Ficheiro modelo 1º sessão

Page 1

Rede Concelhia de Clubes de Leitura http://silvesalermais.blogspot.com

AUTORES PREMIADOS COM O NOBEL – Maio’14

Desgraça de J.M. Coetzee Há momentos que mudam a nossa vida. E depois? O que resta do que éramos antes, quando ao horror apenas sobrevive o corpo? Coetzee escreve na crueza da verdade. A verdade sem sentimentalismos, sobre a qual os Portugueses não gostam de escrever mas que nos permite viver melhor na realidade. Lúcia Mendonça

Caim de Saramago Embora prefira sempre, visceral e mais espontaneamente, autores que exploram, sobretudo, o interior das personagens, Saramago que domina a técnica do romance histórico e social é, para mim, um amor distinto, mas quase sempre um amor perfeito e, sem dúvida, já antigo. E este amor nasce do facto de a sua escrita ser sempre muito visual, cinematográfica até, por vezes, e conter um certo um mergulho na vida íntima e psicológica das personagens e um olhar profundo sobre a História, ao mesmo tempo que realiza um voo alto e feliz da imaginação, a par de uma reinvenção linguística e de pontuação, que transportam o leitor para outro ritmo de leitura. Além disto, Saramago sempre me surpreendeu com uma coisa que nenhum outro autor até hoje me conseguiu oferecer tão nitidamente: a sensação de audição pura da fala das personagens como se estas estivessem precisamente ao meu lado… Em termos específicos, eis alguns motivos porque não deve deixar de ler esta obra: - porque é uma óptima oportunidade para relembrar alguns dos episódios bíblicos mais importantes (Sodoma e Gomorra, Lilith, criação de Adão e Eva, Torre de Babel, Arca de Noé, sacrifício de Isaac, Lilith, bezerro de ouro e assalto a Jericó);

1


- pelo sentido épico do livro mais notório através do carácter errante e adaptativo de Caim (que, sendo autor de um crime é descrito principalmente como vítima de Deus), que ascende ao estatuto de herói por lutar intrepidamente e durante várias eras pela Humanidade, vivendo momentos de confrontação dialógica com o “senhor” dignos de dois verdadeiros gigantes; - forma como a narrativa é contada (com os seus avanços e recuos no tempo) mantém o leitor em constante suspense. E o modo como o narrador nos transporta de um episódio para o outro, como se se tratasse de sono de Caim em que ele apenas tem noção de que vive, depois desse momento, outro tempo (que, embora passado ou futuro, é para ele sempre um presente, porque intensamente vivido) é magistralmente subtil; - as poucas situações relatadas num tom humorístico são expressivas e não se esquecem (as visitas do senhor à Terra aquando das suas rondas por outros paraísos existentes no espaço celeste ou a imagem de um anjo que chega atrasado por causa da sua asa mecânica avariada, por ex.); - sendo esta a última obra que Saramago escreveu ela é um grande apelo a que o Homem perceba cabalmente que as religiões (e numa entrevista ele explicava que só tinha escrito sobre o Catolicismo porque era este o seu enquadramento cultural e, portanto, a religião que melhor conhecia, nunca podendo escrever sobre o Corão, por exemplo, sobre o qual não dispunha de informação suficiente) foram e continuam a ser uma grande (senão a maior) fonte de guerra. Contudo, esta obra não faz parte da lista dos meus livros favoritos de Saramago, embora a sua leitura não seja, de todo, dispensável (pelas razões que já referi). E ela não faz parte desta lista porque se já sabemos que o estilo do narrador de S. é omnisciente e profundamente opinativo, nesta obra achei-o de um radicalismo ideológico que me levou a sentir saudades do narrador de Tchékhov que dá todas as informações ao leitor, mas não o induz completamente, não o manipula, mas dá-lhe liberdade para reflectir e tirar as suas próprias conclusões. Claro que esta opção de Saramago foi totalmente consciente e deliberada e ele estava em seu pleno direito de interpretar a Bíblia, de acordo com as suas convicções. Não concordo, portanto, com a principal crítica que fizeram a Caim (mormente a Igreja Católica) de que Saramago “…não deveria ter feito uma leitura literal em lugar de simbólica”, pois como o próprio autor afirmou também “o problema é que as visões simbólicas são muitas”, sendo na verdade as críticas por ele não ter feito uma leitura simbólica críticas por ele não ter interpretado a Bíblia, de acordo com as suas convicções e a verdade é que a sua obra é literária e a literatura não é senão “um misto de memória de imaginação”(Jorge Luís Borges). Do que não gostei foi realmente da forma como Saramago defendeu a sua opinião, isto é, através de um narrador demasiado tendencioso e que quer convencer-nos e impor um desígnio e este não corresponde ao meu ideal de narrador, embora perceba e até concorde quando Saramago afirma que “Criámos um Deus à nossa imagem e 2


semelhança (…) e por isso ele é tão cruel, porque nós somos cruéis” e saiba que ele não poderia defender melhor a sua tese do que desta forma extrema. Caim não é, quanto a mim, o seu melhor livro. É um livro que tem os seus melhores momentos. Apesar disto, concordo inteira e entusiasticamente com Harold Bloom (considerado, por alguns, o maior crítico literário do mundo e por todos um dos melhores e mais influentes) quando este afirma que Caim “… não deve macular o nosso sentimento de uma partida gloriosa” [de Saramago] e homenagear a sua partida é, também, ler o seu último livro.

Sugestão de alguns excertos mais visuais e emotivamente marcantes: - págs. 19 – 20 – Criação de Adão e Eva; - págs. 38 – culpa partilhada entre Deus e Caim pela morte de Abel; - págs. 134-135 – Cim conta a Lilith o que viu; - págs. 158-159 - Arca de Noé; - pág. 180-181 – último diálogo entre Deus e Caim. Sónia Pereira

O último Verão de Klingsor de Hermann Hesse. O livro que escolhi foi " O último Verão de Klingsor " de Hermann Hesse. Esta escolha deve-se a dois motivos: autores com prémio Nobel (1946) e a Hugo Pratt, o qual faz referência a este livro num dos seus Corto Maltese. Frequente nos escritores pós-guerra e Hesse apanhou duas, "....o mundo parecia ter sido partido em estilhaços", este livro fala da vida e da procura plena de viver intensamente, como se a vida fosse para ser apreciada em todas as suas vertentes, com todos os riscos, decepções e espantos. André Gide, no seu livro Les Nourritures Terrestres escreve " Nathanael, je t'enseignerai la ferveur . Une existence pathétique, Nathanael, plutôt, que la tranquilité. Je ne souhaite pas d'autre repos que celui du sommeil de la mort. J'ai peur que tout désir, toute énergie que je n'aurais pas satisfaits durant ma vie, pour leur survie ne me tourmentent. J'ESPÉRE, aprés avoir exprimé sur cette terre tout ce qui attendaiten moi, satisfait, mourir complétement désespéré." E Hesse, neste livro através de Klingsor (pintor), exprime o mesmo desejo de pintar a vida com infinitas cores, de viver intensamente, com o tormento de não o conseguir, como refere no seguinte parágrafo "...Meu Deus, tantas centenas de coisas à espera, tantas centenas de taças por beber! Um homem devia poder pintar todas as 3


coisas à face da terra! Um homem devia poder amar todas as mulheres do mundo! Por que existia o tempo? Porquê apenas e sempre esse absurdo um-de-cada-vez, e nunca uma simultaneidade arrebatada e saciante? Por que é que estava agora deitado na cama sozinho, como um viúvo, como um velho? Podia-se fruir, podia-se criar durante toda esta breve vida, mas canta-se sempre e apenas uma canção de cada vez, nunca se ouve a sinfonia plena e completa, com as cem vozes e instrumentos em simultâneo." Enfim, Herman Hesse escreve maravilhosamente e mostra-nos a beleza nas palavras, e imagens, e pessoas que vão passando neste livro. E a vida é mesmo isto, passar os olhos e olhar, e chorar e rir e sobretudo espantarmo-nos com o que anda por aí. Divirtam-se! Paula Torres

Pequeno excerto do livro Clarabóia de José Saramago (final da pág. 392)

“Ouça, Abel,: quando ouvir falar no homem, lembre-se dos homens. O Homem com G grande, como às vezes leio nos jornais, é uma mentira, uma mentira que serve de capa a todas as vilanias. Toda a gente quer sonhar o Homem, ninguém quer saber dos homens. Abel encolheu os ombros, num gesto de desalento. Reconhecia a verdade das últimas palavras de Silvestre (o sapateiro, homem habituado a reflectir), ele próprio já o pensara muitas vezes, mas não tinha aquela fé). “ Dina Peres

Istambul de Orhan Pamuk Orhan Pamuk, turco que recebeu o Nobel em 2006. Gostei pelo lado sensível da evocação da melancolia, tão parecida com a saudade portuguesa. “Evocação de uma cidade, romance de formação e reflexão sobre a saudade”. Lembrança de passeios de criança, nas ruas e jardins, nas ribeiras de Bósforo, e ao mesmo tempo, o retrato fascinante de uma metrópole em declínio e explica bem essa diferença entre Oriente e Ocidente. “Istambul não é Paris” disse ela. Antiga capital, Istambul está à procura de uma nova identidade, entre tradição e modernidade, religião e laicidade, mudanças que alteram o seu rosto e, ao mesmo tempo, o narrador vê tudo isto em paralelo com o declínio, a desagregação, destruição da própria família. Descrição de uma vida muito ligada à família, ao prestígio e autoridade avós. Ao mesmo tempo, são descritas maneiras burguesas hipócritas do século XIX. Vida paralela de um casal esquisito, do pai que tem em segredo (às vezes 4


não bem escondido) uma amante com quem partilha um tempo bem organizado “como se ia partilhar a vida do seu “duplo”, do seu “gémeo”. Um casal perfeito, marido de grande valor, mas uma mãe que não aceita que o filho abandonou os estudos de arquitectura para ser pintor. Descrição das análises negativas – crítica da vida de artista (encarada como de malucos). A avó, viúva desde muito cedo, é a grande organizadora de toda a vida familiar, parece dura, porque dá ordens, mas é de uma ternura maravilhosa para as netas, mesmo escondida atrás de palavras autoritárias. Jacqueline

Excertos de Amor e erotismo de Octavio Paz “O karma, como é sabido, não é senão o resultado das nossas vidas anteriores. (…) Contrariamente, no Ocidente o amor é um destino livremente escolhido; quero dizer, por mais poderosa que seja a influência da predestinação – o exemplo mais conhecido é a poção mágica que bebem Tristão e Isolda – para que o destino se cumpra é necessária a cumplicidade doa amantes. O amor é um nó no qual se atam, indissoluvelmente, o destino e a liberdade.” (p. 29) “A experiência mística vai além da piedade. Os poetas místicos compararam as suas mágoas e os seus delíquos com os do amor. Fizeram-no com acentos de comovente sinceridade e com imagens apaixonadamente sensuais. Pela sua parte, os poetas eróticos também se servem de termos religiosos para exprimir os seus arrebatamentos. A nossa poesia mística está impregnada de erotismo e a nossa poesia amorosa de religiosidade. Nisso afastamo-nos da tradição greco-romana e parecemo-nos com os muçulmanos e os hindus. Tentou-se várias vezes explicar esta enigmática afinidade entre mística e erotismo mas não se conseguiu, na minha opinião, esclarecê-la por completo. Acrescento, de passagem, uma observação que poderia talvez ajudar um pouco a esclarecer este fenómeno. O acto em que culmina a experiência erótica, o orgasmo, é indizível. É uma sensação que passa da extrema tensão ao mais completo abandono e da concentração fixa ao esquecimento de si próprio; reunião dos opostos, durante um segundo: a firmação do eu e a sua dissolução, a subida e a queda, o além e o aqui, o tempo e o não-tempo. A experiência mística é igualmente indizível: fusão instantânea 5


dos opostos, da tensão e da distensão, da afirmação e da negação, do estar fora de si e do reunir-se consigo mesmo no seio de uma natureza reconciliada. É natural que os poetas místicos e os eróticos usem uma linguagem parecida: não há muitas maneiras de dizer o indizível. Não obstante, a diferença salta à vista: no amor o objecto é uma criatura mortal e na mística um ser intemporal que, durante uns momentos, encarna nesta ou naquela forma. Romeu chora diante do cadáver de Julieta; o místico vê nas feridas de Cristo os sinais da ressureição. Verso e reverso: o enamorado vê e toca uma presença; o místico contempla uma aparição. Na visão místico o homem dialoga com o seu Criador; ou, se é budista, com a Vacuidade; em um e outro caso, o diálogo dá-se – se é que é possível falar-se de diálogo – entre o tempo descontínuo do homem e o tempo sem fissuras da eternidade, um presente que nunca muda, cresce ou diminui, sempre idêntico a si mesmo. O amor humano é a união de dois seres sujeitos ao tempo e aos seus acidentes: a mudança, as paixões, a doença, a morte. Embora não nos salve do tempo, entreabre-o para que, num relâmpago, apareça a sua natureza contraditória, essa vivacidade que sem cessar se anula e renasce e que, sempre e ao mesmo tempo, é agora e é nunca. Por isto, todo o amor, inclusive o mais feliz, é trágico.” (p. 81) “Contudo, é impossível confundir o amor com a amizade e no mesmo ensaio Montaigne encarrega-se de os distinguir: «embora o amor nasça também da escolha, ocupa um lugar diferente do da amizade…O seu fogo, confessa-o, é mais activo, pungente e ávido; mas é um fogo temerário e volúvel … um fogo febril», ao passo que «a amizade é um calor regular e universal, temperado e dentro da medida …um calo constante e tranquilo, todo doçura e delicadeza, sem asperezas …» A amizade é uma virtude eminentemente social e mais duradoura que o amor. Para os jovens, diz Aristóteles, é muito fácil ter amigos, mas com a mesma facilidade desfazem-se deles: a amizade é uma inclinação mais própria da idade madura. Não estou muito certo disto, mas creio que a amizade está menos sujeita que o amor às mudanças inesperadas. O amor apresenta-se, quase sempre, como uma rotura ou uma violação da ordem social; é um desafio aos costumes e às instituições da comunidade. É uma paixão que, ao unir os amantes, os separa da sociedade. Uma república de enamorados seria ingovernável; o ideal político de uma sociedade civilizada – nunca realizado – seria uma república de amigos”. (p. 83) “É irredutível a oposição entre o amor e a amizade? Não podemos ser amigos das nossas amantes? (…) São sentimentos, ou, como ele [Montaigne] diz, fogos diferentes. (…) É, diria eu, um dos seus desenlaces, como se vê em alguns casais. Por último: o amor e a amizade são paixões raras, muito raras. Não devemos confundi-los nem com os namoricos nem com aquilo a que no mundo se chama correntemente “amizades” ou relações. Eu disse antes que o amor é trágico; acrescento que a amizade é uma resposta à tragédia.” (p.84)

6


“Penso, pela minha parte, (…) que o amor é, como dizia Dante, um acidente de uma pessoa humana e que essa pessoa é imprevisível.” (p. 85) “O amor não vence a morte: é uma aposta contra o tempo e os seus imprevistos. Pelo amor vislumbramos, nesta vida, a outra vida. Não a vida eterna mas, como procurei dizer em alguns poemas, a vivacidade pura. Numa passagem célebre, ao falar da experiência religiosa, Freud refere-se ao “sentimento oceânico”, esse sentimento envolto e embalado pela totalidade da existência. É a dimensão de Pã dos antigos, o furor sagrado, o entusiasmo: recuperação da totalidade e descoberta do eu como totalidade dentro do Grande Todo. Ao nascer, fomos arrancados da totalidade; no amor, todos nos sentimos regressar à totalidade original. Por isto, as imagens poéticas transformam a pessoa amada em natureza – montanha, água, nuvem, estrela, selva, mar, onda – e, por sua vez, a natureza fala como se fosse mulher. Reconciliação com a totalidade que é o mundo. Também com os três tempos. O amor não é a eternidade; tão-pouco é o tempo dos calendários e dos relógios, o tempo sucessivo. O tempo do amor não é grande nem pequeno: é a percepção instantânea de todos os tempos num único, de todas as vidas num instante. Não nos liberta da morte, mas faz-nos vê-la cara a cara. Esse instante é o reverso e o complemento do “sentimento ocêanico”. Não é o regresso às águas da origem mas a conquista de um estado que nos reconcilia com o exílio do paraíso. Somos o teatro do abraço dos opostos e da sua dissolução, resumidos numa única nota que não é de afirmação nem de negação, mas de aceitação. Que vê o casal no momento de um bater de pálpebras? A identidade do aparecimento e do desaparecimento, a verdade do corpo e do não-corpo, a visão da presença que se dissolve num esplendor: vivacidade pura, pulsação do tempo.” (p. 159) Selecção de Octávio

Cem anos de solidão de Gabriel García Márquez “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e cana, construídas na margem de um rio de águas transparentes que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo tão recente que muitas coisas ainda não tinham nome e para as mencionar era preciso apontar o dedo. Todos os anos, pelo mês de Março, uma família de ciganos andrajosos montava a sua tenda perto da aldeia, e num grande alvoroço de apitos e timbales davam a conhecer as novas invenções. Primeiro levaram o ´man. Um cigano corpulento, de barba agreste e mãos de pardal, que se apresentou com o nome de Melquíades, fez 7


uma truculenta demonstração daquilo que ele próprio denominava de oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedónia….” E assim se inicia a mais colorida, fantasiosa, surreal e maravilhosa história com que o já saudoso Gabriel García Márquez nos delicia em “Cem Anos de Solidão”. Várias gerações dos Buendía deliciam-nos com as suas vicissitudes: aprendizagens e esquecimentos com que vão cimentando em saberes e vivências a construção/estória deste mundo novo que é a fundação e a vida em Macondo. É uma experiência inolvidável ler García Márquez: tenho lido, relido e encontro sempre novos motivos e emoções que me fazem um apaixonado pela sua escrita. Só em Mia Couto, Miguel Cervantes, Mário Vargas Llosa consigo encontrar matizes similares, na deliciosa capacidade imaginativa e de composição/criação de gentes, lugares e pensamentos.

Luís Ricardo

8


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.