Brasil Ride 2011 no Jornal Público

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BTT na América do Sul É a maior prova de BTT por etapas da América do Sul e tem o atractivo extra de se realizar na Chapada Diamantina, reserva natural no estado da Baía. Nuno Henrique Luz pedalou 600 quilómetros debaixo de um calor extremo mas sobreviveu para contar a história. Uma história feita de emboscadas da natureza, resquícios coloniais e muita carne de sol

Brasil Ride O caminho das pedras

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Cenários remotos e deslumbrantes e sofrimento extremo, dia após dia. São estas as características essenciais de uma corrida de ultra-endurance, e as duas foram ainda refinadas na Brasil Ride, a maior prova de BTT por etapas da América do Sul, que recentemente terminou na Chapada Diamantina, uma reserva natural no estado da Baía. O percurso era tão emocionante e as dificuldades tão extravagantes que para os apreciadores a corrida foi quase perfeita.

BRUNO SENNA

BRUNO SENNA

No final, depois de 600 quilómetros e quase 40 horas de competição, a uma aversão súbita e profunda à bicicleta seguiu-se, passadas poucas horas e já de caipirinha na mão, a melancolia de ainda faltar um ano inteiro para a próxima edição — os dois passos da confirmação de que tudo correu às mil maravilhas. Se descrevermos ao comum dos mortais o percurso da Brasil Ride, e de provas semelhantes, como o Titan Desert, sete dias e 600 quilómetros em Marrocos, ou o Transalp, nove dias e quase 700 quilómetros nos Alpes alemães e italianos, tudo clássicos do género, o comentário será “espectacular”. Se explicarmos o desafio do ponto de vista físico, a resposta é outra: “Quanto me haviam de pagar.” A Brasil Ride, se é também turismo de aventura, já é uma aventura para ser levada a sério — já mete algum medo, e mesmo preparados já andamos sempre um pouco na incerteza se a conseguimos cumprir até ao fim ou não. Este ano, das 103 equipas (de dois elementos) à partida, apenas 67 completaram as sete etapas, e teria sido pior se a organização não tivesse prolongado alguns temposlimite de chegada.

ALEXANDRE CAPPI

Lisboa-Mucugê: dois dias de viagem Neste tipo de prova, a estafa começa muito antes do primeiro dia, com uma logística que requer paciência, sobretudo a bicicleta, um objecto pouco prático para viajar e incómodo para transportar em qualquer situação que não seja irmos a pedalar. Entre o empacotamento em Lisboa, a navegação nos aeroportos de Lisboa e Salvador e o carregar e descarregar contínuo desta mala de quase 30 kgs e dois metros de comprimento até estarmos dentro do autocarro a caminho da prova, é um facto que ajuda conseguir respirar fundo e manter o contacto com o nosso Buda interior. Até porque depois, a tal ligação Salvador-Mucugê, o local da partida, equivale a fazer Portugal de alto a baixo antes de haver a A1 — são 700 quilómetros e 10 horas de viagem até à Chapada Diamantina. Dois dias para lá chegar, portanto, um para o avião e um para o autocarro. Dentro do autocarro, o pelotão finalmente sentado depois de horas a fio em cima das pernas impecavelmente barbeadas, o que se vê é uma floresta de Crocs e meias de compressão a testar posições para um dia inteiro de aperto no assento. Ou então é o nervoso miudinho das vésperas.

Na Chapada Diamantina: Mucugê Mucugê, onde começa e onde acaba a Brasil Ride, foi fundada em meados do século XIX e é uma das mais antigas cidades da Chapada Diamantina. (Chapada significa zona de penhascos, e Diamantina porque a região tem uma história ligada às minas de diamantes e ouro — os centros de exploração eram Mucugê e, a 130 quilómetros, Lençóis.) Os habitantes, hoje, são pouco mais de dez mil. Passeando pelas ruas de pedra, o que vemos é um cenário de outros tempos, bem conservado e com os casarões coloniais de estilo português a sublinhar o charme de época. Rodeada de cascatas, grutas e montanhas escarpadas, e com uma dúzia de pequenos hotéis e pousadas, a cidade vive sobretudo do turismo. Não parece, mas estamos a mil metros de altitude. O ritmo das ruas é pachorrento, as conversas nos cafés incompreensíveis de longe para ouvidos estrangeiros, mesmo os de nacionalidade portuguesa, e de manhã à noite toca uma banda sonora de música de feira, com ritmos frenéticos e letras romântico-canalhas: “Você não vale nada/mas eu gosto de você”.

Visita obrigatória é o cemitério bizantino, um conjunto de igrejas e capelas em miniatura, de formas pontiagudas e em estilo gótico, pintadas de branco. Por causa do solo pedregoso, é impossível sepultar os mortos debaixo dos sete palmos de terra e eles descansam nestes túmulos acima do chão. À noite, a visão azulada do cemitério domina todo o horizonte de Mucugê.

O pouso ideal: uma pousada A Brasil Ride tem o seu próprio acampamento, com uma tenda (e um colchão a sério) para cada participante, mas por 50 reais, uns 20 euros, compravam-se duas noites numa pousada, com duche individual e, sobretudo, sem o “banheiro químico” das tendas. O que se perdia em imersão no circo ambulante, internacional (muitos americanos, alemães e belgas), típico destas provas, ganhava-se em paz e sossego depois do castigo físico e mental de cada etapa.

Também permitia explorar melhor a cidade — é que nem sempre apetece ficar na órbita do acampamento a discutir pneus, mudanças partidas, desfalecimentos e outras incidências do dia ciclístico. Há um momento para as conversas monotemáticas, mas aquele não era esse momento. Igualmente importantes para a recuperação para amanhã vão ser a carne de sol, as paçoquinhas (uma guloseima salgada de amendoim, sal e açúcar), as cocadas (um doce de coco, leite e açúcar) e os sumos tropicais.

145 quilómetros, 49 graus O primeiro dia, um prólogo de 13 quilómetros, servia para dar a conhecer, em ponto pequeno, as dificuldades futuras: a areia, as pedras, o grau de exigência técnica do percurso — e o calor. Felizmente sem humidade, a Chapada Diamantina é uma região árida. Mas houve dias de 45-49 graus. Ao contrário, a segunda etapa era uma coisa simplesmente absurda, uma barbaridade de 145 quilómetros e 3500 metros de subidas de tal forma temível que o tempo máximo para fazer o percurso passou de 12 para 14 horas, para evitar desclassificações a mais logo no início da prova. Para além da distância, das subidas, das temperaturas e da quantidade ridícula de pedras, a agonia suprema foi um sector de 17 quilómetros de uma floresta impenetrável conhecida localmente como “Vietname” e onde o “empurra-bike” podia durar, e em muitos casos durou mesmo, horas. Sair finalmente, intacto, daquele cerco apertado, daquela emboscada contínua de natureza, era por si só um alívio. μ

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BTT na América do Sul FÁBIO PIVA

± A etapa acabava com um espectacular requinte de malvadez, uma subida de 12 quilómetros que foi para muitos o golpe de misericórdia — vi pelo menos dois ciclistas a pé, em sentido contrário, a descer aos esses, desorientados —, um obstáculo intransponível dentro das 12 horas previstas. Já o sol se punha e ainda havia gente a chegar e a chorar na meta.

O impossível: como fazer O truque num dia destes é não parar a não ser nos abastecimentos, e mesmo aí rapidamente. Se vamos bem, comemos e bebemos. Se estamos mal, é preciso comer e beber — o açúcar na boca é crítico para a força de vontade. Não podemos pensar muito no que ainda falta para acabar, nos problemas que tivemos ou podemos ter, nem dar ouvidos àquela voz que aparece nestes momentos a perguntar o que é que estamos ali a fazer. Idealmente, a certo ponto começamos a perceber aquele conceito inefável da “zona” — de mergulho total no presente, de privilégio por fazermos parte daquele instante, daquele cenário, daquele desafio maior do que nós até o vencermos pelo nosso esforço. Pois — mas o que vai na cabeça naqueles momentos,

naqueles momentos faz sentido. Um dia assim é das coisas mais difíceis que se pode fazer em cima de uma bicicleta, e o sentimento de realização pessoal é do mesmo calibre. Por outro lado, ok, a Aldina Duarte no iPod parecia penar ainda mais profundamente, o que tornava relativas as dificuldades na bicicleta. O fado, património imaterial da Humanidade e doping auditivo. Passar mal dias a fio e aguentarmo-nos é, aliás, para falarmos com franqueza, a principal motivação para estas provas. Ninguém faz o Brasil Ride, o Titan Desert, o Transalp, para se divertir, mas sim porque a dor, o sofrimento, o caminho das pedras podem ser imensamente recompensadores, e uma necessidade importante depois de se experimentar a primeira vez (nunca antes). Os maratonistas falam da runners high, da “pedra do corredor”, uma explicação não muito diferente.

A rotina: carne de sol A chegada da segunda etapa era em Rio de Contas, a base de operações para os quatro dias seguintes. Mais uma vez, e não desfazendo os encantos do campismo de competição, sobrepôs-se o apelo da pousada, mais concretamente do banheiro da pousada. O resto do dia, uma rotina nesta altura firmemente estabelecida, era passado a tentar conjugar as necessidades igualmente prementes de estar deitado de pernas para cima e de comer sem parar — fácil com as cocadas e as paçoquinhas, impossível com a carne de sol e os sumos. O banquete continuava ao jantar — outro aspecto em que a Brasil Ride marcou pontos. Em vez da intragável pasta party habitual nestas provas, a organização

conseguiu pôr de pé diariamente, e com isso ganhou um lugar de destaque no coração esfaimado de cada participante, um buffet que era um verdadeiro festival da gastronomia local, que incluía mas transcendia a omnipresente carne de sol.

com uma abundância de rios e cachoeiras e uma geografia rochosa monumental, dramática. Em suma, um cenário feito por medida para a Brasil Ride.

Rio de Contas

Depois da esfrega do segundo dia, o terceiro seria, por comparação, um percurso mais fácil, cinco voltas a um circuito típico de crosscountry – isto é, sem planos, ou se subia muito, ou se descia muito, subia-se tanto que se atravessava o interior de uma capela no alto de um monte, e descia-se tanto que boa parte dos atletas, mesmo os dotados de uma técnica decente de BTT, faziam muitos dos precipícios a pé. Em alguns ainda era visível a tentação de fazer uma bravata, mas uma espreitadela lá para baixo bastava, desmontavam logo à cabeça. O cálculo era óbvio: ninguém faz milhares de quilómetros e um considerável investimento em tempo e dinheiro para desistir por queda anunciada nos arredores de Rio de Contas, antes do meio da prova. Quem tem lycra também tem medo.

Com uma população actual também perto dos 10 mil habitantes, Rio de Contas foi criada em meados do século XVIII por Provisão Real e com o nome de Vila Nova de Nossa Senhora do Livramento das Minas do Rio de Contas. Primeira cidade do Brasil integralmente planeada, e sofrendo em tempos de uma epidemia de “febre de mau carácter”, Rio de Contas é agora um local encantador, que mantém o traçado original nas ruas e nas praças largas, nos monumentos em pedra e nas igrejas barrocas. As minas de ouro, que há 200 anos fizeram de Rio de Contas uma cidade rica, secaram há muito, e, tal como Mucugê, a principal fonte de rendimento, para além da exploração agrícola, é hoje o turismo. Ainda assim, e apesar de habituados a receber, aos riocontenses falta-lhes por enquanto a indiferença aos visitantes característica de destinos turísticos com mais experiência — a permanência na cidade das quase 300 pessoas da Brasil Ride produziu grande excitação, e não apenas na faixa mais impressionável, as crianças. Mucugê, Rio de Contas e ainda Ibicoara são os pontos principais de uma região de turismo ecológico,

BRUNO SENNA

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Quem tem lycra tem medo


ALEXANDRE CAPPI

Por outro lado, é verdade que em toda a Chapada Diamantina não vimos um único hospital, o que, se não significa que eles não existem, pelo menos dava que pensar na rapidez do acesso em caso de necessidade.

O “empurra-bike” Depois deste terceiro capítulo, que parecia menos mau no papel mas no fundo tinha sido outro massacre, até porque em corridas por etapas o cansaço acumula-se rapidamente com o passar dos dias, já sabíamos o que esperar das três etapas seguintes. Com distâncias entre os 80 e os 130 quilómetros, e despertares entre as quatro e as sete da manhã, partiam todas de Rio de Contas, na direcção de percursos diferentes que nos iriam tramar cada um à sua maneira, mas quase sempre envolvendo pedras de grande porte e troços de “empurra-bike”. Por esta altura, desaparecidas algumas nuvens tímidas que pontualmente chegámos a ver, tornava-se decisiva a gestão do calor. Por mais cedo que fossem as partidas, o número de horas de cada etapa obrigava-nos sempre a enfrentar a violência implacável do sol. “Bandanas” na cabeça, arm coolers nos braços, um revestimento completo de protector solar para bebés, baldes de água fria a escorrer do cabelo aos pés em cada abastecimento e uns óculos tão escuros quanto possível — valia tudo em legítima defesa contra aquela brutalidade solar.

Mesmo assim, durante as etapas era frequente a visão de bicicletas à beira da estrada, com os atletas refugiados debaixo de árvores, deitados. Como se fosse dia de chuva e eles esperassem o fim da tempestade — só que infelizmente o sol não pára de repente.

O calor: um peso no estômago O calor também não ajuda noutra dificuldade inevitável nestas provas, os problemas gastrointestinais. E o estômago pode ser um adversário terrível, se juntarmos uma alimentação a que não estamos habituados, água das torneiras em vez de engarrafada, a agressão permanente do açúcar dos géis e das barras energéticas, as temperaturas e a desidratação, e frequentemente uma gestão do esforço demasiado optimista — quando o ego passa o cheque de um ritmo forte, mas as pernas e o treino que se fez não lhe dão cobertura.

BRUNO SENNA

Fortaleza

Recife

BRASIL Chapada Diamantina

Salvador

Brasília

São Paulo

Rio de Janeiro ATLÂNTICO SUL

Qualquer um destes factores pode ser a morte digestiva do artista, o que quer dizer imediatamente o fim da etapa. Este ano, na Brasil Ride, aconteceu aos melhores, líderes da sua categoria, e aconteceu a muitos outros mais para o fundo da lista. Ao fim de alguns dias, e como é também vulgar neste tipo de corrida, as conversas começavam a derivar imperceptivelmente para o funcionamento da “caldeira” de cada um, com uma alegria positivamente infantil nas descrições mais gráficas e uma solidariedade forjada na certeza de que, no momento da verdade, somos todos iguais. De qualquer modo, também aqui, what happens in Vegas stays in Vegas, e uma vez acabada a prova nada de extraordinário aconteceu. 15 dias a clorofila líquida no regresso a Lisboa — perfeitamente normal.

O final: felizmente abreviado A etapa número seis levou-nos de volta a Mucugê, onde chegámos mais mortos do que vivos já com 30 e tal horas nas pernas. Piedosamente, e a pretexto de haver risco de incêndios no percurso original, a organização decidiu abreviar a sétima e última etapa para 50 quilómetros em vez dos mais de 100 previstos. E entre toda aquela malta de barba rija, de sexo masculino ou feminino, com tatuagens do Ironman e camisolas ganhas noutras corridas épicas, facto é que ninguém se queixou dos 60 quilómetros a menos. Por esta altura, as classificações também estavam decididas — Luís Leão Pinto, o melhor atleta

português de BTT e um dos melhores do mundo, já sabia que ia ficar no segundo lugar, depois de o seu parceiro, Alejandro de la Peña, campeão espanhol de maratonas, ter tido problemas físicos durante a prova.

A próxima: onde será? Vinte e quatro horas depois, deixámos para trás o Verão brasileiro rumo ao Inverno português. A logística não é mais fácil na volta, mas a ansiedade é menor — o que havia a fazer está feito, o físico está massacrado mas inteiro, e o diálogo no avião já trata de onde será a próxima do género. Possibilidades não faltam, a oferta de provas de ultraendurance, de BTT e outras, multiplicou-se nos últimos anos. Tantas corridas, tão pouco tempo — e dinheiro. O regresso à realidade e aos taxistas do aeroporto da Portela é, como sempre, duro. Em 2012, a Brasil Ride realizase um mês mais cedo, entre 23 e 29 de Setembro, certamente com temperaturas mais amenas. O preço da inscrição é de 2500 reais (mais ou menos 1000 euros), e um voo de ida e volta para Salvador custa outros 1000 euros. Quase um ano chega perfeitamente para preparar a prova. Uma rotina sólida, um bom conhecimento do que é preciso e uma motivação forte farão o resto. Mais informações em www.brasilride. com

ALEXANDRE CAPPI

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