Fanha, José; Letria, José Jorge (Seleção e organização) Cem poemas portugueses sobre a infância 1ª ed Lisboa: Terramar, 2004 ISBN: 9727103820 Não se amam os poetas Não se amam os poetas que descem do rio porque Porque o rio é negro e fundo e uma voz canta na outra margem Voz sempre estrangeira E no rio desce também um lago de jardim Artificial e inútil com peixes vermelhos De noite ouvia os animais da selva por entre gritos. Animais que ressonavam por entre barras de ferro O sono de sua força prisioneira E passavam cavalos da Guarda sobre a calçada E só mortos os seus passos o medo morria E eu não ser amada no rio sem o ver E ouvia a voz da outra margem E no lago de peixes vermelhos Era tudo tão pouco e cercado E na noite os animais vinham derrotados e poderosos no seu sonhar Chorando eu ia pelo rio nele fundida Não tinha uma boneca para dormir Escusava de abrir e fechar os olhos a boneca Bastava só ser boneca para eu adormecer e dormir a minha idade. E as grades da minha cama de ferro foram sempre duras de mais E boiava de noite pelo rio e descia na jangada do lago Poema de Matilde Rosa Araújo escolhido por José Fanha e José Jorge Letria
Lapa, Manuel Rodrigues Cantigas D'Escarnho e de Mal Dizer Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1998 ISBN: 9789729230424 Um infançom mi há convidado que seja seu jantar loado par mi, mais eu non'o hei guisado; e direi-vos per que mi avém: ca já des antan'hei jurado que nunca diga de mal bem. Diss'el, poilo jantar foi dado: - Load'este jantar honrado! Dix'eu: - Faria-o de grado, mais jurei antan'em Jaen, na hoste, quando fui cruzado, que nunca diga de mal bem.
Lisbon Poetry Orchestra (Poemas de Cláudia R Sampaio, Daniel Jonas, Filipa Leal, Paulo José Miranda, Valério Romão) Poetas Portugueses de Agora 2 CD Lisboa; Abysmo, 2018 ISBN: 9789898688637
desprezas-te a ti mesmo como as paredes do castelo o viajante constróis o isolamento pedra a pedra o desconhecido que somos que o outro nunca nos é e nós nunca lhe somos onde não há ninguém, nem as urzes nas solitárias colinas do norte, é onde estás, aí, nessa clareira abandonada por séculos, a que nos foram habituando a chamar eu, sentado à mesa com talheres, modos de estar e uma gramática rudimentar o tempo é uma medida, de um coração a si mesmo não há tempo onde estender uma toalha, apenas um meio tom e um sonho espetado numa árvore o sonho, que também atravessa as paredes da casa ao fim do dia, esse sol baixo como um arbusto tocado pelo vento da tarde e uma geometria próxima do incêndio e tu velho que nem uma lembrança, velho que nem as oliveiras do sul, velho que nem seguras-te à colher da sopa ainda antes do dia cair arrastas um tremendo aguentar existir mais pesado que o móvel da sala, que não consegues mudar, que já nem pensas em mudar nem a tristeza, essa chave, soubeste onde a deixaste as tuas mãos tremem por tremer, não são sombras de emoção chegas ao caixão sem ninguém se lembrar de nada nem tu, nem eu, nem Poema de Paulo José Miranda
mãe, valter hugo e Reis-Sá, Jorge A alma não é pequena 100 poemas portugueses para sms 1ª ed. Vila Nova de Famalicão: Centro Atlântico, 2003 ISBN: 972-8426-64-X Beleza Vem do amor a Beleza, Como a luz vem da chama. É lei da natureza: Queres ser bela? – ama. Excerto de Beleza, de Almeida Garrett
Martins, Albano (Recolha) A mãe na poesia portuguesa 1ª ed Lisboa: Público, 2006 ISBN: 986-619-089-5 Infância e jogava o pião com Deus enquanto minha mãe estendia roupa e o meu pai mendigava o pão e minha alegria nesse tempo era muito próxima da dos meninos e de Deus que ganhava sempre e não sei quem perdi primeiro: o pião ou Deus apenas sei que Deus continua a jogar com outros meninos e que no Outono quando saio à praça nos sentamos e falamos muito do suave rodopiar das folhas Poema de Daniel Faria escolhido por Albano Martins
Moura, Vasco Graça 366 poemas que falam de amor 1ª ed. Lisboa: Quetzal Editores, 2003 ISBN: 972-564-583-9 O namorado e o tempo O namorado contempla o corpo da namorada vê o corpo como está, não vê como o corpo foi nem com o corpo será. Se aquele corpo amanhã mudar de peso, de forma mudar de ritmo e de cor, o namorado, infeliz, vai sofrer mesmo demais: não calculou o futuro, a mulher quebrou o encanto, ele só vê a mulher no momento em que a vê. Poema de Murilo Mendes escolhido por Vasco Graça Moura
Moura, Vasco Graça Os poemas da minha vida 2ª ed Lisboa: Público, 2005 ISBN: 972-8892-80-2
BALADA DAS TRÊS MULHERES DO SABONETE ARAXÁ
As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam, me hipnotizam. Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde! O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!
Que outros, não eu, a pedra cortem Para brutais vos adorarem, Ó brancaranas azedas, Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata Oh celestes africanas: Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres do Sabonete Araxá! São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do Sabonete Araxá? São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas? São as três Marias?
Meu Deus, serão as três Marias?
A mais nua é doirada borboleta. Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava pra beber e nunca mais telefonava. Mas se a terceira morresse... Oh, então nunca mais a minha vida outrora teria sido um festim! Se me perguntassem: Queres ser estrela? queres ser rei? Queres uma ilha no Pacífico? Um bangalô em Copacabana? Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca. Eu só quero as três mulheres do sabonete Araxá: O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá! Poema de Manuel Bandeira, escolhido por Vaco Graça Moura
Nejar, Carlos (Seleção) Antologia da poesia brasileira contemporânea 1ª ed Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986 O Fogo no Canavial A imagem mais viva do inferno. Eis o fogo em todos seus vícios: eis a ópera, o ódio, o energúmeno, a voz rouca de fera em cio. E contagioso, como outrora foi, e hoje não é mais, o inferno: ele se catapulta, exporta, em brulotes de curso aéreo, em petardos que se disparam sem pontaria, intransitivos; mas que queimada a palha dormem, bêbados, curtindo seu litro. (O inferno foi fogo de vista, ou de palha, queimou as saias: deixou nua a perna da cana, despiu-a, mas sem deflorá-la). Poema de João Cabral de Melo Neto escolhido por Carlos Nejar
Oliveira, José Alberto; Mendonça, José Tolentino; Queirós, Luís Miguel Queirós; Freitas, Manuel de (Seleção) Resumo – a poesia em 2010 Lisboa: Assírio e Alvim, 2010 ISBN: 978-972-37-1584-2 Acto de ler O acto de ler reabre feridas. Nos livros em que isso acontece, com frequência, poderia ao menos haver um aviso na capa; assim como se faz com as carteiras de tabaco, embora se saiba que poucos deixam de fumar por isso. Poema de Teresa Jardim
Pedrosa, Inês (Organização e Prefácio Poemas de Amor - Antologia de poesia portuguesa 9ª ed Lisboa: Dom Quixote, 2007 ISBN: 978-972-20-1944-9 Quando o amor morredDentro de ti Ao Manuel Torre do Valle Quando o amor morrer dentro de ti, Caminha para o alto onde haja espaço, E com o silêncio outrora pressentido Molda em duas colunas os teus braços. Relembra a confusão dos pensamentos, E neles ateia o fogo adormecido Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido Espalhou generoso aos quatro ventos. Aos que passarem dá-lhes o abrigo E o nocturno calor que se debruça Sobre as faces brilhantes de soluços. E se ninguém vier, ergue o sudário Que mil saudosas lágrimas velaram; Desfralda na tua alma o inventário Do templo onde a vida ora de bruços A Deus e aos sonhos que gelaram. Poema de Ruy Cinatti escolhido por Inês Pedrosa
Pupo, Inês (Organização) 101 poetas - Iniciação à poesia em língua portuguesa 4ª ed Lisboa: Editorial Caminho, 2007 ISBN: 978-972-21-1889-7 Ouves, meu amor Ouves, meu amor, a água que brotou No côncavo da pedra que a tua mão marcou? Ouves, meu amor, o passo do veado Correndo no caminho que só por nós pisado? Entendes, meu amor, a voz que fala agora Do tempo que esperou, da lenta e só demora? Já era onde nós somos a nossa paz presente. Só nós entrámos nela e a agora é que se sente. Alumiam-se as noites, Deméter aparece, Tu sentas-te a meu lado e o trigo reverdece. Poema de Pedro Tamen escolhido por Inês Pupo
Soares, Mário (Seleção) Os poemas da minha vida 2ª ed Lisboa: Público, 2005 ISBN: 972-8892-39-X Não Posso Adiar o coração Não posso adiar o amor Não posso adiar o amor para outro século não posso ainda que o grito sufoque na garganta ainda que o ódio estale e crepite e arda sob montanhas cinzentas e montanhas cinzentas Não posso adiar este abraço que é uma arma de dois gumes amor e ódio Não posso adiar ainda que a noite pese séculos sobre as costas e a aurora indecisa demore não posso adiar para outro século a minha vida nem o meu amor nem o meu grito de libertação Não posso adiar o coração Poema de António Ramos Rosa escolhido por Mário Soares
Veiga, Miguel (Seleção) Os poemas da minha vida 2ª ed Lisboa: Público, 2005 ISBN: 972-8892-41-1 GLOSA DE GUIDO CAVALCANTI “Perchi’ I’ no spero di tornar giammai” Porque não espero de jamais voltar à terra em que nasci; porque não espero, ainda que volte, de encontra-la pronta a conhecer-me como agora sei que eu a conheço; porque não espero sofrer saudades, ou perder a conta dos dias que vivi sem a lembrar; porque não espero nada, e morrerei no exílio sempre, mas fiel ao mundo, já que de nenhum outro morro exilado; porque não espero, do meu poço fundo, olhar o céu e ver mais que azulado esse ar que ainda respiro, esse ar imundo por quantos que me ignoram respirado; porque não espero, espero contentado. Poema de Jorge de Sena escolhido por Miguel Veiga
OBRAS DE AUTOR
Alba, Sebastião A noite dividida 1ª ed Lisboa: Assírio e Alvim, 1996 ISBN: 972-37-0188-X Ninguém meu amor Ninguém meu amor ninguém como nós conhece o sol Podem utilizá-lo nos espelhos apagar com ele os barcos de papel dos nossos lagos podem obrigá-lo a parar à entrada das casas mais baixas podem ainda fazer com que a noite gravite hoje do mesmo lado Mas ninguém meu amor ninguém como nós conhece o sol Até que o sol degole o horizonte em que um a um nos deitam vendando-nos os olhos.
Alegre, Manuel Obra poética 1ª ed Lisboa: Dom Quixote, 1999 ISBN: 972-20-1610-5 Uma flor de verde pinho Eu podia chamar-te pátria minha dar-te o mais lindo nome português podia dar-te um nome de rainha que este amor é de Pedro por Inês. Mas não há forma não há verso não há leito para este fogo amor para este rio. Como dizer um coração fora do peito? Meu amor transbordou. E eu sem navio. Gostar de ti é um poema que não digo que não há taça amor para este vinho não há guitarra nem cantar de amigo não há flor não há flor de verde pinho. Não há barco nem trigo não há trevo não há palavras para dizer esta canção. Gostar de ti é um poema que não escrevo. Que há um rio sem leito. E eu sem coração.
Alegre, Manuel Doze naus 1ª ed Lisboa: Dom Quixote, 2007 ISBN: 9789722033237 À Sombra Das Árvores Milenares Passaram muitos anos mas não passou o momento único irrepetível o som abafado do estilhaço no corpo o eco estridente do ricochete no metal o cheiro da pólvora misturado com sangue e terra o sabor da morte na última viagem de Portugal. À sombra das árvores milenares ouvi tambores ouvi o rugido do leão e o zumbido da bala ouvi as vozes do mato e o silêncio mineral. E ouvi um jipe que rolava na picada um jipe sem sentido na última viagem de Portugal. Vi o fulgor das queimadas senti o cheiro do medo o silvo da cobra cuspideira o deslizar da onça as pacaças à noite como luzes de cidade a ferida que não fecha o buraco na femural no meio da selva escura em um lugar sem nome na última viagem de Portugal. Soberbo e frágil tempo intensa vida à beira morte amores de verão amores de guerra amores perdidos. Uma ferida por dentro um tinir de cristal passaram os anos o ser permanece. Fiz a última viagem de Portugal.
Alegre, Manuel País de Abril – Uma antologia 1ª ed Lisboa: Dom Quixote, 2014 ISBN: 978-972-20-5450-8 As mãos Com mãos se faz a paz se faz a guerra Com mãos tudo se faz e se desfaz Com mãos se faz o poema e são de terra. Com mãos se faz a guerra e são a paz. Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra. Não são de pedra estas casas mas de mãos. E estão no fruto e na palavra as mãos que são o canto e são as armas. E cravam-se no Tempo como farpas as mãos que vês nas coisas transformadas. Folhas que vão no vento: verdes harpas. De mãos é cada flor cada cidade. Ninguém pode vencer estas espadas: nas tuas mãos começa a liberdade.
Alegre, Manuel Praça da Canção Lisboa: Dom Quixote, 2005 ISBN: 9789722028639 Trova do Vento que Passa Para António Portugal Pergunto ao vento que passa notícias do meu país e o vento cala a desgraça o vento nada me diz.
Pergunto aos rios que levam tanto sonho à flor das águas e os rios não me sossegam levam sonhos deixam mágoas.
Levam sonhos deixam mágoas ai rios do meu país minha pátria à flor das águas para onde vais? Ninguém diz.
Se o verde trevo desfolhas pede notícias e diz ao trevo de quatro folhas que morro por meu país.
Pergunto à gente que passa por que vai de olhos no chão. Silêncio - é tudo o que tem quem vive na servidão.
Vi florir os verdes ramos direitos e ao céu voltados. E a quem gosta de ter amos vi sempre os ombros curvados.
E o vento não me diz nada ninguém diz nada de novo. Vi minha pátria pregada nos braços em cruz do povo.
Vi meu poema na margem dos rios que vão pró mar como quem ama a viagem mas tem sempre de ficar.
Vi navios a partir (Portugal à flor das águas) vi minha trova florir (verdes folhas verdes mágoas).
Há quem te queira ignorada e fale pátria em teu nome. Eu vi-te crucificada nos braços negros da fome.
E o vento não me diz nada só o silêncio persiste. Vi minha pátria parada à beira de um rio triste.
Ninguém diz nada de novo se notícias vou pedindo nas mãos vazias do povo vi minha pátria florindo.
E a noite cresce por dentro dos homens do meu país. Peço notícias ao vento e o vento nada me diz.
Mas há sempre uma candeia dentro da própria desgraça há sempre alguém que semeia canções no vento que passa.
Mesmo na noite mais triste em tempo de servidão há sempre alguém que resiste há sempre alguém que diz não.
Aleixo, António Este livro que vos deixo – 2 volumes Vol. I – 11ªed Vol. II – 7ª ed. Lisboa: Editorial Notícias, 1994 – 1996 I Vol. I – ISBN: 972-46-0539-6 Vol. II – ISBN: 972-46-0528-0
Porque o Povo Diz Verdades Porque o povo diz verdades, Tremem de medo os tiranos, Pressentindo a derrocada Da grande prisão sem grades Onde há já milhares de anos A razão vive enjaulada. Vem perto o fim do capricho Dessa nobreza postiça, Irmã gémea da preguiça, Mais asquerosa que o lixo. Já o escravo se convence A lutar por sua prol Já sabe que lhe pertence No mundo um lugar ao sol. Do céu não se quer lembrar, Já não se deixa roubar, Por medo ao tal satanás, Já não adora bonecos Que, se os fazem em canecos, Nem dão estrume capaz. Mostra-lhe o saber moderno Que levou a vida inteira Preso àquela ratoeira Que há entre o céu e o inferno.
Alighieri, Dante Tradução de Vasco Graça Moura A divina comédia 5ª ed Venda Nova: Bertrand, 2000 ISBN: 972-25-0963-2
Como as rãs quando em frente da inimiga bicha pela água todas vão fugidas, até que a cada uma a terra abriga,
vi eu mais de mil almas destruídas assim fugir em frente a um que a passo passava o ‘Stígio enxuto e o vulto as bridas do ar denso removia nesse espaço. A esquerda mão lhe precedia a face, e só dessa fadiga o julguei lasso.
Logo entendi que o céu o enviasse e ao mestre me voltei; sinal me vem de que ficasse quedo e me inclinasse.
Ah como o vi tão cheio de desdém! Chegou à porta e com uma vareta a abriu e a isso não se opôs ninguém.
“Ó expulsos do céu, ó gente abjecta”, começou nesse horrendo limiar, “esta arrogância em vós de que se infecta?
Porque à vontade heis de recalcitrar à qual os fins não podem ser truncados, e que a dor já vos soube acrescentar? De que vos serve resistir aos fados? Bem o Cerbero vosso vos recorda, que o mento e a gorja traz pelados.”
E eis na estrada se voltou à borda, e a nós não se moveu, mas fez semblante de quem outro cuidar anime e morda
que o desses que ele tinha por diante; e nós fomos, seguros, pés em terra, tais as santas palavras nesse instante.
Almeida, Catarina Nunes de Bailias Porto: Deriva Editores, 2010 ISBN: 978-972-9250-77-4
Irei eu se ele for na cavalgada. Irei eu a galope em meus pés veloz por entre as avezinhas do fundo das águas-furtadas em águas de lábios furtadas veloz e espessa como a torrente de um parto. Irei eu em todas as minhas mãos pégasos e ventanias o corpo preso por um frio gentil o corpo a tilintar de sonhos. Serei eu o que ele for na cavalgada. Irei eu sem música sem mesa posta dar-lhe prato verde onde caibamos os dois dar-lhe este emudecimento este abatimento cardíaco da floresta.
Andrade, Eugénio de Obras de Eugénio de Andrade 27 volumes Porto: Fundação Eugénio de Andrade Poema à Mãe
No mais fundo de ti, eu sei que traí, mãe
Tudo porque já não sou o retrato adormecido no fundo dos teus olhos. Tudo porque tu ignoras que há leitos onde o frio não se demora e noites rumorosas de águas matinais. Por isso, às vezes, as palavras que te digo são duras, mãe, e o nosso amor é infeliz. Tudo porque perdi as rosas brancas que apertava junto ao coração no retrato da moldura. Se soubesses como ainda amo as rosas, talvez não enchesses as horas de pesadelos. Mas tu esqueceste muita coisa; esqueceste que as minhas pernas cresceram, que todo o meu corpo cresceu, e até o meu coração ficou enorme, mãe!
Olha — queres ouvir-me? — às vezes ainda sou o menino que adormeceu nos teus olhos; ainda aperto contra o coração rosas tão brancas como as que tens na moldura; ainda oiço a tua voz: Era uma vez uma princesa no meio de um laranjal... Mas — tu sabes — a noite é enorme, e todo o meu corpo cresceu. Eu saí da moldura, dei às aves os meus olhos a beber, Não me esqueci de nada, mãe. Guardo a tua voz dentro de mim. E deixo-te as rosas. Boa noite. Eu vou com as aves.
Andrade, Eugénio Aquela Nuvem e Outras Porto: Porto Editora, 2014 ISBN: 978-972-0-72682-7 Não quero, não Não quero, não quero, não, ser soldado nem capitão. Quero um cavalo só meu, seja baio ou alazão, sentir o vento na cara, sentir a rédea na mão. Não quero, não quero, não, ser soldado nem capitão. Não quero muito do mundo: quero saber-lhe a razão, sentir-me dono de mim, ao resto dizer que não. Não quero, não quero, não, ser soldado nem capitão.
Existe um conjunto de 14 livros disponíveis Existem outras edições de obras do autor, disponíveis na Biblioteca
Andresen, Sophia de Mello Breyner Geografia 1ª ed Lisboa: Salamandra, 1990 ISBN: 972-689—092-2 Esta Gente Esta gente cujo rosto Às vezes luminoso E outras vezes tosco Ora me lembra escravos Ora me lembra reis Faz renascer meu gosto De luta e de combate Contra o abutre e a cobra O porco e o milhafre Pois a gente que tem O rosto desenhado Por paciência e fome É a gente em quem Um país ocupado Escreve o seu nome E em frente desta gente Ignorada e pisada Como a pedra do chão E mais do que a pedra Humilhada e calcada Meu canto se renova E recomeço a busca De um país liberto De uma vida limpa E de um tempo justo
Andresen, Sophia de Mello Breyner Obra poética – 3 volumes Vol. I - 5ª ed – 1999 Vol. II – 2ª ed – 1995 Vol. III – 2ª ed - 1996 Lisboa : Caminho, 1998 Vol. I - ISBN 972-21-0532-9 Vol. II - ISBN 972-21-0572-8 Vol. III – ISBN 972-21-0278-8 Para atravessar contigo o deserto do mundo Para atravessar contigo o deserto do mundo Para enfrentarmos juntos o terror da morte Para ver a verdade para perder o medo Ao lado dos teus passos caminhei Por ti deixei meu reino meu segredo Minha rápida noite meu silêncio Minha pérola redonda e seu oriente Meu espelho minha vida minha imagem E abandonei os jardins do paraíso Cá fora à luz sem véu do dia duro Sem os espelhos vi que estava nua E ao descampado se chamava tempo Por isso com teus gestos me vestiste E aprendi a viver em pleno vento
Andresen, Sophia de Mello Breyner Obra poética 1ª edição Lisboa: Assírio e Alvim, 2015 ISBN: 978-972-37-1824-9 Poema A minha vida é o mar o abril a rua O meu interior é uma atenção voltada para fora O meu viver escuta A frase que de coisa em coisa silabada Grava no espaço e no tempo a sua escrita Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro Sabendo que o real o mostrará Não tenho explicações Olho e confronto E por método é nu meu pensamento A terra o sol o vento o mar São a minha biografia e são meu rosto Por isso não me peçam cartão de identidade Pois nenhum outro senão o mundo tenho Não me peçam opiniões nem entrevistas Não me perguntem datas nem moradas De tudo quanto vejo me acrescento E a hora da minha morte aflora lentamente Cada dia preparada
Auden, W. H. Outro tempo Lisboa: Relógio D'Água, 2003 ISBN: 978-972-708-728-0
Blues dos Refugiados Digamos que esta cidade tem cerca de dez milhões, Há os que vivem em buracos, há os que vivem em mansões, Mas não há lugar para nós, amor, não há lugar para nós. Já tivemos um país, que nos parecia bem, Procurem-no no Atlas, que ainda lá vem: Já não podemos voltar, amor, já não podemos voltar. Cresce um velho teixo junto ao largo da igreja, E todas as primaveras de novo floreja, Mas os velhos passaportes não, amor, os velhos passaportes não. O cônsul deu um murro na mesa, impaciente: “Não têm passaporte, estão mortos oficialmente”. Mas continuamos vivos, amor, continuamos vivos. Fui a uma comissão, mandaram-me esperar sentado; Que voltasse para o ano, disseram num tom educado. Mas para onde iremos hoje, amor, para onde iremos hoje? Fui a um comício em que o orador, de pé, dizia: “Se os deixarmos entrar, roubam-nos o pão de cada dia.“ Falava de nós os dois, amor, falava de nós os dois.
Pensei ouvir trovões no céu a tremer; Era Hitler na Europa, dizendo: “Devem morrer.” Estava a pensar em nós, amor, estava a pensar em nós Vi um cão-de-água preso à lapela de um fato, E uma porta a abrir-se para que entrasse um gato: Mas não eram judeus alemães, amor, não eram judeus alemães. Fui até ao porto, pus-me a olhar para a corrente, Na água vi os peixes a nadar livremente: Mesmo a dez pés de mim, amor, mesmo a dez pés de mim. Andei pelas florestas, vi os pássaros empoleirados, Não tinham políticos e piavam os seus trinados, Não eram a raça humana, amor, não eram a raça humana. Sonhei que via um prédio com um milhar de andares, E milhares de janelas, portas aos milhares, E nenhuma era nossa, amor, nenhuma era nossa. Cheguei a uma campina com a neve tombando, Vi dez mil soldados de lá para cá marchando; Procurando-nos os dois, amor, procurando-nos os dois.
Auden, W. H. Diz-me a Verdade acerca do Amor Lisboa: Relógio D'Água, 1994 ISBN: 978-972-7082-58-2 Funeral Blues Parem todos os relógios, desliguem o telefone, Não deixem o cão ladrar aos ossos suculentos, Silenciem os pianos e com os tambores em surdina Tragam o féretro, deixem vir o cortejo fúnebre. Que os aviões voem sobre nós lamentando, Escrevinhando no céu a mensagem: Ele Está Morto, Ponham laços de crepe em volta dos pescoços das pombas da cidade, Que os polícias de trânsito usem luvas pretas de algodão. Ele era o meu Norte, o meu Sul, o meu Este e Oeste, A minha semana de trabalho, o meu descanso de domingo, O meio-dia, a minha meia-noite, a minha conversa, a minha canção; Pensei que o amor ia durar para sempre: enganei-me. Agora as estrelas não são necessárias: apaguem-nas todas; Emalem a lua e desmantelem o sol; Despejem o oceano e varram o bosque; Pois agora tudo é inútil.
Baudelaire, Charles As flores do mal Lisboa: Relógio D'Água, 2003 ISBN: 9789727087624 O Homem e o Mar Homem livre, o oceano é um espelho fulgente Que tu sempre hás-de amar. No seu dorso agitado, Como em puro cristal, contemplas, retratado, Teu íntimo sentir, teu coração ardente. Gostas de te banhar na tua própria imagem. Dás-lhe beijo até, e, às vezes, teus gemidos Nem sentes, ao escutar os gritos doloridos, As queixas que ele diz em mística linguagem. Vós sois, ambos os dois, discretos tenebrosos; Homem, ninguém sondou teus negros paroxismos, Ó mar, ninguém conhece os teus fundos abismos; Os segredos guardais, avaros, receosos! E há séculos mil, séculos inumeráveis, Que os dois vos combateis n'uma luta selvagem, De tal modo gostais n'uma luta selvagem, Eternos lutadores ó irmãos implacáveis!
Belo, Ruy Todos os Poemas 3ª ed Lisboa: Assírio & Alvim, 2009 ISBN: 978-972-37-1417-3 E tudo era possível Na minha juventude antes de ter saído da casa de meus pais disposto a viajar eu conhecia já o rebentar do mar das páginas dos livros que já tinha lido Chegava o mês de maio era tudo florido o rolo das manhãs punha-se a circular e era só ouvir o sonhador falar da vida como se ela houvesse acontecido E tudo se passava numa outra vida e havia para as coisas sempre uma saída Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer Só sei que tinha o poder duma criança entre as coisas e mim havia vizinhança e tudo era possível era só querer
Bocage, Manuel Maria Barbosa du Hernâni Cidade, (Director de publicação) Opera Omnia: Sonetos Lisboa: Bertrand, 1969 Já Bocage não sou!... À cova escura Já Bocage não sou!... À cova escura Meu estro vai parar desfeito em vento... Eu aos céus ultrajei! O meu tormento Leve me torne sempre a terra dura. Conheço agora já quão vã figura Em prosa e verso fez meu louco intento. Musa!... Tivera algum merecimento, Se um raio da razão seguisse, pura! Eu me arrependo; a língua quase fria Brade em alto pregão à mocidade, Que atrás do som fantástico corria: Outro Aretino fui... A santidade Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia, Rasga meus versos, crê na eternidade! Obs: Existe na Biblioteca outra edição desta obra
Bocage, Manuel Maria Barbosa du Ilustrações André da Loba Antologia Poética Lisboa: Faktoria K de Livros, 2010 ISBN: 978989205544 Camões, Grande Camões, quão Semelhante Camões, grande Camões, quão semelhante Acho teu fado ao meu, quando os cotejo! Igual causa nos fez, perdendo o Tejo, Arrostar co'o sacrílego gigante; Como tu, junto ao Ganges sussurrante, Da penúria cruel no horror me vejo; Como tu, gostos vãos, que em vão desejo, Também carpindo estou, saudoso amante. Ludíbrio, como tu, da Sorte dura Meu fim demando ao Céu, pela certeza De que só terei paz na sepultura. Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!... Se te imito nos transes da Ventura, Não te imito nos dons da Natureza.
Botto, António As canções de António Botto 18ª ed Lisboa: Presença, 1999 Ironia Se a noite fosse mais negra, --Quero dizer, mais sombria!, Agora que me encontraste E que me dás o teu braço Para falarmos, de novo, No que dissemos, um dia!... Se a noite fosse mais negra!, E se as estrelas brilhassem Com menos intensidade, Sim, não duvides, eu diria..., -- Mas não me fites assim! Diria que és o meu sonho E a minha realidade. Mas esta luz que se entorna Intimida o meu sentir E fico, mudo, a sofrer... --Também a gente nunca sabe Se a verdade no amor Se deve calar ou dizer.
Braga, Jorge de Sousa Balas de Pólen 1ª ed Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2001 ISBN: 9789728632120 Carta de Amor A Eugénio de Andrade Um dia destes vou-te matar Uma manhã qualquer em que estejas (como de costume) a medir o tesão das flores ali no Jardim de S. Lázaro um tiro de pistola e... Não te vou dar tempo sequer de me fixares o rosto podes invocar Safo, Cavafy ou S. João da Cruz todos os poetas celestiais que ninguém te virá acudir Comprometidos definitivamente os teus planos de eternidade Adeus pois mares de Setembro e dunas de Fão Um dia destes vou-te matar... Uma certeira bala de pólen mesmo sobre o coração
Braga, Jorge de Sousa Herbário Lisboa: Assírio & Alvim, 2014 ISBN: 978-972-37-0549-2 As árvores e os livros As árvores como os livros têm folhas e margens lisas ou recortadas, e capas (isto é copas) e capítulos de flores e letras de oiro nas lombadas. E são histórias de reis, histórias de fadas, as mais fantásticas aventuras, que se podem ler nas suas páginas, no pecíolo, no limbo, nas nervuras. As florestas são imensas bibliotecas, e até há florestas especializadas, com faias, bétulas e um letreiro a dizer: «Floresta das zonas temperadas». É evidente que não podes plantar no teu quarto, plátanos ou azinheiras. Para começar a construir uma biblioteca, basta um vaso de sardinheiras.
Braga, Jorge de Sousa Pó de estrelas Lisboa: Assírio & Alvim, 2014 ISBN: 9789723709780 O Astrónomo No Monte Palomar num telescópio gigante passa a vida a perscrutar o céu distante Trata todas as estrelas como se fossem irmãs sejam elas gigantes ou sejam elas anãs Dorme durante o dia de noite está acordado Com o seu telescópio varre o céu de lado a lado Sempre na esperança que do fundo do infinito chegue um dia uma resposta ao seu grito»
Camões, Luís de Os Lusíadas Comentários de José Hermano Saraiva Ilustrações de Pedro Proença Contos originais de diversos autores 10 volumes 1ª ed Lisboa: Expresso, 2003 As armas e os barões assinalados Que da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca dantes navegados Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram; E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando Cantando espalharei por toda a parte Se a tanto me ajudar o engenho e arte. ... Obs: Existem na Biblioteca diversas edições de “Os Lusíadas”
Camões, Luís de Os Lusíadas como nunca os ouviu Ditos por António Fonseca Livro e Audiolivro com 7 CD's Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2016 ISBN: 9789896584337 ... Para servir-vos, braço às armas feito, para cantar-vos, mente às Musas dada; só me falece ser a vós aceito, de quem virtude deve ser prezada. Se me isto o Céu concede, e o vosso peito digna empresa tomar de ser cantada, como a pressaga mente vaticina olhando a vossa inclinação divina. Ou fazendo que, mais que a de Medusa, a vista vossa tema o Monte Atlante, ou rompendo nos campos de Ampelusa os muros de Marrocos e Trudante, a minha já estimada e leda Musa fico que em todo o mundo de vós cante, de sorte que Alexandre em vós se veja, sem à dita de Aquiles ter inveja!
Camões, Luís de Poesia lírica Lisboa: Ulisseia, 1984 ISBN: 9789725681348 Amor é Fogo que Arde sem se Ver Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói, e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer. É um não querer mais que bem querer; É um andar solitário entre a gente; É nunca contentar-se e contente; É um cuidar que ganha em se perder; É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata, lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Caminha, P. de Andrade Poesias Inéditas de P. de Andrade Caminha Publicadas pelo Dr. J. Priebsch Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1989 Reprodução em fac-símile do exemplar com data de 1898 da Biblioteca Nacional Soneto I De Amor escrevo, de Amor falo e canto; E se minha voz fosse igual ao que amo, Esperara eu sentir na que em vão chamo Piedade, e na gente dor e espanto. Mas não há pena, ou língua, ou voz, ou canto Que mostre o amor por que eu tudo desamo, Nem o vivo fogo em que me sempre inflamo, Nem de meus olhos o contino pranto. Assi me vou morrendo, sem ser crida A causa por que em vão mouro contente, Nem sei se isto que passo é vida ou morte. Mas inda da que eu amo fosse ouvida E crida minha voz, e da vã gente Nunca entendida fosse minha sorte!
Celan, Paul Tradução: Gilda Lopes Encarnação Não Sabemos Mesmo o Que Importa Lisboa: Assírio e Alvim, 2014 ISBN: 9789896414542 Elogio da lonjura Na fonte de teus olhos vivem os fios dos pescadores do mar‑errância. Na fonte de teus olhos cumpre o mar sua promessa. Coração entretido entre os homens, aqui arremesso minhas vestes e o fulgor de um juramento: Mais negro no negro, estou mais nu. Só sendo traidor sou fiel. Eu sou tu quando eu sou eu. Na fonte de teus olhos vogo e sonho a pilhagem. Um fio prendeu um fio: separámo‑nos enlaçados. Na fonte de teus olhos um enforcado estrangula a corda
Cendras, Blaise Poesia em viagem Lisboa: Assírio e Alvim, 2005 ISBN: 972-37-1005-6 Há livros que falam do canal do Panamá Não sei o que dizem os catálogos das bibliotecas E não ouço os diários das finanças Embora os boletins da Bolsa sejam a nossa oração quotidiana O Canal do Panamá está intimamente ligado à minha infância... Eu brincava debaixo da mesa Dissecava moscas Minha mãe contava-me as aventuras dos seus sete irmãos Dos meus tios E quando recebia cartas Deslumbramento! Cartas com belos selos exóticos que trazem versos de Rimbaud no exergo Nesse dia já não me contava mais nada E eu ficava triste debaixo da mesa. Foi também por essa altura que li a história do tremor de terra de Lisboa Mas creio bem Que a derrocada de Panamá é duma importância mais universal Porque me perturbou a infância.
Correia, Natália Poesia Completa – Natália Correia 2ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 2000 ISBN: 972-20-1642-3 O Poema O poema não é o canto que do grilo para a rosa cresce. O poema é o grilo é a rosa e é aquilo que cresce. É o pensamento que exclui uma determinação na fonte donde ele flui e naquilo que descreve. O poema é o que no homem para lá do homem se atreve. Os acontecimentos são pedras e a poesia transcendê-las na já longínqua noção de descrevê-las. E essa própria noção é só uma saudade que se desvanece na poesia. Pura intenção de cantar o que não conhece.
Craveirinha, José Obra Poética I Lisboa: Caminho, 1999 ISBN: 972-21-1305-4 Grito Negro
Eu sou carvão! E tu arrancas-me brutalmente do chão e fazes-me tua mina Patrão!
Eu sou carvão! E tu acendes-me, patrão, para te servir eternamente como força motriz mas eternamente não Patrão!
Eu sou carvão e tenho que arder, sim E queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão! tenho que arder na exploração arder até às cinzas da maldição arder vivo como alcatrão, meu irmão até não ser mais a tua mina Patrão!
Eu sou carvão! Tenho que arder Queimar tudo com o fogo da minha combustão. Sim! Eu sou o teu carvão Patrão!
Craveirinha, José Maria Lisboa: Caminho, 1998 ISBN: 972-21-1305-4 Monograma A sotavento da face colar aquoso se desfia. E em sua fímbria macia meu lenço azul-escuro discreto humedece o monograma Jota Cê. Colar desfiando o próprio lapso da sua água.
Cruz, Gastão Repercussão 1ª ed Lisboa: Assírio e Alvim, 2004 ISBN: 972-37-0904-X A COLHER Reabro uma gaveta da infância e encontro a colher em desuso caída a sopa lentamente se escoando no prato fundo: a vida em certos dias tinha a forma daquele objecto antigo tocando-me nos lábios com um calor excessivo
Elísio, Filinto Obras completas de Filinto Elísio Edição de Fernando Moreira Braga : APPACDM, 1998 1ª ed ISBN: 972-8424-27-2 Usos Deste Mundo Nas praças uns perguntam novidades; Outros dão volta às ruas, ao namoro; Este usuras cobrar, esse as demandas Lembrar corre ao Juiz que se diverte. Ir de Jano aprender a ser bifronte, De Mercúrio, no trato, a ser bilingue, Franco no prometer, no dar escasso. C'os olhos fitos no ávido interesse Ser consigo leal, com todos falso É ser homem capaz, home' entendido. Assim, que vemos nós por este esconso Mundo? Vemos logrões, vemos logrados; Ninguém vês ir com cândido desejo Aos Sénecas, aos Sócrates de agora Perguntar as lições tão necessárias De ser honrado, ser com todos justo. Tão sobejos se crêem de honra e virtude, Que cuida cada um poder de sobra Mostrar na Ocasião virtude a rodo, E chega a Ocasião, falha a virtude.
Espanca, Florbela Poesia – 2 volumes 1º v.: Poesia 1903-1917; 2º v.: Poesia 1918-1930, 4ª ed Lisboa: Dom Quixote, 1992 ISBN: 972-20-0533-7 Triste destino Quando às vezes o mar soluça tristemente A praia abre-lhe os braços e deixa-o a gemer; Embala-o com amor, de leve, docemente, E canta-lhe cantigas p’ra adormecer! Quando o Outono leva a folha rendilhada, O vestido real da branda Primavera, O rio abre-lhe os braços e leva amortalhada A pequenina folha, essa ideal quimera! O sol, agonizante e quase moribundo, Estende os braços nus, alegre, para o mundo Que o faz amortalhar em púrpura de lenda! O sol, a folha, o mar tudo é feliz! Mas eu Busco a mortalha minha até no alto céu! E nem a cruz p’ra mim tem braços que m’estenda!
Espanca, Florbela Poesia Completa 1ª ed. Páginas: 400 Lisboa: Dom Quixote, 2000 ISBN: 972-20-1756-X Ser Poeta Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Aquém e de Além Dor! É ter de mil desejos o esplendor E não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, É ter garras e asas de condor! É ter fome, é ter sede de Infinito! Por elmo, as manhãs de oiro e cetim… É condensar o mundo num só grito! E é amar-te, assim, perdidamente… É seres alma e sangue e vida em mim E dizê-lo cantando a toda a gente!
Falcão, Carlos Poças A nuvem Guimarães: Pedra Formosa, 2000 ISBN: 9789728118280 Dia de Aguaceiros Dia de aguaceiros. Sei que os jardins não são os de Academos. Mas vou pelos passeios entre a escrita das chuvadas no saibro e a discreta disposição do Logos na murta dos canteiros. Dia de amentilhos, gravetos, muros verdes: as alamedas param e os cedros repousam a terra tão porosa que facilmente encanta - e eu cedo e levo ao chão a mão inteira, a medo. Retiro-a manchada por um líquen de areia. Aprendo por contacto que o Verbo nos irmana baixando intelecções a corpos indefesos. E um século à volta abre guarda-chuvas negros.
Faria, Daniel Poesia Lisboa:, Assírio e Alvim, 2015 ISBN: 978-972-37-1844-7 Tenho Saudades do Calor ó Mãe Tenho saudades do calor ó mãe que me penteias Ó mãe que me cortas o cabelo — o meu cabelo Adorna-te muito mais do que os anéis Dá-me um pouco do teu corpo como herança Uma porção do teu corpo glorioso — não o que já tenho — O que em ti já contempla o que os santos vêem nos céus Dá-me o pão do céu porque morro Faminto, morro à míngua do alto Tenho saudades dos caminhos quando me deixas Em casa. Padeço tanto Penso tanto Canto tão alto quando calculo os corpos celestes Ó infinita ó infinita mãe
Ferreira, José Gomes Poeta Militante – Obra poética completa 2 volumes 1º Vol. 3ª ed, 1977; 2º vol. 2ª ed, 1983 Lisboa: Morais Editores Viver Sempre também Cansa Viver sempre também cansa. O sol é sempre o mesmo e o céu azul ora é azul, nitidamente azul, ora é cinzento, negro, quase-verde... Mas nunca tem a cor inesperada. O mundo não se modifica. As árvores dão flores, folhas, frutos e pássaros como máquinas verdes. As paisagens também não se transformam. Não cai neve vermelha, não há flores que voem, a lua não tem olhos e ninguém vai pintar olhos à lua. Tudo é igual, mecânico e exacto. Ainda por cima os homens são os homens. Soluçam, bebem, riem e digerem sem imaginação. Existe uma outra edição (Dom Quixote) disponível na Biblioteca.
Gama, Sebastião da Cabo da Boa Esperança 3ª ed Lisboa: Edições Ática, 1993 ISBN: 972-617-097-4 Meu País Desgraçado
Meu país desgraçado!… E no entanto há Sol a cada canto e não há Mar tão lindo noutro lado. Nem há Céu mais alegre do que o nosso, nem pássaros, nem águas…
Meu país desgraçado!… Porque fatal engano? Que malévolos crimes teus direitos de berço violaram?
Meu Povo de cabeça pendida, mãos caídas, de olhos sem fé — busca, dentro de ti, fora de ti, aonde a causa da miséria se te esconde.
E em nome dos direitos que te deram a terra, o Sol, o Mar, fere-a sem dó com o lume do teu antigo olhar.
Alevanta-te, Povo! Ah!, visses tu, nos olhos das mulheres, a calada censura que te reclama filhos mais robustos!
Povo anémico e triste, meu Pedro Sem sem forças, sem haveres! — olha a censura muda das mulheres! Vai-te de novo ao Mar! Reganha tuas barcas, tuas forças e o direito de amar e fecundar as que só por Amor te não desprezam!
Gama, Sebastião da Itinerário Paralelo Lisboa: Edições Ática, 1986
À MEMÓRIA DE ALBERTO CAEIRO Agora sim, que fechei o livro de Poesia. O Sol deixou de ser uma metáfora para ser o Sol. Os sentimentos deixaram de ser apenas palavras. Tudo é de verdade, agora que fechei o livro de Poesia [e olhei de frente quanto existe. Porque diabo me ensinaram a ler? (Se não soubesse ler nem sequer fechava o livro, insa- [tisfeito porque o não tinha aberto.) Porque me não deixaram sempre agreste e criança? As minhas leituras seriam todas fora dos livros. Havia de olhar para tudo com uma alegria tão grande, [com uma virgindade tão grande, que até Deus sorriria contente de ter feito o Mundo...
Gama, Sebastião da Serra-Mãe 7ª ed Lisboa: Edições Ática, 1996 ISBN: 972-617-002-8 Poema da minha esperança Que bom ter o relógio adiantado!... A gente assim, por saber que tem sempre tempo a mais, não se rala nem se apressa. O meu sorriso de troça, Amigos!, quando vejo o meu relógio com três quartos de hora a mais!... Tic-tac... Tic-tac... (Lá pensa ele que é já o fim dos meus dias.) Tic-tac... (Como eu rio, cá p'ra dentro, de esta coisa divertida: ele a julgar que é já o resto e eu a saber que tenho sempre mais três quartos de hora de vida.)
Garabatus, Joannes, Frey (Pseudónimo do escritor António Quadros) As quybyrycas : poema étbyco em outavas que corre como sendo de Luiz Vaaz de Camões em suspeitissima atribuiçon / de Frey Joannes Garabatus ; pref. [de] Jorge de Sena Porto: Afrontamento, 1991 ISBN: 972-36-0265-2 I Altos fados invoco e esconjuro porque me dando ânimo me dêem para esta empresa rútilo e seguro génio de meu ofício - o que não vêem quem me quisera ver pobre imaturo. Invoco os fados não porque detêm maior poder que o meu neste meu passo mas só porque é galante o quero e o faço.
Garrett, Almeida Camões : Poema em dez cantos Porto: Domingos Barreira, [s.d.]
Camões Canto Primeiro Saudade!, gosto amargo de infelizes, Delicioso pungir de acerbo espinho, Que me estás repassando o íntimo peito Com dor que os seios d'alma dilacera, — Mas dor que tem prazeres — Saudade! Misterioso nume, que aviventas Corações que estalaram, e gotejam Não já sangue de vida, mas delgado Soro de estanques lágrimas — Saudade! Mavioso nome que tão meigo soas Nos lusitanos lábios, não sabido Das orgulhosas bocas dos Sicambros Destas alheias terras. — Oh Saudade!
Garrett, Almeida Folhas caídas 2ª ed Lisboa: Europa-América, 1987 ISBN: 972-1-02783-9
Este Inferno de Amar Este inferno de amar - como eu amo! - Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi? Esta chama que alenta e consome, Que é a vida - e que a vida destrói - Como é que se veio a atear, Quando - ai quando se há-de ela apagar? Eu não sei, não me lembra: o passado, A outra vida que dantes vivi Era um sonho talvez... - foi um sonho - Em que paz tão serena a dormi! Oh! que doce era aquele sonhar... Quem me veio, ai de mim! despertar? Só me lembra que um dia formoso Eu passei... dava o sol tanta luz! E os meus olhos, que vagos giravam, Em seus olhos ardentes os pus. Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei; Mas nessa hora a viver comecei...
Garrett, Almeida Romanceiro (3 Volumes) 1ª ed Lisboa: Editorial Estampa, 1983 Bela Infanta Estava a bela infanta No seu jardim assentada, Com o pente de oiro fino Seus cabelos penteava. Deitou os olhos ao mar Viu vir uma nobre armada; Capitão que nela vinha, Muito bem que a governava. – «Diz-me, ó capitão Dessa tua nobre armada, Se encontraste meu marido Na terra que Deus pisava?» – «Anda tanto cavaleiro Naquela terra sagrada... Diz-me tu, ó senhora, As senhas que ele levava.» – «Levava cavalo branco, Selim de prata doirada; Na ponta da sua lança A cruz de Cristo levava.» – «Pelos sinais que me deste Lá o vi numa estacada Morreu morte de valente: Eu sua morte vingava.» – «Ai triste de mim viúva, Ai triste de mim coitada! De três filhinhas que tenho, Sem nenhuma ser casada!...» (…)
Helder. Herberto Poemas Completos Porto: Porto Editora, 2015 ISBN: 978-972-0-04710-6 Sobre um Poema Um poema cresce inseguramente na confusão da carne, sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto, talvez como sangue ou sombra de sangue pelos canais do ser. Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência ou os bagos de uva de onde nascem as raízes minúsculas do sol. Fora, os corpos genuínos e inalteráveis do nosso amor, os rios, a grande paz exterior das coisas, as folhas dormindo o silêncio, as sementes à beira do vento, - a hora teatral da posse. E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. E já nenhum poder destrói o poema. Insustentável, único, invade as órbitas, a face amorfa das paredes, a miséria dos minutos, a força sustida das coisas, a redonda e livre harmonia do mundo. - Em baixo o instrumento perplexo ignora a espinha do mistério. - E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
Gedeão , António Obra Completa – António Gedeão 2ª ed. Lisboa: Relógio D'Água, 2007 ISBN: 9789727087907
Tempo de Poesia Todo o tempo é de poesia Desde a névoa da manhã à névoa do outo dia. Desde a quentura do ventre à frigidez da agonia Todo o tempo é de poesia Entre bombas que deflagram. Corolas que se desdobram. Corpos que em sangue soçobram. Vidas qua amar se consagram. Sob a cúpula sombria das mãos que pedem vingança. Sob o arco da aliança da celeste alegoria. Todo o tempo é de poesia. Desde a arrumação do caos à confusão da harmonia.
Gedeão, António Poesias Completas (1956-1967) 10ª ed Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1987 Soneto Não pode Amor por mais que as falas mude exprimir quanto pesa ou quanto mede. Se acaso a comoção falar concede é tão mesquinho o tom que o desilude. Busca no rosto a cor que mais o ajude, magoado parecer aos olhos pede, pois quando a fala a tudo o mais excede não pode ser Amor com tal virtude. Também eu das palavras me arreceio, também sofro do mal sem saber onde busque a expressão maior do meu anseio. E acaso perde, o Amor que a fala esconde, em verdade, em beleza, em doce enleio? Olha bem os meus olhos, e responde.
Gonçalves, Zetho Cunha Noite Vertical Língua Morta, 2017 ISBN: 2200021915101 A oitava lua nova À Glaura Cardoso
A flor do imbondeiro cai do coração de um pássaro – esta é a Noite que desmembra o Tempo, selando seus astros, removendo a escuridão na escuridão, açoitando o latir dolente dos cães − e à roda, o silêncio dos leopardos.
A Noite é a única realidade, desde os ancestrais: quanto mais negra, mais verdadeira. E eis que chega a oitava Lua Nova, a Lua dos ventos e da doença. As magras águas dos rios dementam os peixes, que sufocam pela ausência da sua bússola lunar.
E loucos − loucos de eternidade, dançam os pés do vento sobre o mundo.
Por um tremor de céu, os meus olhos inflamam como relâmpagos a fulminar sob as pálpebras. É o fim da estação do cacimbo: as febres estuporando os corpos, a Terra submersa por um tapete de cinzas e árvores calcinadas. Do coração de um pássaro cai a flor do imbondeiro.
Guimarães, João Luís Barreto Poesia reunida Lisboa: Quetzal Editores, 2011 ISBN:9789725649718 Soneto Não pode Amor por mais que as falas mude exprimir quanto pesa ou quanto mede. Se acaso a comoção falar concede é tão mesquinho o tom que o desilude. Busca no rosto a cor que mais o ajude, magoado parecer aos olhos pede, pois quando a fala a tudo o mais excede não pode ser Amor com tal virtude. Também eu das palavras me arreceio, também sofro do mal sem saber onde busque a expressão maior do meu anseio. E acaso perde, o Amor que a fala esconde, em verdade, em beleza, em doce enleio? Olha bem os meus olhos, e responde.
Higino, Nuno Ilustrações de Alberto Péssimo Mãe E Leva os Filhos nos Olhos Como se os Levasse Pela Mão Lavra: Letras e Coisas, 2011 ISBN: 9789728908317 Uma mãe argelina depois do massacre É um rosto de mãe, funda tristeza, Podia ser Maria junto à cruz A dor atravessada pela luz A alma tão exposta, ao grito presa Não há palavra que possa ser consolo Não há mão, nem refúgio, nem abraço A cabeça inclinada, o corpo lasso Esvaziada a vida, vazio o colo Na crua solidão destes instantes Não há frescura, não há frutos sonhados E da alegria todos fomos exilados O que resta? Os dias sós, distantes E nas lágrimas eternas, abundantes Os olhos já morrem afogados Dia da mãe, 2000
Higino, Nuno Ilustrações de Alberto Péssimo A Trote e a Galope Poesia para a Infância Lavra: Letras e Coisas, 2017 ISBN: 9789728908928 Os rios Os rios têm bilhete de identidade: Têm nome, nascem num lugar, têm comprimento, afluentes e caudal (este varia conforme os invernos). Quanto à idade Não é muito de fiar, Alguns dizem até que são eternos. Desaguam no mar Ou num lago ou noutro rio. Mas há um que eu desafio a identificar: Tem nascente, corrente e afluente; Tem águas puras e peixes e areais E tudo o mais Que um rio deve ter. - Querem saber como se chama? Isso não sei, não. Mas nasce e desagua Na minha imaginação.
Jonas, Daniel Oblívio Lisboa: Assírio e Alvim, 2017 ISBN: 978-972-37-1983-3 Caiu-lhe inteiro, novo, o seu gelado. E nele as suas lágrimas caíram. E tão feliz ainda há pouco o viram — No chão caído mal fora provado. Irreparável perda, a primeira. Que importa se é pequena se é tão grande, Se é pedra de tropeço a quem lá ande No plaino crendo longe a ribanceira? Gelado eu também fiquei comigo. Levei a mão à testa em pensamento: Haverá consolação, um novo alento, Um novo que lhe saiba, a ele, a antigo? Oh, fosse eu sempre aquele que lhe merca Sorrisos pelas lágrimas que perca!
Junqueiro, Guerra Obras de Guerra junqueiro – Poesia Porto: Lello & Irmãos Editores Regresso ao Lar
Ai, há quantos anos que eu parti chorando deste meu saudoso, carinhoso lar!... Foi há vinte?... Há trinta?... Nem eu sei já quando!... Minha velha ama, que me estás fitando, canta-me cantigas para me eu lembrar!... Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida... Só achei enganos, decepções, pesar... Oh, a ingénua alma tão desiludida!... Minha velha ama, com a voz dorida. canta-me cantigas de me adormentar!... Trago de amargura o coração desfeito... Vê que fundas mágoas no embaciado olhar! Nunca eu saíra do meu ninho estreito!... Minha velha ama, que me deste o peito, canta-me cantigas para me embalar!... Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho pedrarias de astros, gemas de luar... Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!... Minha velha ama, sou um pobrezinho... Canta-me cantigas de fazer chorar!... Como antigamente, no regaço amado (Venho morto, morto!...), deixa-me deitar! Ai o teu menino como está mudado! Minha velha ama, como está mudado! Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!... Canta-me cantigas manso, muito manso... tristes, muito tristes, como à noite o mar... Canta-me cantigas para ver se alcanço que a minha alma durma, tenha paz, descanso, quando a morte, em breve, ma vier buscar!
Knopfli, Rui Nada Tem Já Encanto Poemas escolhidos Lisboa: Tinta da China, 2017 ISBN: 978-989-671-394-2
O preto no branco Da granada deflagrada no meio de nós, do fosso aberto, da vala intransponível, não nos cabe a culpa, embora a tua mão, armada pelo meu silêncio, lhe tenha retirado a espoleta. De um lado o teu dedo indicador, de outro a minha assumida neutralidade. Entre os dois, ocupando o espaço que vai do teu dedo acusador à minha mudez feita de medo e simpatia, tudo quanto não quisemos, nem urdimos, tudo quanto a medonha zombaria de ódios estranhos escreve a sangue e, irredutivelmente, nos separa e distancia. Tudo quanto há-de gravar o meu nome numa das balas da tua cartucheira. Nessa bala hipotética, nessa bala possível que se vier, quando vier (ela há-de vir) melhor dirá o que aqui fica por dizer.
Lara, Alda Poemas 4ª ed Porto: Vertente, 1984
Prelúdio
Pela estrada desce a noite Mãe-Negra, desce com ela...
Nem buganvílias vermelhas, nem vestidinhos de folhos, nem brincadeiras de guisos, nas suas mãos apertadas. Só duas lágrimas grossas, em duas faces cansadas.
Mãe-Negra tem voz de vento, voz de silêncio batendo nas folhas do cajueiro...
Tem voz de noite, descendo, de mansinho, pela estrada...
Que é feito desses meninos que gostava de embalar?...
Que é feito desses meninos que ela ajudou a criar?... Quem ouve agora as histórias que costumava contar?...
Mãe-Negra não sabe nada...
Mas ai de quem sabe tudo, como eu sei tudo Mãe-Negra!...
Os teus meninos cresceram, e esqueceram as histórias que costumavas contar...
Muitos partiram p'ra longe, quem sabe se hão-de voltar!...
Só tu ficaste esperando, mãos cruzadas no regaço, bem quieta bem calada.
É a tua a voz deste vento, desta saudade descendo, de mansinho pela estrada.
Lawrence, D. H. Os animais evangélicos e outros poemas Lisboa: Relógio D’Agua, 1994 ISBN: 9789727082520 Democracia Sou um democrata até ao ponto de amar o sol livre nos homens e um aristocrata até ao ponto de odiar as pessoas néscias e possessivas. Amo o sol em qualquer homem quando o vejo na sua fronte límpido e sem temor, mesmo que seja pequeno. Mas quando vejo aqueles homens cinzentos e bem sucedidos Tão hediondos e semelhantes a cadáveres, totalmente sem sol, como escravos gordos e bem sucedidos, meneando-se mecanicamente, então sou mais do que radical, quero servir-me da guilhotina. E quando vejo os homens que trabalham pálidos e miseráveis como insectos, apressados e vivendo como piolhos, com pouco dinheiro e sem nunca prosperar, então desejo, como Tibério, que a multidão tivesse apenas uma cabeça para que eu a pudesse decepar. Sinto que as pessoas para quem o sol não existe Não deviam viver.
Leal, Filipa Vem à quinta-feira Lisboa: Relógio D’Agua, 2016 ISBN: 978-972-37-1877-5 Manual de despedida para mulheres sensíveis Ser digna na partida, na despedida, dizer adeus com jeito, não chorar para não enfraquecer o emigrante, mesmo que o emigrante seja o nosso irmão mais novo, dobrar-lhe as camisas, limpar-lhe as sapatilhas com um pano húmido, ajudá-lo a pesar a mala que não pode levar mais de vinte quilos (quanto pesará o coração dele? e o meu?), três pares de sapatos, um jogo de lençóis, o corta-vento, oferecer-lhe a medalha que a Mãe usava sempre que partia e que talvez não tenha usado quando partiu para sempre, ter passado o dia à procura da medalha pela casa toda (ninguém sai mais daqui sem a medalha, ninguém sai mais daqui), pensar que a data escolhida para partir é a da morte da Mãe, pensar que a Mãe não está comigo para lhe dobrar as camisas e mesmo assim não chorar, nunca chorar, mesmo que o Pai esteja a chorar, mesmo que estejam todos a chorar, tomar umas merdas, se for preciso: uns calmantes, uns relaxantes, uns antioxidantes para não chorar; andar a pé para não chorar, apanhar sol para não chorar, jantar fora para não chorar, conhecer gente, mas gente animada, pintar o cabelo e esconder as brancas, que os grisalhos são mais chorões, dizer graças para não pôr também os amigos a chorar, os amigos gostam é de nós a rir, ver séries cómicas até cair, acordar mais cedo para lhe fazer torradas antes da viagem, com manteiga, com doce de mirtilo, com tudo o que houver no frigorífico, e não pensar que nunca mais seremos pequenos outra vez, cheios de Mãe e de Pai no quarto ao lado, cheios de emprego no quarto ao lado quando ainda existia Portugal.
É tanto o que se pede a um ser humano do século vinte e um. Que morra de medo e de saudade no aeroporto Francisco Sá Carneiro. Mas que não chore.
Leal, Filipa Fósforos e Metal sobre Imitação de Ser Humano Lisboa: Relógio D’Agua, 2019 ISBN: 978-972-37-2079-2 Dance me to the end of love (Discos partidos sobre capas de Medeia, 2017) «Dance me to your beauty with a burning violin dance me through the panic till I’m gathered safely in» Leonard Cohen Dança-me até ao fim da doçura e do pânico. Dança-me com Cohen ao fundo, interrompe-me a leitura da Medeia, tu podes. Conta-lhes, se quiseres, todos os segredos piores: que não estou a reler Anna Karénina; que estou a ler, na minha idade, Anna Karénina pela primeira vez. Diz-lhes que continuo com medo aos 38 anos e que tenho dois exemplares de algumas tragédias porque perco a anterior, não sei onde a guardo. E, já agora, avisa-os que as mães. As mães. Que uma criança não é logo amarga mas pode ser amarga no futuro: uma criança amargará. É melhor ires já avisá-los.
Leal, Gomes Claridades do Sul Lisboa: Publicações Europa-América, 1999 ISBN: 972-1-04617-5 Carta ao Mar Deixa escrever-te, verde mar antigo, Largo Oceano, velho deus limoso, Coração sempre lírico, choroso, E terno visionário, meu amigo! Das bandas do poente lamentoso Quando o vermelho sol vai ter contigo, - Nada é mais grande, nobre e doloroso, Do que tu, - vasto e húmido jazigo! Nada é mais triste, trágico e profundo! Ninguém te vence ou te venceu no mundo!... Mas também, quem te pode consolar?! Tu és Força, Arte, Amor, por excelência! - E, contudo, ouve-o aqui, em confidencia; - A Música é mais triste inda que o Mar!
Leal, Gomes História de Jesus Lisboa: Assírio e Alvim, 1998 ISBN: 972-37-0507-9 Trevas Rasgou se o véu do Templo de alto a baixo, Cortou o vento o ar como um açoite. Rugiram os leões, e o eterno facho do dia se eclipsou. — E fez-se a Noite. Fenderam-se os rochedos, com ruídos. Um singular terror gelou os ossos dos legionários trágicos, vencidos da confusão, do espanto, e dos destroços. O morto surge e mais o seu sudário, trazendo o assombro do final segredo. O povo da Judeia do santuário foi-se esconder na treva — e teve medo. As violetas murcharam sobre a haste. E uma voz singular, lúgubre, estranha, soluçou pela trágica montanha : — «Meu Pai! Meu Pai ! porque me abandonaste?»
Lopes, Adília Dobra – Poesia Reunida Lisboa: Assírio e Alvim, 2014 ISBN: 978-972-37-1773-0 Arte Poética Escrever um poema é como apanhar um peixe com as mãos nunca pesquei assim um peixe mas posso falar assim sei que nem tudo o que vem às mãos é peixe o peixe debate-se tenta escapar-se escapa-se eu persisto luto corpo a corpo com o peixe ou morremos os dois ou nos salvamos os dois tenho de estar atenta tenho medo de não chegar ao fim é uma questão de vida ou de morte quando chego ao fim descubro que precisei de apanhar o peixe para me livrar do peixe livro-me do peixe com o alívio que não sei dizer.
Macedo, Hélder Poesia 1957-1977 1ª ed Lisboa: Moraes editores, 1979 Anunciação Espada dúctil de fogo negro sol latejando na vertical ave branca explodida no meu ventre é sem partilha o amor que me anuncias nem é humana ou tua a sombra que cresceu sobre o meu corpo e por mim se alongou e me alongou num fundo mar sem esperança pois não há esperança no mistério revelado e o que a carne concebe é já divino porque sem comando.
Mãe, Valter Hugo Contabilidade – Poesia 1996-2010 1ª ed Lisboa: Editora Alfaguara, 2010 ISBN: 9789896720599
brincávamos a cair nos braços um do outro
brincávamos a cair nos braços um do outro, como faziam as actrizes nos filmes com o marlon brando, e depois suspirávamos e ríamos sem saber que habituávamos o coração à dor. queríamos o amor um pelo outro sem hesitações, como se a desgraça nos servisse bem e, a ver filmes, achávamos que o peito era todo em movimento e não sabíamos que a vida podia parar um dia. eu ainda te disse que me doíam os braços e que, mesmo sendo o rapaz, o cansaço chegava e instalava-se no meu poço de medo. tu rias e caías uma e outra vez à espera de acreditares apenas no que fosse mais imediato, quando os filmes acabavam, quando percebíamos que o mundo era feito de distância e tanto tempo vazio, tu ficavas muito feminina e abandonada e eu sofria mais ainda com isso. estavas tão diferente de mim como se já tivesses partido e eu fosse apenas um local esquecido sem significado maior no teu caminho. tu dizias que se morrêssemos juntos entraríamos juntos no paraíso e querias culpar-me por ser triste de outro modo, um modo mais perene, lento, covarde. Eu amava-te e julgava bem que amar era afeiçoar o corpo ao perigo. caía eu nos teus braços, fazias um bigode no teu rosto como se fosses o marlon brando. eu, que te descobria como se descobrem fantasias no inferno, não queria ser beijado pelo marlon brando e entrava numa combustão modesta que, às batidas do meu coração, iluminava o meu rosto como lâmpada falhando a minha mãe dizia-me, valter tem cuidado, não brinques assim, vais partir uma perna, vais partir a cabeça, vais partir o coração. e estava certa, foi tudo verdade
Mãe, Valter Hugo Folclore íntimo 1ª ed Maia: Cosmorama edições, 2008 ISBN: 978-989-8029-31-7-9 a capitalização do amor não escondemos que aprendemos a capitalizar o amor, entregando amplamente os nossos melhores momentos às raparigas mais carentes. o amor, sabemos bem, é o caminho directo para a inutilidade, e nós procuramos as raparigas que mais rapidamente se inutilizem perante as coisas clássicas da vida. não nos queremos atarefar com a vulgaridade, e gostaríamos até de impregnar cada gesto com características alienígenas, mas o tempo escapa-se e o dinheiro também e, se só pensamos no amor, não temos como fazer de outro modo senão vendê-lo entusiasticamente, como fontes de trovões bonitos jorrando nas praças mais movimentadas das cidades. e as raparigas correm para nós urgentes e cheias de vida, férteis de tudo quanto o amor se abate sobre elas, uma alegria rica de se ver, e nós a balançar os braços para chamar a atenção de mais e mais e já nem sabemos como parar, como forças incontroladas, à semelhança de mecanismos ferozes da natureza, e só sairemos daqui quando desfalecermos de amor até pelas raparigas mais feias
Malangatana Vinte e quatro poemas 2ª ed Lisboa: ISPA, 1996 ISBN: 972-96682-3-X
A Mamã Preocupada
Nos teus braços eu fiquei quando me nasceste muito preocupada quem estava aflita naquela altura perigosa com o receio de que Deus me vai levar?
Tudo em silêncio olhava para ver se o parto corria bem tudo lavava as mãos para poder receber quem vinha dos Céus e toda a mulher quieta e aflita
Mas quando afastei-me do lugar em que me guardaste durante longo tempo dei logo o primeiro respiro tu gritaste logo de alegria o primeiro beijo foi o da Avó
Que levou-me logo para o lugar que me guardaram e é secreto tudo foi proibido a entrar no meu quarto porque tudo cheirava mal e eu todo fresco, fresco respirava finalmente dentro das minhas fraldas
Mas a Avó que se supunha doida estava sempre ao meu lado ver-me e rever-me sempre porque as moscas vinham ter comigo e os mosquitos inquietavam-me Deus que revia-me também era o amigo da minha Avó velhinha
Meireles, Cecília Antologia Poética 1ª ed Lisboa: Relógio D’Água, 2002 ISBN: 972-708-703-5 Recado aos Amigos Distantes Meus companheiros amados, não vos espero nem chamo: porque vou para outros lados. Mas é certo que vos amo. Nem sempre os que estão mais perto fazem melhor companhia. Mesmo com sol encoberto, todos sabem quando é dia. Pelo vosso campo imenso, vou cortando meus atalhos. Por vosso amor é que penso e me dou tantos trabalhos. Não condeneis, por enquanto, minha rebelde maneira. Para libertar-me tanto, fico vossa prisioneira. Por mais que longe pareça, ides na minha lembrança, ides na minha cabeça, valeis a minha Esperança.
Mello, Pedro Homem Bodas Vermelhas 3ª ed Porto: Porto Editora, 1979 Eternidade
A minha eternidade neste mundo Sejam vinte anos só, depois da morte! O vento, eles passados, que, enfim, corte A flor que no jardim plantei tão fundo.
As minhas cartas leia-as quem quiser! Torne-se público o meu pensamento! E a terra a que chamei — minha mulher — A outros dê seu lábio sumarento!
A outros abra as fontes do prazer E teça o leito em pétalas e lume! A outros dê seus frutos a comer E em cada noite a outros dê perfume!
O globo tem dois pólos: Ontem e hoje. Dizemos só: — Meu pai! ou só:— Meu filho! O resto é baile que não deixa trilho. Rosto sem carne; fixidez que foge.
Venham beijar-me a campa os que me beijam Agora, frágeis, frívolos e humanos! Os que me virem, morto, ainda me vejam Depois da morte, vivo, ainda vinte anos!
Nuvem subindo, anis que se evapora... Assim um dia passe a minha vida! Mas, antes, que uma lágrima sentida Traga a certeza de que alguém me chora!
Adro! Cabanas! Meu cantar do Norte! (Negasse eu tudo acreditava em Deus!) Não peço mais: — Depois da minha morte Haja vinte anos que ainda sejam meus!
Mello, Pedro Homem E ninguém me conhecia 1ª ed Lisboa: Campo da comunicação, 2004 ISBN: 972-8610-35-1 Divórcio
Cidade muda, rente a meu lado, Como um fantasma sob a neblina... Há cem mil rostos. Tanto soldado E tanto abraço desesperado Nesta cidade tão masculina! Cidade muda como um soldado. Cidade cega. Todos os dias, A nossa vida fica mais breve, As nossas mãos ficam mais frias... Todos os dias, todos os dias, A morte paga, paga a quem deve. Cidade cega todos os dias. Cidade oblíqua. Sexo pesado. Rio de cinza, lúgubre e lento... Bandeira negra, barco parado, Nunca o teu nome foi baptizado Nem o teu beijo foi casamento! Cidade minha, do meu pecado... Cidade estranha, sabes que existo? Os homens passam... Para onde vão? Só tem amores quem não for visto. Por isso canto, só porque insisto Em dar combates à tentação. Oh! a volúpia de não ser visto!
Mendonça, José Tolentino A Noite Abre Meus Olhos (Poesia reunida) 3ª ed Lisboa: Assírio e Alvim, 2014 ISBN: 978-972-37-1789-1
A Estrada Branca Atravessei contigo a minuciosa tarde deste-me a tua mão, a vida parecia difícil de estabelecer acima do muro alto folhas tremiam ao invisível peso mais forte Podia morrer por uma só dessas coisas que trazemos sem que possam ser ditas: astros cruzam-se numa velocidade que apavora inamovíveis glaciares por fim se deslocam e na única forma que tem de acompanhar-te o meu coração bate
Miranda, Francisco de Sá de Obras completas – 2 volumes Vol.I – 4ª ed Vol.II – 3ª ed Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1976,1977 Comigo me desavim Comigo me desavim, Sou posto em todo perigo; Não posso viver comigo Nem posso fugir de mim. Com dor da gente fugia, Antes que esta assi crecesse: Agora já fugiria De mim, se de mim pudesse. Que meo espero ou que fim Do vão trabalho que sigo, Pois que trago a mim comigo Tamanho imigo de mim? Existem outras edições disponíveis na Biblioteca.
Moraes, Vinicius de Antologia Poética 1ª ed Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 ISBN: 972-20-1981-3 Ternura Eu te peço perdão por te amar de repente Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos Das horas que passei à sombra dos teus gestos Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos Das noites que vivi acalentado Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente E posso te dizer que o grande afeto que te deixo Não trai o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas Nem as misteriosas palavras dos véus da alma... É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias E só te pede que te repouses quieta, muito quieta E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o [olhar extático da aurora.
Moraes, Vinicius de O operário em construção e outros poemas 2ª ed Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 ISBN: 972-20-1980-5 Soneto de Separação De repente do riso fêz-se o pranto silencioso e branco como a bruma E das bocas unidas fêz-se espuma E das mãos espalmadas fêz-se o espanto. De repente da calma fêz-se o vento Que dos olhos desfez a última chama E da paixão fêz-se o pressentimento E do momento imóvel fêz-se o drama. De repente, não mais que de repente Fêz-se de triste o que se fêz amante E de sozinho o que se fêz contente. Fêz-se do amigo próximo o distante Fêz-se da vida uma aventura errante De repente, não mais que de repente.
Mourão-Ferreira, David Obra Poética (1948-1988) 1ª ed Lisboa: Editorial Presença, 1988 E por Vezes E por vezes as noites duram meses E por vezes os meses oceanos E por vezes os braços que apertamos nunca mais são os mesmos E por vezes encontramos de nós em poucos meses o que a noite nos fez em muitos anos E por vezes fingimos que lembramos E por vezes lembramos que por vezes ao tomarmos o gosto aos oceanos só o sarro das noites não dos meses lá no fundo dos copos encontramos E por vezes sorrimos ou choramos E por vezes por vezes ah por vezes num segundo se evolam tantos anos
Negreiros, José de Almada Poemas 2ª ed Lisboa: Assírio e Alvim, 2005 ISBN: 972-37-0649-0 Canção da Saudade Se eu fosse cego amava toda a gente. Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha irmã gémea que nasceu sem vida, e amo-a a fantasia-la viva na minha idade. Tu, meu amor, que nome é o teu? Diz onde vives, diz onde moras, diz se vives ou se já nasceste. Eu amo aquela mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longíssimos. Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes apressadas. Eu amo aquelas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas. Eu amo os cemitérios - as lajes são espessas vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos floridos virgens nuas, mulheres belas rindo-se para mim. Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi. Se eu fosse cego amava toda a gente.
Nemésio; Vitorino Obras Completas – Poesia – 2 volumes 1ª ed Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1989 O Poema em que te Busco é a Minha Rede O poema em que te busco é a minha rede, Bem mais de borboletas que de peixes, E é o copo em que te bebo: morro à sede Mas ainda és margarida e não-me-deixes E muito mais, no enumerar das coisas: Cordão de laço e corda de violino, Saliva de verdade nalgum beijo, E poisas Como ave de aço em pão se não te vejo. Mas onde mais real do céu me avisas É nas tuas camisas, Calças de cor no catre bem dobradas. E és os meus pensamentos, se te ausentas, Meu ciúme escuro como vinho em toalha; E o branco circular das horas lentas Que um perfurante amor lembrado espalha. Põe o penso no velo intercrural Com um atilho vertical: Rosa coberta esquiva Quer a mão do desejo, quer O conhecido cravo da agressão Que estendo às tuas formas de mulher, Com esta soma e verbal precaução De um fónico doutor de Mompilher
Neruda, Pablo Antologia Breve 6ª ed Lisboa: Dom Quixote, 1999 ISBN: 972-20-1662-8 Madrigal escrito no Inverno No fundo do mar profundo na noite de longas riscas, como um cavalo atravessa correndo o teu calado nome. Dá-me lugar no teu ombro, ai, abriga-me, aparece-me no teu espelho, de repente, brotando do escuro, detrás de ti. Flor da doce luz completa, acode-me com tua boca de beijos, violenta de separações, determinada e fina boca. Pois digo-te, no mais longe dos longes, de um esquecimento a outro moram comigo os carris, o grito da chuva: o que a escura noite preserva. Acolhe-me no tear da tarde, quando o anoitecer vai urdindo o seu vestiário e palpita no céu uma estrela cheia de vento. Traze-me a tua ausência até ao fundo, pesadamente, com os olhos tapados, atravessa-me a tua existência, admitindo que este meu coração está destruído
Neruda, Pablo Vinte poemas de amor e uma canção desesperada 12ª ed Lisboa: Dom Quixote, 2003 ISBN: 972-20-1432-3
Posso escrever os versos...
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: “A noite está estrelada e tiritam, azuis, os astros à distância”.
O vento desta noite gira no céu e canta.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite. Eu a quis e por vezes ela também me quis.
Em noites como esta apertei-a em meus braços. Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.
Ela me quis e às vezes eu também a queria. Como não ter amado seus grandes olhos fixos?
Posso escrever os versos mais tristes esta noite. Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.
Ouvir a noite imensa mais profunda sem ela. E cai o verso na alma como o orvalho no trigo.
Que importa se não pôde o meu amor guardá-la? A noite está estrelada e ela não está comigo.
Isso é tudo. À distância alguém canta. À distância. Minha alma se exaspera por havê-la perdido.
Para tê-la mais perto meu olhar a procura. Meu coração procura-a, ela não está comigo.
A mesma noite faz brancas as mesmas árvores. Já não somos os mesmos que antes tínhamos sido.
Já não a quero, é certo, porém quanto a queria! A minha voz no vento ia tocar-lhe o ouvido.
De outro. Será de outro. Como antes de meus beijos. Sua voz, seu corpo claro, seus olhos infinitos.
Já não a quero, é certo, porém talvez a queira. Ah, é tão curto o amor, tão demorado o olvido.
Porque em noites como esta a apertei nos meus braços minha alma se exaspera por havê-la perdido.
Mesmo que seja a última esta dor que me causa e estes versos os últimos que eu lhe tenha escrito.
Neto, Agostinho A renúncia impossível Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987 ISBN: 9789722702898
Afirmação
Ah! Faça-se luz no meu espírito LUZ!
Calem–se as frases loucas Desta renúncia impossível. Eu–todos nunca me enganei nunca coincidirei com o nada não me deitarei nunca debaixo dos comboios
Não fui eu quem falou da salvação do mundo à custa da minha existência da transformação do valor negativo em Zero por meio do castigo ao inocente em super – suicídio novidade histórica
Quem falou não fui eu foi a minha loucura.
O meu lugar está marcado no campo da luta para conquista da vida perdida
Eu sou. Existo As minha mãos colocaram pedras nos alicerces do mundo Tenho direito ao meu pedaço de pão
Sou um valor positivo da humanidade e não abdico, nunca abdicarei!
Seguirei com os homens livres O meu caminho para a liberdade e para a Vida. Perdoem–me os cinco minutos de loucura que vivi.
Nobre, António Poesia Completa 1867-1900 1ª ed Lisboa: Dom Quixote, 2000 ISBN: 9789722018029 Que Aborrecido! Meus dias de rapaz, de adolescente, Abrem a boca a bocejar sombrios: Deslizam vagarosos, como os rios, Sucedem-se uns aos outros, igualmente. Nunca desperto de manhã, contente. Pálido sempre com os lábios frios, Oro, desfiando os meus rosários pios... Fora melhor dormir, eternamente! Mas não ter eu aspirações vivazes, E não ter, como têm os mais rapazes, Olhos boiando em sol, lábio vermelho! Quero viver, eu sinto-o, mas não posso: E não sei, sendo assim, enquanto moço, O que serei, então, depois de velho...
Nobre, António Só Introdução de Agustina Bessa-Luís Porto: Livraria Civilização Editora, 1995 Vaidade, Tudo Vaidade! Vaidade, meu amor, tudo vaidade! Ouve: quando eu, um dia, for alguem, Tuas amigas ter-te-ão amizade, (Se isso é amizade) mais do que, hoje, têm. Vaidade é o luxo, a gloria, a caridade, Tudo vaidade! E, se pensares bem, Verás, perdoa-me esta crueldade, Que é uma vaidade o amor de tua mãe... Vaidade! Um dia, foi-se-me a Fortuna E eu vi-me só no mar com minha escuna, E ninguem me valeu na tempestade! Hoje, já voltam com seu ar composto, Mas eu, ve lá! eu volto-lhes o rosto... E isto em mim não será uma vaidade? Existem outras edições disponíveis na Biblioteca.
O’Neill, Alexandre Poesias Completas 5º ed Lisboa: Assírio & Alvim, 2012 ISBN: 978-972-37-0614-7 Amigo Mal nos conhecemos Inaugurámos a palavra «amigo». «Amigo» é um sorriso De boca em boca, Um olhar bem limpo, Uma casa, mesmo modesta, que se oferece, Um coração pronto a pulsar Na nossa mão! «Amigo» (recordam-se, vocês aí, Escrupulosos detritos?) «Amigo» é o contrário de inimigo! «Amigo» é o erro corrigido, Não o erro perseguido, explorado, É a verdade partilhada, praticada. «Amigo» é a solidão derrotada! «Amigo» é uma grande tarefa, Um trabalho sem fim, Um espaço útil, um tempo fértil, «Amigo» vai ser, é já uma grande festa!
Osório, António O lugar do amor 2ª ed Lisboa: Moraes Editores, 1985 Nascente Quando sinto de noite o teu calor dormente e devagar para que não despertes digo: cedro azul, terra vegetal, ou só amor, amor; quando te acaricio e devagar para que não despertes tomo na mão direita as duas fontes, iguais, da vida, procuro a nascente e adormeço nela essa mão depositando.
Peixoto, José Luís Gaveta de papéis 2ª ed Lisboa: Quetzal, 2011 ISBN: 978-972-564-970-1 Desmantelamento de um rio Arranco os autocolantes da parede do quarto do nosso filho, como se a faca eléctrica da cozinha me atravessasse o braço. Sou eu que apago os seus desenhos na parede. Não são riscos, são desenhos. Há lápis de cera espalhados e partidos pelo chão. Depois de nós, esta morada terá outros nomes e chegarão cartas pacientes à caixa do correio. Agora, são impossíveis de imaginar, como o nosso ontem será impossível de imaginar. Foi aos poucos que ficou apenas o sofá e as recusas e os armários esventrados. Foi muito demoradamente que chegaram as noites em que durmo no sofá, sob um cobertor oferecido pela minha mãe ou pela tua. Por fim, tenho tempo para habituar os olhos às sombras e avaliar a devastação, acordar com o frio da madrugada, o esquecimento, e assistir àquela hora azul em que já não é de noite, mas em que ainda falta tanto para ser de dia. Despejo no fundo de um saco tudo o que está naquela gaveta que nunca ninguém arrumou. À minha volta, há caixotes que servem para guardar os livros, já estão divididos. Escolho o lugar para pousar os pés. Fizemos coisas nesta sala vazia, tivemos pensamentos, aprendemos alfabetos. Resta-me agora o que sempre tive e, como se caísse desamparado na banheira, prossigo e continuo o meu trabalho, como se batesse com a cabeça na esquina de uma gaveta, prossigo e continuo o meu trabalho.
Penha, João Antologia Poética de João Penha Braga: Biblioteca Pública de Braga/Universidade do Minho, 1990 ISBN: 972-9117-09-8 ANTERO DE QUENTAL Andas, meu bom Antero de Quental, Nas regiões obscuras do infinito Cá eras meio ateu, mas lá, contrito, Já te vês imortal, ante o Imortal. Esse caso psicológico e fatal Está de há muito em livros de oiro escrito: Filosofia e crença não são mito, Uma irrisória criação mental. Sem veres o fantástico Nirvana, Alijaste Manu, e dizes triste: «Não tem limites a cegueira humana! Na terra que fiz eu, da lança em riste? Oh! como o pensamento nos engana! De tudo que sonhei... só Deus existe!»
Pessanha, Camilo Clepsidra Coimbra: Castelo Branco, Alma Azul, 2001 Interrogação Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar, Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo; E apesar disso, crê! nunca pensei num lar Onde fosses feliz, e eu feliz contigo. Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito. E nunca te escrevi nenhuns versos românticos. Nem depois de acordar te procurei no leito Como a esposa sensual do Cântico dos cânticos. Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo A tua cor sadia, o teu sorriso terno... Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso Que me penetra bem, como este sol de Inverno. Passo contigo a tarde e sempre sem receio Da luz crepuscular, que enerva, que provoca. Eu não demoro a olhar na curva do teu seio Nem me lembrei jamais de te beijar na boca. Eu não sei se é amor. Será talvez começo... Eu não sei que mudança a minha alma pressente... Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço, Que adoecia talvez de te saber doente.
Pessoa; Fernando Mensagem Prefácio de Richard Zenith 4ª ed Lisboa: Oficina do Livro, 2008 ISBN: 978-989-555-250-4 Mar Português Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu.
Pessoa, Fernando Obra completa 10 volumes Lisboa: Multilar, 1990
Eros e Psique
Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera. Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado. Ele dela é ignorado. Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino — Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E, vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora. E, inda tonto do que houvera, A cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia.
Existem na Biblioteca diversas edições das obras de Fernando Pessoa
Pina, Manuel António Todas as palavras – Poesia reunida 1ª ed Lisboa: Assírio e Alvim, 2012 ISBN: 978-972-0-79293-8 O Lado de Fora Eu não procuro nada em ti, nem a mim próprio, é algo em ti que procura algo em ti no labirinto dos meus pensamentos. Eu estou entre ti e ti, a minha vida, os meus sentidos (principalmente os meus sentidos) toldam de sombras o teu rosto. O meu rosto não reflecte a tua imagem o meu silêncio não te deixa falar, o meu corpo não deixa que se juntem as partes dispersas de ti em mim. Eu sou talvez aquele que procuras, e as minhas dúvidas a tua voz chamando do fundo do meu coração.
Quental, Antero de Antologia poética de Antero de Quental 1ª ed Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura, 1983 A um Poeta Tu que dormes, espírito sereno, Posto à sombra dos cedros seculares, Como um levita à sombra dos altares, Longe da luta e do fragor terreno. Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno Afugentou as larvas tumulares... Para surgir do seio desses mares Um mundo novo espera só um aceno... Escuta! É a grande voz das multidões! São teus irmãos, que se erguem! São canções... Mas de guerra... e são vozes de rebate! Ergue-te, pois, soldado do Futuro, E dos raios de luz do sonho puro, Sonhador, faze espada de combate!
Quental, Antero de Sonetos completos Porto: Lello & irmão, 1983 Sempre o Futuro, Sempre! e o Presente Sempre o futuro, sempre! e o presente Nunca! Que seja esta hora em que se existe De incerteza e de dor sempre a mais triste, E só farte o desejo um bem ausente! Ai! que importa o futuro, se inclemente Essa hora, em que a esperança nos consiste, Chega... é presente... e só á dor assiste?... Assim, qual é a esperança que não mente? Desventura ou delirio?... O que procuro, Se me foge, é miragem enganosa, Se me espera, peor, espectro impuro... Assim a vida passa vagarosa: O presente, a aspirar sempre ao futuro: O futuro, uma sombra mentirosa.
Régio, José Obras Completas Porto: Brasília editora, Testamento do Poeta Todo esse vosso esforço é vão, amigos: Não sou dos que se aceita... a não ser mortos. Demais, já desisti de quaisquer portos; Não peço a vossa esmola de mendigos. O mesmo vos direi, sonhos antigos De amor! olhos nos meus outrora absortos! Corpos já hoje inchados, velhos, tortos, Que fostes o melhor dos meus pascigos! E o mesmo digo a tudo e a todos, - hoje Que tudo e todos vejo reduzidos, E ao meu próprio Deus nego, e o ar me foge. Para reaver, porém, todo o Universo, E amar! e crer! e achar meus mil sentidos!.... Basta-me o gesto de contar um verso. Existem outras edições disponíveis na Biblioteca.
Régio, José Cântico Negro 2ª ed Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2009 ISBN: 989-552-125-1 Cântico Negro "Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces Estendendo-me os braços, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: "vem por aqui!" Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) E cruzo os braços, E nunca vou por ali... A minha glória é esta: Criar desumanidades! Não acompanhar ninguém. — Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre à minha mãe Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde Por que me repetis: "vem por aqui!"? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí... Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Amo os abismos, as torrentes, os desertos... Ide! Tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes pátria, tendes tetos, E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... Eu tenho a minha Loucura ! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém! Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; Mas eu, que nunca principio nem acabo, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: "vem por aqui"! A minha vida é um vendaval que se soltou, É uma onda que se alevantou, É um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou, Não sei para onde vou Sei que não vou por aí!
Rosa, António Ramos Antologia Poética 1ª ed Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 ISBN: 972-20-1955-4 Para um Amigo Tenho Sempre Para um amigo tenho sempre um relógio esquecido em qualquer fundo de algibeira. Mas esse relógio não marca o tempo inútil. São restos de tabaco e de ternura rápida. É um arco-íris de sombra, quente e trémulo. É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.
Rosa, António Ramos A mão de água e a mão de fogo Coimbra: Fora do texto 1987 A Festa do Silêncio Escuto na palavra a festa do silêncio. Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se. As coisas vacilam tão próximas de si mesmas. Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas. É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma. Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia, o ar prolonga. A brancura é o caminho. Surpresa e não surpresa: a simples respiração. Relações, variações, nada mais. Nada se cria. Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça. Nada é inacessível no silêncio ou no poema. É aqui a abóbada transparente, o vento principia. No centro do dia há uma fonte de água clara. Se digo árvore a árvore em mim respira. Vivo na delícia nua da inocência aberta.
Rosa, António Ramos Mediadoras 1ª ed Lisboa: Ulmeiro, 1985 Mediadora do Vento Ligeira sobre o dia ao som dos jogos, desliza com o vento num encantado gozo. Pelas praias do ar difunde-se em prodígios. Tudo é acaso leve, tudo é prodígio simples. Pequena e magnífica no seu amor volante propaga sem destino surpresas e carícias. Pátria, só a do vento de tão subtil e viva. Azul, sempre azul em completa alegria.
Rosa, António Ramos O teu rosto 1ª ed Guimarães: Pedra Formosa, 1994 ISBN: 972-8118-06-6 Amo o teu túmido candor de astro a tua pura integridade delicada a tua permanente adolescência de segredo a tua fragilidade acesa sempre altiva Por ti eu sou a leve segurança de um peito que pulsa e canta a sua chama que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro ou à chuva das tuas pétalas de prata Se guardo algum tesouro não o prendo porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto que dure e flua nas tuas veias lentas e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva para que sintas a verde frescura de um pomar de brancas cortesias porque é por ti que vivo é por ti que nasço porque amo o ouro vivo do teu rosto
Sá-Carneiro, Mário Poemas completos 1ª ed Lisboa: Assírio e Alvim, 1996 ISBN: 972-37-0193-6 Fim Quando eu morrer batam em latas, Rompam aos saltos e aos pinotes, Façam estalar no ar chicotes, Chamem palhaços e acrobatas! Que o meu caixão vá sobre um burro Ajaezado à andaluza… A um morto nada se recusa, Eu quero por força ir de burro.
Santos, José Carlos Ary Obra poética 7ª ed Lisboa: Edições Avante, 2004 ISBN: 972-550-228-0 Retrato de Amigo Por ti falo. E ninguém sabe. Mas eu digo meu irmão minha amêndoa meu amigo meu tropel de ternura minha casa meu jardim de carência minha asa. Por ti morro e ninguém pensa. Mas eu sigo um caminho de nardos empestados uma intensa e terrífica ternura rodeado de cardos por muitíssimos lados. Meu perfume de tudo minha essência meu lume minha lava meu labéu como é possível não chegar ao cume de tão lavado céu?
Saramago, José Poemas possíveis 5ª ed Lisboa: Editorial Caminho, 1999 ISBN: 9789722123389 Não me Peçam Razões... Não me peçam razões, que não as tenho, Ou darei quantas queiram: bem sabemos Que razões são palavras, todas nascem Da mansa hipocrisia que aprendemos. Não me peçam razões por que se entenda A força de maré que me enche o peito, Este estar mal no mundo e nesta lei: Não fiz a lei e o mundo não aceito. Não me peçam razões, ou que as desculpe, Deste modo de amar e destruir: Quando a noite é de mais é que amanhece A cor de primavera que há-de vir.
Saramago, José Provavelmente alegria 5ª ed Lisboa: Editorial Caminho, 1999 ISBN: 972-21-0294-X Alegria Já ouço gritos ao longe Já diz a voz do amor A alegria do corpo O esquecimento da dor Já os ventos recolheram Já o verão se nos oferece Quantos frutos quantas fontes Mais o sol que nos aquece Já colho jasmins e nardos Já tenho colares de rosas E danço no meio da estrada As danças prodigiosas Já os sorrisos se dão Já se dão as voltas todas Ó certeza das certezas Ó alegria das bodas
Sena, Jorge de Poesia I, II e III (3 volumes) 1ª ed Lisboa : Edições 70, 1988-1989
Da Vida... não Fales Nela Da vida... não fales nela, quando o ritmo pressentes. Não fales nela que a mentes. Se os teus olhos se demoram em coisas que nada são, se os pensamentos se enfloram em torno delas e não em torno de não saber da vida... Não fales nela. Quanto saibas de viver nesse olhar se te congela. E só a dança é que dança, quando o ritmo pressentes. Se, firme, o ritmo avança, é dócil a vida, e mansa... Não fales nela, que a mentes.
Sena, Jorge Sequências 1ª ed Lisboa: Moraes Editores, 1980 Marido e mulher Sofriam terrivelmente. Porque o comboio dele chegava quando o dela partia. Compraram um manual na livraria, mandaram vir pelo correio uma almofada especial (cujo atraente anúncio recebiam quase todos os dias pelo correio) leram com cuidado as instruções, estudaram com aplicação os esquemas do livro, e, quando se ensaiavam, na discreta penumbra do quarto respectivo, a sogra — que embirrava com ele — abriu de repente a porta, deu um grito, correu ao telefone e chamou a polícia, A polícia veio, levou-o. Foi julgado e condenado a dois anos de tratamento num instituto psiquiátrico por atentar, vicioso, contra a virtude da esposa.
Shakespeare, William Moura, Vasco Graça (Edição e tradução) Os sonetos de Shakespeare : Versão integral 2ª ed. Lisboa: Bertrand, 2002 ISBN: 972-25-1251-X Soneto 150
De que poder tens força tão temível, que o coração em falha me desvia, que me faz dar mentira no visível, jurar que a luz não favorece o dia? De onde tens tal fazer, de mal, agrado, que até o refugo dos teus actos vem em força e garantia tão dotado que o teu pior, em mim, é sumo bem? Quem te ensinou a pôr-me a amar-te mais, se causa de ódio mais escuto e vejo? Se eu amo o que detestam outros tais, não deves detestar-me em tal cotejo. Se na baixeza meu amor levantas, mais valho de que tu me ames às tantas.
Souza, Eunice Amaral, Ana Luísa (Tradução) Poemas escolhidos 1ª ed Lisboa: Cotovia /Fundação Oriente, 2001 ISBN :972-795-005-1 Pedaço de Conversa Um dia a minha tia educada à portuguesa pegou num shivalingam de barro e disse: É um cinzeiro? Não, respondeu o vendedor, É o nosso deus.
Szymborska, Wislawa Instante Lisboa: Relógio D’Agua, 2006 ISBN: 97897270887444 ABC Jamais saberei o que A. pensava de mim. Se B. acabou por me perdoar. Por que razão fingia C. que tudo estava bem. Qual a quota-parte de D. no silêncio de E. O que esperava F. se acaso algo esperava. Por que fingia G. sabendo de tudo. O que tinha H. a esconder. O que queria I. acrescentar. Se o facto de eu estar por perto, teve algum significado para J. e K. e para o resto do alfabeto.
Szymborska, Wislawa Paisagem com Grão de Areia Lisboa: Relógio D’Agua, 1998 ISBN: 9789727084906
Primeira foto de Hitler
"E quem é essa gracinha de tiptop? É o Adolfinho, filho do casal Hitler! Será que vai se tornar um doutor em direito? Ou um tenor da ópera de Viena? De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho? De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe; de um tipógrafo, padre, médico, mercador? Quais caminhos percorrerão essas pernocas, quais? Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório com a filha do prefeito?
Anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol, quando chegou ao mundo um ano atrás, não faltaram sinais na terra nem no céu: gerânios na janela, um sol primaveril, a música de um realejo no portão, votos de bom augúrio envoltos em papel crepom rosa, pouco antes do parto, o sonho profético da mãe: sonhar com uma pomba - sinal de boas-novas, se for pega - vem uma visita muito esperada. Toc, toc, quem é, é o coraçãozinho do Adolfinho que bate.
Fralda, babador, chupeta, chocalho, o menino, com a graça de Deus e bate na madeira, é sadio, parecido com os pais, com um gatinho no cesto, com os bebês de todos os outros álbuns de família. Não, não vai chorar agora, o fotógrafo atrás do pano preto vai fazer um clique.
Ateliê Klinger, Grabenstrasse Braunau, e Braunau é uma cidade pequena mas respeitável, firmas sólidas, vizinhos honestos, cheiro de massa de pão e de sabão cinzento. Não se ouve o ladrar dos cães nem os passos do destino. Um professor de história afrouxa o colarinho e boceja sobre os cadernos
Tamen, Pedro Poesia 1956-1978 1ª ed Lisboa: Moraes Editores, 1978 Não Tenho para Ti Quotidiano Não tenho para ti quotidiano mais que a polpa seca ou vento grosso, ter existido e existir ainda, querer a mais a mola que tu sejas, saber que te conheço e vai chegar a mão rasa de lona para amar. Não tenho braço livre mais que olhar para ele, e o que faz que tu não queiras. Tenho um tremido leito em vala aberta, olhos maduros, cartas e certezas. Neste comboio longo, surdo e quente, vou lá ao fundo, marco o Ocupado. Penso em ti, meu amor, em qualquer lado. Batem-me à porta e digo que está gente.
Tavares, Ana Paula Como Veias Finas na Terra Lisboa: Caminho, 2010 ISBN: 9789722121347 Para onde eu vou Ferve a luz Debaixo dos tectos Há ontem e amanhã Amores com pele de líquen Sonhos azuis pelas esquinas Ali não é preciso nada Guardamos o lugar Com palavras Olhamos uns para os outros E vamos, cada vez mais pobres Tapar o sol com a peneira
Torga, Miguel Poesia completa 1ª ed Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000 ISBN: 972-20-1708-X Quase um Poema de Amor Há muito tempo já que não escrevo um poema De amor. E é o que eu sei fazer com mais delicadeza! A nossa natureza Lusitana Tem essa humana Graça Feiticeira De tornar de cristal A mais sentimental E baça Bebedeira. Mas ou seja que vou envelhecendo E ninguém me deseje apaixonado, Ou que a antiga paixão Me mantenha calado O coração Num íntimo pudor, — Há muito tempo já que não escrevo um poema De amor. Existem outras edições disponíveis na Biblioteca.
Tranströmer, Tomas 50 Poemas Lisboa: Relógio D'Água, 2012 ISBN: 9789896413040 O Casal Apagam a luz, o globo branco treme um instante antes de se desvanecer como um comprimido num copo de escuridão. Às escuras, as paredes do hotel elevam-se, atingem o negrume celeste. Os movimentos do amor esmorecem, eles dormem, mas os pensamentos mais íntimos encontram-se como duas cores que esbarram e se misturam, tal papel humedecido da pintura de um garoto na idade escolar. Ainda não é dia e há silêncio. Esta noite, porém, a cidade acercou-se. Com janelas apagadas, as casas estão ali. Juntas umas às outras, à espera, muito perto, uma multidão com rostos sem expressão.
Variações, António Muda de Vida Lisboa: Relógio D'Água, 2006 ISBN: 9789727088737
O corpo é que paga
Quando a cabeça não tem juízo Quando te esforças Mais do que é preciso O corpo é que paga O corpo é que paga Deix’ò pagar, deix’ò pagar Se tu estás a gostar...
Quando a cabeça não se liberta Das frustrações, inibições Toda essa força, que te aperta O corpo é que sofre As privações, mutilações
Quando a cabeça está convencida De que ela é A oitava maravilha O corpo é que sofre O corpo é que sofre Deix’ò sofrer, deix’ò sofrer Se isso te dá prazer...
Quando a cabeça está nessa confusão Estás sem saber que hás-de fazer E ingeres tudo o que te vem à mão O corpo é que fica Fica a cair, sem resistir
Quando a cabeça rola prò abismo Tu não controlas esse nervosismo A unha é que paga A unha é que paga Não paras de roer Nem que esteja a doer...
Quando a cabeça não tem juízo E te consomes, mais do que é preciso O corpo é que paga O corpo é que paga Deix’ò pagar, deix’ò pagar Se tu estás a gostar... Deix’ò sofrer, deix’ò sofrer Se isso te dá prazer..
Veiga, Sebastião Philippes Estácio Martins da Poesias (ou banalidades poéticas) 1ª ed Lisboa/Tavira, Colibri/Câmara Municipal de Tavira, 2000 ISBN 972-772-126-5 A uma rosa Formosa planta Linda roseira Ontem estavas Bem prazenteira De ti saía Brilhante rosa Que de repente Achei formosa. À cor bonita Que a rosa tinha Não rivaliza Outra florinha Seu rico aroma Sua frescura Animou logo Minh’alma pura... Só me restava Que minha fosses!... P’ra tributar-te Prazeres doces... “sim, serás minha quero roubar-te Que acho impossível Aqui deixar-te.
Verde, Cesário Poesia completa 1855-1886 1ª ed Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 ISBN: 972-20-1951-1 Vaidosa Dizem que tu és pura como um lírio E mais fria e insensível que o granito, E que eu que passo aí por favorito Vivo louco de dor e de martírio. Contam que tens um modo altivo e sério, Que és muito desdenhosa e presumida, E que o maior prazer da tua vida, Seria acompanhar-me ao cemitério. Chamam-te a bela imperatriz das fátuas, A déspota, a fatal, o figurino, E afirmam que és um molde alabastrino, E não tens coração, como as estátuas. E narram o cruel martirológio Dos que são teus, ó corpo sem defeito, E julgam que é monótono o teu peito Como o bater cadente dum relógio. Porém eu sei que tu, que como um ópio Me matas, me desvairas e adormeces, És tão loura e dourada como as messes E possuis muito amor... muito amor-próprio.
Vieira, Arménio O Poema, A viagem, O Sonho Lisboa: Caminho, 2009 ISBN: 978-972-21-2072-2 MEGALOMANIA Eu, que de Homero recebi o poema no instante em que o poema nasce, e vi o Inferno pela mão de Dante, tal-qual Leopardi mais tarde o viu, e, após me afundar no rio onde Hamlet e Lear beberam o vinho que enlouquece, comecei a ter visões que Rimbaud, De Quincey e Poe registaram em negros textos; eu, que no eterno transportei a bandeira que era peso nas mãos de Elliot, e renovei a charrua com que Pound lavrava os versos, e de Whitman furtei-me ao licor, que em Álvaro, digo Campos, porque dorido e menos doce, sabia melhor; então que falta em mim para de Camões herdar a estrela, que Pessoa deixou fugir?
Vieira, Vergílio Alberto Amante de um só dia Porto:Tropelias e Companhia, 2012 ISBN: 978-972-8582-03-4
SEXTA
1 Ele é O que me soube cativar e, sem condição, me protegeu como da lança se protege a mão, que a arremessa. 2 Antes que o mundo me desse por perdido, por perdido dei o que renunciei ao mundo, para de outro modo não vir a ser julgado, e de mim ser temerário. 3 Para guardar a palavra, esvaziei a boca, antes que, do coração, me fosse arrancada, como a árvore pela raiz. 4 De pouco me serviriam (/bens que, como terra, juntei aos olhos d' Aquele que sobre os povos faz tremer as colunas do céu e o Setentríão suspende, sobre o nada. 5 Sete vezes mais brilhará o sol, para que a sementeira medre, e abundância não falte ao que com pá e crivo joeirou o trigo enganador. (...)
Vieira, Vergílio Alberto A imposição das mãos 1ª ed Porto: Campo das Letras, 1999 ISBN: 972-610-169-7 A um grego foi possível A um grego foi possível Outrora sonhar divinamente as águas De outro rio Esse rio é o homem e Heráclito Ainda em sonho ignora Quão indiferente sobre si mesmo corre O rio Agora é noite E o grego as naturezas escuta Em toda a parte enquanto Pensa o fogo harmonioso do passado O que na cinza se escreveu Perdido foi em Éfeso Artemis é essa inquietação segura
Vieira, Vergílio Alberto Todo o trabalho Toda a pena 1ª ed Crescente Branco, 2016 Quatro luas passaram sem que a dor Em sonho me revelasse a solidão. A noite, que a trouxera, por amor Bastou para merecer a servidão. De véspera, ainda o silêncio, de fulgor Mais puro que a luz da provação, Voltou a ser, na morte, desamor Ao retirar da terra o coração. Levou-o o Novembro frio, sem adeus, Depois de já cansado, cada instante O ter deixado para trás pelo caminho. Dos cuidados de outrora, há um dos meus Que é cuidado dele. Mais adiante Saberá porque vou então devagarinho.
Virgílio Tradução de Agostinho da Silva Bucólicas, Geórgicas, Eneida 2ª ed Lisboa: Temas e Debates, 1999 ISBN: 972-759-040-3
Sou eu aquele que em passado tempo meu canto confiei à frágil frauta e levei a que campos meus vizinhos ao desejo do dono obedecessem, que bom trato agradasse ao camponês. Sou eu agora quem celebra em canto, nos horrores das armas de Marvote, o varão que primeiro veio de Troia à nossa Itália, às praias de Lavínia, em fuga obedecendo a seu destino, bem batido por mares e por terras, pela divina força dos de cima e por ira tenaz da crua Juno, tanto sofrendo em guerra até fundar a cidade que é sua, até trazer ao Lácio os deuses, e, daí provinda, a raça dos Latinos, avós de Alba, depois muralhas da famosa Roma. Eneida, versos iniciais
Os meus poemas favoritos
Tempo de Poesia
Todo o tempo é de poesia Desde a névoa da manhã à névoa do outo dia. Desde a quentura do ventre à frigidez da agonia Todo o tempo é de poesia Entre bombas que deflagram. Corolas que se desdobram. Corpos que em sangue soçobram. Vidas qua amar se consagram. Sob a cúpula sombria das mãos que pedem vingança. Sob o arco da aliança da celeste alegoria. Todo o tempo é de poesia. Desde a arrumação do caos à confusão da harmonia. António Gedeão