Mar português público, 2012 09

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[in Público (26.Set.2012 a 08.Out.2012)]

Continuamos esmagados pelos Descobrimentos? (26-09-2012, Lucinda Canelas) O que (não) fizemos para voltar ao mar (27-09-2012, Lurdes Ferreira, Bárbara Reis) Berlenga: sentinela de luz na ilha das gaivotas (28-09-2012, Luís Francisco) Pode Portugal ser um imenso país do surf? (29-09-2012, Alexandra Prado Coelho) A luz do futuro vem do mar e da Gronelândia (30-09-2012, Inês Sequeira) Portugal x 41 = Índia (01-10-2012, Teresa Firmino) Só protegemos o mar que nos dá pelos tornozelos (02-10-2012, Helena Geraldes) Um mar de palavras (03-10-2012, Luís Miguel Queirós) Pesca, um mar de oportunidades perdidas (04-10-2012, José Manuel Rocha) Temos “o melhor peixe do mundo”. E conseguimos comê-lo? (05-10-12, A.P.Coelho) Tanto mar para tão pouca Marinha (06-10-2012, Nuno Sá Lourenço) Pode um navio contar a história da pesca do bacalhau? (07-10-2012, Teresa Firmino) O futuro do sol e mar é ser mais do que praia (08-10-2012, Teresa Gorjão Henriques)

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I

Continuamos esmagados pelos Descobrimentos? 26.09.2012, Por Lucinda Canelas

Efígie de Vasco da Gama no Museu da Marinha, figura que todos os regimes têm enaltecido (Miguel Madeira)

As descobertas são o período da história que hoje parece dizer mais aos portugueses, mas nem sempre foi assim. Se a escola não mudar, aliás, elas correm
 
o risco de ser uma memória cada vez mais distante. Feita de glórias de navegadores, mas também do trabalho de homens comuns, de dúvidas e de corrupção.
 
O PÚBLICO começa hoje uma série sobre o que nos liga ao mar. Uma data a decorar, um navegador feito herói, uma edição barata de Os Lusíadas, um professor de História que ficou, um livro com barcos naufragados, um infante que ganhou o mundo e um rei que perdeu um país. No meio de tudo isto, o mar e os territórios que os portugueses exploraram a partir do século XV. Um mundo maior, mas sobretudo um mundo diferente. Em que pensamos primeiro quando uma conversa passa pelos Descobrimentos? Por que falamos sempre em império quando tivemos mais do que um? Por que insistem os livros escolares em perpetuar mitos sobre a expansão e as descobertas? Privilegiamos esta parte da história porque gostamos de heróis ou porque precisamos deles? Muitas são as perguntas que surgem quando procuramos explicar a relação especial que os portugueses mantêm com os Descobrimentos, mas será que o conhecem? Será que é por ele que o mar tem um papel tão importante na cultura portuguesa, no seu imaginário, ou é só porque geograficamente Portugal é um país pequeno como uma costa grande? Fizemos estas e outras perguntas a dois historiadores e a um poeta e ensaísta. Quisemos saber, sobretudo, se os portugueses ainda estão, de alguma forma, “esmagados” pela memória de uma época em que tinham outro papel no mundo. Uma época em que havia Portugal em todos os continentes. É verdade que hoje o público em geral identifica a época das descobertas como a que mais importante foi para a história de Portugal e, em particular, para a história de Portugal no mundo. Mas isso não significa que os portugueses estejam permanentemente a comparar o que são hoje com o que, segundo os livros de História que levaram para escola, foram há mais

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de 500 anos. Mesmo se os políticos recuperam ciclicamente essa herança em discursos e comemorações. Vasco Graça Moura, poeta e ensaísta que entre 1988 e 1995 presidiu à Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, reconhece que continuamos “marcados” pelo que Portugal foi capaz de fazer a partir do começo do século XV, mas que essa memória, tantas vezes de olhos fechados à dura realidade do dia-a-dia do país nessa época e carregada de mitificações, não molda o que somos hoje nem limita a leitura que fazemos do passado — ajuda, antes, a compreendê-lo. “Temos um peso, uma carga histórica”, começa por dizer sentado no seu gabinete do Centro Cultural de Belém, de que é hoje presidente. “Sabemos que tivemos importância em relação ao mar, aos caminhos que ele abre. Isto mesmo quando não sabemos nada de história e não lemos Os Lusíadas. Por outro lado, há um sentimento de impotência disfarçada, de que hoje só vivemos dificuldades e ainda não encontrámos uma maneira de as ultrapassar, embora possamos pressentir que no mar pode estar a chave para a solução de muitos problemas.” Em tempos de crise como a que a Europa atravessa, com duros reflexos em Portugal, há uma certa tendência para fazer comparações “disparatadas” entre um presente amargo e um “passado de glória” que teve grandes protagonistas como o infante D. Henrique, Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque ou Fernão de Magalhães, lembra Graça Moura, histórico social-democrata que durante dez anos foi eurodeputado. Se o tema dos Descobrimentos nunca saiu do discurso político, embora se cometa muitas vezes o erro de pensar que a sua instrumentalização se deveu sobretudo ao Estado Novo, é porque ele nunca saiu do discurso cultural, em particular do da literatura, com nomes como Fernando Pessoa, Vitorino Nemésio, Antero de Quental e Cesário Verde, para além do óbvio Camões, por referências. “No discurso político há sempre um macaquear do discurso cultural”, diz Graça Moura. “É evidente que um político quando se dirige aos seus eleitores tem de dar a noção de que está conotado com o passado deles, e que é herdeiro de uma determinada tradição histórica e cultural. Faz parte da mise en scène. Aqueles dois versos do Pessoa — ‘Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!’ — não deve haver político nenhum que não os tenha citado.” Se hoje são os Descobrimentos o tema mais popular para o público não-especializado, isso não deve apagar o facto de a relação com esse período histórico nem sempre ter sido pacífica, lembra o historiador Rui Ramos. Para o investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, é preciso não esquecer que Quental dizia que as descobertas eram uma das causas da decadência de Portugal e que Alexandre Herculano tentou lançar a formação do reino na Idade Média como a parte da história que mais devia interessar aos portugueses na época contemporânea. Essa aposta no Portugal medieval é recuperada, explica Ramos, a seguir a 1974, devido à descolonização, a um certo desinteresse da comunidade historiográfica pela expansão, e aos trabalhos de referência do professor José Mattoso. Só em 1998 os Descobrimentos voltam a ganhar mais terreno, com os festejos da viagem de Vasco da Gama à Índia. “É um tema muito central na nossa história. A expansão foi, no século XX, em relação com a colonização de África, extraordinariamente cultivada em termos de comemorações, de estudos”, explica, sublinhando, tal como Graça Moura, que o regime de Salazar não foi o único a servir-se ideologicamente dos Descobrimentos. A monarquia constitucional celebrou em 1894 o quinto centenário do infante D. Henrique e quatro anos mais tarde a viagem do Gama; em 1915, a própria república fez comemorações, ainda que modestas, dos 500 anos da

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conquista de Ceuta. No que toca aos Descobrimentos, há uma continuidade entre os regimes: “Tudo isso, obviamente, deixou um lastro que explica também que o regime democrático, quando teve oportunidade de fazer as suas primeiras grandes comemorações históricas, se tenha focado nos Descobrimentos em 1998, com a exposição internacional de Lisboa.” Para além de Gama A Expo ’98 foi certamente um grande momento de divulgação internacional de Portugal, com a tónica posta num passado de glórias de navegadores e vice-reis e num presente e num futuro de grande modernidade. Os anos que a antecederam foram marcados pelo trabalho de historiadores e outros especialistas que trouxe muitas novidades ao que já sabíamos sobre os Descobrimentos, diz Graça Moura, lembrando que é também sobre esta época que incidem as duas grandes exposições internacionais que levaram a história de Portugal e a sua arte ao público estrangeiro. Jay Levenson é um historiador de arte que comissariou as exposições a que o poeta e ensaísta se refere — Circa 1492: Art in the Age of Exploration (National Gallery de Washington, 1991) e a mais recente Encompassing the Globe: Portugal and The World in the 16th and 17th Centuries (Sackler Gallery, Washington, e Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, em 2007 e 2009) — e que se habituou a olhar para as descobertas através “do encontro de culturas” que é visível na arte que se produziu na Ásia, em África ou na Europa a partir das primeiras viagens de exploração. Levenson, que hoje é director do programa internacional do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e foi também o comissário de outra das grandes exposições internacionais de arte portuguesa ligada à expansão, The Age of The Baroque in Portugal (National Gallery, 1993), é da opinião que “os portugueses ainda sentem o peso da sua época de ouro”, mas que esse peso, “apesar de por vezes parecer levar a um certo arrependimento”, não precisa de ser esmagador. Especialista em arte italiana da Renascença, não consegue evitar a comparação: “É como Florença. O que os florentinos foram capazes de fazer no século XV e no começo do XVI foi tão extraordinário para uma cidade-Estado tão pequena que não poderia ter durado para além de Galileu e nunca poderia ter sido repetido. Mas os florentinos têm nisso um grande orgulho, sem se lamentarem pelo facto de já não poderem desempenhar o mesmo tipo de papel no mundo. Parecem-me um bom modelo para Portugal.” Para Levenson, e tomando os Estados Unidos como exemplo, o público em geral está longe de ter noção da verdadeira importância que Portugal teve no mundo nos séculos XVI e XVII. É preciso que sejam os portugueses a fazer mais para que os alunos nos Estados Unidos e até em países europeus passem além de Vasco da Gama e do infante D. Henrique e percebam até que ponto foram essenciais para dar a ver um mundo novo, sobretudo em África e na Ásia. “Poucos são os alunos americanos que sabem que os portugueses chegaram à China em 1514”, diz. Poucos são os alunos portugueses, acrescentariam Graça Moura e Rui Ramos. Mitos do império Para o antigo presidente da Comissão dos Descobrimentos, a escola tem tido, sobretudo devido a uma grande flutuação de metodologias, uma “papel extremamente negativo” na relação dos portugueses com o seu património cultural, seja no plano da língua, seja no da história. Ramos defende que os programas escolares não têm sabido seduzir os alunos para o estudo da História, perpetuando mitos, e às vezes nem isso.

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E de que mitos falamos? A Escola de Sagres, os Descobrimentos como um desígnio nacional mais do que um projecto da coroa e das elites que a rodeavam, a expansão com uma causa só e não como uma fenómeno altamente complexo e variado, a existência de um império, em contínuo. “Houve vários impérios, com curtos-circuitos”, diz o investigador do ICS. “Esse é outro dos mitos que podemos associar à história imperial — o de que o império começou em 1415 e terminou em 1975, ou em 1999 com Macau, ou em 2002 quando Timor se tornou independente. Todo o império africano é recente e efémero. Vem do fim do século XIX e dura 70, 80 anos e, nalguns casos, ainda menos.” O que os livros de escola habitualmente não contam — ou pelo menos não exploram tanto como os feitos militares e náuticos — é que os portugueses foram desalojados do Oriente a partir do século XVII porque não tinham meios para competir com as outras nações, que o país chegou a estar perto da bancarrota em meados do século XVI e que, no quotidiano, os portugueses anónimos que fizeram a expansão viviam mal e estavam longe de pensar no seu tempo como uma época de ouro. “Era para as dificuldades que toda a gente olhava”, diz o historiador, mas, com o tempo, “as dificuldades do passado desaparecem e são as do presente que nos fascinam. Temos a tendência para projectar no passado a ideia de que não havia dificuldades, que é agora que estamos a decair, o que é ridículo”. Mesmo em termos contabilísticos, explica, o Brasil do século XVII e XVIII era muito mais importante do que a Índia do século XVI, mas foi a Índia que ficou na memória como a grande expansão. Não vivemos esmagados nem oprimidos pelo que Portugal foi nos Descobrimentos, garante Rui Ramos, mas gostamos de falar deles como quem gosta de contar uma boa história. “Portugal é hoje muito mais rico e desenvolvido do que alguma vez foi no tempo dos Descobrimentos, mesmo em relação a outros países europeus. Mas a nossa ideia é de que éramos grandes então e agora somos pequenos e pobres, o que não tem nenhuma razão de ser, embora se compreenda.” Porquê? “É mais uma vez o fascínio da aventura, da proeza, da afirmação militar, das grandezas do Afonso de Albuquerque e de D. Francisco de Almeida. Isso continua a fascinar, mesmo quando nós não gostamos de o confessar. Essas são as grandes histórias que podemos contar. A grande história não é a da formação do Bloco Central entre 1983 e 84, com Mário Soares e Mota Pinto. A grande história é dobrar o cabo da Boa Esperança, a grande história é chegar à Índia, a grande história é conquistar Goa, a grande história é defender o Brasil dos holandeses… A grande história é a das aventuras, com emoção, a história que abre horizontes. As aventuras são matéria de filme e de romance, é a aventura que as pessoas procuram, verem na história algo de diferente do que é o quotidiano.” É talvez por isso que o discurso sobre o contacto de civilização e o progresso científico que os portugueses trouxeram ao mundo é subalternizado pela narrativa feita de heróis e batalhas, algo que é altamente empobrecedor, na opinião de Graça Moura. “Há uma dimensão humana, que até tem a ver com a própria noção de mestiçagem, que é fundamental em relação aos Descobrimentos. Há até um historiador francês que diz que somos todos bastardos e mestiços e que é por isso que somos inteligentes. Efectivamente, essa relação, no plano antropológico, no plano civilizacional, devia ser mais valorada e não tem sido.” De fora ficam muitas vezes os relatos dos cidadãos que arriscaram tudo pela viagem, os meandros da corrupção na Índia e a desorganização nalguns territórios, lembra o ensaísta. Ramos defende que, se mostrássemos mais que esta não foi uma época de semideuses, mas de pessoas comuns que muitas vezes tiveram medo e dúvidas, que muitas vezes hesitaram e outras arriscaram, talvez os Descobrimentos tivessem ainda mais peso na cultura portuguesa e não fossem um tema fechado nos livros. Ou uma “memória cada vez mais distante”, como diz Graça Moura, uma memória que corremos o risco de perder.

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Para Rui Ramos, em Portugal reflectiu-se pouco sobre esta época, ao contrário do que se passou com outros países europeus que participaram na expansão entre os séculos XV e XX. Apesar de terem problemas na sua relação com este passado, França, Espanha ou Inglaterra “fizeram desta dimensão da sua história uma dimensão fundamental na sua relação com o mundo, pela projecção da língua e da cultura”, o que não aconteceu em Portugal, onde “os debates não foram tão intensos”. Ascensão e queda Jay Levenson defende que estes países sentem o mesmo tipo de “nostalgia” de Portugal, mas, como têm uma história recente mais próspera, “essa nostalgia é mais contida”: “O peso é maior porque a ascensão e queda de Portugal foi mais dramática. Apesar de o seu desenvolvimento ter sido interrompido no final do século XVI, Portugal tem um segundo período de prosperidade imperial no século XVIII, o que faz com que, na verdade, sinta uma dupla perda.” Tal como Graça Moura, o historiador de arte norte-americano vê na língua uma extensão desse passado que pode ser promovida no presente, com grandes vantagens para o país, culturais e económicas. O facto de haver cada vez mais investigadores estrangeiros a olhar para este período — é preciso não esquecer que foi uma área que sempre teve grandes contributos exteriores, como o do historiador inglês Peter Russell (primeira biografia do infante D. Henrique) ou o do indiano Sanjay Subrahmanyam (grande estudioso de Vasco da Gama), sublinha Ramos — pode ajudar a manter viva a memória dos Descobrimentos, mas dando-lhe uma nova perspectiva. “Continuamos a ser actores da globalização quando vendemos uma empresa aos chineses ou fazemos um investimento no Brasil. É claro que não é o mesmo que chegar à Índia ou dobrar o cabo da Boa Esperança. No século XV e no século XVI há um protagonismo que permitiu aos portugueses reivindicar um papel numa história universal, mas essa também é uma história contada do ponto de vista dos europeus. Um dia ela poderá vir a ser contada pelos chineses e tudo isto pode ter uma dimensão bastante mais restrita e, provavelmente, o papel que julgávamos que tínhamos deixaremos de ter.” Mais uma vez, estamos sempre a valorizar em função do nosso tempo, adverte o historiador. “E neste momento temos já a sensação de estarmos a valorizar em função de um tempo anterior em que a Europa teve um peso no mundo absolutamente desproporcionado. Sobretudo entre o fim do século XVIII e o princípio do século XXI, o mundo foi quase Europa, antes não era e agora também já não é.” E como verão os portugueses este período daqui a 100 anos? Vai depender muito do mundo em que viverem, diz. “É muito difícil não apenas adivinhar o futuro, mas adivinhar a maneira como o passado há-de ser visto no futuro. Às vezes o passado é tão incerto como o futuro. As pessoas julgam que o passado está fixo e que o futuro é que é uma coisa que ainda não está decidida — é uma ilusão.”

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II O que (não) fizemos para voltar ao mar 27.09.2012, Por Lurdes Ferreira, Bárbara Reis

O porto de Sines está a crescer a taxas de 20% ao ano (Miguel Manso)

Desde 1974, os portugueses tentaram regressar ao mar duas vezes. Há 40 anos que fugimos do mar. Mas vem aí a reabertura do canal do Panamá e a extensão da plataforma continental. Mesmo sem estratégia, a economia do mar vale 10 mil milhões de euros. Ter três mil quilómetros de costa projectada sobre o Atlântico na encruzilhada de três continentes, à porta da bacia do Atlântico Sul e, em simultâneo, uma das maiores zonas económicas exclusivas da Europa, seriam razões de sobra para Portugal ser um país marítimo. Mas não. Portugal é um país com mar, mas hoje não é um país marítimo. Em termos económicos e geopolíticos, vive há mais de 40 anos com as costas viradas para o mar. Sem estratégia a longo prazo, dizem muitos especialistas. Ciclicamente - e em ondas sem continuidade - o discurso público concentra-se no mar e no seu potencial. Houve ímpetos e alguns passos concretos. A Exposição Universal (1998), o Livro Branco para a Política Marítimo-Portuária (1999), a criação da Estrutura de Missão para preparar a proposta à ONU para duplicar a extensão da plataforma continental portuguesa (2005), e a entrega da candidatura à ONU (2009). Houve também sinais de acção recentes. O Plano de Ordenamento do Espaço Marítimo, há muito esperado, foi aprovado este Verão. Na vida das empresas ligadas à economia do mar, no entanto, o mar parece não sair do papel. É hoje comum ouvir-se que o mar "é estratégico" e o próprio Presidente da República, Cavaco Silva, fala do mar como "prioridade nacional", mas disse também num discurso que "falta largar do cais". Significa isso que falta tudo? "O que nós precisamos é de dar um mergulho fundo", diz a ministra Assunção Cristas com ar convicto. "Um mergulho fundo é termos projectos económicos concretos a funcionar no mar." Eles existem, mas são casos mais ou menos isolados. "Nestes últimos 30 a 40 anos, Portugal não se tem perspectivado como país marítimo. Esquecemos a nossa geografia. Os decisores económicos, políticos, académicos e os media perderam essa visão", diz Tiago Pitta e Cunha, o jurista que defende há uma década o regresso dos portugueses ao mar e hoje é conselheiro do Presidente para esta área.

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O contributo da economia do mar para o PIB "é um desastre nacional porque o país não a aproveita", diz José Poças Esteves, presidente da Sociedade de Avaliação de Empresas e Risco (SaeR), que desenvolveu o primeiro grande estudo sobre o valor da economia do mar. Os números impressionam. O estudo de 2010 da SaeR, fundada pelo economista Ernâni Lopes, calcula que a economia do mar vale 10 mil milhões de euros e identifica-a como umhipercluster (grande aglomerado de indústrias) composto por 12 clusters independentes mas que se ajudam entre si (a pesca e a energia offshore são diferentes, mas precisam da indústria e da reparação naval). O potencial de exploração do fundo do mar, com a extensão da plataforma continental portuguesa, aponta para cálculos ainda mais sonoros. Segundo o secretário de Estado do Mar, Manuel Pinto de Abreu, a exploração de cobalto, níquel e cobre pode render 60 mil milhões de euros anuais. Por enquanto, parece ficção. Como agarrar o mar A ministra discorda das visões pessimistas e sublinha o potencial: produção de peixe, ostras ou bivalves para a alimentação; ómega 3 (abundante na cavala) para a farmacêutica e cosmética; algas para os biocombustíveis de segunda geração; minério no fundo do mar e no subsolo; energias limpas como a energia das ondas; turismo náutico como o surf; actividade portuária e transporte marítimo (quando 70% do comércio mundial se faz por mar)... a lista é longa. Perante o "muito trabalho invisível feito no passado" e o conhecimento acumulado, "este é o momento" de se dar "o passo para a acção", mesmo que não haja ainda "o desenho todo para avançar", diz a ministra. Cristas defende uma "estratégia incremental" - "a melhor maneira de agarrarmos o mar". Ou seja, "agora conseguimos fazer isto, fazemos; amanhã conseguimos fazer mais aquilo, fazemos". E quando ouve que não se vê nada de tangível, responde: "Há um ano, foi montada uma estrutura pioneira no mundo, a eólica offshore do largo da Aguçadoura, na Póvoa de Varzim. Foi a primeira vez no mundo que se juntou uma plataforma usada para as petrolíferas e uma torre eólica que é usada em terra e em mares menos profundos. Nós temos um mar muito profundo e por isso não conseguimos ter uma torre eólica assente no fundo do mar. Precisámos de desenvolver outra maneira de lá chegar. É para um mar difícil, um mar duro, que é o mar português, e foi colocada a tempo de resistir a um Inverno. Já passaram cinco meses. Resultou." Para a ministra, este caso "mostra que passámos da teoria, do potencial, da hipótese, à prática". O passo seguinte? Pegar na tecnologia e replicar, para Portugal e para exportação. "Temos o dever de ser pioneiros." 1974, o abandono A grande ruptura histórica com o mar é situada em 1974, como grande consequência da revolução de Abril e da descolonização. Foi o caminho para cortar com a ideologia e a estética do Estado Novo, que exortava o mar como caminho de glória, na Expansão e conquista do Império. Portugal vira-se então para terra - para casa, diria o filósofo Eduardo Lourenço. Em O Labirinto da Saudade - Psicanálise Mítica do Destino Português, o pensador escreveu que, por volta de 1974, os portugueses perderam a consciência imperial e regressaram "aos estreitos e morenos muros de pequena casa lusitana".

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Poças Esteves defende que Portugal teve um conceito estratégico ligado ao mar desde o fim da revolução de 1383-85. D. João I subiu ao trono e Portugal deixou claro a Castela que quem mandava na costa portuguesa eram os portugueses. E assim foi até 1974. "O mar deu riqueza e poder aos portugueses durante 600 dos seus 900 anos de história. Abandonámos o mar em 1974 e só agora é que o país começa a perceber que o mar é o futuro." A ressaca do choque petrolífero de 1973 teria sido suficiente para abanar os grandes projectos que Portugal tinha então para o mar, por estarem pendurados na miragem de uma idade de ouro do petróleo. Mas a isso juntaram-se o abandono das relações comerciais com África, que caíram a pique; as nacionalizações; e o desmantelamento do aparelho económico corporativo do Estado Novo. A Lisnave, que era então o maior estaleiro naval do mundo e que se tinha preparado para a chegada dos superpetroleiros de um milhão de toneladas, viu morrer o seu projecto, ainda que o negócio da grande tonelagem estivesse já condenado no Ocidente perante a entrada dos estaleiros asiáticos no mercado. A indústria naval e a marinha mercante não resistiram ao impacto somado da recessão e da revolução. A construção do porto de Sines - a maior obra pública da época - começa no ano em que rebenta o primeiro choque petrolífero e um ano antes da revolução. Transformou-se num imenso elefante branco. Sem uma estratégia, também o sector das pescas entrou em crise. O que Portugal fez então foi atingir "o coração de qualquer economia do mar, de qualquer nação marítima": os portos e os transportes marítimos. "Foi o pecado original", diz Pitta e Cunha. Vingou desde então, acrescenta, "uma visão reducionista do mar". A "desvalorização dos portos e dos transportes marítimos foi de tal ordem que eles desapareceram económica e geopoliticamente do país". Apenas um sector foi imune: o turismo costeiro. Nos anos 1970, o turismo de massas no Algarve expandiu-se e consolidou-se. "É o turismo costeiro, do hotel e do restaurante junto ao mar. É o "sol e praia"", diz Pitta e Cunha, sublinhando uma ironia: o "sol e praia" são o principal produto turístico e só existe por causa do mar, "mas os portugueses não associam esse turismo ao mar". Europa em vez do mar A prioridade política da geração do 25 de Abril foi rumar à Europa, à integração na Comunidade Económica Europeia (CEE). O país chegou às negociações sem condições para se afirmar como um país de mar, ao contrário de Espanha, que tinha grandes projectos para a sua indústria e cobiçava a costa portuguesa. O sector pesqueiro foi um dos mais mediáticos neste processo e o que ficou na memória dos portugueses. "O modelo estava em derrocada e tinha que ser substituído", diz Carlos Pimenta, que foi secretário de Estado das Pescas em 1985, no Governo de Mário Soares, e apoiou a equipa de Ernâni Lopes que negociou a adesão portuguesa nesse ano. O quadro político-económico era difícil: as nacionalizações tinham-se sobreposto ao modelo corporativo do Estado Novo, o endividamento esmagava os pescadores, os salários em atraso cresciam. "Era um caos." Portugal garantiu a zona exclusiva de 12 milhas para a sua pesca artesanal, ajudas para a motorização dos barcos e instalação de frio a bordo. Olhando para trás, Pimenta diz que as concessões para a pesca artesanal - contra a vontade espanhola - foram a grande conquista. Perderam-se as pescas, dirão muitas pessoas. E Pimenta compreende. Aquela época representou "o desaparecimento de vários mundos e ficámos confinados a uma realidade muito mais pequena. Sem a adesão à CEE, o sistema estava na falência. Não tinha havido

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modernização dos portos nem das pescas. Todo o sector industrial teve apoios à modernização. O nosso mar Atlântico aumentou, mas os mares do mundo onde íamos buscar peixe encolheram". Esse mar "estava a ir-se embora e não foi por a gestão passar para a CEE: os recursos estavam a ir embora e não tínhamos plano B. Não tínhamos uma fileira com conhecimento de valor". No final, prossegue Pimenta, "a adesão implicou negociar um sector em derrocada por outro forçosamente mais pequeno, mas com mais valor e com recursos que perdurassem". Para isso, o país recebeu "muitos milhões, alguns mal geridos". Mas, como o antigo secretário de Estado diz, o sector tornou-se mais eficiente e gera mais valor. Hoje, o país pesca quase três vezes menos do que há 40 anos. Entre os anos 1980 e 2000, o número de pescadores caiu 52,6% e o valor do pescado subiu 43%, segundo o INE. Da Expo aos portos A Expo"98 e o seu tema Oceanos: um Património para o Futuro prometiam mudar a relação do país com o mar, pela primeira vez desde 1974. Revitalizou uma área imobiliária, chamou turistas, criou grandes espaços arquitectónicos e ergueu-se um dos maiores oceanários do mundo - mas não chegou. "As docas, os portos, os navios, os guindastes estavam ausentes da estética da Expo"98", diz Pitta e Cunha. A economia do mar não estava lá, embora o evento tenha impulsionado uma nova realidade nacional: as universidades criaram unidades ligadas às ciências do mar e uma nova geração de investigadores surgiu. O Livro Branco para a Política Marítimo-Portuária, de 1999, representa a segunda tentativa e talvez a medida política com mais impacto para a reaproximação de Portugal ao oceano. João Cravinho, ministro do Equipamento, Planeamento e Administração do Território (1995-1999), reconhece que ter tido todas estas pastas sob a sua alçada - o que acontecia pela primeira vez - lhe deu a "oportunidade de lançar uma visão estratégica que integrasse muito mais Portugal na actividade europeia". "Tínhamos ambição." Foi Consiglieri Pedroso, o seu secretário de Estado adjunto, quem liderou o grupo de trabalho do Livro Branco. Num país que não dá grande crédito aos livros brancos, este foi raro por ter dado frutos. Era a visão estratégica de desenvolvimento de 20 a 30 anos e que partia da observação do "estado da arte" a nível internacional. Segundo Cravinho, os portos tinham aí um papel decisivo: "Se tínhamos uma estratégia de criar uma nova centralidade europeia de fachada atlântica, os portos tinham de ter o primeiro lugar."Consiglieri Pedroso recorda que "havia uma oportunidade única por estarmos de costas voltadas, por se ter cometido muita imprudência, por se terem abandonado sectores de actividade, desmantelado os transportes marítimos, a pesca, apostando pouco no mar e nos portos. Tinha sido um erro". Visão tribal Passos marcantes surgem rapidamente no pós-Livro Branco: regresso ao porto de Sines, entrega da gestão dos portos a privados (mantendo o Estado a sua propriedade), reformas legislativas de fundo. Contudo, o fôlego perdeu-se nas décadas seguintes. Cravinho lamenta: "Do ponto de vista estratégico, cafrealizámos. Passámos para uma visão tribal, de feudos. O pensamento estratégico perdeu-se." Quando, em 1999, fez o contrato com a empresa PSA de Singapura para explorar o terminal XXI do porto de Sines, "o Governo comprometeu-se a fazer uma

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ligação ferroviária de Sines a Espanha e à Europa. Isso foi há 13 anos". A ligação ainda está por fazer. Por isso, Consiglieri Pedroso considera que "a reabertura [e expansão] do canal do Panamá [prevista para 2014, depois de sete anos de obras] é uma oportunidade magnífica para afirmar Sines" como porto hub de difusão para norte, sul e Mediterrâneo. E se o canal do Panamá ganhar mercado ao do Suez, "Sines assume uma importância maior". Só que em Sines continua o ponto negro - as ligações "tortuosas e disfuncionais". Apesar de não poder ligar-se por terra à Europa, a concessão da PSA tem permitido ao porto de Sines desenvolver-se a taxas sem paralelo no resto da economia. É Poças Esteves que frisa que "o porto de Sines está a crescer a taxas de 20% ao ano, quando o país não cresce". O que o leva a concluir que "os portugueses não estão a olhar para o lado certo da economia". Turismo e pesca Perante a profunda crise e a falta de investimento, Poças Esteves não tem dúvidas. "Se queremos pagar os juros da dívida, a economia tem de encontrar actividades com geração de riqueza a taxas elevadas e com procura internacional". Os sectores que vê como mais aptos são o turismo e a pesca. "Ao contrário do que possa parecer", diz, "a pesca é um dos sectores de largo futuro para a economia portuguesa". E por isso defende a aquacultura. "Com todo este mar, o país importa 60% do peixe que consome. É uma irracionalidade." A ministra Assunção Cristas concorda que "seria bom fazer aquacultura para peixe", mas diz que é "duvidoso por causa da agitação das águas". O mar português "é muito batido, muito forte" e isso cria "preocupações que não são evidentes". Dois exemplos: é difícil garantir que as estruturas de aquacultura se mantêm no mar e, sendo "preciso alimentar os peixes", como se faz se "não conseguimos sair porque o mar está picado? Os peixes não podem ficar sem comer uma semana...". Com bivalves ou ostras "é mais fácil", diz Cristas. "Aí temos belíssimas condições" e é uma "área de muito interesse para exportação, por exemplo para a França e a Bélgica, grandes consumidores de bivalves e ostras". Os dados do Eurostat de 2009 dizem que Portugal tem uma das maiores ZEE e a menor produção. A Grécia produz 20 vezes mais em aquacultura do que Portugal, a Espanha 40. Todos estes especialistas estão convictos de que há um papel insubstituível, que cabe ao Estado, no regresso do país ao mar. Cravinho exemplifica que "na conquista do espaço pelos EUA estiveram lá as maiores e melhores empresas americanas, mas quem promoveu aquilo tudo foi o Estado. Sem Estado, nada".O Governo actual deu um sinal, com a constituição de uma Secretaria de Estado do Mar e o empenhamento do seu responsável em fazer da extensão da plataforma continental a mola para o regresso ao mar. Os contratos de pesquisa para hidrocarbonetos que o Ministério da Economia assinou vão na mesma linha. Só em 2016 é que a ONU vai nomear a subcomissão que apreciará a candidatura para a extensão da plataforma continental dos actuais 1,7 milhões para 3,8 milhões de quilómetros quadrados. "Olhamos para Portugal e dizemos: é um país pequeno, pobre e periférico. É verdade, se retirarmos o mar. Mas se olharmos Portugal com mar, estamos a falar de um dos maiores países do mundo. Não da Europa. Do mundo. Temos quase quatro milhões de quilómetros quadrados em água, com riquezas fabulosas, à superfície e no fundo." É a visão de Poças Esteves.

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Outro sinal que aconselha à mudança é o facto de o mar ser um recurso estratégico não só para Portugal. "A Europa esgotou os seus recursos em terra e falta-lhe explorar o mar, grande parte do qual é português." E Portugal, ou desenvolve a sua capacidade negocial ou perde para outros países a gestão dos seus recursos. A segunda hipótese, profetiza o presidente da SaeR, será "entregar a galinha dos ovos de ouro".

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III

Berlenga: Sentinela de luz na ilha das gaivotas 28.09.2012, Por Luís Francisco

O farol existe desde 1841 e a torre mede 29 metros, projectando o feixe de luz até uma distância de 16 milhas náuticas (Foto: João Henriques)

Na era do GPS e das comunicações móveis, os faróis ainda servem para alguma coisa? Tudo indica que sim, na mesma medida em que as calculadoras não devem substituir o conhecimento da tabuada. E há mais: o património, a história, a magia. Todos os faróis são sítios muito especiais. Mas o da Berlenga é um caso à parte. A torre cravada a meio do maciço granítico, no seu ponto mais alto, destaca-se mesmo à distância. É um pormenor incontornável na paisagem e vai ganhando detalhe à medida que o sobe e desce das ondas nos aproxima da ilha. Sim, a silhueta é inconfundível, mas bastam alguns minutos em terra - e pouco menos de um quilómetro de subida puxada pelo único caminho pavimentado da ilha - para descobrirmos que a Berlenga não tem um farol. Tem dois. O primeiro existe desde 1841 e a torre, edificada a 121m de altitude, mede 29 metros, projectando o feixe de luz até uma distância de 16 milhas náuticas (cerca de 30km). O segundo farol da ilha não ambiciona números tão pomposos, mas, em contrapartida, o seu nome merece maiúscula: o Farol é o cão... do farol. Simpático depois de ser apresentado, o pequeno rafeiro está na ilha em substituição de outro, também chamado Farol, que se reformou há algum tempo. Se o farol da Berlenga faz jus à fama de ter a envolvência mais dramática de todos os 48 existentes em território português, o Farol do farol também se ufana de ser especial: ele é o único cão autorizado a viver na ilha. Passa os dias deitado em cima do muro caiado de branco a olhar o mar e as curvas suaves da paisagem que o rodeia. E é nessa paisagem que reside o motivo para a sua solidão: não pode haver cães porque seriam uma ameaça para as gaivotas e restantes aves marinhas que nidificam por todo o lado. Nos meses de Verão, as Berlengas são um destino turístico popular (embora de acesso restrito, para evitar sobrecarga humana sobre a Reserva Natural). No resto do ano, só os vigilantes do serviço de parques (quase sempre) e os faroleiros (sem falta) disputam a paisagem às ruidosas aves marinhas e às rápidas, mas curiosas, lagartixas. O mar, aqui, tanto

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pode acariciar as rochas, formando grutas e enseadas no seu labor milimétrico, como esmagar-se sobre elas em iras assassinas. Quando assim é - e no Inverno acontece com alguma frequência - de nada serve o pequeno ancoradouro edificado junto ao chamado Bairro dos Pescadores e bordejando a única praia facilmente acessível da ilha. O mar toma posse de tudo, como se protegesse de estranhos a sua rocha de estimação. E, quando o mar não quer, não há maneira de se render a dupla de faroleiros que ali presta serviço - em tempos, registou-se mesmo um episódio inédito, quando a rendição teve de ser feita de helicóptero. É por isso que eles vão sempre prevenidos para uma estadia um pouco mais prolongada do que os sete dias da escala. Hora de ponta no cais Um amador até poderá ser levado a pensar que estas ondas que nos assaltam pela proa são grandinhas. Mas é melhor não tecer grandes considerações quando se fala do mar ao largo do cabo Carvoeiro. O Berlenga avança durante uns bons 40 minutos contra a vaga, que nos meses de bom tempo costuma chegar de norte ou noroeste. De vez em quando, sempre que a água cava com mais força, bate e projecta espuma sobre o convés. Durante alguns minutos, o faroleiro subchefe José Conceição, que comanda o farol do cabo Carvoeiro e, por inerência, também o das Berlengas, fornece informação histórica e técnica. Mas o mar é local de encantamento e haverá tempo, mais tarde, para voltar a estes assuntos. Por agora, os olhos só conseguem soltar-se da atracção magnética daquele pedregulho enorme que vai crescendo à nossa frente quando traçam meia volta confirmando a progressiva perda de imponência das falésias de Peniche. A bordo viajam os homens que vão cumprir a sua rotação no farol de Peniche. Uma semana na ilha, duas em terra firme. Desta vez, avançam os faroleiros de 1.ª classe Jorge Mendonça e João Coutinho. O primeiro, algarvio, da ilha do Farol ("Praticamente nasci nos faróis"); o segundo, alentejano, de Elvas. Mendonça será o porta-voz. Eles são dois dos cerca de 110 faroleiros destacados nos 50 faróis do país, entre continente e ilhas, cobrindo uma costa frequentada por dezenas de milhares de navios. Na sua maioria, as embarcações nem precisam de se orientar pela velha rotina do piscar da luz, mas ainda há quem não disponha de GPS. E só quem esteve à noite no meio do mar, na escuridão total, sabe como é reconfortante ver, ao longe, um clique de luz que indica terra firme.Regressemos à Berlenga, onde se perfila o que é unanimemente considerado o mais "especial" dos nossos faróis. A primeira coisa a fazer quando se chega ao cais é, claro, descarregar tudo o que nos fará falta durante a estadia. E uma semana é bastante tempo. A sazonal comunidade da Berlenga depende em absoluto da ligação marítima: tudo chega a bordo dos barcos que zarpam de Peniche, sejam eles os das entidades oficiais, os das empresas turísticas particulares ou o Cabo Avelar Pessoa, o maior de todos, que faz as vezes de autocarro de carreira. Ou mesmo o barco do lixo. Uma boa dúzia de contentores alinha-se num dos extremos do cais, firmemente amarrados com cabos. Uma vez por semana, são levados para o continente, onde depois o seu conteúdo acabará em lixeiras... para algum dele voltar à Berlenga nos dias seguintes. Pelo bico das gaivotas, que há muito aprenderam a viver do que os humanos deitam fora. Num passeio pela ilha, é fácil encontrar ossos de entrecosto ou coxas de frango, luzindo como fitas reflectoras curtidas pelo sol no tapete verde forrado a penas. Por todo o lado paira uma ligeira, mas persistente, pestilência a peixe e dejectos. Ao segundo dia já nem daremos por ela.

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A lida da casa Mas voltemos ao cais. Do Berlenga saem caixotes de comida, packs de bebida, latas de tinta, bilhas de gás, ferramentas, roupa; entram no barco os que se vão e desenrolam-se os cabos que o prendem a terra. Não há tempo a perder: nestes meses de Verão pode chegar a formarse uma fila de embarcações à espera de vez para chegar ao minúsculo cais. Alguns até apitam quando o que está atracado se demora... É aqui que a ilha se encontra. Os que chegam e os que partem, quase todos conhecidos, muitos recados e encomendas para entregar, as piadas do costume, os olhares jocosos que se trocam nos dias em que os turistas põem pé em terra firme com evidentes sinais de enjoo. Para quem chega pela primeira vez, é como sair do autocarro em plena praça da aldeia. Depois, a multidão dilui-se. Entre o cais e o farol, há que galgar 120 metros de desnível ao longo de uns 800 metros de caminho cimentado. Não parece muito, mas dá uma inclinação de 15% - houvesse aqui bicicletas e isto seria um prémio de montanha de primeira categoria. Bicicletas não há, nem carros, claro. Ou, melhor, só há um: o pequeno tractor que os faroleiros usam para levar a bagagem até lá acima. Nem sempre foi assim tão fácil. E os sinais desses tempos de árduo suar estão bem à vista de quem os queira descobrir. Mais ou menos a cada centena de metros, umas argolas de metal sobressaem lateralmente do piso de cimento - eram usadas para passar uma corda atada ao carro, de forma a que este pudesse ser puxado de baixo até ao ponto de apoio. A seguir travava-se o veículo, levava-se a corda até ao próximo gancho, recuava-se até ao carro e repetia-se a tortura. Só a descrição cansa. Arrumar tudo o que se levou até lá acima consome as primeiras horas da estadia no farol. Depois, há que organizar as tarefas. E elas são tanto de manutenção do edifício e vigilância dos sistemas do farol como de pura e simples... lida da casa. "Fazemos tudo", explica Jorge Mendonça. "Cozinhamos, lavamos a roupa, limpamos a casa." E ainda sobra tempo para alguns hobbies: "Ler, escrever, pescar. É também isso que nos ajuda a enfrentar a solidão, principalmente nos meses de Inverno."No Verão há sempre gente a passar, turistas que palmilham os trilhos da ilha apontando máquinas fotográficas e câmaras de vídeo às gaivotas, gente conhecida que sobe da aldeia para dois dedos de conversa e, quem sabe, juntar-se à sardinhada do almoço. Mas isso é nas horas de descanso. Antes, os faroleiros instalam-se nas suas rotinas com a naturalidade de quem já fez isto muitas vezes. Há roupa a secar na corda, vassouras em prontidão no pátio, as janelas abrem-se para arejar divisões - terão de ser fechadas antes de a noite cair, sob ameaça de invasão por parte de outro grupo numeroso de habitantes locais: os ratos. Durante a tarde, Mendonça esteve a verificar os geradores a diesel (o farol é alimentado por uma central fotovoltaica, mas é necessário um sistema de emergência). E recorda-se bem da fase em que os geradores cederam lugar às energias renováveis. "Acordávamos a meio da noite, aflitos com o silêncio... "Ai que o gerador falhou"... e só depois é que nos lembrávamos!" Uma pequena aldeia A opção ecológica - a existência da conduta de combustível encosta acima não se coadunava com as regras de uma reserva natural - reflecte-se em todo o farol. Os faroleiros têm frigorífico e televisão, mas não podem utilizar aparelhos domésticos de alta voltagem, como o

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microondas, por exemplo. Aqui ninguém se esquece das luzes acesas quando sai da sala... Na torre, o progresso tecnológico deu uma ajuda. Lá no alto, sobre a imensa plataforma onde dantes se arrumava o impressionante aparelho hiper-radiante de Fresnel (o maior do país, a par do que ainda funciona no cabo de S. Vicente), alinha-se agora uma elegante coluna de LED. Com um consumo significativamente menor, os LED têm um desempenho luminoso equivalente e, muito importante, são eles que piscam e não a máquina que roda à volta das lâmpadas. Ou seja, eliminou-se também o desgaste provocado pelo movimento. Tal como todos os outros faróis portugueses, o da Berlenga está automatizado. Mas isso não significa que os faroleiros não precisem de estar sempre alerta - qualquer falha de energia ou avaria técnica têm de ser imediatamente resolvidas. A norma internacional exige a um farol que funcione, no mínimo, durante 99,8% do tempo... Com um sorriso, o faroleiro subchefe José Conceição frisa que, pelo menos sob o seu comando, "o farol da Berlenga nunca falhou". Faça sol ou faça chuva. Ou vento. Bom, isso é quase sempre. A brisa do final desta tarde faz tinir a chapa da chave de uma das casinhas que se alinham à volta do pátio central. Têm números, as casas, como numa aldeia. E já o foram. "O meu pai fez aqui serviço e um dos meus irmãos viveu cá. Eram sete faroleiros mais as famílias - ficavam cá dois anos; só iam a terra para se abastecerem", explica Mendonça. Outros tempos. Mas o Inverno será sempre o Inverno e não é difícil apenas no mar. Neste bocadinho de terra cercado de água, a meteorologia é violenta. O vento aqui pode ser uma entidade maligna. "Nessas alturas, sabe muito bem estar dentro de casa...", desabafa o faroleiro. Noutras, o isolamento e alguma sorte podem proporcionar momentos únicos: "Uma vez até vi uma foca!", revela Mendonça. Fora da água, neste imenso calhau quase dividido em partes desiguais por uma falha sísmica, mandam as gaivotas e as cagarras. Estão em todo o lado. Quando o barco se aproxima, a imagem é de documentário: milhares de aves voam, gritam, poisam nas escarpas. Sentimonos um Richard Attenborough aportando a um qualquer paraíso perdido. E é um paraíso. Acima e abaixo da linha de maré: as águas incrivelmente transparentes que rodeiam a Berlenga e os ilhéus Farilhões são considerados o melhor local do continente para fazer mergulho. Asas na noite O que não existe, na Berlenga, é essa coisa de um passeio sossegado e discreto. A cada passo, revoadas de gaivotas erguem-se em protesto. Se calhamos a sair do trilho (e mesmo nele...), somos atacados por "caças" brancos em voo picado, que nos gritam aos ouvidos e evitam o choque no último instante. E depressa se percebe o motivo de tamanha indignação: por todo o lado, por entre os tufos de erva e os tapetes de chorões, há ninhos do tamanho de pratos de sopa, muitos com ovos, matizados de verde, de dimensão similar aos das galinhas. Onde não se encontram ovos, é quase certo darmos com crias que deambulam por ali. As mais corpulentas fazem-se notar facilmente, mas as pequenas agacham-se num instinto defensivo e mantêm-se imóveis, mesmo que nos encontremos a um passo delas. E, entretanto, já começou a segunda fase do ataque das mães gaivotas: se o voo picado falhou, segue-se o bombardeamento de altitude. Com fezes. Felizmente, a pontaria não é a melhor. De regresso ao edifício do farol, ultimam-se os preparativos para uma sardinhada. E então toca o telefone. Um jovem foi atingido na cabeça por uma pedra que se soltou da falésia. Para além de cozinheiros, mecânicos, domésticos, carpinteiros e tudo o resto, os faroleiros são

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também os representantes da autoridade marítima na ilha. É a eles que cabe chamar a emergência médica. Se isso se justificar. Depressa se conclui não haver razões para alarme. O jovem está sentado à mesa da fantástica esplanada sobre o porto e a praia, um grande chumaço na cabeça e... de garfo na mão. Vai atacando um bitoque. "Tinha fome", confessa. Tonturas e náuseas seriam sintomas de traumatismo craniano, pelo que o caso não parece grave. "Está melhor do que nós", constata Mendonça, o estômago a lembrar-se das sardinhas que ficaram lá em cima, no pátio do farol. Mas, ainda assim, a ferida precisa de ser suturada e o paciente observado no hospital. Chamase a lancha salva-vidas. Após alguns minutos de espera, o jovem sinistrado e a namorada são embarcados. E o resto da tarde decorre sem mais incidentes. À noite, o farol acende-se. O feixe vermelho do cabo Carvoeiro, a luz branca da Berlenga, o farolim do Farilhão ainda mais longe. A ilha já está quase deserta, com a partida dos visitantes diários ao fim da tarde. Os que ficam acabam por se juntar no café. No dia seguinte, será a nossa vez de partir. A meio da viagem, um último olhar às sentinelas de rocha que espreitam sobre o mar, os Farilhões como dedos saindo da água, o farol hoje envolto em nevoeiro. Impossível esquecer a noite anterior. Está escuro. O farolim do Farilhão pisca duas vezes, a torre da Berlenga responde a cada dez segundos. E as gaivotas, sempre atentas, sempre alerta. Um pequeno passeio à volta do edifício e elas reagem. A ilha é delas. Espectros brancos pairam no ar a cada dez segundos, quando o feixe de luz varre o negrume da noite sem lua. Elas gritam, agitam-se. O farol vigia, impávido. O pulsar da vida. A cada dez segundos.

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IV

Pode Portugal ser um imenso país do surf? 29.09.2012, Por Alexandra Prado Coelho

Estão a ser feitos três documentários sobre McNamara na Nazaré e em preparação o campeonato do mundo de ondas grandes (Foto: Rui Soares)

"O investimento está feito. Os estádios estão aí - e movem-se", diz Tiago Pires, o único português entre os grandes do circuito mundial do surf. Os "estádios" são as ondas, que, em Portugal, têm uma diversidade excepcional, reconhecida por todos. Há uma estratégia nacional para o surf? Portugal tem a maior (até agora) onda surfável do mundo, na Nazaré, com direito a referência no Guinness. Tem uma costa com ondas de excepcional qualidade e variedade. Tem, na Ericeira, uma das raras reservas mundiais de surf. E um número cada vez maior de praticantes (só a Federação Portuguesa de Surf tem 11 mil inscritos). Os estrangeiros chegam também cada vez mais, com as pranchas debaixo do braço. E as escolas multiplicam-se - são já perto de 150. De Verão e de Inverno, o mar português enche-se de figuras vestidas de negro a surfar as ondas. O surf é um negócio que cresce - e tem potencial de crescer muito mais. Mas sabemos o que fazer com ele? Estava prevista a construção de sete Centros de Alto Rendimento para preparar atletas nesta modalidade. Só deverão avançar quatro. Tiago Pires, o "Saca", único português no circuito mundial, acha que mesmo assim são muitos. Fomos tentar perceber o que o país pode fazer com as suas ondas. É preciso descer até à praia de Ribeira de Ilhas e esperar que termine a aula de surf, para conseguir falar com Ulisses Reis, surfista há muitas décadas e hoje proprietário de uma escola de surf, uma guesthouse e uma loja de aluguer de equipamento na Ericeira. Sai da água, rodeado pelos alunos, muitos dos quais estrangeiros, carregando as suas pranchas, e enquanto despe o equipamento propõe uma conversa na sua guesthouse. Aí fala das mudanças a que assistiu nos últimos 34 anos na Ericeira. "Deixou de ser uma vila piscatória para se transformar numa cidade de surf, devido à qualidade das suas ondas", conta.

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"Nós começámos com a escola no surf camp de Ribeira de Ilhas, e, no início, muito com os portugueses. Hoje temos um nível elevadíssimo de turistas noruegueses, franceses, espanhóis, finlandeses. Entre Junho e fins de Setembro, temos um turismo mais de famílias, de pessoas que vêm aprender. A partir de Setembro, já é um nível mais avançado, desde holandeses a alemães, que já querem ondas maiores e uma qualidade de surf superior." De uma coisa, Ulisses não tem dúvidas: "A Ericeira é actualmente um dos melhores sítios para o surf da Europa". As pessoas que hoje vêm para aqui - e sobretudo agora, que a zona foi classificada como Reserva Mundial de Surf -, vêm sobretudo por causa das ondas. "Podem vir passear, mas vão ter sempre uma aula, alugar uma prancha, comprar alguma coisa nas lojas de surf. Já não é o "vamos ver o barquinho de pesca e os pescadores". Isso acabou." Negócio pode render três mil milhões de euros por ano Os estrangeiros já sabem que Portugal é um excelente destino para os surfistas: boas ondas, muita diversidade, praias a pouca distância umas das outras, o que permite que, se as condições não forem as ideais numa, se mude para outra. O número de escolas de surf também não tem parado de aumentar, e com elas as lojas e todo o negócio em torno deste desporto, que, diz um estudo elaborado em 2009 por Pedro Bicudo e Ana Horta, ambos do Instituto Superior Técnico, poderia render três mil milhões de euros por ano no sector do turismo. E até surgiu, este ano, um festival de cinema de surf, o SAL, que, durante alguns dias de Junho, encheu o Cinema São Jorge, em Lisboa, de pranchas de surf e imagens de ondas. "Lisboa é uma capital europeia com proximidade do mar. Fazia todo o sentido que tivesse um festival como este", dizem os organizadores, Luís Nascimento e Ricardo Gonçalves, eles próprios surfistas há muitos anos. Num dos vídeos de apresentação do festival, um rapaz viaja por Lisboa, de eléctrico, e acaba no Cais das Colunas, no Terreiro do Paço, de prancha debaixo do braço. "Nova Iorque, Londres, Hamburgo, têm festivais de surf. Em Londres nem sequer há mar. Não fazia sentido não ter um em Portugal", até porque "o cinema de surf começa a ter imensa qualidade", tendo ultrapassado há muito "o simples documentário com pessoas a fazer surf". Começam até a surgir filmes nacionais, e os organizadores do SAL esperam que a existência do festival seja um incentivo para que no próximo ano apareçam mais. Como é que Portugal está a aproveitar todo este potencial? Há surf por toda a costa portuguesa, mas há locais com estratégias definidas e que têm ganho maior visibilidade. A Ericeira é um deles - e a classificação como Reserva Mundial teve aí um grande peso. A Nazaré conseguiu tornar-se conhecida entre a comunidade mundial do surf, e não só, ao apresentar a maior onda surfável de sempre. Não foi por acaso, mas já contaremos esta história. E Peniche apresenta-se como a Capital da Onda, e continua a manter uma prova do circuito mundial de surf, a RipCurl Pro Portugal (que começa no próximo dia 10 de Outubro e termina a 21). Centros de Alto Rendimento ficam na gaveta A nível nacional, foi também delineada uma estratégia que passava pela criação de sete Centros de Alto Rendimento (CAR) ao longo da costa portuguesa. Neste momento, explica ao PÚBLICO João Guilherme Bastos, presidente da Federação Portuguesa de Surf (FPS), "avançaram para obra quatro centros": Viana do Castelo, Aveiro, Nazaré e Peniche. E a tutela, o Instituto de Desporto de Portugal, diz que "os restantes não irão avançar".

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O objectivo desta multiplicação, diz João Bastos, teve em conta a especificidade do surf. "As outras modalidades têm normalmente um único Centro de Alto Rendimento, mas com o surf pensou-se ter vários para aproveitar melhor o potencial do país". E como cada praia tem um tipo de ondas, a ideia é que os centros "funcionem em rede, canalizando as pessoas para o que é mais aconselhável para cada uma". À parte disso, Portugal tem um atleta na elite mundial: Tiago Pires, mais conhecido como "Saca", chegou ao Circuito Mundial ASP, onde ocupa o 20.º lugar. Quando o encontramos, Tiago está numa pausa entre competições, e conversa, descontraído, na sua loja da marca QuickSilver, no centro da Ericeira. "Temos um país com uma costa litoral riquíssima em termos de ondas. Aqui a zona da Ericeira, o centro do país, está um bocadinho melhor apetrechada em termos de qualidade, mas existem ondas espectaculares mesmo na costa sul do Algarve." O país já percebeu isso, acredita Tiago. "Penso que esse assunto está claro hoje. As autarquias passaram a olhar para o surf de maneira diferente. O campeonato mundial em Peniche, uma simples onda surfada na Nazaré, que percorreu o mundo inteiro, é uma visão mediática do nosso país que não se consegue de muitas outras maneiras. É um desporto feito no mar, não é preciso investir quase nada, o investimento está feito: os nossos estádios [as ondas] estão aí, e movem-se." O que era importante neste momento, com tantas escolas e tantos alunos, era começar a regulamentar as coisas. "Em França, onde passo muito tempo, têm uma costa se calhar mais limitada do que a nossa, mas têm tudo já muito bem organizado, as escolas sabem perfeitamente como agir, respeitam-se todas e não há chatices. Em Portugal, isso tem que começar a acontecer. Vai chegar um momento em que vamos ser muitos." A boa notícia é que "a maior parte da costa ainda não está a ser usada" e quem quiser surfar sozinho ainda encontra sítios onde isso é possível. O que lhe parece excessivo é o plano de criar sete centros de alto rendimento (a conversa com Tiago Pires decorreu antes de João Bastos ter declarado que só iriam avançar quatro). "Sei o percurso que é preciso fazer para chegar ao mais alto nível da alta competição, sei a costa que temos, as oportunidades que há em Portugal, o número de surfistas que temos e não acredito que os Centros de Alto Rendimento vão ajudar-nos a termos campeões daqui a dez ou 15 anos. É um projecto ambicioso de mais para o nível que temos". Faria sentido na Austrália, um país "com uma tradição e uma história neste desporto que é única". Mas em Portugal "três são suficientes, ou mesmo um, em Peniche, que é o sítio que apresenta melhores condições para se começar a fazer surf". O problema, na perspectiva de Tiago Pires, é que "sabemos que Portugal não é uma das potências mundiais do surf e queremos trabalhar como se fôssemos uma". Um centro "bem gerido e bem trabalhado seria mais do que o suficiente para todos os atletas do país". João Bastos, da FPS, esclarece que os centros não pretendem fazer concorrência às escolas de surf. "Os CAR existem para desenvolver a modalidade. Não são hotéis, são centros de excelência para o desporto. Não estamos à espera de ter uma enchente de cinco mil estrangeiros, e não podemos pensar que estamos a vender camas ou almoços". No entanto, se o desejarem, as escolas de surf poderão utilizar os equipamentos dos CAR. Mas nos locais onde os CAR estão praticamente concluídos, como Peniche e a Nazaré, ainda existem dúvidas sobre como se vai fazer a gestão destes espaços. Cada um tenta apostar em especificidades próprias. Quando falamos com António José Correia, o presidente da Câmara de Peniche está muito entusiasmado com um evento que acabara de acontecer: uma prova

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de surf adaptado, para que pessoas com deficiência possam também andar nas ondas. A aposta em nichos como o do surf adaptado, ou outros, pode ajudar a que cada CAR defina o seu perfil e não surjam problemas de gestão entre eles. Por outro lado, Peniche continua a apostar em força no campeonato mundial - a RipCurl mantém o interesse na região, mas já anunciou que vai reduzir o seu nível de investimento, e perguntou se, nessas condições, Portugal continua a querer organizar a prova. António Correia está optimista. Para 2013, diz, há já bons sinais do envolvimento das marcas nacionais que têm sido parceiras, e a expectativa de que o Estado mantenha a contribuição de 250 mil euros (cerca de 20% do valor global da iniciativa) que teve este ano. Quanto a 2014, por enquanto, "é uma incógnita". O Governo tem as atenções viradas para o mar. O que falta fazer na área do surf? "Falta um domínio fundamental: o do desporto escolar. Quando se fala no desígnio do mar, é muito importante que a prática de desportos náuticos seja valorizada no desporto escolar", defende o autarca. Depois disso é que faz sentido pensar na fase seguinte. "Passada a fase escolar, pensa-se como é que os jovens podem ser inseridos em programas de alto rendimento e que objectivos se podem traçar para Portugal ao nível dos desportos do mar. O plano do alto rendimento deve ser traçado, mas é preciso que antes disso se defina que recursos serão necessários. Tem que haver uma estratégia nacional, e estas estruturas têm que ser rentabilizadas." Se foi o campeonato do mundo que deu visibilidade a Peniche, a estratégia agora é "abordar o mar de forma holística" - daí, por exemplo, um projecto com o Colégio Pedro Arrupe, promovendo Peniche Mar Pedagógico, com visitas aos estaleiros navais, à escola de renda de bilros e o contacto com o surf. O dia da onda maior do que todas as outras Nazaré é outro exemplo de uma estratégia a médio prazo que já teve um impacto internacional. "Queríamos colocar a Nazaré como spot internacional de surf", explica Luís Miguel Sousinha, presidente da Nazaré Qualifica, que lançou o projecto North Canyon. "Sabíamos que tínhamos ondas grandes que eram surfáveis, mas precisávamos de alguém que viesse complementar esse pensamento". Enviaram a um dos maiores surfistas mundiais, o havaiano GarretMcNamara, a imagem de uma onda da Praia do Norte, e ele "à primeira tentativa aceitou logo o convite" de vir confirmar pessoalmente. McNamara veio pela primeira vez em 2009 - em 2010, instalou-se e começou a surfar as ondas grandes. Até que chegou o dia da onda maior que todas as outras: 30 metros. "A onda do Garret foi claramente o momento de viragem. Mas nós e ele sempre achámos que ia acontecer." Como havia uma equipa de filmagens que acompanhava permanentemente o surfista, o momento foi captado em câmara. E assim, GarretMcNamara surfou na Nazaré a maior onda de sempre, venceu o prémio de maior onda dos Billabong XXL e tornou-se recordista do Guinness. Nazaré estava no mapa do surf. Mas a estratégia não está concluída. Houve uma série de iniciativas para mostrar que há também ondas mais pequenas, surfáveis por qualquer pessoa. Com o apoio da Zon, estão a ser feitos três documentários sobre McNamara na Nazaré, e está em preparação o campeonato do mundo de ondas grandes. E o Centro de Alto Rendimento ficará concluído em breve. A questão, também aqui, é saber como o rentabilizar. "Pensamos que deve haver uma estratégia de internacionalização, só assim os centros de alto rendimento serão sustentáveis.

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Não quer dizer que em Portugal não haja um número grande de surfistas, mas pensamos que é muito importante a internacionalização." As ondas estão aí. E o mundo já sabe disso. Como vai o país gerir este potencial é que parece ser uma pergunta à espera de respostas.

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V

A luz do futuro vem do mar e da Gronelândia 30.09.2012, Por Inês Sequeira

Viagem de instalação da torre eólica cuja flutuação é comandada por computador (Foto: Adelino Oliveira)

O país tem sido procurado por vários investidores para experiências com novas energias. Testam-se tecnologias com hélices e rolos, com vantagens para a indústria nacional. Esta, porém, arrisca-se a perder o comboio da competição internacional. "Briiisaaaaaa do maaaar... Lalalalala...", cantava Herman José há muitos anos, uma toada que ficou na memória de alguns portugueses. Hoje, a brisa marítima já serve para muito mais do que tema de música e é uma promessa cada vez maior no campo da energia. Que o diga a EDP Inovação, uma das empresas que procuram novas soluções ligadas à produção de electricidade nos oceanos. Quem espreitar pelos binóculos instalados na praia da Aguçadoura, a poucos quilómetros da Póvoa de Varzim, avista ao longe uma das mais jovens "princesas" da empresa. O WindFloat é uma enorme turbina eólica que se ergue sobre uma espécie de tripé, que aparenta estar fixo no fundo do mar. Puro engano. Na verdade, esta estrutura de aço com 89 metros de altura flutua com a ajuda de um computador, que a cada instante faz contas à distribuição da água dentro da estrutura e impede assim o protótipo de se afundar. António Vidigal, presidente executivo da EDP Inovação, lembra que a empresa anda há 15 anos à procura de oportunidades nas energias offshore - energias que têm origem no alto mar, a mais de 10 ou 20 quilómetros da linha de costa. Foi em 2008 que AllaWeinstein, uma velha conhecida da empresa e presidente da norte-americana PrinciplePower, os procurou juntamente com António Sarmento, do Centro de Energia das Ondas. O objectivo era convidar a EDP a entrar num projecto para o desenvolvimento de uma nova turbina eólica, inspirada na indústria do petróleo. Isto com base na ideia desenvolvida por dois engenheiros da Universidade de Berkeley, em São Francisco, que tinham procurado criar plataformas petrolíferas de baixo custo. "Sendo um projecto muito inovador, [o WindFloat] juntava duas indústrias maduras, que são a indústria das plataformas do petróleo e a indústria do vento onshore (em terra firme), das quais se sabia tudo", lembra Vidigal, que ficou surpreendido pelas capacidades que encontrou em Portugal. "Temos tanto estaleiro parado, tantas pessoas que sabem fazer. Das coisas que

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mais me admiraram no projecto, e que foram uma surpresa, é que a construção foi feita num tempo recorde: desde o dia em que começámos até estar tudo pronto e rebocado para o mar foram nove meses", nota. Dos cerca de 60 fornecedores, 70% foram nacionais. Vidigal admite também que noutros países "há várias tentativas semelhantes" a este protótipo, mas o WindFloat "está dois anos à frente da concorrência". Outro ponto a favor é que tem uma flexibilidade difícil de igualar: acima dos 40 metros de profundidade esta turbina "flutuante" pode ser instalada onde se quiser", pelo que poderá ficar "em águas muito profundas ou pouco profundas". Mas por enquanto, o projecto instalado desde Novembro a cerca de seis quilómetros da costa é ainda uma experiência. Esta turbina em alto mar, que está ligada à rede portuguesa de electricidade e ao longo de seis meses já produziu energia suficiente para alimentar 1300 lares, é ainda um protótipo à escala natural do qual a EDP, a PrinciplePower e outras empresas do consórcio retiram lições que até aqui correm bem. No último Inverno, o WindFloat enfrentou ondas gigantes de 15 metros sem problemas. Agora, o consórcio começa já a olhar para a fase seguinte, prevista para daqui a dois anos, com o objectivo de reduzir custos. "Há aqui muito espaço para desenvolvermos o conhecimento da indústria portuguesa e estamos a trabalhar com o Instituto Superior Técnico e com outras entidades, para criar um produto mesmo comercial", nota António Vidigal. No final, a EDP planeia utilizar as novas turbinas em projectos de eólicas em alto mar, como por exemplo no Reino Unido. Até agora o investimento chegou aos 23 milhões de euros, incluindo apoios do Fundo de Apoio à Inovação. O consórcio candidatou-se entretanto a mais fundos comunitários para a construção de um parque de cinco turbinas eólicas offshore, com uma capacidade de 25 MW (megawatts). A concretizar-se esse financiamento, é certo que avança para a fase précomercial, dentro de dois anos. Neste caso, cada uma das turbinas terá maior potência do que os dois MW do protótipo actual. Se tudo correr com sucesso, já na última e terceira fase, o que está previsto será atingirem "150 MW de capacidade instalada, com quantas unidades forem necessárias, dependendo do tamanho das turbinas", lembra por seu turno AllaWeinstein, presidente executiva da PrinciplePower. "O vento offshore contém muito mais energia do que o vento onshore (em terra), porque no offshore não há obstáculos nem impactos térmicos e por isso a intensidade e qualidade do vento são muito maiores", explica a gestora norte-americana. E o que é que trouxe esta empresa de tecnologias offshore para Portugal? AllaWeinstein destaca as relações que já tinha com a EDP, de projectos anteriores, e também a existência de uma tarifa de apoio a estas energias. "Portugal publicou uma lei que criou uma tarifa para a energia das ondas e descobrimos que a mesma tarifa podia ser aplicada ao vento offshore. Então as condições de mercado eram perfeitas aqui e não eram tão boas noutros sítios", realça, lembrando também a facilidade de comunicar em inglês que encontrou durante a construção do protótipo. De olho numa alternativa Olhando agora de outra perspectiva, que sentido faz investir em energia dos oceanos, que é mais cara e tem maior risco do que outras, num país que tem dificuldades financeiras? António Sarmento, presidente do Centro de Energia das Ondas, sabe na ponta da língua as respostas à pergunta que ele mesmo acabou de lançar.

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Primeiro, realça "os problemas na segurança do abastecimento de energia" e lembra que estudos já realizados demonstraram que à taxa actual de consumo, o mundo tem energia de fontes conhecidas suficiente para 78 anos. "Mas se todos começarmos a consumir como os norte-americanos, incluindo a China e a Índia, esse espaço de tempo cai para 18 anos." "É nessa lógica de que o mundo vai precisar de muito mais energia do que aquela disponível que faz sentido apostar em fontes que não são ainda comercialmente competitivas", defende o também docente e investigador no Instituto Superior Técnico. António Sarmento estima que "em Portugal as ondas têm um potencial da ordem dos 20% do consumo de energia eléctrica", mas também tudo aquilo que é "a cadeia industrial associada". "Se tivermos esta tecnologia, estaremos a abrir portas a uma indústria altamente exportadora", sublinha. Ainda assim, o responsável do centro - o primeiro que apareceu no mundo dedicado à energia das ondas, em 2003 - avisa que "Portugal tem andado a dormir neste sentido". António Sarmento lembra que foi aqui que primeiro se lançou uma tarifa para a energia das ondas. Em 2007, os portugueses foram também pioneiros ao anunciarem a criação de uma zona-piloto "com um potencial significativo de instalação muito grande, porque permitia não só fazer a demonstração dos conceitos como caminhar depois para a parte industrial". "Isso obviamente foi muito atractivo para as empresas, porque estas preferem fazer a demonstração num sítio, sabendo que aí têm potencial para darem os passos seguintes." O problema foi que após o anúncio do então ministro da Economia, Manuel Pinho, seguiramse vários anos de silêncio. "O que não se pode fazer é anunciar uma medida destas em 2007 e em 2012 ainda andarmos a discutir", sublinha o professor do Instituto Superior Técnico. "O anúncio quando foi lançado teve um impacto brutal. Mas este ano vai realizar-se uma conferência internacional de energia dos oceanos, que acontece de dois em dois anos, com uma sessão dedicada a centros de testes, e a entidade portuguesa não foi convidada a estar presente", lamenta. Sarmento lembra que "entretanto todos os países desenvolveram os seus centros de testes, não com a dimensão do português, mas todos eles têm: Reino Unido, França, Espanha, Noruega, Suécia...". Ainda assim, acredita que Portugal ainda tem "alguma capacidade de atracção, mas "se demorarmos outros cinco anos a concretizar o projecto é evidente que as coisas passam". Obrigatório é haver espaço em Portugal para a experimentação e para o erro, sem empolar projectos que ainda estejam a começar. Foi esse o problema do Pelamis, uma experiência com energia das ondas promovida em 2008 pela escocesa PelamisWavePower, em conjunto com outras empresas como a EDP e a Efacec, junto à mesma praia onde está baseado o projecto do Windfloat. "Foi um triunfalismo excessivo que depois se pagou caro, com o ministro [Manuel Pinho] muito aborrecido com a experiência. O projecto da zona-piloto estar parado durante dois anos foi em parte resultado disto, tal como o facto de várias empresas se terem retraído em razão deste insucesso", comenta. Abertura para quando? A entrada em funcionamento da zona-piloto, que foi baptizada de Ocean Plug, está agora prevista para o próximo ano - dependendo da evolução dos trabalhos. "Mantemos a abertura para 2013 mas é um cenário um pouco optimista, pois significa que toda a infra-estrutura e tudo o que vamos instalar irá correr sem problemas", avisa João Cardoso, que é desde 2010 director da Enondas - empresa da REN que tem em mãos o projecto das energias do mar. "Estamos a falar de operações marítimas e de um momento para o outro podemos estar a

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passar de uma situação agradável para uma situação desagradável", alerta este comandante da Marinha. Foi em Outubro de 2010 que a Enondas assinou com o Estado o contrato para a concessão da exploração da zona-piloto, que fica situada entre São Pedro de Moel e Pedrógão, na costa oeste, e é "uma das melhores áreas de ondas e de ventos", realça João Cardoso. "É um espaço de mais ou menos 320 quilómetros quadrados, compreendido entre a batimétrica (profundidade) de 30 metros até mais ou menos à batimétrica de 90 metros". Nesta zona estão previstos três corredores para a passagem de cabos de ligação à rede eléctrica portuguesa. Para já, fizeram-se os estudos de caracterização geofísica, entregues ao Instituto Hidrográfico, e que tentam compreender qual a morfologia do fundo, a composição geológica, as correntes na zona, a composição química da água e o sistema de agitação marítima. João Cardoso realça que estes dados são "fundamentais", não só para a instalação das infra-estruturas de apoio, mas também para os promotores que ali queiram instalar protótipos para serem testados ou projectos comerciais. Neste momento, a empresa do grupo REN vai avançar com os estudos ambientais e está a redigir o regulamento de acesso à zona-piloto, além de estar em contactos com os principais promotores e tecnólogos. De um total de três ou quatro promotores que estão já previstos, um dos clientes mais certos é o Windfloat, nomeadamente a segunda fase do projecto que prevê a instalação de um parque eólico com capacidade de 25 MW. Quanto aos outros potenciais clientes, João Cardoso admite que enfrentam concorrência de outros centros de testes. "Eles [os possíveis promotores] estão a analisar e nós estamos a estudar, com alguns já estamos a ter reuniões técnicas e a definir os contornos com que podem vir instalar-se na zona-piloto, mas ainda não temos contratos assinados", indica. Uma vantagem do projecto Ocean Plug é que em Portugal um promotor não precisa de se ficar pelo protótipo e pela fase de testes e "pode continuar a desenvolver o seu projecto até ao parque de ondas". "Os mares não são todos iguais e as máquinas são desenvolvidas de acordo com o espaço onde vão ser colocadas. Se eles quiserem ficar em Portugal, temos espaço e garantia de potência e assim não precisam de ir à procura de outro espaço e de licenciamento para injecção de energia eléctrica na rede", confirma João Cardoso. O decretolei que criou a zona piloto garante a possibilidade de injectar até um máximo de 250 MW na rede eléctrica a partir da zona-piloto, "o que dá para fazer alguns parques simpáticos". Quanto ao investimento previsto para a zona-piloto, ascende a 15 milhões de euros ao longo de quatro anos e já teve início em 2011, mas uma grande parte deste dinheiro será aplicado na instalação de cabos para ligação à rede eléctrica. O financiamento será feito pela REN e é abatido ao longo de vários anos através da factura eléctrica paga pelos consumidores, mas também poderá haver candidaturas a fundos comunitários. Ondas que chegam de longe Por outro lado, Portugal pode tirar vantagens de "condições de ondulação muito privilegiadas". João Cardoso explica que ao contrário das vagas, criadas pelos efeitos do vento sobre a superfície do mar, a ondulação "é uma propagação". No caso português, "o nosso principal centro de produção de ondas é o mar entre a Gronelândia e a Islândia e essas ondas propagam-se até à nossa costa". "Acabamos por ter a boa ondulação, a ondulação com maior comprimento de onda e bastante energia, que depois chega à nossa costa sem termos de sofrer as tempestades."

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Uma das qualidades desta forma de energia, aliás, é que se trata de uma propagação com origem em locais normalmente afastados da nossa costa portuguesa, o que a torna muito previsível. "Podemos prever o que é que vamos injectar na rede durante as próximas 24 horas." Já com o vento, é muito mais difícil fazer previsões e as mudanças são bruscas. E quais são as vantagens que Portugal pode retirar da aposta nesta área, nomeadamente com os investimentos na zona-piloto, durante os próximos anos? Tal como António Sarmento, João Cardoso lembra que os promotores de novas tecnologias ligadas às energias do mar "vão usar as capacidades nacionais". "Projectos destes rondam normalmente um investimento entre os 10 e os 25 milhões de euros, para demonstração de conceito, e desse dinheiro grande parte será para adquirir serviços e equipamentos no mercado nacional." Este é o caso do Waveroller, uma tecnologia desenvolvida pela finlandesa AW Energy que está em Portugal, na zona da Almagreira, em Peniche, a testar um protótipo de energia das ondas. Este equipamento foi colocado no fundo do mar em Agosto, a cerca de 500 metros e por isso próximo de terra (nearshore), pelo que não se poderia instalar na zona-piloto gerida pela Enondas. Constituído por um conjunto de painéis que parecem grandes asas a oscilarem continuamente, movidas pela força do mar, o protótipo deverá ficar no mesmo local "durante um ano", prevê o inventor desta tecnologia. RaunoKoivusaari conta que ficou muito satisfeito com o apoio do presidente da Câmara de Peniche e decidiu trazer o projecto para Portugal em 2006, devido à existência de uma tarifa de apoio a esta forma de energia. O equipamento, que é já o terceiro ou quarto a ser testado pela empresa no mar de Peniche, foi em grande parte produzido nos Estaleiros Navais de Peniche (ENP) e também pela empresa A. Silva e Silva. "Na Finlândia foram construídos os três módulos de aço onde estão instaladas as chamadas casas das máquinas, onde estão os equipamentos que absorvem a energia e a produzem", explica Álvaro Oliveira, director-geral dos ENP. "Aqui, construímos os restantes módulos de aço, que foram cerca de 280 toneladas de módulos em aço, e instalámos os tanques produzidos pela A. Silva e Silva", descreve o mesmo responsável. O próximo passo será decidir a instalação dos próximos protótipos em Portugal, o que irá depender do financiamento conseguido, incluindo uma candidatura a fundos comunitários, mas Rauno mostra-se optimista. Pelos cálculos deste gestor e mergulhador finlandês, até agora o projecto custou mais de 10 milhões de euros. No final, feitas as contas, as novas energias do mar mostram-se promissoras mas têm ainda muitos passos para dar. Não há hoje no mundo "nenhum parque de ondas que esteja a fornecer energia à rede de forma efectiva", realça João Cardoso, da Enondas, que admite que "há testes, algumas ideias, mas a energia das ondas tem tido dificuldades para arrancar." Estudos já realizados apontam para 2020 como a data mais provável para esta forma de energia se transformar em realidade, principalmente no caso das energias offshore (aquelas que são mais longe de terra). Já o presidente do Centro de Energia das Ondas, António Sarmento, lembra que o investimento mundial nestas energias "é diminuto", cerca de 100 milhões de euros por ano. E conclui: "Para um país à escala portuguesa, os investimentos que faz no eólico ou no solar são uma gota de água no oceano, mas em energia dos oceanos podem ter uma expressão a nível mundial."

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Portugal x 41 = Índia 01.10.2012, Por Teresa Firmino

Será que este Ovo Estrelado no fundo do mar dos Açores é um vulcão de lama, com metano? (EMPC)

Tanto mar e, daqui a seis anos, mais mar ainda tornará Portugal um imenso país - tão grande que o mapa da terra fora de água e do espaço marítimo sob jurisdição portuguesa terá quase quatro milhões de quilómetros quadrados. Que riquezas se esconderão debaixo deste azul? O que já sabemos sobre elas? Quanto valerá um quilómetro quadrado do fundo do mar? "Em termos mundiais, Portugal ficará no top 20 dos países com maior território. Costuma dizer-se que corresponderá à dimensão actual da Índia", frisa Manuel Pinto de Abreu, secretário de Estado do Mar e que, antes de assumir esta pasta, chefiou os trabalhos técnicocientíficos na base do alargamento do espaço marítimo português. "Portugal será dos países com maior relação entre a área imersa e a parte continental: a razão será cerca de 40 unidades de área imersa para uma unidade de área continental." Mas se não arredondarmos as contas, essa relação sobe para mais de 41 vezes. Aos 92.000 quilómetros quadrados de território emerso - Portugal Continental e Açores e Madeira - e aos 1,6 milhões de quilómetros quadrados da zona económica exclusiva (ZEE) em redor destes três conjuntos de terra, o país espera juntar mais 2,15 milhões. E então o espaço total com jurisdição portuguesa ultrapassará os 3,8 milhões de quilómetros quadrados, o que é mais de 41 vezes a área do território emerso. "O [novo] mapa de Portugal ocupará cerca de um terço do Atlântico Norte", nota Pinto de Abreu. "Atravessará quase o Atlântico Norte, desde o extremo da Península Ibérica até perto das costas do Canadá e Estados Unidos. Será um mapa imenso." Por coincidência, a área alargada de 2,15 milhões de quilómetros quadrados deste novo mapa é idêntica à de um outro, que ficou famoso, com o título "Portugal não é um país pequeno" e que traduzia a visão ideológica do Estado Novo: profusamente divulgado a partir de 1934 para propaganda política, sobrepunha a área das colónias portuguesas sobre a Europa, para mostrar que a superfície total de 2,16 milhões de quilómetros quadrados controlada pelo país era superior à de Espanha continental, França, Inglaterra, Itália e Alemanha juntas. O projecto que fará crescer geograficamente Portugal tem um nome: extensão da plataforma continental. Para se perceber o que é o alargamento da plataforma, há que dizer que ela é a crosta terrestre que se prolonga, desde o território que está fora de água, mar adentro.

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Depois, a certa altura, a crosta terrestre por baixo dos oceanos adquire características geológicas e morfológicas diferentes da crosta emersa. Onde ocorre essa transição entre a crosta emersa da plataforma continental e a oceânica é o grande desafio que nem sempre tem resposta fácil. Ora é fulcral para os países costeiros determinar onde a crosta terrestre nos oceanos deixa de ser igual à que está fora de água e ver até onde vai a sua continuidade geológica, caso queiram aumentar, de forma pacífica, as suas jurisdições para lá das 200 milhas náuticas da ZEE e até a um limite de 350 milhas da costa. Mas enquanto até ao limite da ZEE, os países podem explorar tanto o que se encontra na água como o solo e subsolo marinhos, para lá das 200 milhas apenas o chão marinho ficará debaixo da sua alçada. Terão assim diferentes graus de jurisdição, que vão desde as fronteiras territoriais efectivas, o mar territorial até às 12 milhas da costa, até à possibilidade de exploração dos recursos na água e no fundo do mar da ZEE e, para lá disso, acesso aos recursos somente do solo e subsolo marinhos. Esta oportunidade de alargar a plataforma continental é conferida pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, ou Lei do Mar como também é conhecida, em vigor desde 1994. Os países que ratificaram esta convenção, como Portugal, têm um prazo para apresentar na ONU as suas propostas de extensão da plataforma. Portugal fê-lo em Maio de 2009 e aguarda que o processo siga aí os seus trâmites na Comissão de Limites da Plataforma Continental. A expectativa é que o grupo que nessa comissão irá apreciar a proposta portuguesa de extensão da plataforma continental seja nomeado em 2016 ou até mais cedo, em 2015, e que a partir daí os seus trabalhos demorem cerca de dois anos. Depois, esse grupo fará recomendações e levantará dúvidas, a que o país procurará responder com a entrega de mais informação. Pinto de Abreu considera que a preparação da documentação que vier a ser pedida é para levar depois pelo menos um ano: "Quer isto dizer que pensamos ter todo o processo concluído em 2018."E não se espera que, daqui a seis anos, entre a proposta de mapa entregue na ONU e aquele que vir a ser aceite haja grandes diferenças. "Este é já o novo mapa de Portugal. A nova configuração, pensamos nós, nunca será muito diferente", diz o geólogo Pedro Madureira, que colabora com a Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental (EMEPC), o grupo que desde 2005 leva por diante este projecto e que Pinto de Abreu chefiou até ir para o Governo. "A comissão pode ter algumas dúvidas num ou outro local muito específico e pedir para o justificar melhor com mais dados", explica Pedro Madureira. "Muita gente pergunta: "Para que queremos mais território, se está debaixo do mar?" Historicamente, as pessoas alargaram o território porque pretendiam terras aráveis ou recursos para aproveitamento económico. A importância desta extensão diz respeito à possibilidade de existirem recursos marinhos que podem ser aproveitados actualmente e no futuro", sublinha o geólogo. Para esta conquista pacífica do mar, foi necessário recolher montanhas de dados. Além de coligir informação científica já publicada, o grupo da EMEPC foi para o mar em diversas campanhas. Alugou navios estrangeiros, utilizou navios da Marinha portuguesa, o Almirante Gago Coutinho e o D. Carlos I, e comprou um robô submarino, o Luso, que, operado à distância por um cabo, mergulha até seis mil metros. Com estes meios, apanhou do fundo do mar rochas (que analisaram e compararam) e fez um levantamento exaustivo da morfologia do fundo do mar, tudo para determinar a tal continuidade geológica da crosta terrestre emersa para o domínio marinho. As rochas eram

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apanhadas com cestos metálicos e, depois, pelos braços do robô Luso, enquanto os dados do relevo marinho eram obtidos recorrendo a feixes acústicos enviados para o fundo do mar, para se construírem mapas de grande resolução. Acaba de terminar mais uma campanha, com os navios da Marinha, para reforçar a proposta de extensão da plataforma. Até ela começar a ser analisada na ONU, os países podem recolher mais dados, pelo que o Almirante Gago Coutinho esteve agora, com o Luso, no limite sul da extensão da plataforma na área dos Açores e o D. Carlos I no limite noroeste. Mas em todos estes anos de levantamentos para a extensão da plataforma, os cientistas também reuniram informação sobre a ocorrência de recursos energéticos (como gás metano), minerais (ouro, prata, cobre ou cobalto) e biológicos, tanto na ZEE como na plataforma alargada. Por vezes, ficaram intrigados com algumas estruturas geológicas, sem terem ainda explicação para a sua natureza - é o caso do Ovo Estrelado, encontrado por acaso na ZEE, 150 quilómetros a sul da Terceira, e que teve direito a notícia na BBC online. Os levantamentos do relevo marinho na zona em 2008, com os sondadores multifeixe, quando os navios iam a caminho das campanhas, revelaram uma estrutura em forma de ovo estrelado, com uma elevação no centro, como a gema, e uma parte à volta mais funda, como a clara. A dois quilómetros de profundidade, estende-se por seis de diâmetro e os cientistas só deram com ele quando, em 2009, olharam para os dados que não tinham directamente a ver com a extensão da plataforma. Ainda hoje se perguntam se é um vulcão de lama, carregado de metano, fonte energética não convencional que pode ser uma alternativa no futuro. Ou se, por exemplo, é a cratera de um meteorito. Nenhuma destas hipóteses os convence, porque as dimensões da "gema" e da "clara" nas crateras de meteoritos são geralmente diferentes e porque os vulcões de lama conhecidos formam-se em zonas mais perto do continente, que têm uma camada espessa de sedimentos capaz de reter os fluidos vindos do interior da Terra. E, por outro lado, na zona do Ovo Estrelado também não ocorre a compressão de placas tectónicas, que força o metano em profundidade a subir até à superfície do fundo do mar."O Ovo Estrelado é um exemplo de que conhecemos pouco este território", lembra Pedro Madureira. "Seria muito interessante que fosse um vulcão de lama, mas face ao conhecimento actual é difícil explicá-lo dessa forma", diz o geólogo. "O contexto geológico do Ovo Estrelado não é favorável para que seja um vulcão de lama, mas não é impossível", diz também Pinto de Abreu. "Se for um vulcão de lama, podemos ter lá hidratos de metano, que hoje são objecto de grandes projectos de desenvolvimento para que o aproveitamento como fonte de energia seja rapidamente conseguido", acrescenta o secretário de Estado do Mar. "Na sequência do acidente [da central nuclear] de Fukushima, o Japão acelerou o aproveitamento de hidratos de metano. O objectivo do Japão é que a partir 2016 seja possível fazer o aproveitamento comercial dessas fontes de energia. Ora 2016 é já amanhã", diz Pinto de Abreu. "Vamos ver se identificamos os bons vulcões de lama na nossa área." Mas se dificilmente o Ovo Estrelado é um vulcão de lama, ao largo do Algarve este fenómeno é conhecido desde 2000 e no golfo de Cádis desde 1999. E aqui, sim, há muitos sedimentos e compressão entre a placa africana e a euroasiática, que origina vulcões a expelirem materiais argilosos. Aí, as moléculas de água congelada nos sedimentos não só aprisionam o metano, como outros hidrocarbonetos, como os gases butano e propano. A exploração dos hidratos de todos estes gases, que por ora ninguém faz, levanta muitas questões técnicas e ambientais. Só que a presença destes gases nos vulcões de lama pode ainda indiciar algo valioso em

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profundidade, no subsolo marinho: mais hidrocarbonetos, como butano, propano e até petróleo. Aliás, a empresa Repsol já explora gás natural, em profundidade, no golfo de Cádis. "Quando falamos de [encontrar] petróleo, estamos a falar de ambientes mais próximos de Portugal Continental", explica Pedro Madureira. "Há muitos anos que têm sido feitas pesquisas na tentativa de encontrar petróleo ao longo da nossa costa. É uma hipótese que não está de todo afastada. O valor do petróleo torna possível investimentos mais avultados e permite pesquisar a maiores profundidades." Outros recursos já identificados no domínio marítimo português estão associados às fontes hidrotermais, que são emanações de água quente vinda do interior da Terra, carregada muitas vezes de metais, como ouro, cobre, prata e zinco. Minas hidrotermais Em contacto com a água fria do mar, os metais precipitam-se e parece estar a libertar-se fumo negro. Esses metais vão-se acumulando em depósitos no fundo do mar - os sulfuretos maciços polimetálicos, com ouro, cobre, prata e zinco - e vão também surgindo estruturas em forma de chaminé, tão emblemáticas destes ambientes extremos em calor, toxicidade e sem luz solar, à volta das quais a vida mesmo assim pulula. Não faltam aí mexilhões, camarões e microorganismos, que podem ter novas moléculas para aplicações farmacêuticas e industriais, entre outras (embora possa haver recursos genéticos em muitas outras paragens). Aliás, associadas ao projecto de extensão da plataforma houve várias campanhas de biologia, com recolha de inúmeros exemplares nos Açores, nas Selvagens, nas Berlengas, para inventariar as espécies em Portugal. Voltando às fontes, a mina de Neves-Corvo, no Alentejo, rica em cobre, formou-se assim há milhões de anos. Os seus depósitos de sulfuretos maciços polimetálicos, hospedados em rochas vulcânicas, são um caso de estudo mundial, pela grandeza e pelos teores de cobre. Ora ao largo dos Açores têm sido descobertos vários campos hidrotermais no mar profundo. Uns, como o Lucky Strike, o Menez Gwen e Saldanha ficam na ZEE; outros como o Rainbow e o Moytirra na plataforma continental alargada. Todas estas fontes estão associadas à cadeia montanhosa que corta o Atlântico - a Dorsal-Médio Atlântica, onde nasce crosta oceânica e as placas tectónicas se afastam. Podia pensar-se que a mineração dos campos hidrotermais é ficção científica, mas essa realidade pode não estar tão longe. Na Papuásia-Nova Guiné, uma empresa quer começar, talvez em 2013, a explorar a primeira mina no mar profundo, num campo hidrotermal, a 1600 metros. Na sua mira, ouro e cobre, e os equipamentos, como robôs para operar lá em baixo, estão em construção. Essa mesma empresa, a canadiana Nautilus Minerals, apresentou à Direcção-Geral de Energia e Geologia, em 2008, um pedido de prospecção de sulfuretos maciços polimetálicos nos campos Lucky Strike, Menez Gwen e Saldanha. O processo não teve seguimento até que, no fim de 2011, foi pedido à Nautilus que reformulasse a proposta, tendo em conta que o Lucky Strike e o Menez Gwen, entre outros campos, tinham acabado de ser classificados como áreas protegidas e incluídos no Parque Marinho dos Açores. O novo pedido da Nautilus não teve ainda resposta. Que indícios temos de mais recursos no imenso mar português? Têm também sido identificadas crostas ferromanganesíferas - películas que, além de ferro e manganês, têm cobalto e níquel e se depositam nas rochas, sobretudo nos montes submarinos, formando aí

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crostas que parecem tapetes. Ou os nódulos polimetálicos, "batatas" ricas também em manganês, níquel e cobalto. Mas uma coisa é saber que existem estes recursos, outra é saber a quantidade e extensão. "Falar de recursos não é falar de reservas. Não conhecemos a quantidade de cada um dos recursos no nosso domínio imerso. É prematuro dizer qualquer coisa relativamente a reservas", frisa Pedro Madureira. "Agora importa pensar como vamos reverter esse potencial em valor efectivo e na melhor maneira de o fazer." Também Pinto de Abreu deixa clara essa diferença: "Temos algumas indicações, mas de facto não sabemos o que lá está. Se hoje quisesse aconselhar alguém sobre o talhão que deve comprar no fundo do mar, por ter realmente valor, não podia aconselhar ninguém", diz o secretário de Estado. "Dizer que há recursos não é só detectar uma pepita de algo valioso. É demonstrar que existem numa área grande e em quantidade suficiente para uma extracção rentável. Teremos de confirmar que as amostras que recolhemos não são apenas manifestações pontuais." Mesmo assim, tem havido exercícios teóricos, ainda que especulativos, sobre as potenciais riquezas escondidas no fundo do mar. A geóloga Raquel Costa, da EMEPC, pegou em amostras de crostas recolhidas em mais de dez montes submarinos e calculou quanto valeria um quilómetro quadrado do fundo do mar. Viu, por um lado, os teores médios de cobalto, níquel e cobre para crostas com cinco centímetros de espessura média e, por outro, as áreas no espaço marítimo português em que potencialmente há crostas (só a profundidades entre 1500 e 2000 metros). Concluiu que um monte típico, com 1600 quilómetros quadrados, podia ter metais que atingissem 217 milhões de euros de lucro por ano, um valor citado amiúde por Pinto de Abreu. Um quilómetro quadrado deste tipo de fundo do mar valeria assim algo como 135 mil euros. As contas são de 2008 e, desde então, o valor dos metais continua a subir. Uma vez concluída a extensão da plataforma em 2018 - 13 anos após ter começado e gastos previsivelmente de 40 milhões de euros, incluindo equipamentos e projectos associados -, o país tem a oportunidade de repetir a história marítima. Volta a ter um grande domínio de mar, falta saber o que vai fazer com ele, cinco séculos depois dos Descobrimentos.

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VII

Só protegemos o mar que nos dá pelos tornozelos 02.10.2012, por Helena Geraldes

Foto: Pedro Cunha O Cabo Raso é uma das zonas mais importantes para as aves marinhas, segundo a Spea

A esmagadora maioria das áreas marinhas protegidas é costeira. O alto mar ainda é um mundo por descobrir, povoado por aves, baleias, golfinhos e corais que (quase) nunca vemos. Dezenas de cientistas estão a estudar o que existe lá longe, para que a conservação da natureza não fique junto à praia. Andamos a proteger o nosso mar? Nuno Barros pára o carro na terra batida ao lado do farol do cabo Raso, em Cascais. São 7h30, pouco depois do nascer do Sol, e o mar que se atira contra as rochas tem cor de céu nublado. Dezenas de aves rasam as ondas em bandos ou isoladas. Umas batem as asas em movimentos rápidos e outras deixam-se ir, de asas bem esticadas. Nuno sai do carro e pendura os binóculos ao pescoço. Pedro Geraldes tira da mala de trás o tripé e o telescópio, que monta de frente para o Atlântico. Os dois ornitólogos da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (Spea) estão à procura de uma das aves mais ameaçadas da Europa, a pardela-balear (Puffinus mauretanicus). Esta ave marinha, da qual só restam entre 6000 a 10.000 animais reprodutores, tem as suas colónias nas ilhas Baleares, mas o mar português é um dos principais lugares onde passa o Inverno, a alimentar-se e a fazer a muda das penas. "Queremos perceber de que forma as aves utilizam estas águas", diz Pedro Geraldes, que trabalha na Spea há 12 anos, a espreitar o mar pelo telescópio. Nas primeiras horas do dia, as aves marinhas aproximam-se mais da costa para se alimentar e Pedro e Nuno aproveitam para as conhecer melhor. Hoje, têm pela frente três horas de observação, no último dia de um projecto de monitorização que começou a 15 de Agosto, no âmbito do Future of the Atlantic Marine Environment (FAME), do qual Portugal é parceiro, ao lado do Reino Unido, Irlanda, França e Espanha. "Três vezes por semana vimos ao cabo Raso à procura da pardela-balear", acrescenta Nuno Barros, na Spea há dois anos. A pequena ave, de um castanho escuro, passa a vida no mar e só vem a terra uma vez por ano para pôr um único ovo. Durante a noite. E apenas nas ilhas Baleares. Não está, por isso, entre as aves mais conhecidas, como as gaivotas-de-patas-amarelas. Ainda há muito para descobrir sobre a pardela-balear e o mesmo se pode dizer em relação à biodiversidade marinha em geral. Até agora, a inacessibilidade do alto mar tem condicionado a conservação da natureza, encostada à costa. "Na zona económica exclusiva (ZEE) do Continente, a esmagadora maioria das áreas marinhas protegidas está aquém das seis milhas

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[menos de 10 quilómetros] da costa", diz Mário Silva, director do Departamento de Conservação e Gestão da Biodiversidade do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). A Arrábida e as Berlengas foram as primeiras áreas marinhas protegidas designadas na nossa costa, em 1998. Hoje, "parte significativa das águas costeiras tem protecção", graças às áreas protegidas terrestres que têm uma extensão marinha, como os parques naturais do Litoral Norte, do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina e a Reserva Natural das Lagoas de Santo André e da Sancha. Mas se avançarmos mar adentro, é raro encontrar uma área protegida marinha. "Na nossa ZEE, a única área marinha verdadeiramente offshore já designada (em 2010) é o Monte Submarino Josephine, entre a Madeira e o Continente." Portugal submeteu esta área à rede de Áreas Marinhas Protegidas da OSPAR (Convenção para a Protecção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste), uma vez que apenas tem jurisdição sobre o fundo do mar e não sobre a coluna de água. "A história da conservação da natureza no meio marinho foi-se fazendo de forma avulsa", sem pensar muito em criar uma rede integrada de áreas protegidas, considera Henrique Cabral, director do Centro de Oceanografia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. "Em muitos casos, as áreas marinhas protegidas são acrescentos às áreas terrestres que já tinham algum estatuto de conservação." O biólogo salienta que Portugal tem uma área relativamente grande coberta no que diz respeito às zonas de baixa profundidade, normalmente até aos 30 metros de profundidade, e que essa zona "é muito importante do ponto de vista da conservação". Mas se considerarmos "todo o ambiente marítimo português, de facto, a área protegida é muito reduzida". O arquipélago dos Açores é responsável pelos maiores avanços na criação de áreas marinhas protegidas em Portugal. Segundo Frederico Cardigos, director regional dos Assuntos do Mar, os Açores têm nove parques naturais, um em cada ilha, que ao todo incluem 44 zonas definidas como Áreas Marinhas Protegidas, até às 12 milhas de costa. Além destas, existem 11 que estão mais longe, fora do mar territorial, e que desde 2011 se juntaram para criar o Parque Marinho dos Açores. "Queremos preservar as riquezas que existem e garantir que as zonas muito importantes para a biodiversidade sejam mantidas", comenta. Nos Açores, até às 200 milhas, estão protegidos o banco D. João de Castro, os campos hidrotermais Menez Gwen e Lucky Strike, o monte submarino Sedlo, bem como os habitats e espécies oceânicas do Corvo e do Faial. Frederico Cardigos acredita que o sucesso dos Açores se deve ao facto de o arquipélago sofrer menos pressões que o Continente e, sobretudo, por haver um "sentimento incutido desde há muito de que a natureza tem de ser respeitada". Rede Natura 2000 ao mar Portugal está a trabalhar na criação de áreas marinhas protegidas em alto mar, mas está atrasado. Entre 2008 e 2012, os Estados-membros da União Europeia foram chamados a definir a sua rede de áreas marinhas protegidas e planos de gestão para cada uma. Na verdade, este é um dos grandes objectivos do movimento conservacionista europeu. Isto é, levar para o mar o maior instrumento de conservação, a Rede Natura 2000, o conjunto de espaços com os animais, plantas e habitats que melhor representam o Velho Continente. À semelhança do que aconteceu em meio terrestre, Portugal precisa propor um conjunto de áreas importantes para as aves (Zonas de Protecção Especial, ZPE, no âmbito da Directiva

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europeia Aves, de 1979) e para outros animais e habitats (Sítios de Importância Comunitária, SIC, no âmbito da Directiva Habitats, de 1992). Nas águas costeiras existem actualmente sete SIC - como Sintra-Cascais, o Estuário do Tejo e Peniche/Santa Cruz - e oito ZPE - como as ilhas Berlengas, cabo Espichel, ria de Aveiro e Costa Sudoeste. Agora, "Portugal está empenhado num processo de alargamento da Rede Natura à zona offshore, para propor novas áreas para lá das 12 milhas", diz Mário Silva, do ICNF. "Este é um processo que está muito avançado nos Açores, mas no Continente não, apesar de estarmos a fazer o nosso caminho. Deveria ter havido um grande avanço até este ano, mas designar áreas marinhas é mais difícil do que designar áreas em terra", nota. À partida, a conservação da natureza marinha esbarra numa série de obstáculos. Para começar, "não vivemos permanentemente no mar", explica Henrique Cabral, do Centro de Oceanografia. "O acesso ao oceano tem mais barreiras, o que se reflecte na dificuldade em estudar o mar, na concretização das medidas de conservação e sua monitorização e ainda na fiscalização", acrescenta. Depois, a biodiversidade marinha é muito particular e mais variada: "Muitos organismos não têm equivalente em meio terrestre e o nosso conhecimento sobre eles ainda é reduzido. Em muitas situações nem sequer sabemos que temos valores patrimoniais com uma importância elevadíssima." E como é a biodiversidade marinha no mar português? "É muito interessante. Como estamos numa zona de interface entre províncias biogeográficas distintas temos espécies que são do Norte da Europa (de uma zona temperada fria) e espécies mais do Sul, com características subtropicais", diz o biólogo. Na fotografia ao que existe no mar português é possível ver centenas de espécies de peixes, algas, seres planctónicos, medusas e alforrecas, bivalves, polvos e lulas, caranguejos, tartarugas marinhas, baleias, golfinhos e tantas outras espécies. À descoberta Neste momento, o esforço de criação de novas áreas marinhas protegidas, no âmbito da extensão da Rede Natura 2000, concentra-se em saber o que existe no oceano. Dezenas de especialistas fazem o levantamento da biodiversidade marinha - no mar, no ar e em terra, junto à costa. De 6 a 9 de Setembro deste ano, mais de 4000 cetáceos, 8600 aves marinhas, 100 tubarões e cinco tartarugas marinhas foram avistadas por uma equipa de investigadores a bordo do Partenavia P68, um pequeno avião que fez um censo aéreo até às 50 milhas náuticas no âmbito do projecto MarPro - Conservation of Marine Protected Species in Mainland Portugal (2011-2015). "Portugal está obrigado a definir as áreas de Rede Natura 2000 no mar, especialmente para o boto (Phocoena phocoena), o roaz (Tursiops truncatus) e para a pardelabalear", lembra Catarina Eira, investigadora da Universidade de Aveiro e coordenadora do MarPro, projecto financiado pelo fundo europeu LIFE+. "Precisamos de ter uma base de dados fiáveis sobre a distribuição destes animais para, até ao final de 2013, propormos novas áreas marinhas protegidas", acrescenta. O pequeno avião fez uma média de oito horas de censos por dia, ao longo de 4837 quilómetros em transectos perpendiculares à costa, entre o cabo Finisterra na Galiza e a foz do rio Guadiana. "O mar português é zona de passagem de animais entre o Norte e o Sul do Atlântico e é bastante rico", acrescenta Catarina Eira. Além disso, aqui ocorre na Primavera e início do Verão um fenómeno, conhecido como afloramento. "Acontece quando há mudanças

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de ventos e de marés e a água de camadas inferiores vem ao de cima, trazendo muitos nutrientes." Até ao momento, o MarPro - que tem como outros parceiros a Universidade do Minho, a Spea, o Instituto de Investigação das Pescas e do Mar (IPIMAR) e o ICNF - fez um censo oceânico, em Agosto de 2011, e dois censos aéreos (um em 2011 e outro em 2012), além da monitorização dos animais mortos que dão à costa, no Norte do país. Ainda que os dados obtidos no início de Setembro estejam "muito crus", já é possível perceber que o mar português funciona como uma espécie de supermercado gigante para muitos animais em viagem nas migrações. "A função mais importante desta zona será a de local de alimentação para cetáceos e aves marinhas, tão necessária como os locais de reprodução", acrescenta Catarina Eira. Por exemplo, o ganso-patola nidifica no Reino Unido em grandes colónias. No primeiro ano de idade abandona o ninho e vem para as águas portuguesas, onde fica até ter idade de se reproduzir e regressar à colónia. Isso pode levar cinco ou mais anos. "As pessoas ficam espantadas com todas as espécies que ocorrem por cá mas que não são observadas", salienta a investigadora. Para colmatar a lacuna de informação, as ilhas Berlengas foram passadas a pente fino por dezenas de cientistas, a bordo do navio Creoula, nas duas últimas semanas de Setembro. "Até 30 de Setembro já tinham aparecido 120 novas espécies para as Berlengas", diz Frederico Dias, da Estrutura de Missão para os Assuntos do Mar e responsável pelo projecto Marbis, criado em 2007 "para apoiar a decisão no âmbito da extensão da Rede Natura 2000 ao mar", diz o responsável. "O que mais temos encontrado são briozoários, organismos invertebrados parecidas com plantas e que formam colónias de animais, onde cada um tem uma função específica e depende dos outros", explica. Depois desta expedição, onde foram feitos mergulhos até aos 35 metros de profundidade, as Berlengas poderão ficar com mais de 800 espécies conhecidas. Tudo o que for encontrado será registado na base de dados do Marbis, plataforma que deverá ficar disponível para o público em geral. "Este projecto tem toda a informação georeferenciada, com coordenadas e um sistema de informação geográfica, com fotografias e vídeos. Se quisermos pesquisar um quadrado no mapa marinho, podemos ver os registos que existem aí", explica Frederico Dias. Até ao momento, o Marbis tem um total de 30.000 registos de espécies que ocorrem no mar português, depois das expedições às Selvagens em 2010, às Desertas, Porto Santo, Formigas e Santa Maria em 2011. Zonas importantes para aves Muito do trabalho já feito para conhecer a natureza marinha diz respeito às aves. Estima-se que cerca de 40 espécies ocorram regularmente no mar português, 15 das quais pelágicas (que vivem no mar e só vão a terra pôr os ovos). "As aves marinhas são o grupo mais ameaçado de aves do mundo e sofrem com os predadores e com algumas artes de pesca", diz Pedro Geraldes, da Spea. "As suas populações têm diminuído muito. É preciso proteger não só as zonas onde nidificam mas também as zonas que utilizam no mar." De 2005 a 2009 foram realizados censos marinhos, aéreos e junto à costa no âmbito do projecto LIFE Important Bird Areas (IBA) marinhas, coordenado pela Spea. No final, foram seleccionadas as 17 zonas do mar português mais importantes para as aves, por serem corredores que os animais usam durante as migrações, extensão de colónias costeiras ou ainda zonas de alto mar onde elas se concentram regularmente. Onze estão nos Açores, duas na Madeira e quatro no Continente, mais especificamente na ria Formosa (199 quilómetros

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quadrados de área), Figueira da Foz (1067 quilómetros quadrados), ilhas Berlengas (2073 quilómetros quadrados) e cabo Raso (589 quilómetros quadrados). "As IBA propostas são essenciais para sete aves: cagarra (90% da população mundial está em Portugal, ou seja, mais de 200.000 casais), pardela-balear, roque-de-castro, ganso-patola, gaivota-de-patas-amarelas, gaivota-de-cabeça-preta e chilreta", diz Pedro Geraldes. Por si só, as IBA não têm qualquer estatuto legal e só ao de leve coincidem com as áreas de Rede Natura 2000 para a zona costeira. A Spea entende que as IBA deveriam ser consideradas zonas de Rede Natura 2000. Até ao momento, o Estado português aprovou uma das quatro IBA propostas para o Continente, a das Berlengas, e apenas em parte, lembra Pedro Geraldes. A Spea enviou uma queixa à Comissão Europeia, lembrando que Portugal ainda não propôs suficientes locais para proteger as aves. Mário Silva, do ICNF, diz que estão neste momento a estudar duas das quatro IBA propostas pela Spea. "Esperamos por informação técnica adicional." Ainda assim, acrescenta, o projecto das IBA marinhas "foi muito útil para darmos um salto qualitativo" no conhecimento da natureza marinha. Entretanto já são 10h30 no cabo Raso e Nuno Barros e Pedro Geraldes apontam nas folhas os últimos registos das aves. "Uma cagarra para Norte a meia água. Um ganso-patola perto para Sul... Estás a apontar?", pergunta Pedro sem tirar os olhos do telescópio. "Sim, estou a apanhar. Continua", responde Nuno, a rabiscar siglas e traços nas linhas. "Duas cagarras a meia água para Norte. Um ganso-patola adulto para Norte." Ao final das três horas de observação foram avistadas cerca de 30 pardelas-baleares, um número não muito impressionante. Também não encontraram concentrações desta ave marinha. "Hoje vimos cagarras, gansos-patolas, corvos-marinhos-de-crista, garajaus e moleiros. Mas vimos poucas pardelas-baleares", resume Nuno Barros. A maioria das aves observadas nesta manhã está em migração ou a fazer movimentos locais, a alimentar-se. Enquanto o telescópio é desmontado e guardado no porta-bagagem, um corvo-marinho mergulha como uma bala nas águas do Atlântico. Segundos depois surge entre as ondas, por certo satisfeito, e deixa-se estar ali, bem à vista de todos.

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VIII

Um mar de palavras 03.10.2012, por Luís Miguel Queirós

Há muitos mares na poesia portuguesa: o da viagem ou da epopeia marítima e outros mais circunscritos (Miguel Madeira)

Ao longo de séculos, os poetas portugueses cantaram o mar. Muitos mares: o mar afável das praias e dos banhistas, o mar duro da faina dos pescadores, ou ainda esse mar que levou os navegadores quinhentistas à descoberta de um novo mundo. A poesia portuguesa é uma praia constantemente batida pelas ondas do mar. Foi-o sempre, desde os primeiros trovadores galaico-portugueses até aos poetas dos nossos dias. Há setecentos anos, o jogral galego Martim Codax perguntava, assumindo a voz de um sujeito poético feminino: "Ondas do mar de Vigo,/ se vistes meu amigo?/ e ai Deus, se verrá cedo?". Mas já na poesia medieval este mar próximo, costeiro, quase doméstico, cúmplice dos amores do poeta - "Ai ondas, que eu vinveer,/se me saberedes dizer/ porque tarda meu amigo/ sem min?", escreve o mesmo Codax -, podia também representar perigo e constituir um obstáculo à consumação do desejo, como acontece na notável cantiga de amigo de Mendinho, que abre com os versos "Sedia-m"eu na ermida de Sam Simiom/ e cercarom-mi as ondas que grandes som (...)". A donzela que fala no poema receia que o amado não venha resgatá-la e que, incapaz de voltar a terra, esteja condenada a morrer virgem: "Nom ei i barqueiro nem sei remar/ e morrerei eu fremosa no alto mar./ Eu atendend"o meu amigu"... everrá?". O mar, e por extensãotoda aágua, teve sempre um simbolismo ambivalente: é origem, fecundidade, vida, mas também é distância, desastre, morte. A água, escreve António Ramos Rosa, "(...) é um móvel túmulo e um berço errante/ em que a vida e a morte se consumam unidas/ numa pátria de metamorfoses incessantes". No tempo das Descobertas, mais do que em qualquer outro período da história portuguesa, essa ambivalência tornar-se-ia uma realidade quotidiana, uma vivência colectiva. O mar que nos levava a novos mundos era o mesmo que separava famílias, amigos, amantes. O mar que nos trazia especiarias e riquezas várias era também o mar dos sucessivos naufrágios, que Bernardo Gomes de Brito depois compilaria na sua muito justamente intitulada História Trágico-Marítima. "Deus ao mar o perigo e o abismo deu,/ Mas nele é que espelhou o céu", resume lapidarmente Fernando Pessoa no célebre dístico final do poema Mar Português.

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Sendo Portugal um país pequeno com uma costa extensa - "O meu país é o que o mar não quer", diz um verso de Ruy Belo -, não surpreende que o mar esteja obsessivamente presente em inúmeros poetas de sucessivas gerações. Mas o mesmo se poderia dizer, por exemplo, da lírica inglesa, que nos deu alguns dos mais notáveis poemas sobre o mar da literatura ocidental. Ou da grega, desde logo com a Odisseia, protótipo de todas as epopeias marítimas. Se algo distingue o modo como a poesia portuguesa, no seu todo, se relaciona com o mar, essa singularidade talvez decorra, antes de mais, da "intromissão" do facto histórico dos Descobrimentos, decisivo não apenas ao nível material, mas também de consequências duradouras no plano identitário e simbólico. Sem a aventura da expansão marítima, não haveria grande diferença entre o mar de Martim Codax e Mendinho e o mar de poetas do século XX, como Sophia de Mello Breyner Andresen ou Eugénio de Andrade. Assim, e embora se trate sempre do mesmo "mar imenso solitário e antigo" evocado num dos primeiros poemas de Sophia, talvez seja lícito falar, na poesia portuguesa, de um mar anterior aos Descobrimentos e de um mar posterior aos Descobrimentos. E ainda, como a expansão foi um processo, e não um mero instante no tempo, do mar dos próprios Descobrimentos. Que não é apenas, ou nem sequer principalmente, o mar dos autores contemporâneos da expansão marítima. É sobretudo um mar lido a posteriori, na ressaca dessa aventura que levou o país, como escreve Camões, a mostrar "novos mundos ao mundo". Escritos num momento já sentido como crepuscular, com a pátria "metida/ No gosto da cobiça e na rudeza/ Duma austera, apagada e vil tristeza", Os Lusíadas serão a referência inescapável de toda a poesia que, ao longo dos séculos seguintes, irá evocar de múltiplos modos o período da expansão marítima. O peso da epopeia camoniana - quer no cânone literário, quer na própria definição da língua - é tão avassalador que se torna difícil perceber se essa centralidade do mar dos Descobrimentos na poesia portuguesa se deve mais ao facto histórico da expansão marítima, simbolizável na viagem de Vasco da Gama, ou ao poema que sublimemente a relatou. Senhora Nagonia É claro que, tal como sucede noutras tradições poéticas, o mar da lírica portuguesa se subdivide numa abundante e diversificada tipologia de mares, muitos deles sem nenhuma relação com as Descobertas. Temos o mar épico dos navegadores e o mar trágico dos naufrágios, mas também, por exemplo, o mar da faina piscatória, muito sugestivamente descrito por António Nobre no segundo andamento da sua Lusitânia no Bairro Latino: "Oh as lanchas dos poveiros/ A saírem a barra, entre ondas de gaivotas!/ Que estranho é!/ Fincam o remo na água, até que o remo torça,/ À espera de maré (...)/ Que vista admirável! Que lindo! Que lindo!/ Içam a vela, quando já têm mar:/ Dá-lhes o Vento e todas, à porfia,/ Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,/ Rosário de velas, que o vento desfia,/ A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas:// Senhora Nagonia!// Olha acolá!/ Que linda vai com seu erro de ortografia.../ Quem me dera ir lá! (...)". Este mar dos pescadores, mas numa versão um pouco mais negra, atravessa também toda a obra do poeta neo-realista Álvaro Feijó: "Ó Ribeira das Naus! Ó meninos/ ranhosos e famintos!/ ó odor enjoativo do pescado!/ ó mulher de ancas largas, peneirando/ como o fluir das vagas!/ lobos do mar, bamboleando os corpos/ ao ritmo da bordada, mesmo em terra! (...)". E, para não alongar exemplos, acrescente-se apenas um excerto do poema A Virgem dos Sete Véus, de Vitorino Nemésio: "(...) Oh menina sem medo, de mãos pobres,/ Tira as conchas

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do arrojo para os dedos/ E marcha no trabalho e cava na maré/ Teu caldo de honra, tua horta de algas. (...)". A obra de Nemésio, como a de outros poetas insulares, serviria também para ilustrar esse mar muito específico que é o mar visto da ilha, um mar familiar e próximo a ponto de se poder tornar claustrofóbico. Um mapeamento de todos os mares que encharcam a poesia portuguesa seria uma tarefa vasta, mesmo sem entrar nos mares fortemente pessoais e intransmissíveis de alguns poetas contemporâneos, entre os quais o mais estranho é porventura o que se dá a ler na poesia de Luís Miguel Nava: "Agora que se o mar ainda/ rebenta é por acção da memória, arrancam-me/ basalto ao coração ondas fortíssimas (...)". Ou: "(...) O mar, bata ele onde bater, é uma decalcomania que não podemos arrancar sem que atrás fique o nosso próprio corpo em carne viva". Mas cingindo-nos a mares mais partilhados, podia ainda evocar-se essa espécie de versão avariada do mar das Descobertas que é o mar que nos anos 60 e 70 do século XX levava os soldados portugueses para a guerra colonial em África. Veja-se como Eugénio de Andrade e Fiama Hasse Pais Brandão fazem ecoar nos seus próprios poemas uma cantiga de João Zorro para sugerir o confronto desse mar acabrunhado e corrompido com a integridade limpa do mar medieval. "EnLixboa, sobre lo mar/ barcas novas mandei lavrar,/ ai mia senhor velida! (...)", cantou Zorro. Responde-lhe Fiama por cima dos séculos: "Lisboa tem barcas/ agora lavradas de armas// Lisboa tem barcas novas/ agora lavradas de homens// Barcas novas levam guerra/ As armas não lavram terra (...)". No poema de Eugénio o eco é mais subtil, e quase só a reiteração da palavra "barcas" assinala o diálogo com a cantiga de Zorro: "Que soldado tão triste esta chuva/ sobre as sílabas escuras do Outono/ sobre o Tejo as últimas barcas/ sobre as barcas uma luz de desterro (...)". Raça de marinheiros Um mar que, por si só, daria uma antologia é o mar das cenas de praia, como esta descrita por Vasco Graça Moura: "(...) na praia lá do guincho as velas/ de windsurf saltam sobre as ondas/ e o meu olhar, equestre,/ pula nos peitos das banhistas, enquanto/ um cachorro tenta agarrar a cauda.// nos feriados tudo é insuportável/ menos o sol e o mar/ apesar das famílias (...)". Ou esta, de Ruy Belo: "Raça de marinheiros que outra coisa vos chamar/ senhoras que com tanta dignidade/ à hora que o calor mais apertar/ coroadas de graça e majestade/ entrais pela água dentro e fazeis chichi no mar?". Também de Ruy Belo, esta inquietante imagem do mar, que o poeta atribui a um interposto "burguês na praia": "O mar faz-lhe lembrar um cego horizontal/ de olhar embaciado". Em matéria de praias, há ainda a praia selvagem e deserta, que em Sophia de Mello Breyner Andresen se torna numa espécie de praia absoluta: "De todos os cantos do mundo/ Amo com um amor mais forte e mais profundo/ Aquela praia extasiada e nua,/ Onde me uni ao mar, ao vento e à lua", afirma a autora num dos poemas do seu primeiro livro. Apesar da importância do mar em poetas como Eugénio de Andrade, Ruy Belo ou Gastão Cruz, para citar apenas alguns, o grande poeta português do mar da segunda metade do século XX é mesmo Sophia, a quem devemos esta sugestiva Inscrição: "Quando eu morrer voltarei para buscar/ Os instantes que não vivi junto do mar". Um inventário destes mares feitos de palavras implicaria ainda dirigir o leme para águas mais metafóricas, para poemas onde o mar está em vez de natureza, como é frequente nos poetas românticos, ou é outro nome do absoluto. Ou em que o mar é humanizado, como nesta Carta

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ao Mar de Gomes Leal: "Deixa escrever-te, verde mar antigo,/ Largo Oceano, velho deus limoso,/ Coração sempre lírico, choroso,/ Eterno visionário, meu amigo!". Mas também seria preciso descer ao pormenor e ver como todos estes mares que fomos referindo encerram outros mares mais circunscritos. O tema da viagem náutica, por exemplo, tanto poderia englobar a epopeia marítima, representada pel"Os Lusíadas, como muitas outras subcategorias, incluindo o curioso tópico do capitão de navio, presente em poemas (e ficções) de quase todas as literaturas. Na lírica portuguesa, o tema já está presente no romanceiro popular, com a Nau Catrineta - "(...) Passava mais de ano e dia/ Que iam na volta do mar,/ Já não tinham que comer,/ Já não tinham que manjar./ (...) Deitam sortes à ventura/ Qual se havia de matar;/ Logo foi cair a sorte/ No capitão-general" - e chega a um dos mais notáveis poemas de Vitorino Nemésio, A Vaga Verde: "(...) O capitão do navio é só capitão de navio;/ O homem que ele tinha no forro - morreu (...)// Vai o navio duro à vaga verde,/ Com sino de nevoeiro, lanternas, porões:/ É um bocado de escuro que se perde/ Na vida eterna, sem provisões". Três poetas Regressando ao argumento inicial, o que se sugere é que, na poesia portuguesa, esta tipologia de mares se cruza com um eixo crónico cujo centro são os Descobrimentos. Crónico no sentido de temporal, mas também na acepção em que dizemos de uma patologia que é crónica, ou seja, que está sempre a regressar, sem cura. Quando pensamos na poesia portuguesa sobre o mar, três nomes ocorrem imediatamente: Camões, Pessoa e Sophia. Podiam ser outros. Não é certo que o tópico do mar esteja mais presente nestes poetas do que, por exemplo, em Eugénio de Andrade ou Ruy Belo. Mas não será por acaso que se trata de três poetas em cuja obra os Descobrimentos são um tema essencial, mesmo se em qualquer deles há "outros mares". Pessoa, na Mensagem, dialoga com o Camões épico, e Sophia dialogará depois com ambos. Se Os Lusíadas recontam a história do país, dando destaque à viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia, conduzida por Vasco da Gama, Pessoa tenta algo de semelhante na Mensagem, ainda que num registo muito diferente. Como já Camões fizera, Pessoa evoca o precedente mítico da Odisseia - dando o título de Ulisses ao poema que abre com o célebre verso "O mito é o nada que é tudo" -, e também ele concede um lugar central aos Descobrimentos, dedicando-lhes a segunda secção do livro, justamente intitulada Mar Português. O primeiro poema desse conjunto, endereçado ao Infante D. Henrique, é um dos mais conhecidos e citados: "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce./ Deus quis que a terra fosse toda uma,/ Que o mar unisse, já não separasse./ Sagrou-te, e foste desvendando a espuma (...)". Menos vezes lembrado, o segundo, Horizonte, encerra assim: "(...) Buscar na linha fria do horizonte/ A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -/ Os beijos merecidos da Verdade". Talvez se possa entrever um diálogo discreto com este poema nesse outro, de Sophia, que abre com o verso "Navegavam sem o mapa que faziam" e fecha com esta bela estrofe, na qual a autora resgata o momento em que os navegadores depararam, do outro lado do mar, com a revelação de um novo mundo: "Depois surgiram as costas luminosas/ Silêncios e palmares frescor ardente/ E o brilho do visível frente a frente". Nem em Camões, se não esquecermos o autor dos sonetos e canções, nem no poeta dos heterónimos, o tema do mar é tão obsessivo e dominante como em Sophia. Mas deve-se a Fernando Pessoa, sob o nome de Álvaro de Campos, aquele que é sem dúvida um dos mais

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extraordinários poemas sobre o mar de toda a moderna poesia ocidental: a Ode Marítima, espécie de sinfonia em mar maior que, segundo assegurava o próprio Campos, tinha subjacente uma "disciplina interior" que "nenhum regimento alemão jamais possuiu". Se na evocação do Infante D. Henrique, o poeta ortónimo celebra esse mar que passa a unir o que outrora separara, já o mar da Ode Marítima é o mar da experiência da distância, de todos os modos como a distância pode ser sentida: "(...) Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, foste tu/ Que me ensinaste esse grito antiquíssimo, inglês,/ Que tão venenosamente resume/ Para as almas complexas como a minha/ O chamamento confuso das águas./ A voz inédita e implícita de todas as coisas do mar,/ Dos naufrágios, das viagens longínquas, das travessias perigosas (...)". Um grito, prossegue Pessoa/Campos, que "(...) parece narrar todas as sinistras coisas/ Que podem acontecer no Longe, no Mar, pela Noite...".

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IX

Pesca, um mar de oportunidades perdidas 04.10.2012, por José Manuel Rocha

Pescadores da Costa da Caparica pescam na Fonte da Telha (Enric Vives-Rubio)

A indústria da pesca não tem conseguido responder à mudança, nem seguiu os exemplos da Espanha e do Canadá, que reagiram quando o bacalhau começou a desaparecer do mar e as quotas de pesca começaram a cair. Desde o início dos anos 1990 que a frota portuguesa perde dimensão. Só entre 1993 e 2011, perdeu um terço dela e todos os anos a receita de Bruxelas é cortar nas quantidades de apanha. Os portugueses consideraram-se, durante séculos, um país de pescadores. Exploravam bem a costa para os padrões da época e sulcaram com sucesso o mar mais longínquo, mas hoje dizer que Portugal é um país de pescadores seria o mesmo que dizer que abunda petróleo bruto pelo território fora. Apesar de ter a mais extensa zona económica exclusiva da União Europeia, a eficiência com que Portugal extrai peixe dos mares caiu para níveis historicamente baixos e a tendência é para agravar. Ora isto acontece quando é, a nível mundial, dos países que mais incorpora o peixe na sua alimentação. Estima-se que cada português come em média, mais de 50 quilos de pescado por ano. Ou seja, um total de mais de 500 mil toneladas em valores globais. O que se passou, então, para que perdesse o protagonismo e o retorno financeiro associado à produção pesqueira? Uma combinação de factores que não foi capaz de antecipar e que o impediram de encontrar alternativas a tempo. José Poças Esteves, responsável por estudos sobre o grande conjunto de indústrias que se agrupa à volta do mar (hipercluster) no âmbito do trabalho da SaeR - Sociedade de Avaliação de Empresas e Risco, situa a primeira viragem para o mar em 1385: "Resolvemos o problema com Castela e expulsámo-la do mar." Abriu-se, então, o caminho para a iniciativa nacional e para a assunção de uma vocação marítima nos séculos seguintes. A pesca mais costeira cresceu até que, por volta do século XIX, os agentes do sector viram que os limites mais próximos não chegavam para alimentar o negócio e, especialmente, o voraz apetite dos portugueses por peixe. Desenvolveu-se, então, a aposta na pesca em mares mais

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distantes mas não, desde logo, com o objectivo de encontrar bacalhau. Os mares do Canadá, de onde Portugal trouxe milhares e milhares de toneladas de bacalhau, começaram por ser referenciados como um paraíso de pescada, muito procurada pelos portugueses. Relatos da época contam que a costa canadiana tinha "mais pescada do que água", lembra Carlos Reis, especialista em questões da pesca, com uma vida dedicada ao sector e que liderou o Instituto de Investigação das Pescas e do Mar (Ipimar). Mas, ao contrário do que os espanhóis fizeram, Portugal não foi capaz de perceber a tempo que o mundo da pesca estava a mudar. No final da década de 1960, a frota pesqueira portuguesa era responsável por capturas que superavam as 350 mil toneladas por ano, dizem as estatísticas para as quais muitos técnicos alertam não serem sempre fiáveis. Nesse valor global, cerca de um sexto do registado em desembarques era respeitante ao bacalhau, que à época era então a matéria-prima de uma verdadeira indústria em Portugal. Para além do valor de mercado, a pesca do bacalhau, feita então em condições de grande dificuldade e risco para os protagonistas, tinha outras vantagens. Servia para ocupar muita da mão-de-obra do mar que, no continente, tinha de obedecer a defesos para preservação dos juvenis - é o caso, por exemplo, da sardinha. Sujeitas a muito menor pressão no espaço costeiro, as restantes espécies, com este regime de alternância, tinham muito mais hipóteses de se desenvolverem. A riqueza nacional que vinha da pesca do bacalhau entrou em declínio no início dos anos de 1970. As quantidades pescadas foram caindo, até se entrar num registo abaixo das 10 mil toneladas por ano, o que obrigou a importar quantidades cada vez maiores para satisfazer o apetite dos portugueses. "Hoje, para satisfazermos o nosso apetite por peixe, importamos cerca de dois submarinos por ano. E no caso do bacalhau, estamos a comprar aos países de onde fomos corridos. Fomos perdendo, sistematicamente, os pesqueiros tradicionais que fomos conquistando", defende Carlos Reis, acrescentando que essa é uma das consequências da falta de peso político do país. Há várias razões para Portugal ter perdido o filão do bacalhau nos mares da Organização das Pescas do Atlântico Noroeste (NAFO, da sigla em inglês). Desde logo, o alargamento até às 200 milhas das zonas económicas exclusivas dos países confrontantes. Mas mesmo naqueles que restaram, o futuro chegou com desilusões. Nos mares onde se chegou a pescar quase 70 mil toneladas por ano, o bacalhau começou a rarear. Apesar de o apetite dos portugueses por bacalhau não ter comparação no resto do mundo, Portugal não foi o único país a sofrer com o desaparecimento da espécie nos mares do Atlântico Noroeste. O Canadá, em cujas costas o bacalhau era rei, sofreu também com este súbito desaparecimento e ainda hoje, principalmente na envolvente da cidade de St. John, que foi em tempos a capital do império bacalhoeiro, há muitas pequenas localidades pesqueiras com unidades de seca de bacalhau completamente abandonadas e com as indústrias de transformação transformadas em museus. Mas o Canadá foi outro exemplo que Portugal não seguiu. Enquanto os cientistas tentavam perceber o que tinha acontecido ao bacalhau e concluíam, por exemplo, que o aquecimento das águas do Ártico podia ser a causa, os pescadores canadianos viravam-se para outras artes, algumas delas mais difíceis e arriscadas, mas que geravam importante retorno. Foram, por exemplo, à procura do caranguejo, que constitui um pitéu altamente valorizado na América do Norte.

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Também a armação espanhola percebeu que a perda dos pesqueiros da NAFO, onde se extraíam outras espécies de elevado valor mercantil, como a palmeta, já não possuía riqueza suficiente para garantir sobrevivência aos seus milhares de barcos. Procurou outros destinos, antecipando-se também às sucessivas declarações de zona económica exclusiva nas 200 milhas, que foram reduzindo drasticamente as possibilidades geográficas de pesca. Muitas das principais empresas espanholas de pescado, principalmente as que têm sede na Galiza, correram mundo, apoiadas pela sua diplomacia. A Pescanova é um desses exemplos. Hoje, a companhia galega tem uma forte presença em vários países africanos e da América do Sul, por exemplo, extraindo aí uma parte substancial do pescado que depois transforma e vende em todo o mundo. A Pescanova, uma das maiores empresas de peixe e derivados do mundo, está actualmente presente na Namíbia, no Chile, na Argentina e, até mesmo, em Moçambique. Cedência ao abate Portugal não seguiu este caminho, por falta de uma estratégia nacional para o mar e de um sector forte. Hoje, o país que consome dezenas de milhares de toneladas de bacalhau por ano, está limitado a capturas de pouco mais de três mil toneladas por ano nas águas dos mares do Norte da Europa. José Poças Esteves defende que em 1974 Portugal abandonou o mar. E, "a partir de 1986, virámo-nos para a Europa, entusiasmámo-nos com o dinheiro de Bruxelas, deixando para trás todo um potencial" e "só em 2011 é que começámos novamente a perceber que o mar deve ser um desígnio nacional." Enquanto muitos outros países aproveitaram as disponibilidades financeiras da União Europeia para renovarem a frota e pensarem em outros mundos pesqueiros, Portugal cedeu ao abate subsidiado e viu o declínio da frota confirmar-se. Desde o início dos anos 1990 que a frota portuguesa perde dimensão. Dos 9600 barcos existentes em 1993, restavam pouco mais de 6800 no ano passado. "A adesão à CEE teve uma filosofia de base que era a dos abates de embarcações para reduzir as capturas numa dimensão que, então, foi situada em 30%. Dividiu-se a Europa nos "amigos do peixe" do Norte e os "amigos da pesca" do Sul. Sem peso político, Portugal perdeu nesta guerra em favor dos que tinham como objectivo aumentar as exportações dos seus excedentes para os países do Sul", acusa Carlos Reis. Quando Portugal aderiu à então CEE, o bacalhau entrara em declínio, mas havia uma outra ameaça: a redução do esforço de extracção em todo o espaço marítimo europeu como forma de preservar as espécies. Há décadas que os pescadores portugueses - como os seus congéneres europeus - têm a sua actividade limitada na zona das 200 milhas a quotas de pesca que todos os anos são negociadas com a Comissão Europeia. E todos os anos a receita de Bruxelas é cortar, ainda mais, nas quantidades de apanha permitidas. De tal forma que, também praticamente todos os anos, há espécies cujas quotas se esgotam logo a seguir ao Verão. Nos anos mais recentes, isso já aconteceu com a pescada e com o tamboril. Mais dependentes Apertada pelas políticas de redução do esforço de pesca na sua ZEE, sem capacidade para garantir pesqueiros noutras paragens porque nunca foi essa a aposta e com uma frota de pesca longínqua reduzida, a armação nacional contribui cada vez menos para a satisfação do

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apetite português por peixe e pelos produtos dele derivados. "A dignificação da vida no mar foi deitada fora", assume o antigo presidente do Ipimar. A consequência é um aumento claro da dependência externa. No ano passado, as importações de peixe e derivados somaram 1451 milhões de euros. Foram quase 400 mil toneladas que entraram em Portugal para compensar o défice de extracção. O bacalhau é a razão principal desta factura. Mesmo assim, o défice da balança comercial portuguesa na área dos produtos da pesca temse mantido relativamente estável nos últimos anos, devido ao desempenho das conservas, de sardinha e de atum, principalmente. Esta indústria, apesar da forte redução no número de unidades activas, tem-se modernizado. No ano passado, Portugal exportou quase 150 milhões de euros em conservas, praticamente 40% acima do valor alcançado em 2009. Carlos Reis defende que, mais uma vez, a pequenez do país e a consequente falta de peso político ditaram regras que o enfraqueceram. Só assim é possível que saia sistematicamente prejudicado quando, todos os anos, os ministros das pescas se juntam para acertar a nova tabela de quotas para os 12 meses seguintes. Espanha, por exemplo, tem autorização para pescar nas suas zonas 840 mil toneladas de atum rabilho e Portugal, com áreas semelhantes na mesma zona de extracção, fica com menos de um terço. Na pescada, a discrepância é ainda pior. Portugal dispõe de uma plataforma maior do que a espanhola, mas na chave de repartição ibérica do esforço de pesca fica com apenas um terço do total e os restantes três terços vão para Espanha. "Desde 1990 que é assim: nós a descermos e a Espanha a garantir posições, porque tem posições no contexto da União Europeia que nós nem de perto nem de longe conseguimos", afirma o antigo presidente do Ipimar. Apesar dos constrangimentos que se colocam à frota pesqueira portuguesa, os especialistas concordam que nem tudo está perdido, embora o tempo exija soluções rápidas. José Poças Esteves lembra que, com o alargamento da plataforma continental, Portugal dispõe de quatro milhões de quilómetros quadrados de mar e defende que a aposta na aquicultura é uma prioridade nacional no relançamento do hipercluster do mar. "Produzimos quase zero em aquicultura e isso seria fundamental para alimentarmos não só a indústria de conserva, mas também a de produtos transformados, porque há procura para isso." Actualmente, Portugal produz em viveiro cerca de oito mil toneladas de peixe por ano, para um valor de pesca selvagem que, no ano passado, andou perto das 165 mil toneladas. É muito pouco para um país que todos os anos vê o esforço de extracção selvagem ser reduzido pelas políticas europeias. As condições de costa e de mar muito batido não são as ideais para a aposta nesta área, mas há nichos, as ostras, por exemplo, onde o investimento faria muito sentido. Mas mais uma vez, a iniciativa rareia. O maior projecto de aquicultura a funcionar em Portugal tem a assinatura da Pescanova, com uma unidade de criação de pregado, em Mira. Carlos Reis considera que mesmo no actual quadro de limitações, há espaço para duplicar as capturas no mar, mas para isso é necessário reorganizar o sector, reafectar recursos, transformar a estrutura em que ele funciona. "Por exemplo, teríamos desde logo que acabar com o actual sistema de venda, que impede o pescador de vender o produto da sua faina a quem muito bem entende e de pedir o preço que considera justo." No quadro vigente, todo o peixe descarregado em Portugal tem que ir às lotas da Docapesca. O sistema tem sido alvo de fortes críticas, por impedir a liberdade de fixação de preços em primeira venda. O que se verifica depois é que, na segunda venda, o quilo de pescado às vezes incorpora margens de lucro que muitos consideram injustificáveis. Ou seja, quem mais ganha é quem tem o trabalho mais fácil de intermediação do pescado.

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E havia também que mudar a legislação aplicada às pescas que Carlos Reis considera ser das mais restritivas que existem em todo o espaço europeu e que acaba por ser limitadora da iniciativa privada e de uma aposta mais substancial no sector pesqueiro. As questões dos tamanhos mínimos, da obrigatoriedade de rejeições de pescado e do acesso aos grandes migradores - que no quadro actual não podem ser apanhados - são especificidades da legislação nacional que Carlos Reis defende ser urgente mudar, de forma a garantir para o sector novas oportunidades de crescimento.

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Temos "o melhor peixe do mundo". E conseguimos comê-lo? 05.10.2012, Por Alexandra Prado Coelho

Produzimos robalo, na foto, dourada, linguado, pregado e estamos a iniciar a produção de corvina (Enric Vives-Rubio)

Muito do nosso melhor peixe e marisco é para exportação. O poder de compra dos portugueses não permite comprá-lo, o que nos obriga a importar peixe mais barato e de menor qualidade. Haverá formas de inverter esta situação? São 5h da madrugada e junto à lota de Vila Real de Santo António, no Algarve, estão já estacionadas várias carrinhas. As matrículas e nomes das empresas indicam que são todas espanholas. Estamos ao lado de Espanha, o que ajuda a explicar o elevado número de compradores espanhóis. Mas não explica o facto de não haver um único comprador português. O marisco vai entrando, em caixas cheias de gelo, e os homens tentam afastar o sono com um pequeno-almoço no pequeno café ao lado da lota. Daí a pouco começará o leilão, com a pescaria de cada barco a desfilar, e os compradores a assinalarem a compra assim que o preço atinge o valor que consideram justo (o leilão é decrescente e o preço vai baixando até alguém carregar no botão, assegurando a compra). Perguntamos aos frequentadores habituais da lota por que é não se vêem portugueses a comprar, e a resposta é sempre a mesma: porque não têm poder de compra para este tipo de marisco. Significa isto que Portugal tem muito bom peixe, e muito bom marisco, mas que grande parte dele destina-se à exportação? E que nos seus mercados e supermercados os portugueses compram, muitas vezes, peixe importado, porque é mais barato? Existe uma campanha que promove o peixe português como "o melhor do mundo", e que se apoia na opinião de alguns dos mais prestigiados chefs internacionais, que dizem utilizar o peixe português nos seus restaurantes e não poupam elogios à sua qualidade. Mas chegaremos nós a prová-lo?

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"Em números redondos podemos dizer que exportamos cerca de 200 mil toneladas e importamos cerca de 400 mil", diz Leonor Nunes, investigadora do Instituto de Investigação das Pescas e do Mar (Ipimar). "O nosso consumo per capita é de 60 quilos anuais por pessoa e apenas um terço disso resulta das nossas capturas". Os números indicam que somos, de facto, grandes consumidores de peixe. Mas, na opinião de Leonor Nunes, "não consumimos peixe a mais". "Temos hábito de comer peixe, o que é excelente para a saúde. Temos é que compensar esse desejo recorrendo à importação de quantidades significativas de algumas espécies." Exemplos? "A pescada, que vem do Chile, América do Sul, África do Sul, Nova Zelândia, os cefalópodes [polvo, lulas...], de várias partes do mundo, o salmão, vindo sobretudo da Noruega e algum do Chile, e que também se instalou nos hábitos dos portugueses, e a dourada e o robalo de países como a Espanha e a Grécia, a maior parte dele de produção intensiva." No passado, os portugueses iam pescar longe. As embarcações traziam bacalhau do Atlântico Norte, pescada da Mauritânia e da América do Sul, cefalópodes também das costas sulamericanas. Mas, lembra Leonor Nunes, "com a implantação do direito do mar, quando os países ribeirinhos passaram a ter acesso preferencial ao peixe das suas costas, perdemos a capacidade de pescar nessas zonas, por isso agora limitamo-nos a uma pesca na nossa zona económica exclusiva". E, com uma costa grande como a de Portugal, essa pesca permite a captura de excelente peixe. O problema é que "o nível económico do país não permite o consumo de todo o bom peixe que se pesca. Não sei se estamos a exportar todo o nosso melhor peixe, mas exportamos uma quantidade muito importante, que se destina a mercados com outra capacidade económica". A investigadora do Ipimar confirma aquilo que já tínhamos visto de madrugada na lota de Vila Real de Santo António. "O marisco que temos é bom, sobretudo na costa algarvia, mas tradicionalmente a melhor parte é adquirido pelos compradores espanhóis e comercializado em Espanha". De onde vem então o marisco que consumimos nas marisqueiras portuguesas? "Temos o caso da sapateira, muito apreciada em Portugal, que vem da Escócia e do Canal da Mancha, e, quando é congelada, vem de vários países, em particular da Irlanda". A mais-valia dos portugueses tem a ver com a forma como tratamos esses mariscos e peixes. "Conseguimos transformá-los quase em ícones gastronómicos. Desde o tempo dos romanos que introduzimos na nossa dieta o consumo de peixe, e fomos refinando cada vez mais a prática gastronómica". O exemplo mais famoso é, claro, o do bacalhau. Mas o facto de nos termos tornado tão fanáticos por um peixe que não se captura nas nossas águas faz com que tenhamos que importar anualmente cerca de 60 mil toneladas, de países como a Islândia, a Noruega e o Canadá. Uma quantidade que contribui decisivamente para o desequilíbrio entre as importações e as exportações. "É verdade que muito do peixe que pescamos não pára em Portugal", confirma o secretário de Estado do Mar, Manuel Pinto de Abreu. "Há espécies que pouco consumimos e que são exportadas, e depois importamos outras". Em relação ao bacalhau não há nada que possamos fazer. Era preciso que as águas ficassem mais frias para que o bacalhau viesse até elas e a tendência parece ser precisamente a inversa. "A solução é irmos pescá-lo a outras águas, transformá-lo e vendê-lo em Portugal". Mas, sublinha Pinto de Abreu, "em relação ao resto podemos trabalhar".

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As quotas de pesca e as preocupações com a sustentabilidade fazem com que não consigamos pescar uma quantidade de peixe que nos garanta a auto-suficiência nessa área. O que podemos fazer para compensar isso? Uma das respostas passa por aumentarmos o consumo de peixes que consideramos habitualmente menos nobres, como a cavala. O Ipimar, e a Docapesca, responsável pela gestão das docas nacionais, têm estado a promover o consumo de cavala. Um debate organizado pela Docapesca em Olhão, no início do Verão, para discutir o problema da fuga à lota, e durante o qual vários pescadores se queixaram do sistema de leilão decrescente, dos lobbies que se formam para esmagar os preços do peixe, terminou com uma acção de promoção da cavala, com chefs de cozinha a mostrar várias formas de trabalhar esse tipo de peixe. E é precisamente neste exemplo que o secretário de Estado pega. "Temos em Portugal 200 espécies que são pescadas, das quais utilizamos cerca de 20, e, entre estas, consumimos mais cinco ou seis. Por isso, temos que fazer uma caracterização do que pescamos, do que existe de cada espécie, e depois fazer a promoção das que são, do ponto de vista nutricional, mais valiosas". É o caso da cavala. "Foi a primeira espécie em que pegámos. Existe em grande quantidade, não era muito pescada, e não era vendida." A campanha, diz Pinto de Abreu, já está a dar resultados e há sinais de maior consumo de cavala, o que significa também que os pescadores já conseguem por ela um preço mais elevado. "Poderíamos aumentar o nosso consumo de cavala porque temos uma produção muito interessante desse peixe", concorda Leonor Nunes. "A cavala pode ser fumada, usada para sushi e sashimi, tem muitas utilizações interessantes." Pinto de Abreu identifica um outro problema na nossa pesca: o nível de rejeições, ou seja, a quantidade de peixe que é pescado mas que é depois lançado novamente ao mar. "Embora a selectividade das artes de pesca esteja a aumentar, o que acontece é que essas outras espécies [as menos consumidas] constituem a maioria das rejeições. Algo que está neste momento em discussão no quadro da nova política comum de pescas é a eliminação das rejeições". No mar português, ao contrário do que acontece por exemplo no Mar do Norte, "não é fácil pescar só uma espécie". Por isso, o Governo está a tentar identificar claramente a taxa de rejeições e a estudar outras aplicações. "As espinhas, por exemplo, têm grande valor comercial, podem ser usadas para a cosmética ou para produtos farmacêuticos." Outra resposta à necessidade de produzimos mais peixe é a aquacultura. Mas com algumas limitações, alerta a investigadora do Ipimar. "As nossas condições não nos vão permitir aumentar extraordinariamente a nossa produção de aquacultura. Vamos conseguir aumentála, mas temos que ver se é competitiva em termos de preço com a que vem do exterior, que é uma produção extensiva, com custos de produção muito mais baixos do que os nacionais". Neste momento, a aquacultura não excede os 5% do nosso consumo. O que Leonor Nunes defende é que, não podendo ter grandes produções, devemos diversificar, introduzindo novas espécies, fazendo a engorda do atum, usando espécies herbívoras como a tainha." Se conseguirmos introduzir essa diversidade vamos aumentar muito a nossa produção." E, lembra, "o peixe de aquacultura tem um tempo de conservação [no gelo] superior ao selvagem", o que torna a sua comercialização mais fácil. Já existem, no entanto, bons exemplos em Portugal. "Neste momento a produção nacional é muito interessante. Produzimos dourada, robalo, linguado, pregado e estamos a iniciar a produção de corvina. E temos ostra, amêijoa, lamejinha nos estuários e na ria Formosa, na ria

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de Aveiro, em Setúbal, na lagoa de Óbidos. Nos bivalves, tal como no peixe, temos animais com características sensoriais excepcionais", afirma Leonor Nunes. É o que garante também um dos produtores de ostras e mexilhões da costa algarvia. António Farinha está à frente de uma empresa com 176 anos, a Companhia das Pescarias do Algarve (CPA), que atravessou um período de dificuldades económicas, quando a pesca do atum começou a decrescer e as armações tradicionais a desaparecer. A companhia foi criada pelos algarvios como forma de resistir ao marquês de Pombal, que queria constituir uma Companhia Real para explorar os recursos no mar do Algarve. "As pessoas que sempre tinham estado ligadas à pesca não queriam que os recursos da nossa costa fossem todos para Lisboa", explica Farinha, enquanto tomamos um café na doca de Olhão. A pesca do atum foi durante décadas o grande negócio. "As armações tinham perto de 150 pessoas", recorda. Mas depois o atum foi-se afastando, escolhendo outros percursos, e as armações entraram em crise. Mas António Farinha acredita que agora, para dar novo fôlego à CPA, "é preciso voltar a fazer o que se fazia quando a empresa tinha uma situação financeira estável: a pesca do atum". Está convencido de que o afastamento do atum daquele percurso foi um fenómeno temporário - uma opinião partilhada por Leonor Nunes. "O atum é uma espécie migradora, que também sofre com as alterações climáticas e pode escolher outros percursos migratórios. Mas continua a haver atum a passar na costa algarvia, embora talvez não nas quantidades de há 50 ou 60 anos." Para reduzir custos, Farinha optou por redimensionar as armações, que serão duas com entre 30 e 35 homens. "Achamos que é um tipo de pesca sustentável, porque é passiva". Ou seja, o animal é apanhado na armação e fica lá preso. A mesma técnica é usada, há mais tempo, pela Tunipex, também sedeada em Olhão, e dirigida por um japonês, Hirofumi Morikawa. Esta empresa captura de forma passiva atum fresco, grande parte do qual é exportado, sobretudo para o Japão, onde existe uma enorme procura deste tipo de peixe para os pratos de sushi. Ao mesmo tempo, a Companhia das Pescarias do Algarve lançou-se noutra grande aventura: a produção de ostras, mexilhões e vieiras em aquacultura em offshore. "Não íamos fazer robalos e douradas porque os gregos conseguem pôr cá esses peixes com preços muito abaixo do nosso custo de produção", explica António Farinha. "Mas os bivalves não precisam de ser alimentados e são um mercado em que a procura é maior do que a oferta, principalmente na Europa". Vamos sair para o mar com António Farinha para ver do que estamos a falar. "Temos condições para nos tornarmos um produtor de referência nos mercados europeus, sobretudo com o mexilhão", diz, convicto. Os animais são criados em mar aberto, batido por ondas, o que garante a qualidade do fitoplâncton, e a única coisa necessária são as estruturas em que vivem. "A qualidade da água é de tal forma que os animais não carecem de depuração", continua, entusiasmado. Ao longe começamos já a ver uma grande quantidade de bóias cor-de-laranja que localizam as longline, ou seja, as cordas às quais estão agarrados os bivalves. Basta puxar até ao barco uma dessas cordas para ver o estado de desenvolvimento dos animais. Uma das cordas traz as estruturas no interior das quais estão as ostras, e outra tem agarrados os mexilhões. Nesta viagem vai também um casal de franceses, proprietários de restaurantes em França, interessados em ver a qualidade dos bivalves. "O nosso mexilhão é melhor do que o dos melhores produtores mundiais", garante Farinha. "Temos feito ensaios com painéis de

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degustação que dizem isso mesmo". Por isso, também neste projecto, 90 por cento da produção destina-se à exportação, sobretudo para a Europa e, no caso do atum, para o Japão. Os bivalves são uma boa aposta, sublinha também o secretário de Estado do Mar. "Na aquacultura temos que atender à especificidade do nosso mar. Não temos fiordes como a Noruega, temos uma costa batida, aberta, que tecnicamente impõe algumas limitações. Está a ser desenvolvida investigação para ultrapassar essas dificuldades". Mas, para já, uma área particularmente "apelativa" é a da cultura de bivalves. "Estamos a procurar criar condições para que seja uma realidade. E há já investidores estrangeiros interessados em instalar e desenvolver em Portugal instalações deste género." Este artigo partia de uma pergunta: será que os portugueses comem peixe a mais? A resposta parece ser clara: não, não comemos peixe a mais. É um óptimo alimento, e é bom que sejamos um país de consumidores de peixe. Mas a balança exportações/importações é desequilibrada e temos que repensar a nossa produção e o nosso consumo. Por um lado, valorizar espécies que tendemos a desprezar, e aprender a desperdiçar menos. E, por outro, estudar o potencial do nosso mar para aquacultura e aproveitá-lo de uma forma inteligente. Não podermos produzir tudo, mas poderemos produzir algumas coisas muito bem. O objectivo será conseguirmos consumir cada vez mais o nosso bom peixe e marisco em vez da pescada barata que vem do outro lado do mundo. com Teresa Firmino

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Tanto mar para tão pouca marinha 06.10.2012, Por Nuno Sá Lourenço

O almirante Saldanha Lopes só vai ter disponíveis dois dos oitos navios que considera a "espinha dorsal" do sistema (Foto: Miguel Dantas)

Nas vésperas do alargamento da área de jurisdição nacional no mar, a Marinha vê-se a braços com o congelamento de equipamentos essenciais para prossecução da sua missão. A contenção financeira a isso obriga. Perante essa realidade, a solução passa por "ajustamentos" e aproveitar "sinergias", tanto dentro do Estado português, como com entidades internacionais e outros países. As Forças Armadas Portuguesas estão moderamente equipadas e reforçadas com uma força substancial de reservistas bem treinados. A Força Aérea detém uma capacidade de ataque adequada, mas a Marinha padece de uma frota envelhecida." É assim que o Military Balance, publicado no passado mês de Março pelo Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais, inicia sua avaliação à capacidade militar portuguesa. A situação não é nova, mas com a imposição das políticas de restrição orçamental, os programas de reequipamento há muito definidos para as Forças Armadas foram primeiro cativados e depois cancelados. No caso da Marinha, essa decisão implicou o congelamento, por exemplo, da construção de seis dos oito navios de patrulha oceânicos, que deveriam substituir as envelhecidas corvetas da Armada. A limitação de meios na Marinha ganha outra relevância, se se tiver em conta o projecto de alargamento da Plataforma Continental. Significa a extensão da área de soberania marítima portuguesa dos actuais 1,7 milhões de quilómetros quadrados para os 3,8 milhões de quilómetros quadrados. Mesmo sem essa extensão Portugal já é o 11.º maior país do mundo em termos de área de águas jurisdicionais. Para além disso, à Marinha e à Força Aérea estão cometidas missões que vão para lá da defesa militar daquele espaço. Têm também um papel no desenvolvimento cientifico e económico relacionado com o mar. Isso traduz-se na obrigação de fazer frente a ameaças tão variadas como o terrorismo, pirataria, proliferação de armamento, narcotráfico, tráfico de seres

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humanos, imigração ilegal, depredação de recursos vivos e não vivos, combate à poluição no mar. Tudo isto numa área pela qual passa 53% do comércio externo da União Europeia. No Ministério da Defesa, garantir a soberania e a vigilância em tanto mar numa altura de contenção orçamental não é visto como uma missão impossível. Implica "ajustamentos" nas despesas, ao mesmo tempo que se procuram soluções que potenciem poupanças. "Temos a esquadra ideal, temos a estrutura ideal? Não temos, daí a definição de prioridades", afirma Paulo Braga Lino, secretário de Estado da Defesa, ao PÚBLICO. Para o governante, há duas prioridades: a reafectação de meios financeiros para a operação e a procura de tecnologia de ponta. Como exemplo, Braga Lino cita o "rearranque a muito curso prazo da conclusão do segundo navio de patrulha oceânico (NPO)". O objectivo é ter os dois novos navios no mar já em 2013. Não só pela necessidade de substituir equipamento obsoleto, mas também pela poupança possível. "Um NPO a fazer fiscalização face aos meios actuais requer muito menos pessoas", assegura o secretário de Estado, comparando os 33 militares necessário para preencher a guarnição de um NPO, por oposição aos 66 que a corveta mais antiga exigia. "O que temos de garantir é que, com meios mais eficientemente geridos e com tecnologia mais avançada, conseguimos fazer esse patrulhamento sem que seja necessária a presença física", explica. A Marinha já de há uns anos a esta parte que se tem precavido para este desafio através de um conjunto de estudos sobre o planeamento de forças, tendo em conta a extensão da Plataforma Continental. Em 2010, o Grupo de Estudos e Reflexão Estratégica da Marinha publicou um trabalho precisamente sobre "A Plataforma Continental Portuguesa e o Hypercluster do Mar". Uma das vertentes dessa análise foi a "Plataforma Continental na Problemática da Defesa Nacional", feita pelo vice-almirante e ex-vice-chefe do Estado-Maior da Armada Lopo Cajarabille. Ao inventariar o "actual sistema de forças", o vice-almirante concluiu ser "evidente que os meios necessários para vigiar e fiscalizar uma plataforma continental de 1,7 milhões de quilómetros quadrados não serão suficientes para uma plataforma continental de mais do dobro dessa grandeza". Por isso, o estudo propunha "redimensionar a Marinha". E enumerava um conjunto de meios adicionais que considerou essenciais. Começou pelos patrulhas oceânicos, cujo contrato de construção foi assinado por Paulo Portas, quando era ministro da Defesa. E defendeu que a Marinha necessitaria para a sua missão de "vigilância permanente e intervenção sem oposição militar" não dos oito destes navios que estão previstos mas sim de dez.Um número bem distante do que a Marinha tem hoje ao seu dispor. O actual ministro da Defesa congelou o contrato de Portas. Dos oito apenas dois serão construídos nos próximos tempos, tendo a Armada de cumprir a sua missão com as corvetas que têm cerca de 40 anos de serviço. As fragatas foram citadas pela sua capacidade de "intervenção musculada". Também aqui Lopo Cajarabille aponta para a falta de meios, defendendo a existência de seis, em vez das actuais cinco fragatas. No que toca aos submarinos, a contabilidade também peca por defeito. "Com dois submarinos não se garante a disponibilidade permanente de uma unidade", alertou o vice-almirante antes de propor que o Estado português dispusesse de quatro submarinos. Mas admitindo que seria possível resolver o problema com a obtenção de "dois novos submarinos de menor dimensão e capacidades". Alertou ainda para o problema do reabastecimento da esquadra, actualmente feita por um único navio, o Bérrio. Lembrando os períodos de indisponibilidade para manutenção, defendeu a aquisição de outro ou então "ter um navio mercante preparado com antecedência para ser

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adaptado a reabastecedor". "Sem reabastecedor, as fragatas perdem muita autonomia", referiu. O vice-almirante apontou ainda para a necessidade de "aumentar a capacidade em termos de equipas [de fuzileiros] especializadas de abordagens", mas também de aquisição de quatro drones, ou veículos aéreos não tripulados. Uma solução que daria "maior eficácia à vigilância marítima de forma relativamente barata". Mas a actual realidade portuguesa afasta qualquer possibilidade de concretizar este exercício de previsão de meios feita por um vice-chefe de Estado-Maior da Armada. No ministério, a posição sobre o reequipamento é clara. Não vale a pena ter no papel uma Marinha perfeita que depois na prática não pode ser criada devido aos constrangimentos financeiros. O Governo só vai "tomar decisões que sejam verdadeiramente possíveis de executar" avisa o secretário de Estado da Defesa. Há outras formas de se atingir o objectivo de garantir a "perfeita cobertura dessa extensão" de mar, explica Braga Lino. A este estudo contrapõe que não se pode "estar só a falar de presença física no mar": "Temos de garantir que todo o sistema de fiscalização funciona. Alargar o espectro de fiscalização mesmo sem estarmos fisicamente a navegar." A estratégia está definida. Estudar a área para identificar as zonas potencialmente mais importantes em termos de garantia de segurança e vigilância. Braga Lino cita o trabalho desenvolvido e a desenvolver pelos dois navios do Instituto Hidrográfico: "Para conseguirmos maximizar a eficiência da utilização dos nossos próprios recursos é fundamental que tenhamos conhecimento aprofundado de toda a área." Depois, é necessário manter um sistema de vigilância capaz de monitorizar toda aquela extensão marítima. Radares e satélites, portanto. Aqui, o governante começa a falar de sinergias. Seja entre organismos do Estado português, seja através da cooperação com entidades estrangeiras. Ao nível do Estado português, dá o exemplo na fiscalização da orla costeira, que pode ser articulado com o sistema gerido pelo Ministério da Administração Interna. Este, nos últimos meses, tem sido notícia por não estar em condições de assegurar efectivamente essa vigilância. Mas no mar alto os parceiros terão de ser outros. Aproveitar equipamentos de outros países. "Ao nível da nossa indústria de defesa, uma das nossas empresas dispõe e desenvolve sistemas que, sendo vendáveis e depois utilizáveis por outras entidades, poderão por nós ser aproveitados, ainda que não estejam em nossa posse." Braga Lino fala do sistema de radares a ser instalado nos Açores para serem utilizados pela NATO. Mas não só.O Governo não descarta a possibilidade de conseguir que outros países partilhem com Portugal o uso de satélites para monitorização do território. Essa solução terá, porém, o risco de se ter acesso a esse tipo de equipamentos com algum atraso temporal e filtrado por esses países aliados. O chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), almirante Saldanha Lopes, admite que essa situação implique um risco para a soberania. "Onde houver vazio alguém o irá ocupar", reconhece."Nós em tantos domínios – para não irmos mais longe nos domínios económico e financeiro – não podemos esquecer que há interesses. E esses interesses acabam por ser condicionantes de toda uma actividade económica, uma actividade própria da potencialidade de um país se assumir com as suas mais-valias." Mas o almirante garante que, apesar das dificuldades, Portugal está ainda muito longe do vazio. "Neste momento estamos a caminhar para uma marinha equilibrada", assegura. É possível garantir a soberania mesmo partilhando meios nesta missão. Não é necessário, garante, encher o mar de navios portugueses. "Eu não preciso de ter 20 fragatas ou dez submarinos... Eu preciso de ter o mínimo para poder desempenhar estas funções, capacidade de resposta no

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espectro de áreas em que podemos ser chamados a responder. Uma marinha que tenha estas capacidades e que possa colaborar com outras nas diversas vertentes da acção no mar", explica. A avaliação que faz, indicia que os investimentos feitos no passado recente deixaram a Marinha melhor do que estava há uns anos: "A renovação da esquadra começou há 20 anos, chegámos a um ponto em que temos as fragatas de que necessitamos, que são cinco, os submarinos é o mínimo, mas não temos capacidade para ter mais." No caso destes últimos, cuja aquisição ainda hoje continua envolta em polémica, Saldanha Lopes faz questão de frisar que em termos operacionais representam uma vantagem. Os submarinos são polivalentes nas missões que podem desempenhar, explica, dando como exemplo a sua aplicação no combate ao narcotráfico. Mas não só: "Como arma substitui muitos navios de superfície. É uma arma fantástica e económica. Se pensarmos que os nossos [dois] submarinos custaram mil milhões de euros, posso dizer-lhe que as fragatas que estão a ser construídas para a Marinha espanhola custam cada uma mil milhões de euros..." O essencial, portanto, é dar sinais que o país, enquanto Estado de direito, está atento ao que se passa na sua área de jurisdição. "Não é necessário permanecer nessa área. É necessário é ter presença, ter cooperação e estarmos atentos", afirma. Mostrar que Portugal "não desistiu" das suas obrigações, ainda que necessite de apoio para as cumprir. Mas Saldanha Lopes não esconde que existem problemas. O atraso na chegada dos NPO é a principal dor de cabeça. "Temos problemas exclusivamente na renovação dos navios mais antigos [corvetas] e que são a espinha dorsal neste dispositivo que temos de ter para esta área", admite. A expectativa do almirante é que esse investimento venha a ser possível mais tarde. "Eu espero que estes projectos prossigam, têm o seu timing condicionado pela crise que o país atravessa, mas os passos estão a ser dados no sentido de podermos prosseguir. Pelo menos é a indicação que a tutela nos dá. Talvez com um pouco de atraso..." A dúvida que se instala, então, é se Portugal terá condições para cumprir as suas missões de forma exemplar durante alguns anos. Mas o secretário de Estado da Defesa rejeita liminarmente que Portugal não tenha essa capacidade, lembrando não ser este o primeiro período em que os miliatres têm de lidar com este tipo de desvantagens: "Até hoje todas as missões atribuídas às FA têm sido cumpridas sem falhas."

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XII

Pode um navio contar a história da pesca do bacalhau? 07.10.2012, Por Teresa Firmino

O Argus à chegada a Portugal, em 2009, vindo das Antilhas Holandesas (Foto: Paulo Pimenta)

Este navio teve duas vidas e está a caminho da terceira. Foi bacalhoeiro português nos bancos da Terra Nova e da Gronelândia. Foi cruzeiro turístico nas Caraíbas, quem sabe se não foi como um barco do amor. E agora, que regressou ao país de origem depois de ter sido resgatado do abate nas Antilhas Holandesas, a ideia é torná-lo num navio-memória da sua primeira vida. O Argus ficou célebre mundialmente, tudo por causa de um livro que apareceu em 1951 nas principais livrarias de Londres e Nova Iorque e, pouco depois, em Portugal: A Campanha do Argus — Uma Viagem na Pesca do Bacalhau. O autor é o australiano Alan Villiers, que na época já era um conhecido especialista em assuntos náuticos. Era comandante da Marinha australiana e tinha-se tornado repórter da revista National Geographic, além de ter no currículo vários livros, como aquele em que acompanhou, na década de 1920, uma expedição norueguesa de baleeiros à Antárctida. Deu-se a coincidência de Villiers se ter encontrado, em 1949, com o embaixador português em Washington, Pedro Teotónio Pereira, que o convidou para acompanhar a frota portuguesa de bacalhoeiros na sua viagem anual à Terra Nova e Gronelândia. “Ainda havia, disse-me ele, pelo menos 35 veleiros a participar nesta histórica campanha pesqueira, provenientes de Lisboa, do Porto, de Aveiro, da Figueira da Foz e de Viana do Castelo”, escreveu Villiers no prefácio do livro (reedição da Cavalo de Ferro, em 2005). “Quanto a mim, onde quer que houvesse 35 veleiros em operação, esse era o lugar onde eu queria estar.” Convite inocente, em pleno Estado Novo, que propagava o “regresso de Portugal ao mar” como um desígnio? Nem por isso, mas lá iremos mais tarde. E assim, em 1950, Villiers aventurou-se na campanha do bacalhau, que começou, como muitas outras na época, com a reunião dos navios em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, para a bênção da frota e missa, com os pescadores, os capitães, os marinheiros, as mulheres e os filhos e os altos dignitários da Igreja e do Estado na assistência, contou-nos ele.

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Naquele ano, a frota portuguesa tinha 32 veleiros, além de 30 navios-motor e 18 arrastões modernos. Mais de 3000 pescadores iam, todos os anos por volta de Abril, para aquelas paragens do outro lado do Atlântico. Com sorte, cinco meses depois, no final de Agosto, teriam os porões carregados de peixe para poderem voltar a casa. “Esta era a última frota à vela ainda em operação na Europa inteira. Tratava-se dos últimos veleiros de pesca, simples e despojados, que lutavam para retirar o sustento do fundo do mar (...), pescando de forma tradicional, com linhas e anzóis, usando aqueles pequenos botes a remos chamados dóris. No convés do Argus havia montículos de dóris — dez deles, com seis dóris cada um.” Só já os portugueses apanhavam bacalhau assim: um só homem num dóri afastava-se do naviomãe, desde centenas de metros até algumas milhas, a remos e depois, se havia vento, içava uma vela artesanal, e pescava à linha. Só quando tinha o pequeno bote cheio, ao fim de horas e horas, é que regressava. “Devido à crónica de Alan Villiers, o Argus tornou-se o mais conhecido navio bacalhoeiro português no estrangeiro”, sublinha, na introdução na edição de 2005, o historiador Álvaro Garrido, da Universidade de Coimbra e actual consultor do Museu Marítimo de Ílhavo. “Só o Gazela I e o Creoula rivalizaram na fama.” Também Aníbal Paião, sobrinho-neto do capitão do Argus nessa campanha, Adolfo Simões Paião Júnior, então com 52 anos, atribui a Villiers a fama deste navio. “Fez um filme, fez grande número de fotografias que correram o mundo e o livro, que é traduzido em 12 idiomas, tem uma linguagem acessível, muitos pormenores e é agradável de ler. O Argus passou a ser mítico, conhecido em todo o mundo, precisamente por causa deste livro”, considera Aníbal Paião, sócio da empresa de bacalhau Pascoal. Ainda antes da saída do livro, Villiers publicou uma reportagem no jornal New York Times, conta por sua vez Álvaro Garrido. E a promoção do documentário (“The Bankers — The Voyage of the Schooner Argus”) e do livro, cheio de fotografias, passou por um périplo do autor com conferências por diversas cidades norte-americanas. As rádios transmitiram também as suas palestras e as televisões partes do filme. No Reino Unido, por exemplo, a BBC entrevistou Villiers duas vezes. “Independentemente de utilizarmos navios à vela, que mais tarde desapareceram por uma série de circunstâncias, também o tipo de pesca, com dóris, estava a desaparecer”, contextualiza Aníbal Paião. “Havia um duplo risco de desaparecimento — do tipo de navio utilizado e do tipo de pesca praticada nesse navio —, daí a importância deste livro.”Antes de passarem para os arrastões, os franceses pescavam bacalhau com dóris, que no seu caso transportava dois homens: “Mas, progressivamente, foram abandonando essa actividade, que nós levámos até ao limite do que é razoável. Tornou-se obsoleta, além de ser uma vida duríssima e perigosa. Já viu o que é estar no meio do Atlântico numa casca de noz, numa embarcação de madeira? De um momento para o outro, levanta-se mau tempo, vem uma névoa...” Numa linguagem viva, Villiers dá conta desse momento em que, depois de uma longa espera por isco em São João da Terra Nova, no Canadá, chegaram aos bancos ao fim de um dia de viagem e os homens estão prestes a sair nos dóris. “O mar ainda estava agitado, mas o vento fraco, e o Argus abanava e oscilava. Eu teria hesitado em lançar até um bote salva-vidas a não ser que fosse absolutamente necessário; mas agora aqui estávamos nós, prestes a arriar mais de 50 dóris e a largá-los naquele mar. Mesmo ao cabo de 30 anos passados em navios, aquela era para mim uma experiência de navegação completamente diferente. Até agora, o mar tinha

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sido sempre uma forma de suportar o navio e (...) de movimentar cargas de um ponto do globo ao outro. Se não estivéssemos no porto, permanecíamos no navio.” Mais à frente: “E agora, aqui estava um navio que alegremente lançara ferro nos bancos, no meio do mar aberto, a milhas de qualquer terra e de qualquer abrigo (eu, na minha experiência, nunca ancorara num local onde não fosse pelo menos parcialmente resguardado) e se ocupava então a lançar a tripulação em botes pequenos e frágeis, sem levarem sequer um colete salvavidas consigo.” Como era então um dia de trabalho num bacalhoeiro? O relato que Aníbal Paião faz de olhos fechados sobre aqueles tempos não é muito diferente do que se encontra no livro de Villiers. “Normalmente, a tripulação levantava-se às quatro horas da manhã, para dar os louvados, que era encomendar a tripulação ao Senhor Deus para que tudo corresse bem durante o dia da pesca. Depois de uma refeição, a primeira grande tarefa era pôr os dóris na água”, conta Paião, que além de sobrinho-neto, é ainda filho, neto e bisneto de capitães de navios do bacalhau (o seu pai foi piloto e imediato no Argus, já depois da viagem de Villiers, quando ainda Adolfo Simões Paião Júnior era o capitão, e mais tarde comandou este navio). Uma vez afastados do navio, os homens largavam ao mar o trole, uma linha enorme com centenas de anzóis e tendo como isco lulas congeladas ou umas aves marinhas chamadas pombaletes. “E enquanto aguardavam por alar o trole, iam utilizando a linha de mão para apanhar algum bacalhau que estivesse por ali. Depois de alarem as linhas e recolherem o bacalhau, se o dóri estivesse completo regressavam ao navio. Tinham de garfar o peixe, usando um garfo especial, para bordo do navio.” A meio do convés do navio, montava-se então uma fábrica para processar o pescado: “Para tirar a cabeça ao bacalhau, que ainda usamos — a famosa cara do bacalhau e a língua. Depois, tinham de se tirar as vísceras e escalar, que é abri-lo na configuração seco que vemos por aí, e tirar-lhe a espinha até ao umbigo.” No bacalhau, tudo se aproveita, pelo que, por exemplo, o samo, que é a bexiga-natatória, também se salgava para fazer feijoadas e petiscos. Lavado o bacalhau, ele ia para o porão, onde lhe atiravam com colheres de sal para cima e o iam empilhando. “Um navio de pesca nunca está cheio”, dizia o capitão Adolfo, na descrição de Villiers, “é sempre possível encontrar espaço para mais um bacalhau”. “Outro aspecto de grande dureza é que a tripulação tinha de trabalhar até ter o peixe processado”, relata Aníbal Paião. “Enquanto houvesse peixe não havia cama para ninguém. O peixe estava em primeiro lugar. Claro que, quando havia muito peixe, havia muita alegria, porque toda a gente estava a ganhar dinheiro e a encurtar o tempo de viagem. Mais depressa recebiam a sua soldada.”Tomavam depois uma refeição e iam descansar — e tudo recomeçava às quatro da manhã. “Quando estava mau tempo, faziam reparações, isto quando podiam estar no convés. Os navios eram desabrigados, tinham uma borda baixa, mais ainda quando estavam carregados, e o mar galgava com frequência.” Mas para Álvaro Garrido, a narrativa de Villiers tem de ser lida também à luz da situação política do país, sob a ditadura de Salazar, e nada da sua divulgação foi deixado ao acaso: “A face cruel do trabalho dos pescadores do Argus apenas lhe mereceu referências marginais. À denúncia realista do quotidiano dos pescadores-marinheiros portugueses, o autor australiano preferiu o fresco literário, harmónico e belo”, diz na introdução do livro o historiador. “O livro de Villiers reunia boas condições para se converter num óptimo elemento de propaganda do programa político de reanimação das pescas e do ‘reencontro de Portugal como mar’”, refere Álvaro Garrido, acrescentando que “a exaltação da campanha do bacalhau por um importante escritor estrangeiro seria [utilizada como] a prova de que o desígnio do ‘regresso de Portugal ao mar’ se vinha cumprindo”.

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Nessa altura, os bacalhoeiros portugueses já eram conhecidos como a White Fleet, ou Frota Branca, imortalizada entre 1943 e 1945, na II Guerra Mundial, e que o livro de Villiers ajudou a perpetuar. A ordem para pintar os navios de branco partiu do Estado-Maior Naval para facilitar a navegação em comboio e em segurança dos bacalhoeiros. “Até aí, os armadores pintavam o navio a seu gosto. O Santa Maria Manuela era cinzento, o Creoula e o Argus tinham a cor de sangue de boi”, conta Aníbal Paião. “Portugal não entrou na guerra e, fruto de uma política de neutralidade, conseguiu manter sua frota bacalhoeira em funcionamento. Mas para que os navios não fossem abatidos pelos submarinos alemães no Atlântico, passaram a ter os cascos pintados de branco, com a bandeira portuguesa pintada e letras garrafais a dizer ‘Portugal’.” Antes disso, houve navios que foram afundados, como o Maria da Glória, em 1942, como também narrou Villiers. Morreram 36 homens, apenas seis sobreviveram. “Um enorme submarino alemão, que tinha estado a disparar da superfície da água, aproximou-se para dar o golpe de misericórdia no Maria da Glória.” Expoente máximo da Frota Branca, o Argus foi construído na Holanda em 1938 e, no ano seguinte, já participava na campanha do bacalhau. Com quatro mastros e casco de aço, pertencia, tal como o Gazela I e o Creoula, à empresa Parceria Geral de Pescarias. Até 1970, manteve-se como bacalhoeiro, altura em que se reformou, já obsoleto. Mas em 1974 iniciava uma nova vida, com a venda a uma empresa canadiana e, depois, uma norteamericana, a Windjammer, com sede em Miami. “Essa empresa era de um comandante de submarinos, Tim Burke: comprava navios antigos em mau estado e transformava-os, para montar operações comerciais nas Caraíbas”, conta Aníbal Paião. “O comandante Tim Burke transformou o Argus com a configuração que vemos hoje: um navio de passageiros para 125 pessoas. Não gostamos dele com aquele convés, aquele acrescento, aquele pavimento que foi criado, mas isso permitiu que se salvasse. Esteve a cumprir uma actividade económica.” Na nova vida que encarnou, o Argus passou a chamar-se Polynesia II, em homenagem a uma embarcação que Tim Burke tinha perdido. Desde o final da década de 1970, o navio trabalhou nas Caraíbas cerca de 30 anos, praticamente tantos quanto tinha sido um navio de pesca do bacalhau. “Toda a gente gostava dele, tinha inclusivamente uma alcunha. Era o Poly.” Claro que a edição inglesa do livro de Villiers que recordava a vida anterior do navio, The Quest of the Schooner Argus, fazia parte da sua biblioteca como cruzeiro turístico. “Toda a gente sabia que era um navio histórico português da pesca do bacalhau.” Portanto, o Argus já teve duas vidas? “Teve duas vidas, a caminho da terceira, assim esperamos”, responde Aníbal Paião. É que as voltas do Argus-Polynesia II voltaram a ficar trocadas em 2006, quando Tim Burke morreu. “Os seis filhos do comandante Burke não se entenderam quanto à gestão da empresa e este navio acabou por ser abandonado em Aruba, nas Antilhas Holandesas. “Nós, que gostamos de navios, sabíamos que tinha sido abandonado lá.” Havia dívidas acumuladas que era preciso pagar, como o estacionamento na marina, pelo que foi apreendido. “Ficou à ordem do tribunal e o juiz seguiu os trâmites normais: marcou um leilão e, com o produto da venda, pagava-se aos credores.” Foi a leilão uma vez, mas não apareceu ninguém interessado nele. Foi a leilão segunda vez, e nada. Estava muito velho, a precisar de grandes reparações. “O juiz marcou um terceiro leilão e fez saber o seguinte: ou aparece alguém para comprar o navio ou o tribunal se encarregará de o vender para ser desmantelado e pagar aos credores.” Foi então que a história familiar de Aníbal Paião, de Ílhavo, “capital do bacalhau”, entrelaçada com a do Argus, voltou a cruzar-se de perto com a do navio. “Para mim, que tenho toda a família ligada a este navio, era uma dor de alma. Nessa altura, o coração começou a bater mais

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forte. Na Pascoal, eu com o meu sócio, fomos falando: será possível que Portugal deixe perder o que de melhor tem o património marítimo português, um navio conhecido em todo o mundo, com uma história fantástica?” Em 15 dias, montaram uma operação para o resgatar. “Tínhamos de saber em que condições estava, que dívidas tinha...” Em Aruba, os leilões são decrescentes: “Fazem muito mal ao coração. Há um ‘tecto’ e depois vai-se andando para baixo. Se alguém levanta a mão, já não há hipótese, o leilão acaba.” Partindo de 110 mil dólares, ao segundo valor pedido, de 90 mil dólares, os portugueses levantaram o braço e assim, no início de 2009, o Argus passou a ser de novo português, para se juntar a outro bacalhoeiro que entretanto tinha recuperado pela Pascoal, o Santa Maria Manuela, irmão gémeo do Creoula, ambos construídos nos estaleiros da CUF em Lisboa em 1937. “A contratação de um reboque para o trazer das Caraíbas é que tornou dispendiosa esta operação. Neste momento, as despesas associadas ao navio são de 750 mil euros.” Os sinais da velhice são evidentes logo no casco, ou não estivesse a sua brancura manchada pela ferrugem. E, agora, que vida o espera? “Será recuperado para voltar a navegar e esse é o nosso sonho. Mas precisamos de avaliar o estado do casco do navio e ver se apresenta debilidades sérias que tornem a recuperação inconcebível do ponto de vista financeiro”, diz Aníbal Paião, que mantém um blogue sobre ele em http://polynesia2.blogspot.pt. “Ou, se isso não for possível, admitimos fazer uma recuperação ligeira e mantê-lo acostado num cais, fazendo um núcleo museológico que conte a história da pesca do bacalhau e do navio e dê algum apoio em termos de hotelaria e restauração.” Se o Argus for recuperado para navegar, a ideia é utilizá-lo no mesmo esquema do Santa Maria Manuela. Também ele, que fez a sua última campanha ao bacalhau em 1992, iria para a sucata e ser demolido. Mas apareceram várias entidades, que criaram uma fundação para preservar o casco, recuperar o navio e associar-lhe um projecto de exploração económica. Essa fundação não conseguiu reunir os fundos necessários e a Pascoal acabou por comprar o Santa Maria Manuela em 2007. Após uma recuperação de cerca de oito milhões de euros (a do Argus não custará menos), navega desde 2010 como “um prestador de serviços na área do turismo”, diz Aníbal Paião. Vende viagens, que podem ter questões culturais e científicas como tema.Da mítica Frota Branca Portuguesa, sobreviveram até hoje, além do Argus e do Santa Maria Manuela, o Creoula e o Gazela, também à vela e personagens, ainda que secundárias, no livro de Villiers. O Creoula, que andou no bacalhau até 1973, foi comprado pelo Estado no final dessa década e, desde 1987, é operado pela Marinha portuguesa como navio de treino de mar, permitindo a milhares de pessoas contactarem com a vida no mar. Já o Gazela I encontra-se em Filadélfia, nos Estados Unidos, onde também trabalha como navio de treino de mar, operado em voluntariado por uma fundação. Agora a frota portuguesa de pesca longínqua ao bacalhau faz-se com 13 arrastões, dois dos quais da Pascoal. Como é que um país se mantém cinco séculos a comer um peixe, que nem tem nas suas costas e que o pesca desde que no início do século XVI os irmãos Corte Real chegaram à Terra Nova, ou à Terra dos Bacalhaus, como lhe chamaram? A resposta imediata é a procura de proteína animal, que pode conservar-se salgada e seca, num país historicamente pobre. Esta longa relação de um povo com um peixe pode vislumbrar-se na história de um navio. O Argus ajuda ainda a contar a história de uma guerra, do país, do seu regime político, de milhares de pescadores. E também da família Paião.

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XIII

O futuro do sol e mar é ser mais do que praia 08.10.2012, Por Joana Gorjão Henriques

Ao sol e praia é preciso juntar mais-valias como o golfe e a natureza (Enric Vives-Rubio)

Entre o microturismo ou o turismo de luxo, em que é que Portugal deveria apostar no futuro? Numa coisa especialistas concordam: só sol e mar já não chega como produto isolado. No ano passado, estiveram mais de 7,4 milhões de turistas estrangeiros em Portugal. Quem nos visita vem sobretudo do Reino Unido, Espanha, Alemanha, Holanda, França, Brasil, e vem sobretudo fazer praia. O turismo, um dos sectores em maior crescimento económico, de acordo com a Organização Mundial do Turismo, representa 9,6% das exportações e 42% das exportações de serviços (dados do Banco de Portugal). Tem sido sugerido, por isso, como uma das prioridades da economia portuguesa, com o sol e mar à cabeça e o Algarve como zona de eleição. Há quem o veja como um dos nossos "activos" mais valiosos. Mas como será o futuro do nosso sol e mar - ou em que é que se deveria investir? Entre mudar a estratégia para um turismo de alto nível ou desenvolver uma lógica de microturismo, as ideias passam por opções opostas. Numa coisa há unanimidade: já não chega como produto isolado, há que cruzá-lo com outras ofertas para captar mais turistas ou turistas que deixem mais dinheiro. O turismo é um dos sectores que mais têm contribuído para o aumento das exportações, vistas como motor da recuperação económica. Nos primeiros sete meses do ano, as receitas de turismo estrangeiro ascenderam a 4500 milhões de euros, mais 6% do que no período homólogo. Têm sido os estrangeiros a assegurar o turismo, já que os turistas nacionais têm descido. Ainda este ano, dados do INE até Julho mostram um aumento de 3,9% das dormidas estrangeiras e uma descida de 7,4% das nacionais. Porém, em Agosto, foram os portugueses que mais ocuparam as camas algarvias, de acordo com dados da Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos da região. Mesmo assim, a taxa de ocupação média de quartos esteve em 89,7%, apenas 0,9%

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menos que em Agosto de 2011, e muito diferente da média global do ano, que se situa nos 50%, segundo o presidente do Turismo de Portugal (TP), Frederico Costa. Entidades governamentais como o TP ou como o Instituto de Planeamento e Desenvolvimento do Turismo (IPDT) falam, porém, da necessidade de reinvenção. Frederico Costa descreve o sol e mar português como um destino reconhecido internacionalmente, que tem de ser enriquecido com o cruzamento de "produtos" como a natureza, o turismo de negócios ou o golfe - responsável por entre 1200 a 1500 milhões de euros de receitas, revela, essencial para corrigir a sazonalidade em zonas como o Algarve. Jorge Costa, presidente do IPDT, defende um reposicionamento de forma a ir "ao encontro de nichos com poder aquisitivo superior". Grupos hoteleiros como o Pestana, com 19 hotéis sol e mar em Portugal, têm visto o esquema de tudo incluído (em apenas três hotéis da cadeia em Portugal) como um dos que têm maiores níveis de satisfação dos clientes, segundo Luigi Valle, administrador. Crescer não significa construir mais. Aliás, houve um aumento da oferta não acompanhada pela procura, lembra Frederico Costa. Que fazer de exemplos como a construção desenfreada na zona do Algarve? A solução não tem que passar por deitar abaixo edifícios, mas apostar na requalificação, defende. "Todos os investimentos têm que ser feitos de forma muito cuidada. Mas certamente que o TP está atento a novos investimentos desde que sejam altamente diferenciadores e qualificadores para o desenvolvimento de uma região." Outra prioridade é a aposta em novos mercados, como Brasil, Rússia, Estados Unidos e Polónia, defende. Jorge Costa contextualiza: "Desde os anos 1960 que apostamos neste produto e nunca tivemos uma concorrência tão forte e poderosa - há o exemplo da Turquia, que, nos últimos dez anos, duplicou o número de turistas. A liberalização do transporte na Europa abriu alternativas a custos muito mais baixos para quem tinha fidelização ao Algarve." Tendo em conta o envelhecimento da população europeia, outra aposta deveria ser no turismo active senior, com os olhos postos numa "repetição da visita e um gasto superior em cada uma das pessoas". "Isto implica uma variedade de oferta..." O desejo de Carlos Coelho, especialista em marcas que tem trabalhado sobre a imagem de Portugal, era que houvesse um desinvestimento em projectos de turismo de massas e um investimento em projectos pequenos que permitem desenvolver as economias locais. Sugere um turismo direccionado para especificidades portuguesas "pequeninas que valem uma fortuna", "coisas raras" que não acreditamos que o sejam, como o peixe, os cavalos, as horas de sol, o tamanho do mar. "O sol e mar é uma das nossas maiores riquezas. A aposta deveria ser em permitir que a pequena iniciativa surja e coloque Portugal no mundo como um destino genuíno, onde se come o melhor peixe e se consegue passar uns dias óptimos num sítio pequenino. Devemos pegar naquilo que temos de genuíno, encontrar uma oferta diferenciada e permitir a pequena escala." Para o publicitário, a nossa diversidade na geografia e no património, que permite percorrer dois mil anos de História em duas horas, faz de Portugal "um país de pequena escala que tem que ser vendida a preço elevado". "Temos que apostar quase num microturismo."

Esta série tem o apoio da Caixa Geral de Depósitos. Vai continuar em vídeo no novo site do PÚBLICO, que será lançado em Outubro.

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