Olharce, a revista de dança do Ceará

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ISSN 1984-2384 Ano 2 . Número 2 . 2011

A revista de dança do Ceará

Dança Corpo Performance

VENDA PROIBIDA

Ideias e situações a mover os sentidos da dança no tempo

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ISSN 1984-2384 Publicação da Bienal Internacional de Dança do Ceará bienaldedanca.com | bienal@bienaldedanca.com Fortaleza/Ceará – Brasil OlharCE, a revista de dança do Ceará olharce.com | revista@olharce.com Direção geral David Linhares Conselho editorial Airton Tomazzoni, Marcos Moraes, Silvia Soter e Thereza Rocha Direção editorial e Edição Thaís Gonçalves Co-edição Mônica Lucas Redação Angélica Feitosa, Lucinthya Gomes, Mônica Lucas, Regina Paz e Thaís Gonçalves Estagiária de jornalismo Victória Costa Colaboradores desta edição Angela Souza, Aspásia Mariana, Dada Petrole, Fábio Brazil, Flavia Meireles, Inácio Arruda, Isabel Marques, Joubert Arrais, Marcos Moraes e Vanilton Lakka Jornalista responsável Thaís Gonçalves (JP 01223-CE) Direção de arte e Versão eletrônica Linhares Junior Fotografia Alex Hermes, André Lima e Camila Lima Revisão João Paulo Lima Agradecimentos Gentil Rodrigues da Silva, Cunningham Dance Foundation, Festival de Dança de Joinville, Festival de Dança Litoral Oeste, ProDança, Sesc-SP e Teatro Alfa Fotos da capa Divulgação (acervo ProDança) e Alex Hermes Os textos assinados são de total responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião desta revista. É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos desta publicação, por qualquer meio, sem autorização.

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apresentam

A revista de danรงa do Cearรก

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Os modos de fazer e pensar arte entre os séculos 20 e 21 são modificados radicalmente a partir de experimentações em torno da dança e da performance, movendo corpos e ideias

06 Editorial OlharCE e perceber-se em relação a corpos, ideias e situações a mover os sentidos da dança no tempo. Impermanências, indeterminações, aproximações entre linguagens, invenção de novas estéticas. O século 20, sobretudo em sua segunda metade, parece ter catalisado uma série de desdobramentos que modificariam o modo de dançar. Dança expressionista, dança pós-moderna americana, dança-teatro, butô, dança e performance, dança e tecnologia, dança e Le parkour, composição em tempo real. Danças conectadas com as questões de seu tempo a desafiar a criação, o pensamento e a formação artística. Quase três anos distanciam a primeira e a segunda edição desta revista. Um tempo no qual a OlharCE retorna a si e se percebe instigada a pensar ‘o que queremos mover com o nosso mover’? Entrevistas, seção de fotos, artigos, poemas são nossas estratégias de existência e criação. Modos de lidar com a economia dos corpos que se encontram, se afetam, compõem singularidades e reverberam suas ações no mundo em conferências dançadas; em iniciativas institucionais, como a criação de cursos, da formação básica à graduação em Dança; com artistas e grupos independentes, que criam condições de seguir dançando através dos coletivos; e dançarinos que arriscam remontar trabalhos para colocar em questão procedimentos artísticos de diferentes contextos históricos. São linhas do tempo a desenhar esta composição editorial com discussões em torno do que constitui as noções de corpo, dança, arte, performance, ensino e colaboração. Uma revista com aroma de café, com as pulsações das ruas, com as indagações que atravessam gerações, com um olhar em direção a amplitude do oceano. Assim, constituímos este lugar de permanência e de passagem a mover nossos olhares e a dar os contornos de nossos corpos em multiplicidade. Thaís Gonçalves

O Ceará ganha uma graduação em dança, acompanhando o momento de ampliação das universidades públicas brasileiras. Novos desafios são lançados ao ensino e à pesquisa em arte

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O uso de tecnologias intensifica as possibilidades de criação em dança. No Ceará o software Corisco foi elaborado especialmente para o espetáculo Kairós

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Os artistas da dança e de outras linguagens têm se reunido em coletivos. Uma estratégia de mobilização para tornar possível a criação artística

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Índice

58 Cidade, dança e formação por Vanilton Lakka

06 Sentidos da dança no tempo 60 Poesia em movimento 14 Poética e política de fluidos

Seção de poemas por Fábio Brazil

Em entrevista, Eleonora Fabião trata das relações entre dança e performance

64 @rroubos Corpografias na net

20 Luto e memória A dança depois de Pina Bausch, Merce Cunningham e

66 Mediações tecnológicas em dança

Kazuo Ohno

70 Contemporaneidades no nordeste 26 Café com Pina

por Joubert Arrais

Uma conferência dançada

72 20 anos de Lia Rodrigues Cia. de Danças 27 Pina Bausch no Cariri Visita da coreógrafa ao Ceará

74 Coletivos como condição de existência

28 Tanztheater Wuppertal

78 Economia da arte

Seção de fotos por Dada Petrole

por Marcos Moraes

34 Remontagens

82 Dança que transborda o Ceará

Tempos que se cruzam em dança

Movimentos artísticos do Trairi e de Juazeiro do Norte

36 Dança, tropicalismo e histórias

86 Dançar no Ceará, Maranhão e Piauí

por Flavia Meireles

por Angela Souza

40 Composição em tempo real

90 Conexões artísticas em Cabo Verde

Em entrevista, João Fiadeiro discorre sobre seu modo de compor

94 Cultura como política nacional por Inácio Arruda

44 Graduação em dança no Ceará 96 Acervo Mariposa no portal da Bienal 48 Trajetórias de formação em dança 54 Relações entre arte, ensino e mundo por Isabel Marques

56 Le parkour: movimentos urbanos 5

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O que antecede a morte, de Marcos Klann (SC), apresentado no Sesc Senac Iracema, em Fortaleza Foto: Cristiano Prim

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Tomar lugar: dança, corpo e performance Por Mônica Lucas e Thaís Gonçalves

Lugar, dança, corpo, performance. Noções que, ao longo do século 20, passaram por intensas modificações e desestabilizações. Enquanto a modernidade imprimia um outro ritmo à vida e borrava fronteiras entre linguagens, os artistas aproximaram-se do cotidiano para experimentá-lo, lançando novas e inusitadas poéticas e estéticas que saíram do espaço consagrado do palco italiano para ocupar ruas, praças, museus. Século 21, 2ª edição do Encontro Terceira Margem da Bienal Internacional de Dança do Ceará/De Par Em Par 2010: um lugar acionado. Uma ação localizada: corpos, ideias e situações a mover os sentidos da dança no tempo

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Lugar. Um conceito, diversas compreensões, em diferentes tempos e campos de saberes. Na segunda metade do século 20, lugar deixa de limitar-se ao sentido geográfico de localização para ser percebido por um atravessamento de camadas emocionais, históricas, sociais, culturais, políticas... Compartilhando essa ideia de lugar como a constituição de espaços de subjetivações e produzido a partir de uma ação, o Encontro Terceira Margem levou adiante, na sua 2ª edição, o tema Tomar Lugar: Corpo e Performance, como parte da programação da Bienal Internacional de Dança do Ceará/De Par Em Par 2010. Nessa tomada de um lugar, a dança é ativada em relação a outras linguagens e desafiada pelos diferentes lugares que começa a constituir como possibilidades cênicas. Uma discussão feita de forma exaustiva e que está presente nos procedimentos e colaborações artísticos da geração de artistas pós-modernos americanos, em meados dos anos 60 e 70. Entre eles, a coreógrafa Trisha Brown, que trouxe à Praça do Ferreira, em Fortaleza, em 2010, seus Early Works (primeiros trabalhos), concebidos para espaços alternativos e que desafiam a gravidade. As peças foram apresentadas, ainda, no gramado na Praça Verde e no Museu de Arte Contemporânea (MAC), ambos no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, bem como no Theatro José de Alencar, onde o público acompanhou L’Amour au Théâtre, You Can See Us e Foray Forêt. Fundada em 1970, a companhia desafiou a arte, a dança e o corpo ao propor peças em que os bailarinos ficavam suspensos por cabos e caminhavam em paredes e colunas de edifícios, árvores e telhados de Nova Iorque, inaugurando possibilidades de novos modos e ângulos em dança. O palco já não era mais o único espaço da arte. Trisha Brown chamou a atenção do público e de seus pares quando fazia parte do célebre Judson Dance Theater. Junto a artistas com ideias semelhantes, como Yvonne Rainer, Steve Paxton e Simoni Forti, ampliou os limites do que estava convencionado como o movimento adequado à coreografia. Os espaços urbanos com os quais Trisha Brown dialoga são tão explorados quanto os gestos do cotidiano, em repetições virtuosas do comum. Quarenta anos depois, de que maneira esse modo de dançar segue instigando a criação artística? “Trisha desenquadra nossas percepções tatuando o mundo com instabilidade”, analisa a coreógrafa e pesquisadora Adriana Banana, que fez aulas com a companhia da artista por um ano, em 2001. Segundo ela, esta instabilidade nos movimentos é um princípio inerente à vida. Para a pesquisadora, Trisha Brown parece ter detonado, tanto nas configurações cênicas quanto nas configurações corporais, o entendimento dominante de se pensar espaço como algo dado, pronto, fixo, imóvel, categoria apriorística, uma caixa com coordenadas cartesianas e pré-fixadas em um espaço idealmente newtoniano. “Ela simplesmente desenquadra esse modo de entender espaço que vem dominando diversas áreas do conhecimento e das artes, não apenas da dança, um pensamento consagrado e tecnificado durante o Renascimento”, observa Adriana Banana.

De modo geral, as artes passavam por um borramento entre as áreas, com justaposição de linguagens, aproximação do cotidiano e espírito colaborativo. Dançarinos participavam de performances e músicos de espetáculos de dança, entre tantos outros exemplos. Não raro artistas de outras áreas, fora do domínio da dança, contribuíram fortemente para enriquecer a dança e seu pensamento. “Há uma revisão da predominância do visual em detrimento do tátil, olfativo, cinético, proprioceptivo, ou seja, das outras modalidades sensoriais que evidenciam o papel do corpo como participante ativo na construção de sentidos nas artes”, analisa Adriana Banana.

Corpo: construção de sentido nas artes Segundo ela, levar a dança para a rua é tirar o espectador da cadeira fixa que aponta o olhar para uma moldura fixa, a do teatro de proscênio. Neste sentido, uma obra de arte que muda a perspectiva do olhar, muda a perspectiva do público, o qual pode, inclusive, caminhar e estar inserido na obra. Uma mudança de procedimentos que atravessa o tempo e pode ser percebido no trabalho Aquilo de que somos feitos, da coreógrafa Lia Rodrigues, no qual a todo instante a plateia é convidada a se deslocar no espaço para apreciar os diferentes ângulos de dança propostos pela artista. São reverberações das experimentações em torno do corpo, produzidas pelos artistas vinculados ao Judson Dance Theater. Período ainda do Leaving Theater, companhia de teatro experimental off-Broadway, de Julian Beck e Judith Malina, que considerava a criação teatral como momento coletivo de expressão da comunidade. O Fluxus, caracterizado pelas mesclas de diversas manifestações artísticas (em especial as artes visuais, mas também a música e a literatura), rompia as barreiras entre arte e não-arte, dirigindo a criação artística ao mundo, seja à natureza, à realidade urbana e ao mundo mediado pela tecnologia. A Pop Art transformava em tema de suas obras os símbolos e produtos da propaganda e da cultura popular, de poderosa influência na vida cotidiana na segunda metade do século 20.

Experimentações Essas fricções entre linguagens, a aproximação da dança de um caráter mais performático e a possibilidade de dançar em situações e espaços diversos foi uma das linhas curatoriais para compor a programação do 2ª Encontro Terceira Margem. Preferindo chamar suas criações de “poesias visuais”, Carolyn Carlson, nascida na Califórnia e com carreira estabelecida na França, considera-se uma artista nômade, portanto, uma mulher de muitos lugares. Inspirando-se em pinturas, poemas e sonhos, trabalha com a ideia do espaço, da forma e do movimento, especialmente percebidos em Mandala. Nesta peça apresentada na abertura da Bienal, a bailarina e o cenário confundem os nossos sentidos, quando repentinamente partes de roupa e da cena são retirados do palco, num curioso efeito cenográfico. Uma brincadeira entre dança e artes visuais segue percurso em Desenho, dos mineiros Margô Assis e Eugênio Paccelli

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Early Works Figure 8, peça da Trisha Brown Dance Company, apresentada em Fortaleza, em turnê comemorativa aos 40 anos da companhia Foto: Alfredo Anceschi

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Sem nome, todos os usos, de Flavia Meireles (RJ), apresentado no Sesc Senac Iracema, em Fortaleza Foto: Camila Lima

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Horta. Ela bailarina, ele artista plástico, travam um diálogo que nos conduz a uma plasticidade cênica e de movimento pelo uso inusitado de papéis que ora são recortados, ora tornam-se figurinos a moldar e a provocar os nossos sentidos. Seguindo esse fluxo de montar, desmontar e reconfigurar imagens, a carioca Flavia Meireles fabula e articula sentidos em Sem nome, todos os usos a partir dos modos como se utiliza de bolas de gás, em narrativas que se desmancham no ar, abrindo contornos para outras tantas derivas.

colocou uma placa em seu tornozelo com o dizer Não alimente os animais, título da obra que questiona o tratamento dado ao corpo travesti e/ou transexual. Um limiar que perpassa também a obra Pelo a menos no País das Maravilhas. Já com Eu tenho autorização da polícia para ficar pelado aqui, a tensão artista-público evidencia-se, uma vez que algumas ações só são acionadas pela intervenção de quem se dispõe a colocar um trocado no prato à frente do artista, que aguarda o momento de dançar sentado em uma praça da cidade.

Atravessados pelos recursos tecnológicos, em alta ou baixa qualidade, alguns trabalhos deram mostras da diversidade de configurações cênicas possíveis no uso da dança com mediação tecnológica, como prefere dizer Ivani Santana. Professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), ela conduziu, com o Grupo de Pesquisa Poéticas Tecnológicas, um diálogo com a cidade em Res: você Duchamp seu texto e eu, no qual imagens urbanas de Fortaleza eram projetadas nos prédios e nas bailarinas enquanto elas dançavam entre escadarias, bancos, fachadas e com a estátua da escritora Rachel de Queiroz, na Praça dos Leões.

Também sentada e pronta para conversar sobre qualquer assunto, a performer carioca Eleonora Fabião desmancha comportamentos, desnaturaliza corpos e conceitos ao colocar duas cadeiras em praças da cidade, onde fica frente a frente com quem estiver disposto ao diálogo, independente do tema, em sua performance Ações fortalezenses. Um exercício de perceber o outro. E que tal passar pelos outros que nos atravessam? Em O Outro do Outro, o pernambucano João Costa Lima, faz dançar a multiplicidade que nos constitui. “Aqui viramos outros, uma e outra vez”, diz o artista.

Já a paranaense Michelle Moura preferiu, em Cavalo, o aparato tecnológico para produzir um estranhamento sonoro, amplificando sua respiração, e sobrepondo imagens, criando um espaço de alucinações e ambiguidades, na Sala Nadir Papi Sabóia, do Theatro José de Alencar. A paulista Maura Baiocchi justapôs projeções, dança, teatro e canto em Dan – devir ancestral. Telas projetavam, na entrada do Teatro Dragão do Mar, imagens do cerrado brasileiro, que se seguiram em outras telas dispostas no palco. Cinema e dança se encontram pelo diálogo entre Felipe Ribeiro e Denise Stutz, em Justo uma imagem – cartas e processo, numa junção de imagem, movimento e discurso. Preferindo a baixa tecnologia, o piauiense Elielson Pacheco, do Núcleo do Dirceu, questionou o lugar da arte com o projeto Today-Tomorrow-Always ou T.T.A.. Seja o lugar como recurso tecnológico em sua visibilidade, seja o lugar como o espaço onde a arte acontece. Uma série de “web-vídeos-diáriosdanças”, nos quais filma a si mesmo dançando no quintal de sua casa; uma amiga limpando a casa para espantar o baixo astral, editando as imagens com música de dor-de-cotovelo típica dos rádios de grande difusão; a si mesmo em lugares históricos de Teresina, nos quais se mantém beijando o próprio punho, numa brincadeira de treinar o beijo a dois; a si mesmo com o pai, com quem não costuma conversar, mas que transforma um simples descanso na cama em um diálogo de corpos e um dos temas de seu T.T.A.. Seguindo esse estranhamento entre dança, performance e corpo, a carioca Micheline Torres manipula as formas, significados e funções de seu corpo nu em Carne, a partir de fitas de borracha que deformam e conformam seu corpo em movimento contínuo. O paranaense Ricardo Marinelli, vestido com uma sunga, meia arrastão e salto bico fino vermelho,

À deriva pelas ruas do Centro, o artista visual cearense Solon Ribeiro propôs uma questão: o que te faz uma obra de arte?; enquanto isso, os performers cearenses do Coletivo CurtoCircuito andavam pela cidade com cartões de crédito na boca; já os cariocas Gustavo Ciríaco e Fernanda Eugênio fizeram uma caminhada coletiva em silêncio com pessoas circundadas por uma fita em Aqui enquanto caminhamos; e o Projeto Balbucio 487 A contou com performers cearenses vestidos de terno engraxando sapatos, limpando vidros de carro e pagando por isso. Forma e função deslocados de seu hábitos culturais. Pesquisando os limites do corpo, sejam eles físicos ou culturais. Nesse limiar, o performer suíço Yann Marussich expôs seu corpo nu e imóvel, no Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar, ora pregado a uma moldura, em Ex-Pression, ora preso a uma cabine de vidro, onde seu suor era azul. No mesmo espaço, Marcelo Evelin demolicion inc + Núcleo do Dirceu propôs, em Mono, três deslocamentos de percepções: uma cena na qual estava nu, cercado de bonecas nuas, outra em que um corpo deitado e movediço ficava misturado a uma gosma branca e mal cheirosa, e uma terceira com um performer predominantemente de cabeça para baixo. Limites levados, ainda, à exaustão em O que antecede a morte, de Marcos Klann, no qual o bailarino se relaciona com uma sequência de armadilhas: ficar preso pelos pés até o sangue se concentrar na cabeça, pisar em ratoeiras, estourar bombinhas na boca, dar choques em si mesmo. Uma multiplicidade a compor a dança e a desafiá-la no tempo, no espaço, no lugar e nas ações acionadas. Afinal, “um pensamento artístico não é um amontoado de boas ideias, não é um tanto de espetáculos. É um coleção de aprendizados, questões, sempre em modificação, sempre dinâmicas, sempre se desdobrando ao longo do tempo, podendo ou não se tornarem pensamento”, analisa Adriana Banana.

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Que corpo, qual dança? O experimentalismo e a mudança na noção de corpo atravessam a dança pós-moderna e a performance, numa tentativa de abolir as hierarquias entre corpos que podem e que não podem dançar e de movimentos que devem ou não ser considerados dança. A primazia da musculatura bem torneada e gestos formais extremamente calculados passam a dividir a cena com um corpo que experimenta suas singularidades e se relaciona com outros corpos e com o mundo. São processos que propõem jogos perceptivos diferentes, inclusive através de próteses como extensões do corpo, a exemplo de Carne dos Vencidos no Verbo dos Anjos, de Alejandro Ahmed, obra que se constitui pela brutalidade e deformidades do corpo. Este corpo que trabalha no limiar entre dança e performance é capaz de transformar relações já conhecidas, subvertendo sintaxes consideradas lógicas e naturais. Entre os pesquisadores de dança avança a ideia de que não se pode mais tratar de dualismos entre mente e corpo, em que a percepção seria passiva e a ação ativa. Corpo não é um recipiente apartado do mundo, não é somente um meio por onde as informações passam, mas sim lugar de cruzamentos que o reposicionam a cada informação. Para Sandra Meyer, professora do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), a estratégia de oposição dualista se mostra redutora e ineficaz nos dias que correm. O mesmo se aplicando para questões que se tornaram recorrentes: “é dança? teatro? performance?” Ela argumenta que “o que se convencionou chamar de dança revela-se inesgotável em suas possibilidades de transitar em territórios linguísticos” e cita o filósofo alemão Martin Heidegger, para quem a fronteira não é o lugar onde as coisas cessam, mas o ponto onde algo pode se fazer presente, possibilitando novas articulações. “Este corpo se modifica ao mesmo tempo em que seu ambiente. É um entendimento de corpo que não tem dentro e fora, e muito menos corpo como sujeito, mas corpo entendido como resultados de co-relações. É um jeito difícil de entender porque não dá para apontar para formas categóricas imperativas e fixas. Mas nada na vida e no Universo é verdadeiramente fixo, só mesmo a nossa percepção que tende a estabilizar todo o caos que nos embebe”, diz Adriana Banana.

Procedimentos móveis, novos sentidos A improvisação, os contatos e a livre associação se tornam procedimentos também possíveis e valorizados. Não por acaso, muitos coreógrafos sofriam (e ainda sofrem) críticas de que suas criações não seriam dança (ou não pareciam com dança). Na busca do movimento, Trisha Brown, por exemplo, explora ações triviais, mecânicas e gestos cotidianos. Já Carolyn Carlson leva adiante espetáculos de improvisação.

O cenário atual produz novos sentidos para as artes do corpo, processos que muitas vezes ocorrem por meio da colaboração. Surgem os intépretes-criadores, que partilham a criação com a direção cênica. Livre da repetição e memorização dos movimentos automatizados pelo ato, o bailarino ganha uma importância significativa, pois a obra artística em processos de colaboração em dança se transforma com e pelo bailarino que dança, autor de uma poética singular. Mudanças no papel do corpo, nas relações hierárquicas, nas concepções do espaço e do tempo poderiam ser então encaradas como uma inserção da dança no campo político? Um ato de resistência? Na atualidade, há inúmeras obras que se encontram em zonas fronteiriças. Podemos pensar no francês Jérome Bel, que subverteu os códigos de encenação teatral e rompeu com uma geração de coreógrafos, colocando em foco não os resultados, mas os processos de criação e seus procedimentos. Gala, de Boris Charmatz, trabalha com um espaço onde se compartilham instantâneos criativos com o público em solos improvisados, duos e projeções de filme. Seu programa é variável e muda de acordo com as atualizações do coreógrafo. Sandra Meyer elenca, ainda, os nomes de Xavier le Roy e Loic Touzé como artistas que se situam nessas áreas fronteiriças, mas cujos corpos possuem uma especificidade de dança. Na opinião do bailarino, coreógrafo e pesquisador Marcelo Evelin, a distinção entre linguagens ainda é importante historicamente, mas isso não quer dizer que devam permanecer separadas. “Até algum tempo deixavam-nas trancadas numa tentativa de valorizá-las, mas o criador tem que ter liberdade sem regras acadêmicas ou formais, liberdade de trânsito e transgressão”. Ele frisa que considera seu trabalho dança, mas sem a obrigação de ter música ou movimento. Já a professora e pesquisadora em dança Thereza Rocha afirma não se interessar pelas denominações, já que normalmente usa-se termos temporais para nomear enunciados estéticos. “Falamos dança pós-moderna mais para definir uma geração do que para adentrar ao que é pós-moderno, um termo complicado. Nem uso porque não elucida significativamente”. Segundo Thereza, interessa a arte como processo, convivência e experiência dos sentidos, em que a visibilidade é capaz de criar enquadramentos e potencializar a relação entre experiências, corpos e afetos. Para Sandra Meyer, num mundo de referências cada vez mais plural, a hibridação é uma espécie de destino inevitável da dança, o que traz perigos e desafios, mas seu balanço parece ser positivo. “Entre o salvaguardar de suas identidades próprias e o pisar no quintal do outro, a dança que se faz no Brasil se configura e se renova”.

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Exercício Beta - nº1, trabalho de Aspásia Mariana durante a Mostra Mova-se de 2009, da segunda turma do Curso Técnico em Dança, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura Foto: Alex Hermes

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Fricções entre dança e performance O que nos move? O que queremos mover com o nosso mover? Com estas questões, Eleonora Fabião, performer, teórica da performance, professora e coordenadora do curso de Direção Teatral da UFRJ, doutora em Estudos da Performance pela New York University, analisa, em entrevista, as noções de dança, corpo e performance, o hibridismo de gêneros e as relações entre fazeres e saberes artísticos Por Thaís Gonçalves

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Eleonora Fabião na edição de sua performance Ações Cariocas, reeditada em praças de grandes cidades no Brasil e no mundo Foto: Felipe Ribeiro

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A artista Eleonora Fabião esteve na Bienal Internacional de Dança do Ceará/De Par Em Par 2010 com o trabalho Ações Fortalezenses, uma série de 6 ações realizadas em praças da cidade ao longo de uma semana. Dentre elas a Ação Fortalezense #1 na qual sentou-se, com seu par de cadeiras, na Praça José de Alencar para “conversar sobre qualquer assunto,” ou a Ação Fortalezense #3 pela qual aproximou-se de pessoas na Praça da Lagoinha e perguntou: “quer trocar alguma coisa comigo? Eu te dou algo que eu esteja vestindo ou carregando e você recebe. Você me dá algo que você esteja vestindo ou carregando e eu recebo” — programa performativo que só se concluiu quando tudo o que a artista tinha consigo inicialmente foi trocado. Ações deram o que falar na palestra Performance: modos de pertencer e criar mundo. Como pensar a relação entre dança, corpo e performance a partir da geração de artistas pós-modernos americanos? Sou uma performer e teórica da performance especialmente interessada na indefinição de gêneros e, portanto, meu olhar sobre a dança tem este background. Na cena contemporânea me interessam os trabalhos de dançarinos, coreógrafos, dramaturgs e teóricos da dança que flexibilizam a pressão ontológica que define “dança” como “mover-se ritmicamente acompanhando uma música e, em geral, seguindo uma sequência de passos”, que discutem as operações disciplinares que formam o corpo do dançarino, que desmontam hierarquias e relações de poder tão marcantes na história da dança. Os fazedores que, como propôs Pina Bausch, atentam para “o quê move um dançarino” e não simplesmente ditam “como” mover-se. Os pensadores que, como André Lepecki, convocam à experimentação para a descolonização do corpo. Artistas que, como Yvonne Rainer e outros pós-modernos americanos, buscam democratizar a sala de ensaio e o espetáculo, mesclar forma e informalidade, aproximar dança e cotidiano (e assim desmistificar a dança e poetizar o cotidiano). Aqui lembro do Manifesto Não escrito por Rainer em 1965: “Não ao espetáculo. Não à virtuosidade. […] Não ao estilo ou à sedução do espectador”. Nesta dança, o virtuosismo formal e o corpo mais-que-perfeito cedem lugar a uma investigação humana, demasiadamente humana, baseada na tal pergunta lançada por Pina Bausch: o quê move a dança? E mais outra questão que, penso, se deriva desta: o quê queremos mover com o nosso mover? E quanto às outras artes? Esta reinvenção objetiva e subjetiva, metodológica e ontológica faz parte de um movimento amplo que atingiu não apenas a dança — a chamada “virada performativa” dos anos 60. Este revirão — que, sugiro, começa a se desenvolver a partir da experiência das Grandes Guerras Mundiais — deu origem ao gênero “performance” propriamente dito e flexibilizou as fronteiras entre todos os gêneros: entrecruzaram-se materiais e procedimentos, ruíram convenções espaço-temporais, ampliaram-se definições. Desde a virada performativa faz-se dança e teatro, mas também faz-se dança-teatro e teatro-dança; dançarino desenha, escultor faz filme, pintor performa; criamse trabalhos impossíveis de definir senão como happenings,

como acontecimentos poéticos que reúnem diversos meios e procedimentos. Caso é que muitos artistas ao longo da segunda metade do século 20, respondendo à destruição sem precedentes vivida ao longo da primeira metade, passaram a valorizar o ato, a investigar a potência do efêmero e a poética do precário, a privilegiar o corpo como meio, tema e matéria do trabalho. A esta crescente valorização do ato, correspondeu uma gradual desmaterialização do objeto de arte e um desinteresse pela obra acabada. As noções de “obra aberta”, “obra em movimento”, “work-in-progress” foram significativamente exploradas; a “morte do autor” e a valorização do espectador idem; o acaso foi introduzido como elemento composicional e o eventual, em muitos casos, sobrepôs-se ao espetacular. O espaço cênico foi paulatinamente desmascarado e apresentado como site specific, como o mundo de convenções que de fato é. O espectador gradativamente deixou de estar mergulhado na sala escura para ser engolfado pela obra-evento e tornarse elemento constitutivo do fato artístico. A performance tem enorme importância nesse movimento; os performers e seus curto-circuitos representacionais desconstruíram separações estanque entre arte e não-arte. Trocando em miúdos, a virada performativa marca a passagem de uma poética e política de sólidos para uma poética e política de fluidos, para citar a inspirada expressão do crítico carioca Ronaldo Brito. Uma virada objetiva e subjetiva, uma reinvenção de objetividades e subjetividades; um revirão que vem sendo processado por artistas, curadores, produtores, pensadores, críticos, espectadores, cidadãos desde então. Em que esse “revirão” afeta a noção de corpo? O corpo torna-se paradigmático neste contexto. Corpo: um elemento performativo por excelência porque em processo permanente (não apenas de transformação em si e no mundo, mas de geração de si e do mundo). Corpo: ato, processo, movimento, acontecimento. Assim como percebo, muitas performances e muitas danças contemporâneas dedicam-se a investigar não apenas a pergunta lançada por Bausch — o que move o corpo — mas uma questão ainda anterior: o que é corpo? Uma pergunta tão simples quanto desconcertante: o que é corpo? Será isso que nós temos? Esse que nós somos? Isso que nos torna? Semiótico, trans-semiótico, fenomenológico, para-fenomenológico, orgânico, inorgânico, virtual, visual, empírico-transcendental, paradoxal? Será o inconsciente? O próprio espírito? O presente? A memória? Será um corpo muito mais ou muito menos do que corpo? Muito antes ou muito depois do que corpo? Será marcado, inscrito, destino, nação? Caminho, desvio, armadilha? Espaço? Campo? Feixe? Fluxo? Vibração? Contração em expansão, expansão em contração? Pipa, ovo, pedaço de terra, onda, saco plástico, multidão? Um meio? Um meio entre o lado de lá e o outro lado do lá? Uma passagem? Uma rua sem saída? O que será que será? O que será que não será? Nós temos, nós somos, nós fazemos? Pois venho me perguntando sobre isso faz tempo e tenho encontrado belas respostas em escritos e atos das mais diversas procedências. Em termos de produção artística, penso que cada peça propõe uma resposta momentânea para esta questão recorrente; cada peça é um projeto poético e político de criação de corpo.

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Diga uma dessas respostas que te encanta particularmente? Na filosofia, uma das mais impressionantes formulações que encontrei foi articulada por Baruch Espinosa no século 17 e recolocada por Gilles Deleuze em Espinosa: Filosofia Prática. De acordo com a leitura de Deleuze, um corpo, por menor e menos complexo que seja, é sempre um conjunto infinito de partículas relacionando-se por paragem e movimento. Infinito: ilimitado, interminável, não-definido, sem fim. Ele propõe

que são as conjunções das diversas velocidades que definem a forma e a função de cada corpo. Ou seja, forma e função dependem dos modos como as infinitas partículas interagem e não vice-versa. Temos, portanto, que “corpo” é concebido e percebido como conjunto de velocidades. Porém, e a pergunta é fundamental, se corpo é movimento, o que move um corpo? Deleuze e Espinosa também articulam a mesma questão proposta por Pina Bausch e respondem: o que move um corpo são os afetos de que é capaz. ‘O quê’ afeta o corpo e ‘como’ afeta, e ‘o quê’ o corpo afeta e ‘como’ afeta, definem o corpo

Foto: Luis Sotelo

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em questão. Ou seja, um corpo acontece como circulação dos afetos que é capaz de gerar, gerir e girar. Uma espécie de ciranda. Importante perceber que nesta filosofia de movimento e afetação, “corpo” pode ser tudo e não apenas corpo orgânico. Como clarifica Deleuze, um corpo pode ser humano, animal, um corpo linguístico, uma coisa, um pensamento, uma música. E mais, enfatiza que um corpo é inseparável de suas relações com o mundo. Corpos são, portanto, sistemas relacionais e abertos; são agenciamentos. Um corpo se compõe, descompõe e decompõe a partir das variadas conjunções, agrupamentos e circulações que experimenta. Experiências cujos resultados não se pode prever, pois que não se sabe de antemão o que um corpo pode. Um corpo seria a própria experiência do conhecimento. E ainda, o ato de conhecer como sociabilidade. Corpo com corpo faz corpo.

considerar é que a partir dos anos 60 muitos artistas passaram a utilizar consciente e deliberadamente esta politicidade inerente como material de trabalho. Passaram a enfatizar a politicidade do corpo e a tratar em seus projetos de assuntos como raça, classe, gênero, opções sexuais, opções religiosas, nacionalidade, migração, diferença, exceção, inclusão, exclusão, colonialismo, terrorismo, comunidade, co-habitação, co-existência, economia, saúde e tantos outros temas de cunho social e político. Porém, fato é que muita coisa cabe na palavra “arte” e que estamos sempre vivendo vários tempos históricos, valores, subjetividades e economias simultaneamente. Arte pela arte, arte elitista, arte popular, arte engajada, arte política, arte politizada, arte comunitária, arte decorativa, arte a serviço do mais bestial capital, arte fascista, arte fetichista e etceteras mil acontecem aqui e agora.

A performance tem caráter político? Esta é uma de suas marcas? A performance é politizada e politizante porque cria formas de pertencimento ativo, porque propõe modos de convívio e inventa modos de conhecimento impensáveis antes da realização dos programas, porque ativa maneiras de circulação afetiva extremamente originais. A performance gera massa e energia crítica. Suspende valores estabelecidos e rearranja pontos de vista e sensibilidades para que se dê, em micro ou macro escala, uma revisão de modos de existência pessoais e coletivos. Ela se lança na urgência do mundo de maneira direta e imediata; inaugura outros regimes de atenção, de cognição, de convivência e de produção. Por isso o performer é um causador de estranhamentos, um sensibilizador, um deflagrador de encontro e diálogo, um agente politizante. Colocado de outra maneira: a performance escapa da regulamentação do bom senso, vai além do conservadorismo do senso comum. Opera suspensão e recriação de sentido ao invés de manutenção e divulgação de sentidos estabelecidos. Por isso é uma cena-não-cena paradoxal que desafia classificação. Porém, se um performer faz ou não faz arte engajada é outro problema. Alguns artistas se dizem ativistas, outros não. William Pope.L por exemplo se diz um provocador, um lembrete e não um revolucionário. Eduardo Flores, por outro lado, diz que utiliza o termo “arte contemporânea” como uma espécie de guarda chuva, um facilitador, uma estratégia para a realização de práticas políticas para transformação social. Dois artistas, duas posturas distintas. Pode-se dizer que, respectivamente, um trabalha com “o” político e outro com “a” política. A arte de um modo geral torna-se mais política a partir dos anos 60 e 70? Giorgio Agamben, e outros tantos, propõe que a arte é inerentemente política. De fato. Todo artista desde sempre, militante ou não, participa de políticas de produção e recepção (objetivas e subjetivas) para realizar seu trabalho; todo artista produz economias (materiais e imateriais) com seu fazer. Todo artista, conscientemente ou não, resiste a determinadas forças e pactua com determinadas outras, e isto define a estética do trabalho e a ética do trabalhar. Então, o que podemos

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Que aproximações podemos fazer entre dança e performance? Muitos criadores da dança estão dialogando — conscientemente ou não, direta ou indiretamente — com a arte da performance. Talvez possamos até dizer, inspirados por Josette Féral em seu estudo sobre “teatro performativo,” que haja uma “dança performativa”. Uma dança tão voltada quanto a performance para investigações psicofísicas múltiplas (peças da Meg Stuart and Damaged Goods ou do movimento Butô), para investigações em torno da materialidade da cena e do corpo (poéticas de Jérôme Bel e Xavier Le Roy), para o desmanche de representação, a desconstrução do espetáculo e para o encontro com o espectador (Maria La Ribot ou Tino Seghal), danças que estabelecem relação direta com o meio sócio-político no qual

se inserem (Lia Rodrigues Companhia de Danças por exemplo). Entretanto artistas da performance não costumam aderir a temporalidades, espacialidades ou economias de ensaio e de temporada. Esta é uma diferença radical que define a criação de corpos e de práticas muito distintas. A performance tampouco parte necessariamente de nenhum treinamento específico apesar de ambas compartilharem o interesse pelo corpo. A performance, diferentemente da dança, já nasce híbrida e sem um castelo ontológico a desconstruir e, por conseguinte, lida com as convenções e enquadramentos do mundo da arte de maneira muito distinta. Em muitos casos tratam-se de práticas irmanadas, porém, em muitos outros, é fundamental distinguir. Depende. Tudo depende. Generalização em demasia não tonifica pensamento e classificação em excesso tampouco. De fato depende. Tudo depende.

Foto: Laura Muñoz

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Estéticas que desafiam o século 21 Em menos de um ano a dança perdeu três de seus grandes mestres. Pina Bausch e Merce Cunningham morreram em 2009, com menos de um mês de diferença. Em 2010 foi Kazuo Ohno quem nos deixou. Várias interrogações se fizeram: O que será feito do trabalho deles? Como continuar a partir de suas referências? Por Mônica Lucas

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Merce Cunningham em Antic Meet, obra de 1958 Foto: Richard Rutledge (acervo Cunningham Dance Foundation)

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A distância geográfica – Kazuo Ohno no Japão, Merce Cunningham nos Estados Unidos e Pina Bausch na Alemanha – e as diferenças do ponto de vista da produção artística são pontos de aproximação entre os três artistas ao considerarmos que, cada um, em sua singularidade, contribuiu de modo determinante para as artes, produzindo novas relações éticas e estéticas com o mundo, modificando o pensamento artístico, político, filosófico e social do século 20. Perdas que ainda estão sendo elaboradas.

nos anos 90 já se falava de um ‘pós-butô’, em referência a montagens em países como Coréia, China e Austrália. Maura Baiocchi, dançarina, diretora e coreógrafa que estudou com Kazuo Ohno (1906-2010) no Japão, nos anos 80, conta que viu muitos espetáculos à época e o butô já tinha contaminações. “É um trabalho que nasceu (na década de 50) contaminado pelo expressionismo alemão, mímica francesa, movimentos americanos como o Fluxus, a body art. Ou seja, só sobrevive na contaminação”, defende.

Em setembro de 2010, Marcelo Evelin, Gícia Amorim e Christine Greiner, pesquisadores que se dedicam à obra desses criadores, reuniram-se no auditório do TUCA, em São Paulo, para tentar encontrar possíveis respostas a essas e outras perguntas. Ao falar de nomes consagrados, o Aberto Desdobrado, evento dos alunos do curso de Comunicação e Artes do Corpo da PUC provocou polêmica de saída, ao nomear o encontro de Sobre presuntos: luto e memória.

Singularidades em movimento

Presente ao evento para falar sobre a alemã Pina Bausch (1940-2009), o coreógrafo Marcelo Evelin considerou uma provocação bem humorada e coerente, pois ao tratá-los como “presuntos”, os mestres foram deslocados de um lugar supremo e onipotente. Seus corpos perdem a identificação de pessoa para se tornarem referência comum a todos, corpos sem donos, transformados em conceito para serem modificados, adaptados e canibalizados pelas próximas gerações. “Presunto é o corpo sem identidade, estático, não reclamado. Os trabalhos deles trazem o corpo para o anônimo, para o geral. Eles eram generosos, não falavam sobre ‘eu’, mas sobre ‘outro’. Logo, o nome do evento faz todo sentido”, argumenta o coreógrafo. Evelin esteve em Wuppertal (Alemanha), nos anos 80, e mantém contato com a companhia Tanztheater, fundada em 1973 pela coreógrafa Pina Bausch. Para ele, é possível uma continuidade à companhia e ao trabalho da artista, mas com o desafio de não torná-lo um estilo. “Embora haja influências, linguagens, a preocupação dela era que cada um seguisse seu caminho”. Para o coreógrafo que, aos 18 anos, a viu dançar pela primeira vez, em 1980, no Rio de Janeiro, a morte foi um choque: “Achava que ela nunca iria morrer, mas o trabalho não morre, dissemina-se entre outros modos, questionamentos e experimentações”. Com a morte do norte-americano Merce Cunningham (1919-2009), sua companhia encerra as atividades após a turnê mundial de 2011. Um desejo do artista explicitado no Legacy Plan, um testamento deixado aos seus dançarinos. A escola permanece, coreografias serão remontadas pelos estudantes, no entanto o trabalho de criação não existirá mais. Isso não quer dizer, porém, que seu trabalho será perdido, pontua a bailarina e coreógrafa Gícia Amorim, que estudou no Merce Cunningham Studio e é professora autorizada pela Cunningham Dance Foundation a ensinar a técnica no Brasil. No Japão, Yoshito Ohno se compromete a manter o Kazuo Ohno Dance Studio, construído por seu pai, em 1961, em Yokohama. Mas como seu legado será apresentado? Uma questão que se torna mais delicada, se lembrarmos que

O que será feito do legado desses três mestres causa curiosidade e apreensão. De maneiras distintas eles quebraram paradigmas e escreveram a história da dança no século 20 de um modo inédito. Pina Bausch e Kazuo Ohno alinharam o teatro à dança e trouxeram à tona pulsões humanas e possivelmente as marcas deixadas pelas guerras. As convenções relacionadas a movimentos e corpos foram chacoalhadas pelas novas estéticas e novos pensamentos em dança propostos por eles e também por Merce Cunningham, que contribuiu determinantemente para a autonomia da dança e para modificar a ideia de hierarquia em relação às outras linguagens. Trazendo na bagagem artística os anos como aluna de Kurt Jooss, Pina Bausch teve na dança expressionista alemã um atravessamento inevitável, mas fez uma arte singular. Quando Pina Bausch se apresentava, seus espetáculos permitiam leituras diferentes, um amplo leque de possibilidades, graças à extrema valorização da subjetividade. Apesar de saber da potência de seu trabalho, Evelin acredita que ela não tinha a dimensão do quanto era visionária, ao tirar o teatro e a dança da formalidade e colocá-los para circular no espaço das ideias. Não havia, portanto, explicações óbvias, mas uma riqueza de metáforas vindas da vida e readequadas ao palco. “Essa tradução e reorganização é o que há de mais genial na obra dela”, opina Evelin. Segundo ele, a alma alemã está presente em sua obra, não de maneira patriótica ou bairrista, e sim pela solidão e culpa do homem alemão no pós-guerra. O butô também tem relação com o pós-guerra e o lugar onde nasceu. “Ele traz à tona sentimentos que o status quo não queria exibir, que eram bem diferentes do ideal apolíneo, dos vencedores. O butô mostra a dor, o sofrimento, o sentimento dos perdedores”, explica Maura Baiocchi. Para ela, a inspiração que vem da Alemanha não é por acaso, pois é outro país perdedor na Segunda Guerra Mundial, assombrado pelos horrores do Nazismo. Ao contrário da busca de leveza e verticalidade da dança clássica, o butô é uma dança “para baixo”, sem medo da gravidade como força de expressão e que usa a obscuridade para esclarecer. Temas como morte, sexualidade e violência abordados por Kazuo Ohno chocaram as plateias japonesas. Ao criar o butô, Tatsumi Hijikata (1928-1986) dizia tratar-se de um corpo morto frente ao desespero. Daí praticamente não ser dançado por jovens. O próprio Kazuo Ohno fez seu primeiro recital em 1949, em Tóquio, aos 43 anos.

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A coreógrafa alemã em Café Müller, em foto do livro Pina Bausch, de Guy Delahaye Foto: Maarten Van den Abeele (arquivo Teatro Alfa - SP)

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não apenas aos movimentos, mas ao uso do espaço, dinâmicas e ritmos. “Exige muito da musculatura, controle e flexibilidade de corpo e de mente”. Esta técnica é uma grande referência para William Forsythe, que une ideias de Cunningham aos ensinamentos de Rudolf Laban sobre a espacialidade do corpo e ao balé abstrato de George Balanchine. “Às vezes não é uma influência direta, é uma mudança pequena, mas que abre uma janela enorme”, comenta o performer e coreografo Gustavo Ciríaco. Entre tantas contribuições, talvez as mais significativas de Cunningham tenham sido a desieraquização entre música e dança, o uso do acaso (chance operation) durante o processo criativo e artístico e o uso da tecnologia como mais um amplificador investigativo. Em todos os processos, as colaborações com artistas de diferentes linguagens por afinidades estéticas.

Coordenadora do Centro de Estudos Orientais do Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, Christine Greiner defende que o butô pode ser considerado uma técnica de dança, já que foi sistematizado, organizou padrões de movimento e gerou uma metodologia de ensino. No entanto, alerta para os riscos de ser estereotipado pelo recorrente uso de cabeça raspada, corpo pintado de branco e olhos revirados. Dos processos investigativos de Ohno, aos quais ele se detinha por anos, se referia ao “deixar-se mover por algo” e dizia que o estudante de dança é um criador do mundo, sem identidade, no qual o corpo não é uma forma pronta que se move, mas algo que a precede, um corpo virado do avesso. “Matar o corpo para criar uma dança significaria matar a submissão da expressão do corpo à vontade do sujeito”, diz Greiner. Ao invés de herança artística, ela prefere falar em “lacuna”, citando a discussão do filósofo italiano Giorgio Agamben acerca do conceito de testemunho: o que resta é o silêncio que sobrevive em ato à impossibilidade de falar. Vale lembrar que essas diferentes manifestações estéticas quebraram paradigmas, mas não viraram as costas para todo o passado da dança. A técnica do norte-americano Merce Cunningham, por exemplo, tem elementos do balé e também muito da técnica de Martha Graham quanto ao uso do corpo. A utilização das direções e a concepção do movimento no espaço, segundo Gícia Amorim, foram muito influenciadas por Buckminster Fuller, engenheiro, arquiteto e filósofo, contribuindo, assim, para que Cunningham ampliasse as concepções do balé. A técnica Cunningham é tão complexa que mesmo bailarinos da envergadura de Mikhail Baryshnikov, ou os integrantes do New York City Ballet, apresentam uma qualidade de movimento muito diferente em relação aos dançarinos da companhia do coreógrafo. De acordo com Gícia, a dificuldade diz respeito

Há controvérsias em citar Cunningham como moderno ou pós-moderno. “Vejo-o como uma montanha que organiza a paisagem, mas com placas tectônicas em movimento”, comenta Ciríaco. Já para Gícia Amorim, a busca constante pelo novo, desafiando as convenções com seus experimentos e descobertas, faz com que ele permaneça conectado com as mudanças do nosso tempo, assim como a construção de uma técnica a partir da nossa condição física de bípedes. Essa percepção leva a pesquisadora a localizá-lo esteticamente e filosoficamente como contemporâneo.

Devir-corpo A pesquisadora Thereza Rocha destaca que no século 20 o corpo começa a se firmar como campo de investigação, o que teria sido fundamental para o surgimento do que chamamos de dança contemporânea. Em sua análise, há um devir-corpo — algo sempre se fazendo labor — presente em Pina Bausch, Merce Cunningham e Kazuo Ohno. Apesar dos rastros deixados pelos três mestres, ela não acredita que haja uma continuidade da obra deles. Nenhum dos três mestres se deixou levar por ideias préconcebidas, o que os coloca como transgressores da dança. O que agora parece estabelecido para dançarinos e coreógrafos foi impactante para as gerações anteriores, ainda que, mesmo hoje, seja inevitável uma certa resistência de um público mais geral. “As referências (da dança clássica) são muito fortes, mas o desencontro do público com a obra não é um defeito, é rico, pois do desencontro nasce a possibilidade de outro contato. A produção contemporânea em vez de responder, devolve perguntas e isso incomoda, provoca reações calorosas”, argumenta Thereza. Marcelo Evelin completa que essas danças são muito recentes. A experiência surgiu e se consolidou no século 20, enquanto o balé clássico possui 500 anos de história. Mesmo com diferentes respostas e novas perguntas devolvidas a todo instante, em comum o fato de que Bausch, Cunninghame e Ohno perguntavam o que pode o corpo e a dança fazer. Era o que os movia.

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Taanteatro: tensões em dança Maura Baiocchi teve sua formação no balé clássico e experimentou diversas linguagens no decorrer dos anos 70 e 80. Passou pelo jazz e pela dança moderna, até chegar ao butô. Em 1987, morou no Japão, onde foi aluna de Kazuo Ohno e Min Tanaka, tornando-se pioneira dessa dança no Brasil. Ela, que já havia estudado teatro, retornou ao Brasil a convite do diretor Antunes Filho e depois passou a se dedicar a sua própria pesquisa: o taanteatro, ou teatro coreográfico de tensões, que deu origem à Taanteatro Companhia. Mais do que o nome da companhia, o neologismo taanteatro designa também uma abordagem teórico-prático-criativa: o desenvolvimento das capacidades comunicativas do ator através de metodologia específica que possibilita a geração de procedimentos e parâmetros para a criação, encenação e análise do espetáculo. Parte do pressuposto que a qualidade e a eficácia do potencial comunicativo do performer estão ligadas à capacidade de estabelecer e operar tensões intra (paisagem interna do corpo), inter (entre corpos de qualquer natureza) e infra-corporais (campo sócio-político-cultural). “O prefixo tan vem do sânscrito e etimologicamente significa dança, mas também pode ser tensão, alongamento, estiramento – um princípio básico de toda arte, mais abordado na dramaturgia. “Da mesma maneira como um violão de cordas frouxas não emite som, um corpo sem tensão não ressoa, não transmite energia”, explica Maura Baiocchi. O tan (a tensão),

segundo ela, é ligado a uma filosofia da multiplicidade e do acontecimento, que promove a emergência criativa do novo a partir do encontro, da relação dinâmica e da incorporação e hibridação, ou seja, do “e”, não do excludente “ou”. Dessa maneira “o tan permite, ao mesmo tempo, o subjetivo e o coletivo. A particularidade de cada um é respeitada no movimento”, esclarece a coreógrafa. Estas propostas, métodos e fundamentação teórica são aprofundados no livro Taanteatro: Teatro coreográfico de tensões, escrito por Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek. Elaborada a partir de sua dissertação de mestrado defendida na PUC-SP, em 2006, a publicação se baseia em décadas de experiência nas artes cênicas e nos cadernos de estudos do grupo. Inspirada por pensadores como Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze e Félix Guattari, trabalha com os conceitos de “vontade de tensão” e “esquizopresença”, num instigante estímulo a criadores e pesquisadores. DICA DE LIVRO

Taanteatro: Teatro coreográfico de tensões Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek Rio de Janeiro Azougue Editorial 2007 - 256 págs

Na página anterior: Kazuo Ohno ensaiando, em 1992 Foto: Maura Baiocchi (Acervo pessoal)

Nesta página: Dan - devir ancestral, de Maura Baiocchi e Taanteatro Companhia Foto: Randal Andrade

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Três mulheres e um café A pesquisadora e professora universitária Thereza Rocha credita à Pina Bausch a formação dos afetos em dança de toda uma geração. Ela mesma migrou do teatro para dança ao ver a coreógrafa alemã colocar em cena o que buscava para si mesma: as linguagens em fronteira, que sempre a interessaram, seja artística ou academicamente. Uma das heranças mais valiosas é a “política do intérprete”, que tira o foco do coreógrafo para a relação com o bailarino. Do desejo de um trabalho de cooperação com a dançarina/ criadora Maria Alice Poppe, parceira de longa data, surgiu 3 Mulheres e Um Café, uma conferência dançada com o pensamento em Pina Bausch, que conta ainda com o ator e bailarino Ricardo Duque. “Trata-se de uma linguagem de dança e em dança questionando a criação de dança”, explica Thereza. O espetáculo ganhou o prêmio Funarte Klauss Vianna de Dança 2008 e estreou em abril de 2010 no Rio de Janeiro. Maria Alice Poppe se movimenta de olhos fechados, em um ambiente formado por 30 cadeiras espalhadas, um cenário que remete ao Café Müller, uma das obras mais marcantes de Pina Bausch, de 1978. Mas não é uma remontagem ou recriação, mas uma conversa de dança com a obra de partida, percorrendo as fronteiras do que se poderia chamar de transcriação. Há um

atravessamento do que seria visto separadamente como dança e como conferência, constituindo um pensamento fabricado ao vivo que homenageia e consagra a coreógrafa alemã – a terceira mulher do espetáculo. “O Café Müller, assim como toda a obra da Pina, é responsável pelo que a gente é hoje”, conta Maria Alice, que vivenciou de perto os personagens desta obra para poder construir seu próprio modo de dançar em 3 Mulheres e Um Café. Uma composição na qual a predominância da interpretação sobre a representação e a ausência da figura do coreógrafo não implicam uma falta de composição de cena ou demérito da técnica. “Há um reposicionamento do conceito de técnica, que considera a singularidade dos corpos que dançam. Técnica não é utilitária, como muita gente pensa. Na arte, inclui a criação”, argumenta Thereza. Vivência corporal e teorização se aproximam, por meio da atuação da dançarina, compondo com a fala de Thereza Rocha, que conversa com o público acerca de temas relativos à história e estética da dança contemporânea. Gestos que se atualizam nesta conferência dançada, com aroma de café a Pina Bausch.

3 Mulheres e um Café: uma conferência dançada com o pensamento em Pina Bausch, de Thereza Rocha e Maria Alice Poppe (RJ) Foto: Renato Mangolin

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Um Cariri para Pina Reisados, romeiros, vaqueiros e bandas cabaçais. Produções artísticas e culturais de um Ceará que atraiu a coreógrafa alemã Pina Bausch. Sete vezes no Brasil, apresentava-se em festivais ao mesmo tempo em que lhe agradavam os gostos da feira de São Cristovão, da Estudantina, dos salões de forró e do abacaxi de palito na praia, como lembra a diretora Bia Lessa. Numa dessas viagens, em 2002, ao desembarcar em Recife, a caminho da Bahia para passar alguns dias com Caetano Veloso, de quem a socióloga cearense Violeta Arraes também era amiga, a coreógrafa aceitou uma proposta de desvio de rota. Junto com a socióloga e também reitora da Universidade Regional do Cariri (Urca), percorreu de carro o sertão até chegar ao Cariri, onde esteve por quase uma semana. Lá, encantou-se pela dança e a música dos Irmãos Aniceto, banda cabaçal formada por membros da mesma família. Visitou duas vezes o Museu de Paleontologia de Santana do Cariri. “É emocionante saber que, depois de tanto tempo, nós estamos tão perto da nossa origem”, teria dito ao ver os fósseis com mais de 100 milhões de anos, conforme relatou ao jornal Diário do Nordeste, na época, Violeta Arraes, falecida em 2008. Danielle Esmeraldo, atual secretária de Cultura do Crato, lembra bem desse momento. “Numa cidade do interior, só quem trabalhava com dança sabia quem era Pina Bausch”. No entanto, a emoção foi maior: a secretária apresentou-se para a artista com um espetáculo sobre beatos, que dirigiu e

coreografou para a Cia. Corpos X Corpos. Segundo ela, Pina teve especial interesse pelo Horto de Padre Cícero, na vizinha Juazeiro do Norte, e no movimento diário dos romeiros. Quem também incluiu Pina Bausch em sua história foi Hélio Filho. Em 2002, com 9 anos, já havia assistido E La Nave Va, no qual a coreógrafa encena uma nobre cega. Quando ela chegou à Fundação Casa Grande, em Nova Olinda, percebeu tratar-se da princesa Lherimia do filme de Federico Fellini. “Ela era uma pessoa muito tranquila e atenciosa”, conta. Ao mostrar vídeos do Cariri, percebeu que a artista se emocionou em silêncio. A visita gerou convite para um evento de intercâmbio cultural, que acontecia a cada dois anos em Wuppertal, com jovens de vários países. “Pra ter ideia, no anterior, tinham ido do Brasil o Caetano Veloso e o Naná Vasconcelos”, comenta Alemberg Quindins, diretor da Fundação Casa Grande. Um dos meninos a tocar na Alemanha foi justamente Hélio Filho, com um projeto de música, o Trilhas U Som. Mulher que já havia encarado plateias enfurecidas com seu Tanztheater – não foram raras as vezes em que espectadores abandonaram a apresentação – sempre manteve-se gentil e aberta ao encontro com o outro. A palavra “atenção” é recorrente nos relatos dos que conviveram, ainda que brevemente, com ela. Segundo Bia Lessa, Pina Bausch não parecia visitante. “Ela ficava nos lugares como se estivesse ali pela vida inteira. Olhar curioso, atento, enquanto o corpo repousava”.

Visita da coreógrafa alemã à Fundação Casa Grande, em Nova Olinda (CE) Foto: Acervo Fundação Casa Grande

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Pina Bausch em fotografia Por Dada Petrole

Fotógrafo atuando no Brasil e na Europa, Dada Petrole é natural de Crato. Em 2010 expôs seu ensaio fotográfico Pina Bausch em fotografia na 11° Mostra Sesc Cariri de Cultura, na Fundação Casa Grande, em Nova Olinda (CE). Morando na Alemanha, o fotógrafo teve acesso a espetáculos da coreógrafa e ao seu teatro em Wuppertal. Parte desse material é especialmente apresentado nesta edição da OlharCE.

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Dança em diferentes tempos Como o passado reverbera no presente e dialoga com questões da contemporaneidade? Os desafios da remontagem em dança nos tempos que correm Um desafio que parecia simples. Remontar Trio A, de Yvonne Rainer, peça elaborada em 1966, no calor da geração de artistas que marcaram a dança pós-moderna americana. A bailarina cearense Fabiana Lima teve seu primeiro contato com a artista na aula inaugural do filósofo José Gil, no curso de extensão Dança e Pensamento, parceria da Vila das Artes/ Prefeitura de Fortaleza com a Universidade Federal do Ceará (UFC), em setembro de 2007. Quase três anos depois, ao tentar transpor para o próprio corpo aqueles movimentos do vídeo, Fabiana, enfim, entendeu que naquela movimentação havia algo de desafiador. “É tão atual, que é como se tivesse sido feito agora. Não tem narrativa, tem o movimento. Um jeito aparentemente relaxado de se mover. Enquanto ela mexe o joelho, balança a cabeça. Desce o corpo olhando para cima. Tem uma dramaturgia, mas não tem um significado. Não tem uma técnica codificada. E eu, que passei anos escutando como um braço deve ser, como devo me mover, acho mais fácil alguém que não tem experiência com a dança fazer essa obra”, analisa a bailarina. Mesmo assim, se viu instigada a remontar Trio A, embora a proposta fosse criar uma dança a partir deste trabalho, em módulo ministrado pelo coreografo Gustavo Ciríaco, na segunda turma do Curso Técnico em Dança, e apresentada na mostra Mova-se. Não é a primeira remontagem da qual Fabiana participa, porém esta experiência foi inteiramente diferente. Não havia quem a guiasse, quem dissesse os caminhos a seguir, como nos balés de coque, tutu e meias cor-de-rosas da qual está acostumada a participar. Por que será que remontar este trabalho levantou tantas questões na bailarina? E o que o passado tem a ver com as questões que atravessam a dança nos dias de hoje? “Montagem, remontagem, recriação, reelaboração fazem parte de processos de construção de memória”, argumenta a professora de História da Dança, Beatriz Cerbino, que acompanhou um projeto de remontagens, com direção de Roberto Pereira, na UniverCidade (RJ). Segundo ela, o objetivo não é ater-se ao passado, mas às discussões que ele suscita

no presente. “Os corpos já são outros, há outras maneiras de dançar. Nunca será como antes. O importante é entender o sentido da obra”, pontua. Para o diretor da Escola de Dança de Paracuru e exdiretor do extinto Colégio de Dança do Ceará (1999-2002), Flávio Sampaio, remontar espetáculos constitui um modo de entender diversas correntes estéticas, costumes de época, ideias que inspiraram uma obra, seu período histórico e político, vestuário, cenografia. Motivos que o levaram a remontar peças clássicas e modernas no extinto Colégio de Dança do Ceará, apesar da polêmica surgida, na época, de que este ato estaria estimulando a cópia como recurso artístico e pedagógico. No entanto, há sutilezas e situações inusitadas que o tempo produz como a remontagem de uma obra de Carlota Portela, dos anos 70, na qual Beatriz recorda da impossibilidade do figurino de lycra brilhante ser reproduzido, pois aquele tipo de tecido não era mais confeccionado. O mais importante, para Flávio, é aproximar artistas e público do processo de criação. E considerar que a cada apresentação há uma nova maneira de dançar. “Mesmo que o elenco se esforce para manter intacta a coreografia, o maestro mantenha o tempo musical e a luz seja a mesma, a sinergia faz com que aquela obra seja viva e única”, pontua. Seja pela memória de quem passa uma obra adiante, seja por meio de fotos ou DVDs, tanto Beatriz como Flávio concordam que o foco do percurso de refeitura de uma dança está no exercício de compreender que saberes estão permeando aquela obra. Essa compreensão parece ter levado os bailarinos Luiz Otávio Queiroz, Daniel Pizamiglio e Thiago Braga, também ex-alunos do Curso Técnico, a afirmar que cada corpo responde de uma maneira à remontagem. No caso de Luiz Otávio e de Thiago Braga, a preferência foi em elaborar uma peça própria inspirada pelos desafios de Trio A. Fabiana finaliza: “Não adianta querer fazer igual a alguém, porque cada bailarino tem um jeito de colocar seu corpo na dança”. Tempos e corpos cruzam-se para desafiar a própria noção de dança.

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Remontagem de Trio A, por Fabiana Lima, na Mostra Mova-se, em 2009 Foto: Alex Hermes

Apresentação de Trio A , de Yvonne Rainer, no Sesc Pinheiros (SP), em 2009 Foto: Claudia Mifano (acervo Sesc-SP)

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Rachaduras e desvios dança pós-moderna americana, tropicalismo e histórias Ao analisar os princípios norteadores da dança, em seus diferentes tempos, Flavia Meireles traça relações de proximidade e distanciamento entre modernidade e pós-modernidade O que significa tornar a ver algo produzido no passado? O que se passa nesse processo? O que os turbulentos anos 60 nos deixam de herança? Que ligações podemos fazer entre dança, tempo e estratégias de existência/criação que nos deixem entrever o que tudo isso tem a ver conosco hoje? Pinço os anos 60 da fartura de décadas e séculos de que dispomos para ser, simultaneamente e sem nostalgia, um ponto de partida e volta, uma rede, uma máquina de pinball apontando em várias direções. Pois foi lá que se tornou evidente, em termos globais, que o projeto da modernidade, aquela modernidade autônoma, altiva e progressista, que tanto tempo nos demoramos em cunhar, havia falhado. A partir de lá também foi possível a emergência de novas formas de existir a partir da experiência de um mundo radicalmente mudado. Radicalmente?

Flavia Meireles Artista e professora. Desenvolve seus próprios projetos e em colaboração com os coreógrafos Marcela Levi, Gustavo Ciríaco e Micheline Torres. Seu trabalho transita entre a dança contemporânea, as artes visuais e a performance.

Foto: Alex Hermes

São muitas as relações possíveis entre modernidade e tempo e, de uma maneira grosseira, a imagem da flecha do tempo que progride nos dá uma ideia aproximada desta relação. Dizer “moderno” está associado a uma passagem, uma ruptura, uma aceleração do tempo em contraste a um passado anacrônico e estável, associado aos estados pré-modernos (antigos e povos fora da cultura ocidental). Importante salientar: em contraste. É nessa polarização e separação que essa relação funciona. Além desta específica e unívoca relação com o tempo, a palavra modernidade está em meio a uma batalha constante entre modernos e antigos, com saldos positivos e negativos para um lado e outro, ou seja, entre emancipados (os vitoriosos) e dominados (os perdedores), cientes e ignorantes, descrentes e ingênuos, todos unidos (e separados) por esta polaridade. Portanto, ser moderno é ser “duas vezes assimétrico: assinala uma ruptura na passagem do tempo; [e] assinala um combate no qual há vencedores e vencidos” (LATOUR, 1994, p. 15). Manter-se nesse projeto é tarefa extremamente difícil e se mostra ao longo do tempo - e numa escala mundial a partir dos anos 60 – tarefa cada vez mais frágil e menos inteiriça. Procurarei, neste texto, operar no instável espaço para fora dos conceitos modernos, procurando mostrar seus artifícios de camuflagem (e naturalização) do olhar, tirando-lhe alguns desdobramentos.

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Duas posições que racham ou desviam dessa dupla assimetria me são particularmente caras e compõem o núcleo deste texto: uma delas é a maior visibilidade de outras histórias e genealogias - como é o caso da antropofagia e do tropicalismo no Brasil - para fora (e dentro) da história ocidental euro-norteamericana, caracterizada pelas “Luzes” e pela “Liberdade”, que nos é contada sempre como ponto de referência. A outra rachadura é feita pelos chamados “pós-modernos”, com sua contestação e denúncia do projeto da modernidade (abraçando suas problemáticas e posteriores críticas). Trabalharei com a noção de tempo que considera o passado como passando e, portanto, não submissa ao regime de flecha progressiva que a modernidade nos diz ser como as coisas “realmente” acontecem. Desta mirada, rever o passado pode significar coexistir, co-habitar, retomar questões (como diria Merleau-Ponty), sempre reiniciando de um ponto diferente.

Anos 60: dança, tempo e histórias A diversidade de registros sobre os anos 60, em termos de criação artística, dá-nos um leve gosto do que teriam sido estes anos em termos de efervescência cultural. Vistos em retrospecto e da distância de cinco décadas, podemos dizer que foi um momento na História em que foi possível dar vazão e forma às transformações que forçavam passagem. Estas transformações estavam intimamente ligadas às sucessivas rachaduras e descentramentos de concepções longamente construídas e severamente mantidas, tais como a noção de sujeito autônomo, baseado na racionalidade, com ligações de pertencimento a uma identidade nacional sentida como “natural” e “genuína” (HALL, 2001) e vocações de emancipação e dominação. Aquela dupla assimetria que as palavras “modernidade” e “moderno” exigem. Tais noções foram recebendo marretadas devido à fixidez de enquadramento do sujeito e do mundo que não dava mais conta de assentá-lo por meio da “neutralizadora tranquilidade” das representações de até então. E este movimento foi sentido nos mais diversos âmbitos da existência, dando lugar às manifestações de cunho artístico, social e político-econômico que se manifestaram diferentemente em cada local (guerras e movimentos póscolonialistas, protestos contra a guerra no Vietnã nos Estados Unidos, tropicalismo no Brasil, movimentos feministas, maio de 68 na França, entre outros). Também daí, a noção de tempo flecha-que-progride perde força hegemônica dando a ver outras construções de temporalidades (que, aliás, já existiam entre os pré-modernos e outros povos, mas eram tomadas como invisíveis no Ocidente). É como se a nuvem de fumaça da hegemonia moderna estivesse menos espessa (mas não dissipada) e que pudéssemos enxergar a possibilidade de um mundo onde coexistência e cohabitação pudessem ser vivenciáveis. Conforme Latour: “Felizmente, nada nos obriga a manter a temporalidade moderna com sua sucessão de revoluções

radicais, seus anti-modernos que retornam àquilo que acreditam ser o passado, e seu jogo duplo de elogios e reclamações contra ou a favor do progresso contínuo, contra ou a favor da desgenerescência contínua. Não estamos amarrados para sempre a esta temporalidade que não nos permite compreender nem nosso passado, nem nosso futuro, e que nos força a enviar aos porões da história a totalidade de terceiros mundos humanos e não-humanos. Mais vale dizer que os tempos modernos deixaram de passar” (LATOUR,1994, p.73). Liberados a criar outras temporalidades - mas com o pensamento moderno sempre à nossa espreita e nos constituindo -, podemos reconceber o tempo como “o resultado da ligação provisória dos seres” (LATOUR,1994,p. 74), sugerindo aproximações e distanciamentos de temporalidades não só ligados ao tempo flecha-que-progride. Podemos entender desta maneira o movimento tropicalista no Brasil levado a frente por uma série de artistas e pensadores, dentre os quais Gilberto Gil e Caetano Veloso, que misturavam John Cage a Beatles, passando pelo baião de Luiz Gonzaga e pela bossa nova de João Gilberto. Ligações temporárias produzindo híbridos. Estes híbridos, por sua vez, são formados por um duplo processo: hibridização (mistura) e purificação (seleção, excelência) agindo juntos e em nada parecendo com meras misturas sem critério. A desgastada dicotomia entre modernos (leia-se puros, refinados, com excelência) e pré- (ou pós-) modernos (confusos, misturados e sem critério) não encontra eco nesses artistas cuja experimentação produziu e produz inquietantes resultados. Ademais, o movimento tropicalista ressaltava, não só no plano artístico, mas no político, a “oposição sem oposição”, estando fora do projeto nacional-popular que sufocava o Brasil no início dos anos 60 “por um patriotismo repressivo e boçal e por um nacionalismo de fancaria (um nacionalismo paternalmente orientado e subsidiado pelo Grande Irmão do Norte – alguém já se esqueceu?) e por um provincianismo existencial acachapante” (CASTRO, 2007, p. 22)1. Em vez de guerra à guitarra elétrica como protesto anti-imperialista, o uso inovador dela. Nada de baixa antropofagia, como diria Oswald de Andrade. Vemos, embora rapidamente, o que essa liberação do tempo criou e os exemplos são muitos: Glauber Rocha e Julio Bressane, no cinema, José Celso Martinez Corrêa, no teatro, Lygia Clark e Hélio Oiticica nas artes visuais, Angel Vianna, Klauss Vianna e Graciela Figueroa na dança, só para citar os casos mais “molares” (quero dizer, maiores em termos de visibilidade e reconhecimento mundial) e onde o conjunto da obra já ganhou elaboração suficiente para reconhecermos neles, exemplos claros. É a partir dos anos 60 que existe mais espaço também para o hibridismo que alarga o campo de atuação das Artes, aproximando arte e vida, seja através da instauração de situações ou através do corpo como suporte da obra de arte, como é o caso dos happenings e das performances. No momento onde a

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dança pós-moderna americana aparecia, estas formas híbridas ganhavam força e as correspondências são inevitáveis não só em termos de procedimentos de criação, mas também em seus agentes, isto é, a colaboração na criação e em cena de pessoas não treinadas na dança, a exemplo de Robert Morris, Carolee Scheemann, Robert Rauschenberg. Situando historicamente e de maneira resumida, consideramos dança pós-moderna americana um grupo de artistas vindos de uma série de workshops ministrados por Robert Dunn, discípulo de John Cage, no estúdio de Merce Cunningham nos anos 1960-61. Muitos desses artistas haviam também frequentado os workshops de Anna Halprin, na Califórnia, dentre eles Yvonne Rainer, Trisha Brown e Simone Forti. Mas foi no estúdio de Cunningham (e isso não é um detalhe), unindo artistas com formação em dança, música e artes visuais que o grupo iniciou seus experimentos os quais foram levados mais longe, dois anos depois, no espaço de uma igreja protestante (a Judson Church) em Greenwich Village. Surgia então a Judson Dance Theatre onde haviam apresentações, auto-intituladas de performances ou concertos, ocupando o espaço livre da igreja. É importante ressaltar que, embora coletivo, no âmbito da criação o sistema era colaborativo: cada artista tinha suas próprias ideias (a função-autor não foi abolida) e chamava outros artistas do grupo para colaborar em suas criações, como pontua Yvonne Rainer2. Mais do que um projeto estético comum era um projeto ético-político (não como uma bandeira mas como uma prática) que se inaugurava com a abertura para não-dançarinos e resoluções tomadas de maneira consensual (mesmo que para isso se demorassem horas para se tomar uma resolução) – aqui mais uma outra insurgência fora da demanda cotidiana ou mercadológica. Em linhas gerais podemos descrever assim os agentes da dança pós-moderna, mas essa descrição só ganha seu sentido mais complexo quando percebemos que a dança pós-moderna americana é, na verdade, danças pós-modernas norteamericanas. Duas decorrências desta alteração: 1. essas danças contêm em si uma multiplicidade de agentes vindos de muitos lados e que as marcam diferentemente, transformando suas características em referentes elásticos e contamináveis e que 2. seus agentes desenvolvem seus projetos em relação à história e ao contexto norte-americano. Essas duas observações mudam bastante coisa.

às ligações e, por isso, são agentes mediadores. Penso que a noção de rede comporta melhor o alargamento de campo que a arte desta época propõe. Mais uma vez, já que repetir nunca é redundar, isso não quer dizer que antes disso não havia rede de conexões e relações, mas que é neste momento que essa rede dá sinais de visibilidade, ganha “existência” aos nossos olhos (aos olhos de hoje, é claro). E ainda: essa rede é tecida a partir de questões sentidas globalmente vistas de uma relação local, de contextos específicos da dança norte-americana lançados no espaço, nos livros e nos discursos, tais como o mais que conhecido NO Manifesto de Rainer (RAINER, 1974), no qual ela explicita que estas ideias diziam respeito ao que ela havia experimentado antes com o teatro e a dança moderna americana)3. Poderia então Rainer se referir mais a um processo pessoal de criação que a um manifesto geral, uma “regra” a ser seguida? O que diria, por exemplo, Robert Morris que não tinha prévia formação de dança? Lidos desta maneira, as análises da dança pós-moderna ganham outra dimensão, outras genealogias e, principalmente, outros recortes e detalhes. E como bem nos diz Peggy Phelan: “Como sabemos da criminalística, da medicina, e da história, detalhes aumentam a incerteza” (PHELAN, 1990, p.23). Um pequeno exemplo de outras relações possíveis quando colocamos de lado o olhar moderno de sucessão e ultrapassamento.

Estratégias de existência/criação Vale a pena olharmos, na dança pós-moderna americana, algumas estratégias de existência/criação de alguns dos criadores destas danças para ver em que medida eles estavam fora da noção moderna de criação. Nomeio suas estratégias como de existência/criação, pois elas são, ao mesmo tempo, uma resposta singular ao entorno norte-americano (uma possibilidade de existência4) e um artifício próprio à criação.

Compreender que o que sabemos - e sabemos muito - da dança pós-moderna é apenas parte de uma história aberta e engendrada a partir de uma localidade, mudando nosso foco e nos tirando de uma relação linear e progressista com o tempo.

Os agentes destas danças vêm de distintas formações e revezam papéis nos trabalhos: ora Yvonne Rainer chama Trisha Brown para colaborar (e vice-versa), ora Robert Morris, vindo das artes visuais, começa a fazer performances, ora dança com Yvonne Rainer, ora Steve Paxton mistura dançarinos e nãodançarinos em seus trabalhos, e tantas outras combinações e possibilidades sejam desejáveis entre os seus agentes. Esse variado background e mobilidade nos “papéis” assumidos nos trabalhos cria uma rede temporária e móvel desmontando hierarquias e usando da hibridação como motor de criação. Não é surpresa aparecerem movimentos cotidianos e “found movements”5 nessas danças, como resultados que podem ser ao mesmo tempo, pontos de partida6.

O que se passa aqui é que começamos a ver o aparecimento de redes e conexões entre referentes, estratégias de criação e domínios artísticos que vão se mostrando mais intrincados. Nosso olhar vai modificando as coisas: de linhas retas elas se abrem para cima, para baixo e para os lados formando uma rede transpassada por diversos domínios. Estas ligações entre os agentes não os mantêm intactos, estes dão sua tradução

Uma outra estratégia de existência/criação foi a apropriação de lugares não primeiramente dedicados à dança como locus de trabalho. A própria ocupação da Judson Church pode ser lida como estratégia assim como os atualmente chamados Early Works de Trisha Brown foram frutos de interesse em “equipamentos” fora do estúdio, dialogando a partir daí com o espaço arquitetônico das cidades (Roof Piece nos tetos de

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Nova Iorque, Man Walking on the Side of a Building nas paredes externas dos prédios, Floor of the Forest em jardins, Accumulation no meio do lago)7. Houve ainda uma estratégia que foi muito utilizada nas danças pós-modernas, por influência direta dos workshops de Robert Dunn. Refiro-me ao uso do acaso (chance procedures) como matéria de composição. Parte estruturante de alguns processos de decisão destas danças, o acaso, ou, melhor dito, a indeterminação, aparecia de diferentes maneiras e em diferentes momentos do processo de cada criador. Por exemplo, uma regra poderia ser: “Você fica fazendo estes movimentos até que alguém te toque no ombro e você então poderá iniciar o seu texto”. Indicações como estas estavam mais ligadas à descrição do que aconteceria do que a uma conexão de sentido.

das propostas iniciadas nos anos 60. Cabe a nós analisar que uso fazemos destas releituras e o que queremos com elas. Mas isso já é um outro tema.

Notas 1. Vale lembrar que o projeto moderno no Brasil tomou feições nacionais-desenvolvimentistas. 2. Entrevista com Yvonne Rainer, Centre National de la Danse, Paris, 2004 (DVD). 3. No texto do referido artigo, logo antes dos “NÃO ao espetáculo, NÃO à virtuose ...”, Rainer escreve e eu aqui traduzo livremente: “(...) Postscript: Isso não é para dizer que eu pessoalmente não goste de diversas formas do teatro. É somente para definir mais rigorosamente as regras e fronteiras do meu próprio jogo artístico do momento” (RAINER, 1974, p. 51). 4. Em entrevista, Trisha Brown, ao ser perguntada por que teve interesse em fazer peças fora do estúdio, respondeu que estas eram fruto de uma observação

Outra estratégia de existência/criação bastante recorrente: a utilização de tarefas (tasks) como geradoras de movimento, com ênfase na justa energia de fazer (em contraposição a “fazer de conta”) e também a criação de jogos (games) com regras estritas (scores) para atuação - estes últimos também presentes nos workshops de Anna Halprin, na Califórnia.

continuada que ela vinha tendo nos jardins, ao levar seu filho, então bebê, para passear. E dessas observações surgiram o interesse em trabalhar com “equipamentos” e com o espaço das cidades. Aqui fica evidente como a estratégia de criação está intrincada a uma possibilidade de existência. Também podemos falar sobre as inúmeras reflexões de Yvonne Rainer com relação a uma “inadequação” em termos de movimento do que era proposto por Martha Graham e Merce Cunningham.

Estas estratégias são muitas vezes tidas como características da dança pós-moderna em oposição, uma “negação” do simbolismo8 proposto pela corrente antecessora - a dança moderna norte-americana -, “já” afastado por Merce Cunningham e agora levado ao extremo pelos pós-modernos. Será esta negação um sintoma de vontade de modernidade? Fica aqui uma pergunta.

5. Traçando uma correspondência com os ready-mades duchampianos. 6. Como é o caso da coreografia WALK de Steve Paxton. 7.Sendo alguns dos Early Works também apresentados em contextos de espaços fechados. 8. Aqui não me refiro à corrente simbolista, mas tão somente pelo fato de a dança moderna norte-americana se utilizar de símbolos, de alusões e metáforas como conteúdo ou tema de suas danças.

Nesta perspectiva, o que significa rever? As histórias das danças pós-modernas norte-americanas foram tecidas por diversos agentes e intricadas conexões, muitas vezes reduzidas sob o guarda-chuva da “dança pósmoderna americana”. Rever aqui significa abrir espaço para outras relações e serve para que nós (daqui, do outro lado do Equador) possamos nos posicionar mais simetricamente, procurando sinalizar coexistência e co-habitação com todas as suas contradições. Uma fala que quer se aproximar destas manifestações com olhar renovado e traçando conexões com o presente.

Referências bibliográficas BANES, Sally. Terpsichore in sneakers: post-modern dance. Weslean University. 2ª edição. Press, Middletown: 1987. BEY, Hakim. TAZ: Zona Autônoma temporária, Anarquismo Ontológico e Terrorismo Poético Coleção Baderna. Ano 2001. BURT, Ramsay. Judson Dance Theatre: Performative Traces. Ed. Routledge: 2006 CASTRO, Eduardo Viveiros de. Encontros. Ed. Beco do Azougue, Rio: 2007. FEBVRE, Michèle. Danse contemporaine et Théâtralité. Ed. Chiron, Paris: 1995. GINOT, Isabelle e MICHEL, Marcelle. La danse au Xxème siècle. 2ª edição. Ed. Larousse, Paris: 2008. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. DP&A Ed., Rio de Janeiro:

Além disso, mencionei, embora um tanto brevemente, o tropicalismo, outro exemplo bastante singular de resposta, à sua maneira, aos pedidos de transformação dos anos 60. Meu intuito foi o de colocar lado a lado outras histórias que aconteciam fora do contexto norte-americano e que também foram potentes respostas à sua época. A reapropriação tropicalista da antropofagia, em especial, foi uma alegre (no sentido espinosiano) resposta anti-colonialista.

2000. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Editora 34, Rio:1994. _______. Sur le culte des dieux fa(i)tiches. 2ª edição. Editora Les êmpecheurs de penser en rond/La Decouverte, Paris: 2008. PHELAN, Peggy. 13 Ways of Looking at Choreographing Writing. In: Peggy Phelan (Org.). Choreograph-ing history. Ed. Indiana University Press. Pols, M. 1990. RAINER, Yvonne. Works 1961-73. Ed.: Nova scotia College of Arte and Design, Halifax e New Yourk University Press, New York: 1974. RUIZ, Giselle. A dança de Graciela Figueroa junto ao grupo Coringa: propostas,

Aproximando tropicalismo de dança pós-moderna americana procuro dar camadas de espaços/tempos que podem ser revistas e delas sempre tirar outras coisas. Ainda um outro motivo me impulsiona a escrever tal texto: vivemos em uma época (em particular a partir da metade da década de 90) de proliferação de remakes, redoings, revisitações especialmente

concepção, coreografia. Dissertação de Mestrado. PPGAC/UNIRIO: 2005.

Filmografia Fita VHS Entrevista com Trisha Brown. American Dance Festival, 1994. DVD Entrevista com Yvonne Rainer. CND, Paris: 2004 DVD Early Works de Trisha Brown

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Anatomia de uma ‘des-cisão’ Permitir que algo aconteça, sem o imperativo da nossa vontade. Descolar o centro do sujeito para os acontecimentos. Propostas da Composição em Tempo Real, método desenvolvido pelo português João Fiadeiro Por Regina Paz e Thaís Gonçalves João Fiadeiro faz parte da geração de coreógrafos que surgiu no final dos anos 80. Boa parte de sua formação em dança foi feita em Lisboa, Nova Iorque e Berlim. Depois de dançar na Companhia de Dança de Lisboa e no Ballet Gulbenkian, em 1990 fundou a Companhia RE.AL. Com trabalho reconhecido na Europa e países como Canadá e Estados Unidos, além da América do Sul, dedica-se à investigação do método de Composição em Tempo Real. Aproveitando sua passagem pela Bienal Internacional de Dança do Ceará/De Par Em Par 2010, em uma residência artística e com a conferência Anatomia de uma decisão, João Fiadeiro fala de sua trajetória, anseios e questionamentos que o levaram ao desenvolvimento de seu modo de compor, no qual abandona a elaboração de coreografias em favor do que se dá num tempo presente. Junto nessa conversa, a antropóloga, poeta e performer carioca Fernanda Eugênio, que vem colaborando com o coreógrafo na sistematização de seu método. Em que consiste o seu método de composição em tempo real? João Fiadeiro – Se eu quisesse resumir o que ele é eu diria que se propõe a um deslocamento do centro do sujeito para o acontecimento. É um deslocamento muito simples, muito pequeno, com certeza, mas que muda tudo. O que teria acontecido a minha própria percepção do mundo, e a forma como eu penso e vivo o mundo, se eu tivesse privilegiado os acontecimentos e não o que eu acho, o que eu penso dos acontecimentos? O método propõe esse deslocamento, muito sutil, mas também radical ao ato de distensionar e por consequência ao ato de agir, ao ato de comunicar, ao ato de seguir, de criar comunidade. Qual foi o processo que te levou a essa mudança de percepção? João Fiadeiro – Eu tenho uma inquietação, um pouco como acontece com todas as pessoas. Eu pertencia a uma comunidade da dança que operava de um modo operário, muito ligado à modernidade, à dança moderna. Portanto ligada aos movimentos pré-Cunningham, à técnica, à ideia hierarquizada de primeiros bailarinos, de toda uma lógica da

dança clássica. Depois fui contra essa tribo e criei o oposto, que era rotativa, sem hierarquia. E o que simbolizou essa mudança radical foi o contato-improvisação. Isso foi nos anos 80, início dos anos 90. Tem a ver com a criação de uma alternativa ao modernismo. É onde não havia fronteiras, onde tudo é possível de certa forma, não existe só uma forma de fazer as coisas. Eu vivi isso intensamente. Eu criei anticorpos à ideia do espontâneo, à ideia do essencial e desse problema, que sei que é falso, entre razão e emoção. Encontrou um modo específico de trabalhar? João Fiadeiro – Eu fiz aquilo que chamo de engenharia reversa, que é também do fim pro início e comecei a trabalhar, fazer uma anatomia, uma cirurgia da própria decisão, da própria ação, o que se passa no interior da mente de uma pessoa quando a percepção do próprio corpo é confrontada com um ingrediente novo, quando a pessoa não sabe o que fazer, não tem muita resposta e começa a construir. O que acontece no diálogo entre você e você próprio, e depois o que acontece na relação entre você e os outros e na construção de uma ideia de comunidade. Depois como essa comunidade sobrevive à falta de líder ou à falta de ditador ou a falta de alguém que diga qual é o caminho. Como essa comunidade consegue conviver com a ideia de não saber o fim, de não ter um sentido. De estar aqui e aceitar que não tem que compreender tudo. Como este método age em relação ao impulso e à intenção? João Fiadeiro – O impulso está mais associado a uma questão biológica, que tem a ver com o “expresso” que é criado perante os desconhecidos, um reflexo que protege do perigo. Isso gera problemas graves, de preconceito, de fechar o mundo. Cada neurônio não sabe nada e não sabe o que está a pensar. E é no encontro, digamos nas sinapses, nos fluxos, que aparece essa coisa que é consciência. Então o método é uma forma de que, em emissão do impulso central, eu consiga ter uma leitura mínima e dar-me instrumentos para tomar uma decisão não porque tenho medo, mas porque se encaixa, porque adiciona algo. Parece ser uma resposta provisória, na qual não se trata de inventar uma fórmula alternativa, mas continuar o diálogo.

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Como viver junto, apresentação da residência de João Fiadeiro, na 2ª edição do Encontro Terceira Margem, na Bienal De Par Em Par 2010, em Fortaleza Fotos: Alex Hermes

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Intuição é o que eu diria que é a definição de liberdade, de ser responsável pelos meus atos, podendo escolher ao conhecer a situação. E intuição é aquilo que distingue. A prática desse método permite que o praticante adquira uma velocidade de reação e, portanto, ficamos no mesmo nível e ficamos protegidos contra o mundo que criamos, mas está sustentada na decisão ou na “des-cisão”, como diz a Fernanda (Eugênio). Fernanda Eugênio – A ideia de anatomia de uma decisão é justamente isso. A substituição do impulso pela intenção, anatomizar ou pormenorizar. E aí me pareceu que essa decisão é uma “des-cisão” no sentido de desfazer a cisão habitual entre razão e emoção, sujeito e acontecimento ou sujeito e o outro e o mundo, o paradigma entre sujeito e objeto. As pessoas se colocam a favor não do que elas desejam, mas do que a situação pede e isso muda completamente o conceito de criatividade. João Fiadeiro – É, ainda, quase decidir segundo o que não fazer, ou então decidir o que tirar. O que fica é a decisão. Mas eu não decidi aquilo que fica, eu só decidi aquilo que não entra. E também a “des-cisao” como o inverso da decisão. Aliás, uma mesma ação que acontece é de todas as pessoas que não fizeram nada, que decidiram não agir, porque caso agissem destruiriam a ação. Estamos a valorizar algo que só existe quando deixa uma marca visível. Eu tento privilegiar também que existe valor na decisão de não agir. E aqui voltamos à ideia de que o que fica é que é o resultado. É ter discernimento entre ser ator e observador do próprio ato e torná-lo princípios. Não é explicálos, é explicitá-los. Muitas vezes a explicitação é suficiente nesse trabalho, não precisa explicar, basta explicitar.

É assim que se constrói um sentido para uma cena? Fernanda Eugênio – Essa é a diferença. O sentido acontece no final, ele não é o ponto de partida. No geral, o nosso mundo está assentado na ideia de que o sentido é um pressuposto, entendido inclusive como significado. Imagina-se que as coisas têm sentido, elas querem dizer algo, existe algo por trás delas a ser revelado, o sentido já esta lá e a gente vai descobrir. Na composição em tempo real o sentido vai se fazendo pelo caminho. Não é um consenso. Ele é um comum fabricado por todos juntos. A explicação está muito cativa daquele modelo em que a verdade está pressuposta. A explicitação é totalmente diferente porque a situação que se apresenta é uma espécie de convite ao encontro. Ela “tem” coisas e não ela “é” coisas. E uma vez que ela tem coisas, como se diz em português de Portugal, eu posso ir lá “ter com elas” e aí eu tenho um encontro. Quando a gente pergunta o que tem lá ao invés de o que é aquilo, é quase uma situação zero. Tudo existe, mas nada é ainda. João Fiadeiro – Aquilo será o que você fizer com o que tem lá. É dar ao talvez todo o direito de existir como espaço de permanência. De vez em quando o sim e o não são necessários, mas eu treino as pessoas para que só tenham o talvez. E aí a intuição é fundamental naquele momento em que temos que adiar, adiar, adiar até o momento que não é mais para adiar é para ativar. E nesse mundo da ativação temos que perceber como ativar, quando ativar e o que ativar. Como o trabalho criou as condições para um estado de prontidão, em que a intuição dá a perceber o timing exato da atualização, da efetuação de

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um gesto. Eu diria que as nossas ações são respostas de uma pergunta ainda não feita. E é no fim que surge a pergunta que vai encaixar todas as respostas que ainda não tinham pergunta. Talvez seja subverter a ideia de sentido prévio para o sentido como um ponto de chegada.

presente e é o eu no outro e é a relação com a abstração. Tudo não pode ser tudo, mas tudo está naquele todo que a gente está a olhar. O que querem dizer os desenhos de sua aula referentes às mudanças de centro e de plano?

E parar de coreografar pra você foi... João Fiadeiro – Foi inevitável. No sentido de que foi coerente com o processo em que estou. Na verdade a criação em dança trouxe muitos problemas a mim, pessoalmente. Com dança há o problema da “discussão”. Eu descubro uma coisa e aí tenho que discutir essa coisa e sinto já não estou a fazer nada do que eu queria fazer e sou obrigado a fazer. Depois vai-se com o espetáculo a outro teatro e eu fiz uma coisa pensando numa distância e a distância muda, tenho que fazer adaptações e isso pra mim é o fim. E tem outro problema: a peça. É preciso fazer a peça, tem que estar lá e meu corpo já não quer estar lá, mas tem que continuar a estar. E isso não acontece há cinco anos comigo. Eu estreio peças depois não quero mais ter que pensar nelas. Este corpo tem que estar a transitar por todo lado. Pra mim é muito mais útil estar nesse terreno onde estou a trabalhar, de composição em tempo real. O fato de ser o corpo, de ser presente, de ser único. O meu trabalho é de um paradoxo, depende do abandono das imagens. O máximo que fica é um documento, uma filmagem e mesmo assim fica lá pra arquivo, ou para discussão pedagógica. Mas o pressuposto é de que nada fica. Agora, se outros quiserem trabalhar, aí é com eles. E isso foi uma coisa que eu aprendi a conquistar, eu tinha muito pavor de perder as coisas. A dança pra mim é o corpo

João Fiadeiro – Uma mudança de centro seriam as várias mudanças nos assuntos nessa conversa. Nós permanecemos no mesmo plano de relação, mudamos o centro do foco. O método propõe que uma vez encontrado um plano de trabalho o objetivo é alimentá-lo. Você faz uma pergunta e eu respondo, vamos até o fim da pergunta, até esgotar a resposta. Então mudamos o centro para uma outra pergunta, tudo no mesmo plano. A proposta é resistir à tentação de mudar o plano. As pessoas têm muita dificuldade de alimentar um plano. Nós somos confrontados por sinais que nos chamam a mudar. Eu proponho um olhar crítico sobre os sinais. E isso só a experiência te dá. Vou até um limite. É a forma como este método é transversal e como se posiciona diferente de outras metodologias. Aliás, temos cuidado de não chamar método, mas sistema, prática. Eu não o inventei. Não há uma invenção. Galileu não inventou, explicitou de um ponto de vista diferente. O que eu adiciono é que eu estou só a explicitar um modo de expressão que já está em nós, só que não ativamos. Isso tem uma força enorme. Esse método só explicita na prática. Todo o resto são tentativas fracassadas de explicar. + Informações AND_Lab - Anthropology 'n' Dance and-lab.blogspot.com

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Graduação: novas configurações em dança Bom momento para a formação em dança nas universidades brasileiras. Até 2000, eram 7 instituições. Onze anos depois já são 25. Entre elas, a Universidade Federal do Ceará, que iniciou suas aulas em fevereiro de 2011, a partir da mobilização dos profissionais da área no Estado. Qual a potência da dança no âmbito universitário? Por Angélica Feitosa e Thaís Gonçalves

A presença da dança nos cursos superiores vem se proliferando pelo Brasil. Vinte e oito anos separam a primeira graduação em dança, implantada na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 1956, e a segunda iniciativa, em 1984, na Faculdade de Artes do Paraná (FAP), instituição pública estadual, sediada em Curitiba. Até o ano 2000, eram 7 as universidades a oferecerem 6 cursos de Licenciatura e 5 de Bacharelado, somando 11 cursos. Conforme dados do Ministério da Educação (MEC), em 2011 o número de universidades com cursos de Dança chega a 25, as quais contam com 23 cursos de Licenciatura, 10 Bacharelados e um Tecnológico, totalizando 34 cursos. São 23 novos cursos criados apenas em uma década, sendo 13 apenas de Licenciatura – 11 delas em universidades públicas federais. O que essa vertiginosa ampliação de graduações em Dança, sobretudo nas instituições públicas, aponta sobre as novas configurações desta área artística no Brasil? Que papel tem a universidade na formação em dança? Que possibilidades são abertas com esta expansão? “A universidade tem um papel fundamental na área da dança que é lançar um olhar investigativo sobre o seu fazer artístico, sobre sua prática docente. A universidade colabora nessa construção de pensamento crítico, analítico, dando oportunidade de correlacionar sua prática a outros universos e contextos”, defende Lúcia Matos, professora da Escola de Dança da UFBA, que abordou o tema no Seminário Arte, Invenção e Experiências Formativas, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), em Fortaleza, em agosto de 2010. Participando do mesmo debate e coordenando os recémcriados cursos de Bacharelado e Licenciatura em Dança da

Universidade Federal do Ceará (UFC), Rosa Primo recorda que, em 1999, o departamento de Dança da Universidade Paris 8 (França) publicou a coleção de ensaios Danse et Utopie (Dança e Utopia), dedicando um debate em torno do papel das universidades de dança. “De acordo com Hubert Godard, na época coordenador do departamento, a universidade não deveria ter a responsabilidade de formar dançarinos ou mesmo professores de dança, mas sim a de articular uma reflexão, pesquisar sobre as práticas e, sobretudo, impulsionar questões”. Professora do curso de Dança da UniverCidade, do Rio de Janeiro, Silvia Soter entende que, para acontecer a formação na faculdade, o aluno já deve ter uma bagagem. “Acho tarde para alguém começar dança. O curso técnico, no momento do ensino médio é um momento mais propício”. No entanto, para tudo há exceções. Com reservas ao bailarino clássico, a professora lembra que há uma série de outros profissionais na dança contemporânea que iniciaram suas carreiras mais tarde e que conquistaram sucesso. Segundo ela, a universidade é um espaço de amadurecimento artístico e profissional. De acordo com Lúcia Matos, o Bacharelado vai colaborar para a formação desse profissional de uma forma mais investigativa, enquanto a Licenciatura lança, ainda, teorias e proposições diversificadas sobre o ensino artístico e educativo em dança. “Não é uma escola com uma formação e um direcionamento único. A universidade dá essa possibilidade de você ter um leque amplo de conhecimentos para que o aluno construa sua própria visão em termos de ação”. E assim como a formação profissional, independente da área, não pára e não se constitui apenas dentro dos muros da universidade, no caso da dança não é diferente. “Não se forma um bailarino em quatro anos, no sentido de se pensar

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A Universidade Federal do Ceará implantou a primeira graduação em Dança em instituição pública no Estado. As aulas tiveram início em fevereiro de 2011 com um ciclo de palestras com artistas, gestores e produtores em dança do Ceará Foto: Davi Pinheiro

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um “bailarino pronto”. Mas esse período é suficiente para sistematizar e articular um conjunto de conhecimentos e práticas que vão qualificar e ampliar as possibilidade dessa construção profissional”, argumenta Airton Tomazzoni, professor da Graduação em Dança, da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul/Fundarte e diretor do Centro Municipal de Dança da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

Artista da dança: redes de colaboração Segundo Airton Tomazzoni, a universidade não deve ser pensada como uma reunião de técnicas instrumentalizadoras, mas sim para formação de um artista de dança, que atue como criador e professor. “Para começar, a construção de um artista crítico quanto ao seu fazer e agir no mundo. E daí, não há como querer restringir a universidade a um “espaço teórico”, como gostam muitos. Para mim, o principal desafio é manter uma abertura permanente com a comunidade. A produção de conhecimento não pode ter o graduando como fim. Se esses saberes não circularem, não se confrontarem, não se nutrirem do e com o contexto onde atuam, a universidade correrá sempre o risco de ser um espaço inócuo e esvaziado”, pontua o professor. Para ele, é preciso destacar que a crescente presença da dança na universidade está possibilitando aprofundar modos de fazer e refletir que anteriormente pouco ou nunca se efetivavam, possibilitando articulações de saberes, mais espaços para pesquisa, experimentação, sistematização e difusão do conhecimento. Um espaço acadêmico que vem ajudando a fomentar redes de colaboração. “Destes fluxos profícuos, têm-se artistas já com uma trajetória, levando sua experiência para o espaço acadêmico, problematizando e socializando saberes. Têm-se acadêmicos se debruçando sobre o trabalho de criação de coreógrafos e grupos tradicionais como tema de suas pesquisas. Têm-se acadêmicos passando a fazer parte de tradicionais grupos e companhias ou formando seus próprios grupos ou iniciando carreira individual”. Enfim, professores e alunos das mais variadas experiências dançantes.

Pluralidade de pesquisas No Ministério da Educação, que regimenta a abertura de novos cursos, existe uma diretriz nacional que é bem maleável na forma de se estruturar as graduações. A flexibilidade é importante, segundo Lúcia Matos, para a construção de novas propostas curriculares. “Os 34 cursos de dança no Brasil têm perfis diferentes de atuação, sem a definição prévia de uma única linha de pesquisa no país. A organização particular de cada faculdade deve definir os rumos da pesquisa. Isso se relaciona muito com os contextos”, defende. Seguindo o fluxo de crescimento das universidades federais do Brasil, os cursos de Bacharelado e Licenciatura em Dança da UFC configuram-se por um currículo em movimento. Trata-se

de uma graduação que se percebe em relação direta com os profissionais em atuação no Ceará, cuja mobilização tornou real a existência da dança na universidade, a partir de um diálogo iniciado de modo mais contundente em 2009. Daí porque os alunos, na primeira semana de aula, foram apresentados a bailarinos, coreógrafos, gestores, artistas mobilizados no Fórum de Dança do Ceará e na Associação de Bailarinos, Coreógrafos e Professores de Dança (ProDança), bem como organizadores de festivais, como a Bienal Internacional de Dança do Ceará. Um curso criado, conforme Rosa Primo, “numa espécie de sensibilidade do tempo”. Um tempo de maturação pelo próprio coletivo da dança, assim como pela possibilidade da graduação estar vinculada ao Instituto de Cultura e Arte (ICA), criado em 2008, cujo pensamento é de articular áreas e contaminar-se de possibilidades que potencializem a arte e a cultura. “É difícil dizer o que nos diferencia. Não sei se é específico da UFC termos na Dança uma integralização curricular na qual 50% das disciplinas são obrigatórias e as outras 50% são disciplinas optativas e livres. É o aluno quem, de uma certa maneira, “vive seu currículo”. Há aí uma mobilidade e um pensar junto. Os cursos estão em conexão no ICA”, explica a coordenadora. Esse modo de integralização curricular permite que se o interesse do aluno for crítica de dança, ele faça uma graduação em Dança e algumas disciplinas em Jornalismo; se o interesse é vídeo-dança, pode cursar disciplinas no Cinema e Audiovisual; se figurino, no Design de Moda; e assim por diante, em relação à Filosofia, Publicidade e Propaganda, Gastronomia, Teatro e Educação Musical. A ideia é favorecer o trânsito entre cursos. Com esse modo de articular os saberes, o curso de Dança não nasce pronto. Vai sendo construído a partir dos professores e, claro, dos próprios alunos. “Sim, os desafios podem ser muitos. Contudo, vejo o ICA como um potencial em termos de pensamento no ensino superior. Cada vez mais me parece coerente apostar no desenvolvimento de projetos e linhas de pesquisa dentro da universidade, desde a graduação, tendo em vista a diluição da estrutura de disciplina fixa. Espero não algo fixo, mas em movimento, em conexões, ligações. O corpo dançante contemporâneo é um corpo em devir. Seja qual for a direção profissional desejada (ensino, criação, pesquisa, crítica,...) sua eficiência acontece na medida da plasticidade de suas relações”, analisa Rosa Primo. Desse modo, ela não enxerga de maneira negativa o surgimento do curso de Dança na UFC somente agora, 10 anos depois das primeiras maturações de ideias e uma série de ações, como os seminários sobre graduação em dança, realizados em 2001 e 2007, na Bienal de Dança do Ceará. “Trata-se mesmo de trazer à cena a temporalidade própria ao processo de construção da dança em Fortaleza e suas várias conexões com a contemporaneidade”, acrescenta.

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Aula aberta de Carlos Simioni, do Grupo Lume (Campinas/SP), para alunos de dança e teatro de Fortaleza, realizada em junho de 2011 no Teatro Universitário Paschoal Carlos Magno, numa parceria com o Curso Técnico em Dança (IACC/Secult/Senac) Foto: Júnior Panela

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Arte e ensino: percursos de formação Por onde começar uma formação em dança? No Ceará, alguns percursos possíveis estão sendo constituídos, que podem ser trilhados de modo independente ou como caminhos que se cruzam. Aulas nas escolas formais, curso técnico, projetos de extensão e especializações compõem essa rede formativa

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Aluno da segunda turma do Curso Técnico em Dança em ensaio para a Mostra Mova-se Foto: Alex Hermes

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Projeto Dançando na Escola

Curso Técnico em Dança

Foto: Divulgação/Vila das Artes

Foto: Alex Hermes

Há tempos dançar deixou de ser sinônimo de mexer o corpo de forma harmoniosa ao som de uma música. Para acompanhar as mudanças no modo de fazer, pensar e ensinar dança a formação, em diferentes níveis e abordagens, passou a ser um dos focos principais de interesse dos artistas no Ceará. O primeiro contorno desse entendimento da dança em sua pluralidade foi dado em um seminário da I Bienal de Dança do Ceará, em 1997, quando os artistas decidiram colocar em suspenso a criação de uma companhia estatal para implementar o Colégio de Dança. Um ano depois, este desejo tornava-se realidade no Instituto Dragão do Mar, mantido pela Secretaria da Cultura do Ceará, numa parceria com a Fundação Nacional de Artes (Funarte). O Colégio formou, entre 1999 e 2002, bailarinos, coreógrafos e professores de dança, com aulas modulares de professores e artistas brasileiros, de diferentes formações. Extinto, o Colégio deixou sua marca: não havia mais como prosseguir dançando sem rever conceitos, técnicas, métodos, abordagens, modos de criar, compor e pensar a dança. Do ensino formal às especializações, uma rede vem se compondo para potencializar a dança, em seus diferentes modos de ação.

Dançando na Escola Para que os alunos das escolas formais se contaminassem dessas diferentes abordagens, a Escola Pública de Dança da Vila das Artes/Prefeitura de Fortaleza desenvolveu o projeto Dançando na Escola. Iniciado com uma consultoria da artista e educadora Isabel Marques, junto aos profissionais envolvidos, a partir de setembro de 2008 professores de dança estão presentes em 20 escolas públicas municipais, ministrando aulas no contraturno escolar para um universo de 870 crianças de 5 a 12 anos, numa parceria entre as secretarias municipais de Cultura (Secultfor) e de Educação (SME).

Os anseios são diferentes, por isso a metodologia se distingue de sala para sala. O professor do projeto, Jorge Teixeira, traz suas experiências em musicais, em palco e na televisão, vivenciados no Rio de Janeiro. Ele diz ser preciso perceber a turma antes de escolher uma metodologia. “Com as crianças mais novas nós discutimos os assuntos antes e depois os desenvolvemos de uma maneira lúdica, já as mais velhas querem primeiro a prática e depois a teoria”, diz. Com estudos em Laban, Mônica Rêgo trabalha permanentemente a sensibilidade dos alunos para ampliar a consciência corporal, imprimindo neles o desejo de uma pesquisa artística a partir de temas variados. “Exploramos principalmente a percepção da arte enquanto expressão, seja ela subjetiva, coletiva ou simbólica. Trabalhamos também no foco da arte/dança enquanto linguagem, um expressar peculiar com seus elementos constituintes e também comuns a tantas outras expressões de arte”, explica. Para tornar esse projeto possível, a coordenadora do Dançando na Escola, Cláudia Pires, diz que a opção foi em criar proximidade com a concepção de dança trazida pelos alunos, abrindo um canal de diálogo para, assim, ampliar o universo de conhecimento deles. Uma negociação constante.

Formação Básica em Dança A diretora da Escola Dois de Dezembro, na Barra do Ceara, Maria do Socorro Cavalcanti, conta que houve uma seleção para fechar as turmas, pela enorme procura. Ela não vê a hora de encaminhar os alunos mais interessados em permanecer na dança para o Projeto de Formação Básica em Dança, uma segunda etapa do Dançando na Escola. Sobre isso, Cláudia Pires revela ser uma formação oferecida pela Escola de Dança da Vila das Artes priorizando vagas para alunos da escola pública municipal, a ser implantado em momento oportuno.

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Curso Técnico em Dança

Dança e Pensamento

Foto: Alex Hermes

Foto: Divulgação/Vila das Artes

A secretária de cultura de Fortaleza, Fátima Mesquita, diz que o conhecimento escolar e o mundo estão presos a um modelo que aposta em raciocínios lineares, não questionáveis e desconectado da cultura e da arte. Ela defende essa aproximação como um importante foco de política pública. E, ainda que estes alunos não se tornem dançarinos por profissão, ela diz que “esse projeto contribui para a formação de novas subjetividades e para uma compreensão da dança em seu aspecto artístico”.

Curso Técnico em Dança Se já pudéssemos pensar em uma continuidade à ideia lançada pelo Dançando na Escola e pelo futuro projeto de Formação Básica em Dança, as crianças e adolescentes que seguirem nesse desejo têm ainda um modo de permanecerem na dança. Ao concluírem o ensino médio, podem se matricular no Curso Técnico em Dança (CTD), com formação certificada pelo Senac, numa parceria com o Instituto de Arte e Cultura do Ceará (IACC) e Secretaria da Cultura do Estado (Secult), o que permite a oferta de vagas gratuitas. Inicialmente retomando ações que ficaram esvaziadas com a extinção do Colégio de Dança, em 2002, o CTD foi implantado em 2005 com um diferencial: uma formação em dois anos para intérpretes-criadores e a certificação profissional de nível técnico reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC), com projeto pedagógico aprovado no Conselho de Educação do Ceará. Um curso com carga horária de 1.316 horas-aulas, divididas em aulas teóricas e práticas, estágio supervisionado e atividades complementares opcionais (ensaios abertos, apresentação de performances, cursos, palestras). Entre a organização curricular estão aulas de História da Dança, História da Arte, Estética, Crítica em Dança, Composição Coreográfica, Dança Contemporânea, Balé Clássico,

Cinesiologia, interface com outras linguagens artísticas, entre outras atividades. Atualmente o curso está na sua terceira turma. Nas duas primeiras formou 50 novos profissionais. Artistas que, conforme a coordenadora Andréa Bardawil, estão em grupos independentes; integrando grupos de dança profissionais já existentes; como professores, intérpretes e coreógrafos em produções temporárias, academias, escolas formais e projetos sociais; solicitados como coreógrafos e professores no interior do Estado. E, ainda, apresentando produções cênicas realizadas no CTD em diversos espaços da cidade. A grande maioria dos concludentes está inserida no mercado de trabalho da dança. Segundo Ernesto Gadelha, idealizador do curso e professor de balé, o papel de formar artistas da dança era delegado aos espaços privados, às academias de dança. “A formação das academias sempre teve um cunho tecnicista, formando no balé, no jazz, no sapateado. As academias adotam frequentemente o método da repetição. Mas é diferente quando o aluno reproduz e entende o que o corpo está fazendo. No curso, tudo o que é feito em sala é problematizado”. Também é objetivo do CTD despertar no aluno o desejo de fazer um curso de nível superior, aprofundando conhecimentos e tratando outras questões. Assim, um dos efeitos do curso é garantir a possibilidade de um artista viver da dança. “Com mais pessoas formadas o nível de discussão vai se elevando. Isso repercute na cena porque, no final, acabam se tornando formadores”, diz o professor. O bailarino Magno Pontes Batista Bandeira fez parte da segunda turma do CTD. “Passei a ter um novo olhar para a dança, para o que acontece no Estado, para as pessoas que atuam, para os lugares, os grupos, os editais. Foi muito bom para eu saber me colocar como bailarino, seja num palco,

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numa sala de aula, numa audição”. Ele lembra que chegou ao curso com várias restrições, pois não gostava de improvisar, de dançar sem música, de criar. Atualmente ele considera que suas aulas estão mais consistentes. A professora de dança Jamille Moraes, da segunda turma do CTD diz que aprendeu a unir disciplinas práticas e didáticas. “A gente recebia informações de todos os lados”. O espetáculo Como é sentir, produzido no CTD já participou de festivais e está em seu repertório. Entre os planos, seguir o trabalho com três colegas do curso. Abrindo trilhas para a formulação de um pensamento em dança, as pessoas interessadas em aprofundar questões, lançar discussões e investir esforços na articulação entre pensar e fazer tiveram um impulso a mais. Nos últimos anos três formações foram ofertadas em Fortaleza, a partir de iniciativas independentes entre si, nos níveis de extensão universitária e de especialização, incrementando a atuação profissional de artistas e professores de dança.

Dança e pensamento O curso de extensão Dança e Pensamento foi realizado, entre 2007 e 2009, por uma iniciativa da Vila das Artes em parceria com a Universidade Federal do Ceará (UFC). Ao todo foram 360 horas de aulas, divididas em 18 módulos, com professores de distintas formações e de reconhecida atuação no cenário nacional e internacional. Ernesto Gadelha, que coordena a Escola Pública de Dança da Vila das Artes, anuncia uma nova parceria com a UFC: o curso de especialização Dança, Corpo e Educação, sendo mais uma possibilidade de formação em dança e gratuita. Um passo adiante numa cidade onde a experiência com esta área acaba ficando na infância. Aluna desse curso de extensão, a bailarina e jornalista Amanda Queirós, assim como tantas, iniciou suas aulas em uma academia. “Não sei exatamente o que aconteceu no meio do caminho. Enquanto a maioria das pessoas abandona essa atividade na adolescência, eu acabei me apaixonando completamente por ela”. Amanda chegou a escrever em um website sobre balé clássico, no qual traduzia textos estrangeiros, e tratou da dança em sua monografia na graduação em Jornalismo. O intuito dela era suprir a falta de bibliografia nacional. “Nunca parei de dançar. Nos intervalos em que não pude fazer aulas, estava estudando ou escrevendo sobre o assunto. Hoje, sei que posso contribuir mais para a dança ao refletir e escrever sobre ela do que, propriamente, dançando”.

Especializações com foco no ensino Como não havia graduação em Dança no Ceará, diversos dançarinos migraram para cursos como Educação Física, Fisioterapia, Pedagogia, entre outras profissões, no intuito de garantirem uma formação universitária, porém sem a possibilidade de ampliar e aprofundar os estudos no seu foco

Alunos da primeira turma da graduação em Dança da Universidade Federal do Ceará Foto: Leonel Brum

principal de interesse. Contribuindo para diminuir de algum modo essa lacuna, duas instituições particulares de Fortaleza ofereceram, nos últimos anos, cursos de especialização com ênfase no ensino da dança. Os módulos do curso de Metodologia do ensino da dança, realizado pelas Faculdades Nordeste (Fanor), foi pensado para quebrar o paradigma de que a dança é apenas o movimento físico do corpo. O coordenador Flávio Wirtzbiki explica que o fluxograma foi estruturado para suprir a necessidade das pessoas que desejavam se engajar mais à fundo na dança, entendendo-a como arte e não apenas como prática corporal.

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“Eu via os meus alunos sentirem-se órfãos de um curso de dança, especialmente os alunos da Educação Física que buscavam algo diferenciado relativo à dança e não encontravam”. A especialização tem 360 horas, em módulos ministrados uma vez ao mês, a partir de 2009. A primeira turma contou com pessoas de outras cidades do Ceará, bem como de estados próximos, como Pernambuco e Maranhão. Preocupada em melhorar a atuação do docente em dança, seja em escolas formais ou espaços informais, a professora Patrícia Feitosa coordenou, na Faculdade Católica do Ceará/Marista,

a especialização em Dança-Educação, que ocorreu entre 2008 e 2010. “Era preciso alguma iniciativa, porque são restritas as políticas públicas em dança e até então não tínhamos uma graduação na área”, diz Patrícia. Segundo a coordenadora, o curso colaborou para que alguns de seus alunos tivessem uma melhor qualificação profissional em concursos públicos, bem como para ampliar a presença da dança numa percepção artística nos espaços de ensino, sejam formais ou informais. “Penso que agora com o curso superior no Ceará haverá outras pós-graduações e outras demandas”.

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Tempo de ensinar Passado, presente e futuro em fluxo, em atravessamentos. Isabel Marques traça relações entre ensino e aprendizagem de dança em diferentes e simultâneas temporalidades

Com um trabalho que alia dança e educação, Isabel Marques estabelece relações entre procedimentos artísticos e pedagógicos Foto: Fábio Brazil

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Passado, presente e futuro se atravessam e se entrelaçam nas relações de ensino e aprendizagem de dança. Não somente o “passado” do aluno, o “presente” da sala de aula ou ainda o “futuro” do país – que, continuam dizendo, está nas mãos dos jovens, ou seja, de nossos alunos. Concepções e vivências de tempo e de ensino não são lineares, implicam compreensão de entrelaçamentos constantes e de movimentos intensos entre arte, ensino e sociedade. As relações entre a arte da dança, seu ensino e o mundo em que vivemos se fazem “presente” em nossas salas de aula, seja ela em uma escola formal, na Academia de Dança, em Projetos Sociais e até mesmo nos bastidores de Companhias de Dança. As relações de ensino e aprendizagem se dão na eminência do tempo presente. As vivências do tempo presente se alimentam e ao mesmo tempo transformam o “passado”, projetando o “futuro”. É por isso que muitos autores dizem que hoje vivemos o presente perpétuo – são as relações no tempo presente que ressignificam os trânsitos entre passado e futuro, tornando-os presentes. No que tange aos processos de ensino e aprendizagem de dança, ao contrário disso, carregamos um histórico viver no tempo passado que sobrevive em função de idealizações de tempos futuros. É muito comum ainda em escolas de dança, por exemplo, passarmos o ano inteiro ensaiando coreografias que só farão sentido no fim do ano – no “futuro” – quando finalmente serão compartilhadas com o público. Muitas vezes, essas coreografias só ganham sentido por também carregarem o peso e o prestígio do “passado”. Tradicionalmente, erguemos arduamente em nossas salas de aula de dança pontes entre o passado (a coreografia consagrada) e o futuro (o reconhecimento desse passado na apresentação futura com o público). No entanto, constantemente ignoramos o presente de nossos alunos, os processos diários por que passam nesse incorporar do passado e projeção do futuro a que tanto almejamos em nossas práticas pedagógicas. Nesse voo direto de passado para futuro, que não aterrisa no presente, corremos o risco de contribuir para a formação de dançantes que tampouco têm noção da constituição, da reprodução e das potencialidades criativas e sociais de seus corpos que se dão, necessariamente, nas vivências de tempo presente. São comuns também as práticas de ensino de dança que, ao contrário disso, ignoram o passado (as construções históricas) e se quer vislumbram um futuro (os compromissos com a construção dessas histórias): em geral essas são aulas

de percepção e sensação do eu, de jogos criativos individuais supostamente neutros de qualquer vínculo com a historicidade de cada corpo presente. Nesses casos extremos, nos deparamos com aulas de dança centradas nos umbigos de quem dança e de quem propõe danças, ou seja, centradas no isolamento das propostas artisticopedagógicas no seio das relações sociais. Ao ignorarmos o passado e o futuro que atravessam nossos corpos em nossas salas de aula de dança, tendemos também a educar dançantes que neutralizam a construção de suas práticas sociais. Educaremos dançantes que se vislumbram em sociedade somente em função de si mesmos, de uma plataforma hedonista, incapazes de criar redes de relações significativas entre a dança e a sociedade. Um dos maiores desafios para o ensino de dança hoje, creio, é justamente perceber, compreender e viver nas práticas artísticas de sala de aula de dança – sejam elas aulas de técnica, repertório, improvisação ou composição – os atravessamentos de vivências de tempos passados, presentes e futuros. Seria interessante sermos capazes, como professores, de sugerir a nossos alunos visitações aos passados que estão inseridos em seus corpos – passados recentes e pessoais, passados históricos e conceituais – para que possam alimentar e viver o presente, para que possam projetar seus futuros. A projeção do futuro, o ato de pensar ações futuras, não implica necessariamente suprimir o presente. Ao contrário disso, a projeção futura deveria interferir nas ações presentes, modificando-as constantemente, reestruturando os próprios projetos futuros. Um exemplo bem simples pode ser a realização de uma apresentação, de um espetáculo. Essa projeção futura (o espetáculo) trará necessidades presentes de preparo corporal, de pesquisa, de relações com outros profissionais etc. No decorrer desses processos presentes, o projeto inicial (antes “futuro”) certamente terá sido alterado, gerando outras necessidades presentes que se alimentarão de novos passados. O circuito passado-presente-futuro em processos de ensino e aprendizagem de dança, creio, possibilitará também outras interfaces com as vivências passadas, presentes e futuras de nossos alunos em sociedade. O fluxo de diálogos sociais, por sua vez, por meio das práticas corporais, poderá criar novas redes de relações temporais em sala de aula de dança, fazendo com que as potencialidades da dança na educação/sociedade estejam sempre em constante renovação.

DICA DE LIVRO

Linguagem da dança: arte e ensino Isabel A. Marques São Paulo Digitexto 2010 - 240 págs

Isabel Marques Doutora em Educação pela USP, diretora do Caleidos Cia. de Dança e do Instituto Caleidos/SP. Autora dos livros Ensino de Dança Hoje, Dançando na Escola e Linguagem da dança: arte e ensino. Contato: caleidos@caleidos.com.br

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Le parkour: dançando com a cidade Ao produzir uma proximidade do corpo com o meio urbano, com a superação de obstáculos arquitetônicos da cidade, o Le parkour tem provocado interesse nos dançarinos em sua criação artística Por Lucinthya Gomes

A rua é o cenário. Os obstáculos não limitam, nem oprimem. Definitivamente, não representam o fim da linha. Ao contrário, são o percurso para o corpo experimentar. Os praticantes de Le parkour (do francês, “o percurso”) interagem com a arquitetura das cidades e atraem olhares curiosos para um espetáculo que manifesta uma íntima relação do corpo com o meio urbano. Os movimentos são realizados com precisão e agilidade, como se expressassem uma vontade de subverter, superar os limites e – literalmente – alçar voos cada vez mais altos. Não por acaso, o Le parkour tem inspirado as artes. Para além dos filmes, que já impressionaram multidões nos cinemas com cenas de fuga e perseguição por meio das técnicas, Le parkour tem provocado também dançarinos a explorarem a relação do corpo com a cidade. Quem gosta de aventura e superação pode até percebê-lo apenas como aventura e superação de obstáculos. Porém há quem lance um olhar para a prática como forma de não somente provar habilidades, testar limites, mas, sim, fazer desta superação uma criação artística. No entanto, como ir além do exercício e atingir o estatuto de arte? Para a bailarina contemporânea Aspásia Mariana, que tem formação técnica em sapateado, a semelhança entre Le parkour e dança está na possibilidade da relação com o espaço, mais especificamente o espaço físico, que determina um estar, um onde e um como. “É esporte podendo virar dança a partir de pesquisa de linguagens. A dança contemporânea é aberta a esse tipo de investigação, por não ser uma técnica e sim um campo de possibilidades”, argumenta. Para ela, é uma

experiência de habitar os espaços fornecidos pela arquitetura da cidade, através da prática corpórea, procurando alcançar obstáculos cada vez maiores. Aspásia defende ainda que as potencialidades artísticas entre dança e Le parkour são infinitas. “Acho que o desafio está na criação de diálogo, na consistência do que pode existir no projeto em dança a partir da junção, ou aproximação que possa ser estabelecida. Uma forma híbrida, em que os dois perdem alguma coisa da sua especificidade em prol da criação de uma outra coisa”, defende. Sendo assim, ela acredita que dançarinos podem fazer aquilo que quiserem usando movimentos do Le parkour em favor de um projeto em dança. O contato de Aspásia com o esporte foi rápido, em um dos módulos do Curso Técnico em Dança (Secult/IACC/Senac), por meio do professor, coreógrafo e bailarino, Vanilton Lakka. Experiência vivenciada também pelo colega de curso, o ator, performer e bailarino, Luiz Otávio Queiroz. Era a primeira semana de 2010. O entorno do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura virou cenário para os alunos do curso experimentarem exercícios do Le parkour. “De repente, o Vanilton Lakka colocou nossos corpos num outro espaço, que não era a sala, era o entorno do Dragão”. Foram exercícios leves, explica Luiz Otávio, pois Le parkour exige um grande preparo físico. “Você precisa de velocidade, habilidade, consciência de espaço e do corpo para fazer determinados movimentos. Para nós, da dança, ver o corpo em outro espaço demanda atenção. O primeiro comando é de

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atentar para o espaço”. Para ele, levar Le parkour para um teatro desafia os dançarinos. “Como a gente põe um treinamento físico numa composição cênica? Como trazer algo da rua, que tem tantos elementos, e transformar num espetáculo?”, inquieta-se. Para ele, trata-se de uma atividade que exige consciência corporal, de espaço e explosão. “Uma coisa é estar em sala de aula. Outra coisa é sair de sala, se ver diante de desafios e depois trazer para sala de aula. É abrir o corpo para novas experiências”. A sensação de realizar os movimentos, na opinião dele, é interessante. “Normalmente, a gente utiliza o espaço urbano de outro jeito. É como quebrar o cotidiano, buscar outras maneiras de usá-lo. Para nós, da dança, é como descobrir outras formas de se relacionar com o espaço”, analisa, acrescentando, ainda, que é uma oportunidade de conhecer o próprio corpo, saber como ele reage, como lida com os estímulos. É como um grupo de letonianos que praticam Le parkour e dançam. Num vídeo que circula pela internet (http:// oventilador.org/2009/09/out-of-time-danca-acrobacias-eparkour/), eles intercalam voos e movimentos de Le parkour, que os levam a saltar de um prédio a outro ou fazer uso diferenciado de um parque, com dança, brincando de giros e piruetas, ensaiando um street dance, hip hop ou breake. É como se todas as barreiras, estruturas e obstáculos pelo caminho não atrapalhassem em nada a vontade de dançar, expressar e percorrer a cidade.

Le parkour no cinema Assista a algumas cenas: - No filme 13º distrito www.districtb13.com - No filme 007 – Casino Royale www.youtube.com/watch?v=ea-bJySvcjI - No filme Ultimato Bourne www.youtube.com/watch?v=UdguHHhyjHo

Fotos: Alex Hermes

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Um olhar sobre a cidade na formação em dança Vivenciar, praticar, experimentar praças, parques e ruas, em suas estruturas. Vanilton Lakka discorre sobre os modos e os tempos nos quais um corpo pode habitar o espaço urbano É perceptível na atual conjuntura da dança uma atenção especial para as suas possíveis relações com as cidades, o que fica evidente no número de criadores, oficinas, projetos, residências, festivais e até programas de Estado como editais específicos que se propõe a pensar nestas possibilidades. Os resultados da interação entre dança e cidade, assim como corpo e cidade, têm sido inúmeros, dentre eles destacam-se propostas que apresentam uma aproximação com a Arte Conceitual via Artes Visuais com referência ao histórico da Performance Art e do Happening. Outra forma de aproximação frequente tem sido a presença em produções de Dança Contemporânea de criadores e intérpretes com formação nos universos da cultura Hip Hop e do Le parkour. Entendendo que as discussões a respeito da temática ArteCidade até o momento têm se concentrado em questões de formatação de obra, ou seja, independentemente do discurso apresentado priorizar o produto ou o processo, o fato é que nenhuma das duas perspectivas têm se mostrado interessada em questões referentes à formação do criador e intérprete em uma conexão direta com o complexo ArteCidade-Corpo-Dança. Sendo assim, tem emergido questões que pontuo a seguir. Considerando que a maioria dos intérpretes em Dança Contemporânea possuem formação em sistemas técnicos como o Balé Clássico, técnicas de Dança Moderna, Contact Improvisation, Release Technique e com apoio em conhecimentos como Yoga e metodologias de Educação Somática, como este

Vanilton Lakka Mestrando em Artes no PPGArtes-UFU-MG. Intérprete e criador em dança, com carreira solo e integrante da Cia. Mário Nascimento. Apresentou-se e ministrou oficinas no Brasil e em países da America Latina, Europa e África.

corpo irá se relacionar com a cidade? Que relações ele é capaz de propor? Qual sistema técnico corporal seria adequado à formação de intérpretes na contemporaneidade considerando as características das produções atuais? Que contribuições a proximidade com sistemas técnicos como o B.boying e Le parkour podem trazer à formação do intérprete e criador?

Usos da cidade As manifestações culturais B.boying (uma das danças que compõe a cultura Hip Hop) e Le parkour apresentam uma relativa proximidade no que se refere a aspectos históricos, estruturais e sociais. O Hip Hop surgiu no final da década de 60 e início de 70, nos Estados Unidos, na periferia de Nova Iorque, enquanto Le parkour tem seus primeiros registros na década de 80 no subúrbio de Lisses, ao sul de Paris, na França. Constituem-se em culturas resultantes de movimentos de imigração, de periferias de grandes centros, com predominância juvenil, com forte presença masculina e com interação direta entre corpo e espaço sem mediação de objetos como o skate, patins ou bicicleta como acontece em esportes radicais de cunho urbano. As duas manifestações surgem como uma resposta/ consequência à falta de alternativas de lazer, esporte e cultura em grandes centros, ou seja, ausência do Estado e de políticas públicas. O B.boying resulta da socialização dos jovens participantes de gangues em grandes festas de rua realizadas no Bronx e Le parkour da interação de jovens com características arquitetônicas do seu entorno. O B.boying produziu um tipo de prática (técnica) adaptada a pequenos e quaisquer espaços onde a roda se configurava, enquanto Le parkour formatou mecanismos técnicos capazes de possibilitar a transposição dos obstáculos eleitos por seus praticantes na paisagem da cidade. Por fim interessa perceber que o Le parkour e o B.boying são resultantes da organização da cidade, refletindo questões de uma arquitetura física, mas também uma arquitetura social.

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Dessa forma a sua elaboração se dá devido aos usos da cidade feita pelas comunidades que a gestaram, resultando em formas de habitar a cidade.

FormAção A cidade molda o aparato sensorial do corpo interferindo diretamente em nossa forma de percepção do meio e como consequência, a forma de interação entre os indivíduos, determinando em grande medida o modo como ouvimos, como sentimos uns aos outros, nos tocando ou nos distanciando, além de moldar nosso tempo de reação aos estímulos. As cidades modernas são herdeiras de uma concepção que tem nos levado a uma apatia sensorial, pois elas são fundadas em uma perspectiva que privilegia a visão em detrimento dos outros sentidos, de modo a limitar a experiência corporal de seus habitantes, sendo assim percebemos a cidade como uma passagem e não como um espaço a ser vivenciado, experimentado. Padrões corporais presentes em manifestações como B.boying e Le parkour emergem de contextos marcados pela precariedade e de usos da cidade que, mesmo involuntariamente, subvertem o planejamento original do urbano, atualizando-o na prática diária do cotidiano, qualificando o projeto elaborado inicialmente por arquitetos e urbanistas. A formação em dança reflete em grande medida a organização da sociedade e seus preceitos de aproximação entre corpo e espaço; dessa forma é compreensível que os currículos de dança prevejam a maioria de suas atividades em espaços de sala que guardam como características a inexistência de obstáculos, a simetria de paredes e ângulos assim como um chão com textura única. Por fim, o modelo de espaço de formação e a maneira na qual ele é usado guarda muitos resquícios do palco italiano e o uso da cena na qual ele prevê. No entanto, a dança no último século se expandiu em várias direções e as possibilidades de encenação em espaços outros que não o palco italiano exige uma formação que traga respostas a essa demanda.

Sugestões para a cidade habitar o corpo

a cidade como um ambiente formador. A partir da ideia/ conceito Habitar a Cidade encontrada em Michel de Certeau, eu tenho explorado relações entre a experiência da cidade e o impacto na formação do intérprete em Artes Cênicas através da observação e reflexão dos binômios Cidade e Corpo. No entanto, não se trata de ensinar movimentos do B.boying e do Le parkour aos alunos, mas sim de avaliar a maneira na qual as comunidades gestoras destas manifestações se relacionam com o espaço urbano. A ideia de habitar a cidade ganhou força durante o processo de leitura e de aplicação de aulas, residências e oficinas por cidades como Fortaleza (CE), São Luiz (MA), Uberlândia (MG), Salvador (BA) e Manazanillo (Cuba). O procedimento utilizado é o de vivenciar a cidade, praticar na cidade, estar na cidade, nas praças, parques e outras estruturas urbanas, enfim experienciar o urbano. Nesse sentido, tenho agido deslocando mecanismos metodológicos tais como improvisações, jogos, experimentações, e sequências fechadas - geralmente realizadas em sala de aula - para o ambiente urbano, entendendo que a exploração de volumes, texturas, assim como obstáculos e o próprio tempo da cidade contribuirão com a construção do corpo destes intérpretes e criadores. A compreensão de técnica corporal que sustenta a pesquisa entende que o corpo do intérprete não absorve a cidade ou o sistema técnico proposto, seja ele qual for, mas dialoga com ambos os ambientes, contribuindo com sua constante autoorganização. Portanto, não é uma relação na qual a cidade é ativa e o corpo passivo, mas sim uma relação de negociação constante entre o corpo e a cidade. E, da mesma forma, a técnica não é entendida como uma roupa que se coloca no corpo. Objetiva-se avançar na elaboração de uma proposta de formação em que se supere a relação cenográfica com a cidade, avançando na direção de um corpo que cheire, tateie e escute a cidade. Foto: Tiago Lima

Referências bibliográficas JACQUES, P. B.. Elogio aos Errantes. In: JEUDY, H. Pierre e JACQUES, P. B. (Orgs.) Corpos e Cenários Urbanos – Territórios Urbanos e Políticas Culturais. Salvador: EDUFBA/PPGAU-UFBA, 2006. NUNES, S. M. O Corpo do Ator em Ação. In: AMORIM, Cláudia e GREINER, Chris-

Atualmente realizo pesquisa no PPGArtes na UFU (Universidade Federal de Uberlândia) na qual o objetivo é a elaboração de uma proposta de formação que considere

tine (Orgs.). Leituras do Corpo. São Paulo: Annablume, 2003. SENNET, Richard. Carne e Pedra: O Corpo é a Cidade na Civilização Ocidental. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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Poesia: Presente! Por Fábio Brazil

Poeta, professor de Literatura e História da Arte, produtor cultural. Dirige o Instituto Caleidos e é co-diretor, com Isabel Marques, do Caleidos Cia. de Dança. Ministrou cursos sobre as interfaces entre as linguagens da Poesia e da Dança. Criou e atua como intérprete-criador da performance interativa Poesia: Presente! Alguns destes poemas compõem esta seção.

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Aspásia Mariana é alguém dançante. Dança aqui, dança acolá. E sobre Carlos: www.aspasiamariana.blogspot.com

Carlos, querido Hoje te escrevo cheia de motivos e estou aqui para compartilhar, afinal já conquistamos esse costume do diálogo. Você de lá e eu de cá. Desta vez venho falar sobre uma experiência vivida em dois mil e nove quando tive a sorte de estar perto de um encontro que antecedeu a semana de realização da Bienal Internacional de Dança e que fora acolhido pela mesma em parceria com o dança em foco, o Festival Internacional de Vídeo & Dança. Aconteceu, aqui, em Fortaleza, na semana de 13 a 17 de outubro o III Fórum Latino Americano de Vídeodança e por estar por perto, por ter recebido a oportunidade de estar perto, lembrava a cada segundo da frase que li, em algum livro, dita por um mestre de Reisado quando o Jornalista insistia em perguntar sobre como acontecia ‘aquela’ brincadeira. O Mestre disse: O senhor escute o senhor aprenda! Foi o que fiz. Olhos e ouvidos atentos! Foram encontros que começavam no café da manhã, continuavam no trajeto para o auditório do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, ou seja, dentro do transporte, e ali, os bancos se transformavam em palco para conversas sobre vídeo, dança, corpo e imagem ou corpoimagem, esses eram sempre os protagonistas. Caminhávamos, Carlos, para o almoço com a permanência do diálogo, da vontade de troca, do cultivo em afetar e ser afetado. E eu por ali, de guia-anjo daquele mundaréu de gente, com a imaginação solta observava aquele lugar que eu me encontrava e me imaginava como alguém que estava fazendo parte da Távola Redonda. Aquelas pessoas estavam ali, construindo juntos, pensando, discordando, sobre como, sobre quem, sobre o porquê, sobre formas possíveis de fomento dessa linguagem ou dessa busca de criação / pesquisa de linguagem ou até mesmo sabendo como o outro pensa cria elabora dança. Para eles a ordem era: Provocar a partir da imagem – lançar – gerar sentidos...

México, Uruguai, Cuba, Paraguai, Chile, Brasil, Argentina, Colômbia, Equador, França, Estados Unidos e Portugal, reunidos na ‘minha casa’. Saiba, Carlos, que pra você, revelo a minha alegria e reforço a certeza de que para mim foi uma honra estar por perto. Pegar café, conectar o computador, estar próxima da transmissão através do MaPA D2, a plataforma criada por Ivani Santana, operar a câmera, captar imagens, upar em tempo real e partilhar com os usuários do movimiento.org as informações colhidas nas reuniões, naquele instante. Carlos era a dança que eu queria estar dançando. E te conto mais: em uma semana inseri no corpo o que levaria, normalmente, dez anos. Curiosidade descobertas.

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condicionamento

básico

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novas

Novas descobertas - responsáveis por crises de um não saber onde se está. Nunca escondi minha afinidade pelo assunto: tecnologia. E lá estava essa pessoa que te escreve, inserida naquele meio onde a dança é pensada na relação proximal com as tecnologias. Compreender o tempo do hoje, as mudanças do hoje, visíveis, perceptíveis. Essas mudanças acontecem e negar é tapar os olhos pro que está inserido no corpohoje. Essas mudanças acontecem e continuam acontecendo nesse momento... nesse momento...nesse momento...e nesse...e nesse...e permanecem e antecedem o hoje. O agora. Um processo que não é estático. Nossas identidades não são feitas simplesmente de heranças genéticas e culturais, mas através do que temos praticado como nos transformamos, com os cruzamentos, como nos comportamos, a forma como sentamos à mesa, como penteamos o cabelo, como nos relacionamos com o outro e por aí vai. O corpo deixa de ser forma passando a ser um campo de formações. Ou corpoformador? Querido Carlos, fala-se de tecnologia ou/e de novas tecnologias, mas esquecemos ou não sabemos que esse termo ou as relações existentes entre corpo e tecnologias antecede a era computacional e vai além dos computadores.

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Conhece Giselle, Carlos? Pois esse ballet interagiu com a iluminação reforçando a ideia entre dança e tecnologia e isso aconteceu antes da era da informática. Eles se utilizaram de recursos tecnológicos de cenário e iluminação para diferenciar os tempos (dia e noite) e os atos (branco e escuro). E Loïe Fuller? Não venha me dizer que não lembra pois, sobre ela, já conversamos, diversas vezes. Ela, atriz, bailarina investigou a relação com as tecnologias através do uso da luz e nesse processo ela fez o uso da iluminação no corpo, criando entre corpo e luz, um diálogo, uma dança diálogo, juntos, em composição, sem se limitar a luz com uma definição atmosférica no espaço, mas como objeto de quem dança junto. E esse termo, novas tecnologias? É um termo que já vem acontecendo há algum tempo, é uma continuação de um processo de mediatização que já estava em andamento desde antes de sabermos da existência do Playstation! Merce Cunningham que o diga! E falando nele, em 2004 ele nos diz o seguinte: ‘A velocidade de mudanças tecnológicas está mudando as nossas vidas. Não é tanto uma revolução. É mais uma extensão de nossa relação com o tempo presente. E que mudanças seriam essas? Nosso presente é alterado quando vivemos de imediatismos e não num sentido ruim, mas quando esse imediato modifica nossas relações rompendo e modificando o tempo. Modificando nossas relações individuais e coletivas. Porque não dizer culturais? Essas alterações modificaram a forma como o homem via o mundo e sua relação com a dança. Ganhamos um parceiro, Carlos, uma extensão. Extensão! Como gosto dessa palavra. Ela é querida para quem trabalha com mediação tecnológica. Tenho me encontrado muito com esse termo e percebo o quanto de verdade ela traz embutida. Como o uso que fazemos torna-se uma extensão do nosso corpo? E como criamos corpos outros?

de ser vistos? É possível pensar numa dramaturgia através dessa relação? É interessante pensarmos em como estabelecer uma relação de troca com a interatividade. O que a tecnologia pode me dar e o que posso dar? Temos muito para dar e muito para receber. Não estou falando de um fim, mas de um meio. No que a dança, Carlos, aliada às novas tecnologias vai possibilitar enquanto potência de pesquisa de linguagem a partir do encontro. E a potencialidade que a tecnologia digital nos traz para além do que nos é convencional? Páginas de relacionamento como o dance-tech, movimento.org e a plataforma rhiz.eu, nos proporciona possibilidades de encontros, de parcerias com outros pesquisadores, de começar uma discussão em dança ou dar continuidade a uma já existente, conhecer o trabalho que está sendo realizado em outros países, romper fronteiras e ampliar nosso conhecimento de mundo. Através de reuniões em tempo real, troca de e-mails, mensagens instantâneas, etc criamos. Marcamos reuniões, criamos coreografias pensadas para a web, estabelecemos outro tempo, uma poética outra do diálogo. Da espera, do encontro. Pesquisamos movimentos através de softwares, distendemos o corpo, diferente do que é extender para o corpo biológico. Democratizar a captura de movimentos abrirá novas perspectivas também, para o ensino da dança. Não existe perigo nem bicho de sete cabeças na relação desses corpos. Não existe vilão ou mocinho. O perigo seria habitar o lugar do não questionar que essas novas mídias comportam na relação com a dança e para a dança. A existência de uma dança em interação com as tecnologias da era digital deixa de ser uma nova estética de arte para ser o reflexo estético da própria evolução. E viva a simbiose com as novas tecnologias! Querido, para finalizar, estou extremamente otimista quando penso que somos infinitos enquanto possibilidades. E sobre o que apre(e)ndi no encontro:

Existe uma demanda de criação com os Boddypokes (avatares) que invadiu a web. Aqueles ‘bonequinhos’ são extensões do ‘nós’. Como queremos ser? Como gostaríamos

É não insistir na certeza de que fronteiras são caminhos impossíveis de ultrapassar.

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Dança e Tecnologia Uma relacão, há não muito tempo, vista com desconfiança por artistas que temiam o desaparecimento do corpo. As experiências se proliferam. Os questionamentos insistem: que possibilidades existem neste diálogo? Por Mônica Lucas Espaços físicos e virtuais configuram-se e reconfiguram-se a todo instante. A cada momento novos encontros são propiciados. Artistas, pesquisadores e professores ao redor do mundo seguem produzindo e inquietando-se com as potencialidades artísticas que emergem do diálogo entre dança e tecnologia. O que há de instigante a se pensar sobre essa não tão nova relação?

se referir à “dança com mediação tecnológica”. Um modo de apontar a criação voltada para a relação sem hierarquias entre dança e tecnologia e sem a limitação de uma ênfase centrada no homem-máquina, conforme os estudos que ela dirige no Grupo de Pesquisa Poéticas Tecnológicas, da UFBA.

Loïe Fuller (1862-1928), em fins do século 19, pode ser considerada uma das precursoras desse diálogo, quando teve a ideia de aliar a iluminação elétrica, à época recém descoberta, para dar cores ao figurino de sua dança serpentina. Um efeito cênico inaugurado com aquele recurso tecnológico que surgia naquele momento. De lá para cá, as possibilidades de criação são infinitas e complexas, envolvendo da telemática à apropriação de equipamentos médicos e outros tipos de interatividade com próteses, o que vem sendo feito mais frequentemente no campo da performance.

As questões mais contundentes estão focadas na apreciação estética que dizem respeito ao ‘como utilizar o meio digital’ e ao ‘como sentir essa estética’, a partir dos estudos de processos criativos. “Os parâmetros de avaliação dos processos nos permitem decifrar tanto os aparatos digitais utilizados – câmeras, sensores, ambientes virtuais –, quantos os programas de tratamento das bases de dados, a exemplo do Isadora e do Life Forms. Isso nos permite construir um conjunto de referências próprias da dança tecnologia”, comenta Daniela Amoroso, professora da Escola de Dança da UFBA, que desenvolveu pesquisa de mestrado no Departamento de Política Científica e Tecnológica, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

O pesquisador Armando Menicacci, professor de relações entre arte e novas medias na École Média Art (EMA/França), destaca que é possível fazer uma criação datada com um dispositivo super avançado, assim como o contrário. O que define a relevância é o projeto. Tecnologia, para ele, não é só uma técnica, e sim uma ferramenta a mudar o pensamento, como o trem, que transformou a relação das pessoas com o espaço e o tempo, ou a prensa, que gerou uma nova maneira de circulação das informações. Portanto, não se trata simplesmente de trabalhar com computadores, diz o pesquisador, referindose ao filósofo Marshall McLuhan. Há muitas maneiras de denominar esse tipo de dança que é elaborada a partir do diálogo da dança com a tecnologia: as mais usadas são a dance technology (ou dance-tech), no inglês, e dance numérique, no francês. Em português, discutese sobre o hífen, não tanto pela necessidade de rotular, mais por preocupação conceitual, pois o elemento que separa as palavras pode passar a ideia de separação. Para não incorrer nesse registro, Ivani Santana, bailarina e professora do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), prefere

Processos criativos, corpos em rede

Armando Menicacci explica que interatividade pressupõe um contato mediado por dispositivo que semi-automatiza a relação, sendo, portanto, mais complexa que a interação, que diz respeito a qualquer forma de contato. “Falando de obra de arte, o autor da obra tem que dar um pouco de autonomia de transformação e rediscutir as relações com os ambientes”. Isso não significa necessariamente grandes dispêndios financeiros. O acesso a certos equipamentos, como câmeras infravermelhas, está bem mais fácil. O que antes era uma tecnologia militar hoje pode ser adquirida por cerca de R$ 40. Sites como o interface-z.com, além de vender, informam sobre a construção caseira de sensores. Além disso, como já havia afirmado Menicacci, a mediação tecnológica na arte traz em si um pensamento. O Move Out Loud (MOL) desenvolvido pelo português Filipe Viegas é uma experiência para a plataforma rhiz.eu de importação e exportação de vídeos, mas também um pensamento em rede, característico da cultura digital, em que um continua a dança de outro. Nesse trabalho, uma coreografia contínua

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Res: você Duchamp seu texto eu, do Grupo de Pesquisa Poéticas Tecnológicas, da UFBA, em apresentação na Praça dos Leões, em Fortaleza Foto: Camila Lima

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e ininterrupta atravessa o mundo, ultrapassando fronteiras culturais e linguísticas. “Não é o dispositivo somente, mas o uso. É um pensamento de rede, de dança que muda de corpo e de espaço, continuando uma frase”, afirma Menicacci. Há exemplos significativos em outras artes. O escultor alemão Peter Welz realizou, em 2005, uma obra bastante interessante em colaboração com o dançarino e coreógrafo William Forsythe. Whenever on on on nohow on | airdrawing é estruturada com vídeos, fotografias e desenhos das trajetórias de movimento de Forsythe. Ivani Santana destaca que a instalação de vídeo acaba tornando-se uma escultura, que permite novas possibilidades de discutir questões importantes. “A escultura, para o artista, não se define como objeto sólido e palpável. Trata-se da exploração tridimensional de um objeto. O que é essa altura? Essa largura? Essa profundidade?”. O mesmo valeria para a escultura microscópica de Fujihata.

Corpo este que está no centro de inúmeros questionamentos. A comunicação mediada por aparatos digitais, diz Daniela Amoroso, altera as relações entre o corpo e o mundo – e na dança não poderia ser diferente, segundo ela. “O corpo é tudo, menos o conteúdo da pele”, defende Menicacci e remete ao “corpo sem órgãos”, descrito por Gilles Deleuze. O pesquisador prefere falar em corporeidade, que envolve um determinado estado de corpo e de dinâmica. “Quando você anda na rua, deixa seu cheiro, logo isso não é o que está dentro da pele”. “O corpo não é imagem, não é som e nem cheiro, é tudo isso”, completa Ivani Santana. Ela rejeita também o conceito de corpo híbrido. Para ela, o corpo sempre teve poros, relacionando-se com o ambiente, e não foi engolido pela imagem – no caso da videodança, por exemplo. Lembrando de Charles Darwin, a pesquisadora diz que se não fosse por esses poros, que permitem trocas e adaptações, o ser humano não estaria no mundo. “A questão que importa é que tipo de porosidade temos hoje, que tipo de troca queremos”.

Outros tempos

Anos antes, em 2002, a dançarina belga Cindy Van Acker montou Corps 00:00, em que eletrodos colocados no corpo ativavam a musculatura, gerenciados por um computador. Seu solo exibia movimentação produzida a partir dos estímulos

produzidos pela máquina, não por ela. Cindy não estava inerte, mantinha um pequeno tônus. Uma obra que discute a neutralização do corpo e a representação na dança.

Foto: Camila Lima

MaPA D2 Com a intenção de mapear e reunir artistas e pesquisadores foi montado o MaPA D2 – Mapa e Programa de Artes em Dança (e Performance) Digital. Trata-se de uma plataforma virtual para a difusão e apoio educacional, tecnológico e mercadológico dos campos da dança e da performance com mediação tecnológica, em países de língua portuguesa e espanhola. “Muitas vezes, o artista quer trabalhar com algo que não sabe como funciona e não sabe onde procurar. O conhecimento também é importante”, diz Ivani Santana, diretora do projeto. Por isso, a ideia é focar tanto a produção artística como o estudo, análise e reflexão, de modo que os interessados façam conexões, descubram novas experiências e criem em conjunto. + Informações mapad2.ufba.br

danças e tecnologias Fins do século 19 – A coreógrafa norte-americana Loïe Fuller, conhecida como a “fada da eletricidade” e “deusa da luz”, estudava ótica e propunha experiências luminotécnicas inusitadas no palco como elementos de criação, a exemplo da Serpentine Dance, sua criação mais conhecida. Anos 20 e 30 – O Balé Triádico, de Oscar Schlemmer, pesquisava a relação entre figurinos e dança, pois reduziam a liberdade de movimentos e alteravam os sentidos. Já a plataforma Terpsitone, criada em 1932 pelo russo Léon Theremin, convertia movimentos de dança em tons musicais. Anos 60 – As séries de performances realizadas no evento Nine Evenings, em 1966, uniram engenheiros e artistas, entre eles os coreógrafos Lucinda Childs, Yvonne Rainer e Merce Cunningham. Mesmo ano em que Robert Whitman fundou o E.A.T. (Experiments in Art and Technology), com a colaboração de Robert Rauchemberg, Fred Waldhauer e Billy Klüver, esses dois últimos engenheiros, que pesquisavam sistemas a laser. O E.A.T. é referência para universidades, laboratórios e museus de todo o mundo. Anos 70 – No Brasil, algumas obras despontaram na década de 70, como as de Analívia Cordeiro, pioneira na computer-dance e na vídeo-arte. Século 21 – Nos últimos dez anos, destaque no Brasil para Rachel Zuanon e o computador vestível co-evolutivo; Lali Krotozinsky, com a dance Juke Box; e Alejandro Ahmed, com o projeto SKR.

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XX:YY:ZZ (Kairós), espetáculo da Cia. Independente de Dança, de Fortaleza Foto: Renato Mangolin

Imersões em bits e bytes A tecnologia não se resume ao uso de computadores e coloca a dança em interações e imersões em bits e bytes. Softwares são desenvolvidos para notação, composição, análise e criação de movimentos, produzindo outras configurações. Os dados de uma movimentação humana podem ser transformados em imagens sonoras ou visuais, entre inúmeras possibilidades. Merce Cunningham já havia iniciado essa relação com vídeo na década de 60, em colaboração com artistas como Nam June Paik, Charles Atlas e Elliot Caplan. Agregando o computador como um instrumento da criação, em 1989 utilizou o software Life Forms, explorando dança, tempo e espaço. Um programa desenvolvido especialmente para o coreógrafo por Thomas Calvert, na Simon Fraser University, e que evoluiu para o Dance Forms. Esses softwares são usados para animação de modelos, para edição de motion capture (processo de capturar o movimento do corpo com roupas especiais que estão conectadas ao computador) ou para manipular animações de qualquer outra fonte, instigando diferentes organizações de movimentos. Cunningham utilizou estas tecnologias para compor, em instalações multimídia de dança e cenários virtuais, estabelecendo novos diálogos e borrando as fronteiras entre as áreas de conhecimento. Armando Menicacci é um entusiasta do Isadora, programa interativo criado por Mark Coniglio, que permite o controle do espaço cênico, por meio de sensores, partindo da corporeidade do intérprete. Considerado simples de ser usado mesmo por artistas com pouca intimidade com programação, é também

mais barato que a maioria de seus pares. Enquanto o Isadora custa 270 euros (pouco mais de R$ 600), alguns equivalentes chegam a 600 euros (quase R$ 1.400).

Corisco e Lampião tecnológicos No espetáculo XX:YY:ZZ (Kairós), da Companhia Independente, vencedor do Prêmio Funarte Klauss Vianna de Dança 2008/2010, os bailarinos dialogam com o Programa de Arte Digital Interativa Corisco, desenvolvido pelos videomakers Pedro Parente e Cristiana Parente, colocando novas “camadas” em outro software, o Lampião. “A gente teve a preocupação de não colocar o Corisco só como elemento cênico, mas como o quinto elemento. Ele é nosso quinto bailarino, interage com a bailarina e a faz interagir com ela mesma”, conta a diretora e coreógrafa Lúcia Machado. Com o uso deste recurso, uma apresentação é sempre diferente da outra. Tudo é operado na hora, sem programação prévia, de acordo com Pedro Parente, que comanda a ilha de edição. Um diferencial do Corisco é que ele guarda a história de alguns minutos de delay, compara e brinca com os frames parados. Isso permite um distanciamento do tempo presente, estabelecendo a relação entre tempo interno (kairós) e o tempo social (kronos). Os artistas e pesquisadores de dança cada vez mais consideram a tecnologia como um meio de compreender o mundo e seus fenômenos livre das amarras de um pensamento binário ou cartesiano. Novos questionamentos, respostas, descobertas. Natureza e cultura não surgem como pólos separados, mas se atravessam mutuamente. Um está imbricado no outro, como prefere a pesquisadora Ivani Santana.

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Por um jeito intempestivo de dançar Qual o tempo da contemporaneidade? Joubert Arrais analisa o fazer-pensar da dança no contexto atual do nordeste brasileiro, a partir de três coreografias de dança contemporânea Uma obra artística é, pois, um fato. Uma vez produzida, apresentada, tornada pública, é algo irrevogável, cuja factualidade demarca um tempo. É, portanto, um acontecimento. Nesse movimento, cada dança contemporânea tem uma singularidade pelo que discute como questão e pelo modo como se relaciona com o tempo presente, expandindo, assim, a concepção de Dança como arte e área de conhecimento. Coreograficamente, a Dança está conectada a uma história dinâmica de encontros, confrontos e continuidades, segundo uma visão sistêmica do que se faz, do que se pensa, do que se pode e do que se deseja como Dança, sendo o corpo que dança sempre um resultado provisório dessa dinâmica. Quando um corpo dança, evidenciam-se lógicas organizativas de um aprendizado adaptativo do corpo. Precisamos viver o presente heterogeneamente para considerar essa força das ambiguidades e das desestabilizações. Pois, sem a tensão do tempo, não há como escapar da passividade e conformismo. A ênfase passa a ser naquilo que a Dança tem de mais característico, a processualidade, e que nos faz ver e sentir as temporalidades de uma obra e suas coexistências, convergindo para um pensamento coreográfico do corpo. O que reforça, segundo Souza Santos (2006), a natureza contextual de todo conhecimento como produto dinâmico de uma história que nada se refere a um determinismo de origem. São essas as questões que atravessam este ensaio crítico¹, alicerçado numa investigação sobre dança contemporânea na região do nordeste brasileiro², inscrevendo-se como produção

Joubert Arrais Artista-pesquisador e crítico de dança. Mestre em Dança (UFBA) e bacharel em Comunicação Social/Jornalismo (UFC), com formação artística pelo Centro Em Movimento (Lisboa/ Portugal). Membro do Conselho Fiscal da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança (ANDA). Articulador do Esquema Coletivo (CE). <enquantodancas.blogspot.com>

crítica em dança. Diz respeito ainda ao entendimento de que as ideias e as coisas existem não por si só, partilham as mesmas condições de existência, afetam-se em diferentes intensidades e se definem em emergências contínuas. Três obras nos dizem algo. Os Tempos³, da Cia. da Arte Andanças (Fortaleza – CE, 2008); Corpo-Massa: Pele e Ossos4, da Cia. Etc. (Recife – PE, 2007), e O Poste, A Mulher e O Bambu5, do Grupo Dimenti (Salvador – BA, 2006). Sabemos que toda escolha pode parecer inclusão de alguns e exclusão de outros. Aparentemente. Ao dar certa atenção a tais coreografias de “grupo”, almejamos esboçar certas generalidades a partir de pontos específicos. Para tanto, esta escrita reflexiva estrutura-se em torno da mesma questão: qual a contemporaneidade de uma dança contemporânea produzida num contexto tido comumente como regional?

Contemporaneidades O que faz de uma obra ser contemporânea não é apenas pertencer à mesma escala temporal. Nem todas as danças produzidas hoje são contemporâneas se considerarmos que as temporalidades de uma obra, que se diz contemporânea, emergem justamente das interações com seus ambientes relacionais de ocorrência. Percebemos que, para arejar o conceito de contemporaneidade, precisamos entendê-lo como uma relação singular com o tempo. Sendo uma obra artística tanto fato histórico como fator evolutivo de um contexto cultural, falamos de um tempo coevolutivo, que não se perde nem se consegue controlar, que não separa passado, presente e futuro, que não volta atrás, nem é passível de reconstituição. O tempo, visto assim como um aliado, é, segundo Prigogine & Stengers (1997), um tempo que não é mais o de solidão; mas, sim, o que fala da aliança do homem com a natureza que ele descreve. Esta concepção articula, ao invés de excluir, o tempo newtoniano – matemático, verdadeiro

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e absoluto em si mesmo – e o tempo bergsoniano – inventado, criador de formas e uma elaboração incessante do absolutamente novo (apud Greiner, 2010). A questão é identificar na obra a intenção de desestabilizar e abrir frestas nos entendimentos fixos, testar outros tempos de fruição estética, minar o estereótipo do geograficamente correto e, com isso, contrariar mesmo os adeptos da incansável identidade meramente regionalista e que torna invisíveis muitas formas e tipos de conhecimento existentes.

Aderências e distâncias Como, então, três coreografias de dança contemporânea nos ajudam nesse sentido? Ou melhor, como perceber aderências e distâncias com relação ao momento presente que as demarca, historicamente? O Poste, A Mulher e O Bambu faz do riso irônico a estratégia cênica para desestabilizar identidades midiáticas. O grupo baiano – reconhecido por transitar entre as linguagens do teatro, dança e audiovisual – evidencia tais intenções ao se apropriar da estética literária e teatral de Nelson Rodrigues, presente no imaginário televisivo brasileiro, para atualizar, criticamente, o contexto baiano no e com o carioca. A palavra falada é enunciada performativamente como confissão e converge para o conceito de “corpo borrado” – transversal, jocoso, ambíguo – que alicerça a pesquisa do grupo, encabeçada pelo diretor e coreógrafo Jorge Alencar. Os Tempos fala dos afetos que emergem das possibilidades de encontro e do estar juntos. Há nele um refinamento coreográfico sutil que não se faz da noite pro dia, mas silenciosamente, ao construir na cena uma dramaturgia como uma agulha pontiaguda que nos toca e faz refletir de outro modo sobre os desafios de estar com o outro. Como o titulo diz, leva tempo. Faz jus, inclusive, ao que a coreógrafa Andréa Bardawil provoca em O Tempo da Delicadeza (2001) e O Tempo da Paixão ou O Desejo é um Lago Azul (2003), configurandose como uma triologia sobre o tempo, entremeada de pequenas epifanias a criar ressonâncias poéticas nos corpos que dizem e pensam. Corpo-massa: Pele e Ossos questiona o estatuto estético do corpo humano na busca por outros modos de se organizar, politicamente, na cena, ao optar pelo formato de instalação coreográfica. A obra instaura outro tempo de fruição, onde o público pode se ausentar e transitar a qualquer momento. Os bailarinoscriadores José W. Júnior, Marcelo Sena e Saulo Uchoa

apresentam também a iluminação como elemento coreográfico para mostrar um corpo manipulável tanto para quem dança como para quem vê dança. Uma força sinestésica de peles e ossos, que não fica só nas sensações, pois nos colocar junto deles e com eles em um espaço claustro.

Intempestividades A questão geográfica é apenas um aspecto, se atentarmos para as transformações culturais de altíssimo valor humano, artístico e político que foram, e ainda são, obscurecidas pela linearidade que predomina no lidar com o nordeste brasileiro, historicamente. Logo, as três coreografias comentadas são indícios de um movimento crítico. Deixam de ser apenas “nordestinas”, enquanto rótulos turísticos; e passam a ser “coreografias para o nordeste”, como provocações para outras reflexões e ações no contexto da Dança no Brasil. Possuem cumplicidades e denunciam outros modos de fazer-pensar a Dança, com uma atuação nascida no percurso da primeira década do novo século. Tudo para entendermos que a complexidade inerente a todo e qualquer contexto no mundo vem justamente pelo fato de as coisas e os fenômenos criarem seu próprio contexto relacional. Façamos a nossa parte!

Notas 1. Este ensaio alimentou-se, direta e indiretamente, de discussões apresentadas pelos autores: Giorgio Agamben (O que é o contemporâneo? Argos Editora, 2009), Fabiana Dultra Britto (Temporalidade em Dança. FID Editorial, 2008), Christine Greiner (O corpo em crise. Annablume, 2010), Jussara Setenta (O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade. Editora UFBA, 2007), Boaventura de Souza Santos (Gramática do Tempo. Cortez Editora, 2006), e Ilya Prigogine & Isabelle Stengers (A Nova Aliança. Editora da Universidade de Brasília, 1997). 2. A referida pesquisa foi realizada entre dezembro de 2008 a setembro de 2009 e desenvolvida a partir do projeto Coreografias Nordestinas – algumas escritas estéticas e críticas sobre a contemporaneidade de uma produção artística de dança no Nordeste, de minha autoria, contemplado com bolsa de Pesquisa em Produção Crítica em Dança 2008/2009, região Nordeste, pela FUNARTE/MinC. 3. Apoio em edital da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará – Secult/CE. 4. Pesquisa com apoio do Prêmio Funarte Klauss Vianna de Dança 2008. 5. Apoio do Programa Rumos Dança 2007/2008 – Itaú Cultural. Foto: Joubert Arrais

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20 anos de uma história dançada Arte e resistência. A Lia Rodrigues Cia. de Danças completa duas décadas de atividades ininterruptas no Brasil, inventando estratégias, ações e lugares que afirmem condições de existência para a dança Por Regina Paz

Pororoca é o espetáculo da Lia Rodrigues Cia. de Danças criado no Centro de Artes da Maré, apresentado no Anfiteatro do Dragão do Mar, durante a Bienal De Par Em Par 2010 Foto: Camila Lima

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1990. Lia Rodrigues retornava ao Brasil após uma temporada na França, onde havia trabalhado, por dois anos, com Maguy Marin, especialmente na montagem de uma das obras mais marcantes da coreógrafa francesa, May B, inspirada em Samuel Beckett. Com Denise Stutz e Duda Maia, cria a Lia Rodrigues Cia. de Danças, instigada a seguir seu fluxo artístico apesar do caótico cenário da dança brasileira. Embora a coreógrafa diga não se preocupar com um pensamento político ao conceber seus espetáculos, parece inevitável a articulação entre o fazer artístico e a ação política. Lia Rodrigues já questionou quanto vale a dança, ao cobrar ingressos a R$ 1,99; fez questão de lembrar ao seu público, durante as apresentações de suas peças, a origem pública, portanto de cada um dos espectadores, do dinheiro dos financiamentos dos editais e das leis de incentivo à cultura; dirigiu um dos maiores festivais de dança brasileiros, o Panorama de Dança do Rio de Janeiro; além de já ter atuado dentro da Favela da Maré, no subúrbio carioca. Ações indicativas de que não se ocupou apenas da formação como bailarina na França. Ela também se envolvia em debates sobre políticas públicas para a dança e encontros entre artistas. “Naquela época eu falava sobre a importância da formação de público, como fazer para dançar em lugares diferentes, com um preço acessível”, lembra sobre suas preocupações naquele momento. E hoje? “É engraçado ver que de alguma forma eu ainda estou falando sobre a mesma coisa. Sem dúvida as minhas ações se modificaram, as estratégias, os lugares... mas no fundo, as minhas preocupações são muito parecidas”. Foram essas preocupações que a levaram a articular, ainda, o Panorama de Dança do Rio de Janeiro, abrindo espaço e dando visibilidade a novos criadores da proeminente dança contemporânea e ampliando seu público, com ingressos acessíveis. À frente do festival por 14 anos, Lia aprendeu na prática a atividade que conhecemos hoje por curadoria. Um grande desafio em um cenário da dança que se configurava diferente do que vivemos hoje. “Os meios de sobrevivência e as oportunidades para apresentarmos nossos trabalhos eram praticamente inexistentes”, diz. A busca por novos desafios passou a inquietar Lia, que começava a se engajar em outra forma de mobilização, resultando no seu encontro com a comunidade Nova Holanda, a Maré, no Rio de Janeiro. Outras questões se faziam mais fortes: onde dançar? para quem e em que condições dançar? o lugar onde praticamos dança muda o que fazemos? como se aproximar de uma parte da cidade e de pessoas sempre tão

separadas do fazer artístico? E foram dessas inquietações que começou o seu trabalho com a Maré. O primeiro encontro aconteceu em 2003, quando Silvia Soter, uma das coordenadoras das Redes de Desenvolvimento da Maré (Redes), convidou a companhia para colaborar com o hoje extinto Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, no Morro do Timbau. As atividades diárias da Companhia foram então transferidas para lá, contribuindo para a construção e manutenção de um local para a dança, com aulas e oficinas para jovens da comunidade, e um acervo de vídeos e livros de dança, doados por Lia Rodrigues. Logo começaram a vir os primeiros frutos desse encontro. Em 2004, a Companhia criou no espaço da Maré os espetáculos Contra aqueles difíceis de agradar, em 2005; Hymnen, criado em 2007 para o Ballet de Lorraine (França), e Encarnado, também em 2005, premiado no Fringe Festival, em Edimburgo de 2007, com o prêmio Herald Angel. Também em 2007, através de uma parceria entre as Redes e a Cia., foi criado o Centro de Artes da Maré. O Centro surgiu com a intenção de se estabelecer como um local de partilha, formação, criação e difusão das artes, possibilitando a troca de experiências educacionais e culturais diversas, estimulando o olhar crítico e transformador sobre a realidade. O trabalho com o Centro resultou em mais uma criação, em 2009, apresentada em diferentes ocasiões, como na Bienal Internacional de Dança do Ceará, em 2010. O espetáculo Pororoca tem como questão disparadora as diferentes formas de organização de vida na favela da Maré, trabalhando com todo movimento e toda intensidade que marcam esse espaço. “Uma coisa muito forte para mim, que venho da zona sul carioca, é a forma tão diferente que vejo na organização da vida dentro da favela. É um jeito diferente de andar nas ruas, de se relacionar. A favela é muito intensa, tem muito movimento, o tempo todo, de todos os lados. A vida acontece muito fora das casas, na rua. Tudo isso são experiências que, de alguma forma, estão contidas no nosso modo de criar um trabalho. Acho que estão bem presentes na Pororoca também”, explica. Depois de quase 10 anos de trabalho com a Maré, as perguntas continuam sem respostas definitivas. “Não tenho respostas. A resposta está nessa prática de negociação do espaço tanto físico quanto de formas de atuação e parceria. O lugar onde criamos, sem dúvida, está inscrito no nosso corpo e na maneira de nos movermos. O fato da Companhia trabalhar diariamente na Maré sem dúvida altera e contamina o jeito com que fazemos as coisas, com que criamos”.

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Um coletivo de multiplicidades Diversos coletivos estão em atuação pelo Brasil. Por que os artistas vêm optando por esta estratégia de ação?

“Cada um de nós era vários, já era muita gente. [..] Não somos mais nós mesmos. Utilizamos tudo o que nos aproximava, o mais próximo e o mais distante. [..] Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza [..] As multiplicidades [...] são designadas por artigos indefinidos”. Gilles Deleuze e Félix Guattari Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol.1)

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Coletivo Curto Circuito, selecionado com o trabalho Situacionautas pela Convocatória Terceira Margem da Bienal De Par Em Par 2010. A performance aconteceu em ruas do Centro de Fortaleza Foto: Alex Hermes

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Coletivo: aquilo que abrange ou compreende muitas coisas ou pessoas. Literalmente o significado dessa palavra é simples. Porém, diferentes sentidos estão sendo atribuídos a ela, gerando contribuições para se pensar os modos de existência da arte. Os coletivos artísticos não são novos, mas de uns anos para cá têm se fortalecido cada vez mais pelo Brasil afora e se afirmado como núcleos de produção independentes. Bem ao estilo “a união faz a força”, esse formato vem tanto unir fazeres artísticos, quanto funcionar como laboratório de troca, conhecimento, estudo e produção e, ainda, buscar um pensamento que se faça em grupo. Porém, definir categoricamente o que seria um coletivo de artistas se torna incongruente diante das inúmeras possibilidades de encontros e afinidades. Isto porque essa definição varia conforme o grupo. No entanto, todos concordam ser este um espaço de troca entre saberes e de aproximação entre pessoas que se admiram. Em parte deles não são estabelecidos números de integrantes, diretor, auxiliar, dias para ensaios, sendo um formato mais flexível de criar e produzir arte. O artista de dança e integrante do coletivo paranaense Couve-flor – minicomunidade artística mundial, Ricardo Marinelli, diz que tanto ele quanto os demais participantes, ao todo são sete, jamais se importaram em estabelecer uma definição devido à constante transmutação do próprio formato do Couve-flor.

“Trabalhamos basicamente com parcerias e cada pessoa ajuda como pode. As políticas governamentais e privadas ainda não estão preparadas para receber este formato. Eles não têm ideia do quão potente e forte artisticamente pode ser um coletivo”. Já David da Paz, performer e integrante do Coletivo Curto Circuito, formado por artistas e ativistas que mesclam arte, filosofia e comunicação, em Fortaleza, diz que os próprios integrantes mantêm e produzem suas intervenções. “O que nos move é o motivo pelo qual estamos nos juntando: a ideia e a ação. O coletivo é formado basicamente por 3 pessoas, mas já tivemos trabalhos em que participaram 8, devido a essa mobilidade. Cada coletivo encontra o seu formato estratégico para sua sobrevivência”. O Dimenti, que atua na cena artística baiana com projetos de dança, teatro e audiovisual, mesmo intitulando-se coletivo, utiliza uma forma de organização mais parecida com as das companhias tradicionais. Desde 2007, o grupo possui um escritório-sede para servir de apoio a encontros e produções e conta com a figura de uma diretora, Ellen Mello, bem como estagiários, assistentes de produção e assessoria financeira. Tais cargos são atípicos em se tratando de coletivos já que a intenção primordial é que não haja nenhum tipo de hierarquia.

Artistas independentes, que atuam num cruzamento entre dança contemporânea, artes visuais, teatro e performance art, alguns moram em outros países e mesmo assim o trabalho acontece, já que, para Ricardo, o que liga essas pessoas são as afinidades ético-estéticas. “Não adianta apenas admiramos um o trabalho do outro e querermos produzir, vai além. Temos que ter posicionamentos éticos parecidos, para que as coisas mudem e mesmo assim possamos caminhar juntos”. No Coletivo Auê, formado por músicos, dançarinos e atores, do qual a coreógrafa cearense e diretora da Cia. Vatá, Valéria Pinheiro, faz parte, o grupo se define como um coletivo de trabalhos e não de pessoas. “Cada um olha sob sua perspectiva. Não existe ego, aceitamos a opinião do outro como uma contribuição ao nosso trabalho. É calar para ouvir”, acrescenta. Alinhar desejos de diferentes pessoas não é fácil. Produzir e manter as obras com recursos próprios, também não. E essa é a realidade da grande maioria dos coletivos e, conseqüentemente, suas maiores dificuldades. Um coletivo necessita primeiro e fundamentalmente de pessoas que acreditem nele e no seu propósito, pois se trata um modo de produção artística que está além do trivial “pensamento de grupo”. É se despir do medo de experimentar, ver suas ideias se mesclarem com as de outra pessoa a ponto de produzir algo que não é mais de nenhuma e ao mesmo tempo é de todas. Para Valéria Pinheiro, as vantagens de ser um coletivo é o encontro no qual todas as qualidades pessoais podem surgir na experimentação, provocando mudança nos fazeres e saberes.

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Segundo Ellen, a existência dessa estrutura potencializou a produção e a rotina diária de trabalho assim como o senso de organização e gestão do grupo. Porém, mesmo havendo essa setorização, a diretora segue afirmando que o Dimenti é de todos e feito por todos. “Somos um espaço de negociação permanente e autonomia, pensada em termos de dependências correlacionadas, de trocas, mantendo uma dinâmica entre os participantes onde articulamos afinidades, diferenças e afetividades”. Performer e integrante do Coletivo Pare, formado por mulheres ligadas à sociologia, dança, linguística e design, envolvidas em produzir performances ligadas à questão de gênero, em Fortaleza, Bartira Dias reconhece a necessidade que ainda existe, social e artisticamente, de um certo tipo de burocratização para o bom funcionamento do grupo. Segundo ela, ainda não há editais para coletivos no Ceará por conta dessa necessidade de eleger um único nome como representante. Por outro lado, o diretor artístico do Teatro Sérgio Porto e integrante do Coletivo Improviso, formado por artistas de teatro, dança e música, o carioca Joelson Gusson, alerta que virou moda a denominação de coletivo. Segundo ele, há algumas companhias que preferem denominarem-se dessa forma, com

receio de que a palavra grupo tenha ficado “cafona”. Apesar disso, Joelson Gusson acredita que toda essa plasticidade de configurações dos diferentes coletivos diz respeito a um modo contemporâneo de organização da vida e da arte. “Atualmente, operamos estabelecendo relações em rede, possibilitadas pela internet, o que faz com que um coletivo não seja necessariamente um local real, mas lugar de pensamento artístico. Cada pessoa tem a liberdade de gerir o próprio trabalho e, juntas, compõe um grupo de artistas propositores que partilham opiniões e propósitos, onde o mais importante não é a autoria e produção de algo inteiramente novo, mas evidenciar influências e referências”, diz. Este é um traço que, para ele, fortalece ainda mais a organização por coletivos, pois sua força artística está justamente no fato de reunir criadores. Mesmo diante de obstáculos todos compartilham do pensamento de que esse formato contribui para o fortalecimento da arte. Um coletivo de artistas se faz por anseios, ideias e ideais comuns, pela vontade de estar e produzir juntos, sendo mais uma estratégia a garantir capilaridade à produção artística. Histórias, cidades e contextos diferentes num pensar coletivo, onde os artistas, ao tornarem-se um, instauram e assumem a multiplicidade como condição de existência.

Ricardo Marinelli, do Coletivo Couve-Flor, apresentou Pelo a menos no País das Maravilhas, na Sala Nadir Papi Sabóia, durante a Bienal De Par Em Par 2010 Foto: André Lima

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Por uma economia do corpo As relações entre dança e economia têm fomentado discussões em todo o país. Pensando em fortalecer estratégias de desenvolvimento e sustentabilidade na arte, Marcos Moraes propõe um alinhamento entre estética, política e economia Este artigo é uma reflexão inicial sobre a sustentabilidade das atividades profissionais pertencentes ao campo da dança. Na verdade coloca algumas questões conceituais e mais perguntas do que respostas que talvez sirvam para iluminar alguns pontos relativos a uma possível economia da dança, fruto de interesse e discussões em várias partes do país. “A especificidade da arte enquanto modo de expressão e, portanto, de produção de linguagem e de pensamento é a invenção de possíveis – estes ganham corpo e se apresentam ao vivo na obra. Daí o poder de contágio e de transformação de que é portadora a ação artística. É o mundo que está em obra por meio dessa ação. Não há então por que estranhar que a arte se indague sobre o presente e participe das mudanças que se operam na atualidade” (ROLNIK, 2008, pp. 26-27). Para quem trabalha no campo da dança, não será nenhuma novidade a ideia de que ‘os saberes’ do corpo, quando desenvolvidos, agregam enorme valor a diferentes aspectos da vida. Transformam a auto-organização da pessoa, ampliam os sentidos via propriocepção, constroem outras formaspensamento, promovem um nível de consciência pleno de sutilezas e sensibilidade. A forma como isso se dá será mais clara para este ou aquele profissional e menos para aquele outro; mas sabem todos que, mesmo às vezes condenando quem a pratica a uma situação de precariedade econômica, a força do que se move quando nós nos movemos é inigualável e profundamente valiosa. Dançar valerá a pena... Para o público que assiste, isto pode ou não estar claro. É muito comum em audiências de dança a ideia do ‘valor’

Marcos Moraes Artista, docente, terapeuta corporal, gestor e produtor cultural. Atualmente desenvolve pesquisa em Live Art nas linguagens da dança, do vídeo e da performance. Foi coordenador de dança da Funarte/MinC.

estar anexada a uma determinada ideia de ‘beleza’, de algo esteticamente idealizado, como um saber especial consagrado a poucos, mas sem que se compreenda o grau de profundidade que as operações que ali se dão encerram. Outras plateias mais acostumadas à fruição de uma variedade de trabalhos artísticos e com mais acesso a informações de múltiplas fontes poderão acompanhar melhor os efeitos que estes saberes proveem. Ou simplesmente um determinado trabalho poderá falar diretamente ao coração de uma audiência sem que qualquer mediação se faça necessária. A receita para o sucesso desta comunicação continua, felizmente, no campo do mistério. Em qualquer caso há uma valorização excessiva daquilo que se convencionou chamar de ‘produto estético’ e pouca valorização dos processos transformadores que ali se operam, repetindo uma condição ‘dada’ em nossas relações políticosociais em tempos de globalização, que nos considera a todos principalmente em termos de nossa capacidade de consumo. “A maneira como a sociedade atual molda seus membros é ditada primeiro e acima de tudo pelo dever de desempenhar o papel de consumidor. A norma que nossa sociedade coloca para seus membros é a da capacidade e vontade de desempenhar esse papel. [...] Idealmente nada deveria ser abraçado com força por um consumidor, nada deveria exigir um compromisso ‘até que a morte os separe’, nenhuma necessidade deveria ser vista como inteiramente satisfeita, nenhum desejo como último. (...) o que realmente conta é apenas a volatilidade, a temporalidade interna de todos os compromissos; isso conta mais do que o próprio compromisso, que de qualquer forma não se permite ultrapassar o tempo necessário para o consumo do objeto de desejo (ou melhor, o tempo suficiente para desaparecer a conveniência desse objeto)” (BAUMAN, 2009, p. 88).

Economia da Cultura No palco mundial muito se debate sobre as Indústrias Criativas. As próprias definições sobre o campo desses estudos indicam diferentes pontos de vista que implicam em recortes sócio-econômicos, muitas vezes estabelecendo ‘lugares de

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O artista Elielson Pacheco apresentou T.T.A. na Bienal De Par Em Par 2010. Ele integra o Núcleo do Dirceu, coletivo do Piauí que reúne bailarinos, coreógrafos, atores, músicos, produtores e artistas midiáticos Foto: Elielson Pacheco

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poder’ em que a primeira classe já está reservada e aos demais cabe apenas ocupar um lugar incômodo na econômica. Após um primeiro momento de ‘adesão massiva’ por parte de políticos, economistas, agentes e gestores culturais ao uso entusiasmado, em seus discursos, de termos tais como “indústrias culturais”, “indústrias criativas” e “economia criativa”, discursos mais críticos começaram a surgir e a ser veiculados. A resistência de partes do setor cultural a se transformar no próximo campo de disputas hegemônicas com fins de lucro dentro do contexto do capitalismo internacional e o olhar crítico de artistas, pesquisadores e teóricos sobre as relações implícitas na construção de um discurso político (e geopolítico) estabeleceram um novo campo de disputa ideológica. O fato é que - como ocorreu em amplo sentido em todos os aspectos de nossas vidas - a globalização se impõe sobre países, vidas e costumes, estabelecendo um campo de pressupostos quase indiscutíveis que seriam norteadores de um pensamento hegemônico. O debate se torna pouco acessível. Mas pouco se duvida de que a cultura seja a bola da vez no campo econômico-político mundial. A complexidade do assunto é tal que deveria ser amplamente debatida em todos os Fóruns e ambientes de discussão cultural – abundantes neste momento do país. “Contrariando críticas, a economia criativa não é apenas um apanhado de setores embalados em uma nova categoria, mas o emblema de um novo ciclo econômico, que surge como resposta a problemas globais renitentes, que motiva e embasa novos modelos de negócios, processos organizacionais e institucionais e relações entre os agentes econômicos e sociais. Nesse novo paradigma, que traz a cultura em sua essência e a tecnologia como veículo propulsor, a organização dos mercados em redes, as parcerias entre os agentes sociais e econômicos, a prevalência de aspectos intangíveis da produção, o uso das novas tecnologias para a produção, distribuição e/ou acesso aos bens e serviços e a unicidade da produção, fortemente ancorada na singularidade, são traços característicos desse modelo que tem como pressuposto de sustentabilidade a melhoria do bem-estar e a inclusão socioeconômica” (REIS, 2008, pp. 46-47). Para a maioria dos profissionais da dança, no entanto, esse campo de discussão é desconhecido e inclusive olhado como um mundo estranho e indesejável. Se por um lado os benefícios que a dança pode oferecer não estão claros para muitas pessoas, por outro os esforços exigidos e as recompensas que ela traz aos seus praticantes poderiam consistir num terreno ‘a salvo’ do mundo, exercendo um efeito segregador e às vezes alienante. No entanto a discussão sobre a sustentabilidade da dança, de suas formas de financiamento, produção, difusão e suas variadas interfaces educacionais, terapêuticas, sociais, antropológicas, etc. vem crescendo e se sofisticando, dentro e fora do florescente campo acadêmico brasileiro. Da práxis dos vários profissionais envolvidos em atividades de dança no país

emergem estratégias e respostas à descontinuidade de ações públicas e privadas e à enorme informalidade que impera nessa atividade. Antenados a esta realidade diversos produtores e gestores (muitos deles artistas também) têm se reunido em rede buscando estabelecer um debate amplo e nacional sobre uma possível Economia da Dança. Esse debate, que esbarra nas mesmas limitações econômicas colocadas a todas as atividades relacionadas ao fazer dança, às vezes se coloca como uma grande interrogação: “O que temos, quem somos, o que queremos?”. Os artistas e profissionais da dança têm sua própria agenda e inquietudes, mas também parecem sentir que outras colaborações são bem vindas. Quais seriam? A de administradores de empresas? De produtores? Filósofos? Institutos de Estatística? Cientistas ‘cognitivos’? Ambientalistas? Que outros saberes nos faltam para fortalecer nossas estratégias pelo desenvolvimento e sustentabilidade da dança? Economia Solidária? Metodologia de associações em rede? Gestão de recursos? Captação nacional e internacional? Redes internacionais de cultura?

Questão de Ordem Tenho sempre a impressão de que uma parte importante do desafio da dança é legitimar o seu fazer, ou seja, valorizálo de dentro para fora, já que as circunstâncias adversas imperam no mundo externo. Creio que um entendimento mais abrangente dos efeitos destes saberes possa servir ao projeto de desenvolvimento que almejamos. Esse lugar auto-determinado potencializa os saberes que desenvolvemos e permite que as ações afirmativas em busca de uma sustentabilidade mais ampla se multipliquem e fortifiquem a ponto de constituir cada vez mais nosso lugar no mundo. Por outro lado a discussão sobre a sustentabilidade das atividades profissionais pertencentes ao campo da dança poderia ser fortalecida a partir de um mapeamento dos recursos envolvidos; se pudermos quantificar em tais estratégias de sobrevivência os ‘valores’ investidos acredito que evidenciaríamos o quanto os fazeres da dança no país são fruto de um investimento privado, realizado por seus próprios fazedores, que se associa a eventuais e descontínuos recursos estatais e a quase nenhum patrocínio privado direto (ou seja, sem o recurso da renúncia fiscal).

De que estamos falando? “... como reativar nos dias de hoje a potência política inerente à ação artística, seu poder de instauração de possíveis?” (ROLNIK, 2008, p. 44). Trata-se de recursos humanos (horas de trabalho não devidamente remunerado, propriedade intelectual praticamente desconsiderada, danos por interrupção médica assumidos pelo próprio indivíduo sem qualquer cobertura e assistência, entre outras); e de recursos materiais (o uso de espaços próprios e seus respectivos custos; equipamentos privados cedidos gratuitamente ao uso da ‘empresa’ criativa/

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cultural; uma rede de favores e trocas informais); todos estes aspectos que, em sua dimensão econômica, provavelmente signifiquem mais da metade dos recursos envolvidos nas produções e atividades relacionadas, mas completamente ausentes de qualquer estudo sobre a economia da dança.

Referências bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. São Paulo: Jorge Zahar Editora, 2009. REIS, Ana Carla Fonseca (Org.). Economia criativa como estratégia de desenvolvimento: uma visão dos países em desenvolvimento. São Paulo: Itaú Cultural, 2008.

Os custos e investimentos assumidos pelos próprios fazedores da dança não figuram em lugar algum. Aquilo que existe e, no entanto, permanece invisível numa sociedade evidencia aspectos negados, relações estabelecidas a partir de processos politicossociais no mínimo questionáveis. Os estudos pós-colonialistas que o digam. Enquanto isso a ideia de uma política cultural fica reduzida ao instrumento da renúncia fiscal e ao dos editais públicos que, se por um lado consistem em um avanço em relação ao vazio anterior, permitindo uma ampliação quantitativa das zonas de propagação dos conhecimentos de dança, por outro ignoram completamente estas questões econômicas e fundamentalmente a natureza dos processos envolvidos na criação artística. Os governos se colocam como os ‘bons promotores’ da produção cultural e regimes paternalistas se estabelecem seduzindo artistas e produtores. Para o bem e para o mal. Como se vê, tudo está relacionado.

ROLNIK, Suely. Geopolítica da Cafetinagem. In: LINS, Daniel e FURTADO, Beatriz (Orgs.). Fazendo Rizoma – Pensamentos Contemporâneos. Fortaleza: Hedra, 2008.

Dicas de sites e fóruns

Assim, um possível olhar para a economia da dança ou para um aprofundamento nas estratégias de sustentabilidade destes fazeres e saberes passa necessariamente pela consciência dos recursos envolvidos e no empoderamento de seus realizadores, a partir da consciência de seus próprios recursos. Dessa consciência podem surgir ou se potencializar uma práxis criativa, um discurso político, um posicionamento estético, uma recuperação do potencial transformador da arte. Todos elementos para que a ideia de economia recupere seu corpo, aviltado por tantos anos do predomínio psicopata de um discurso que crê que os números da planilha importam mais do que as pessoas ali representadas. Dentre as muitas contribuições que a dança pode oferecer ao mundo, quiçá uma economia do corpo possa fazer bailar os rígidos argumentos onipresentes e hegemônicos na aldeia global.

Em resumo O valor dos saberes proporcionados pela dança e seu potencial de desenvolvimento não é algo totalmente compreendido em nossa sociedade de consumo; no momento em que a cultura passa a ser percebida como central no âmbito de um novo ciclo econômico, diversos profissionais de dança procuram debater e aprofundar questões relacionadas à sustentabilidade das atividades relacionadas a esta forma de conhecimento; para tal se faz necessária a busca por informações provenientes de múltiplos campos, inclusive aqueles percebidos como alheios. Também é fundamental um olhar autoafirmativo sobre os recursos aportados direta ou indiretamente pelos seus próprios fazedores. Um realinhamento entre o estético e o politicoeconômico traz consigo um potencial não apenas útil à dança, mas fundamentalmente necessário ao nosso mundo globalizado.

Foto: Alex Hermes

Idanca idanca.net

Festival Panorama de Dança (RJ) panoramafestival.com | seminario@panoramafestival.com

Festival Diagnóstico da Dança (GO) diagnosticodanca.com.br | festivaldiagnostico.blogspot.com

Plataforma Internacional de Dança (BA) pidbahia.com.br

Conexões Criativas (BA) conexoescriativas.com.br

Grupo de discussão virtual economiadadanca@yahoogrupos.com.br pensaradanca.blogspot.com

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Dança que transborda o Ceará

Movimento em sol e mar Na região do Vale do Curu a dança marca sua presença e cria condições de permanência. Aliando histórias e culturas de seu povo com teatro físico, danças dramáticas e contemporâneas, um coletivo de artistas atua na cidade de Trairi, litoral oeste a 132 quilômetros de Fortaleza, evidenciando que há algo mais do que a exuberante beleza de suas praias e dunas Dança com pôr-do-sol. A edição de 2010 do Festival de Dança Litoral Oeste reservou um espaço de apresentações à beira-mar no Trairi, com espetáculos cearenses e nacionais. Um modo de afirmar a dança que por ali se irradia há tempos e de diferentes maneiras. A percepção do corpo vem do teatro físico e da dança dramática que se misturaram para gerar obras apresentadas nas igrejas, por um grupo de jovens do município. Ultrapassando os limites dos temas religiosos, um movimento artístico ganhou fôlego.

a Bienal Internacional de Dança do Ceará. “O contato com outras companhias é fundamental para o aprendizado e fortalecimento artístico dos bailarinos, além do que facilita e contribui a circulação em novos festivais”, diz Nénem, diretor da Arreios. E não pára por aí. O trabalho de dança se ramifica. Há escolas de dança nas praias de Flexeiras e Canaã, com projetos voltados para crianças das localidades e conduzidos por integrantes da Arreios, bem como a Escola de Artes, com ações conjuntas a outras linguagens.

Coordenado por Antônio Alves, mais conhecido como Neném, um grupo passou a levar sua arte para as comunidades rurais, para os filhos dos agricultores. Uma ação ainda insuficiente para o desejo que os movia. Esses jovens queriam estar nas ruas e nos palcos, tirar a população de suas casas e levá-las aos espetáculos, formar plateia. Assim, o interesse pela dança foi se consolidando.

Dissidentes, alguns dos ex-bailarinos desta primeira companhia se aventuraram pela dança por outras cidades e estados e outros já formaram seus próprios grupos, como é o caso da Cia. Flex de Dança Contemporânea, criada há 9 anos por Emanuel Saldanha e Tiago Soares. Os bailarinos preferem chamar sua sede de centro, pois lá existe, além do trabalho com outros dois grupos, um de balé infantil para meninas e break dance para adolescentes, com pesquisa e formação acerca da história da dança e suas contextualizações.

Um esforço que se fez pelos inusitados caminhos da dança contemporânea. É nesse contexto que surge a Cia. Arreios de Dança Contemporânea, precursora desse desejo de uma dança que se aproximasse de uma profissionalização. Em 12 anos de atuação e com 10 espetáculos no repertório, a companhia trouxe à tona questões bem próximas à população, como sua tradição e seus costumes. Isso fez com que houvesse uma aproximação entre público e espetáculo e, consequentemente, uma valorização do trabalho de Neném e sua trupe. O grupo apresenta suas montagens em festivais recorrentes nos municípios próximos e na capital cearense, como a Mostra Intenções, de Itapipoca, o Festival de Dança Litoral Oeste, que acontece simultanamente em Trairi, Paracuru e Itapipoca, e

Os alunos aprendem não só as técnicas e práticas como também se interessam pelo pensamento que atravessa o fazer da dança. Para repassar tais ensinamentos, Emanuel e Tiago voltaram à sala de aula para cursar Pedagogia e mergulham no universo dos livros de filosofia, psicologia, arte e, principalmente, cultura popular. “A cultura do forró eletrônico no Trairi é muito forte e queremos mostrar aos jovens que existem outras possibilidades”, diz Emanuel. Já Tiago diz querer introduzir novos elementos aos grupos, como o teatro de rua e a dança do coco. “A dança é um meio de juntar. Se os alunos vierem só pela dança, eles vão tornar isso um entretenimento, mas nós queremos mostrar a dança além disso”.

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Trairi

A delicadeza da loucura, da Cia. Arreios Foto: Divulgação (acervo ProDança)

Ações e formações artísticas Para consolidar o traço mais forte da cena de dança no Trairi, a formação de crianças e adolescentes, em contexto escolar, projetos sociais e escolas de arte, os artistas estão sempre empenhados em ampliar seus saberes em cursos, seminários, oficinas nas cidades vizinhas de Paracuru e Itapipoca, bem como em Fortaleza. Por este empenho em profissionalizar cada vez mais a sua dança, os artistas estão sendo contemplados com residências artísticas. Como ação

do Festival de Dança Litoral Oeste, Trairi recebeu a artista e educadora paulista Isabel Marques, em 2009. Foram duas semanas dedicadas à dança e educação. Em seguida, cursos com artistas cearenses: Iniciação ao balé clássico, com o bailarino Flávio Sampaio; Percussão tradicional, com Orlângelo Leal, da banda Dona Zefinha; e Acrobacia, com a artista Sâmia Bittencourt. Outras parcerias estão sendo alinhavadas nesse movimento de permanência da dança em sol e mar.

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Dança que transborda o Ceará

Contemporaneidades em profusão Em meio a romarias em torno de Padre Cícero, reisados, lapinhas e bancas cabaçais, que marcam a cidade de Juazeiro do Norte, a 531 quilômetros de Fortaleza, na região do Cariri, ao sul do Ceará, uma dança que destoa dessa tradição. Por lá, um grupo de artistas fomenta um centro de pesquisas e de produção em arte A cultura popular e a religiosidade são fortes referências em Juazeiro do Norte, assim como os estudos em paleontologia. Apesar de uma forte tradição, a dança que se destaca, nos últimos anos, está ligada à dança cênica, sobretudo à dança contemporânea. Projetos contemplados em editais de fomento e ações vinculadas a festivais têm contribuído para um intenso intercâmbio dos artistas com professores, pesquisadores e profissionais da dança do Brasil e do exterior.

de espetáculos de dança em Juazeiro do Norte, as maiores carências da região.

Um fluxo de ideias com foco na formação, na pesquisa e na produção artística de um coletivo que, inicialmente, trabalhava de modo mais intuitivo. Na década de 90, indícios dessa dança que se diferenciava da cultura tradicional era apresentada pelos professores Daniele Esmeraldo, na cidade vizinha de Crato, e Magno Bacellar, em Juazeiro do Norte.

“Já percebemos um amadurecimento da dança cênica local”, diz Alysson. A capacitação já contou com profissionais de Fortaleza e, a partir de 2009, quando a Associação foi contemplada com editais nacionais, houve uma série de 10 módulos gratuitos com importantes artistas da dança cearenses e nacional: Flávio Sampaio, Priscilla Teixeira, Isabel Marques, Dani Lima, Lucinha Machado, Ana Vitória, Esther Weitzman, Milena Codeço, Sueli Guerra e Andréa Bardawil.

“É desse período os primeiros passos para uma capacitação e profissionalização da dança na região do Cariri, mas infelizmente, nos anos seguintes, eles fecharam suas escolas, academias e companhias de dança”, conta o bailarino e coreógrafo Alysson Amancio. Instigado por essa forma de dançar, Alysson seguiu para Fortaleza, onde cursou o extinto Colégio de Dança do Ceará, depois se graduou em Dança pela UniverCidade, no Rio de Janeiro. De volta, com o objetivo de fomentar a dança em sua região, em 2006 fundou a Alysson Amancio Companhia de Dança, com o desejo de desenvolver novas linguagens coreográficas em dança contemporânea. Ao perceber que para potencializar um trabalho artístico é preciso uma rede de colaborações, o coreógrafo criou, logo em seguida, a Associação Dança Cariri. O objetivo era implantar um centro de pesquisa, capacitar e agregar outras companhias e fortalecer a dança. Atualmente, as ações ampliaram-se para o ensino, criação, formação profissional e a circulação

Boa parte das iniciativas proporciona acesso gratuito à dança a um vasto público. Bailarinos e professores da região e alunos de outras cidades como Senador Pompeu, Iguatu, Araripe e Caririaçu, são parceiros no desejo por novas informações, da sala de aula às pesquisas artísticas e bibliográficas.

“Esse projeto colaborou para uma nova forma de pensar a dança, a partir das diferentes perspectivas de pesquisa e linguagem aqui apresentadas”, pontua o coreógrafo. Segundo ele, são também parceiros nessas ações, os centros culturais da cidade, com espaços de apresentação e projetos de formação de plateia. Outro parceiro é a Bienal Internacional de Dança do Ceará, com programação realizada em cidades do Cariri em 2007 e 2009. Em 2010, os artistas tiveram uma residência artística com o performer suíço Yann Marussich, resultando na peça Com cheiro de peixe. Projetos para o futuro? Uma sede própria para a Associação Dança Cariri, a ser construída em terreno já doado, com biblioteca, laboratório de informática, ateliê de figurino e um teatro com 300 lugares. E, claro, projetos que afirmem a permanência da dança que vem se profissionalizando na região.

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Juazeiro do Norte

BR-116, da Alysson Amancio Cia. de Dança Foto: Divulgação (acervo ProDança)

Universidade e políticas de dança O tema políticas públicas para a dança foi amplamente debatido na Bienal Internacional de Dança do Ceará, em ação realizada no Cariri, em outubro de 2010, e na Semana D da Dança de 2011. Ações que marcam uma maior proximidade entre gestores culturais, secretários de cultura de Crato e Juazeiro do Norte e aos artistas da região. A circulação

dos espetáculos e a formação profissional são as principais questões. Para isso, uma das bandeiras é a criação de um curso superior em Dança no Cariri. “Pela quantidade de grupos locais, sobretudo nas periferias, que ainda não têm visibilidade, sabemos que as ações continuadas seriam de suma importância e que a demanda é real”, reforça Alysson Amancio.

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Que danças contemporâneas dançamos? Um olhar sobre Ceará, Maranhão e Piauí Qual o pensamento contemporâneo de dança que se delineia no Ceará, Maranhão e Piauí? Com essa questão, Angela Souza discorre sobre os modos de configuração da dança nos três estados brasileiros Na edição 2009/2010 do projeto Rumos Dança Itaú Cultural, participei como pesquisadora responsável pelo mapeamento dos estados do Ceará, Maranhão e Piauí. A situação da pesquisa me possibilitou aprofundar questões que continuamente me acompanhavam ao examinar os mapeamentos anteriores do Rumos Dança: qual era “a dança contemporânea” de cada cidade pesquisada, como lidar com contextos tão distantes como da Paulicéia Desvairada ou na Terra da Luz. Para conversamos sobre essas questões trago para esta conversa um horizonte de reflexões e ideias levantadas sobre a dança contemporânea. De partida, entende-se que a dança contemporânea vai além da noção de uma dança feita no tempo de agora, mas apresenta uma relação singular com o próprio tempo presente, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distância, parafraseando Agamben (2009). Quando se pergunta o que é a dança contemporânea?, Laurence Louppe indaga: “Certamente, não uma simples mutação de códigos gestuais em relação a outras expressões de dança, mesmo se certas constantes, desejadas ou não desejadas, puderam ser constatadas. Certamente não em todo caso uma questão de vocabulário ou de forma que poderia se apreender do exterior com não importa que configuração” (LOUPPE, 2008, s/p). Cita ainda Isadora Duncan, para afirmar que há senão uma única e própria dança na dança contemporânea: a dança de cada um. Observa-se então que a corporalidade1 pessoal e singular do dançarino tornou-se fundamental na dança do século 20, no entanto na dança contemporânea esse acontecimento se difere da moderna, uma vez que a variação de gênero estilístico, por mais pessoal que seja, ocorre com restrições a estabilização de

um padrão de estilo. “A dança contemporânea se organiza à semelhança de uma operação metalinguística, na medida em que transfere a cada ato compositivo os papéis de gerador e gerenciador das suas próprias regras de estruturação” (BRITTO, 2008, p.15). Além disso, como propõe André Lepecki (2003, p.7), a dança contemporânea é uma dança-que-se-pensa “não somente como organização de passos e ritmos no tempo-espaço do palco” e que se potencializa no mundo como pensar-ação, como mobilização engajada e cotidiana de uma dança que se sabe e se faz ação-no-mundo. Diante dessas considerações, pode-se identificar tendências, ou seja, um grupo de ideias, entendimentos, visões de dança, no que pode ser compreendido como dança contemporânea. Esta dança que se pensa, operando de modo metalinguístico, organizando e estruturando seus procedimentos compositivos a cada ação criativa, que apesar de considerar as corporalidades singulares, não trata de uma configuração em um vocabulário padronizado, mas elabora diversos modos de organização na cena, palco, galeria ou rua, uma dança que se indaga e interroga seu público. Para contextualizar historicamente e pensar que “danças contemporâneas” são produzidas nos estados por mim mapeados, trago também para discussão o texto escrito por Maíra Spanghero (2001), curadora assistente da primeira edição do programa Rumos Dança. Nele, a autora aponta uma descrição categorizante dos modos de pensamento de dança por ela observados. Na edição 1999/2000, foram curadas 14 obras de Fortaleza, duas do interior cearense e uma de Teresina. Não houve artistas moradores do Maranhão inscritos.

Angela Souza Artista-pesquisadora da dança, pesquisadora do projeto Rumos Dança Itaú Cultural, mestranda em Dança da UFBA e articuladora do Esquema Coletivo - Experimentação, Demonstração e Documentação de Dança

Spanghero identificou no perfil das obras inscritas a distinção de dois grupos: um menor ligado à produção de dança contemporânea considerada como estilo coreográfico, e um grupo maior que ela denominou de turma dos “detetives” que entendem a produção de dança contemporânea conectada a

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Cia. Luzia Amélia, companhia do Piauí Fotos: Divulgação (acervo ProDança)

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um processo investigativo de ordem não-linear, formulação de corporalidade e uma mestiçagem de informações culturais (idem, 2001). Nota-se que tal ocorrência é sintomática e retrata em determinada perspectiva como o ambiente da dança cearense e piauiense se configuravam, circunstancialmente, naquele período. Após quatro edições do mapeamento, passados 10 anos, proponho, a partir desses dados, atualizar as reflexões sobre o fazer da dança desses locais, entendendoos na temporalidade de percursos e narrativas de processos não-lineares de codefinição. No grupo menor que entende a dança contemporânea como estilo coreográfico, ou uma nomeação que agrupa uma acepção de movimento num determinado tempo histórico, Spanghero localiza o Balé da Cidade de Teresina (BCT). Fundado em 1993, em seu percurso evoca a compreensão da dança contemporânea como constância de vocabulário, insere-se num circuito de festivais competitivos que também tratam a dança contemporânea como estilo. Outros grupos de dança que surgiram na cidade tenderam a replicar o modo de operar e entender dança deste grupo, evidenciado nas “repetições de fórmulas coreográficas, trajetos simétricos e preconcebidos de composição” (idem, 2001, p.88). O Balé Folclórico de Teresina, atualmente Cia. Luzia Amélia, é um exemplo. Surgiu em 1997 contaminado pelo entendimento da dança contemporânea como estilo. No entanto, sua primeira obra, A Dança dos Calangos, se destacou por evocar alegoricamente o homem-calango e sua relação de adaptação ao meio inóspito do sertão nordestino, com uma mistura de informações culturais, criando uma tensão entre modos de fazer e o entendimento de dança. Nos últimos anos a companhia e sua diretora Luzia Amélia vêm provendo e vivenciando outros modos de operar no fazer da dança, contaminando-se com experiências diversas de criação e formação2. O entendimento de dança contemporânea como estilo, que é possível identificar fortemente no ambiente da dança de Teresina, tem como contraponto uma tensão constante da contaminação do fazer da dança local com seu universo da cultura popular, que possibilita a reelaboração de corporalidades, com maior ou menor intensidade, por meio do cruzamento de informações formativas e culturais. No período recente, outro contraponto às ideias de dança no local se deu com a instalação do Núcleo do Dirceu no Teatro Escola João Paulo II3 sobre a édige do pensamento contemporâneo de dança proposto por Marcelo Evelin. O Núcleo incorporou alguns dançarinos do BCT e de outras formações e se configurou como um coletivo artístico, baseado nas ideias de colaboração e autonomia. O coletivo vem promovendo ações diversas, criativas, formativas, intercâmbios, nacionais e internacionais, entre outras, possibilitando outros modos de fazer e pensar a dança. A sua atuação alterna uma recepção ambígua de

estranhamento e aceitação no ambiente da dança na cidade, não obstante, o Núcleo fomentou uma visibilidade maior para a dança produzida em Teresina, no Brasil e fora dele, e vislumbra-se que seu trabalho continuado de criações e formação reconfigurará esse ambiente de modo imprevisível. O ambiente da dança maranhense também é contaminado pelo entendimento da dança contemporânea com estilo coreográfico. Um dos grupos com maior tempo de atuação e com reconhecimento na cidade, Pulsar Cia. de Dança, atua nessa perspectiva, na construção de suas obras dançantes e no circuito de dança que participa. A companhia é uma referência importante na cidade e promoveu nos últimos anos cursos de capacitação com apoio do Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna, que fomentou na cidade uma circulação diversificada de informações. Contudo, observa-se na produção da dança cênica local um cruzamento entre as linguagens de dança e teatro, havendo diversos fatores codeterminantes nesse processo, entre eles destaca-se: a carência de formação em dança e, respectivamente, a existência de formação técnica e superior na área de teatro, repercutindo no número significativo de artistas da dança na cidade com formação em teatro. Outros indícios dessa mistura podem ser observados: alguns explícitos nos grupos que se nomearem como companhias de dançateatro e alguns implícitos em sua formação, discursos e modos de organização de suas obras dançantes. Logo, mesmo com a contaminação pelo entendimento de dança como estilo, o fazer artístico local que cruza linguagens “escapole”, em algumas instâncias, de uma ideia de dança contemporânea como vocabulário padronizado e identificável, pois os processos de criação contagiados por investigações de corporalidades, dos modos singulares de organização cênica, entre outros, mobilizam outras questões além do vocabulário ou da reprodução de fórmulas coreográficas. O entendimento de dança contemporânea como estilo coreográfico, traz em si um conjunto de ideias que dificultam o reconhecimento de que antigas noções usadas para definir e analisar a dança cênica não são mais eficientes para discutir a diversidade do que está em cena na atualidade. Por exemplo, a compreensão de que é possível identificar um treinamento corporal único e específico, ligado a uma corporalidade e vocabulário também específicos, os quais servem de bula de instruções compositivas. Essas entre outras compreensões são evidenciadas em recorrentes indagações do tipo “isso é dança?”, que buscam referenciar-se pelo modelo dado anteriormente, não levando em consideração a mudança de referências dos modos de fazer da dança. Seguindo nossa conversa e analisando o ambiente da dança cearense, voltemos ao texto de Spanghero, no qual distinguir também um outro perfil, o qual nomeia como turma dos “detetives”, que têm a investigação como foco de seus processos de criação das obras dançantes. Procedimento investigativo, cuja pesquisa de movimento se funda no cruzamento de informações formativas recebidas e na adaptação, isto é, na

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preservação, manutenção e contaminação mútua de padrões corporais de movimento. Sublinhando que, contextualmente, Spanghero ressalta o papel das companhias existentes no Ceará como celeiros de novos criadores e, por conseguinte, como espaços formativos dos artistas de dança. Em 1999, era identificável e constante um movimento de formação e permanência de grupos “independentes”4 de dança, a despeito das precárias condições de existência e produção. São nesses grupos que o entendimento de uma produção de dança conectado a um processo investigativo, à formulação de corporalidades, ao cruzamento entre, voz, movimento, imagem e outros procedimentos na cena vão sendo engendrados. Articulado, ainda, com diversos cofatores de mobilização, eventos e ações formativas realizadas ao longo dos últimos 15 anos, a exemplo da organização do Fórum de Dança do Ceará, da criação do Colégio de Dança, da realização da Bienal Internacional de Dança do Ceará, entre outros. Nos anos 1990 alguns grupos de Fortaleza buscavam realizar o que se convencionou chamar, na época, uma pesquisa de linguagem, o que sobremaneira fomentava essa ideia de investigação de um modo de organização em dança, alguns mais voltados para corporalidades, outros para as questões da disposição da/na cena, contaminados por teorias e procedimentos do teatro. Do mesmo modo, se tem como codeterminante na elaboração desse pensamento sobre a criação em dança o intercâmbio de alguns grupos da cidade com artistas cearenses atuantes na dança europeia. A Companhia da Arte Andanças, Em Crise Cia. de Dança e Teatro, Grupo de Dança Dora Andrade, Vidança entre outros, buscavam desenvolver modos próprios de criação por meio de uma investigação particular do seu modo de fazer dança.

informações e elementos diversos que promovem adaptações, acordos e reconfigurações que transbordam rótulos e classificações estanques do que seja a dança contemporânea. Desse modo, mesmo nos locais, nos quais a noção de dança contemporânea como estilo coreográfico se dissemina intensamente, os processos de criação e os modos de fazer dança são atravessados por elementos e agentes diversos que desestabilizam e contaminam as práticas artísticas e que ressoam nos entendimentos de dança local. Atravessamentos e reconfigurações que se processam em rede, sem direção, nem linearidade, sobre os quais não se pode prever ou determinar etapas ou origens, apenas eixo de ocorrências e estados transitórios. Dito isto, considera-se que, ao mapear a dança contemporânea produzida nos estados do Ceará, Maranhão e Piauí, partiu-se de um pensamento contemporâneo do fazer artístico da dança, tentando identificar discursos e práticas e como os mesmos se conectam, aproximam-se ou distanciam-se. Observando-se, igualmente, que o ambiente da dança cearense, maranhense e piauiense estabelecem trocas informativas diversas entre si e entre o ambiente nacional e internacional de dança, apresentando níveis diferentes de estruturação e complexidade. Desse modo, mostrou-se nesse artigo circunstâncias transitórias que emergem dos processos de desenvolvimento de seus respectivos ambientes.

Notas 1. Corporalidade aqui entendida como as qualidades do corpo em seu engendramento biológico, cultural e psicológico. 2. Informações sobre as atividades do grupo no site http://cialuziaamelia.com. 3. O Núcleo do Dirceu iniciou suas atividades em 2006 no TMJP II, mas desde março de 2009 não mais tem como sede o teatro. O Núcleo vem desenvolvendo seu trabalho em sua sede no bairro do Dirceu, com apoio da Fundac, Ministério da Cultura, entre outros. Mais informações: http://nucleododirceu.com.br.

A expansão do ambiente da dança na primeira década do século 21 se configura, ainda, por outras ações e iniciativas como o Alpendre – Casa de Artes, Pesquisa e Produção, o Curso Técnico de Dança, a Escola Pública de Dança de Fortaleza (com os programas de Curso de Extensão Dança e Pensamento e o Dançando na Escola) e a criação e implementação de Editais de apoio estaduais e municipal, entre outros. Além de ter sido acompanhada do surgimento de diversos artistas coreógrafos que emergiam dos grupos existentes.

4. O movimento de criação de grupo e companhias de dança no Ceará acontecia, e acontece ainda hoje, de modo independente da subvenção de instituições públicas ou privadas. Nos anos 1980 e 1990 era comum e recorrente que os grupos se configurassem como extensão das academias de dança, o que vem mudando nos últimos anos.

Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

Observa-se no ambiente da dança cearense uma diversidade de entendimentos dos modos de fazer a dança, nos quais a investigação e experimentação têm sido estratégias recorrentes, produzindo singularidades nos modos de organizar essa dança em ações que se apresentam contextualmente engendradas, para além do entendimento exclusivo da dança contemporânea como estilo coreográfico.

BRITTO, Fabiana Dultra. Temporalidade em Dança: parâmetros para uma história contemporânea. Belo Horizonte: FID Editorial, 2008. LEPECKI, André. Corpo colonizado. In: Revista Gesto, Rio de janeiro, n° 2, junho de 2003. LOUPPE, Laurence. A dança contemporânea: o nascimento de um projeto. In: La Poétique de la Danse Contemporaine. Material disponível no Curso de Extensão Dança e Pensamento. 2008. SPANGHERO, Maíra. Ceará: veredas do sertão. In: BRITTO, Fabiana Dultra

Pode-se considerar, a partir das ideias apresentadas, que entendimentos e práticas são configurados por fatores,

(Org.). Cartografia da dança: criadores-intérpretes brasileiros. São Paulo, Itaú Cultural, 2001.

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Na outra margem do oceano Ao cruzar o oceano com 120 artistas cearenses, para a primeira edição da Bienal-Conexão Cabo Verde, a Bienal Internacional de Dança do Ceará proporciona o encontro de bailarinos, coreógrafos e produtores brasileiros e africanos para um intercâmbio em torno de éticas, estéticas e estratégias que compõem a dança Por Angélica Feitosa Uma fricção. Um encontro. Um investimento em relações entre artistas. Colaborações entre países do hemisfério sul do planeta. 18 de janeiro de 2010. 120 artistas da dança desembarcam, a um só tempo, na cidade de Praia, na Ilha de Santiago, uma das 10 ilhas que compõem o arquipélago de origem vulcânica de Cabo Verde. O interesse é iniciar uma profusão de trocas e parcerias a partir da Bienal-Conexão Cabo Verde, uma ação inédita da Bienal Internacional de Dança do Ceará em outro país, em conjunto com o governo caboverdiano. Em comum, a língua e a colonização portuguesas, que marcam tanto o país africano como o Brasil. Na dança outra proximidade: dificuldades para assegurar recursos públicos ou privados para pesquisa, criação, produção e formação artística. A diferença: uma mobilização artística e política que avança no Brasil e que o distancia em alguns anos das conquistas que os dançarinos de Cabo Verde esperam tornar realidade. É neste contexto de formulações de políticas para a dança, em seus diferentes aspectos, que os artistas e gestores caboverdianos receberam os artistas, produtores e gestores brasileiros para uma série de espetáculos, oficinas, palestras, encontros, cortejos, shows, residências artísticas e produções em vídeo-dança que movimentaram a capital deste país africano durante cinco dias.

Entre batuques e questionamentos Artistas dos dois países se uniram para ocupar palcos, praças, ruas, centros culturais, escolas e sedes de associações e provocar intercâmbios entre culturas aparentemente tão próximas e tão distintas. “Apresentamos espetáculos na busca de conectar o que é produzido no Brasil, sobretudo no Ceará, com o que é feito em Cabo Verde, buscando estreitar o diálogo. Além do reconhecimento da nossa produção artística em outro país”, explica o diretor da Bienal, David Linhares.

O contexto artístico profissional em Cabo Verde é restrito. Apenas um grupo dedica-se à produção em dança contemporânea, ao mesmo tempo em que há diversos grupos de canto e dança populares tradicionais nas várias ilhas do arquipélago. Porém, nenhum deles conta com financiamentos estáveis que permitam a manutenção de suas atividades. Em Cabo Verde não há políticas de editais, nem de incentivos fiscais ou de financiamentos diretos. Esta discussão é urgente para os dançarinos do grupo Raiz di Polon. Com um trabalho iniciado em 1991, primeiramente com influência das danças tradicionais e, logo em seguida, com contaminações da dança contemporânea europeia, o grupo mantém seu trabalho artístico através de uma escola de dança, com workshops e aulas regulares. “Nós vivemos dos espetáculos, principalmente das turnês fora do Cabo Verde, porque aqui ainda é um bocado difícil. As pessoas não pagam pela aula. Mas pelo espetáculo é como se fosse de graça porque é muito pouco. Quando fazemos turnês, é que ganhamos. É uma ginástica para viver disso, porque a dança aqui ainda não é vista como profissão. Não tem um salário”, diz a dançarina Bety Fernandes.

Projetos colaborativos Para ela o festival marca uma nova fase. “É importante que as pessoas vejam outras coisas, muito além dos movimentos dos grupos tradicionais. Ainda bem que aconteceu a Bienal. Isso me deixa satisfeita, não só pelos bailarinos, mas pelo público também”, pontua. Segundo Bety, a convivência com os brasileiros propôs uma nova relação no país africano. Afinal, sempre foi um desejo do grupo Raiz di Polon viabilizar um festival. A imagem que fica deste encontro é de liberdade e possibilidade. “Estou com uma sensação de muita informação. O apoio que os brasileiros deixaram não é material. É um sonho realizado por outras mãos”.

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Espetáculo Ruínas, da companhia caboverdiana Raiz di Polon, durante a Bienal Conexão Cabo Verde, na cidade de Praia, em janeiro de 2010 Foto: Ulisses Moreira

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Grupo de Batuko Tradiçon di Terra Foto: Ulisses Moreira

“Creio que a ida à Cabo Verde foi o primeiro passo de muitos. Fazer parte desse processo, ser precursor de um movimento histórico... Não tenho palavras, nem definição. Só vamos saber realmente o significado disso na próxima edição”, pontua o coreógrafo cearense Carlos Antônio dos Santos, do Grupo N∞. Artisticamente, na forma e na técnica, Carlos acredita que a contribuição maior foi brasileira aos caboverdianos. Ele enumera algumas: sem experiência em grandes eventos, os caboverdianos tiveram a oportunidade de aprender os passos de como organizar, montar e criar um festival. Também estimularam a chamada de público aos espetáculos. Todavia, em relação à cultura, foram muitas as lições que o Brasil colheu com a nação de Cabo Verde. “As pessoas da cidade de Praia são muito educadas e bem abertas ao novo”, define. “Acho que o maior ganho não está só nesse investimento/ desenvolvimento em formação de pessoal e infraestrutura, e sim nas relações que começaram a ser cultivadas”, avalia Andréa Bardawil, diretora da Cia. de Arte Andanças. Na visão da coreógrafa, artistas de ambos os países começam a pensar em intercâmbios e projetos colaborativos, e isso poderá gerar, segundo ela, relações mais duradouras, a médio e longo prazo. “A conexão trouxe um novo campo de possibilidades para ambos os lados”, avalia. Nesse trajeto, cenas surpreendentes. Os brasileiros encontraram salas com equipamentos europeus de última geração, mas com ausência de técnicos que soubessem manipulá-los. Perceberam que os caboverdianos não eram desinteressados em dança e artes, mas, simplesmente, não tinham contato com essas manifestações em seu cotidiano. A bailarina e coreógrafa Sâmia Bittencourt saboreou as diversidades. “Algo engraçado é pegar um público diferente, que se manifesta bastante nos espetáculos com muita alegria, sempre. Dentro dos teatros, eles riem, batem palmas, participam ativamente. Se não gostam, também reclamam, vaiam, fazem cara feia”, delineia Sâmia. Ela mesma se sentiu uma figura “folclórica” em Cabo Verde, pois aonde chegasse pessoas a acompanhavam, queriam lhe

tocar, perceber que ela era real. “Acho que era pelo meu tipo físico, tenho muita mistura. Sou pequena, tenho cabelos cacheados, cara oriental... Era também engraçado perceber como chamei atenção”, ri-se. A maior inspiração da bailarina e coreógrafa Valéria Pinheiro, da Cia. Vatá, está justamente na similaridade com as origens brasileiras. A coreógrafa faz um trabalho de pesquisa com a cultura da África Central, focada nos Orixás. “O interessante é que as companhias de dança saíram do seu lugar, do seu país. A cidade nos transforma e muda de lugar. Com certeza, para nós, coreógrafos, vai trazer uma semente de inspiração”, delibera. O crescimento do incentivo à cultura ainda é raso, mas de acordo com o prefeito de Praia, Ulisses Correia, a gestão assumiu a cultura como o principal vetor do processo de desenvolvimento. “A nossa estratégia é, através da cultura e da história, dar maior notoriedade internacional à cidade da Praia, resgatando, dando visibilidade e dignificando marcos e referências importantes”, anuncia. O prefeito destaca que, de Cabo Verde, os bailarinos brasileiros levaram conhecimento da vivência através da cultura e dos momentos de convívio. “Há tanto espaço para explorar em diversos domínios, que Cabo Verde e Brasil deveriam aproximar-se muito mais, por interesse mútuo”, acredita. Embaixadora do Brasil em Cabo Verde, desde 2007, Maria Dulce Silva Barros diz que a Bienal foi um grande sucesso por explorar uma das manifestações artísticas mais vigorosas, que é a dança. “O programa foi muito variado, as pessoas acompanharam com alegria e o congraçamento foi total”. O diretor da Bienal de Dança consegue enxergar várias nuances entre a situação da dança em Cabo Verde e o início da produção da Bienal, em 1997. “Não foi um contexto fácil no Brasil, mas obtivemos várias vitórias, atravessamos o mar e levamos a Bienal para o mundo. Chegamos a esse patamar favorável ao pensamento da formação de base para que toda a cadeia produtiva da dança seja pesada e executada em ação que solidifica o cenário da dança”. A ideia, daqui para frente, é que outras conexões possam oferecer uma produção coletiva, elaborada em conjunto.

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Grupo Cultural Recreativo e Desportivo Marina Vaz, em apresentação no Auditório Nacional, na Bienal Conexão Cabo Verde 2010 Foto: Ulisses Moreira

Dança como modo de vida Bety Fernandes, mulher de voz e traços fortes, conta que a ideia de criar o Raiz di Polon foi um “acaso que deu certo”. Eram jovens que se encontravam para dançar, sem compromisso, ou responsabilidade. “Foi um processo de descobertas. Era vontade nossa dançar não só nas discotecas, mas levar o nosso pensamento para o público”, relembra a intérprete, que também assina algumas das coreografias do grupo. Para boa parte dos bailarinos do grupo, dançar passou a ser o meio de vida, a forma de sustento. Bety foi uma das pessoas que deixou a dança conduzir os caminhos da vida. Saiu de um emprego burocrático para dedicar-se à profissionalização em dança.

O Raiz di Polon mudou de modo significativo a vida da bailarina Rosy Tavares. Era uma vontade intensa que brotava do interior do corpo quando ela assistia, por exemplo, a um balé na televisão e se via nos personagens. Apesar do corpo estático, ela bailava internamente. “Era uma sensação diferente. Acabei entrando na companhia, dançávamos o tradicional, mas já estava de uma forma contemporânea”, assinala. Com o grupo, a bailarina viajou a mais de 40 países, entre Europa, África e América. “Já fomos ao Senegal, Zimbábue, Luanda, Etiópia, Uganda, Gana, Mali, Moçambique, Guiné-Bissau”, destaca as fronteiras que o grupo atravessou nas terras vermelhas.

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Pela valorização da cultura e dos agentes culturais A Frente Parlamentar em Defesa da Cultura foi criada no Congresso Nacional em abril de 2011. O senador Inácio Arruda aborda as ações para o setor cultural A cultura, necessidade e direito básico do cidadão, relacionase fortemente com os direitos humanos e, portanto, com o próprio exercício da cidadania. Somos um país dono de uma vasta diversidade cultural, produzida de forma simples para quem dela participa, mas extremamente complexa para quem nos observa. Nosso povo, ancorado na criatividade e no talento, construiu num curto espaço histórico de tempo um patrimônio cultural que nos formou enquanto nação. Temos orgulho em afirmar que no Brasil o encontro do diferente e do distinto foi exatamente o que possibilitou nosso desenvolvimento humano e transformou-se no substrato de nossa própria identidade. Produzimos, enquanto seres humanos, símbolos que se expressam nas mais diversas formas de comunicação, crenças, valores e práticas. Aliar a dimensão cidadã a essa dimensão simbólica é necessário para que possamos elaborar políticas públicas eficazes que fortaleçam a inclusão social numa dimensão que considere todos os cidadãos protagonistas de nossa produção cultural. Nesse aspecto, a criação de mecanismos institucionais e de financiamento que permitam a expressão dessa diversidade, que contribuam para a criação de redes mais amplas de circulação da produção cultural e que propiciem a democratização

Inácio Arruda Senador da República pelo Estado do Ceará e membro titular da Comissão de Educação, Cultura e Esporte.

do acesso aos mais diversos bens, serviços e equipamentos culturais é fundamental. Iniciativas como leis que estabelecem a meia-entrada para estudantes em casas de shows e espetáculos e ainda os pontos de cultura, que promovem impactos sociais através da transversalidade cultural nas comunidades, são bons exemplos de políticas que possibilitam ao nosso povo o pleno exercício de seus direitos constitucionais. Criada no Congresso Nacional em abril de 2011, a Frente Parlamentar em Defesa da Cultura tem atuado fortemente pela aprovação de demandas do setor cultural. Tramitam hoje importantes iniciativas legislativas, como o PL 6722/2010, que institui o Procultura com a consequente revisão de mecanismos de financiamento e incentivo ao setor; a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 150/2003, que garante a vinculação de 2% do Orçamento da União para a cultura; e a PEC 416/2005, que institui o Sistema Nacional de Cultura. Se aprovadas, darão um grande salto no fortalecimento de nossa produção cultural, beneficiando especialmente as centenas de milhares de produtores culturais, exemplos belíssimos de profissionais, atuando na sua maioria sem a proteção de leis trabalhistas e que, através de escolinhas, associações e grupos, oferecem de forma heroica a possibilidade de inclusão cultural através da dança, da música, do teatro, do cinema. A ação efetiva desses agentes estimula os rituais culturais de cada local e faz florescer o talento de nossos jovens.

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Foto: Alex Hermes

Apresentei, em julho no Senado, o Projeto de Lei n.º 404/2011, instituindo a Bolsa-Artista, para proporcionar formação e aprimoramento de artistas amadores e profissionais em diversas áreas de atuação. Inspirado na Bolsa-Atleta, a Bolsa-Artista pretende ser um mecanismo de apoio e incentivo a artistas iniciantes, mas com potencial já evidenciado em seus campos de atuação. É necessário criar condições para que se desenvolvam talentos que, muitas vezes identificados na infância ou adolescência, não encontram oportunidade de se desenvolver e se integrar ao cenário artístico e cultural do País. A Bolsa-Artista será regida pelos seguintes princípios: valorização da diversidade de estilos, gêneros e linguagens artísticas; ênfase no pluralismo de ideias e na preservação da diversidade cultural brasileira; prioridade para o desenvolvimento das habilidades dos artistas; igualdade de tratamento entre as manifestações culturais eruditas e populares. No ano passado, foi aprovado o Projeto de Lei do Senado – PLS 417/09, de minha autoria, que dispõe sobre aposentadoria por idade para repentistas e cordelistas. O projeto espera apreciação na Câmara dos Deputados. Os repentistas e cordelistas possuem uma importância fundamental na cultura popular e regional brasileira, mas não têm sido devidamente valorizados. A legislação previdenciária não pode deixar passar ao largo essa categoria profissional que, embora informal, muito tem contribuído para a formação da cultura popular do nosso país. Se a diversidade cultural é nosso maior patrimônio, oferecer aos jovens a possibilidade do conhecimento de sua própria

cultura, a partir de sua livre expressão corporal e estética, é renovar as tradições, fazendo com que elas sobrevivam e ganhem novas dimensões. No Brasil, o acesso a bens culturais vem alcançando novas classes sociais, mas ainda predomina entre os mais ricos e com nível de escolaridade superior. Segundo o Instituto de Pesquisas e Economia Aplicada (IPEA), os 10% mais ricos do Brasil são responsáveis por aproximadamente 40% do nosso consumo cultural. Nessa perspectiva, além de leis que garantam o financiamento, devemos cobrar do poder publico a descentralização dos equipamentos culturais, hoje predominantemente instalados nas regiões de alta renda das grandes cidades. A população mais carente, tanto urbana quanto rural, precisa ter acesso a teatros, museus, bibliotecas e ter a possibilidade de lazer, recreação, estímulo à leitura e especialmente o contato com as mais diversas formas de manifestações artísticas. Estabelecer uma política cultural que propicie o respeito ao nosso vasto mosaico de manifestações artísticas e culturais não deve ser um sonho, e sim uma possibilidade real, que nos ajudará a ser de fato uma nação rica e democrática, voltada para o crescimento e que atenda às necessidades dos cidadãos e cidadãs. Se o desafio é grande, maior ainda deve ser nossa sensibilidade e determinação para enfrentá-lo. Nosso país é feito de homens e mulheres originais e criativos, uma mistura de cheiros, cores, sensações que nos fazem um povo único dentro de nossa enorme diversidade.

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Videodança em acervo virtual Coleção de videodança, doada pelo Acervo Mariposa, é disponibilizada para consulta online, pelo portal da Bienal Internacional de Dança do Ceará, e em acervo físico, na Escola Pública de Dança da Vila das Artes Contaminado pelo desejo de compartilhamento, há 5 anos o Acervo Mariposa vem constituindo uma gestão do acervo de vídeos, de alcance nacional e internacional. A cada contato, artistas disponibilizam suas obras com o objetivo de que seus trabalhos possam ser exibidos e difundidos em diversos contextos. Um acervo específico de obras de videodança foi constituído no biênio 2008-2010, a partir da pesquisa da paulista Rita Tatiana Cavassana, intitulada Vid.br. A proposta da pesquisa era que um vídeo levasse a outro e a outro, sucessivamente, possibilitando tanto um mapeamento como a constituição de uma rede entre artistas e videastas. O Acervo Mariposa, através de seu projeto de Doação Compartilhada, está disponibilizando para o Ceará a sua coleção de videodança, em uma parceria com a Bienal Internacional de Dança do Ceará e com a Escola Pública de Dança da Vila das Artes. O festival está digitalizando os vídeos, que podem ser acessados virtualmente pelo portal bienaldedanca.com. E na Vila das Artes o acesso é ao acervo físico. Os diálogos entre o Acervo Mariposa e a Bienal de Dança abrem, ainda, novas possibilidades de compartilhamento e de parcerias com Fortaleza e o Ceará, tais como às relações a serem traçadas com ações vinculadas ao Pontão Terceira Margem, por meio dos projetos socioculturais desenvolvidos pela Escola de Dança de Paracuru, a Edisca e a Vidança.

“É um momento marcante, de ‘bons encontros’, para parafrasear uma ação realizada dentro da Bienal. A coleção é colocada online e os parceiros se encontram para traçar a continuidade desta ação. Vamos pensar novos modos de leitura, uso e reflexão dos vídeos. Com essa proximidade, emerge um sentido de colaboração naquilo que usualmente chamamos de parceria. E isso não pode prescindir de uma via de mão dupla: um faz, outro completa, outro remixa, outro multiplica”, explica a coordenadora do Acervo Mariposa, Nirvana Marinho. O Acervo Mariposa é um programa cultural de gestão de vídeos de dança, sem finalidade lucrativa, cujo foco é a construção de um patrimônio coletivo a ser democratizado. O objetivo é que o conhecimento de dança, acumulado através do tempo, se propague pelo Brasil. “A história no presente. E isso é possível com uma gestão de autorizações calcadas na forma de licenciamento do Creative Commons, na qual o autor é quem escolhe os selos (os modos) de liberação do seu trabalho”, diz Nirvana. A Doação Compartilhada segue, segundo a coordenadora do Acervo, formando também uma rede de instituições que busquem formas de dar continuidade ao conhecimento em torno da dança, “através da mais afetiva forma de fazer arte: compartilhando, ando, ando...”. + Informações acervomariposa.com.br bienaldedanca.com

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A revista de dança do Ceará

apresentação

patrocínio

apoio institucional

apoio cultural

realização

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