António Celestino Crónicas - Terras de Lanhoso -1996/2003 Recolhidas por Maria Fernanda Barros Fernandes
“As suas crónicas, e aqui recordo o nosso grande Ruben Braga, têm sal mas não são salgadas, não têm açúcar e são doces. Algumas derretem na boca lembrando um bom Muscadet, que se evola ao beber. Ensinam, mas não se pode aprender o que ensinam. E como grande ilusionista das letras pátrias, transforma em miragem aliciante e com uma simples frase, sem qualquer costura literária, o mais banal acidente de percurso.” A.C
Edição comemorativa do centenário natalício de António Celestino
2017
Nascido na Póvoa de Lanhoso em 24 de maio de 1917, António Celestino faria este ano 100 anos e, parafraseando-o ”este jovem morreu na flor da idade aos 92 anos”. Foi mal. Devia ter feito o esforço para estar aqui, hoje, e soprar as velas dum bolo centenário (em número de velas, não de data de validade!). Enquanto compilava estas suas crónicas, publicadas no jornal Terras de Lanhoso entre 1996-2003, tive-o sentado ao meu lado falando-me baixinho ao ouvido com o seu sotaque lindo. Ri com suas graças, comovi-me com seu carinho. E chorei. A saudade ainda dói. Acho que vai doer para sempre. Fernanda Barros
Mas afinal o que é cultura? Terras de Lanhoso – 7 de outubro 1996
Todo aquele curioso que procurar as raízes – já não digo o étimo – da palavra Cultura, vai encontra-las sempre seguras à terra. Cultura nasce do verbo cultivar, que nas línguas latinas desde o séc. XVI significa a mesma coisa, muito embora nas fontes medievais haja ligação com “culto”, como coisa meio mística ou de superstição, o que justifica parcialmente a bondade dos deuses com as colheitas. E como cultura, no sentido ligado á civilização, provém do alemão Kulturel, que só aparece nos escritos pelo apontado século, é precisamente o que nos interessa, deixando a sua aceção original e pura para consumo e estudo de agricultores. Mas, afinal, o que é cultura, a tal que nos diz respeito? Como a indefinição é identificável. Não faltam sínteses, interpretações, conceitos e frases mais ou menos felizes para a definir. Eu, cá para mim, tenho como homem culto todo aquele que, quando desconhece determinado assunto, sabe perfeitamente onde limpar a sua ignorância. Para os gregos era sophia, nos romanos passou de humanitas para sapientia. Com os hieráticos alemães tornou-se manobra intelectual perigosa e só melhorou quando os franceses nacionalizaram o termo seiscentista – que nessas priscas eras, também nós, os lusíadas, o adotamos. E se não fizemos mais por ele, foi porque nos faltaram forças… sábios como Spengler e Heggel, especularam profundamente suas mais esconsas entranhas, embora tenha sido Toynbee que lhe deu sagesa, mercê da sua visão vertical da história. Isso, porém, são contos muito largos que aqui não cabem, nem na minha pobre e gaia ciência confusa… volto, contudo, a perguntar: o que vem a ser a cultura? Se analisarmos e concluirmos que ela é feita com muita pedra, não é possível que alguma nos caia na cabeça? Mais floresta que árvore, mais oceano que mar, mais continente que nação, como havemos de nos situar em função dos seus vastos domínios, tripulando a fragilidade das nossas limitações? Não será mais atilado indagarmos o que não é cultura? Deixando para a nossa própria capacidade (ou incapacidade) o setor que mais, ou até unicamente nos interessa? O que parece certo é que alguns dos seus inúmeros setores que nos cabe defender – quer particular, quer publicamente – deve ser feito às escâncaras, sem medos nem temores, muito embora hoje, grande parte da defesa só possa ser efetivada com sucesso à custa de muito dinheiro e de muito tempo, e o geral é que quem tem uma coisa não tem a outra e quem tem dinheiro quer ter sempre mais e não é com a cultura da nossa preocupação que ele se pode reproduzir em escala visível. Já um dos grandes do nazismo dizia que toda a vez que ouvia falar em cultura carregava o revólver. Não é o nosso caso, Deus nos livre, mas substituindo revolver por carteira de dinheiro, a frase ganha sentido. O francês René Sedillot escreveu sobre os tais acordos culturais que tinham sido inventados para se poder dizer que se fez um acordo e ficar tranquilo por não se ter feito nada. Cada um que sente o problema sabe que antigamente a cultura chegava até nossos antepassados através de livros herdados. Documentos preservados cuidadosamente, tradição oral, costume, hábitos, fontes de consulta que serviam a muitos. Hoje em dia a
pletora torrencial da informação é paga a peso de ouro e é tal a quantidade e frequência que cada especialidade fica quase inacessível aos mais avisados. Enfim, para o dizer com todas as letras, hoje cultura custa muito dinheiro, não apenas para se adquirir as fontes donde ela emana, mas igualmente para preparar aqueles que, um dia, talvez possam ascender-lhe. Há quem tenha dito que cultura é tudo quanto ficou na mente depois de termos esquecido quanto aprendemos. Jean D’Omerson escreveu que “a administração, os despachos, o diário da República, não são o suficiente, nem de longe para se construir uma cultura” Na nossa época, cultura não se decreta. Diz-se, às vezes com certa razão, que o Estado não faz o suficiente, embora, se o fizesse em demasia, isso se transformasse em catástrofe. Ora, o que é claro, é a necessidade da sua defesa e da dificuldade de se encontrar o veio mais ameaçado. Assim, cada qual iria até onde suas posses pudessem levar e o caminho mais curto passa forçosamente pelas dúvidas que povoam as nossas mentes. Nunca nos interrogamos a não ser sobre os assuntos que temos dúvida. E quando mais nos afundamos neles, mais dívidas aparecem. A cada um de nós. letrados ou não, cabe defender o que nos parece ameaçado e, se cada um fizer um nadinha que seja, nesse sentido, no fim, grandes coisas poderão ser feitas à custa da imaginação – que por ora não paga IVA. O assunto não teria fim se fizéssemos honestamente o que está ao nosso alcance, todos pagamos o nosso modesto tributo à civilização de que desfrutamos bens, tangíveis ou não. À qual todos devemos alguma forma de cultura, um pedaço enorme da nossa condição humana. Demostra-lo sempre que nos deixam é o melhor exemplo que podemos legar – embora às vezes me pergunte: a quem? Se todos nós, mas todos, fizermos um pouquinho, Deus depois junta tudo e faz o resto. Como escreveu Hedegger, o homem é um poema que Ele começou. Ao menos ajudemoLo a terminar.
A magia das palavras Terras de Lanhoso – 4 de novembro 1996
As palavras parecem viver por si próprias, embora também elas nasçam por alguma razão. E se é com elas que criamos os nossos pequenos universos, é também com elas que declaramos as nossas guerras ou assinamos os pactos de amor: todas têm, portanto, sua razão de existir. Há tratadistas eruditos que dedicam a vida ao seu estudo e ainda agora acaba de sair um delicioso livro, em espanhol, chamado De donde vienem las palabras (Iglesias, Otávio. Dicionários de Hoy, Madrid, 1996), que é bem mais que um simples dicionário etimológico, já que de etimologia estão as livrarias e bibliotecas abarrotadas. Mas voltando às palavras, elas têm tanta força que às vezes, uma só, candente, tem mais carga de exatidão que muitos discursos alegóricos. Não há nenhuma combinação numérica que tenha mais carga de exatidão que um não ou um sim, nem que para uma ou outra digam precisamente o contrário, sem que percam o seu exato sentido, como explicava Rolan Barthes. Donde lhes vem, então, toda essa carga emocional e até anímica do alinhamento das letras que se chama palavra? Como foram criadas, como nasceram? As etimologias habitualmente dizem os nomes dos “pais” delas, mas, e antes? O assunto é francamente fascinante e cada dia que passa, para quem se interessa por elas, é suficiente para novas descobertas. Eu confesso que sou um catador e sempre que descubro algum sinal germinal, respeito-o. Assim, ajuntei tantas que, se tivesse mais formação académica teria obrigação de organizar para quem as quisesse saborear. Contudo, como o espaço em jornal é coisa preciosa, necessito dar o meu recado em poucas linhas e, portanto, vamos aos exemplos, para ver se disto consigo fazer alguma coisa que se entenda. As raízes das palavras estão espalhadas por todas as línguas, como por exemplo gorjeta, que nasceu de gorja, o pourboire francês que era o que graciosamente se dava para alguém beber e que naturalmente passou a ser a tal gorja. E abade, que vem do arameu abba, forma enfática de hebreu ab, que quer dizer pai. Gravata, por sua vez vem de cravate, uma banda de linho que os cavaleiros croatas usavam em volta do pescoço. Cartapácio era um papel onde um soberano fazia a sua proclamação de paz… E sentinela, vem do termo latino sentire, perceber pelos sentidos. Chauffer era o fogueiro de uma locomotiva até se tornar o condutor de automóveis, deriva de chauffer – aquecer. Ovação deriva do termo latino ovare, que era manifestar com júbilo. E pagar? vem de apaziguar, acalmar, deriva de paz. E palavra? era o conjunto de sons articulados que expressavam uma ideia: do grego parabolé – comparação. Moeda, cujo nome latino de Juno era moneta, pois no seu templo se cunhavam moedas. Muito conhecida é a origem da palavra capela, que foi a meia capa que São Martinho deu a um pobre. Buraco, vem do arcaico furaco, que era um furo. Caroço de coração, como víscera. E rapaz vem de rapace, rapazote que ia vivendo do que roubava. Charuto vem do inglês cherrot, nome que trouxeram da Malaia como charute e que significava enrolar. Banana em árabe quer dizer
dedo. Assassino, vem também do árabe haxaxi, que era o que usava ou fumava haxixe, pois eram considerados sequazes duma seita que dependia da mistela do haxixe. Gravar, vem do francês graver, que por sua vez vem de greve que no séc. XIII era um risco no cabelo e graver era abrir a risca. Rameira era, no princípio, a prostituta dissimulada que fingia ter uma taberna e punha um ramo de oliveira na porta. Rezar vem de recitar. Armário, de lugar onde se guardavam as armas. E braga era a abertura da frente dos calções pois, em latim, braga significa calção largo, fechado por baixo. Nas armaduras dos guerreiros era uma peça que cobria a genitália. Originalmente não levava botões, já que se tratava de um triângulo de tecido que se atava com um laço e que também servia de porta-moedas. Bordel parece ter derivado de bord, bastardo. Zurrapa vem do árabe e significava o que restava dos líquidos que se guardavam em bilha e surab era o que ficava mais no fundo. E para terminar, que a conversa já vai longa, a origem da palavra bidé, que me parece genial pois, bider, em francês era cavalgar… Como disse no princípio, o assunto é fascinante e inesgotável. Dava para encher um jornal e ainda ficava muita coisa por contar. E por falar nisso, já leram o Sermão pelo Bom sucesso das Armas em Portugal contra as de Holanda, do padre António Vieira? E o Auto de Inês Pereira de Gil Vicente? Para já não perguntar por outros que hoje seriam considerados mal educados. Esses é que sabiam empregar as palavras certas no lugar certo…
Velhos adágios sempre novos Terras de Lanhoso – 7 de dezembro 1996
As nossas vidas correm tão rapidamente que, às vezes, nem nos damos conta de que muitas das coisas que falamos não são nossas contemporâneas, como se tivessem sido inventadas por nós ou, quando muito, por nossos avós. Ditos que temos por modernos, pois aplicam-se à nossa pseudomodernidade, são já velhos de séculos e até há alguns deles que se dizem da invenção de quem escreve, mas são já gastos e batidos por outros nomes que o tempo levou. Há frases ditas, sobretudo pela juventude, como achados verbais (estou nessa, ó meu e tantas outras) que já foram escritas por homens do passado e, quem lê Eça, por exemplo, encontra-as muitas vezes, nas bocas dos seus personagens inesquecíveis. Mas com provérbios, dos que usamos a cada momento e parecem novinhos em folha, a safra é inesgotável. Há recolhimentos eruditos sobre esse género de sabedoria em vários estudos de quem sabia do assunto e o levou à exaustão, que são mais antigos do que faria supor sua simples oralidade. Houve pois quem tivesse o cuidado amoroso de os recolher desde o fundo de vários séculos e tão perfeitos eram ao tempo como o são hoje. Polidos, é certo, por muitas gerações de conservadores, estão cada vez mais brilhantes e com forças para continuarem a servir por mais outros, já que o mundo acabará com o último homem a dizer um provérbio. É evidente que as descobertas do homem sobre suas fraquezas e forças, mais aquelas do que estas, vão gerando novos provérbios sem que, porém, nos façam esquecer os clássicos. Exemplos disso são alguns que ouvi no Brasil, da gente do povo, que habitualmente é a mais sábia da humanidade, alguns que me parecem de fresca geração, como por exemplo “pimenta no cu dos outros é refresco”, “urubu quando anda sem sorte o de baixo faz có-có no de cima” (urubu é uma ave que se alimenta de coisas em decomposição, tem a aparência de um corvo mas não tem destes a dignidade e o carater), enfim, são só dois exemplos entre milhentos outros, alguns originalíssimos. Hoje, porém, escrevo para relembrar alguns desses que já devem vir das profundezas dos seculos XIV e XV, que estão relacionados na célebre Prosódia in Vocabularium Bilingue Latinum et Lusitanum, talvez o primeiro dicionário da língua portuguesa da autoria do Doctore P. Benedicto Pereyra, mais conhecido como a célebre Prosódia de Bento Pereira, um cartapácio editado em Évora no “anno domini MDCXCVII”, por esse meticuloso Jesuíta que juntou num volume que pesa cerca de quatro quilos, muitas e variadas coisas ligadas ao vernáculo, entre os quais uma antologia de provérbios que já então deviam andar nas rudes bocas dos nossos antepassados, pois se eles foram recolhidos naquele século, é porque já faziam parte do património cultural da língua há muitíssimo mais tempo. Para lhe vermos a frescura do humor, a graça marota do conceito e a prática dos seus costumes, passo a citar alguns, com licença da memória do ilustre Jesuíta que deve ter levado decénios a ultimar a grande e interessantíssima obra, hoje uma raridade bibliográfica. São então, dele,
estes: “Dos principaes adágios Portugueses com su latim correspondente” limitando-me, eu, a transcrevê-los na saborosa língua do tempo: e como eles falam por si, seguem na íntegra, conforme o entendeu o ilustre irmão da Companhia de jesus:
A grande cão grande osso. A cavalo novo, cavaleiro velho. A fartura faz a bravura. A fome é boa mostarda. A gram gastador o muito nos basta. À hora má, nem os cães ladram. A homem ruivo e mulher barbuda, de longe os saúda. A língua longa é sinal de mão curta. Aonde te querem muito não vás a miúdo. A pintura e a peleja de longe se veja. A viúva rica, com um olho chora, com o outro repenica. A rico não devas e a pobre não prometas. Mal vai a casa onde a roca manda mais do que a espada. Mal vai o passarinho na mão do menino. Mais barato é o comprado que o pedido. Mulher, tempo, vento e fortuna, logo se muda. Qualquer tempo passado foi melhor que o de agora. Quem não tem sogra nem cunhada é bem casado. Se queres ter inimigo, empresta-lhe o teu e pede-lho. Zombai com o tolo em casa, zombará convosco na praça. Hóspede e peixe ao terceiro dia aborrece. Por falta de homens fizeram de meu pai juiz. Quem dá o pão sem castigo não vai ao paraíso Duro com duro não faz bom muro. Mula que faz him e mulher que fala latim, raramente é bom fim. Na barba do tolo aprende o barbeiro novo. O fumo, a mulher e a goteira lançam o homem da sua casa fora. São estes, como muitos e muitos outros “sempre verdades” o que os nossos antepassados nos deixaram como herança. Mas isto é só uma pequena mostra dos inúmeros adágios que provam que não há mais nada de novo sob o sol na mente dos que nele se aquecem.
Conto de Natal Terras de Lanhoso – 8 de janeiro 1997
O Menino tinha adormecido com os olhos abertos e assim ficou, por quanto tempo não soube, pois a noite misturava silêncio e escuridão e como o silêncio é branco e a escuridão é preta, ficava difícil de ajustar. Do silêncio escutava apenas a vigília dos pais e o sereno viver dos animais com quem compartilhava aquela corte, e do escuro sentia que por detrás havia estrelas. De bem perto lhe chegava o bafo quente dum burrinho manso e o lento alento do atento olhar duma vaquinha triste. Duas ovelhas brancas encostavam suas lãs grossas e acolhedoras às palhas pobres com que se improvisara um berço. Pelo teto de colmo escorria a água do céu, era dezembro, tempo de frio e de chuva naquelas terras conturbadas. E o menino continuava dormindo com seus olhos bem abertos, quem sabe se para não perder nada daquela cena sem pátria nem fronteiras, se para descansar da aventura do nascimento. E tudo para si já era novo e já era antigo. O seu olhar de criança não parecia ter sustos: acordado, via a claridade do silêncio e dormindo sentia que o escuro tirava da negridão o seu encanto. E na sua cabeça, onde se misturava o dourado das palhas que o aqueciam, começava a sentir que da sua vida predestinada tudo resultaria mais fácil e mais difícil, que nada poderia ser claro e escuro ao mesmo tempo, nada deveria ser conjuntamente mau e bom e que a dor e o prazer nunca se encontrariam nos mesmos caminhos à mesma hora. Tudo isso ainda vagamente o confundia e, segundo reza a história, os anos decorridos fundiram-se em certezas e vieram a lhe acarretar as mais terríveis canseiras e sofrimentos. E foi ele, já homem, que acabou com muitas dúvidas; alguns garantem que acabou com todas. O que, porém, havia naquele berço tosco, feito de sobras de feno, naquela hora que só havia escuro, silêncio e o amor que nascia daquele que nascia, quando um homem e uma mulher escolhidos juntavam a sua ternura à do infinito olhar dos animais, era tudo o que poderia haver de mais sumptuoso na pobreza dum mundo a que nem dois mil anos chegaram para que se convencesse que a paz é bem mais do que vã palavra. Ora o menino acordara do sono que não tivera e viu que o silêncio da noite deixava de ser branco, começava a ter alguma alegria e alguma cor. E aquela estrela que sabia que continuaria brilhando, deu lugar ao clarão da madrugada e o negro da escuridão derreteu-se todo em cima duma lua que se escondia. Do cansaço da noite e das aflições, seus pais talvez ainda fingissem dormir no torpor do frio daquele fim de noite, os animais começavam a busca da manjedoura, as ovelhas iam comendo docilmente as próprias palhas do berço. E o menino não tirava os olhos desse humilde mundo esfarrapado de coisas esquecidas, e sentiu, mais do que viu, que com o dissolver do silêncio, nascia para ele o mundo novo da cor; nesse exato momento nasceu o seu primeiro azul, que veio do céu, depois o verde, que estava na terra. E à medida que clareava, o dia fazia-se de ouro. E viu as folhas e as flores em festa e viu as asas das aves e das borboletas. Foi nessa alvorada de vida que ouviu despertar a voz de sua mãe: nesse momento Jesus sentiu o primeiro instante dum milagre!
À vossa saúde Terras de Lanhoso – 1 de fevereiro 1997
Os vinhos são o realce duma boa cozinha, completam as riquezas do paladar, enobrecem determinados pratos, enriquecem até pobres receitas culinárias quando se misturam com propriedade, mas quando bebidos isoladamente precisam ter determinados predicados pois, como diziam os latinos, se quando bons alegram o coração do homem, podem também tirá-lo daquela realidade sem a qual se perde a justa sensação do seu bom perfume e da sua exata medida. Noé que o diga. Ora, o que existe na vasta literatura do vinho, é dedicado simplesmente à sua própria força, à sua história, à sua vida dentro das civilizações, às suas peculiaridades tiradas do húmus da terra onde nasceram, mas quando dele se quer saber como se incorporou à sociedade, como contribuiu para gravar os versos da sua epopeia, então seu nome aparece sempre casado, às vezes até morganaticamente, como os da própria comida a que vai servir. É certo que desde que a bíblia disse que a “terra prometida era uma vinha” e Salomão afirmou que “o vinho só perdia para os amores”, e como está provado que ele sabia destas coisas, de lá para cá tem sido para os poetas um constante motivo de encantamento, já para os historiadores não tem sido a mesma coisa, talvez por, na sua metodologia, considerarem que houve um exagero do salmista em referir como, por exemplo, ser o umbigo a taça mais própria para ser enchida de vinho perfumado. Exageros, como certamente o são os versículos que dizem que “o que ama os vinhos e os perfumes não enriquecerá”. Essa declaração não está comprovada. O que se sabe é que as primeiras vinhas apareceram na Europa no séc. VII a.C., aquando das colónias gregas que nela se instalaram. E que as honras de as ter cultivado pela primeira vez, caberia a Dionísio, o Baco grego, bem como a habilidade de encontrar a fórmula de fabricar vinho. Isso prova que os povos da antiguidade já conheciam o sabor, embora hoje se saiba que era muitíssimo diferente do dos nossos dias. Os romanos acrescentavam-lhe mel e os gregos resinas, mas se isso os conservava por bastante tempo, tirava-lhes a espontaneidade do sabor. Foram incorporados a todas as culturas e passaram a fazer parte até da sabedoria popular de todas as terras onde alegrou as almas. As religiões compreenderam-no e o catolicismo deu-lhe as mais elevadas honrarias ao envolvê-lo na eucaristia. Só o alcorão lhe virou as costas, considerando-o manobra de satanás. Entretanto chegou a renascença com toda a sua corte de alegrias e abriulhe os salões, requintou-lhe o fabrico, vestiu-o de novas roupagens. E foi seu nome glorificado na gastronomia como parte essencial duma arte que também renascia, motivo de revolução no plantão das vinhas que
começavam a escolher as encostas mais apropriadas para cada tipo de casta. Na Península Ibérica, por exemplo, foi no séc. XV que se deu conta do que havia de riqueza na sua produção tão privilegiada. A Inglaterra foi o primeiro comprador dos vinhos portugueses e, ao contrário do que é usualmente repetido, não foi o Vinho do Porto o primeiro a ser exportado. Só bem mais tarde a Europa soube da sua existência: os primeiros vinhos a serem para lá vendidos foram os verdes de Monção, os que hoje são chamados de Alvarinhos. Só muito depois se seguiram os maduros e os generosos,
À vossa saúde II Terras de Lanhoso – 1 de março 1997
A culinária, embora ainda bastante forte e rica na sua apresentação, começa a preocupar-se em variar a suas emoções de gosto, entorpecidas pela rudeza da Idade Média. As conquistas da cozinha romana tinham ficado para trás, completamente esquecidas. O que valia era a quantidade, como aliás ainda hoje se verifica em determinadas localidades da Península Ibérica, apesar dos pesares. Mas as condimentações eram primaríssimas. A renascença encontrava hábitos quase conventuais. Jantava-se entre as dez e as onze da manhã dos fins do séc. XIV, mas antes essa refeição era às nove. Era o repasto mais forte do dia, em geral à base de carne. Bebia-se vinho, não só ao natural, mas também temperado com água, como aconselhava em Portugal D. Duarte, mas só duas ou três vezes ao jantar e a mesma quantidade à ceia, que era às sete da tarde. É claro que, nessa conversa, ninguém ia e os conselhos do rei não passavam de conselhos. O que se via era outra coisa, a começar pelos conventos onde, por exemplo, as religiosas do mosteiro de Vila do Conde tinham licença de beber, por dia, litro e meio por cabeça. No Norte da Europa, menos dotado para a produção do vinho, o consumo mais generalizado era o da cerveja. Ora a renascença criou outro sentido dos prazeres, inclusive o da mesa. A Itália e a França, notadamente começaram a impor outros usos aos seus costumes. As casas reais deram o exemplo e as famílias mais abastadas levaram-nos ao exagero. Mas foi ai que o vinho começou a dar tónus às refeições e se descobriu que das suas várias nuances, até cromáticas, passando pelas gustativas e odoríficas, se tiravam vibrações de que o paladar se aproveitava, agradecido. Começaram a aparecer os escanções, que eram os responsáveis por deitar o vinho nos copos na proporção certa e no momento certo. Os ourives e os prateiros, que na altura confundiam suas artes, desenharam novas formas para ânforas, tudo pronto para aguardar o séc. XVIII e a sua mais gloriosa aparição que foi o champagne. Mas tudo isto já pedia um outro cenário: mesa bem arrumada, toalhas brancas, flores, cristais, porcelanas, pratas. Há serviços à francesa, serviços à russa. Os grandes cozinheiros, como Brillat-Svarin e Vatel, na França, o Abade de Priscos em Portugal, entram na literatura e uma nova forma de cultura gastronómica abre suas varas em leque. E as distinções exigem compensações: há vinhos brancos muito secos para as ostras e mariscos de concha; há os menos secos para crustáceos e peixes finos; há os encorpados para peixes quentes; há os tintos, os chamados grandes
vinhos, para aves, há os menos encorpados para carnes brancas; os mais encorpados são mais apropriados para carnes vermelhas e grelhados: os rosés para conservas de carne; há os grandes vinhos tintos encorpados para caça de penas e os nobres velhos para acompanhar os queijos. Os licorosos para os doces que são comidos antes dos queijos e o champanhe para sempre, para todas as horas, todas as oportunidades e, o que o torna sempre mais agradável, sem que haja para isso hora ou oportunidade. “Invisível espirito do vinho”, escreveu Shakespeare, talvez na melhor definição do que é o champanhe, mesmo sem o ter conhecido. E parece ter sido também para ele criado o ensinamento de que quatro qualidades são essenciais a um bom vinho: a do gosto, pelo sabor; a do perfume, pelo bouquet; a da visão pela transparência e a do ouvido, ou seja pela fama que deve gozar. E “evoé Saboé”, como diziam os gregos abanando as túnicas.
E agora, comidas… Terras de Lanhoso - 7 de abril 1997
Depois de termos dito coisas sobre bebidas em dois artigos neste jornal, o apetite ficou em aberto para escrevermos sobre comidas. Muitos livros foram já escritos sobre a arte de comer e existem sábios tratados sobre o assunto deixados por grandes literatos, tanto pelas nossas bandas como, especialmente, em França, onde ainda hoje se veneram as receitas de Vatel e Brillat Savarin, do qual é esta frase gentil, entre outras, que constam do seu delicioso Méditations; “diz-me o que comes, dir-te-ei quem és…” ou esta outra: “O homem come, mas o homem de espírito sabe comer…” Foram eles que, criando as palavras, que entraram já em todos os dicionários, gourmand ou gourmet, lhes distinguiram subtilmente os significados, o primeiro para o que come muito e gosta de coisas palatáveis e, o outro, para o que tem um gosto delicado e é especialista em matéria de bebidas e comidas. Por curioso, note-se que a primeira tem também uma forma feminina, enquanto que a segunda só se emprega no masculino. Cá pelas nossas bandas, parece que agora se começa a dar ênfase aos nossos pratos regionais, muito embora, já de priscas eras, venham escritas receitas originais como prova toda uma literatura de que faz parte o celebérrimo Livro de cozinha da Infanta D. Maria (1538-1577) onde se ensina das mais variadas e creio que deliciosas receitas de fazer um cristão esquecer que a gula ainda é pecado. É porém vastíssima a literatura sobre o assunto e, em nossos dias, vale a pena prestar atenção ao que sobre essa matéria escreveu José Quitério, Roby Amorim, Salvador Dias Arnaut, Carlos Veloso e que muitos outros, historiadores como A.H. de Oliveira Marques, Alberto Pimentel, Álvaro Magalhães Mota, nos contaram em seus livros não especializados, mas entre cujas matérias há muito o que aprender sobre a arte de comer bem e sua história. Quanto a livros de receitas, esses, então, é um nunca mais acabar, pois com o desenvolvimento das artes gráficas, são tantos e tão belos que mais parecem livros de arte que de cozinhados. E há a lamentar a perda de um preciosíssimo inédito da autoria do inesquecível Abade de Priscos, onde o bom abade deixou escritas as suas geniais combinações gastronómicas, mas cujo rumo se não conhece. Para quem não quiser deixar de ler, em português, pode encontrar a tradução do A cozinha cristã do Ocidente (Os cinco sentidos, Lx, 1981), onde o fabuloso Álvaro Junqueiro nos deixa de água na boca. Livro admirável, de espírito e graça, talvez se deva exclusivamente ao génio desse escritor que, como escutei lá pela sua terra, e era convicção do inesquecível Fernando Assis Pacheco, conhecia todos os cantos por onde a Galiza estendeu os seus braços irmãos. Enfim, a matéria é inesgotável, a bibliografia vasta e já há subdivisões da especialidade como, por exemplo, livros de receitas para espevitar o amor (A cozinha do amor, de Anita de Roustan…), onde ele conclui não saber qual a mulher a que a ideia do filtro do amor não faz sonhar… Nele há receitas para os pequenos-almoços, para se apressar o casamento, mas onde, a maior parte, são receitas para a vida conjugal, terminando com as ementas para jantares de rutura… Quanto à ligação com a nossa história, sobretudo real, ainda considero o Portugal da Época de D. João V, de Manuel Bernardes Branco, a mais fascinante das obras, pelos menus reais que comporta e são inacreditáveis para os nossos dias, tal a monstruosidade da sua apresentação. Por hoje
limitar-me-ei dar a conhecer um soneto escrito à época desse faustoso monarca, que dá ideia do desregramento da época: “ Filhós, fatias, sonhos, mal assados, Galinhas, porco, vaca e mais carneiro, Os perus em poder do pasteleiro, Esguichar, deitar pulhas, naranjadas. Enfarinhar, por rabos, dar risadas, Gastar para comer muito dinheiro, Não ter mãos a medir o taberneiro, Com resteas de cebolas, dar pancadas. Das janelas com tanhos dar na gente, A buzina tanger, quebrar panelas, Querer em um só dia comer tudo. Não perdoar o arroz, nem cuscus quentes Despejar pratos, e limpar tigelas. Estas festas são de gordo entrudo.” Para abrir o apetite, para hoje basta. Na próxima crónica vamos dar uma ideia de como os abastados senhores da idade Média matavam suas fomes, pois pelo que nos deixaram escrito, deviam ser várias e frequentes. E como os mais pobres se aproveitavam das sobras…
E agora, comidas… (2) Terras de Lanhoso – 5 de maio 1997
Nesta nossa despretensiosa conversa sobre bebidas e comidas, assunto a que todos temos alguma coisa a dizer, pois está na massa do nosso sangue a que um atavismo indiscutível nos liga, fiz uma referência vaga no último artigo à forma como nossos antepassados medievais matavam suas fomes ou, mais do que isso, saciavam suas gulas, uns e outros se contentavam com as sobras. Dizem os mestres em história não ser fácil descrever a alimentação nesses tempos tão remotos, no que diz respeito às receitas, pois no dizer de Oliveira Marques, nada se conhece antes do séc. XVI, o que já está fora da nossa conversa de hoje. Parece que a comida era pobre o que nossos mais que tetravós supriam com a quantidade em vez da qualidade, já que se havia diluído numa vida atribulada aquilo que sobrara da civilização romana. Abusava-se das carnes de caça, do que a terra produzia de cereais e quando se morava perto da costa, do mar e dos rios, de peixe, que abundava. Comia-se o que havia à mão e disso adveio muita doença e muita praga, sobretudo o escorbuto por falta de vitamina C (quem sabia disso nesse tempo?). O que ficou relatado pelos cronistas foi que as principais refeições eram o jantar e a ceia. O jantar era entre as 10 e as 11 da manhã ou até antes. Ceava-se lá para as 6 horas da tarde e quando se comia muito numa refeição, comia-se menos na seguinte… Como a caça era abundante e o natural divertimento dos reis, isto para não se citar outro não menos divertido e até menos perigoso, que era a corrida às saias, coisa que se dizia de grande uso entre os mais bem aquinhoados, mas isto já é outra conversa de que um dia nos ocuparemos. Era muita perdiz, muta lebre, urso à vontade, e uma variedade de aves cujos nomes até já se perderam, como a carceta, o gru, o fuselo e sei lá quantos mais. A carne mais apetecida era a de porco, bem como a de carneiro gordo, e só depois vinham a vaca e o cabrito. E era tanta a abundância de caça que, em 1340, foi proibido comprá-la nos mercados… E já havia chouriços e linguiça, embora as alheiras só aparecessem no tempo de D. Manuel, com uma história curiosíssima. E aqui entra o poder moderador e sensato da Igreja que exigia que durante sessenta e oito dias do ano a abstinência das carnes de rigor para todos os católicos: nem ovos, nem queijo, nem manteiga, nem banha e até o vinho tinha que ficar fora das mesas, embora pareça que, ficando de fora das mesas jamais o ficasse das goelas dos mais sequiosos. Comia-se a fruta que havia e peixes pequenos dos rios, bem como o pouco que havia da horta. O peixe comia-se seco, salgado e fumado, e compreende-se porquê. Mas do que os nossos antepassados não gostavam muito era de legumes e hortaliças. Quando rareava o pão, o que não era raro, importam-se do estrangeiro favas que se moíam e cuja farinha dava um pão aceitável. Usava-se o azeite e a cebola, mas era o azeita que ocupava o primeiro lugar na culinária do tempo, o que justifica a existência de tantos olivais. Não podia deixar de se usar o leite e seus derivados, com os quais se preparavam manjares cuja fama e algum proveito, chegaram até nós.
Outro rei da cozinha era o mel, o único adoçante a que todos tinham acesso. Diz Oliveira Marques que o vinho bebia-se em seu estado natural (cru) como também cozido e temperado com água. Nas casas mais abastadas usavam-se enormes bacias, de onde todos tiravam as suas rações, pratos só apareceram muito mais tarde e a carne e o peixe comiam-se sobre grandes rodelas de pão, uma para cada pessoa, que nas casas mais ricas e depois de comidas as vitualhas, das quais escorria sempre alguma gordura dos molhos, eram distribuídas aos mendigos que ficavam de plantão à espera desse manjar. Garfo não havia e as colheres eram raras. Isso mesmo, podemos ver em alguns quadros do tempo, mas o que ninguém dispensava era uma faca bem aguçada. Cada qual levava a sua e depois de a usar e limpar, guardava-a, sabe deus onde. A banha de porco era tempero obrigatório. Ovos eram abundantíssimos, e preparavam-se da mais variadas formas. Comia-se muita fruta acompanhada por vinho, embora nem toda a fruta da época fosse aconselhada, sobretudo à noite. Fernão Lopes, esse maravilhoso contador de lembranças reais, disse que uma das patuscadas noturnas de D. Pedro, que sabia divertir-se e por isso era adorado pelo povo, uma noite de muita farra “pediu El-Rei vinho e fruta”. Castanha havia muita, mas milho e batatas só apareceriam séculos mais tarde. Enfim, com as deficiências que hoje podemos detetar sobre avitaminoses e outras mazelas decorrentes, nossos recuados avós lá iam enchendo suas panças e para fazer as digestões, iam combater a moirama ou algum vizinho galego mais afoito. E foi com essas comilanças que ajudaram a construir o reino. Para terminar, permito-me transcrever uma receita que vem na Crónica de D. João II de Garcia de Resende, outro grande nas nossas letras históricas, por ocasião do casamento do Infante D. Afonso.“Logo à entrada da mesa veio uma grande carreta dourada e traziam-na dois grandes bois assados inteiros, com os cornos e as mãos e pés dourados e o carro vinha cheio de muitos carneiros assados inteiros com os cornos dourados e vinha tudo posto num cadafalso tão baixo com rodetas por fundo dele que não se viam, que os bois pareciam vivos e que andavam, e adiante vinha um moço fidalgo e assim oferecer os bois e carneiros à princesa e feito o serviço os tornou a virar com sua aguilhada por toda a sala até sair fora e deixou tudo ao povo que com grande gritaria e prazer foram espedaçados e levava cada um quanto podia.” Era assim nosso Rei, e era assim o nosso povo. E um e outro tão bons que a eles agradecemos, hoje, termos nascido nesta nossa abençoada terra. Mas não me furto à curiosidade de contar mais alguma coisa sobre comidas, já nos tempos de nosso El Rei D. João V, que, esse, levava tudo aos extremos, até as ementas reais, como vereis em próximo artigo.
António Celestino – entrevista Terras de Lanhoso - 5 maio 1997
Nascido na Póvoa de Lanhoso em 1917, António Celestino emigrou para o Brasil aos 22 anos de idade, indo, tempos depois , instalar-se definitivamente na cidade da Bahia. Crítico de arte com coluna cativa nos diários “ Tribuna da Bahia” primeiro, e “A tarde” depois, viria a estreitar amizade com alguns dos maiores intelectuais do Brasil, como são exemplo Jorge Amado, carybé, João Ubaldo Ribeiro, Carlos Bastos, Vinícius de Moraes ou Dorival Caymmi. Agostinho da Silva, então Professor na Universidade Federal baiana torna-se um dos seus maiores amigos, companhia quase diária. Na qualidade de português e de dirigente de algumas das mais prestigiadas instituições da cidade, António Celestino encaminha para a Bahia, onde passam a lecionar ou fazem conferências, alguns dos maiores intelectuais portugueses deste século: Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, Santos Simões, David Mourão-Ferreira, Gaspar Simões, Alçada Baptista. Ao longo da vida, publicou vários livros: Gente da terra, 1993; Le couvent du Carmel à Salvador, Etat de Bahia, 1975; Antigamente era San Joan de Rey, 1978; …às vezes fico pensando se isto será poesia, 1994; Contos (mal) falados, 1996 e poemas de cera perdida, 1996. De entre os muitos títulos e distinções António Celestino é Comendador da Ordem do Infante Dom Henrique; Grande Oficial da Ordem de Benemerência; Cidadão Honorário das cidades de Salvador, Bahia e Nacala, Moçambique; Conselheiro da União das Comunidades Portuguesas; Curador da Fundação Infante D. Henrique; Sócio Honorário da Sociedade do Axé Apô Afonja. 1- Qual foi o momento mais feliz da sua vida? R. Quando descobri que riqueza é coisa mental. 2- E o pior? R- Quando um dia o esqueci por momentos cruciais que também já esqueci 3- Qual é a sua maior virtude? R- Não querer que alguém se defina por tal, a começar por mim. 4- Qual é o seu maior defeito? R- Exatamente o contrário. 5- Qual é o seu lema? R- Adotei o do pai do meu amigo Fernando Sabino: “Tudo tem que terminar bem. Se ainda não está bem é porque ainda não terminou…” 6- Qual é a figura pública ou histórica que mais admira? R- O Padre António Vieira. 7- Para onde seria a sua viagem preferida? R- É sempre aquela que me traz de volta a São João de Rei. 8- Diga 3 livros que levasse consigo nessa viagem. R- A Bíblia, os doze volumes do Grand Larrousse e a Lírica de Camões. 9- Que quadro gostaria de ter na parede de sua casa?
R. Qualquer um do Douadier Rosseau, o outro já tenho. 10- Que filme o faria sair de casa, para ir ao cinema, numa noite fria de chuva e vento? R- Teria de indagar primeiro do autor desse questionário… 11- E já agora, a música que o faria ficar em casa. R- Essa pergunta é irrespondível, pois limita muito o gosta indagado, que vai do ruim ao ótimo. Mas sou vidrado em Erik Satie… 12- Que canal de TV? R- ARTE, pela parabólica. 13- Diga três programas que não perde. R- Das Tvs nacionais perco todos… 14- Diga-nos de um restaurante onde se coma bem. R- Come-se muito bem no Victor, em São João de Rei, na Bahia, no Bargaço. 15- Será o cão o melhor amigo do homem? R- O cão é bom amigo, não haja dúvidas, mas ainda acho que a mulher é insubstituível… 16- Os portugueses serão todos de primeira? R- De primeira? Qual primeira? 17- Se tivesse de escolher uma personalidade mundial para destacar neste século, quem escolheria? R- João Paulo II, o Romeiro Branco. 18- A União Europeia será possível? R- Não sei. Não sou futurólogo. 19- E a moeda única com Portugal? R- A única moeda que eu posso garantir como eternamente válida é a gratidão misturada com a amizade e temperada com amor. 20- A pergunta número 20 faça-a você mesmo e responda-se… R- Pergunta: Qual é a razão deste inquérito? Resposta: Para mim muito honroso. Para quem ler pura perda de tempo!
E agora, comidas… (3) Terras de Lanhoso – 7 de junho 1007
Na minha última crónica sobre comidas, terminava com a promessa de contar coisas sobre as exageradas ementas reais no tempo de El Rei Nosso Senhor D. João V. e quem as contas é precisamente um tal Domingos Rodrigues, cozinheiro de Sua Majestade, que Manuel Bernardes Branco descreve no seu delicioso Portugal à época de D. João V (António Maria Pereira, Lx. 1885). O tal cozinheiro não se fartava de gabar muitas das abundantes pratalhadas, dizendo que as tinha “experimentado pela sua mão e que as mais delas, as tinha inventado pela sua habilidade”. Como exerceu suas funções gastronómicas durante 29 anos, imagino que o homem não seria nenhum tolo nas suas mexidas em panelas e fogões. Ora o tal chefe Domingos tinha ordens de servir comeres para todos os dias da semana, sobretudo com ementas destinadas aos hóspedes, que se tivessem seguido essas planturosas dietas durante uma semana, certamente não teriam sobrevivido durante muito tempo, senão vejamos, por exemplo, qual era a ração para os domingos: 1ª iguaria – tijelas de caldo de galinha com gema de ovo e canela por cima e logo sopa de vaca: 2ª iguaria – perdigões assados, guarnecidos de linguiça. 3ª iguaria – coelhos de João Pires; 4ª iguaria – um ou dois peitos de vitela de conserva, guarnecidos com torrijas de vitela; 5ª iguaria – pastelões de várias carnes, redondos, lavrados.; 6ª iguaria – pasteis fritos pequenos, de carneiro, com açúcar e canela.7ª iguaria – olha castelhana, a saber, vaca, carneiro, mãos de porco, presunto, grãos, nabos, pimentões de todos os adubos amarelados com açafrão. Manjar branco. Para o fim, doces fritos e frutas do tempo. O citado livro faz ainda referência às receitas para todos os dias da semana, sempre na base de oito pratos, mas não me furto a transcrever a das quintas feiras, pela curiosidade: 1ª iguaria – caldo de galinha, como acima; 2ª iguaria – leitões assados guarnecidos com galinholas; 3ª iguaria – pombos com cardos em fricassé; 4ª iguaria – pernas de carneiro de cassio; 5ª iguaria – empadas de peru sem osso; 6ª iguaria pastéis folhados de coelho; 7ª iguaria – olha podrida em massa, que é a melhor de todas; 8ª iguaria – leite em siricaia. E advertia para as galinhas que ficavam de caldo, que “se hão de mandar à mesa um dia sobre cus-cus, outro sobre figos, outro sobre letria, outro sobre arroz”. O historiador faz reparo não haver qualquer menção, quer a chá quer a café, mas não é de admirar, pois para quem comesse de tudo, onde caberia mais alguma coisa? Num outro livro que um francês intitulou Memoires instrutifs pour un voyageur, encontra-se esta passagem: “O estrangeiro não deve entregarse aos excessos de vinho. Os Portugueses desprezam os bêbados e o Rei D. João V não bebe vinho, tem uma aversão invencível contra todos aqueles que se entregam a esse vício.”
É claro, porém, que isto não era seguido pelos súbditos do monarca, contando-se, aos tempos, muitas anedotas, sobretudo sobre padres, como aquela em que um dia, um pregador mandou o criado ao açougueiro que se chamava David, comprar bofes de carneiro. Fiado ao seu prestígio, não mandou dinheiro. Logo depois entrou o criado na igreja onde o seu patrão pregava, evocando nesse exato momento as Sagradas Escrituras e indagando uma passagem bíblica, exclamava: - Pois que diz então David?!... O criado, pensando que era com ele, gritou, bem alto: - David diz que não manda bofes sem ver a cor do dinheiro! Fora os panos e as tapeçarias reais, a regra era bem outra, como conta um italiano: “era pois extraordinária a abundância de doces em todas as ocasiões da vida quotidiana: em casa, às refeições; nas ruas com vendedeiras ambulantes, tendas, mercados, feiras; nas festas, nas assembleias ou partidas também chamadas de funções, com pretexto ou sem ele. Ingeriam-se quantidades inacreditáveis de doces açucaradíssimos, acompanhados por café bem adoçado e chá igualmente dulcíssimo”. Ora, tudo associado a um diminuto consumo de legumes, constituía uma alimentação paupérrima de substâncias essenciais, ainda por cima com quilos de proteínas animais e gorduras. Assim, e duma forma geral, os homens eram obesos e balofos. Tinham pouco folego e segundo transcreve Carlos Veloso no seu Alimentação em Portugal no sec. XVIII (Minerva, Coimbra, 1992), sofriam de perturbações digestivas quase permanentes. No Diário de Beckford, diz-se textualmente: “ Os Portuguese precisam de estômagos de avestruz para digerirem as toneladas de gordurosas vitualhas com que se abarrotam. Com uma tal alimentação e um tal digerir, não é para admirar que esta gente se esteja sempre a queixar de dores de cabeça e gazes intestinais…!” Alguma coisa mudou nos nossos hábitos de higiene alimentar, mas que ainda há quem se empanturre, lá isso há… que o digam os médicos. Com a frugalidade de hoje, motivada não só por motivos económicos, mas também pela consciência com que encaramos a saúde, levamos aqueles exageros com um certo ar de ridículo, mas ao tempo, a regra era muito séria, notadamente, para as grandes famílias mais abastadas, que tinham um protocolo severo a respeito das refeições e seus horários. A responsabilidade dos profissionais era tão rígida, que o celebérrimo cozinheiro de Luís XVI, de nome Vatel, depois de ter servido a sua Majestade um jantar que ele considerou não perfeito, sendo o dia seguinte de jejum e não tendo recebido o peixe que aguardava para o almoço real, suicidou-se com a sua própria espada. Esta trágica façanha está descrita sentidamente pela notável Madame de Sevigné numa das suas cartas. Bom, mas naqueles tempos os temperos eram outros…
Coleções e colecionadores Terras de Lanhoso – 7 de julho 1997
Um assunto sempre em foco é aquele que trata dos colecionadores de arte e suas coleções. Não me movem nenhuns cuidados coleções de outro porte, pois as há de todas as tendências e de disparatadas temáticas. Um, eu conheci, que colecionava papos de galinha e os pendurava na varanda da sua arcaica casa de residência. A série é infindável e com frequência começa a perturbar os arrumos das donas de casa que não sabem mais onde guardar tanta quinquilharia. E também não cito as coleções de livros, raros ou não, que por tradição são sempre os primeiros a serem postos em almoeda pelas viúvas, pois muitas vezes esses pobres livros tiraram o lugar de coisas indispensáveis aos manejos do lar, não apenas pelo espaço ocupado, mas e, sobretudo, porque os dinheiros que custaram foram subtraídos ao mealheiro comum da família e a privaram de colmatar outras necessidades consideradas mais prosaicas, mas de graça útil do dia-a-dia. Esses são os mananciais dos livreiros antiquários que, sabendo do habitual desprezo das viúvas por aqueles cartapácios, os compram sempre por preços baixíssimos para os venderem, de seguida, como se fossem de ouro. Minha atenção vai para a mais nobre das formas de colecionar, que é a coleção de arte. São habitualmente esses colecionadores pessoas animadas por profundos e escondidos motivos, uns mais á flor do que outros, mas quase todos nascidos de recônditos anseios estéticos provocados por alguma insatisfação para consigo mesmos ou para com os seus frustrados dotes naturais. Uns porque poderiam eles próprios criar alguma coisa; outros porque sabiam que os seus são insuficientes para a sua sede de perfeição; outros, ainda, porque poderão parecer gerados por terem consigo emoções criadas pelo génio alheio, mas que lhes emprestam a graça definida pela obra feita. De qualquer modo, são esses colecionadores carentes daquilo que admiram nos que tiveram a bênção, tantas vezes amarga, de poder gerar artesanalmente o que criaram em sonho. Guardadores de rebanhos alheios, mendigam para si o cajado da posse, sabendo que um dia tudo se dissolverá novamente nos ventos do mundo, mas enquanto tiverem força, o seu espírito indomável brigará pela razão de ser do que apaixonadamente juntou. É evidente que por detrás de tudo isso está a personalidade do colecionador, sua sensibilidade, sua cultura e até, ainda que discutivelmente, o seu dinheiro. Mas dinheiro não é tudo e muitas coleções conheço cuja matéria-prima foram o sangue, o suor e as lágrimas dos iluminados. Do que não restam dúvidas é terem sido os colecionadores os percursores dos museus e até os determinantes do gosto estético de cada época, prendendo sob suas mãos ávidas o que consideravam melhor, estimulando o que lhes pareceu fecundo, promovendo culturalmente as linhas essenciais da harmonia entre o bom e o belo, agarrando no tempo as teorias que nos servem até hoje e que uma camada subjacente de simplórios engajados chama de elitistas, pensando que a palavra é pejorativa. Mas os mais visados estão mudando de refrão, o que, aliás, não tem a mínima importância pois a matriz ideológica dessa teoria caiu
junto com o muro de Berlim e outros muros que já não tapam coisíssima nenhuma. São hoje património da humanidade as grandes coleções tornadas públicas e muitas delas perderam mesmo o nome do colecionador pela simples, e às vezes curial razão, de que não tendo aumentado sua grandeza estética ou crescido de valor, mas porque alguém, animado por aquele estranho espírito cujo nome não sei, as salvou do prejuízo do tempo, as cercou do amor de que a eternidade carece para as envolver na capa protetora do encantamento. Há sempre nos livros especializados e nas revistas de arte uma palavra de registo em louvor dos grandes colecionadores, pois são considerados “grandes, não aqueles que guardam muitas obras, mas os que as selecionam cuidadosamente.” Estão na História da Arte desde o séc. VII a.C., e não se podem desligar umas das outras, não há quem as desconheça, tendo um mínimo de informação artística. São as que mundialmente aparecem, como as dos Luíses que estão no Louvre, a de Catarina da Rússia, base monumental do Hermitage de S. Petersburgo. Enfim, todas as de grandes cidades, e às vezes nem tão grandes, como a conhecidíssima Fundação Calouste Gulbenkian ou o Museu Gattes, E agora começamos a ficar devendo à Veneranda Instituição que é a Igreja Católica a sistematização museográfica dos seus inestimáveis tesouros de toda a ordem, a começar pela grandeza das arquiteturas imutáveis que são o fruto da maior árvore que a arte já plantou, sobretudo no Ocidente. Na nossa Braga temos um exemplo assinalável que é o Museu Nogueira da Silva, obra de um grande colecionador que legou à cidade um grande acervo museográfico de alto requinte técnico e precioso recheio, felizmente entregue a quem entende do assunto, pela sua competência, dedicação e dum bom gosto que vai muito para além daquilo a que nos habituamos: o Dr. César Valença. O Museu dos Biscainhos merece idêntica admiração de todos nós. A igreja, porém é o grande repositório, não só de arte, mas também da sua história, onde se pode constatar que é lá que está a certidão de nascimento duma arte que vem iluminando os séculos. É nossa obrigação o inestimável serviço prestado a essa coisa imponderável que toda a gente fala em proteger, salvar e apoiar, mas que na realidade quase ninguém sabe o que é e que se chama cultura.
Sobre palavras, acerca de uma tese universitária Terras de Lanhoso – 4 de agosto 1997
Dentre as minhas múltiplas e profundas ignorâncias, existe uma que tento desbastar quando posso, mas por mais que me esforce tenho sempre o que aprender e quanto mais cavo, mais tenho que cavar. Felizmente que para isso não é necessário muita erudição (graças a Deus), e a simples curiosidade e um pouco de dedicação vão permitindo que as dificuldades sejam vencidas parcialmente e às vezes até me permito a honesta alegria com algum achado da inesperada busca. Essa minha permanente pescaria é exatamente sobre a origem das palavras; não da simples etimologia que, como a palavra indica, se limita e, como ensinam os livros da especialidade, “serve para conhecer o verdadeiro sentido da palavra”, embora haja outras definições. Mas esta basta-me por parecer exata. Aliás o que interessa não é exatamente o étimo, mas a formação da palavra em si, como foi inventada, como nasceu, e quais foram as necessidades que provocaram pela primeira vez na mente humana, com determinado som correspondendo a determinada carência de expressão. Essa sim, é a minha incessante busca. E, como ando já há bastantes anos à sua cata, tendo até alguma coisa publicada, boas pérolas tenho colhido no meio de muita ostra seca. Mesmo porque dicionários especializados há inúmeros em todas as línguas cultas e, nesta última flor de Lácio o que de mais moderno e complexo existe é um trabalho do brasileiro António Geraldo da Cunha (Nova Fronteira, 1982). Há com frequência revelações espantosas, como a origem da palavra cínico, que por mais aloucado que pareça dizia-se em grego que era tudo relativo ao nosso bom e doce cão: a palavra vinha de kion e daí veio kininos, o que é uma indisfarçável ofensa e nada tinha de maldade. E, formidável vinha de formido, que era o que metia medo. Há, contudo, surpresas desconcertantes, como a palavra bigode, cuja origem consta da tradição que na altura da invasão da Grã-Bretanha pelos normandos, os invadidos usavam a expressão bi-god para designarem os ditos cujos que usavam tal ornamento: a expressão passou a designar o próprio bigode. E nostalgia, que provém do grego e queria dizer regresso à terra. Hecatombe nasceu grega e designava o sacrifício de cem bois… Lamúrias eram as festas que os romanos faziam no nono dia de maio em honra dos seus espectros e fantasmas. Extravagantes eram as constituições papalinas que não estando em ordem, era como se estivessem fora do Direito Canónico. E pânico, vem do deus Pan, que de repente aparecia aterrorizando as pessoas. Entusiasmo é ter deus em si, ou seja, a presença da divindade na criatura e, energúmeno, era o que estava possuído do demónio, dilema já no grego se dizia do que aparecia em duas coisas. Monstro, do latim mostrar-se e, ciúme vem do cio mens e está tudo dito… Castrar vem do sânscrito sastramy, isto é, faca. Escândalo quer dizer originalmente pedra que faz tropeçar, como está no grego da septuaginta. Simpatia, também do grego sumporhea, que era a preocupação com o bem estar dos outros. E a tão banalizada ecologia provem de oikos e logia e quem a introduziu foi Hernesto Hackel em
1886. Misericórdia vem de meseris e cor-dis, coração. Preocupação” era uma ideia bem concebida e suprimir era passar sob o silêncio. E larápio? Larápio era o patrono dos juízes criminosos que viveu na Roma dos Césares, sessenta anos depois de Cristo. Era um cidadão chamado Lucius Amarus Ruffidus Appius, juix corrupto, que mercadejava as suas sentenças e as assinava L.A.R. Appios, de que redundou, com justa homenagem, a palavra latina laráppius, mãe do nosso larápio. Mas esta lengalenga de palavras nascidas em raízes prováveis, perfeitamente ajustáveis às suas realidades, vem a propósito dum trabalho da autoria de José Bento da Silva, para o mestrado em Linguística Portuguesa do curso de humanidades da faculdade de filosofia de Braga e que o autor, nosso já conhecido investigador e pessoa de reconhecidos méritos intelectuais (e não só) levou à exaustão e lhe concedeu uma justa e elevada aprovação pelos mestres examinadores, sob segura orientação do Pro. Doutor Amadeu Torres, mestre notável e homem de raríssima cultura. Confesso que tenho sempre um certo receio de entrar nessas cearas de teses universitárias, habitualmente feitas sob pressão de determinado fim plenamente compreensível, mas que aos leigos costuma provocar, em consequência, um distanciamento dos assuntos versados e para os quais as suas ignorâncias se sentem “à latere”. Tratando-se, porém, de palavras, fui eu singrando sobre os italianismos musicais, assunto só de musicalidade literária e semântica e que deu, ou devia ter dado, água pela barba ao nosso querido amigo de insuspeitada coragem e ousadia, mas que, a julgar pelo juízo final dos catedráticos, não foi pura perda, mas um enriquecimento específico. Trabalho extenso, mas como a palavra descende do latim vulgar tripaliare ou seja, torturar, no final as definições se conjugam. E agora uma sugestão ao autor: o mais difícil está feito e bem feito. O autor sabe escrever, do que já deu muitas provas. Porque não resumir o seu trabalho, possibilitando assim aos leigos e interessados parciais tomar conhecimento de coisas curiosíssimas, mas muitas vezes perdidas na aridez dum estudo aprofundado. Lembro-me sempre dum disco antigo que se chamava “Música clássica para quem não gosta de música clássica”. E porque não dar aos que se não interessam por tanta e tão extensa erudição, uma síntese escoimada do supérfluo, contando as aventuras das palavras sobre as quais tanto trabalhou? Ao autor não falta talento e a matéria-prima está exposta. Porque não colocar à disposição dum público a quem tanta falta faz os motivos para que a cultura não passe em vão por debaixo duma ponte demasiado alta por onde só podem passar os eleitos?
Um Fernando Assis Pacheco Terras de Lanhoso - 1 de setembro 1997
Para falar verdade já não me lembro onde, ou em que condições, conheci Fernando Assis Pacheco. A sua personalidade era de tal forma actante e agia com tamanha força que, cada momento convivido, era como se fosse o primeiro encontro ou aquele alegre momento em que nos teríamos conhecido. Assim até me parece que a vez era a primeira e que nossa intimidade acabava de nascer naquele momento. Ele tinha a habilidade de se renovar constantemente e seus assuntos principais eram exatamente todos os que achava que calhavam naquela hora. Ou sorria em galego, terra da qual muito se orgulhava por ascendência direta, simpatia em que eu também embarcava como bom minhoto-suevo, ou criava situações que o deixavam por vezes num silêncio criador quando tramava algum assunto mais profundo, ou vivia um pouco por fora a sua poesia (e por isso dizia:” sei fazer versos, mas dói”) e quando a externava era em voz tão alta que jamais a esqueceremos. Falava com carinho de sus “abuelos”, que ele curtia na memória de uma “morriña” atávica, duns “pitilhos” fumados à zorrelfa, e apesar de suas ligações com a velha “terruña” provinciana, não escondia sua grande afeição pela nobre aberta civilização hispânica, cujas cidades conhecia com a minúcia dum guia turístico e cujos donos dos melhores restaurantes (não dos mais ricos, diga-se) conhecia com a fraternidade de quem comete sempre o mesmo crime e o atribui a outro. Aconselhava visitas recônditas a sítios os mais inesperados de humildes aldeias de toda a península e, mantinha-nos surpresos de como se lembrava dum garçon ou dum taberneiro aragonês que um dia lhe serviu uma orelha cozida de porco andaluz ou dum vinho discreto que nem nome tinha na garrafa, mas que ele gravara com um nobre apelido castelhano. Sua capacidade de estabelecer intimidade com que mantinha a grande fama de entrevistador, ia de santinhas de fama escondida a consagrados nobéis. Eu o presenciei em várias dessas deliciosas tarefas, e o tom de voz era sempre o mesmo: tanto ia do palavrão vicentino ao dito chão duma conversa que tirava á força duma capacidade inaudita de reforçar o entrevistado a dizer o que, de princípio, nem queria ouvir falar. Mas um sorriso que a todos parecia familiar, abria-lhe velhas gavetas onde secavam segredos e onde ia sacando o que mais lhe interessava para o trabalho que levava em vista. Seu currículo é enorme e brilhante, mas creio que esse detalhe, neste momento, para mim, é inteiramente dispensável. Ser brilhante romancista, poeta de rugidos fortes, tradutor de obras-primas, jornalista respeitado, novelista, conferencista, dono de uma vastíssima cultura humanista, a tanta gente ensinou as primeiras letras do jornalismo (como a mim ensinou tantas coisas) que, muitas vezes, sobre essa influência, me lembro do verso de Frey Luís de León. Que me atrevo a transcrever com o devido respeito e distância: “mudó su ley en mi naturaleza” E foi responsável por várias das poucas coisas que publiquei, às quais concedeu o seu generoso imprimatur. Conhecia multidão de pessoas de todas as craveiras sociais e da sua discrição só poucos sabiam qual era a sua opinião de valor. Mais fácil era
ouvi-lo discorrer sobre os escritos do que sobre quem os escreveu. Creio que fui o primeiro a ler os originais do seu romance Trabalhos e paixões de Benito Prada e encantei-me desde as primeiras páginas com o picaresco antológico da divertida saga luso-galega. Tenho alguns poemas inéditos da sua original forma de poeta, grande e inconfundível poeta, mas na sua maioria impublicáveis, por sua vontade, diga-se, de sabor e perfume inconfundíveis. E tantos e tão diferenciados autores, sobretudo espanhóis, a que nunca teria acesso, não fora sua generosidade de Grande Senhor das Letras. Olhado deste lugar onde ele várias vezes se sentou, nesta aldeia do Minho quase galega de onde escrevo comovido estas linhas de gravado sentir, não posso esconder uma enorme saudade e uma continuada admiração. E olhando para tantos livros por ele oferecidos, que sabíamos, tocavam fundo algum esconso lugar da minha ignorância, como sabia como caiam bem suas escolhas com que quase sempre colmatava alguma opinião interrompida. Não me atrevo, nem creio ser este o lugar apropriado para contar o assunto da nossa derradeira e magoada conversa. Eu havia passado e ainda estava passando por um período grave em minha vida, e ele, já doente, mas sabendo quanto vale um abraço sem palavras dum amigo na hora exata do buraco negro onde nada é fixo a não ser a incerteza, ele veio do longe onde morava, trazê-lo embrulhado em amizade. Mas não mo entregou naquele dia: só o recebi dois dias depois, naquela hora cruel da má notícia. Foi então que entendi porque o não havia entregue: ele teve o pudor em o misturar com o da despedida. Restou-me a afeição da família, que é a parte maior que tenho pelo que me resta. E mais não sei escrever, a não ser os versos de António Machado: Hoy buscaras em vano / A tu dolor consuelo.
Sobre museus Terras de Lanhoso – 6 de outubro 1997
É sempre bom aproveitarem-se todas as oportunidades para se chamar a atenção sobre os museus e que se dirija particular atenção para aqueles que, por circunstâncias diversas, detém nas suas mãos; às vezes despreparadas e canhestras, os poderes de força que os podem constituir e depois fará cumprir com suas altas e nobres funções. Isso é, na maioria das vezes, obrigação social, pois ligada à educação e á manutenção do património, cada vez mais raro, do que sobrou de tempos passados e influiu direta ou indiretamente na formação cultural dum povo que, lamentavelmente, nessa matéria, não tem quase ninguém que o ajude a sair da velha “cepa torta” a que foi abandonado por longas gerações e de que dificilmente sairá, por incúria dos canastrões públicos que nunca viram que um povo só rejuvenesce esmagando a sua ignorância. Mas, pelo que se sabe, a luz que deverá surgir no fundo do túnel ainda não foi acesa nesta nossa ocidental praia lusitana. Voltemos aos museus: já se foi o tempo em que eram meros depósitos de coisas mais ou menos interessantes, guardadas em armários comuns, esperando a poeira que lhes acrescentasse um pouco de patine, sem outra finalidade que não a de ser alvo da visita enfastiada de alguns passantes mais interessados em passar o tempo que em conhecer o museu. E à medida que os objetos iam chegando às mãos dos conservadores, estes iam-nos arrumando onde houvesse espaço e, quando tudo se encontrasse entupido, acabavam poe os atirar para porões onde jaziam já metros cúbicos de reservas anónimas. Graças a Deus que esta mentalidade está indo embora, muito a custo de alguns teimosos e hoje está surgindo o cálculo das mais-valias e dos ainda raros que têm consciência da importância de quanto o aceleramento das técnicas é indispensável à formação duma educação ativa e que deve dar à museologia as condições necessárias para que cumpra com suas obrigações específicas. Por isso a museologia é, em nossos dias e em civilizações que se respeitam, matéria universitária, assunto delicado de mais para ser tratado grosseiramente. Requer resposta a muitas provocações que lhe são impostas por complicadas exigências, como iluminação, conservação, circulação, vitrines, vidros, lâmpadas, informação, classificação, enfim, um sem número de itens em que só a experiencia dos outros vai servir de base para a nossa. Além disso, não há assunto que exija, dos que o tratam, tanta cultura geral como este da museologia, pois mexe com todas as questões da atividade humana, para além daquelas que lhe são particularmente inerentes. E, sobretudo, um natural e cultivado bom gosto, sendo estético, clarividência, entendimento de volumes, muita disciplina ótica, muita observação genérica e, sobretudo, o necessário equilíbrio emocional que, por mais estranho que possa parecer, está constantemente a ser posto à prova (que o digam os que já estão nessas lides há muito tempo…). Da subjetividade da profissão de museólogo, sempre à mercê de ser influenciado pela beleza, passível de sofrer como um artista que também deve ser, torna-o muito vulnerável aos ambientes onde o requinte não deve ser exagerado, mas precisa ser também mais
adivinhado do que visto, pois a visão é definitiva e o suposto é que faz o sonho ser sonho. Mas a verdade é ainda maior: para alguns, cultura é qualquer coisa de pejorativo e desagradável, onde só se destaca o ato indecoroso de gastar dinheiro. E onde os pobres encarregados de zelar por essas coisas, na maioria das vesses, gastam seus dias à procura de verbas para satisfazerem os mais essenciais encargos dum funcionamento e dum funcionalismo geralmente despreparado e insuficiente. Os conceitos de administração museológica estão sofrendo mudanças radicais, como intercâmbios constantes, seus técnicos prestando serviços onde deles se necessite. Acabou a profissão que se acomodava, pois até mesmo os grandes acervos estão mudando de mãos quando consideram que uma obra vital está à venda e deve ser adquirida, não haja a menor dúvida em se desfazer deles para os substituir por outros que lhes pareçam mais dignos. Fazem-no discretamente, como se sabe, mas também se sabe que o vaso grego do Museu Metropolitano de Nova York atribuído a Euphronios, foi adquirido com os milhões de dólares que parte da sua coleção de moedas rendeu, pois o vaso é único no mundo. Assim, com essa disposição moderna e livre dos antigos preconceitos, que tanto mal fizeram à palavra Museu, estão naturalmente enfrentando as novas realidades e mostrando o que se pode ainda fazer nesse apaixonante campo da cultura. São muito estudadas as origens dos museus, que começaram quando o primeiro colecionador privado sentiu necessidade de juntar perto de si a beleza que andava espalhada. E foi apenas lá pelos séculos fora que houve o clarão de que essas obras podiam iluminar mais alguém para além dos seus donos. Assim nasceu o Louvre, o primeiro Museu Nacional da Europa, onde se juntaram as coleções de Francisco I e de Luís XVI. Honra seja feita ao escritor La Font de Saint-Yenne que foi o primeiro que batalhou pelos museus nacionais. A sua história é rica de mais para ser resumida em meia dúzia de linhas. Mesmo o nosso Portugal, baseado sobretudo na grandeza do cristianismo, é duma riqueza estética e formal de tal magnitude que ultrapassa as necessidades da fé a que serviu, pois influenciou a própria alma nacional.
Carybé, meu irmão Terras de Lanhoso – 3 de novembro 1997
Quando um artista tira da terra que ama o húmus com que tempera a sua arte, por mais pobre que seja o seu estro, alguma coisa fica do seu trabalho; o indefinido torna-se definido e parte da sua alma, se não toda, dá um cunho de verdade até à sua mentira. São grandes os exemplos. Alguns eternos, como Tolstoi com a sua bem-amada Rússia, Dante com Itália, Goethe com sua germânica grandeza, Cervantes e seu quotidiano ibérico, Hugo e seu séquito dramático, Camões lusíada, Shakespeare e suas lendas trágicas envoltas nos nevoeiros das costas misteriosas dos mares do norte. Estes são alguns dos monstros sagrados cujas almas ficaram presas à memória dos tempos e aos nomes das pátrias. Estes são das estrelas maiores cujos brilhos permanecem para além das suas vidas. Mas há ainda os que vivem para além da luz e de cujo calor humano alguns tiveram a graça de sentir a força! São estrelas vivas que não só nos iluminaram mas, da mesma forma generosa, nos aqueceram. E todos os que deles nos beneficiamos, devemos agradecer aos deuses essa bênção rara. Eu, por méritos que só deles poderiam ter irradiado, sou um. Por circunstâncias que o destino inventou para quem procurava um lugar ao sol e o encontrou onde era quente e acolhedor, onde as gentes tinham o riso aberto, os deuses à mão e o pão ao pé, as horas corriam devagar e o levaram até onde o génio morava. Assim foi como as Graças me ensinaram que os povos nem sempre são maiores que os homens e que dentre estes há sempre alguns que os representam, pois lhes foi dada a missão de os imortalizar e, na sua tarefa de serem eleitos “ a quem muito foi dado e muito será pedido”. Mas tantas ocasiões houve em que deram muito mais do que talvez fosse da sua obrigação. Na minha já esticada vida estive ao lado de alguns e nunca deixei de lhes ser grato por me permitirem estar atento às suas palavras e ás suas criações artísticas, pois a arte é a única linguagem que ficará com sua missão eternamente por cumprir: sua grandeza é incomensurável e o infinito ficará para sempre além do possível. E aqui deixo um modesto ato de gratidão perante esses artistas a quem uma pátria deve seu prestígio no mundo e não se estranhe que como pátria, que também é minha, considere uma nação dentro de outra. Que é a nação baiana dentro da nação brasileira. Pois, como Roma é uma nação e Itália outra, as fronteiras da Bahia ficaram traçadas antes das do Brasil e àquela cabem honras culturais, étnicas, humanas e até geográficas que não coincidem com as linhas gerais do grande mapa brasileiro. Para isso concorreram homens como Jorge Amado, a voz mais poderosa de condestável das letras onde cabem as palavras de que Pessoa desenhou as raias, como Carybé, que lhes definiu os contornos humanos em linhas e cores nunca antes imaginados, Dorival Caymmi, que tirou das ondas do seu mar sem inimigos os compassos e as melodias com que salvou suas deusas e deu voz ao povo que as amava, e Mário Cravo que foi às profundas dos infernos buscar o fogo com que fundiu os fornos que transformou em asas com que suas esculturas voam por cima de todas as nuvens. É evidente que estes grandes artistas, que fundiram uma nação
nos seus cadinhos de ouro e amaranto, refletiram as graças dum povo para o qual já outros génios tinham dado um pouco do seu sangue. Mas é a eles que se deve a consolidação das fronteiras estéticas dessa nação suigeneris. Sem eles tudo teria sumido no oco do tempo e tudo ficaria debaixo da inexorável enxurrada que esmaga e calca na sua fúria de nivelar por baixo, tudo que pela frente se lhes antepõe. A maioria dos homens morre, mas outros há que jamais morrerão completamente, são como estrelas cujo brilho ainda se espalha por milhões de anos após a sua desintegração. Permanecendo nos céus que nos enfeitam o olhar por toda a vida. Foi essa a sensação com que fiquei ao saber que Carybé foi vítima de um ataque cardíaco fatal. A notícia cravou-me um punhal no coração, mas sei que Carybé deixou um rasto luminoso que jamais a nação baiana esquecerá. Pela sua arte inimitável, pela sua grandeza humana, pela sua forma de estar num mundo que ajudara a formar e como tal amava com paixão, pela ressonância da sua voz discreta mas contundente, pela graça com que pôs os seus deuses ao alcance de nossas mentes até ele sem forma nem sentido humano, pela sua fé nos valores da beleza e da verdade, pela sua ternura para com os erros de todos nós, pelo respeito e amor à família, pelo sofrimento que nunca o venceu, pela alegria que distribuía como se nele tivesse nascido naquela hora, pela honra com que dignificou tudo aquilo em que envolvia seus talentos, pela cordialidade com que nos fez sentir seus iguais, pela beleza que criou à sua volta e nola legou como herança maior, pelo abraço que jamais deixou de dar ao amigo que sofria, pela bondade disfarçada em ternura, pela memória de seus gestos e ditos mais banais, por tudo o que havia de belo e pelo qual nunca havíamos dado conta, pelas descobertas dos simples traços que elevara a riscos de luz, pela visão dos mundos que dominava nos seus desenhos, nas suas esculturas e suas pinturas, pelo que magicamente tirava do nada, por tudo aquilo que seu génio tocava, sangramos em vida e vamos em busca do que jamais alcançaremos mas que ele tentou nos fazer crer possível. E na cavalgada em sua honra e louvor, um Olimpo de Orixás seguindo pelas tribos de seus amados índios, feiras de nordeste, infinitas praias de infinitas redes com xaréus ainda vivos, todos os cavalos do mundo e seus vaqueiros, um cortejo de putas tristes cantando e dançando, peixes alados, pássaros garridos, todos os capoeiristas que foi possível juntar, berimbaus, agogôs, pandeiros, sanfonas tocando sozinhas, saveiros embandeirados, boiadas estouradas, mulatas feitas na hora cheias de dengue e calor, agrestes cangaceiros, longas canoas singrando á vara, chuvas na areia, sol no sertão, amor em cada canto, tudo isto e mais o que não sei, é e será o mundo maravilhoso criado pelo desconcertante génio de Carybé, homem da renascença moderna que de tudo sabia e de tudo retirava faíscas de alegria e encantamento. A nós, que tivemos a graça de o ver em plena posse e uso do seu poder criador, que fez baixar até nós a liturgia que se mantinha oralmente dum culto afro-baiano de grande imponência, sacerdote desse mesmo culto, espírito aberto e trabalhado, viajor incansável, conversador inimitável, companheiro de boas e más horas, resta-nos a triste consolação de o sabermos pelo seu povo eternamente amado, pois este constata a cada momento que a sua história maior se fez com a sua herança imortal
Da aguarelista Fernanda Barros Terras de Lanhoso – 17 de novembro 1997
Não são muitos os bons aguarelistas em Portugal. Diogo de Macedo dizia mesmo que Portugal não era “ um país de aguarelistas”. “Não temos lagos, nem névoas, não temos um clima de mistério nem de sonho, não sabemos exprimir-nos com leveza nem sentir as nuances duma atmosfera feliz.” E aqui reportamo-nos á Inglaterra, onde seu uso começou, e compreende-se porquê. Para facilitar as coisas lembremo-nos de Turner, do qual até os fabulosos óleos parecem aguarelas, pela transparência e distancia com que os temas são tratados. A nossa tendência, porém, não nos leva a usá-la como apontamento para representação da natureza. Bom, mas isto já nos levaria a longas conversas e a maiores especulações sobre essas razões, onde certamente teríamos que citar os nossos mais representativos aguarelistas que só começaram a aparecer pelos fins do séc. XVIII com Sequeira e Vieira Portuense. Passaríamos depois por Bordalo Pinheiro, Columbano ou Júlio Resende, sem esquecer dois nomes de mulher que igualmente a trabalharam com sucesso e foram Maria Luísa Tavares e Miy Possoz, com o género típico de desenhos avivados ou coloridos com aguadas, o que é rigorosamente técnico. E aqui vamos bater na porta que temos em vista e que é, talvez, uma faceta das artes plásticas que melhor se adapta ao temperamento feminino, pela graça de leve aparência, pela sua quase-aérea coloração. Pela sua forma de impressionar o mais difícil, que é o vago que circunda a beleza, mas que faz parte dela e por aquilo que nenhuma visão masculina pode dar e me parece ser a de deixar em bruma o que dela nunca poderia ter saído. Ora nesta caso está Fernanda Barros, magnífica aguarelista, com passagem bem-sucedida pela ilustração, o que não é nada fácil pela tendência à distorção e pelo avivamento do desenho, que domina muito bem e ao qual um tónus de complemento pelas cores leves com que o define. Fernanda Barros tem um forte espírito para ver as coisas pelo seu lado mais delicado, mais gracioso e mais comovedor e a aguarela é o meio mais natural de subornar nossas grossas visões masculinas, dando-lhes, como poemas, a sua interpretação pessoal. Já não vamos mais adiante, pois teríamos que tratar da técnica de que também foi mestre o grande Carybé, recentemente desaparecido. E porque todos os que trabalham nesse setor das artes plásticas sabem como é difícil corrigir um erro com duas ou três pinceladas fora de hora… Espero de Fernanda que siga por esse caminho que abriu às suas custas, e que com a sua própria experiência siga seu trajeto com um brilho que, tenho a certeza, não mais a abandonará.
A recriação da realidade Terras de Lanhoso – 1 de dezembro 1997
A fotografia ainda não é, em nosso país, objeto de primeira necessidade artística, a não ser como complemento do jornalismo a que dá um apoio substancial. Ainda não chegamos a um estrato social e económico que nos permita ter, como em outros países industrializados e que fazem as delícias doa aficionados, sobretudo japoneses e alemães comuns que correm atrás de novas máquinas, filmes mais sensíveis, lentes sofisticadas que os colocam na vanguarda da especialidade como técnicos, para os quais não é apenas bastante ter esses conhecimentos, mas sobretudo a visão exata e a capacidade de conjugar os dois na mesma profundidade que só um olhar de grande acutilância pode captar com felicidade. Diz-se, há muito, que a fotografia é uma arte de decadência; que nós vivemos um tempo de nostalgia e que a fotografia contribui ativamente para promover a consciência dessa nostalgia. Não deixa de ser verdade pois, sendo a fotografia a arte de perenizar o acontecido, o que fica retido pode ser o que nos provoca saudades, que nos comove no essencial do que já vivemos e que nos prende num passado de ressaca sentimental e nos deixa para sempre a imagem que registamos como digna de eterna recordação. Nisso ela é uma arte elegíaca e, como tal, só poderá ser tratada com felicidade por poetas. Outras vezes ela é só o movimento, um apontamento quase impercetível, fixado por um aparelho mecânico que um olhar incrivelmente atento, e que, para o qual uma constante de funda poesia trará a indispensável emoção. Aí estão para o comprovar Henri Cartier-Bresson, Brassai, Atget, Marc Riboud, e até Margaret Burk White. Estes captaram o movimento voando, o silêncio do grito, o gesto parado no tempo e a eles, esses mestres imortais, devemos dos mais ternos momentos, quase líricos, já alguma vez expressos em qualquer forma de comunicação visual. Todos eles profundamente artistas, nunca deixaram de ver as coisas que prenderam com luz, cor e sombra da mesma forma que outros pretenderam atingir o mesmo fim com palavras, ritmos e sons daqueles para quem a linha, o desenho e a tinta são as armas de combate. Foram todos transmissores das mesmas riquezas, só que a administraram de forma diferente. E começa a haver um sentido mais profundo sobre as preocupações sociais, abrindo campos de debate: se elas deverão servir primeiro a verdade e depois a beleza. E aqui não posso deixar de assinalar o que hoje detém a primazia dessa grande aventura por dentro do sofrimento humano, o grande Sebastião Salgado que tem comovido o mundo com suas fotos em preto e branco sobre tudo aquilo que mexe com a dignidade do homem, sobretudo coletivamente. Raro terá havido quem, plasticamente, tenha dado um murro na cara de todos nós com tanta força e razão. São duma feroz visão dos que sofrem por esse mundo os rigores de serem filhos, talvez, de deuses menores e que penam cruelmente a vida por onde escorreram seus castigos. Suas fotos são mais do que panfletos, pois são páginas de tragédia que nem os gregos souberam por em forma de drama. Mas escrever sobre Sebastião
Salgado é pura perda: basta ver qualquer das suas fotos para o comprovar. É evidente que os nomes que apontei são pilares de granito do grande milagre da estética dinâmica que um objeto aprimorado pode, se houver quem o domine com inteligência e sensibilidade, influir no mundo dos que mandam, mas, a estes, a capacidade de reagir ao que lhes chega por via estética não é lá muito abonadora. Não posso deixar de, porém, referir outros nomes gloriosos, embora noutro ramo da arte fotográfica, sobretudo em retratos onde o retratado está mais de alma que de corpo, como o grande Nadar, francês do fim do século a quem devemos as fotos dos maiores artistas do seu tempo e que nesta arte foi um inovador. O canadense Karsh, já nos nossos tempos, que gravou para sempre a raiva dos que tinham razão para a ter, como Churchil, depois da guerra de 40, ou para os que tinham na voz mais força do que muitos exércitos, como Gandhi. A moderna fotografia teve Lessing, Kapa, Halsman, Verger, documentaristas das suas épocas, como o nosso excecional Carneiro, aqui da nossa terra, cujo acervo se encontra nas boas mãos da Direcção do Museu Nogueira da Silva e que seria de grande importância para o estudo etnográfico e social da nossa vida urbana e rural, fosse todo, mas todo, trabalhado e publicado generosamente, pois ninguém definiu tão profundamente as vidas dos nossos mais próximos antepassados do que ele, através da sua sensibilidade geradora de notáveis tipos hoje desaparecidos. E como se gasta tanto dinheiro à toa, em obras estapafúrdias e eleitoradeiras, porque não se acende uma luzinha na mente dos que tem por obrigação não deixar morrer algo daquilo que eles não foram capazes de substituir. E como compatriota de Salgado, que é brasileiro, embora trabalhe em França e em todo o mundo onde alguém solte um grito de miséria, há outro brasileiro, também excecional fotografo, que se chama Mário Cravo Neto, este porém mais voltado para “stills” como cabeças, gestos mais quentes, paisagens da sua Bahia que ele não deforma, nem lhe avoluma os defeitos como seria de agrado de muitos. Pois este fotógrafo, que também é escultor, parte de um clã familiar de grandes artistas cujo carro chefe, de invulgar importância para o grande cortejo da arte brasileira, é Mário Cravo, seu pai. Mas para quem quiser se aprofundar na seara de tanta safra brilhante, leia o livro de Susana Sontag, intitulado La Photografie (ed. Seuil, Paris), pois é a mais brilhante dissertação sobre a estética das fotografias e da sua alma gémea.
Do bom humor em eleições Terras de Lanhoso – 5 de janeiro 1998
Passadas as trepidantes eleições, quando ainda estão vivas e mal lambidas as feridas abertas na vaidade de alguns e outros ainda riem pelas paredes o sucesso das suas armas (entre os quais se inclui este vosso apagado cronista, diga-se de passagem…), não caberia aqui qualquer dissertação que não tratasse de ajudar a aliviar as tensões por que todos passaram. A ressaca é comum e qualquer paliativo que traga ao menos um tímido sorriso será bem-vindo aos humores de todos nós. E, se como se dizia outrora, “mordedura de cão cura-se com pelo do mesmo cão”, relembro aqui histórias de outras pugnas no mesmo fito: conquistar as cadeiras do poder, que todos dizem utilizar com grande sacrifício, mas pela obtenção do qual fazem outros ainda maiores… Todos usam e abusam de frases e conceitos que ajudam a fritar as, suas às vezes, já podres sardinhas, uns espirituosos, outros de sórdida maldade, mas que vale a pena apontar no anedotário apropriado. São dignos de estudo de alguns entendidos nestas matérias sociais, pois provindos do povo, é deles o crédito pela graça e até pela força das verdades que, rindo, ferem as tais vaidades que levam todos os candidatos a qualquer cargo, se proclamem melhores e até mais bonitos do que os adversários (e aqui, peço perdão para não incluir as damas, pois a estas cabe sempre a graça da exceção…). De alguns eu me lembro, pois se fixaram pela originalidade que é característica constante do que se pretende visar. Certo sujeito, candidato a vereador numa cidade brasileira, vendo que os outros não eram melhores que ele, cunhou no seu cartaz os dizeres: “ Ruim por ruim, vote em mim”. Foi derrotado… Outro, aliás um velho amigo, de irradiante simpatia e ilustre nome, mas cujo queixo se destacava, candidatou-se e usou o slogan: “Vote em Fulano. Um queixo para as suas queixas”. E lá vinha o seu retrato onde avultava a sua queixada que ele hoje encobre com uma providencial barba grisalha. Também não foi eleito dessa vez. Outro amigo meu, hoje Professor na Sorbonne, um dos mais distintos geógrafos de craveira internacional, detentor dos maiores prémios de especialidade e que habita agora em Paris, cuja raça negra nunca o inibiu de se destacar pela inteligência e cultura, na sua mocidade teve a veleidade de se candidatar a vereador e, desta vez, não foi ele, mas alguns amigos, que resolveram se divertir à sua custa e mandaram imprimir um grande cartaz onde se pedia: “Não vote em branco, vote em Fulano”. Nunca esse homem superior se zangou com isso nem deixou de merecer o geral reconhecimento. A mais sibilina das frases, a mais contundente pela subtileza daquilo que esconde e pelo fascinante ridículo de que alveja quase claramente, foi a que alguém, desapontado com a falta de qualidade dos candidatos, mandou afixar em lugares de grande afluência cartazes onde se lia: “Desta vez, votei nas mães. Os filhos não deram certo…”. De outro se dizia que roubava, mas fazia, e que em certo comício alardeou publicamente durante o seu discurso: “Nestes bolsos nunca
entrou dinheiro alheio…”, ao que alguém entre a multidão que assistiu. Aparteou: “ Está de calças novas, heim?!” Outro dito desconcertante, e como ainda está viva muita gente que conhece o facto e os nomes dos intervenientes, foi quando alguém, logo que se formou a tal União Nacional que acabou com os partidos em Portugal, falando no Palácio Foz, alegou, com visível orgulho: “Meus senhores, durante toda a minha vida, só tive um partido…”, ao que. Alguém da plateia, conhecedor da vida doméstica do orador, respondeu “Fala baixo, senão quebro-te o outro…” Para terminar, esta mais ou menos escatológica, mas autentica: Em Salvador da Bahia, há dois bairros de periferia, vizinhos um do outro. Um chama-se Vagem Grande e o outro, Pau Miúdo. Havendo comícios que juntavam as duas populações, o leitor não imagina os trocadilhos que faziam quando se apelava para as mulheres de Vagem Grande e para os homens de Pau Miúdo, eram irresistíveis. A cada leitor de os imaginar…
Da força do silêncio Terras de Lanhoso – 2 de fevereiro 1998
O silêncio é uma dádiva de Deus. Aliás, parece que de todos os deuses, pois de tão grande precisaria talvez que todos se unissem para conseguir tão maravilhosa prenda. E entregaram-no ao homem, intacto e num estado de pureza de integral transparência, como obrigação, teriam de o preservar, pois seu seria doravante esse património, cujo dever consistia em passar pelas gerações intocado e limpo, quando fosse a hora. E a força que essa pureza continha em si, deveria ser transmitida aos sus herdeiros, rica como a terra e sem outro horizonte que não fosse o próprio céu. E como era nele que deveria e era nele que poderia espalhar suas meditações, nos seus espaços abertos à invasão do sonho dos graves amparos das batidas do coração e, quem sabe, do seu eco sairiam como que ondas, iguais às desenhadas na água quieta pela pedra atirada. Era nessa clareira de silêncio que o homem, ao ser perturbado pelos primeiros raciocínios, podia assentar suas emoções, suas ânsias de criar o novo e, mais tarde, bem mais tarde, fundir suas pedras filosofais. A mente humana é um forno onde as ideias são caldeadas no recolhimento e na clausura duma paz horizontal e branca. Nessa cela de calmo abrigo é que são criadas as fugas para a beleza do eterno, como se tudo nascesse do nada e do vazio, sem mancha nem restos de nódoas que a inquietação cria no esterco do ruído e na aflição do alarme. O efémero poder ser desenvolvido em culturas de alto teor de impurezas, pode até parecer com fugaz destaque e criar alguma emoção acidental. Mas a profundidade de criação exige que se vão buscar ao cerne do silêncio e da concentração, as raízes que a farão eterna. E o ouvido é o nosso primeiro escudo contra o ruído de mau gosto, o seu excesso ou a sua inoportunidade. Dele nos advém o instinto de defesa contra o mau uso duma forma de vida inimiga duma paz a que todos os que têm por sina ver e pensar, tem até um biológico direito. Creio que é essa falta de paz que vai assassinar friamente seus autores, lenta, pausadamente, como outrora certos traidores dinásticos dissolviam com venenos as reais vísceras dos seus soberanos. Hoje o homem vive na sangrenta e indiferente cidade civilizada e carrega no seu alforge mendigo de fé e de caridade, não mais qualquer esperança mas todo um soluçar de arrependimento e de insatisfação a que ele recorre para satisfazer a sua fome, alimentando-a com a sua própria angustia, carregando às costas uma herança de gritos e uivos que, passadas gerações, já lhe deixaram para ser amarradas a um processo material que trocou as horas pelos dias, e num feixe de minutos todo um resumo de sons desumanos, desarticulados, desmedidos nos roncos e insólitos nas agudas facadas com que dilaceram a paz essencial. Mas talvez ainda haja quem se lembre que o movimento do mar, a aragem do vento batendo nas folhas do arvoredo e o leve ruido do fogo brando, já tiveram honras de melodia e já serviram ao homem no seu reinado de pensar e, sobretudo, no seu direito sagrado de criar. A terrível necessidade que certos artistas manifestaram em afirmar que o processo de comunicação é um mito que apodrece de pé, deve levar em si a
semente ainda por germinar de que a capacidade de criar está tolhida por forças de vária ordem; de que as limitações sensoriais não lhe são favoráveis e de que as tais formas de expressão não encontram eco num mundo onde ruídos se abafam aos primeiros sons de uma balada gestual e pura. Apesar de sentirem a força germinando, de arte borbulhando dentro de si, o mundo em que vivem não é propício ao seu desejo de criação, pois está cercado por todos os lados pela falta de paz e do calor divino que esta carrega em si. E que é inimiga dos arsenais de bombas queimadas ao mesmo tempo e na mesma undécima hora que é toda a hora em que a alucinação do estrépito cria na sua cabeça as hidras de Medusa. É o silêncio indispensável à criação plástica, pois ele é como a cor, a luz, o volume e a harmonia. Na hora da criação o cérebro do artista é uma chama ténue e solta e que se vai desenvolvendo no segredo de si mesmo. E toda ela vibra e treme, como se fora folha de árvore ou pena de ave. E colhe ventos e tempestades e as recolhe dentro de si mesmo, mas na hora crucial as amansa e cala pois é desse domesticar de vendavais que tira os frutos da sua safra sofrida. Por isso é que ele, tantas vezes negligencia o seu comportamento exterior, como acessório inteiramente dispensável. E para si frequentemente de menor sentido. Mas como escreveu Virgílio Ferreira, “não vou mais me queixar, porque há mais dores no mundo”. E é desta maneira que ele consegue atirar para o vento as cinzas queimadas dentro de si.
Culinoriosidades de um historioso Terras de Lanhoso – 2 de março 1998
Parece que, por não ser a história uma ciência exata, como o historiador Georges Duby tem afirmado e comprovado, antes ficar mais rigorosamente enquadrada como um género literário, é que hoje começam a ter mais realce as distantes peripécias do viver. As batalhas e as suas datas com seus lendários heróis, apagaram os nomes dos derrotados, tantas vezes bem mais importantes do que o do vencedor, e os arcos do triunfo iam escondendo, nas suas sombras as pequenas ruas por onde escorria a vida. Mas esse “género literário” fundamentado em realidades, tem que conter em si, para que ganhe verdade criadora, uma atmosfera emocional feita com os exatos ingredientes do sabor que quer invocar. Por isso é que estão sendo valorizadas essas pequenas doses de conhecimento, até ao momento consideradas pelos sábios da história como factos menores. Ora, os tais acontecimentos sociais, onde essas doses faziam a festa, começaram a substituir as datas magnas e os tratados reais e as dinastias mais ou menos equivocas. Machado de Assis, Eça de Queirós, Jorge Amado, com suas ficções geniais, estão ensinando aos historiadores o que eles devem fazer, estribados em factos na realidade acontecidos, analistas que são da outra face duma mesma verdade. E aqui me lembro do comentário de Eça de Queirós aos diários imaginários com que Oliveira Martins deu graça à sua monumental Vida de Nu ‘Álvares Pereira: “Tu estavas lá? Tu ouviste?” Ora, uma dessas verdades fundamentais é a do comer. Sem comida, muita ou pouca, não há verdade que se mantenha. E parece que dela, com suas características de maior ou menor riqueza, com mais ou menos gordura ou mais ou menos sal, é que decorrem muitos fatores que determinaram o caráter dos povos. E até, talvez, os feitos das gentes com suas agruras e doçuras, com seus achaques e suas moléstias típicas, com suas boas ou más digestões. Uma das mais vincadas manifestações sociais do povo português anotadas pelos usos e costumes, é seguramente a da presença da comida. Herdeiro das tradições romanas, cujo menu era muito variado e em que às vezes se punha a mesa cinco vezes ao dia, com o decorrer dos séculos foi-se adaptando às suas próprias exigências. Mas o que ficou para a sobremesa, a “secunda mesa” dos romanos, dá para criar água na boca… e são curiosíssimas as disposições sobre seu preparo como, por exemplo, as do Regimento dos Pasteleiros, pois no princípio do séc. XVI não era pasteleiro quem queria: havia legislação para regular as suas funções. Mas pasteleiro não era só aquele que fazia pastéis: nos tempos muito antigos, pasteleiro era sinónimo de mestre de cozinha. E nada tinha de comum com o confeiteiro, cuja arte de confeitar era privilégio dos doceiros e doceiras. O pastel era o prato básico das refeições quotidianas, por isso importantíssimo na vida das famílias mais abastadas, pois os pobres, esses, comiam seu peixe salgado… assim foi regulamentada essa profissão tão cara ao bom viver, como se vê., e de que dependia até muita paz doméstica, e quem sabe, pública. Porque, para início de conversa, na (regulamentação) que se registou em Guimarães em 1607, se dizia que “não é bem que haja oficial de nação mourisco, mulato, nem gornadino, ou outra ilícita, posto que sejam cristãos e bautizados neste nosso reyno, por ser ofício de muita consideração e perigo” havia estágio em mestres já formados e exames perante juiz. As provas orais tinham quesitos como estes: “quais as espessias (mais tarde especiarias)
proveitosas para se comer no verão, ou as necessárias para o inverno ou para doentes ou para pessoas mimosas que não gostam delas”. Nas provas práticas o candidato ao ofício teria que fazer, com limpeza e perfeição, um rolo de massa folhada, um pastel de meio tostão, outro de dois vinténs, e outro de 30 réis; um frangão para doente e uma empada de peixe. Caso o juiz não gostasse desses pitéus, mandava-os praticar até que os soubessem fazer. E. concedida a licença, as fiscalizações mandavam prender todos os que nas suas cozinhas estivessem ao forno sem uma autorização, “pela razão de perigo”. E como “ neste ofício é necessária muita perfeição e limpeza” o juiz decretava que “nenhum mestre nem obreiro tendo enfermidade contagiosa, como são as bouba, gálico, sarna ou mal de S. Lázaro, ou outra além destas, que apegar-se possa, não poderá usar o dito ofício, até não constar por certidão do físico do surgião que está sã da dita enfermidade”. Assim iam protegendo, à sua maneira deficiente aos nossos olhos já desinfetados pela higiene moderna, as saúdes tão vulneráveis aos males que infestavam a época. Ora depois que esses valentes regressavam da India, os novos temperos, conhecidos como especiarias e que valiam tanto ouro que, se uma nau chegasse intacta pagava o preço do naufrágio de todas as outras da expedição, substituíram os paladares tristes e sensaborões das antigas cozinhas. A canela, a pimenta, o gengibre, a noz-moscada, o cravo, o próprio açúcar, revolucionaram os paladares e criaram novos hábitos alimentares. Só os mimosos não admitiam condimentos desses. E mesmo o açúcar, que no séc. XV era “especiaria de botica”, passou a entrar na preparação das comidas. Mas o consumo público assentava mesmo sua popularidade nos pastéis, nos quais entravam várias carnes, como as de capoeira e a de caça. Havia uma proibição: “não façam pastéis de bode, nem de cabra, nem de ovelha, nem de porca, nem de carne danada” (que seria carne danada?). e jurando sobre os Santos Evangelhos, prometia o neófito cumprir o regulamento fielmente. Só que esses juramentos caíam em saco roto… era como o dos estalajadeiros, que não podiam ter “sob telha” mulher solteira que ganhasse dinheiro por “seu corpo”. Também esses antepassados dos atuais hoteleiros, não podiam, como os taberneiros, dar comida a negros e mulatos… mas quem obedecia? Havia listas dos preços permitidos, que iam dos 20 reais para um “pastel de arrátel (495 gr) de carne, pondo só pão e adubos” até “um piru grande de assar vindo temperado da casa do seu dono” por 60 reais, passando por uma simples empada de “rola, frangão ou pombo, só pão e adubos” por 5 reais, que era o que havia de mais barato. E como havia o costume de mandar assar fora peças de carne temperadas em casa, para evitar abusos, essa mão de obra era igualmente tabelada. Dos hábitos de arroz já se diz muita coisa nessas tabelas: era como ainda hoje, juntamente com o uso da batata, uma espécie de prato nacional. Só que a batata nessas épocas afastadas e que hoje despertam tanto interesse nos seus curiosos registos, era desconhecida. Se os meus três leitores se interessarem pelo assunto, voltarei a lembrá-lo. Ou poderei já servir a sobremesa?
Das antigas doçuras Terras de Lanhoso – 30 de março 1998
Ainda na rabeira do Congresso da Gastronomia, que há bem pouco tempo teve lugar nesta nossa boa terra, e no seguimento do meu último artigo aqui publicado, tomo a liberdade de lhes aguçar o gosto pelas sobremesas, a tal “secunda mesa” dos romanos, conforme o figurino das ementes clássicas, não sem antes lembrar os nomes tutelares do dito congresso, que são os dos indomáveis, omnipresentes e incansáveis deuses “ex-machina” da Confraria dos Gastrónomos do Minho, Nuno Lima de Carvalho e Francisco Sampaio, sem os quais muita evocação deixaria de ser a lembrança do que devemos continuar a ser. Quando se fala de cozinha portuguesa, tanto de velha cozinha medieval como da atual, há que respeitar a fama da sua poderosa doçaria. Não há nenhuma casa tradicional em que as receitas que levem açúcar não sejam cuidadas com o requinte e o carinho de venerandas confidências de família. E, até nas antigas lojas de doces, infelizmente em extinção, se mantinham certos segredos herdados e ciosamente preservados: muitas das velhas doceiras levaram mesmo consigo para a cova misteriosas receitas, tal era o ciúme em possui-las. As percentagens no peso do açúcar, a quantidade de ovos com mais ou menos claras ou gemas, a qualidade da farinha, o bater de tudo isso de forma exata e rigorosa, algum aroma esquecido dalguma erva escondida, o tempo de forno e do fogão, a água (se a levasse) de imaculada pureza, enfim, recônditos processos cuja vaidade só se abria na obra pronta e nos elogios decorrentes, tudo isso, durante séculos, motivo de conversas ao pé do ouvido, entre os risinhos discretos de prendadas donas e rasgados louvores do resto da família. Do açúcar todos sabem a história e que foi durante muito tempo mezinha de botica, entrando na composição de remédios que o tempo levou. Antes dele, era o mel que fazia parte constante duma dieta diária e, conforme o tipo de pólen que as abelhas aproveitassem, assim variava a sua utilização. Na antiguidade clássica, onde houvesse comida, havia mel. Mas depois que o séc. XVI deu a conhecer as especiarias, agradeça-se ao açúcar que, na vida da sociedades, foi aperfeiçoando a riqueza alimentar. E uma variedade de bolos, pastéis, massas, compotas, pudins, manjares, pães, confeitos, cada qual com seu nome e às vezes até com vários, conforme a região, sabe-se lá quantas variedades existem atualmente, com a agravante de cada terra dispor da sua própria especialidade, como os charutos de romaria aqui da Póvoa de Lanhoso, o pão-de-ló de Margaride e o coberto de Vizela, as cavacas de Sintra, os ovos-moles de Aveiro, as lérias de Amarante, os jesuítas de Santo Tirso, os sidónios de Viana, as clarinhas de Fão. Os amendoados do Algarve e mais centenas e centenas de exuberantes tentações gustativas, que só de vê-las expostas cria complexos nos nossos desumanos regimes. E era toda uma panóplia doméstica, com seus tachos, mós, pisões, peneiras, almofarizes e caldeiras, com que essas sabidas doceiras levavam à exaustão suas comprovadas e atávicas habilidades. E se assim era com a sociedade civil, a loucura máxima nessa dulcíssima matéria deu-se nos conventos onde dominicanas, carmelitas, trinitárias e,
sobretudo, clarissas, punham todo o seu fogo divino e terreno na invenção de novas e comovedoras sensações papilares. Só as freiras capuchinhas, por devoção, nunca se meteram nessa doce seara. E era uma autêntica indústria onde até se exportavam para Inglaterra ameixas e figos confeitados. Terra de conventos, terra de frades, terra de abades, as encomendas destes para as religiosas mantinham com sucesso esta atividade, como se comprova com alguns documentos coevos, entre os quais os das contas da colegiada de Guimarães, citados par A.L de Carvalho, e cujos itens são curiosíssimos; “em 1656 se pagou 8,000 rs. Por uma caixa de peros e um prato de ovos reais que se mandaram para o Padre Mestre pelo serviço do descimento da cruz na sexta-feira santa” e “4,600 por dois pratos de ovos reais e 4 caixas de ameixas e malápios, para o bispo se agasalhar no priorado”. Depois veio o romantismo do séc. XVIII e a arte da confeitaria conventual atingiu o máximo da “delícia do olfato e do encanto dos olhos”, e nos outeiros, onde magros poetas vinham matar a fome e namorar as noviças (e não só) era um desfilar de manjares, com a presença alegre das “freiras mais novas que usavam espartilho, deixando ver os contornos dos seios e traziam na frente os hábitos mais curtos, com o fim de se lhes ver o pé e os sapatos e usavam óleo e polvilho na cara”- mas era o doce mais que isso; com ele é que os conventos pagavam favores, mandavam presentes reais, alimentavam a galanteria, satisfaziam obrigações com os físicos, liquidavam juros e alcançavam amizades. Era uma espécie de moeda, cujo troco se fazia com licores e confeitos, e que deixava os confessores em paz com as suas consciências, calava os juízes de fora, sisudos corregedores e até bispos! Quem podia resistir às tigelinhas, aos covilhetes, às malgas, aos papeliços, aos boiões e às bandejas arrumadas pela delicadeza de mãos femininas? Só de ler estes nomes, citados pelo mesmo autor, faz incendiar a nossa imaginação: arroz-doce, sonhos, leite crespo, ovos reais, morcelas, toucinho-do-céu, maçapães rosados, farturas, marmelada, queijadas, broinhas, tortas, sardinhas de doce, suplícios, cavacas, pão leve, farteis, confeitos de rosa, enfim, nomes que ainda têm herdeiros, mas cujas receitas já não devem reter os mesmos ingredientes. E todas estas maravilhas tinham um nome comum: eram os Mimos, com que as Abadessas faziam a sua política, subornado pelo paladar as não tão rígidas virtudes de quem com elas não se atrevia a parlamentar… e muitas vezes o que a pólvora e a espada não obtinham, o açúcar e o sorriso conseguiam terna, e não raro amorosamente. Mas longe me levaria esta saborosa conversa, se me não lembrasse do que Faria de Sousa escreveu no séc. XVI sobre o povo do Minho: “ ninguém adoece ali se não por acesso de comer e beber e outras tais culpas pela abundância que tem de tudo”. Até à próxima, com as bebidas…
Carta de Papa Celestino VI aos jovens artistas Terras de Lanhoso – 28 de setembro 1998
São conhecidas as precárias condições em que Giovanni Papini encontrou as cartas desse fabuloso pontífice, confessor e mártir. Reunidas em livro, todas assinadas pelo grande papa como “servo dos servos de Deus”, esta que é dirigida aos jovens artistas, apesar de ter todas as características das outras, não está assinada, nem mesmo concluída. Até a última frase está inacabada. É até bem provável que o grande escritor italiano não soubesse da sua existência. Pode ser que igualmente lhe não encontrasse a altura edificante das restantes. Tudo é possível. São as seguintes palavras desse venerando documento, talvez apócrifo: “Meus filhos, Não devereis achar estranho que um velho pastor, mais afeito a dar conselhos de ordem espiritual e a levar a palavra de Deus aos que mais evidenciaram dela carecer, se dirija a vós com a humildade que deve cercar todo o conselho, pois só a Ele compete a verdade. Como o mais pobre dos seus servos, fala em mim a sua vontade de esclarecer, para que jamais se possa dizer que vos ignorei, que me não afligi por vossa aflição, que me não doeram vossas dúvidas. Vós sois como a água que despenca com fragor do alto da montanha quando o degelo começa e, com ela, vossa inquietação ressoa no vale e fere os ouvidos do povo de Deus. Mas também como ela depois encontra a planície e o sossego e segue, quieta e mansa, segura pelas margens que a espremem e docemente encaminham até ao mar, onde se perdem. Vosso momento é curto, como curta foi a queda da água em comparação com o longínquo rio. Não espereis ficar troando por muito tempo, pois a meditação e o exemplo do passado não vos poderão esconder a verdade. Sois jovens, mas não podeis permanecer jovens por todo o tempo, o que entretanto podereis é dar à arte que idealizaste servir, aquele sopro divino que fará de vós, se para isso tiverdes força, humildade e coragem, os Anjos do Senhor. Sois vós que segurais a beleza da terra; por vossas mãos será recriado outro mundo, possivelmente melhor do que este tão ingrato em que Deus me fez penar para sua glória. Ao longo dos anos que longamente me pesam, tenho rezado sob a inspiração de Miguel Ângelo na Capela Sistina e de nenhum outro génio tenho recebido tanta fé, pois foi sua mão que guiou a do terrível toscano. Como já escrevi noutro lugar, vossa linguagem natural não se confunde com a dos outros homens, vós manejais outros instrumentos; de vosso trabalho e canseira nascerão outras flores, não deixeis que elas se misturem com a erva e o restolho. Vós trazeis vossa mensagem na vossa juventude, mas para que ela se possa realizar tereis que envolve-la em dedicação, em fé, em humildade e em graça. Não espereis nunca que essas condições intemporais possam surgir da noite ou do dia, uma e outro também já amanhã não serão. Em vós se poderá repetir o milagre de Pentecostes, duma forma nova e ignorada. Deveis ficar certos de que nem tudo foi dito, só vós podereis ainda dizê-lo. Não julgueis, porém, que será ganhando os aplausos fáceis dos que vos querem agradar, que o conseguireis. A arte é uma eterna ingrata para com os que a ela se dedicam e não há cânticos de sedução a que ela se entregue. Ela só ouvirá os que permanecerem mudos, os que sejam capazes de trocar a palavra vã pela ação persistente, os que só tiverem olhos para a beleza espalhada pelo mundo pelo seu criador, os que baixarem o olhar diante da profanação da beleza, os que souberem tirar do trabalho todas as grandezas sem esperar
receber em troca o manto que Fr. Angélico não aceitou. Ele foi parceiro de Deus e que isto não pareça apostasia, pois também de sua pobreza e miséria saíram das mais belas obras da criação. Se as palavras dum velho, afeito mais à penitencia do que à vida, vos podem levantar o animo de que tanto necessitais para conduzir vossa barca a bom porto, direi que não escuteis os que só vos poderão levar ódio em vez de amor, os que tentarem impor-vos as suas falsas verdades, os recalcados que gastarem no ócio e no lazer as energias que jamais recuperarão, os que acreditarem que inspiração existe, os que se consideram génios, os que não instigarem ao trabalho duro, necessário, doloroso por vezes, os que levam bandeiras de outras corporações, pois não deveis seguir outra senão a vossa própria. Sois filhos de Deus e só a Ele e a vós deveis contas e respeito. Voltai as costas aos falsos profetas que nada mais são do que herdeiros de si mesmos e como nada tinham para dar, nada receberam. Se os não ignorardes, eles vos tomarão até ao último sestércio, vos tornareis seus devedores e perdereis a independência que todo o artista deverá manter intocada e pura. Nem perante o poder papal o artista se deverá curvar, com certeza o digo, vos lembrando o exemplo de Miguel Ângelo perante Júlio II e Paulo III, de santa memória e aos quais a vontade do artista sempre soube impor a sua própria liberdade de ação. Sou um pobre homem cansado e desiludido, minhas ideias já não nascem com a mesma alegria. Deixai-me então repetir o que disse aos poetas: vossa obra parece-se com a criação porque deve dar forma harmoniosa ao caos informe dos sentidos, dos sentimentos e dos pensamentos. A juventude tem sempre tendência de menosprezar as experiências alheias, mesmo de outros jovens mais sagazes. Ela se considera dona da verdade, como se não fora uma dádiva que, vinda de deus, a cada uma caberá administrar com probidade, nenhuma culpa por isso lhe caberá, assim o aprendi em minhas meditações, pois disso ela vai tomar consciência logo que amadureça sua arte. Assim como S. Lucas, que foi pintor, muitas vezes devemos perdoar, mesmo tendo razão, que a meu humilde ver não é tão importante pois se nem só de pão vive o homem, quanto mais de razão, sempre tão frágil e às vezes incómoda. Não vos abandoneis a mando dos outros, comei o vosso pão e bebei o vosso próprio vinho, colhei vós mesmos a água com que purificais o vosso olhar. Não aceiteis a tutela de ninguém, segui os vossos próprios passos, pois assim chegareis a bom destino. Não serão as aliciantes palavras alheias que vos farão melhorar em vossa arte antes o vosso próprio esforço e ação. Pedi a Deus misericórdia mas não inspiração. Orai para que não vos faltem forças para trabalhar, trabalhar sempre, mesmo na desilusão pois só dessa forma conseguireis ser para Deus o que talvez os homens nunca compreendam. Ou vão compreender tarde de mais. Mas que importância poderá ter para quem vê no amor a sua arte…” Assim termina, com esta frase interrompida, a carta aos jovens atribuída ao papa Celestino VI, pontífice, confessor e mártir, Como escreveu Papini a seu respeito,: Celestino não se calou, nem se deixou vencer pelas tentações daquela cobardia que demasiadas vezes se mascara com o honesto nome de prudência. Falou abertamente. Por todos os motivos, exceto um e importantíssimo, que magnífico pontífice!
Experiências e conselhos dum “marchand” Para Manuel de Brito Terras de Lanhoso – 26 de outubro 1998
Poucas coisas andam tão ligadas às artes como a instituição de marchand. Vem essa profissão das lonjuras do séc. XV, quando na holanda se registam as primeiras exportações dessa maravilhosa atividade, dando inicio a uma das mais fascinantes maneiras de ganhar a vida envolvida na euforia da criação e até de se ficar rico. No princípio eram as encomendas mas, depois, em decorrência do sucesso, viu-se que eram necessárias lojas onde a mercadoria (salvo seja…) estivesse exposta. Porém, só no séc. XIX se consolidou esse ofício de tantos altos e baixos, pois para nele se ser bemsucedido, necessita-se de muitíssimo mais do que saber administrar. Já há trabalhos sobre a sua história, muitos dos seus nomes mais fulgurantes são universalmente conhecidos e a admiração por alguns que apostaram no real sucesso do artista que vinha do nada, é coisa que chega a comover, um tal Pére Tanguy que apostou em Van Gogh e Cézanne, absolutamente invendáveis na época, outros que financiavam pintores desconhecidos, muitas vezes em pura perda, enfim, havia-os, e há-os, infelizmente, querendo sugar do artista o próprio sangue, outros que se envolveram tão cegamente de corpo e alma em certos movimentos estéticos renovadores que um possível fracasso os levaria à ruina. O que ficou, porém, foi a certeza de que só os nomes dos que mostraram sensibilidade e cultura para entender a mensagem dos que tiveram o privilégio da criação, merecem a gratidão de todos os que amam a arte. Se depois ganharam dinheiro, mereceram-no. Ora, um dos nomes mais fulgurantes desse circo de poucas vedetas, é o Daniel-Henry Kahnweiller, alemão de nascimento, mas de formação artística francesa; foi ele quem sustentou os cubistas, essa a sua maior glória. Mas, para o momento, o que me interessa é destacar um seu pequeno e raro livro de entrevistas intitulado Mes galeries et mes peintre (Calimard, 1961) onde se aprendem coisas deliciosas e vive-se a extraordinária aventura desse espírito brilhante e se vai acompanhando o movimento mais importante do século no campo das artes visuais. Daqui por diante dou-lhe a palavra e pena tenho, que o espaço para o fazer seja tão curto: “Encontrei na pintura a possibilidade de ajudar os que considerei grandes pintores, sem intermediário entre eles e o público, de lhes abrir o caminho e de lhes evitar preocupações materiais. Se a razão de ser marchand tem uma justificação moral, não pode ser senão esta. Impressionistas: a primeira abordagem desconcentrou-me, isto prova que para todo o mundo, a compreensão e mesmo a leitura de uma nova pintura é difícil. Direi até que a principio, esses quadros pareciam ilegíveis, só nódoas de cor. A abstração fez perder a muitos artistas o sentido do métier, a sua difícil aprendizagem tornou-se rápido um academismo abstrato, incómodo, estéril e que permitiu que muito reles borradores passassem algum tempo por pintores. Um sucesso rápido é, antes de mais nada, um péssimo sintoma. Não há nada pior que a comoção imediata. São os grandes pintores que fazem os grandes marchands. O que carateriza a pintura popular é que ela não é fixada no tempo. É uma grande ilusão pensar que as pessoas que dizem que se vivessem no tempo de Cézanne teriam comprado dúzias de quadros dele, não teriam comprado um só.
Se há marchands que impõem uma quantidade de telas a seus artistas, são malfeitores que deveriam ser fuzilados. É uma coisa simplesmente abominável. Picasso dizia que para que haja quadros que se vendam caro, é preciso que tenham também sido vendidos barato em certos momentos. É dele também a frase de que gostaria de viver como pobre, mas com muito dinheiro. É preciso sempre aprender a ler pintura, porque ela é escrita: mas como toda a escrita, uma convenção; é necessário que essa convenção seja aceite e que seja ensinado a ler. Os pintores, filhos de pintores, são raros na história da pintura. Eu não gosto da pintura surrealista ortodoxa por uma razão muito simples: as suas intenções são simplesmente literárias, há não só a história do reencontro de objetos heteróclitos e tudo o mais que se desejar, como há uma porção de outras intenções, os relógios moles de Dalí e mil e outras coisas. Ora se você tem tais intenções na pintura, para que o público se dê conta você está quase obrigado a fazer pintura académica ou pintura do género calendário, que é o que fazem os surrealistas belgas ou Dalí, por exemplo. O que nunca me pareceu pintura, mas uma espécie de literatura pintada, o que não é da minha alçada. O estado não pode ter gosto. Seria um milagre que as pessoas que dispõem de fundos destinados a ajudar pintores, tenham gosto. É um dos erros maiores de certas artes oficiais: o de se basear precisamente sobre aqueles que não sabem apreciar a pintura. Nunca ouvi falar de grandes pintores que tenham exposto de forma regular numa galeria de terceira ordem. Nunca permiti que minhas galerias tivessem vitrines: entra quem quer ou sabe, mas nada no exterior que o provocasse. Não há uma só figura de Picasso, um só retrato de mulher que não seja o de uma de suas amadas ao tempo. Os grandes marchands são quase todos de primeira geração e não chegam ao comércio da arte por formação familiar, mas por vocação repentina descoberta duma paixão que estava identificada com a sua vida.” Estas frases, ditas por quem sabia do ofício, permanecem jovens apesar de que, se seu autor fosse vivo teria 120 anos… Transcrevi-as pensando no nosso magnífico Manuel de Brito, mestre também no seu requisitado ofício de marchand e colecionador de alto bordo, a quem as artes modernas portuguesas, e não só, muito devem. É uma discreta homenagem que só não está completa porque esta invulgar personalidade nos deve relatos idênticos, baseados nas suas experiências e o seu relacionamento com aqueles com quem privou profissional e particularmente cujos nomes são a própria história do modernismo em Portugal. Só então darei por completa a homenagem que ora principio… Algumas dessas saborosas peripécias já lhas ouvi contar, mas uma vida tão rica como a sua, não merece ficar só na memória de alguns. A grande história faz-se com a que os eleitos viveram.
Do bom humor dum velho bispo galego Terras de Lanhoso – 27 de junho 1998
O Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1818 não tem senão a história que se encadeia em acontecimentos mais ou menos próximos: reinava em Portugal e na Espanha o debilóide Filipe III (II em Portugal), Shakespeare morrera há dois anos, Camões há 38, Moliére tinha 4 anos e Gregório de Matos, com seus onze anos, já devia andar experimentando como “praticar a vida que a poesia lhe ensinava” – parafraseando James Amado. Na Bahia governada por um apagado D. Luíz de Sousa, que Deus haja em sua glória e, em Praga, os protestantes da Boémia jogavam pelas janelas os governantes imperiais, exemplo muito perigoso para nossos dias, começando assim a tal guerra dos trinta anos. Mas nesse mesmo ano saiu à luz da imprensa um livro curioso, da autoria de D. António de Guevara, bispo e, entre outras coisas muito louvadas, “del cortejo del Imperador Carlos Quinto, Rey de las Espanñas”. Chamava-se o venerando livro Epístolas familiares, e foi editado em Madrid, com a devida licencia. Nele, D. António trata de tudo em forma de cartas a toda a espécie de personagens, mais ou menos nobres, homens e mulheres, mas duma forma raramente encontrável em escritos dessa época, notadamente por se tratar de eclesiástico de alta craveira, pregador da coroa, bispo de Mondonedo, que fica na Galiza, onde a disciplina religiosa era dura. O exemplar que possuo, a que o tempo entregou graves marcas de respeito e usura, é uma raridade bibliográfica que ocupa sua estante onde resiste galhardamente há quase três séculos. Mas D. António do mais que se interessa é pelas relações entre homens e mulheres, não fosse ele confessor, ouçamo-lo no seu linguajar quase medieval, que mal traduzo do espanhol: “casa-se Mosen Puche com mulher de quinze anos; casa-se Dona Mariana com marido de dezassete, se eu não me engano, queda-lhes tempo de sobra para gozar o matrimónio e também para chorar o casamento. Solon Solonino mandou aos atenienses que não se casassem até terem idade de vinte anos. E Licurgo aos lacemonienses, até aos vinte e cinco. E os egípcios, aos trinta, se Mosen Puche e D. Mariana fossem do Egipto, mas como são de Valência, não deixarão de ser castigados. Se vosso pai vos casou, usou de grande crusidade”. E assim vai o bispo, até que em sábios conselhos diz que “ triste de ti, marido, que se topa com mulher generosa, tens de lhe sofrer a loucura, até te deixar em camisa, se ela é rica, tens de lhe aguentar a parentela, se eleges mulher formosa, vais ter a má sorte de a guardar com cuidado. Mas se a mulher é honesta e guardada, costumas aborrecer-te porque é de ti tão cuidadosa. Que mais queres que te diga, pobre casado? O que te digo é que se encerras a tua mulher em casa, ela nunca acaba de se queixar, e se fala quando quer, é um nunca acabar. Se a importunas muito, ninguém aguenta, se não lhe dizes nada, ninguém pode com seus modos, se deixas que ela tome conta da fazenda, não há fazenda que chegue, mas se és tu que tomas conta dos gastos, ela vai-te furtando a bolsa ou então vende algo da casa. Se ficas em casa, toma-te por suspeito, mas se chegas algo tarde, diz que és sem vergonha. Se a vestes bem, quer sair para ser vista, mas se não anda bem vestida
arranja-te uma ceia ruim e um jantar pior, se lhe mostras muito amor, faz pouco de ti, mas se neste mostras algum descuido, suspeita que estás enamorado de outra. Se negas o que perguntas nunca cessa de importunar-te, mas se lhe revelas algum segredo, não o sabe guardar. Se os matrimónios dos cristãos fossem como os dos gentios, em que cada um divorcia-se quando quer, haveria mais pressa até em descasar do que há em casar!”. E por aqui vai a sabedoria de D. António, que é longa e se estende por trezentas e muitas páginas, e há frases deliciosas como por exemplo esta:” La mujer parteira pocas vezes as bien casada”, “la mujer la menor gracia que tien es la hemosura”, “la mujer mala nunca deveria nascer”, há mesmo um proverbio antigo que cita: “A mulher e a espada podem mostrar-se, mas não confiar-se”. Vão longas suas diatribes contra algumas mulheres, e diz que “não estou de bem com as mulheres que não sabem outra coisa senão deitar-se à uma, levantar-se às onze, comer ás doze e falar até à noite. Para uma mulher boa, grande parte é estar sempre ocupada, pois a mulher ociosa anda sempre pensativa. Porque dos ociosos momentos e dos pensamentos levianos vem a fazer os maus recaudos”. Isto ele escrevia em Granada aos 4 de Maio de 1524. No próximo número voltaremos a este livro, para vos falar ainda dos escritos e do bom humor dum velho bispo galego.
Do bom humor dum velho bispo galego (2) Terras de Lanhoso – 31 de agosto 1998
O prelado mandava brasa em tudo; há uma carta ao Doctor Melgar, médico, deliciosa: “eu, senhor, mandei buscar aquelas ervas e secar aquelas raízes e às ordens do vosso aranzel as cortei e as moí e ainda as bebi, melhor saúde me dê deus à vossa alma, que elas eram para a minha gota, porque me aqueceram o fígado e me resfriaram o estomago. E quero confessar-vos, que como este não é o meu mal, não só não acertastes, mas ainda me fizestes piorar, pois com a frialdade meu estomago desregulou, e assim vos digo, que nunca aproveitei do Doctor Melgar, pois o meu mal não estava acima da cintura, mas da espinhela abaixo e eu não pedia que me purgasses os humores, senão que tirasses as dores e eu não sei porque me castigastes o estomago estando a culpa no tornozelo? Ao Doctor Souto falei aqui em Toledo acerca duma ciática que me deu numa coxa e mandou-me dar umas pontas de fogo nas orelhas e o proveito que disso senti foi dar à corte que rir e às minhas orelhas que sofrer. Falei também em Alicatá com o Doctor Cartagena e receitou-me bosta de boi, leite de rata e farinha de aveia e folhas de urtiga, cabeças de rosas e lacraus fritos e que fizesse um emplastro e pusesse na coxa e o resultado foi que não me deixou dormir três noites e paguei ao boticário que o fez, seis reais. Agora digo que renego os aforismos de Hipócrates de Avicea, de Sicino, os compostos de Rafis e os cânones de Erófilo, pois por eles veio esse maldito emplastro, o qual como não me deixasse dormir e ao menos repousar, não só o deixei de usar, mas ainda o enterrei, pois por uma parte me fedia e por outra me queimava. Não há arte no mundo que me faça perder os estribos, ou melhor, os sentidos, como é da maneira com que curam os médicos; porque os vemos desejosos de curar e inimigos de ser curados”. Para finalizar esta pequena amostra de como um alegre bispo tomava tento na vida de suas ovelhas, algumas frases da carta que dirigiu ao governador Luíz Bravo, que se enamorou sendo velho: “roga-me também na vossa carta que escreva uma carta de amores para vossa amiga na qual a persuada que se afeiçoe a vós, mesmo que esqueça um pouco a deus. Mas eu não sei quem é, nem conheço vossa amiga. Em tal idade, como a vossa, falso testemunho levantais em dizer que padeceis de dores e morrereis de amores porque, a velhos como vós, não os chamamos requebrados, mas requebradíssimos; não enamorados mas malfadados; não servidores de damas senão povoadores de sepulturas; não dos que regozijam o mundo, mas dos que perdem o juízo. Na vossa idade, pode ser que vós ameis, mas é mentira que sejais amado, porque a triste enamorada que vos escutar, não é por atenção a vossa pessoa mas pelo apetite da vossa fazenda. Numa idade como a vossa não se pode esperar já o sereno da noite, nem cobrar o frio da manhã, porque muitas vezes é necessário que entreis pela noite, para que não vos vejam e saiais antes que amanheça, para que não vos sintam”. Às vezes, D. António dava-se mal com as cartas que mandava aos amigos. Numa delas, uma tal D. Maria Padilla, viu a que havia escrito a seu marido e queixou-se dela: “ dizeis, senhora, em vossa carta que vistes a carta que enviei a vosso marido Juan Padilla e que bem parecia
ela era dum frade irregular, desbocado, atrevido e dissoluto, que em minha boca não há verdade, nem felicidade em minhas obras. Que subornei D, Pedro Lasso, que caluniei D. Pedro Giron, que briguei com o bispo de Zamora, que fui a favor dos governadores, que preguei publicamente contra a junta. E que depois que escrevia a carta a vosso marido ele anda triste, pelos conselhos que lhe dei, pensativo, amofinado e desditado. Que nunca paro de lisonjear os governadores, estas e outras me escreveis, indignas de serem escritas, mas como primeiro foi vossa mercê que deitou mão à espada, não se queixe se lhe deixar alguma ferida na cabeça”. A carta é longa e a tal senhora ouve-as muito boas. Habituados mais ao formal do que nos chegou até hoje nesse tipo de literatura, mormente escrita por um alto eclesiástico, estas Epistolas Familiares ajudam muito na compreensão dum passado remotíssimo em que as pequenas misérias eram exatamente iguais às de hoje. Ao recordálas, levantamos a poeira do tempo feita de ossos moídos e constatamos que na verdade quem tem razão é a bíblia ao dizer que não há nada de novo debaixo do sol, nem mesmo os bispos.
Sónia Castro, gravadora triste Terras de Lanhoso – janeiro 1999
Sónia Castro, a gravadora, esteve fora da Bahia por uns dois anos. Em longes terras foi procurar desenvolver sua outra vocação, que é a das artes gráficas, especialmente no sector da publicidade, o cinema, esse sedutor incorrigível, também foi responsável. E foi pena que assim acontecesse pois é sempre doloroso ver que alguém de valor empobreça sua terra, abandonando-a! Felizmente, mesmo nos outros campos de ação, isso está rareando cada vez mais, pois a Bahia está renovando e no renovo há precisão de quem dele cuide. Parece que já há também outras razões. Mas isso é com os sociólogos, esses pescadores de pérolas… a dura realidade, contudo, é que dessa grande artista, prémio nacional de gravura na Bienal da Bahia, não temos conhecimento da sua atual atividade artística ou mesmo, até, se ainda faz gravura. Mas o que aqui preparou, o conjunto da sua obra, a sua importância dentro do círculo mágico da cidade, a ação que desenvolveu junto a jovens principiantes, a sua boa vontade em colaborar na divulgação de coisas de cultura, sua marcante personalidade, tudo isso aponta a relevância da sua falta. Esperamos que um dia volte, disso quase até se pode ter a certeza. Esta cidade possui podres misteriosos, não pode haver duvida, tolo é quem ri dessa verdade. Quem tiver paciência de viver, que espere e muito verá! E não é porque a artista fosse autora de significativos trabalhos com o espirito e o sentido peculiar da sua mística, ou com o da sua representação plástica. Poucos trabalhos seus há sobre a terra onde nasceu, a gravidade estranha das suas grandes gravuras, a dimensão trágica daquelas terríveis mulheres de preto, a profundidade dos valores humanos nelas colocada, o instrumento da sua angústia, a amargura, enfim, é mais no sentido de se pensar nas vozes dum silencia coletivo e acusador, que o ambiente local lhe não deu em absoluto. Mesmo na composição de outros temas, sua veia a levava para onde não houvesse o gesto aberto e o riso livre, a mão lhe indicava uma rota de desilusão e desencanto. Numa das suas melhores e mais impressionantes fases, o papel da gravura era marcado tão somente com um mínimo de impressão negra, deixando um grande e profundo espaço claro, como se tudo estivesse perdido num horizonte de solidão, fora do mundo e do tempo real. A sensação que transmite é a dum lamento de vozes soltas num compasso lento e pausado, mas cuja persistência faz chegar sua litania ao fundo das consciências sem apoio. A valorização dos grandes espaços brancos contrapõe-se com a roupagem negra daquelas mulheres e disso resulta um espectro de extraordinário impacto, como um soco dado num rosto sem defesa. Com a inspiração de artista que sente e sabe o que a vida nega, há suas crianças de olhos fundos e tristes, rostos de alma sem esperança, contemplativos do erro e do amargor, queixas vivas de quem está ainda isento de pecado, mal preparadas para enfrentar um mundo no qual acabarão exatamente como aquelas mulheres a que a nudez não tira um propósito grego de tragédia.
Nem as flores que habitualmente ostentam, lhes transmitem um reflexo de alegria! A gravidade desses rostos jovens é antepassada, como a lenda de amor. E, talvez seja pensando que a dor cala mais fundo na alma feminina, por mais delicada, é que suas figuras são, quase sempre de mulheres! Ora isto não é Bahia. Bahia é outra letra de canção. E a densa poesia da obra de Sónia Castro é mais a letra severa e amargurada do fado. Suas vozes são as de longe, vieram no legado do sangue, ela não as pode abafar. Seus mistérios já estão desvendados, mas ficaram em cima do mar, como saveiros perdidos sem rumo. É mais do que evidente de que nada disso diminui a valia do seu conjunto de trabalhos, a humanidade é da mesma linguagem em toda a parte e todo o artista sensível a quer desnudar para que apareçam abertamente as cicatrizes das vergastadas que tem sofrido desde séculos. “O poeta é um fingidor”, disse um amargurado génio. Mas o pintor, esse, não pode fingir, vai de olhos fechados, no embalo da sua arte, se o é. Aquilo que pinta é o que não pode nem sabe dizer por outros meios. Sónia Castro, filha e neta de portugueses, deles recebeu a herança fatal de António Nobre, o do “livro mais triste que há em Portugal”. As suas gravuras seriam a melhor ilustração para a melancolia de “Só”- até na mesma ideia dum mar que deu a tantas mulheres o mesmo manto de luto das suas figuras hieráticas, tragicamente tão belas na grave compostura com que sustentam o milagre da sua dor sem desespero.
O quarto rei mago Terras de Lanhoso – fevereiro 1999
Dentre as mais aliciantes invocações bíblicas, pelo poético com que se envolvem em mistérios e em fascínio, está o narrado, aliás em parcas palavras, por S. Mateus (2.1-12) e que no calendário católico é conhecido pela festa dos Reis Magos. Parece que a nossa humana imaginação enfeitou os venerandos romeiros com atributos de realeza, coisa que não era de seus títulos, pois se orgulhavam de ser tão-somente membros de uma das seis tribos da confederação dos Medas, e tinham-se especializado em rituais e práticas religiosas, foram, porém, cercados pelos seus duma respeitosa admiração e chegaram a constituir uma casta distinta como um estado dentro de outro estado. Eram, segundo a fama, muito intolerantes e perseguiam ferozmente os adeptos de outras religiões. E alguns abandalharam tanto a sua prática, mercê de membros de classes muito inferiores que a exerciam, que breve eram mais conhecidos como feiticeiros e adivinhos. É claro que alguns levaram respeitosamente os seus estudos celestes e as lições vindas da Arábia: esses eram os homens graves e ponderados, dos quais deviam fazer parte Melchior, Gaspar e Baltazar, este um homem de raça negra, todos três guiados pela luz de uma estrela, até chegarem, sabe Deus em que estado de exaustão, a um estábulo onde, em Belém, as esperanças messiânicas profetizavam que havia nascido um rei – esse, sim – que salvaria o mundo. E simbolicamente lhe traziam com júbilo ouro, incenso e mirra. (ouro e incenso, todos sabemos o que são, mas de mirra, já não é tão comum o significado. Uma rara espécie de borracha que ressumava da Abissínia e da Arábia e que entrava na fabricação dos óleos santos e de alguns perfumes. Essa devia ser a lembrança de Baltazar. Também serviria para o embalsamamento, donde provém a palavra “mirrado”, isto é, seco, como acontece com os corpos assim tratados). E até aqui está nas escrituras pela descrição do evangelista que é um narrador admirável, conciso e até plástico. Fr. Angélico, Andreia del Sarto, Lipi, Perugino, Durer, Rubens, Poussin, são só poucos nomes de grandes artistas que recriaram esse momento mágico e terno, isto sem citar o que de puro e ingénuo saiu dos anónimos santeiros que espalharam seus poemas de barro e de madeira pelos presépios e lapinhas onde a boa nova foi, é e será, uma festa de alegria. Mas não só fica por aqui a recriação artística desse fugaz e duradoiro momento, que se tornou eterno e durou para sempre. Um romance existe, escrito por Michel Tournier, o grande escritor francês (Paris, 1924), entre outros já clássicos, como são Le roi des Aulnes e que se intitula precisamente Gaspard, Melchior & Balthazar (Calimard,1930), baseado numa lenda ortodoxa russa e já tratado por mais dois escritores (L. Van Dike e E. Schaper), levanta novamente a existência fantástica(?) do quarto mago, o também rei Taor, como fantástico é o facto de serem só três os outros magos, que parece que só o eram porque três foram as ofertas designadas pelo evangelista. Admiravelmente levantada a época, conta o narrador como Taor faz a sua caminhada e o que lhe sucede pelos desertos e vias que com sua comitiva
palmilhou, e das incómodas aventuras a que seu destino o levou. Em todos os momentos, no seu roteiro em busca do salvador, chegava sempre atrasado: quando esperava encontra-lo, já ele e os apóstolos tinham partido, e uma das mais impressionantes narrativas, cruel mas fascinante, é a que longamente descreve a sua passagem pelas Minas de Sal, onde jaziam seres descarnados, albinos pela total ausência de sol, inferno vivo chamado Sodoma, onde se acabara de julgar um inocente condenado a trinta anos de castigo nas minas. Indignado, Taor se entrega como refém, e aí fica cumprindo a infame pena até ao fim. De jovem que era, quando sai era agora um esquálido ancião. Mas a ideia de encontrar o salvador não morreu na sua fé. Só, sem mais nada a não ser a chama da sua persistência, tendo sempre o tempo contra si, vai ouvindo o que dizem pelos caminhos, escuta dos milagres, ouve falar em Lázaro, mas a sua casa está fechada, os vizinhos dizem que numa hora a pé talvez ele encontrasse Jesus e seus amigos em casa de um certo José da Arimateia. Como se não havia alimentado, teve uma vertigem, mas uma força misteriosa o reanimou. E a marcha que devia durar uma hora, durou três. Bateu à porta de José. Sim, Jesus e seus amigos estiveram ali reunidos para celebrarem a Festa da Páscoa, mas tinham ido embora: mais uma vez tinha chegado atrasado. Mas na mesa que ficara, restos de vinho tinto marcavam algumas taças e sobre a mesa havia pedaços de pão sem fermento que os judeus tomavam sacralmente. Taor teve uma outra vertigem: Pão e vinho. E aqui comovido, traduzo o último parágrafo do maravilhoso livro. “Estendeu a mão a uma taça e levou-a aos lábios. Depois tomou um pedaço de pão ázimo e comeu-o. Então, inclinou-se para a frente mas não caiu. Os dois anjos que o velavam depois da libertação o acolheram nas suas grandes asas, o céu noturno abriu-se em grandes clareiras e levaram aquele que, depois de ter sido o último, o perpétuo retardado, acabara de receber a Primeira Eucaristia.” E agora termino eu: o senhor não abandona nunca os que o amam, mesmo que cheguem atrasados…
Dalí para depois do Carnaval Para o pintor Domingos Silva, outro orixá do mesmo peji… Terras de Lanhoso – março 1999
Um dos mais fascinantes espíritos deste século foi, sem dúvida, o do espanhol Salvador Dalí (1904-1989), emigrado já para o Olimpo dos grandes artistas. Pela sua maravilhosa capacidade de se promover às custas duma verve, dum histrionismo invulgar e fazer com que os holofotes estivessem sempre em cima dele e da sua obra, que no fundo era o que pretendia, embora o muito que tenha legado à história da pintura, as suas frases são inesquecíveis de humor e desconcerto e pela sua inconformidade com os padrões da modéstia e um certo arlequinismo até na sua figura física, parece-me que sendo hoje a palavra “carnavalização” um assunto sociológico, muito ou quase tudo o que declamou, lembra a data que acabamos de viver, uns mais, outros menos, conforme a habilidade de cada um. E nessa ordem de ideias, recordo aqui os elogios que fez a si mesmo, pois que todas as oportunidades foram reduzidas para se fazer crer o mais espantoso dos seres mortais, isto até certo ponto, pois em determinadas áreas a sua esotérica influência, a mortalidade é vaga nuvem que não lhe fará sombra, pois tudo de seu se pode transformar num paradoxo que nem a morte terá coragem de enfrentar. Mas a graça inteligente com que defronta tudo, é mais um dos requintados prazeres que se poderão servir como sobremesa, depois do banquete gordo do carnaval. Dalí era imprevisível em tudo o que dizia ou fazia em público, e a ansia de ganhar muito dinheiro deu origem a André Breton, que aliás era seu amigo, para com as letras do seu nome compor o anagrama de “Avida Dolars”… e ao contrário da seriedade da sua obra, sua criação genial, sua contribuição para o surrealismo que depois abandonou, o seu comportamento era da mais esparramada imaginação levantina, não tivesse sido ele um mediterrânico curtido e experimentado. Mas o gosto é ler seu delirante palavreado, que tomo a liberdade de transcrever num dos seus relatos autobiográficos, catado ao acaso: “A.B. – O conjunto do que você diz e faz é por vezes muito criticado, isto porque faz questão de ser palhaço? S.D. – Um palhaço não. É preciso ser exato na terminologia: eu sou o divino Dalí. Você sabe que a palavra Arlequim é sinónimo de Hermes. E encarnação de Hermes pela interpretação de Mercúrio faz de mim um palhaço, logo um Arlequim. A.D. – Que é para você a importância da pintura? S.D. – Eu corneei todo o mundo, sobretudo os que permaneceram nas primeiras imagens do surrealismo. São os meus últimos quadros, só eles, que têm uma ambição pessoal sob o ponto de vista artístico, pois é deles que dei o máximo de mim mesmo. A.B. – Falemos de Velasquez seriamente. S.D. – O milagre de Velasquez é sua afeição ao Atlântico. Ora seu pai era português e trouxe, com o amor deste último pelas florestas e lugares húmidos, alguma coisa que compensava a aridez da pintura espanhola, condenada a uma aridez muito grande. O elemento principal que Velasquez nos revela é essa humidade marítima mesclada à desdenhosa
melancolia espanhola. O lado imperial e o lado fluido encontram-se subtilmente conjugados e servem de fonte longínqua aos impressionistas franceses. Sem Velasquez e os pintores que o imitaram, como sem o Museu do Prado, nem Monet nem Manet teriam existido. O mesmo fenómeno repetiu-se, não teria havido cubismo sem Juam Cris e Picasso. Braque nada mais é que uma visão edulcorada e parisiense do cubismo original. Assim é ainda na Espanha que encontramos as origens da arte abstrata com um máximo de expressão. A.B. – Uma palavrinha sobre titãs tradicionais: Miguel Ângelo, Tintoretto e Rubens. S.D. – Com exceção de Vermeer, Velasquez e Rafael, todos os demais são impotentes. A.B. – Isto não é reposta que se dê. S.D. – Você sabe que nós, os génios, somos todos mais ou menos impotentes a começar por mim. De todos os impotentes, Miguel Ângelo é o mais gravemente atingido. Se ainda vivesse seria um pintor radical socialista. A.B. – Você não tem vontade de ser vagabundo durante um ano? S.D. – Não. Tive a alegria de ver essa vontade nascer no cérebro de meu amigo Luis Buñuel. Uma vez em Madrid, ele se disfarçou e usando trapos imundos de vagabundo começou a pedir esmola aos seus melhores amigos. Estava irreconhecível e ninguém desconfiava. Foi uma experiencia maravilhosa: Buñuek entrou num café, estava coberto por excrementos e desprendia um tal fedor que seus melhores amigos, evidentemente, expulsaram-no a pontapés, com uma rudeza bem espanhola. Ora, numa reunião precedente, quando estava normalmente vestido, ele havia visto essas mesmas pessoas professar ideias humanitárias nobres, burguesas e hipócritas, de qualquer maneira, aos que ao meu redor me cortejam, disfarçam-se com a maior boa vontade. Basta que eu os encoraje”. Estas são só algumas das suas opiniões. Os mal-assombrados entendidos em Arte Moderna de vanguarda, não podendo com tanta superioridade, mostram-lhe os dentes. Mas sua obra é uma das mais belas criações das artes plásticas do séc. XX. A série dos “Relógios Moles”, entre outras que depois desenvolveu, é hoje uma referência indispensável em qualquer história de arte. Não sei se ainda valerá o conselho que deu aos jovens: “Para adquirir um prestígio durável e crescente na sociedade, será útil, se tiverdes algum talento, que na vossa juventude lhe deis um valente pontapé na perna direita. Depois ficar snob como eu”. O certo foi que o que disse constitui uma das deliciosas formas de fazer com que a inteligência não fique estiolada, mesmo na quaresma, sob a magia de alguns quadros seus de motivos religiosos sempre pouco convencionais.
Pintura jovem, o que será? Para Fernanda, Maria José e Amélia, as três graças da Casa da Botica
Terras de Lanhoso – abril 1999
Há relativamente pouco tempo assisti, aqui na nossa bela Casa da Botica, a uma exposição para o que me alertaram ser de Pintura jovem, pois a artista era ainda um belo brotinho, usando a expressão cunhada por Rubem Braga, o inexcedível cronista. Meio desconfiado pelo elogio da obra que me pareceu algo extemporâneo, mas subornado pelo convite feito tão calorosamente pelas suas incansáveis animadoras, sempre tão afáveis e gentis a par de outras magníficas qualidades de graciosíssimas presenças. Como era meu dever, compareci. E com a minha já tarimbada experiência de macaco velho, constatei que a citada exposição poderá ser mais lesiva aos simpáticos anseios artísticos da expositora, do que um simples sucesso de estima que não leva a nada. Quem a aconselhou a expor tão ostensivamente num lugar prestigioso como aquele, certamente não levou em conta que a arte é mais do que mostrar e até vender (Van Gogh só vendeu, em vida, um único desenho…), mas um aprendizado constante e atribulado, pois cada passo é sempre um passo novo e a criação, base de toda a arte, é sempre uma barreira que só um trabalho pertinaz consegue ultrapassar. Já dizia Picasso – sempre esse homem fatal – que a “inspiração existe, mas precisa encontrar-te trabalhando”. E experiências como aquela são sempre perigosas, não só para quem se atreve a expor, mas para a própria galeria, já que são conhecidas as exigências de certos artistas consagrados querendo saber quem foram os que os antecederam. A arte é uma senhora muito sensível que às vezes até se dá mal com os artistas e não perdoa nada a ninguém. Conheço certas galerias que só emprestam os seus nomes a exposições aprovadas por um conselho de entendidos, para que não caiam na vulgaridade das ações entre amigos, além de outros males do ofício. Mas, o que será pintura jovem? A dar crédito aos dicionaristas, jovem é aquele que está na idade juvenil, ou na juventude, ou até, como descende de um latim tardio a palavra jovialis de que nasceu jovialidade, pode redundar para um sentido brincalhão. Será a pintura jovem a que é feita por pintores jovens? Não creio que as duas ações, nem suas variantes, se afinem muito bem. Ou é jovem (no sentido inovador que tem ali sua juventude, a sua força) a pintura, ou é jovem o artista. Jovem pintor fazendo pintura jovem é uma anomalia que não pode alimentar exposições. Repito a anedota do mandarim chinês que perdeu a guerra por sete razões, sendo a primeira a falta de pólvora… O minueto que Mozart compôs aos seis anos de idade não era jovem, simplesmente dispunha em acordes clássicos, velhas regras de harmonia. Nem Picasso mostrou a pintura jovem, muito pelo contrário, claramente apresentou de início alguma coisa do antigo que havia aprendido na Academia de Barcelona. As suas tenras idades não condiziam com a obra para a qual se aplicasse a terminologia de jovem. E se estes critérios fossem válidos, igualmente se poderia pôr em causa qualquer como pintura velha, quer seja executada por velhos ou não. Mozart já não sendo jovem compôs música jovem, no sentido de
inovadora, e Picasso, foi depois dos trinta que começou a rebentar os cânones estéticos com a fase protocubista, essa sim, uma pintura jovem. Mas não me parece que a pintura caiba em qualquer enquadramento de jovem ou velha, desde que seja pintura. Da mesma forma que não há livros indecentes, mas sim livros mal escritos. A arte da pintura será sempre jovem, desde que a sua qualidade lhe reserve o sentido da perenidade. Haverá nada mais jovem que as obras de Leonardo, os sonetos de camões, esse velho de vinte anos, ou as peças de Shakespeare, analogamente? Nessa ordem de ideias, um pintor jovem, desde que qualificado como tal, poderá apresentar qualquer tipo de pintura, desde o académico mais rançoso, passando pela pintura anacrónica até ao mais insolente grafismo ou minimalismo menos convencional. O que deve importar é a realidade do praticante, já que pintura é coisa séria de mais para ser titulada de jovem ou velha, por mais nobres que sejam as intenções. E quem sabe se daqui a muitos anos, um desses festejados artistas, já em provecta idade, não crie as tais inovações que a sua ousadia faça parecer jovem? O mais jovem de todos eles morreu na flor da idade, com noventa e dois anos de idade. Chagal com seus noventa e muitos, Miró com seus noventa e dois, por que cálculos se avaliariam a sua juventude ou velhice do que gloriosamente pintaram? Para amparar a ideia de que a arte está além das fronteiras limitativas de qualquer espécie, não resisto a transcrever o que Lionel Venturi respigou dum texto de Apolinaire; “Acima de tudo os artistas são humanos que querem tornar-se desumanos. Procuram penosamente os traços de desumanidade, traços que não se encontram em parte alguma da natureza. Eles são a verdade e fora deles não conhecemos qualquer outra realidade. Querendo atingir as proporções do ideal e não se limitando à desumanidade, os jovens pintores oferecem-nos por vezes obras mais cerebrais que sensuais…”. E é nesta parada do tempo que esbarram as barreira da imaturidade que só se ultrapassam à custa do esforço e, às vezes até às raias do ignóbil e que não tem nada a ver com o sucesso do aliciante e do fácil, com a vaidade com que todos nascemos, com a tendência para a simples habilidade, para a queda para um artesanato às vezes enganador, para o canto melódico das sereias que nos dizem que somos os maiores, para os conselhos bem-intencionados dos que não fazem a mínima ideia dos espinhos duma carreira sofrida ou então para filosofias ingénuas como a daquele camponês que, colocado por detrás dum artista que se esforçava por captar a subtileza duma paisagem ingrata, murmura com os seu botões “ do que esta gente se lembra para não trabalhar…”. Mas não há trabalho mais sacrificado, suado, torturado, inglório, longo e extenuante que o trabalho de um artista que o leva a sério e que saiba tirar das sua lágrimas de raiva e de deceção o afago inconsútil do célebre soneto de Vinícius que anseia para as suas obras, como para o amor, “que sejam eternas enquanto durem…”
Três estórias dentro da história Para Sãozinha, que soube sair rindo
Terras de Lanhoso - julho 1999
Nesta época de festas e de calores preguicentos faz bem dar folga ao bestunto e espairecer a mente variando a rotina destas crónicas e contar assuntos leves e descomprometidos, tirados do baú das coisas esfarrapadas. E começo, com a vossa licença, por uma que acho deliciosa. Passou-se em Paris, na Belle Epoque, quando a grande artista Mistinguette no auge da sua fama e das suas plumas de vedeta máxima, ganhando e gastando por todos os carrinhos quanto queria, os poderosos a seus pés, as mulheres do grand monde rasgando de ciúmes as sedas e os tafetás, ditando modas e costumes, cantando o que depois ia para a boca do povo, exibindo no palco (e fora dele), o mais belo par de pernas do planeta artístico, sempre atraída pelos poderosos, íntima de tudo o que era dono de mando e dinheiro, resolveu convidar o próprio rei de Espanha, que então era sua excelência D. Afonso XIII, creio que avô do atual D. Juan Carlos, ao tempo exibindo sua corte naquela cidade. Reservou-lhe o camarote real e ficou resolvido que no fim do espetáculo iria cear com Sua Majestade. O espetáculo começou e nada de Sua Alteza: o camarote ficou vazio o tempo todo. Com seu temperamento de diva, furiosa, aguentou firme, pois jamais alguém a tinha tratado assim, a ela, a estrelíssima. À saída do teatro foi abordada por um diplomata que lhe disse ter Sua Majestade posto à sua disposição um carro para a levar à combinada ceia, onde a aguardava. Ela entrou, o carro partiu e no caminho mandou que parassem pois estava frente a sua casa. Disse então o real palafreneiro, admiradíssimo, vendo-a descer: - Mas, madame, o que vai dizer Sua Majestade? Resposta dela: - Com certeza vai dizer o mesmo que eu disse quando vi que não atendeu o meu convite. Mas só que o vai dizer em espanhol por supuesto… Esta outra foi-me contada pelo embaixador José Hermano Saraiva, quando era titular da embaixada do Portugal no Brasil. Como ainda a não vi divulgada e como hoje é pecado político falar de Salazar e do seu tempo, talvez por isso mesmo, relato-a: Quando da invasão de Goa pelos indianos, houve grande comoção popular, um pouco incendiada pelo próprio governo de então, isto pelos idos de 1961, imagine-se. As manifestações sucediam-se, havia comícios, Te Deums e, como não podia deixar de ser, invocava-se Fátima. Quem se lembrou disso foi o meu amigo Miguel Trigueiros, na altura no serviço diplomático, e que era tido como organizador de eventos dispendiosos, que sugeriu uma grande marcha silenciosa de Fátima a Lisboa, mas coisa monstruosa, de efeito internacional. É claro que teriam de ir falar com Salazar, a quem pediam conselho e licença. Resposta tranquila: - Não posso aconselhar nada enquanto não souber a quanto vai sair o quilómetro. (creio que tal marcha nunca se fez…)
E como anunciei três estórias, esta terceira é uma das mais fantásticas respostas dada nas mais fantásticas condições por alguém que estaria acima de qualquer suspeita na dúvida e na certeza. Passou-se com August Renoir (1841-1919) e está relatada pelo seu filho Jean Renoir (Renoir, Paris, Hachete). O livro é escrito com a grandeza do seu amor filial e a admiração pelo enorme pintor que ajudou a revolver muitas das cinzas mal queimadas do academismo. E há nele esta epígrafe que muito nos alerta no sentido crítico, de quem gosta ou não de narrações idênticas: “O leitor – não é Renoir que você apresenta, mas a vossa própria conceção de Renoir… O autor – Claro. A história é um género essencialmente subjetivo. “ Mas vamos ao nosso caso. Renoir, após uma vida inteira dedicada à sua grande arte, foi acometido por sintomas de doença grave, que começaram por lhe paralisar as mãos, ele que vivia por elas, que lhe definiam o que sentia e o transpunham para a tela, que eram a sua forma de expressão, lhe substituíam as palavras inúteis para pintar. Que só as mãos tinha como instrumento da sua genialidade, via-se ameaçado de se tornar inerme, o maior castigo só igual ao de Beethoven com sua surdez e o nosso Camilo, com sua cegueira. Mistérios insondáveis, respostas sem pergunta! Mas Renoir ia de mal a pior, e já mal mexia, só andava de cadeira de rodas, a aflição da família, o desespero dele, previa-se o desastre total. A angústia rodeavaos, corroíam-se com a ameaça que já estava ao seu lado. Mas soube-se que determinado médico, creio que inglês, estava estudando essa doença com grandes resultados. Não hesitaram. Pediram-lhe socorro, ele veio tratar o mestre universal da nova tendência estética. E começou bem. O tratamento era doloroso mas convieram que estava dando resultados benéficos. Tempos longos decorreram, mas eis que finalmente o médico, um dia, chamou a família e disse-lhes que o veriam andar novamente. Todos o rodearam, comovidos, o médico à frente da sua cadeira, disselhe que se levantasse, ele faz um esforço trágico, conseguiu levantar-se e o médico disse-lhe que andasse à volta da cadeira. Ele juntou todas as suas já gastas forças e com passos vacilantes, mas sem ajuda, deu-lhe a volta. Viu-se no seu semblante um doloroso movimento de dúvida e de incerteza e, quando ficou de novo na sua frente, sentou-se e disse esta frase que poucos compreenderão, mas os que amam a arte sentirão com os olhos toldados: - Na verdade, parece que posso andar. Mas o esforço que vou fazer vai ser tanto, que vou precisar dele para pintar. E, conta o filho na emoção de quem o recorda angustiado, que todos choravam. Com o pincel amarrado à mão e alimentado pela chama de génio e da força de quem sabe que ao homem a quem foi dado o poder de criar beleza a dor poderá matar, mas nunca prevalecerá como artista, pois este permanecerá eterno na sua criação, foi nele se extinguindo suavemente o sopro divino com que Deus o distinguiu.
Dois livros ao som da Bahia Terras de Lanhoso – agosto 1999
Livros vindos de longe oferecidos por amigos, são como abraços dados de bem perto, pois trazem a mesma carga de emoção, e o calor da amizade que deles irradia aquece da mesma forma e conforta como se a própria voz lhes tangesse os sinos da amizade. Eu acho que, mesmo querendo dizer o contrário, todo o livro é um sinal de amor. E daria para eu continuar afirmando que todos os que os amam são por eles amados (é absolutamente indispensável), sabem-no tão bem ou melhor do que eu. Eles são a fala muda dos autores – quando são amigos quem os escreve, ou quando não, os porta-vozes dos que encontram neles a sua própria. E dentre os que mais recentemente recebi, calaram fundo no meu pequeno mar de querer bem, A casa do rio vermelho da autoria de Zélia Gattai e Memória da Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus), assinado por Rodolfo Teixeira, um e outro bem mais do que o que Borges achou por completo. Bom, sobre o livro de Zélia, sobre o muito que dele poderia escrever, sobre o seu poder evocativo, sobre as personagens que nele vivem e viverão, sobre o perfume, ou perfumes, que das suas falas se ouve, sim, porque certos perfumes ouvem-se, por tudo o que nele se vê falado, escrito ou até sonhado, pois muito passado é também sonho e lembrá-lo é a melhor forma de o sonhar, por tantas pessoas que no meio do livro param para nos falar e quando damos por ela também estamos parados a ouvi-los. E aí entra uma gargalhada de Carybé ou uma frase de Jorge Amado e tudo pára para os escutar. Calá conta outra história que, sendo a mesma uma, tem sempre graça nova, e sobre aquele mundo que já era fantástico no seu vivido, mas que por artes do amor passou a ser real, talvez porque Lalú esteja na minha frente ralhando com James, talvez porque Zélia mandou Eunice trazer-me um sorvete de manga, talvez porque Alfredo Machado esteja batendo à porta, talvez porque Paloma, sorrindo, venha tomar minha bênção, talvez porque nossos netos comuns entrem com sua alegria, talvez porque Pickwick venha lamber a minha mão, talvez porque eu próprio enxugue minhas lágrima numa hora difícil na minha vida na doce hospitalidade dos donos da casa verde do rio vermelho, talvez porque minha mãe também os amasse, talvez porque todos nós entrássemos de vez e nunca mais de lá saíssemos, talvez porque lá morasse a bondade humana e a ternura nunca pedisse para entrar porque morava já no quarto do casal, sei lá porquê, só sei que nunca saí dessa casa e talvez esse o motivo por que nunca lá entrarei. Nem entrei. Para mim é difícil escrever friamente sobre esse livro e ao lê-lo, ou melhor, ao (como direi?) acaricia-lo? Cheirá-lo? Sei lá como, ouço as vozes de tantos amigos que a magia de Zélia de Jorge me fez conhecer e de outros que já não podendo escutar, mas só ouvir, continuam vivendo para além de mim. Mas vivendo, porque ninguém lhes roubou a eternidade que os irmãos recebem quando nascem. E aqui relembro a frase de Junqueiro: “Antes me estourem os olhos do que me sequem as lágrimas”. E o sorriso triste que nasceu antes e morreu depois, que as não lave. Pois o livro de Zélia, amoroso, terno, mais olhado do que escrito,
mais falado do que lido, mais vivido do que pensado, mais real ainda do que o que aconteceu, pois este já se foi e o que está nas memórias pintadas ao vivo pela autora, tem a mais o selo da verdade e do amor, sem o qual, aquela não serve para nada. Talvez não escrevendo mais nada, eu possa dizer tudo… Mas, ainda sobre o signo do amor, mas do amor que nasce da saudade e da gratidão, da inteligência dada à cultura, da bondade dada à dedicação, do respeito dado á educação, do caráter dado a toda uma vida de trabalho e interesse pelos outros, quaisquer que eles sejam, constância e fidelidade aos valores com que armou a sua vida de médico e professor emérito, de extraordinário profissionalismo que tirou dos imutáveis valores da amizade e respeito pelo ser humano, da ciência posta a bem dos que sofrem, do tudo que uma sociedade lhe deve pela sua forma inigualável de ser, de compreender, de aceitar, de envolver com que o clássico chamou “o leite da bondade humana” e que ele temperou com o indispensável sal da ciência de saber, um outro livro comovedor também me veio bater em cheio no gosto de gostar. O título é um pouco hierático de mais para um recheio tão pleno de compreensão e de contexto em que um homem notável se abre no seu cosmos de universitário, no mais nobre e lato sentido da palavra, não se chamasse ele Rodolfo Teixeira e o livro Memória Histórica da Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus. Parece incongruência que, cá de muito longe, cite um nome que, ainda que ilustre, se move dentro duma esfera que ele nunca quis ver mais dilatada. Mas como também já é conhecedor desta aldeia e casas velhas de São João de Rei e por muitos já conhecido e admirado, citar-lhe o nome ilustre é também homenageá-lo, mesmo contra vontade, eu sei, ainda que para isso saiba que mais vale para nós, do que para ele a citação… É este livro uma maneira de tratar dum assunto aparentemente árido, como educação universitária e correlatos, duma forma literária agradável e com a conceituação original duma visão abrangente e incisiva. Só um grande médico a poderia ter, pois nela o autor imprime em cima de algumas palavras vulgares sobre o étimo, a delicadeza duma personalidade invulgar e dum carater moldado em cima dessa personalidade. Médico notável, revela-se um escritor de superior craveira como alguns eleitos para quem o clássico escreveu “que não fazem mal as musas aos doutores…”. Mas se Graciliano Ramos se revelou escritor por via de um simples relatório sobre uma prefeitura do interior, porque não esperar que da aparência, da vivencia e da funda humanidade deste médico e dessas qualidades de analista de almas de cujos corpos também cuidou, não poderemos esperar mais um dos grandes das nossas letras? A lista dos que o antecederam desse ofício, é incomensurável… e os enredos humanos são sempre a eterna tarefa que aos médicos a vida reserva para a sua faina ingente de transformar em doçura e paz, a dor e o sofrimento. E são livros como estes dois, que nos confirmam que para escrever são essenciais haver gosto, alma e espirito. Poderá ser escritor quem os não tem?
Fernando Sabino, prémio Machado de Assis Terras de Lanhoso – setembro 1999
O escritor Fernando Sabino, pelo conjunto da sua notável obra, acaba de receber o prémio Machado de Assis que lhe foi concedido em dia e hora de inspiração pelos gloriosos membros da gloriosa Academia Brasileira de Letras. O prémio é só honorífico, pois seu valor pecuniário é digno de ser inscrito no rol das esmolas, mas o prestígio da instituição e dos antecessores agraciados, bem como o nome do Patrono, elevam-no à cumeeiras da mais respeitável aceitação por todos os que nesta triturada língua, a amam e auferem dela as maiores emoções estéticas. É certo que é necessário saber escolher entre o que prolifera no meio de tão vastas searas, e raros são aqueles que se engrandecem pelo conjunto das obras que assinam. Mas assinale-se que o galardão (não sei se a palavra serve para este caso, mas parece-me que sim) atribuído, foi para o conjunto de tudo o que tão bem escreveu e que agora está dando mais ainda o que falar. Não sou crítico de coisa nenhuma, mas sei do que gosto e dos motivos porque gosto. E não sou afeito a dar opinião sobre livros, a não ser se estes parecem mais do que livros, quando falam, pensam, cantam, riem, choram e fazem tudo o que gente normal faz. E como escrever bem é um ato de boa educação, como disse Jean Cocteau, todo o livro é também um ato de amor. E fora disso creio que não há salvação. Se o escritor que se preze deve ser todos os seus personagens e estar dentro da alma de cada um deles (passe o cacófato), convencer os leitores que também caberiam no livro e que sairiam chamuscados da fogueira do enredo ou que muitas das gargalhadas ou dos soluços vividos poderiam ter vindo de suas gargantas, então, creio ser uma vitória, talvez a lastimar, mas mesmo assim uma vitória. É claro que há outras grandezas, mas essas não são do meu repertório de primeiras letras. Ora, ler Fernando Sabino, é mais do que isso, pois é estar participando talvez das desventuras do homem nu, do grande mentecapto, do menino do espelho, de tantos e tantos amigos de infância que são todos os seus personagens, sem excluir Dona Zélia, é claro. Fernando Sabino tem o condão de parecer que não escreve, escrevendo como raros em qualquer das línguas em que penamos as nossas habilidades. É evidente que o bom gosto peculiar indispensável e exato como receita de farmácia antiga, necessário para tirar do nada o máximo com que ilumina as linhas da sua prosa fluida, quase portátil, dúctil, meiga, infiltrante, leve e recortada no detalhe como figura que serve para iluminar através e cuja sombra fica gravada com a graça de quem a pensa rindo baixinho, é tão-somente um dos seus segredos mas que de nada valeriam não fosse o tempero de aparência trivial da sua arte de aquarelar em palavras o que muitos pintores tentam, mas não conseguem fazer em cor. As suas crónicas, e aqui recordo o nosso grande Ruben Braga, tem sal mas não são salgadas, não tem açúcar e são doces. Algumas derretem na boca lembrando um bom Muscadet, que se evola ao beber. Ensinam, mas não se pode aprender o que ensinam. E como grande ilusionista das letras pátrias, transforma em miragem aliciante e com uma simples frase sem qualquer costura literária o mais banal acidente de percurso. E, para
inveja de muitos, minha também, às vezes mistura palavras difíceis, numa frase que seria pedante, não fosse de tão feliz acabamento. E aqui lembro o que disse Alçada Batista sobre Eça: “escrevia tão bem que às vezes nos esquecemos de que seus romances são tão fracos”. Aqui não é o caso, mas a frase é de efeito e ao jeito do meu amigo, mas serve para aplicar “el cuento” ao quanto vale a grande arte de bem escrever a toda a sela… Pode ser que o seu mistério esteja também na sua arte de conversar, de saber ouvir, de praticar com enormes personagens deste mundo e do outro aos quais dá e tira o que todos possuem de melhor. Nomes que com frequência cita, deixam-nos a boca com sabor de velho whisky sem rótulo. Deve ser também por isso e por outras artes a que sou alheio, que o que está na orelha do seu livro mais recente, poderia figurar na sua pedra de armas: “o que é bom, é belo”. Que no mais, tem todas as vantagens, inclusive as de agir até sobre quem o não aprecia… Mas será que a Fernando Sabino se aplica o que Blaise Pascal disse, lá dos fundos do séc. XVII?: “quando nos deparamos com um estilo natural, ficamos satisfeitos e admirados, pois esperando encontrar um autor encontramos um homem. Ao contrário, outros também com bom gosto e que vendo um livro pensando encontrar um homem, surpreendem-se ao encontrar um autor.” Ora o que é justo e comovedor de assinalar, é que no caso de Fernando Sabino são de igual grandeza as suas medidas de homem e de escritor. Mas não há como defini-las. Pelo menos eu não o sei fazer.
Acerca da exposição de Fernanda Barros Terras de Lanhoso – novembro 1999
Fernanda Barros volta a expor uma expressiva mostra da sua confirmação estética, ia a dizer gráfica, pois afirmando-se mais como desenhista é nessa árdua seara que vem colhendo os melhores e mais evidentes resultados. Mas definiria incorretamente, pois a técnica que ora apresenta melhor a classifica como plástica, visto terem sido executados com a técnica da aguada, temas de uma forte sensualidade feminina. A linguagem com que se exprime não abandona nunca a delicadeza do seu temperamento e disso tira a essência do que plasticamente tem a força com que plasma a subtileza dos tons e das manchas com que nos fere a emoção. Pena foi que não tenha saltado as barreiras da monocromia do castanho e trabalhado com as cores que tão bem administra, mas afinal, só a ela cabe escolher o que melhor convém ao que os franceses chamam de “etat d’ames”. Esse é um dos maravilhosos mistérios da arte e contra eles não há, infelizmente, qualquer salvação… E quem escreve sobre tão delicados assuntos ligados à criação artística, em qualquer setor onde esta brote, deve estar prevenido contra tudo o que nem possa imaginar, já que é dom do criador rasgar as regras preconceituais em voga, pois só a ele cabe definir-se com os métodos de expressão que ache melhor sirvam à sua intuição. O comentador pode dizer que talvez fosse aquela ou outra forma a melhor concebida para interpretar o seu sonho, mas será em pura perda, pois só haverá um juízo final que a mais ninguém pertence, a não ser àquele a quem Deus deu essa graça. Creio ser este o caso de Fernanda Barros e tudo o que sobre estes últimos trabalhos se possa escrever, não passará duma inopinada sugestão, sobre a qual a artista possa meditar e tirar dela – ou não – qualquer ilação. E. com isto, quem escreve se deve considerar muito gratificado. Como é o caso… É da psicologia da especialidade de que uma das faculdades maiores é atribuída aos que lavram nestas vinhas da ira e da beleza. É a de criarem para seu uso exclusivo as suas próprias leis, inclusive sociais, quanto mais as estéticas… por isso, a muitos, o vulgo apelida de excêntricos, ou seja, que não se servem do mesmo centro que orienta a maioria. “Estão noutra” – como se diz hoje, e muito apropriadamente. E é por isso que… Bem, a minha opinião talvez não seja a mais acertada, pois vejo esses comportamentos duma maneira emocional, dado convivências fraternais inesquecíveis. Deixo a cada um que porventura me ler e se o quiser fazer terminar a frase acima só anunciada, com suas opiniões pessoais.
A inesquecível arte de amar, de Ovídeo Terras de Lanhoso – novembro 1999
De vez em quando é oportuno lembrar certas coisas bem antigas, já arrumadas no velho baú onde os tempos perdidos jazem em paz no seu leito de poeira. Parece que o contraste entre o vago e esfumaçado passado e o furioso ranger de dentes dos nossos irrequietos dias, faz levantar uma curiosidade adormecida. Somos muitas vezes tentados a pensar que se tudo isso está enterrado, é porque morreu. Ora aí é que mora o ledo engano, pois tem muita coisa que pensamos morta e sepultada, e afinal está tão viva e ardente como a nossa curiosidade. E dentre essas coisas já coberta talvez pelos séculos, as mais surpreendentes estão já registadas em livros de austero aspeto, mas ainda espertos e lúcidos que muitas vezes olhamos com certa desconfiança e respeito, quase sempre pela impressão exterior de antiguidade. Mas a informação com que diariamente somos bombardeados, vindas de todos os lados, a todas as horas, provocando novidades sem as quais passaremos por dinossauros, entre os quais me conto, pois devo ser o último lusitano alfabetizado que ainda usa uma velha e anacrónica máquina de escrever manual e olha os computadores como seres de autoflagelo masoquista. E por isso, envenenados diariamente por esses terríveis agentes corruptores e diabólicos, quase mais ninguém se dá conta das maravilhas que herdamos e indelicadamente metemos no tal baú do empoeirado espólio, como as necrópoles de apodrecimento real de reais cadáveres à espera de ficarem mumificados para serem então depositados nos panteões nacionais. Ora entre tantas coisas que consideramos ultrapassadas, há uma pela qual tenho a maior consideração e ternura que é a arte, ou melhor, as artes. E como a mais merecedora de cuidados, a chamada Arte de Amar. Para encurtar a conversa, vou logo direto ao livro que tem esse nome, de autoria dum tal Publio Ovídio Nasão, mais conhecido só por Ovídio, nascido em Aquila, exatamente no primeiro dia da primavera do ano 43 a.C. Dele escreveu meu saudoso amigo David Mourão-Ferreira que é “o mais completo metódico e pitoresco sobre o que a antiguidade nos legou, fonte de permanente curiosidade pela sua ousadia, douta sabedoria sobre a psicologia da mulher, limpeza de linguagem mas cujo autor hoje seria considerado um desavergonhado machista”. David, na sua obra Imagens da Poesia Europeia (Artis, 1970) faz uma tradução parcial desse poema, talvez mais criação poética transposta para a nossa língua por um dos seus mais sensíveis artistas da palavra, versos em cujo ritmo há mesmo o ar latino e a verbe clássica, como que vestidos pelo espirito de Ovídio, numa linguagem que ainda conserva os mesmos vincos e o mesmo perfume. Mas como o que procuro transmitir é o doce sabor dos seus conselhos no seu pitoresco, aproveito a tradução feita em
prosa pelo francês Jean de Jaurégui. São dois mil anos decorridos sobre estas sábias sentenças, mas da sua verdade quase tudo ficou, como vereis: “ O fórum – quem acreditaria? – é lugar apropriado para conquistas amorosas. Ali o jurisconsulto cai muito frequentemente nas rédeas do amor”. E aconselhava muito os teatros: “ caçai de preferência nos teatros públicos, onde as mulheres correm ataviadíssimas às festas solenes. Vão para verem e serem vistas. Sentai-vos junto à dama, juntai, quanto possível o vosso corpo ao dela e tocai-a. Falai de assuntos triviais e se por acaso cair pó no regaço da jovem, sacudi-o com os dedos, e quando não haja pó, sacudi-o também”. “Os homens não dissimulam bem, as mulheres encobrem melhor seus apetites”. “Procurai antes de tudo entrar em relação com a serva do objeto amado. É também fácil o ataque quando se sente ofendida pela amante do marido”. Mas recomenda: “ Não deveis começar o culto de Vénus pela criada”. “E sempre vos preocupeis com o aniversário da vossa amiga, não tendes por desventurado o dia dos presentes”. “Mas não sejais parcos em prometer que nada se perde com isso. A esperança alimenta durante muito tempo” e diz que é muito útil “consagrar muito tempo aos caprichos da dama”. Mas, “aos homens quadra-lhes bem certo desalinho, mas vesti a toga limpa e bem cortada. Não tenhais a cabeça ridiculamente rapada mas trazei cabelo e barba cortados por mão hábil. Evitai vos cheire mal o hálito e o corpo”. “deveis também ocupar-vos em adular o marido e se conseguirdes amizade, pode ser-vos muito útil: tende por verdade, não poucas vezes se começa a namorar por brinquedo e acaba sendo verdade o que foi simulação”. É moralizante: “cumpri os tratos, fugi da fraude, enganai, se souberdes, só as mulheres que são raça pérfida na maioria é que devem cair nos mesmos laços que armaram”. “Nunca louves ante o amigo a pessoa amada, fiado em vossos elogios tentará substituir-vos”. E entre muitas outras recomendações sábias, “chamai ágil à que é pequena e elogiai as boas carnes da gorda”, “às de rosto largo vai-lhe bem o penteado repartido sem adornos. As de rosto redondo requerem o cabelo atado, com um leve riço à frente e as orelhas à mostra, mas dá graça a muitas o cabelo como que despenteado. Tudo depende da graça com que vá despenteada ao funeral do marido, encontrar outro”. O poema é grande e vai até onde, por descrição não devo continuar. E se muitas vezes o poeta foi ultrapassado pelos costumes, no essencial não perdeu o viço. Mas que é saborosíssimo, lá isso é. E se quiserem mais, é só pedir… vale a pena!
O mito de Nostradamus Terras de Lanhoso – dezembro 1999
A humanidade sempre andou sujeita a ter medo do sobrenatural e um dos seus mais ferozes pavores era, e é ainda, o medo do fim do mundo. Antigamente é que essas pasmosas alucinações criavam histerias coletivas e não é preciso ser tão velho assim, ou recorrer a livros da especialidade – de que há milhares - para o confirmar. Nossos reverendos abades de outrora cultivavam essas amedrontações com o fim de manter os rebanhos dentro das cercas da boa ordem canônica, e tome sermões apregoando as chamas do dia final e todas as suas terríveis ameaças! Ainda anda na cabeça de muito boa gente o velho refrão sobre este nosso mundo: “ Aos mil chegarás, dos dois mil não passarás” e outras não menos simpáticas previsões. E se hoje, com os recursos da ciência já domesticando nossos tímidos instintos, nos admiramos que ainda haja muito boas almas para quem isso é uma fatalidade, se cutucarmos a história com vara curta, dar-nos-emos conta que, afinal, os chamados rumores do apocalipse, com todas as suas misteriosas definições bíblicas, desde séculos (a literatura específica diz que tudo começou nos fins do séc. XII) nos vem dando conta de que essas variações são cíclicas e muitos tinham como verdade que o mundo “se renovaria todos os mil anos”. E ainda há poucos meses uns tresloucados profetas do caos previram que ele teria que acabar no dia tantos de tal às tantas horas, e houve até um costureiro de fama internacional, que, diz-se, se desfez do que possuía e esperou a hora fatídica, que, como todos sabemos por experiencia própria, ainda não soou. Mas parece que esse gesto foi um golpe de safadeza do aperaltado modelista, que andava mal de finanças e pensou que dessa forma se veria livre dos credores. Para isso, muito serviam os astrólogos e suas constelações e as profecias de alguns iluminados que deixaram pelos caminhos da história os traços dos seus passos, até agora só visionários… Mesmo grandes santos embarcaram nessa canoa furada e até nobres papas como por exemplo, Leão X, apregoaram terríveis encíclicas! Mas são fenómenos que deixaram marcas até hoje, e figuras de enormíssimo relevo intelectual como o padre António Vieira se impressionaram com profecias (neste caso do Bandarra, o que o levou aos tribunais da Inquisição). Ou até o meu inesquecível mestre que foi Agostinho da Silva com o seu messianismo ofuscante do Quinto Império, nos abalaram a razão com seus argumentos geniais; por isso mesmo é que cada vez acredito mais no provérbio popular que reza que ninguém deve dizer “desta água não beberei”.
Mas dessas figuras cujos nomes estelares atravessavam séculos e razões, talvez o maior seja o do tal Nostradamus, de que tanto se falou e escreveu por altura do último fim do mundo que não houve. Era esse senhor nascido em 1503 e morto em 1566 em França, estudou medicina do tempo em Montpellier. Depois começaram as suas profecias escritas em verso e em estrofes de quatro. No princípio, publicou pequenos almanaques que tiveram tanto sucesso, que o animaram a ir mais longe: lançou-se então a prever a história do futuro. E de tal forma que reis e príncipes o agraciaram com benesses já que sempre previa para os senhores vigentes as mais auspiciosas novidades, de acordo, é evidente, com os acontecimentos. E o que dizia para os distantes e futuros anos, o fazia sempre tão obscuramente, que quase sempre adivinhava… Muito se tem escrito e ainda se escreverá sobre essas profecias, mas quem deve estar perto da verdade, se não mesmo dentro dela, é um certo Georges Minois, que na Histoire de l’avenir em 1966 escrevia: ”As profecias ante-datadas, sejam textos duma tal obscuridade que se prestam a qualquer interpretação, faz com que as possamos decifrar só após o acontecimento, quando já não apresentam qualquer interesse, sejam verdadeiros embustes ou meras coincidências, sejam o resultado dum trabalho de clarividência, pura operação de inteligência a partir de dados passados e presentes. De qualquer forma, o interesse nestas predições reside em que elas nos revelam a época e o meio onde foram realizadas”. O certo é que em astrologia, ou antes, astrofilia, como se dizia então, tinham foros de ciência, pois na biblioteca de Carlos V, no séc. XVI, nos seus novecentos volumes, contavam-se nada menos de cento e quarenta sobre astrologia. Nostradamus, não obstante o que suas previsões possam apresentar hoje em dia, séculos passados, muitas vezes foi bom poeta, mas na realidade foi um notável historiador. E como diz Roger Prevosta no seu Nostradamus, le mythe et la realité (Paris, 1999), livro em que se exaure o assunto, “certamente nós é que ganhamos com isso”. E quanto ao resto é como dizia Sancho: “Cosa veredes que non queredes”.
Presépios e saudades Terras de Lanhoso – 18 de dezembro 2000
“Acenda-se Jesus nos olhos dos meninos…” Assim diz o maravilhoso verso de David Mourão Ferreira, ligando S. Francisco de Assis ao evento de Natal, pois um e outro estão ligados pelo presépio e pelo amor que deles irradia em clarão, um poema de Vinícius reza-nos versos duma ternura imortal: Lá vai São Francisco De pé no chão Levando nada No seu serrão Dizendo ao vento Bom dia amigo Dizendo ao fogo Saúde, irmão Lá vai São Francisco Pelo caminho Levando ao colo Jesuscristinho Fazendo festas no menininho Contando historias Prós passarinhos Mas há tanta coisa bela escrita sobre presépios, sobretudo em língua portuguesa, italiana e espanhola, que são as que conservam o mesmo étimo que vale a pena relembrar. A formação da palavra presépio, composta pelo prefixo “pre” e o substantivo latino “saepes”, que por assimilação deu “séve” ou “sebe”, como era usada a palavra no século XIV, e que no incipiente vernáculo daquelas priscas eras, era mesmo “preseve”. E “seve”, como é hoje e o foi sempre, é uma vedação feita com varas entrelaçadas; neste caso, a vedação onde se colocava o alimento dos animais. Entende-se pois “preseve” seria o que ficava antes do lugar onde os animais tinham a manjedoura. Quanto à forma cenográfica que depois se tornaria ponto de justa adoração, conta a lenda que teria sido S. Francisco quem primeiro a evocou. E não poderia ter sido outro, pois nada melhor se casa com a fantasia adorável desse iluminado louco de Deus do que a pureza humana desse momento sublime. E essa tradição continuou na Itália e teve o seu máximo esplendor em Nápoles, como nos deixou ensinado mestre Reynaldo dos Santos. E os Franciscanos a espalharam pelo mundo latino, mas em Portugal e Espanha ter-se-iam desviado os efeitos cenográficos dos napolitanos, onde teria havido reflexos do teatro italiano, vindos da segunda metade do século XVIII, Em Portugal, a sua tradição fixou-se em processos mais naturalistas, pois seu povo era mais sensível às romarias e festas de adro e era ali que ele mais gostava de ver as representações.
Depois a devoção exigiu mais requinte, uma evolução estética natural, alcançando por vezes formas que hierarquizaram a sua arte, para usar da palavra do inesquecível mestre. Machado de Castro e António Ferreira se envolveram de tal forma com presépios que, suas figuras, têm até hoje, para a escultura portuguesa, a mesma dimensão das Tanagras. E saíram até das suas fronteiras, como o comprovam as que constituem os grupos que ilustram especialmente os museus de Espanha. Vinda da ilha da Madeira há outra expressão carinhosa para os designar: são as lapinhas, embora nas restantes ilhas, esta expressão se tenha perdido, como constatei. Lapa é uma pedra estreita e plana, servindo para formar grutas onde os pastores se abrigavam: daí lapinha ser uma pequena gruta acolhedora donde a devoção tão minhota e montanheira de Nossa Senhora da Lapa. Mas há subtilezas na definição: para alguns, “Lapinha” terá que ter mais que o conjunto da pequena família, pois deverá ter como fundo uma representação topográfica qualquer. Diogo de Macedo regista na ilha de S. Miguel um enorme camarim de cristais onde havia dezenas de quadros isolados com cenas do Velho Testamento, e centenas de figurinhas feitas de pasta de arroz, miolo de pão, cartão e sabugueiro. Hoje, estes presépios estão muito estudados, sendo uma fonte de informação sobre vestuário - gabões, capotes, capas, blocos, botas, menos de pescadores, não se sabe porquê, nem religiosos, pois naquele luminoso dia não havia ainda frades nem freiras… Artisticamente, os presépios nunca foram levados muito a sério, apesar da altura estética a que Machado de Assis os elevou. Mas muitos analistas de arte achavam essa faceta um pouco lateral para quem teve a ousadia de fundir a monumental escultura de D. José. Mesmo o lindo conto do presépio vivo de Grécio, louva mais S. Francisco do que o Menino Jesus… Muitos desapareceram por incúria, outros estão sendo devorados pelo desinteresse, a maioria desagregada, e cada figura, solta e perdida, hoje objeto de cobiça dos antiquários. Poucos são já os que ainda conservam juntos, um berço rústico, um menino sorrindo, uma mãe ajoelhada ao lado, embevecida e uma figura de homem extasiado, ovelhas pasmadas, um boi de olhar meigo, um burrico faminto, uma manjedoura pobre, como a mais terna e suave do mundo cristão. Mas esse é o natal, aquele da noite do nascimento, em que Deus mostrou o seu dia, como disse Gil Vicente. E ninguém melhor do que os poetas, como o próprio S. Francisco, no Cântico do Sol, poema feito presépio à semelhança do auto, para sentir o cheiro dos ventos eternos. Altíssimo, onipotente, bom Senhor,teus são o louvor, a glória e a honra e toda bênção. A ti somente, Altíssimo, são devidos e homem algum é digno de te mencionar. Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente meu senhor o irmão Sol que, com luz, ilumina o dia e a nós. E ele é belo e radiante com grande esplendor: De ti, Altíssimo, carrega significação.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Luz e as estrelas, no céu as formaste claras e preciosas e belas. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Vento e pelo ar e nublado e sereno e todo o tempo pelo qual dás sustento às tuas criaturas. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Água que é muito útil e humilde e preciosa e casta. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Fogo pelo qual iluminas a noite e ele é belo e jucundo e robusto e forte. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa Mãe Terra que nos sustenta e governa e produz diversos frutos com coloridas flores e ervas. Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor e suportam enfermidades e tribulações. Bem-aventurados aqueles que sustentam a paz porque por ti, Altíssimo, serão coroados. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Nossa Morte Corporal da qual nenhum homem vivente pode escapar. Infelizes aqueles que morrem em pecado mortal; bem-aventurados aqueles que se encontram em tua santíssima vontade porque a morte segunda não lhes fará mal. Louvai e bendizei a meu Senhor e agradecei e servi-o com grande humildade. São Francisco de Assis
Culpas e desculpas Terras de Lanhoso – 2 de abril 2001
O prometido é devido – como é da tradição oral e portante há que a cumprir. E se se havia dito que seriam dadas as razões porque suspendi a continuação de Relembranças, uma delas foi porque desejava algum indicio de que essas velhas recordações tiveram ou não algum interesse, visto que raríssimos foram aqueles que se manifestaram a respeito, o que aliás é de aceitar como bom sinal, pois o costume é que quando algum escrito – e não só… - não agrada, as vozes correm rápidas e o repudio feroz propaga-se á velocidade do som. E quem nunca leu, nem tão pouco o que provocou tal eco, faz-se arauto dos que estão em desacordo. E os escassos leitores que receberam com simpatia as Relembranças, com bonomia as acolheram e tudo ficou por isso mesmo. Assim, o escriba que contraria o senso do mais cómodo, sabe dessa azeda reação, o que não acontece a quem leva na onda da aprovação aquilo de que gostou. Nunca esqueço a reação do grande poeta já falecido (o que o torna ainda maior), Carlos Pena Filho. Estando sentados à volta da mesa de um café em Recife, Jorge Amado e outros da mesma raça, e o poeta, aproximouse timidamente um jovem que se lhe dirige e confessa: - Ah, doutor! Sou um seu admirador encartado! E só não lhe digo como são admiráveis os seus poemas, porque já deve estar farto de tantos elogios… Reposta pronta: - Por favor elogie, não se acanhe… elogie… Adoro elogios, por favor diga que gostou muito… isto hoje é tão raro… O escritor, bom ou mau, pretende ser lido, e para isso é que escreve, se mal, azar dele e sorte do leitor ao ver-se livre dessa função; se bem, sorte também do mesmo que se diverte, e talvez azar do escritor que se obriga ingloriamente a lavrar nessa mesma seara. Mas há que ter a certeza dessa suspeita, pois quem escreve não é geralmente bom juiz de si mesmo, e para que tudo seja posto em pratos limpos, só o julgamento alheio acaba com as dúvidas. Daí sua importância e o resto é cenário. Essa uma das causas porque meti a viola no saco, e como já chegaram até mim algumas respeitáveis opiniões, permito-me esta explicação, como desvalorizada moeda de troca… O que foi publicado nesta simpática página, constitui a primeira parte dum original que se intitula Uma vida em si menor e que se divide em duas. A primeira intitulada Solo de cavaquinho e a segunda Solo de Berimbau. A primeira, quem já a leu sabe a razão do título e a segunda, como se pode prever, trata da saudade do emigrante como “gosto amargo dos infelizes” e coisas de gentes do Brasil, escritores, poetas, pintores, minha vida profissional e seus acontecimentos, mais ou menos
picarescos, coisas que me ficaram brincando na mente. Trata-se, creio eu, de assunto que não deve despertar interesse local, por isso achei que devia calar o bico a respeito. E o que depreendi da rara opinião dos que se manifestaram, foi que os emocionou a vivência que também haviam experimentado em momentos do passado. Outros, repudiaram certos assuntos “escabrosos” que “de certo modo até os enojaram” (sic), e quase repudiaram o relatado, aceitando, calados, a forma como foram descritos e sobre isso pularam por cima. Noutros casos, que também me disseram respeito, sobre um livro de contos ficcionais que escrevi, e que deixaram de ler logo no primeiro, “porque tudo era mentira”. Assim vagamente explicado e o autor, suficientemente conformado com o seu “nítido nulo”, voltou à rotina dos assuntos ligados à possível cultura que nos diga respeito, nossa e dos outros, o que afinal vai dar ao mesmo beco sem saída. “Vai depender de quem lê”, como avisou Pessoa, e como estes são raros mas bons, graças a Deus, com estas conversas não virá mais algum mal ao mundo. E bem?
Casos e coisas da vida Terras de Lanhoso – 2 de abril 2001
Uma das muitas deficiências do nosso atribulado ensino, mola mestra de todo e qualquer desenvolvimento de povo que se preze, é exatamente aquela que abona as naturais tendências de cada um que coloque seu pescoço, duro ou tenro no cepo de qualquer sistema que não seja naturalmente adaptado. Não quero dizer que todos sejam sacrificados nessas oficinas do saber onde se pretende ensinar inúmeras coisas e onde geralmente se aprende muito pouco, no nivelamento por baixo dum aprendizado comum e onde tudo é igual para todos, onde o que não tem a menor apetência para matemática segue a mesma desconsolada trilha do que aquela que já traz por dentro uma intuição de raciocínio que o privilegia no trato com as álgebras, e o leva a descarregar desde cedo os resultados certos de tudo o que elas questionem, por exemplo. E quem diz essas disciplinas, diz várias outras com tendências específicas. É certo que viajei pelo milénio que já entupiu no oco do mundo, mas a natureza humana evoluiu com mais paciência que as técnicas e nem todos somos filhos dos mesmos deuses, pois destes os maiores são parcos em bênçãos, e os menores são de escantilhão. Mas às vezes sou tentado a comparar (o que é errado, pois nada é comparável, já que cada coisa é uma, como dizia meu saudoso Mestre Agostinho da Silva) e quando caio nessa ratoeira vejo que o veneno é o mesmo e os ratos idênticos. E até as pedras que havia no caminho são as mesmas em que os jovens de hoje tropeçam. Estas divagações, um pouco primárias, confesso, surgiram das outras mais prosaicas e que têm origem nas graves deficiências que são legião numa significativa porção do nosso povo, sobretudo nas camadas menos idosas, pois nas outras, essas lacunas eram trocadas por uma espécie de cultura, em que a vivência quase tapava a ignorância. E não ressaltava numa falsa aparência de alfabetização. Pois favorece o subdesenvolvimento, essa praga que corrói mortalmente, e contra a qual só há um antidoto, que é uma educação e uma instrução concentradas em imenso esforço e em trabalho insano, coisas de que a maior parte dos que são pagos para isso, não querem ouvir falar, que me perdoem os que tiverem uma cabeça do tamanho deste chapéu. Começamos por nem sequer saber falar corretamente, (daí a frase de José Saramago, que costuma acertar no alvo: é incrível, e inacreditável, como as pessoas falam tão mal o português. Ora o que se aprende numa velha sentença, é “ler, escrever e contar”, mas hoje, com as exigências duma boa comunicação, este contar não terá o mesmo significado do verso de Almeida Garrett, que dizia: “aqui chegava a contar sua história”, no sentido de narrar? E qual será a causa remota, pois a próxima está à nossa vista desarmada? Onde nasce a
pobreza do nosso paupérrimo vocabulário oral? De quantas palavras carecerá o nosso povo para se entender entre si? Em Shakespeare foram registadas perto de 14000. Quantas serão as que Camões imortalizou? Por que motivo se estarão perdendo os hábitos de leitura? Quais terão sido e continuarão sendo os paupérrimos responsáveis pelo trágico esquecimento da grandeza da nossa literatura lírica, em Camões, Pessoa, Florbela, Bocage, Antero e outros deuses do nosso Panteão, curtiram em memoráveis versos, as suas “dores de cotovelo” e as suas “desgraças de ausência”? por onde andam as Cantigas de mal dizer e as maravilhosas Pornografias de Gregório de Matos, matrizes da nossa original má educação, mas também do nosso pendor para não ter medo da verdade? Esta conversa é para continuar, pois há pano para mangas e o “rei continua passando nu” à nossa frente. E para que não possamos dar motivo a que algum dia outro artista bemhumorado nos caricature de forma idêntica a esta que aqui se reproduz…
Carta de ajuste de contas com o Dr. Joaquim Domingues Terras de Lanhoso – 30 de abril 2001
Ainda pensei começar pela única forma de início que considero mais adequada para estas coisas, que é a que os nossos vizinhos usavam nos tempos idos: - Muy Señor Mio, e que estava louco por encontrar ocasião. Encontrei-a: Muy Señor Mio: Responder a uma carta sua manuscrita é um ato de temeridade, pois qualquer resposta que se preze deverá levar em conta todo o conjunto daquela a que se responde, mesmo que esta nada pergunte e seja, por si só, um modelo de como o fazer com a elegância própria de quem a assina. E a sua, de 6 do corrente (estamos em abril), é um modelo caligráfico dum copista medieval de recortes cistercienses, e a clareza dum sermão franciscano, muito embora haja quem afirme que esta é inexprimível por escrito, mas isto já é muita água benta para a minha caldeira furada. No fundo da minha subliteratura, o que quero dizer é que são raríssimos os leitores (pelo menos os meus) que se manifestam, contra ou a favor, tanto faz, e as chamadas cartas dos leitores publicadas nos jornais, habitualmente são para o subscritor que lhe pisou os calos e lhe motivou alguma expressão vicentina contra o jornalista, transformada depois em gentil retificação. Confesso mal-educadamente que, os meus possíveis leitores, manifestando-se favoravelmente, tanto melhor, claro, mas se ao contrario, também agradeço, pois terão discordado, mas leram, que é o que vale. E os leitores de sua elevada craveira intelectual (pelo menos os meus…) são raros os que se manifestam, mas como nos dias que correm apressados a raridade é coisa comum, pois são mais frequentes que as habituações, e como a circunstância de se ler cada vez menos é que devia rarear, mas é a tónica das grandes maiorias dos nossos conterrâneos, por mal dos nossos pecados acidentais, outrora mortais. Ora, este “nariz de cera” de alto reconhecimento pelo que me escreveu, em forma e formato, obrigou-me a rever a disposição de suspender a publicação de Relembranças, título com que este vibrante Terras de Lanhoso publicou capítulos de Uma vida em si menor. E como na sua carta invocou o nome do sempre presente Mestre que foi Agostinho da Silva, “Orixá maior do meu pegi”, como se diz na boa liturgia baiana, e como também alertou para os “inalienáveis direitos do leitor”, que até deveriam figurar na Constituição da República, para não desiludir “quem fez mais do que devia, sem dever o que faz” (isto é roubado de
Vieira), brevemente voltarei com o Solo de berimbau ao qual tinha destinado um “prudente silêncio” (outro roubo…). Mas a sua carta é muito mais do que estas curvadas palavras, pois é um primor de dissertação caligráfica, que, aposentado de crítico de arte e vago colecionador de habilidades alheias, guardarei na coleção de desenhos, amparado pela expressão de Vasarely como um magnífico exemplar de Alfabeto Plástico. Aliás, esta sua forma de fundir arte e artesanato, molde clássico de definir a criação, é no seu caso duma evidência insofismável e dá para suspeitar se não terá na gaveta dos guardados outras provas comprometedoras… A sua carta, dum modo de crítica e análise ainda académica, é uma clara obra de arte onde a criação gráfica serve um assunto em perfeita consonância, inclusive monocromática, não por acaso certamente. Da mesma forma que desenvolve literalmente um discurso dirigido a um relapso, envolveu-o numa roupagem como só um artista sabe fazer e pode fazer. E a maneira de o tratar lembra o dito de Jean Cocteau: “un artiste original ne peut pas copier” e acrescenta: “ l’art c’est la science fait clair”. Quem diria melhor? Podia desenvolver mais esta opinião, mas se penso que já disse alguma coisa, também penso o contrário. O assunto é fascinante: o caligrama como obra de arte. E acabaríamos por ter de citar Okusai e os incríveis japoneses e seria um nunca acabar… E como conversa puxa conversa e “quem fala muito dá bom dia a cavalo”, como dizia uma falecida Mãe de Santo que sabia das coisas, por aqui lhe deixo os meus agradecimentos e a minha admiração. Ex-corde. António Celestino
S. João de Rei, 1969 – Os novos-ricos Jorge Amado
Terras de Lanhoso – 22 de agosto 2001
Na Casa Senhorial de São João de Rei, ao lado da Póvoa de Lanhoso, nas cercanias de Braga, habitam os pais de António Celestino, avô de meus netos, amigalhaço. O pai, Seu Pedrosa, em verdade é seu padrasto; dona Virgínia das Dores, viúva, casou-se com o Professor Pedrosa, letrado, diretor de colégio, afável criatura. Ela, a fidalga, Virgínia das Dores Simões de Almeida Pedrosa, outrora Celestino, conservava-se bela e altiva, a nobreza da casta e das virtudes, escreve versos – uma das suas netas lhe herdará a vocação. Pai amantíssimo de três filhas, a do meio mãe dos meus netos, ainda o é mais da filha caçula, a dos poemas, não esconde a vaidade quando lhe gabam os versos da Carminho. Baiano do Minho, esse senhor Celestino, bancário a vida toda, banqueiro por uns tempos, é um dos responsáveis pelo florescimento das artes modernas na Bahia. Diretor do Banco Económico, com o aval de Manuel Calmon e o apoio de Ângelo Calmon e Sá, abriu carteira para o financiamento de exposições e venda de quadros e esculturas, iniciativa de evidente importância para as finanças sempre incertas dos artistas. Em A Tarde exerce a crítica de arte, douta e moderna, não direi imparcial, pois Celestino é devoto da amizade e a amizade é partidária. Escreveu um livro, Gente da Terra, sobre os plásticos da Bahia, os da sua preferência: Carybé, Carlos Bastos, Floriano, Calá, Fernando Coelho, Mário Cravo: a corriola toda. Impossível esquecer a manhã sinistra do incêndio do antigo mercado modelo, o verdadeiro: assisti Celestino a abrir crédito imediato para os barraqueiros em pânico. E o vi chorar quando se deparou pela primeira vez com o casebre em ruínas onde vivia em Pau de Lima o pintor Cardoso e Silva. Ameaçado de solidão na viuvez, teve a sorte de casar-se com a senhora Maria da Conceição Esteves de Oliveira, da nobreza rural, planta maçãs, colhe azeitonas, produz azeite e vinho e todos a conhecem e estimam por Sãozinha, professora da escola dos meninos pequenos. Em mais de um romance eu o coloquei de personagem, saiu-se bem, com honra e brio, António Celestino, personagem e tanto. Me perdi falando do amigo, mas quero contar dos pais, o professor, lido, civilizado, e a senhora, altiva e bondosa, havia ainda o velho tio padre, enfermo. Em torno, nas terras de lavrar, os campónios, hábitos feudais: eu os enxergava na cozinha onde bebiam um trago para acalentar, o inverno do Minho é rigoroso. Relações de respeito e estima com os senhores da Casa do Ribeiro, soberana, uma distância de castas e o paternalismo. A pobreza levou à emigração dezenas de portugueses, repetindo os que no passado haviam embarcado para o Brasil encaminharam-se para a França, a Alemanha, a Inglaterra, os países ricos da Europa, em busca de trabalho. Bom emigrante o português, nós o sabemos: muitos deles tiraram o pé da lama, economizaram, vieram e vêm aplicar o dinheiro na terrinha santa, que as benesses do primeiro mundo não conseguiram fazêlos esquecer. São os franciús, os avec, constroem residências dotadas de conforto, medonhosas, as casas estilo maison com janelas tipo fenêtres
conforme se diz em Braga, conspurcam a paisagem do Minho, do Alto Douro, de Trás-os-Montes. Estava eu curtindo o frio inverno em casa de D. Virgínia e Seu pedrosa, quando Amélia, a mocinha que cuida da cozinha e dos gatos, veio anunciar a presença à porta de um casal de antigos servos, de volta a Portugal, em férias. Haviam emigrado dez anos antes para a França, acabavam de levantar nas imediações sua maison. Queriam cumprimentar os ex. patrões. Testemunhei mudança dos hábitos imposta pelas realidades: o surgimento dos novos-ricos na província portuguesa. Onde recebê-los? perguntavam-se em dúvida a fidalga e o professor, na cozinha como sempre o tinham feito ou deviam convidá-los à sala de visitas? Afinal já não eram os mesmos pobretões, servos da terra. Durou pouco o ataranto, dona Virgínia e Seu Pedrosa decidiram, disseram a Amélia que os fizesse entrar na sala. Lá os vi, sentados no sofá, o casal bem-posto, bem vestido, ele de gravata, ela nos trinques das Galerie Lafayette, novos senhores. Ainda assim diziam Vossa Excelência aos antigos patrões, em reverência diante dos fidalgos, é mais difícil mudar por dentro do que por fora. In Navegação de Cabotagem Jorge Amado
Jorge Amado, do Mestre e do Amigo Terras de Lanhoso – 22 de agosto 2001
Creio que não vai ser fácil, mas a vida é assim mesmo, coisas boas, más e péssimas andam entremeadas, e do seu valor dá conta um velho rifão que reza que mil das mais doces pesam menos que uma única das menos dolorosas. Com o desaparecimento da invulgar figura humana de Jorge Amado, mais uma vez me dei conta dessa realidade. É sobre a imensa grandeza do escritor e da repercussão universal do mundo que criou e recriou, viveu e reviveu, descobriu e redescobriu, contou e encantou, desenhou e redesenhou com palavras e pintou com falas faladas, tirou do nada com que fez tudo e levantou do fundo dos mares nos milagres do amor, como a dor de Moema seguindo a nado a nau numa esteira de lágrimas e soluços, riscando com palavras singelas os versos duma prosa sem par e de como esses versos brotam do olhar dos que um dia amaram e perdoaram, milagre do artista a quem o deus de todos os credos mandou que escrevesse nos seus romances, aquilo que de melhor, talvez nem ele tivesse profetizado. E o mundo inteiro o sabe. Sua obra era ele. Pois foi da sua própria confissão de ternura que ela nasceu, na compreensão duma profunda humanidade, olhar de perdão fingindo indiferença, ajuda calada, presença sentida nas horas graves da vida dos que o tocavam na amizade, mãos dadas na hora do tropeço, riso aberto por cima da dor inútil, amizade quente no frio da necessidade, de tudo isto e de muito mais que não posso nem devo dizer e testemunha em parte da sua vida intensa e rica e com que enriqueceu também parte da minha, amparando-me quando me sentia trôpego ou dando-me o exemplo de tolerância quando ela se impunha à minha alegre irresponsabilidade. E por isso nem sempre eram necessárias palavras, um simples olhar discreto, era a senda que acertava o meu rumo. Disse no início que não ia ser fácil e não foi, apesar do que escrevi ser curto e de breve relato. Mas ele sabia que isto iria acontecer e que eu não saberia dizê-lo de forma melhor. Talvez, como ninguém, conhecia as minhas limitadas razões, e que, mesmo assim, amparava com seu largo gesto fraternal. Sua memória permanecerá viva em todos os que tivemos a graças à sua convivência.
Da pintura de Domingos Terras de Lanhoso – 4 de novembro2001
Não sei se ainda será verdade o que da pintura disse um dia Leonardo Da Vinci: “a pintura deve parecer uma coisa natural vista num grande espelho.” É evidente que depois dele apareceram outros génios, que ainda que de menor grandeza praticaram regras de estética visual de teores diferentes, mas na essência o gigante florentino sabia das coisas e o que dele ainda se consegue ler (escrevia ao contrário…) no fundo tem sempre um juízo permanente de verdade: é que a pintura é para ser vista pelo olho humano e, por mais que queiramos arranjar pretextos, acabamos sempre por bater à mesma porta. E também que haja às vezes uns tresloucados que dizem que a pintura chamada “de cavalete” já acabou. Outra verdade é que esses talentos do fogo-de-vista duram muito pouco. Às vezes os achamos bonitos, enquanto ao brilho momentâneo mas o fim é sempre o mesmo: apagam-se! A história está cheia deles. Ou antes, da lembrança das cinzas em que suas palavras se tornam. Outras vezes, por excesso de introspeção, nós mesmos nos desviamos da estética pura e entramos por portas outras, que levam a certos pontos de vista em que o que nos sensibiliza é a inteligência dos que por essa porta nos introduzem e, no final, esbarramos com o impacto que mexe com a nossa cultura estética e acabamos por compor com outros ingredientes não convencionais, mas que, de tão fortes, nos marcam a fogo. Um fogo cujas brasas não são as mesmas com que forjamos nossas ferramentas mentais. Aí começaram a entrar outros ingredientes aos quais depois nos habituamos, mas que ficaremos a dever mais a uma cultura moldada na criação intelectual do que na própria sensibilidade. E aqui iriamos bater em Picasso. Nos besuntaríamos com os santos óleos dos impressionistas. Passaríamos diante dos abstracionistas de bom gosto cromático, tiraríamos o chapéu ao que devemos aos imaginários talentosos do Bauhaus, enfim, teríamos que percorrer todas as vias lácteas das artes e, no fim, ainda acabaríamos por dizer que não era nada disso que queríamos escrever. Mas estas linhas foram provocadas por uma visita que fiz, há dias, ao atelier dum pintor e desenhista desta nossa amada terra da Póvoa de Lanhoso, chamado Domingos. Domingos é um artista muito conhecido. Suas pinturas andam por aí sendo justamente admiradas e da sua assiduidade ao ofício lembra-se a frase de Picasso, que dizia “o talento existe, mas precisa encontrar-nos trabalhando”. Pois parece ser o caso do nosso artista, sempre em ação, com um domínio muito grande no uso dos pincéis (às vezes habilidade de mais, vira bicho e como o dono…), tem uma sensibilidade cromática não habitual, usa bons materiais e emprega-os com grande suavidade, não esgota as cores puras sem lhes dar um tom domesticado, domina a mão no desenho com eficácia; pena é que não aproveite todo o seu talento gráfico na composição das suas paisagens e que concentre em excesso o fulcro dos assuntos a desenvolver, deixando-os muitas vezes soltos sem o socorro duma boa base gráfica, dum cálculo de volumes compatível com toda a superfície da tela, enchendo-a daquilo para o qual é dotado e que é a pintura, de forma que possamos ter todo o quadro e não nos limitemos a
um ponto fulcral, sempre bem feito e com originalidade, como quem lê uma página brilhante e no meio encontre duas linhas sem sentido. Não lhe falta talento, pois sabe misturar as cores com perfeição. Sua pintura é muito limpa, tão limpa que certos enquadramentos parece que foram feitos com spray – o que em nada invalida o bom trabalho, nem nada do que eu aqui escrevi e, se o fiz, foi somente para ver mais aproveitada a sua rara sensibilidade cromática, o encosto feliz de certas cores ingratas para serem vistas lado a lado, enfim, no meu entender, como dizia Picasso diante duma dama que achava que uma figura não estava parecida: ”mas isto não é uma pessoa, é um quadro!...”. E não se pode mudar certas regras consagradas sob pena de se fazer exatamente o que Picasso dizia… Domingos é ainda um artista em plena atividade, tem já um belíssimo metier, mas não vai me querer mal por eu dizer que ainda pode crescer mais. Sei quanto é árduo o trabalho de um artista quando chega a certo ponto de “non retour”. E quando tem que avançar mesmo que seja à custa de morder os próprios dedos. A arte não divide cama com mais ninguém, e já não falo em praticar loucuras como Van Gogh – que nunca na sua vida vendeu um quadro – ou os exageros de Salvador Dali, cuja ansiedade de se promover era tanta que André Breton, que batizou o impressionismo, encontrou um anagrama para o seu nome “Avida Dolars”… e já que entramos nesses terrenos minados das artes e seus valores materiais, pergunto-me porque razão há certas obras de que o artista jamais se desfaz? É apenas porque ele acredita em seu talento. É esse o caso de nosso talentoso Domingos, que, como disse Baudelaire, tem na arte “um bem infinitamente precioso, uma beberagem refrescante e acalentadora, que enche o estomago e o espirito do equilíbrio natural do ideal”. Talvez por isso, na sua sabedoria curtida nos bons e maus dias, dizia, com muita razão, que “a quem muito é dado, muito será pedido…”. Creio que não pedi nada de mais, a não ser que seja sempre o que é melhor para o artista…
Culturas são como os chapéus do Vasco Santana: há muitas Terras de Lanhoso – 22 de agosto 2003
Perguntas: 1 – Andou pelo Brasil durante décadas, mas parece que, no fundo, ao longo dos anos nunca deixou de ser um português do interior minhoto cheio de vontade de regressar. O que o arrastou até aqui de novo, depois de ter estado sentado “à mesa do rei”? 2 – Cinquenta anos depois encontrou o mesmo Minho, a mesma aldeia, a mesma geografia humana e o mesmo caráter nas pessoas? O que mudou? 3 – Como vive, aqui, agora, longe de tudo, um homem que durante décadas conviveu com a cidade grande, dirigiu um museu, escreveu regularmente para jornais, viveu junto de artistas, de grandes artistas, pensou com eles, com eles discutiu? 4 – Como vê a cultura, hoje? Acha que existe cada vez mais espaço para Paulo Coelho, para a chamada literatura light, e cada vez menos espaço para Graciliano Ramos? E nas artes plásticas? 5 – A sua intervenção nos jornais é cada vez menor. Também, no que toca a livros de ficção e poesia, parece ter parado. Desencantou-se? 5 – Sei que a 2ª edição da monografia de S. João de Rei está esgotada e que tem material para compor outra edição, revista e aumentada. Sei, também, que a vontade de andar com esse projeto é pouca. Sente pouco apoio dos responsáveis políticos? Respostas: Vai ser mais fácil juntar os dois primeiros itens, pois há uma ligação inconsul entre eles… não sou muito afeito a falar de mim próprio, pois segundo Frei Luiz de Sousa “feia coisa é” mas, como levianamente prometi, cumpro… Um homem geralmente perde-se quando tenta definir-se, pois a sua circunstância não se fabrica: acontece. E a minha foi o resultado feliz de ter assumido três nacionalidades. Primeiro por ser português, que sou por vaidade e teimosia. Depois, por querer ter sido brasileiro que também sou por gratidão, enlevo e fascínio e finalmente porque aceitei por convencimento, magia e devoção a pátria da Bahia onde renasci. Como dizia meu falecido irmão Carybé, para se ser baiano há que ter várias nacionalidades. E citava insignes exemplos, como o de Pierre Verger, que nascera em França, Agostinho da Silva, em Portugal, ele mesmo na Argentina, Ruben Braga no Espirito Santo, e tantos outros que andaram pregando pelo mundo fora. Isto sem citar o Padre António Vieira, que foi o maior de todos e cuja sombra ainda anda pelo mundo perturbando as mentes de muito boa gente. Estas misturas não são de fácil entendimento para os estrangeiros, mas quando se trata da Bahia, tem que haver confusão, sem a qual não se entende nada do seu mistério. Assim, talvez se perceba melhor o ilógico da existência e as linhas tortas com que Deus as escreve direito, aceitam-se no beneficio da dúvida,
muitos dos porquês com que nos defrontamos, entre os quais as da convivência amistosa dum sincretismo religioso confirmado, da amálgama de fés tão aparentemente distintas, dum falar baiano original em que colaborou o nosso idioma seiscentista, e o Yorubá africano a que os ventos duma colonização deram uma raça a quem um etnólogo americano deu a designação de “branco baiano”, e a que um deus amável deu um mar sem ódios e terra sem pragas e um ar lavado a que já chamaram de “santa vibração”, e um devoto respeito a uma espécie de padroeiro, a quem é mais do que isso, e que é Nosso Senhor do Bomfim, na imagem veneranda na sua sagrada colina, aonde acorrem milhões de fiéis de variados credos e proveniências, numa das mais impressionantes manifestações religiosas em que todos também rezam ao mesmo deus nos seus nagós e yorubás de arcaicos ancestrais; isso e muito mais é a boa terra da Bahia, aonde os deuses convivem com os homens e as raças se confundem. Recordo que os ritmos de vida são sempre mutáveis. Basta recordar que entre os animais, o galgo é elegantíssimo, corre que dá gosto vê-lo, mas só dura pouco mais de dez anos. E que a tartaruga, atarracada, feia, mexendo-se com dificuldade, para sair do lugar é um deus nos acuda, dura mais de 300 anos… é claro que não dá para escolher, mas dá para pensar… Culturas, são como os chapéus do Vasco Santana: há muitas… mas a que anda por si, não pode ser levada a sério. É assunto profundo em demasia, mas que poucos se atrevem a varejá-lo. E como é de consequências remotíssimas, são necessárias várias gerações duma educação revolucionária (no sentido de ter que se mexer em tudo), inclusive em nossas próprias mentes. Por enquanto, temos que conviver com a palavra, aquela que advém do alemão e que se escreve com K, e que já está a precisar de um cifrão para que tenha aceitação corrente, pois está virando moeda. Por enquanto, quando se fala de cultura, pensa-se logo em dinheiro. Lembro-me de que, quando foi a anexação de Goa à India, Portugal comoveu-se. Um amigo meu, o embaixador Miguel Trigueiros, procurou o senhor de então e da chave do cofre do erário público, que era Salazar, e propôs-lhe uma grande romagem noturna, nacional o mais possível, entre Fátima e Lisboa, em desagravo ao ato nefando, segundo ele. Resposta: - Concordo… mas antes quero saber quanto me vai custar o quilómetro. Infelizmente, este é um assunto sério de mais para ser tratado por políticos (ou felizmente, não sei…) A conclusão melancólica a que cheguei depois da minha já longa tarimbagem noturna e diurna, é que o sentido das palavras custa a mudar. Mas as expressões acomodam-se mais facilmente ao nosso ceticismo. Por exemplo, as expressões “porquê” e “para quê”, eram perguntas. Mas agora já são as próprias respostas. E às suas duas derradeiras indagações, respondo eu: Porquê e para quê.
ÍNDICE Mas, afinal, o que é cultura? – 7 de outubro 1996 A magia das palavras – 4 de novembro 1996 Velhões adágios sempre novos – 7 de dezembro 1996 Conto de Natal – 8 de janeiro 1997 À vossa saúde – 1 de fevereiro 1997 À vossa saúde II – 1 de março 1997 E agora comidas… - 7 de abril 1997 E agora comidas… (2) – 5 de maio 1997 António Celestino – Entrevista – 5 de maio 1997 E agora comidas… (3) – 7 de junho 1007 Coleções e colecionadores – 7 de julho 1997 Sobre palavras, acerca de uma tese universitária – Para José Bento da Silva – 4 de agosto 1997 Um Fernando Assis Pacheco – 1 de setembro 1997 Sobre museus – 6 de outubro 1997 Carybé, meu irmão – 3 de novembro 1997 Da aguarelista Fernanda Barros – 17 de novembro 1997 A recriação da realidade – 1 de dezembro 1997 Do bom humor em eleições – 5 de janeiro 1998 Da força do silêncio – 2 de fevereiro 1998 Culinoriosidades de um historioso – 2 de março 1998 Das antigas doçuras – 30 de março 1998 Carta do Papa Celestino VI aos jovens artistas – 28 de setembro 1998 Experiências e conselhos dum “marchand” – 26 de outubro 1998 Do bom humor dum velho bispo galego – 27 de junho 1998 Do bom humor dum velho bispo galego (2) – 31 de agosto 1998 Sónia Castro, gravadora triste – janeiro 1999 O quarto rei mago – fevereiro 1999 Dalí para depois do carnaval – março 1999 Pintura jovem, o que será? Para Fernanda, Maria José e Amélia, as três graças da Casa da Botica – abril 1999 Três histórias dentro da história – julho 1999 Dois livros ao som da Bahia – agosto 1999 Fernando Sabino, prémio Machado de Assis – setembro 1999 Acerca da exposição de Fernanda Barros – novembro 1999 A inesquecível arte de amar de Ovídeo – novembro 1999 O mito de Nostradamus – dezembro 1999 Presépios e saudades – 18 de dezembro 2000 Culpas e desculpas – 2 de abril 2001 Casos e coisas da vida – 14 de abril 2001 Carta de ajuste de contas com o Dr. Joaquim Doningues – 30 de abril 2001 S. João de Rei. 1969 – os Novos ricos – Texto de Jorge Amado – 22 de agosto 2001 Jorge Amado do mestre e do amigo – 22 de agosto 2001 Da Pintura de Domingos – 4 de novembro2001 Cultura são como o chapéu do Vasco Santana, há muitas – 22 de agosto 2003