Agradeรงo a todos os deuses e deusas, que me fizeram compreender a diversidade humana.
Para meus netos Alan, Leticia e David.
O estudo da mitologia grega fez aumentar meu interesse em desenvolver cada vez mais a antiga arte de contar histórias. Tenho observado, ao longo de minha experiência como professora, o enorme interesse que despertam as histórias que conto. Fico fascinada ao verificar que os mitos possuem um poder mágico de mobilizar os ouvintes, jovens ou idosos. Diante de uma narrativa, toda a expressão emocional e até a postura física passam por uma transformação. A platéia é, então, animada por uma vivacidade diferente, os corpos se aprumam, os olhos brilham, crescem o silêncio e a atenção. O INESQUECÍVEL BANQUETE DOS DEUSES foi escrito num primeiro momento para atender às constantes solicitações dos alunos. Mas colocar no papel o que com o tempo aprendi a contar com variadas pausas e entonações de voz, colorindo aqui e ali a narrativa com detalhes para melhor prender o interesse dos ouvintes, exigiu de mim um empenho diferente. Evidentemente que, em termos de mitologia, não existem documentos novos, nem divindades desconhecidas. As histórias fazem parte do domínio público, em livros que estão ao alcance de qualquer leitor. Mesmo que se apresentem sob a forma de diferentes versões, ou seja, contadas em diferentes estilos, a idéia central permanece inalterável. Tendo como base infinitas variações de um mesmo enredo, pretendo mostrar que, embora sob a justificativa de um argumento fictício, a sua construção e a trajetória de seus personagens se apresentam como formas atuais de expressão, fundamentadas num contexto psicologicamente legítimo e emocionalmente realista. Para tanto, trilhei um caminho ainda pouco explorado: dar voz a cada um dos deuses do Olimpio. Ao deixar falaram os deuses que tenho dentro de mim, expressei emoções universais, onde se misturam sentimentos, defeitos e virtudes do ser humano comum, como um multifacetado caleidoscópio. Os deuses do Olimpo, por sua dupla natureza – divina e humana – circulam entre o mundo da projeção e da identificação. Se o mito conversa até hoje sua vitalidade é porque se refere aos mesmos problemas existências, morais e sociais que ainda continuam a afligir a humanidade. Conhecer os deuses e deusas representa uma preciosa ferramenta para todos aqueles que se interessam em saber mais sobre si mesmos e em como compreender ou lidar com as outras pessoas. Convido os leitores a entrarem no Olimpo, e participar de um banquete inesquecível. E, assim, compreender porque a importância da narrativa mitológica jamais será perdida. A Autora.
Antes de iniciar minha narrativa, faço questão de advertir – e o farei todas as vezes que forem necessárias: Eu sou a lei. Sou e sempre serei Zeus, o deus dos deuses e dos homens, a divindade suprema e incontestável do Universo. Aconteça o que acontecer, de tal privilégio eu jamais abrirei mão. Durante um tempo incontável, minha maior satisfação era ter nascido imerso na eternidade. Vivia ao sabor dos dias, ciente de meu poder e soberania. Tinha o mundo aos meus pés. Deuses e homens tremiam só de pensar em me desagradar. Meu poder era inesgotável. E minha energia de conquista exigia a eterna novidade. Não havia deusa, ninfa ou mulher capaz de resistir aos meus encantos. Não media gestos ou palavras e alternativas ímpetos arbitrários, cruéis, vingativos ou generosos, sem nenhuma preocupação em ser coerente. Apesar de atitudes, por vezes contraditórias, eu sempre exigi ser venerado e respeitado sem restrições. Com o tempo, nós, deuses, fomos apagados da consciência dos mortais. Hoje, já não nos devotam mais os antigos cultos e o fogo que ardia em nossos templos se tornou cinza e fria, misturadas ao pó da terra e varridas para longe. Quando percebi que havíamos nos tornado ausentes de sua vida cotidiana, passei a governar de longe os assuntos da Terra. Alternava momentos de frustração calada com ataques intempestivos. Transformei minha raiva em furiosos trovões. Senti-me impotente diante do fato de que nada mais parecia comovê-los.
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Palavras Iniciais
Demorei a perceber que a mudança também havia chegado ao Olimpo e que nossas vidas aqui não faziam o menor sentido. A dor de nos tornarmos anônimos é uma ferida que não cicatriza. Somos, existimos, mas ninguém mais nos honra e nem ao menos nos chama pelos verdadeiros nomes. O fato é que não sabemos o que fazer com a eternidade de nossos dias, que se tornaram uma seqüência de dias previsíveis e sem sabor. Os homens sempre gostaram de criar deuses e se livram deles assim que os consideram desnecessários. Agora reconheço que deveria ter sido bem mais enérgico e punitivo. Um dia, Hermes teve a idéia de expor a nossa história a toda a Humanidade. Pensava que seria a forma mais adequada de nos mantermos vivos em suas mentes e corações, lugares onde o esquecimento apagou a nossa presença. Relutei o quanto pude, disse que era praticamente inviável fazer os mortais compreenderem que vivemos um tempo sem tempo, uma temporalidade segura, difícil de se traduzir nalinguagem dos homens. No mundo divino, passado, presente e futuro se confundem em uma lógica não linear. Nossas ações transcorrem em ritmo circular, impossível de ser narrados com uma sucessão de acontecimentos que obedeceu a uma ordem cronológica. E, além do mais, como me colocar no papel de um narrador neutro? Argumentei ainda que vai parecer estranha a nossa surpresa ou curiosidade diante das narrativas que, afinal, fazem parte de nossa experiência de vida compartilhada. Devo esclarecer que aqui na morada dos deuses não nos importamos necessariamente com nossos semelhantes, ao contrário do que se poderia supor. Isso significa que cada um vive sua própria vida e nem sempre participa aos outros suas vivências, sejam sucessos ou fracassos. É possível que certos relatos provoquem nos deuses reações inesperadas. Serão apenas fruto de mágoas acumuladas. Tive bastante tempo para pensar. Resisti o quanto pude, até perceber que nem mesmo a autoridade suprema do Olimpo consegue ficar imune aos apelos de Hermes. Acabei convencido a contar a nossa história quando ele disse que não se tratava de uma confissão, mas de um desabafo. E decididamente o que eu, governante supremo do Universo devo recear? Portanto, eis-me aqui, pronto para me expor diante dos humanos no que eu garanto ser o retrato mais fiel de nossa história. Não apenas os fatos, mas também – e principalmente – os sentimentos e emoções que nos movem. Pouco me importa deixar transparecer que, por trás de meu caráter violento e implacável, se esconde um ser sensível. No fundo, sei que sou um irremediável romântico. Frágil como qualquer mortal.
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Nas alturas do Olimpo, em pleno Céu, o tempo é sempre claro e límpido. Sopra uma brisa suave e a vida corre mansamente numa rotina feita de hábitos, sem nenhuma preocupação. Há milênios, nossa vida aqui é assim.Despertamos a cada manhã no mesmo cenário, mal Aurora abre as pálpebras do dia e o mundo se inunda com a luz rósea do amanhecer. Pela janela de meus aposentos observo Apolo com seus brilhantes cachos dourados, ocupado em prepara sua lira para novamente nos encantar com suas divinas melodias. As Musas vêm chegando sem pressa e, entre risadas e cochichos, se reúnem com as Cárites de belas faces e as Horas, deusas do momento certo, para nos alegrar com seus cantos e danças. Em pleno éter, rodeados pela mais pura luminosidade, saboreamos cada dia a delícia de sermos nascidos para sempre. Ainda festejamos por puro hábito e, por puro hábito, os cânticos são os mesmos, assim como a música e os ruidosos brindes com taças de ouro. Contudo não consigo mais sentir o mesmo prazer de antes. Sempre me irritei com facilidade. Se as coisas não acontecem de acordo com a minha vontade, a reação é imediata. É assim que eu sei me manifestar, tanto para afirmar minha autoridade, como para calar quem ousa contestar minhas ordens. Hoje acordei diferente, com uma desconfortável nostalgia a me oprimir o peito. Contemplo com tristeza o que um dia foi meu Império. Durante longo tempo reinei sobre a imensidão do
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O Olimpo se prepara para a celebração
Céu e da Terra. Até mesmo as águas estavam subordinadas à minha vontade. Os deuses eram respeitosamente venerados. E, desde o aparecimento das primeira cidades, nenhum lugar era fundado sem a nossa presença, sem que fosse construído um templo, um altar em nossa honra ou, ainda, sem a cerimônia do sacrifício inaugural. Nunca nos esqueciam. Antes dos homens se preocuparem com suas próprias questões, os deuses é que vinham em primeiro lugar. Os poetas eram muito imaginativos, criavam histórias, algumas até bem interessantes. Falavam sobre as duas enormes jarras que ficavam diante do meu palácio. Em uma, ficavam depositadas todas as coisas boas e belas da vida e, em outra, todas as dores e sofrimentos. Diziam que, quando nascia uma criança, eu tomava um punhado de cada uma das jarras para espalhar sobre o recém-nascido. Se algumas vezes eu me distraía, polvilhava apenas satisfações ou infortúnios. Era, sem dúvida, uma história engenhosa com a qual conseguiam explica o porquê de algumas pessoas terem uma vida feita de alegrias e outras, ao contrário, uma existência em que nada chega a bom termo. Dos jardins do Olimpo me chega um ruído familiar. Observo os serviçais que preparam mais um banquete. Correm de um lado para o outro, aprontam as mesas, colocam enfeites, acomodam as cadeiras em seus lugares por ordem de importância. Tudo deve sair a contento para não melindrar nenhum convidado: somos muito temperamentais. Desde que eu conquistei o governo do mundo e me instalei no Olimpo, as festas têm sido uma constante. Afinal, de todos os prazeres que nós desfrutamos comer e beber sempre estiveram mais de acordo com nossa natureza divina. Nosso organismo não é feito para ingerir os mesmos nutrientes que os mortais. Eis aqui o segredo da nossa imortalidade: o néctar e a ambrosia, inalcançáveis objetos de inveja e de cobiça dos mortais. Nenhuma bebida se compara ao revigorante néctar, mel especialmente elaborado por nossas abelhas. Nenhum alimento da Terra se assemelha à ambrosia, o alimento da imortalidade. E, hoje, o que brindamos nas taças de ouro? Não tenho mais a verdade, ela mudou de mãos. Nem tenho mais a lei. Está cada vez mais distante o tempo em que eu era a autoridade e não admitia qualquer indisciplina. Nunca fomos deuses distantes, indiferentes, limitados aos nossos prazeres e necessidade. Tampouco vivemos em um mundo de paz e beatitude, como dizem alguns. Enganam-se aqueles que acreditam ser a nossa vida uma felicidade perfeita e que a plena alegria é uma qualidade que só cabe a nós, os deuses. Culpa do poeta Homero, que nos chamou de bem aventurados. Talvez pelo fato de ser cedo ele imaginasse coisas que sequer sabia, porque não tinha olhos para ver nem o que estava debaixo de seu nariz quanto mais o que estão tão longe. Na época achamos graça e simplesmente deixamos que os mortais acreditassem nesse disparate. Longe de vivermos uma vida feita apenas de ócio e lazer, tínhamos sempre muito a fazer, além de participar de festas e banquetes. Certamente ainda convocamos assembléias para resolver alguns assuntos importantes, mas elas são apenas uma sombra do que eram então, cheias de vigor de acaloradas discussões, que por vezes entravam noite adentro sem chegar a uma solução, para recomeçar tudo novamente no dia seguinte. Os mortais também nos solicitavam muito. Perdi a conta das vezes em que Deméter,
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deusa da Colheita, descia do Olimpo para favorecer a floração e o amadurecimento dos frutos. Ares, deus da Guerra, era presença certa a cada novo conflito. Mas era Atena, deusa da Sabedoria e das guerras justas, a quem os homens dirigiam os mais aflitos apelos. Apolo, deus da Luz, não tinha mãos a medir, tantos eram os que se dirigiam a Delfos e a todos os seus oráculos e santuários em busca de respostas para suas aflições. E ele tinha que ter o maior cuidado com as armadilhas que lhe preparavam, sempre com a finalidade de testas seu poder de adivinhação. Qualquer deslize de sua parte colocava em risco a credibilidade de suas pitonisas e – o que é pior – ele próprio estava sempre a um passo do descrédito. Como médico, Apolo tinha que estar disponível quando um doente invocava sua ajuda. Hermes, o nosso mensageiro, veio a mim incontáveis vezes para se queixar de que quase não conseguia se agüentar em pé, tantas eram as solicitações. Deslocava-se para cima e para baixo, levando mensagens dos deuses para os homens e conduzindo a alma dos mortos de volta à Terra. E também não conseguia negar os pedidos que os viajantes lhe faziam, suplicando por sua proteção nas estradas e caminhos. Quando estourou a Guerra de Tróia, não ficamos indiferentes a toda aquela paixão e fúria, muito pelo contrário: nós é que estávamos por trás de cada batalha, dirigindo os comandantes, exaltando os ânimos, impedindo que a luta caísse numa morna monotonia. Então, o trabalho de Irene, a Paz, triplicava e, junto com a deusa Concórdia, fazia tudo o que estava ao seu alcance para serenar os ânimos. E que ninguém ouse pensar que eu, Rei do Universo, apenas assistia impassível a todos esses afazeres. Além de organizar meu reino, tinha que ser suficientemente sábio e enérgico para reafirmar a cada momento a minha autoridade. O pior era, sem dúvida, supervisionar com pulso firme que faziam os outros deuses. Não posso negar que, apesar de cansativa, toda essa movimentação era também gratificante. As súplicas que me chegavam da Terra era música para meus ouvidos. Os homens sabiam que, quando eu franzia a testa, o mundo tremia. Apressavamse em fazer sacrifícios para aplacar minha cólera e, quando conseguiam finalmente me acalmar, redobravam as oferendas em sinal de agradecimento. Confesso que éramos sensíveis à menor ofensa dos mortais e eu mesmo sentia um grande prazer em fazê-los estremecer de medo. Por esta razão, eu costumava alimentar todas essas histórias a nosso respeito. É preciso manter a reverência e a autoridade. Quando sentia que os homens estavam se afastando dos cultos, eu gritava bem alto. Ainda tenho os ventos sob meu comando e sei que posso desencadear furacões para varrer terra e mar com sua força destruidora. Um simples aceno meu é suficiente para dissipar as nuvens e fazer brilhar um esplêndido arco-íris. Mas hoje os mortais, confundidos por outras tantas explicações, perderam a noção de que as chuvas, as tempestades e os dias ensolarados ainda dependem unicamente do meu humor e capricho. Estamos longe de ser o modelo de perfeição que os mortais idealizam em suas limitadas mentes. Aliás, os deuses sabem o que não existe nada mais desinteressante que a perfeição. Mortais e imortais são feitos da mesma essência, dupla e contraditória. Nosso caráter permite a generosidade e a crueldade, a benevolência e a vingança, o amor e o ódio. Por sermos assim
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tão semelhantes, até em nossas imperfeições, os mortais nos compreendiam bem. E, afinal, eles sabiam que deviam fazer tudo para nos agradar: só assim haveria alguma chance de suas preces serem ouvidas. Aos poucos, entretanto, os homens deixariam de acreditar em nossa importância. Não apenas eu, o grande deus do Universo, fui relegado ao esquecimento, mas todas as divindades do Olimpo. Já não interferimos na vida dos homens e deixamos de ser motivo de culto e reverência. Jamais me senti tão desrespeitado como quando à estátua, feita em minha honra pelo escultor Fídias, foi destruída. Adeptos de uma noiva religião, aqueles que acreditavam possuir a verdade, devastaram até mesmo uma gigantesca escultura feita de ouro, marfim, ébano e pedras preciosas. Fídias me imaginou sentando num trono. Sobre minha mão direita esculpiu uma pequena estátua de Nike, a deusa da Vitória, e, sobre a mão esquerda, um cetro brilhante encimado por uma águia. Ainda sinto orgulho de ter inspirado uma obra tão majestosa, que chegou a ser considerada uma das setes maravilhas do mundo. Por momentos, cheguei a me esquecer de que os mortais são volúveis e desconhecem o sentindo da eternidade. Sua realidade é feita de impermanências e logo veio o tempo em que começaram a adorar deuses com diferentes nomes. Destruíram minha estátua e, para justificar o estrago, inventaram a desculpa do terremoto, quando na verdade ela foi derretida para servir a outros propósitos. Um dia, tive a infeliz idéia de ordenar a criação de seres mortais. Sabia que não poderiam competir com os deuses em perfeição. E, como eu previa, logo caíram em degradação. Suas mentes são limitadas, óbvias, e se estreitam ainda mais quando se trata de liberar a fantasia e a imaginação. Preferem acreditar apenas naquilo que vêem com seus olhos de mortais e se protegem com o enganoso escudo da razão. Em épocas passadas, os homens viviam em contato direto com a natureza e a Grande Mão Terra lhes inspirava o respeito pelas montanhas, árvores, flores, rios, fontes. Não havia nenhuma separação entre o real e o irreal, o visível e o invisível. Até que, um dia, expulsei do Olimpo Ate, a deusa que provoca a cegueira e perturba a razão, que foi se instalar na Terra. Desde então ela passou a pousar apenas sobre a cabeça dos mortais para induzi-los ao erro, sem que eles o percebam. Antes, os homens olhavam para o alto e sabiam perfeitamente onde nos encontrar, para onde dirigir sua súplicas ou agradecimentos. Hoje, não conseguem enxergar nada além dos limites do visível e, com isso, o Olimpo ficou reduzido a uma montanha, um simples acidente geográfico, concreto e previsível. Nossas moradas ainda ficam no Olimpo e, para nós, a Grécia ainda está no centro do mundo. Aqui tentamos nos manter com uma grande família, apesar das desavenças cada vez mais constantes. Formamos uma espécie de sociedade fechadíssima. Somos apenas doze os que temos o privilégio de ser chamados “olimpianos”. Embora cercados de divindades menores, nunca fizemos questão de admitir elementos novos ao nosso seleto convívio e, por isso, vetamos a condição de imortalidade aos filhos de deuses ou de deusas com mortais. Com algumas raríssimas exceções, permitimos apenas que sejam reconhecidos e honrados como heróis, com certos favores divinos. E só. Que nunca ousem percebem mais do que isso.
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Há tempo, não sentimos mais nenhum ânimo em descer à Terra e sequer temos vontade de interferir em assuntos humanos. Apesar de tudo, o mundo continua a girar e temos que manter certas tradições para não nos perdermos de nós mesmos nesse emaranhado de novas crenças e costumes. Por isso, fazemos questão de nos reunirmos em celebrações periódicas aqui no Olimpo. Estamos prestes a iniciar mais uma celebração. Só que, desta vez, muito mais que um ritual festivo, ela será um marco histórico na eternidade de nossa existência. Juntos, celebraremos de coração aberto o dia da Purificação da deusa Memória. Para a grande celebração, ordenei a preparação de um banquete verdadeiramente digno de um evento de tal magnitude. Será o maior e o mais importante de todos os que já tivemos aqui no Olimpo. Quero que seja um banquete inesquecível. Quando Selene, a Lua, encobrir com um doce abraço seu irmão Hélio, o Sol, e a Terra mergulhar, por momentos, em uma profunda penumbra, teremos o tão esperado sinal para nos preparamos. É tempo de mais uma vez deixar aflorar a lembrança e celebrar a memorável vitória que me colocou no topo do mundo como deus dos deuses e dos homens.
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Celebrações são sempre ocasiões propícias a lembranças. Mesmo vivendo mergulhados na eternidade, muitas vezes somos surpreendidos com a nostalgia de um acontecimento que ficou guardado ou esquecido em algum lugar no fundo de nossos corações. Poucos conhecem a verdadeira história da origem do Universo tão bem quanto eu. Tive a sorte de ouvi-la diretamente de minha avó Gaia, a Grande Mãe Terra – a melhor e a mais antiga contadora de histórias do mundo divino. Sua intenção era me preparar para ser o deus dos deuses e dos homens, tarefa demasiado assustadora para ser revelada a um menino sensível como eu. Sim, um já fui um menino sentimental. Tive que endurecer o coração, me tornar rígido, autoritário, intransigente. Caso contrário, não poderia assumir o trono do mundo.Cedo aprendi que não poderia relaxar nem por um momento em meu papel de déspota. Tornei-me emocionalmente distante e pouco preocupado com a dor alheia. Desde pequeno, a questão da cosmogonia, ou o surgimento do mundo, desperta meu interesse. São histórias instigantes, cheias de intrigas, aventuras e traições. No fundo, eu sempre soube que um dia seria o governante do Universo. E, para ser um bom governante, deveria estar consciente de que, qualquer que fosse o futuro a mim reservado, uma coisa não mudaria nunca: o fato da vida dos deuses e dos mortais serem de tal forma entrelaçadas, que uma não pode existir sem a outra. Os deuses não são nada se não houver
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Um vazio chamado Caos
alguém para lhes prestar reverência. Da mesma forma, o que são os humanos, tão frágeis e conscientes de sua finitude, sem nossa presença? Acho até graça quando penso que os humanos criam tantas expectativas em torno dos deuses. Acreditam piamente que nós sabemos de tudo e que estamos em todos os lugares ao mesmo tempo! Não há dúvida de que podemos nos transportar de um lugar a outro em questão de instantes – mas apenas quando algo é suficientemente interessante para chamar a nossa atenção. É inegável que os homens se sentem reconfortados em pensar que somos entidades poderosas e infalíveis. Projetam em nós os seus desejos e exigem respostas às suas indagações. Sequer lhes passa pela cabeça que os deuses estejam longe de dominar o entendimento de tudo. O fato é que nos irritamos com facilidade, agrada-nos planejar vinganças, trapaceamos uns aos outros e tropeçamos aqui e ali em questões para os quais não vemos saída. Para sermos lembrados, usamos uma infinidade de artifícios para manipular medos, angústias e remorsos nos homens. Tarefas que, diga-se de passagem, não são nada difíceis, se levarmos em conta o quanto são frágeis e impressionáveis esses infelizes mortais. Com a paciência de quem tem a idade do mundo, Gaia me explicava que desde os primórdios os seres humanos, buscaram explicação para o que não conseguiam compreender: “O campo de visão dos mortais é bastante limitado e precisamos ajudá-los a compensa tal deficiência com a transmissão da palavra revelada em forma de histórias. É o que na linguagem dos humanos significa... mito.” Foram as explicações dadas pela minha avó que acalmaram minhas angústias de menino diante de um mundo tão estranho. Gaia começava com uma frase intrigante, que mais tarde se tornou tão conhecida que os humanos nunca deixaram de pronunciá-la antes de iniciar as suas próprias versões do relato da criação: No princípio era o Caos. “Antes do mundo ter sido criado”, contava Gaia, “antes mesmo do aparecimento dos deuses, existia um nada absoluto, uma total escuridão. Esse espaço aberto com um abismo profundo, escuro e misterioso, presente desde a eternidade, era o Caos.” Eu arregalava os olhos, para não perder nenhuma palavra, não deixar escapar nenhuma expressão significativa em seu rosto. Minha avó continua: “Quando conheci o Caos, ele estava deprimido, cansa de um mundo escuro e sem razão de ser. Andava em círculos dentro de si mesmo, exausto de sua vida inútil e improdutiva. Não conhecia nada além de trevas e silêncio.”
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Gaia escolhia bem as palavras para explicar que o Caos era uma espécie de névoa obscura que encobria todos os contornos. Eu tentava imaginar um imenso abismo que pendia de uma rocha e desaparecia na escuridão de uma garganta estreita e profunda. Mas eu não conseguia ver o que havia no fundo dessa enorme goela escura. Visualizar o nada parecia, para mim, uma tarefa impossível. Gaia, que sempre adivinhava meus pensamentos, exclamou: “O segredo que poucos compreendem é que o mundo não surgiu do nada, meu querido, mas da possibilidade de tudo!” Possibilidade de tudo... Fiquei vários e vários dias intrigado com esta frase e, de repente, um mundo novo se abriu diante de mim. Certamente minha avó queria que eu percebesse que, no vazio do nada, tudo é possível, inclusive as oposições e contradições. A iniciação aos mistérios da origem do Universo estava penas começando para mim. Mal havia conseguido desatar as rédeas da imaginação – e tudo me parecia bastante confuso. A Grande Mãe Terra apontou para a imensidão do mar para as florestas povoadas de árvores de mil espécies: os animais correndo em bandos, em busca de água e de alimento, o nado dos peixes, o colorido das flores, o ciclo dos dias e das noites. Propôs que eu esvaziasse a minha mente de todos os pensamentos e a preenchesse com um grande vazio.A princípio, eu encarei a tarefa como um jogo divertido. Eu tentei visualizar um mundo do qual todos os seres
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Um novo mundo se abre diante de mim
estivessem ausentes. Por mais que me esforçasse, não conseguia. Tentei não pensar em nada, até chegar ao nada. Consegui – mas por poucos momentos. Os pensamentos teimavam em voltar; por mais que eu tentasse expulsá-los para longe. “Desisto”, disse, aborrecida por não alcançar o meu objetivo. Gaia achou graça, o que me irritou ainda mais. Era um enigma e eu não me sentia preparado para decifrá-los. Finalmente, compreendi que Gaia não se referia à idéia de ausência, no sentindo de falta ou inexistência, já que é impossível pensar o nada. “O reinado de Caos não poderia ser eterno, Senão, como nosso mundo conseguiria existir? A desordem primordial foi o ponto de partida necessário a partir do qual o mundo pôde se formar.” Enquanto minha avó ia tecendo suas explicações, mais calmo, eu conseguia me deixar levar pela fantasia. Até alcançava a visão de um imenso pântano sem começo nem fim, escuro e tenebroso. ”Cansado de ser apenas um vazio, um abismo profundo e sem fim, Caos decidiu tomar uma atitude. Mas não pense que foi fácil ele sair desse estado de vazio em que se encontrava durante tanto tempo. Uma mudança tão radical não acontece de um momento para o outro”. E Gaia falava modulando a voz com ênfase dramática: “Foi na época em que o mundo começava a tomar forma, a se organizar, que eu surgi: a Grande Mãe Terra! O abismo ganhou um chão, uma base sólida a partir da qual surgiriam todos os seres.” Eu prendia a respiração para não perder nenhuma palavra. “Nunca se esqueça de que sem a minha presença de Mão Universal nenhuma forma de vida poderia nascer crescer ou se desenvolver. A semente não daria seus frutos, os campos não se tornariam verdejantes e os seres não sobreviveriam sem alimento.” Gaia me provocava: “Olhe para mim, como você me vtê?” Eu a observava com atenção EME sentia ridiculamente pequeno diante da imensidão que tinha diante de mim. Ela reassumia o aspecto que eu conhecia tão bem, de uma mulher de seios fartos e aconchegantes, perto de quem eu me sentia muito seguro. Compreendi que o Caos mudou de forma, mas não desapareceu, já que, sendo uma divindade, permanece eternamente imortal. Intencionalmente ele espalhou fragmentos de sua presença por todo o planeta. “Mesmo os deuses experimento algumas vezes semelhante desconforto”, dizia Gaia. E, com seu admirável poder de antecipar o futuro, Gaia sentenciava: “Quando você for o rei do Universo, será inevitável passar por circunstâncias difíceis. Lembre-se de que, até mesmo para um imortal, todas as situações são passageiras. Ainda que o momento pareça não terminar nunca, logo tudo voltará ao seu lugar, se esclarecer, se reorganizar. E do Caos surgirá, então, uma nova ordem”. Para os mortais, parece impensável que os deuses sofram a mesma angústia pelo absurdo das coisas vividas, pelo vazio da pergunta sem resposta. O tempo da inocência ficou para trás e pouco a pouco, fui-me esquecendo das sábias palavras de Gaia. Minhas ordens se tornaram inquestionáveis, minhas verdades, absolutas. Não permiti a autonomia de pensamento e nunca admiti outras idéias que não fossem as minhas. Como senhor do Céu e da Terra, exigi ser reverenciado sem restrições. Ainda sou intransigente
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em minhas ordens e muitas vezes até cruel com aqueles que ousam me desobedecer. Não me importo. Sei que não sou o único. Outros deuses também são intolerantes com as transgressões. Exercer a autoridade exige pulso firme. Noite passa sobre nós com seu manto bordado de estrelas. Depois de algumas voltas sobre o Olimpo, atiça seus negros cavalos, que disparam no céu. Ergo os olhos para a luminosa imensidão que se abre diante de mim e, pela primeira vez, tenho a coragem de me perguntar: “Será que nós realmente fazemos alguma fatal? Não bastariam apenas a grande e generosa Mão Terra, o previsível Sol e a Noite com seu véu de estrelas, para que a nossa vida fosse perfeitamente completa?” Sem resposta, as palavras ficam bailando desamparadas, em minha mente. Meus companheiros se recolhem em seus palácios e cai um pesado silêncio. Há muito tempo não acontece nada de importante por aqui e nossa expectativa é enorme. Precisamos estar descansados para o grande evento. Durante todo o dia conversamos sobre amenidades e evitamos discussões. Ares, o insuportável deus da guerra, controlou suas explosões de cólera, Hermes não nos fez rir com seus gracejos, minha esposa Hera falou pouco e Hefesto, o deus coxo conteve seus lamentos. Deitado na maciez do divino leito, invoquei Hipno, o Sono. Mas ele ignorou o meu chamado
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tDormi pouco, Minha mente se manteve ocupada em antecipar as conversas que teríamos, as possíveis discussões, as perguntas sem resposta. Sol mal havia começado sua jornada quando me recostei por alguns momentos e só percebi que havia adormecido quando a algazarra do lado de fora recomeçou. Dia tem sempre o poder de devolver minha vitalidade e auto-estima. Enquanto arrumo a túnica com brocados de ouro reluzente, que só uso em dias especiais, contemplo meu reflexo no brilho do metal junto à soleira da porta. Não tenho nenhuma modéstia em reconhecer que nasci para ser o soberano absoluto do Universo. O título de “Rei do Universo” me cai muito bem. Aliás, nada me deixa mias irritado do que a modéstia. Para mim, não passa de desculpa da incompetência. Assim, envolto em pensamentos que honram minha natural majestade, observo o esplêndido brilho de minha túnica e sorrio de satisfação: continua impecável. Hoje, mais uma vez vou ser o centro das atenções. O que antes me fazia sentir lisonjeado, agora só me causa embaraço. Comemorar como se nada tivesse mudado me soa cada vez mais artificial. Em que estranhos seres nos transformamos para que esta data não mereça sequer uma simples lembrança por parte dos mortais? Tenho vontade de gritar a nossa história para que todos possam ouvir e, assim, fazer com que as novas gerações saibam quem somos. É preciso que os mortais compreendam que tudo o que acontece em seus dias é e sempre será um
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Amanhece o dia do banquete
reflexo do mundo divino. Lamentavelmente, as pessoas perderam o contato com suas origens, consideram atual o que na verdade existia desde o início dos tempos. Do jardim me chegam as mesmas gargalhadas a que meus ouvidos se acostumaram ao longo de eras incontáveis. Os deuses devem estar lá, me esperando. Todos, menos Gaia, que não tem participado de nossos banquetes ultimamente. É inegável que, de todos nós, é a que parece sentir com maior intensidade o peso do tempo. Recai sobre mim a insuportável maldição de ter usurpado o trono da Grande Mãe e ninguém sabe que, por trás de toda a minha arrogância, se esconde um insuportável medo de perder o poder para ela. A Mãe Terra foi meu primeiro exemplo, aquela que me guiou pela mão e me mostrou o mundo. Por puro medo de seu poder, eu me voltei contra ela, roubei seu trono e seu reinado. Não esbocei um único gesto de compaixão ao ver que estava sendo maltratada e ofendida. Pior: fui eu o responsável pela crença na superioridade do masculino. “Jamais se esqueça de que os deuses, os homens e todos os seres emergiram do copo da fêmea, senhora absoluta da fecundidade e da fertilidade”, enfatizava Gaia. Quando escolhi morar no Céu, releguei suas sábias palavras ao esquecimento e permiti que se concretizasse a profunda ruptura co ma Terra. Já que os homens imitam nosso comportamento, lá embaixo também se deu uma mudança ramática. As deusas perderam seu lugar e, com isso, todo um sistema de crenças e valores foi substituído pela lei do mais forte. Minha esposa Hera, sempre de cara fechada, interrompe meus pensamentos quando entra no quarto sem avisar e me lembra que a cerimônia está para começar. Tudo no mundo pode mudar, menos Hera, que continua a mesma rabugenta de sempre, a me sufocar com tantas ordens e exigências. Respondo balançando afirmativamente com a cabeça, com ar distraído, porque hoje não quero começar o dia com aborrecimentos. Olho pela janela e vejo que estão prontos os arranjos de flores que decoram as mesas e as guirlandas que enfeitam todo o jardim. Lá fora, até mesmo Sol brilha com mais intensidade para se fazer presente aos nossos festejos. Ao invés de me juntar aos outros deuses, prefiro aproveitar os moemtnso que ainda me restam antes da carimonia começar. Caminho por uma silenciosa alameda, por onde costumo passear sempre que preciso colocar minhas idéias em ordem. Escolho um banco debaixo de uma árvore e me deixo novamente levar pelos pensamentos. Ouço uma voz familiar me chamando. E, para minha surpresa, Gaia se aproxima. Depois que me instalei no Olimpo, pouco nos falamos. Nas raras ocasiões em que estivemos juntos, senti o rancor com que me olhava e desisti de tentar me reaproximar dela. Mesmo porque, é inegável que existe uma considerável distancia geográfica entre nós...
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- Que bela surpresa! – digo – Eu estava justamente pensando nas suas histórias.
Gaia abre o mesmo largo sorriso que me fazia tão feliz quando eu era criança e nada sabia sobre o meu futuro. - Em que ponto você parou? – pergunta, mostrando claramente que pelo menos hoje deveríamos deixar de lado nossos antigos rancores. Com indisfarçável alívio, respondo: - Você me explicou que desde os primeiros momentos da criação os seres que surgiam iam se unindo aos pares: a Noite e o Érebo, o Dia e o É ter... Enquanto isso, você se sentia cada vez mais só. Continuava se sentindo incompleta mesmo depois de conhecer as altas montanhas, os bosques, as florestas repletas de rios e o imenso mar. - Ah, sim. Precisava de um companheiro, alguém com quem eu pudesse compartilhar meus dias e minhas noites. Foi então que olhei para imensidão de meu corpo de mãe e nutridora. Ao perceber sobre mim um imenso espaço vazio, fiz sair de dentro de minhas entranhas o igual e o contrário de mim mesma: Urano, o Céu. Eu, Gaia, mãe de toda natureza, gerei também o deus Céu. Não é admirável? Exausta pelo esforço de conceber, adormeci. – Tento imaginar a cena. – Lá em cima, no teto do mundo, Urano olhou para mim e sentiu
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A desforra da Grande Mãe Terra
um pulsar mais forte, um tremor diferente. – Ah, isso eu conheço bem... – No momento em que gerei Urano, o meu duplo e contrário, surgiu o primeiro PAR de opostos, o macho e a fêmea, e o primeiro casamento divino. E eu, que tanto desejei um companheiro, desgraçadamente não tive nenhum motivo para comemorar. Fui muito infeliz. Urano se dizia apaixonado, se estendia sobre meu corpo e me sufocava de tantos abraços, não me deixava um minuto sequer. Isso me irritava profundamente, porque ele tolhia meus movimentos, minha autonomia. Eu me transformei num imenso útero que meu marido, continuamente ávido de amor, semeava sem parar, numa fertilidade inesgotável e desmedida. Acontece que o grande pavor de Urano era ser destronado. – No fundo, os deuses são todos muito parecidos... – Nenhuma atividade o satisfazia mais do que ter filhos e mais filhos. Já havia gerando dentro de mim uma quantidade de seres gigantescos e brutais: seis Titãs e seis Titânides, três Ciclopes, de um único olho no meio da testa, e três Hecatônquiros, de cem braços e cinqüenta cabeças. Cada novo filho que nascia, ele devolvia ao útero escuro da Terra. Gaia arqueia o corpo para mostrar como lhe era insuportável o peso dos filhos dentro de si. – Eu só tinha um desejo, uma idéia fixa: afagar em meus braços de mãe os frutos desse estranho amor. A cada dia eles cresciam mais, até que o espaço dentro das minhas entranhas se tornou pequeno demais para abrigá-los. Os conflitos entre ele eram constantes e logo começaram também uma rebelião, provocando terríveis convulsões que sacudiram violentamente meu corpo, deixando-me exausta. Eu não tinha mais ânimo para nada e sentia-me cada dia mais só. Gaia respira fundo. – Apesar do sofrimento, eu sabia que, por mais dolorosas que fossem as turbulências internas, elas eram necessárias numa época em que a natureza ainda estava em formação. O mundo precisava se acomodar e ganhar forma. – E tudo dependia de seu corpo – acrescento. – A situação chegou um limite insuportável. Não agüentava mais gerar inutilmente. E resolvi me vingar. Não pense que foi fácil a decisão. Por muito tempo fiquei pensando no que fazer, Estava dividida entre o medo e o imperioso desejo de acabar com o intolerável assédio de Urano. Finalmente tive uma idéia. Sem ninguém perceber, escondida e silenciosamente, consegui moldar uma foice de metal. Minhas mãos ficaram feridas pela dificuldade em adiar a lâmina, mas, por mais doloridas que estivessem, nem por um momento pensei em voltar atrás em minha decisão. Quando finalmente dei a obra por terminada, reuni dentro de mim todos os filhos e pedi-lhes ajuda para a vingança. – Vingança, nossa velha conhecida!
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– Ao ouvir minha proposta, eles recuaram amedrontados. Irritada, gritei energicamente: “Filhos que gerei em meu ventre, impedidos de sair à luz por um pai cruel e impiedoso, ajudem-me para que juntos possamos nos libertar de suas maldades!” Calaram-se todos. Por um momento, tive receio de que a covardia dos filhos que pretendia como cúmplices acabariam por arruinar meus planos. Foi então que Crono... – ... meu pai! – Seu pai e meu filho caçula. O único entre todos os irmãos que teve a coragem de dar um passo à frente e se colocar ao meu lado: “Farei tudo o que puder para ajudá-la. Pode ficar tranqüila. Não sinto nenhuma piedade por um ser que é indigno de ser chamado de pai”. – A ousadia de Crono me emocionou – continua Gaia – e estendi-lhe a foice afiada. Escondido, aguardou com ansiedade o momento em que, sedento de amor, Urano viesse se estender mais uma vez sobre meu corpo. Crono saltou com agilidade em direção ao pai e o de um golpe certeiro, rasgou fora seus órgãos genitais. Em seguida tomando o cuidado de não se virar para trás para não desencadear sobre si a desgraça que o ato provocaria, atirou por cima de ombro o órgão mutilado. Gaia pega uma folha caída no chão e a gira por entre os dedos. – Sentia raiva de meu esposo e queria livrar-me dele o mais rápido possível. Pensava em ter um companheiro, mais, ao contrário, criei um verdadeiro algoz, que maltratou meu corpo e oprimiu meus filhos. Quando Crono impôs ao pai um profundo corte em sua fertilidade inútil, ele deu um berro tão alto, que foi ouvido nos quatro cantos do mundo. Sangrando e contorcendo-se de dor, lançou sobre os filhos a maldição de terem que pagar pelo crime cometido. A capacidade que Urano tinha de gerar filhos era tão desmedida, que, da ferida aberta jorrou o sangue que, mais uma vez, me engravidou. E assim nasceram os Gigantes, criaturas de aspecto ameaçador, e as Erínias, divindades vingadoras dos crimes cometidos, especialmente contra os parentes. – Há tempo não as vejo. Nem me lembrei de convidá-las para o Banquete. Tisífone, Aleto e Megera eram as três Erínias. Tisífone escolheu o chicote para açoitar sem pena os culpados. Aleto preferiu perseguir o infeliz com tochas acessar que não o deixaram pregar o olho nem de dia nem de noite, enquanto que Megera, a raivosa, gritava sem parar em seus ouvidos as mais insuportáveis acusações. – Os homens evitavam pronunciar o nome Erínias – explica Gaia –e, quando o faziam, era com muito cuidado para não incitaram sua cólera. Sabiam que os castigos pela falta cometida eram inevitáveis e, para eles, não havia esconderijo possível. A maldição de Urano contra Crono pelo sangue parental derramado se espalhou por toda a Terra. – Todos sabem que não me preocupo a mínima com humanos que se exterminam – digo. – Aliás, é o que eles fazem melhor, cada vez com requintes mais
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Amanhece o dia do banquete
elaborados. E se matam em nome de deuses, principalmente. Quando percebi que os homens estavam mais preocupados com vinganças do que comigo, tomei uma providência. Inspirei os legisladores para que proibissem energicamente tal prática. – Foi assim que as Erínias perderam as suas funções. Ociosas e desiludidas, elas foram se refugiar nas profundezas do reino subterrâneo, de onde dificilmente saem. – Tentei evitar um problema e causei outro, talvez ainda pior. Alheios ao remorso e à culpa, os homens continuam a cometer sérias hýbris, graves descomedimentos. E quem hoje semeia o pavor em seus corações? Os novos deuses ignoram as Erínias. Hermes caminha em minha direção e novamente me avisa que os deuses aguardam minha ordem para iniciar a cerimônia. Faço um sinal para que espere.
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No mundo divino, o tempo transcorre em um ritmo diferente daquele a que os humanos estão condicionados. Para nós, a vida flui sem sobressaltos. Não ficamos presos ao passado nem antecipamos, ansiosos, a chegada do futuro. Nossa existência transcorre num tempo em que a morte não participa. A velhice não nos alcança. Podemos escolher quando a idade que mais nos agrada para, assim, permanecer imutável. Infelizes são as criaturas humanas, que jamais se conformaram com o enorme abismo que nos separa. O castigo que impus aos mortais foi uma vida de lenta agonia, uma luta sem trégua contra o fantasma da morte, que pode aparecer a qualquer momento e quase sempre sem nenhum aviso. Súbito, ouvimos uma voz grave vinda de algum lugar que não conseguimos precisar de imediato. Ela não tem a menor dificuldade em reconhecê-la como sendo de Urano. – Você fala demais, Gaia. Alardeia como verdade, como única verdade, coisas que nem sequer sabe direito. Reconheço que lhe devo a minha vida e sei que teria sido bem mais fácil se eu não tivesse me apaixonado por voe e contido o meu desejo. Em nenhum momento pretendi ter filhos, queria você só pra mim e ficava louco de ciúmes só de pensar na hipótese de dividir a sua atenção com mais alguém. – Sinto muito lhe dizer, mas você jamais me fez feliz. – Pois eu lhe digo: não merecia ser punido de forma tão brutal. Depois que
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A separação entre o Céu e a Terra
fui completamente abandonado, ninguém jamais perguntou ou quis saber o que eu estava sentindo. Sofri muito e fui sozinho obrigado a curar minhas feridas físicas e emocionais. Ainda hoje sinto uma dor aguda no lugar do corte. Perdi a conta das vezes em que transformei a dor em lágrima ou me escondi por trás das nuvens para ninguém me ver, sempre sozinho. – Foram tempo muitos difíceis também para mim – rebate Gaia. – Eu me sentia sufocada por um sentimento que você ousa chamar de amor. Na época, o mundo ainda era um grande vazio e eu, ingênua o suficiente para acreditar que essa era a única forma de um casal se relacionar. Além do mais, não havia ninguém com quem eu pudesse me aconselhar. O pior era o tremendo peso que eu era obrigada a carregar em meu ventre inchada de tantos filhos. Sem espaço, eles lutavam entre si causando desconforto. A cada momento meu corpo era sacudido com terríveis tremores. Se não fosse por Crono, eu teria sucumbido. – Se alguém aqui tem que falar de mágoas, este alguém sou eu. Por acaso algum de vocês, deuses do Olimpo, vieram me pedir autorização quando resolveram instala em meus domínios? E Crono, por acaso fez melhor do que eu? – Ora, você se esqueceu de que, quando Crono foi nos consultar sobre o futuro, nós respondemos que ele também perderia o poder para um de seus filhos? Se nós tivéssemos ficado calados e simplesmente deixado que os acontecimentos tomassem seu rumo, talvez nada disso tivesse acontecido. Afinal, nenhuma força é mais poderosa que a do Destino. De fato, faz parte da nossa natureza o medo de perder o trono para um filho. E meu pai Crono não foi exceção. Logo ele, que havia derrubado Urano, seu próprio pai, comum só golpe de foice num episódio que ainda provocava em mim um desagradável arrepio. Confesso que sinto pena de Urano e de sua solidão, isolado no alto do mundo. Desde o rompimento, Urano e Gaia mais se encontraram, a não ser na época das chuvas fecundantes que engravidam a Terra e favorecem o nascimento de novos seres, novas plantas e cereais. Quando percebi que a discussão não me dizia respeito, afastei-me sem ser percebido e os deixei sozinhos. Que eles dois aproveitassem bem a ocasião e resolvessem velhos ressentimentos entre si. Pouco depois, Gaia volta a me encontrar. – Sinto-me mais leve – confessa. – Que alívio poder falar sobre fatos passados e se manter no presente, sem nenhum ressentimento.
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Quando Urano, o Pai Céu, saiu de cima de Gaia, a Mãe Terra, entre eles abriu-se um imenso espaço vazio. Como um golpes de foice, Corno desbloqueou o espaço e permitiu que o Dia e Noite se alternassem. E o tempo finalmente começou a fluir. Estou certo de que, se fosse outra ocasião qualquer, eu certamente não ocuparia minha mente com tais episódios. Para quê? Afinal, o que aconteceu, aconteceu e não existe nada que faça o tempo voltar atrás. Nem o meu poder. Mesmo que eu interferisse para mudar os fatos, quem garante que teriam sido mais favoráveis? Gaia se acomoda novamente ao meu lado. – Sei perfeitamente que você conhece a história de seus pais, Crono e Réia. No entanto, deixe-me contá-la novamente. – Estou certo que trazê-los à memória vai nos fazer muito bem – respondo. – Pois bem, Crono tomou por esposa sua irmã Réia e a sombra da terrível profecia não o deixava em paz. Noites e noites passou mal dormidas, só pensando em como fazer para evitar que a tragédia de ter destronado por um de seus filhos se concretizasse. À noite, tentava de todas as formas manter os olhos bem abertos para não deixar que Hipno o mergulhasse em sonhos ameaçadores. Nem mesmo de dia conseguia relaxar, com tantos pensamentos atemorizantes a ocupar sua mente.
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Para fugir da profecia, Criono engole os filhos
Quando se casaram, Crono foi logo avisando: “Nada de filhos!” Se ela tivesse obedecido, eu não estaria aqui e o mundo seria privado de um magnífico governante. – Réia sabia do pavor que seu marido sentia à simples menção de ter filhos e se resignou. No começo, os dias transcorreram calmos e parecia que nada perturbaria a sua paz. Crono era atencioso e ela não tinha do que se queixar. Passado um tempo, Réia começou a sentir um grande vazio, mas guardou aquelas sensação só para si: “Vai passar”, repetia. No entanto, cada manhã a encontrava mais triste. Como não encontrasse sossego, resolveu sair pelo campo para se distrair. “Um passeio só me fará bem”, pensou. Caminhou durante um tempo até se deparar com um fato que mudou a sua vida. Junto ao rio, viu uma ursa que amamentava seu filhote. Réia parou para contemplar a cena e sentiu o coração se contrair numa intensa emoção sem compreender exatamente por quê. Quando chegou à sua morada, pela primeira vez se percebeu completamente sozinha. “Um filho! Preciso de um filho para acalentar nos braços, um filho para amar e cuidar, para animar meus dias com uma ternura que jamais conheci!”, falou para si mesma. Depois de um profundo e sentido suspiro, continua: – Réia imaginava que Crono já tivesse esquecido toda aquela história de maldição e em seus sonhos via uma casa cheia de filhos e um pai orgulhoso de sua prole. Não pensava que sonhos são apenas sonhos e que a realidade é bem diferente. Quando sentiu a presença de um novo ser crescendo em seu ventre, não se conteve de satisfação e correu para dar a feliz notícia ao esposo: “Querido, tenho uma novidade que, tenho certeza, vai alegrar o seu coração. Nossa felicidade agora está completa. Estou grávida! Em breve você vai ser pai!” Gaia faz uma pausa para tomar fôlego. Urano e Crono se misturam em suas lembranças como uma única entidade. – Ela esperava o carinho de Tum abraçado do marido, mais caiu para trás quando foi recebida com um grito tão alto que fez estremecer a terá: “Filho? Como se atreve a me falar de filhos? Eu lhe avisei desde o primeiro dia que eles nunca seriam bem-vindos aqui. Não quero saber nem desse nem de nenhum outro!”, esbravejou Crono, irritado. A maldição de Urano ao ser destronado ainda ressoava bem viva em sua mente: “Saiba que em breve um de seus filhos irá lhe roubar o trono, exatamente como você faz comigo!” Há tanta emotividade na narrativa de Gaia, que é impossível desviar minha atenção. – Ao ouvir que Réia estava esperando um filho, Crono deu um pulo de susto instintivamente esperando a sua sentença de morte. O que fazer? Tinha que pensar rápido, agora que o tempo estava se esgotando. “Um filho, ora essa, um filho!”, resmungava, sem parar. Réia não esperava tal reação e achou prudente não tocar mais
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no assunto, enquanto o filho crescia em seu ventre. Acreditava que, quando a criança nascesse, Crono mudaria de atitude. – Ao sentir as primeiras contrações, Réia não disse nada. Mandou me chamar e eu a ajudei no parto. A primeira a nascer foi Héstia. Já esquecida do episódio e feliz com a maternidade, ela estendeu ao pai uma menina de enormes olhos e alvíssimos braços para que ele a beijasse. Crono hesitou, pois não sabia ainda o que fazer para se livrar do tormento da maldição de Urano. Foi só quando inclinou seu enorme corpo para se aproximar da criança que tudo ficou subitamente claro na mente do desnaturado. Esboçou um beijo e, antes mesmo que seus lábios roçassem a pele da criança, abriu a boca e jogou a infeliz criatura goela abaixo. Tudo aconteceu de forma tão rápida, que Réia não pôde fazer nada para evitar a horrível cena. Foi chorar sozinha sua infelicidade. Ainda vieram outros filhos e, a cada criança que nascia, seu marido repetia o sangrento ritual. Crono, por sua vez, sentia-se aliviado. Considerava genial a idéia de devorar quantos filhos sua esposa gerasse. Podia descansar sem susto, pois já não corria mais perigo da terrível maldição lançada por Urano. Confesso que apoio a atitude de meu pai, apesar de eu mesmo ter sido diretamente prejudicado por ele. Para manter o poder e o privilégio de ser a autoridade suprema do Universo, qualquer meio é justificável. Admiro Crono. Engolir os filhos foi, sem dúvida, uma solução criativa. Aliás, não lhes restavam muitas outras opções – eu mesmo certa vez me inspirei nesta idéia. E foi o que me salvou de ser destronado.
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Todas essas cenas dramáticas antecederam o meu nascimento. Como nada acontece sem o consentimento das Moiras, Senhoras do Destino, eu fui poupado e a minha história tomou outro rumo. Não posso esquecer que apesar da ajuda das Moiras e do fato de ter nascido predestinado para ser o deus do Céu e da Luz, a divindade suprema do Universo, precisei da ajuda de Gaia, que fez uso de uma engenhosa artimanha para que eu pudesse sobreviver. – Vou lhe dizer algo que nunca contei a ninguém. Gaia estranha que existia algum fato novo. Apruma o corpo e se prepara para ouvir minha revelação. – Desde tempos imemoriais sou perseguido por estranhas visões que me levam novamente à época em que eu era recém-nascido. São lembranças vagas e não sei onde termina a imaginação e onde começa a realidade. Vejo meu pai Crono arrancando meus irmãos do colo de Réia, escuto seus gritos de pavor que vão diminuindo de intensidade enquanto seus corpos desaparecem na escuridão total. São súbitas aparições que sempre me impressionaram muito e somente bem mais tarde compreende que se tratava de uma estranha experiência do não vivido. Ainda hoje, por vezes, acordo sobressaltado, com a inquietante sensação de estar sendo sugado por uma tenebrosa goela que me paralisa de pavor. Só muito tempo depois,
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Réia salva o filho da tirania de Crono
quando Hélio já está alto no Céu, a impressão se dilui. Estou certo de que aí está a causa de meu drama, de meu medo de perder o controle, o poder, a autoridade. São raros os momentos em que eu posso relaxar, como agora. – Tudo o que acontece foi por pura insegurança – Gaia justifica – Engoliu cada um dos filhos recém-nascidos para tentar se livrar da maldição lançada por Urano. – Isso não me surpreende. E onde estava minha mãe quando seus filhos eram devorados pela fúria de Crono? Por que não nos defendeu? – Réia não tinha outra saída senão obedecer às ordens do marido. Até que finalmente chegou o dia em que ela decretou o fim do sofrimento: não podia permitir que mais um de seus filhos fosse devorado pelo insaciável esposo. Enquanto você crescia no ventre de sua mãe, a esperança voltou a iluminar-lhe o semblante. Estava decidida: a única solução era fugira para Creta. Trata-se de uma história que todos os deus sabem de cor, porque eu mesmo fiz questão de não deixá-la cair no esquecimento. Ordenei que os mortais a transmitissem de geração para geração pela voz dos poetas, que eram inspirados diretamente por mim, para que suas narrativas descrevessem o mais fielmente possível o ocorrido. – Depois do seu nascimento, Réia levou-o a um lugar seguro para protegê-lo do pai. Deixou-o aos cuidados das ninfas que viviam no fundo de uma caverna no monte Ida e voltou para junto de Crono. Como das outras vezes, parecia conformada ao estender-lhe mais um filho para que o engolisse. Só que dessa vez, um lugar do recémnascido, ela trazia em seus braços uma pedra envolta em panos de linho, que Crono engoliu por hábito, sem suspeitar de nada. Só que, bem antes do que Réia previa, Crono descobriu que havia sido enganado. A lembrança me traz de volta a época em que fui criado pelas ninfas e pela cobra Amaltéia. – Quando Amaltéia ouvi o ruído de fortes passadas, tirou-me às pressas do berço e me suspendeu no alto de uma árvore até que o perigo tivesse passado. – O mais difícil foi abafar o seu choro de recém-nascido – sorri Gaia. – Cada vez que você berrava, o coração de Amaltéia dava saltos. Logo ela teve a feliz idéia de chamar os Curetes, jovens guerreiros. E recomendou-lhes que, cada vez que você começasse a chorar, eles dançassem à sua volta batendo ruidosamente seus escudos e lanças de bronze para que Crono não o ouvisse. A dança tinha o mágico poder de me acalmar e eu parava de chorar, fascinado com o ritmo ensurdecedor. – Quando Crono já não oferecia tanto risco, nossos dias eram preenchidos com muitas brincadeiras. Eu estava sempre disposto a brincar de esconde-esconde, sem saber que treinada para uma habilidade que mais tarde provou-se muito proveitosa para mim. Quando pequeno, eu me divertido com disfarces e metamorfoses para escapar do olhar atendo de Amaltéia. Já adulto, eu me aperfeiçoei ainda mais nessa arte, só que com o objetivo de fugir eterna vigilância de minha esposa Hera.
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Durante minha infância, Amaltéia foi a companhia perfeita de todos os dias. Bastava olhar para mim para eu reconhecer no formato do vinco, que se formava ao redor dos seus lábios, o sinal de agrado ou desaprovação. Acredito que não tenha sido por acaso que a escolheram para ser minha ama. Na verdade, por trás da forma como ela brincava comigo, das palavras que usava para conversar ou aconselhar, havia uma educadora me preparando aos poucos para ser o futuro deus dos deuses e dos homens. E, assim, em meio ao carinho de Amaltéia e das outras ninfas, eu cresci até me sentir suficientemente seguro para enfrentar Crono e cumprir meu destino. A história é circular e os fatos tendem sempre a se repetir. Desta vez era eu, o filho caçula do Crono, quem estava no centro dos acontecimentos e chegava para desafiar o governo do mundo. Exatamente como já havia acontecido em outras ocasiões, a mãe se aliava ao filho contra a tirania do pai. – Certa ocasião, já rapaz, vieram me contar sobre Crono. Disseram que eu deveria saber que, por medo de perder o trono, meu pai havia engolido todos os filhos. Não gostei de ouvir que no reinado de Crono dominavam a crueldade e a injustiça e resolvi ir ao seu encontro. Havia chegado a hora de tomar o lugar que me pertencia por direito. – Mais uma vez a Sorte estava do seu lado e você pôde contar com a Judá de Métis, a deusa da sabedoria e da prudência – acrescenta Gaia. – Exatamente. Métis era uma profunda conhecedora das ervas da natureza. Fui procurá-la em busca de conselhos e pedi-lhe que usasse todo o seu conhecimento para preparar uma bebida capaz de fazer com que meu pai devolvesse os filhos havia engolido. Métis pediu um tempo, embrenhou-se na floresta e não tardou a encontrar o que procurava. Com a erva adequada, preparou uma poção mágica. Foi minha mãe quem ofereceu a bebida a Crono, com essas palavras: “Beba, amado esposo. Alguns goles de néctar servirão para revigorá-lo.” Sem desconfiar de nada, Crono sorveu de um só gole todo o conteúdo da taça. Passado um tempo, a poção começou a fazer efeito. Seu enorme corpo começou a se contrair uma dor insuportável. O perverso sentiu sua víscera em convulsões e só conseguiu algum alívio quando regurgitou um a um todos os filhos que mantinha prisioneiros em seu estômago. Fora do ângulo de visão de Crono, eu observava a desenrolar dos acontecimentos. Primeiro surgiu a pedra e, em seguida, vieram todos os meus irmãos e irmãs, do mais jovem ao mais velho, na ordem contrária àquela em que haviam sido engolidos. Réia não continha a emoção e, em cada filho devolvido, crescido e já adulto, ela esfregava néctar e ambrosia até sentir de volta em seus corpos o divino vigor. Conheci Deméter, a deusa de cabelos cor de trigo, Poseidon, de delirantes devaneios, o silencioso Hades, a virginal Héstia e finalmente Hera, que depois viria a ser minha esposa. Quanto à pedra, levei-a ao monte Parnaso e a depositei em Delfos, para ser eternamente lembrada com a marca da nossa liberdade. – Passado o primeiro momento de impacto, dirigi-me a meu pai dizendo que seu reinado havia terminado. Exigi que ele me passasse imediatamente o comando
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Réia salva o filho da tirania de Crono
do mundo. Não se dando por vencido, disse: “Não ouse erguer o braço contra seu pai: ainda sou o rei do Universo!” Mal terminou de proferir essas palavras, Crono percebeu, assustado, que naquele momento estava cumprindo comigo a maldição que seu próprio pai um dia lhe havia lançado. – Chegara finalmente o tempo de você assumir o lugar que o Destino lhe havia reservado – sentencia Gaia. – Sim, mas antes eu precisei juntar uma imensa dose de bravura e determinação para me envolver numa luta que, desde o início, sabia que seria longa e difícil. De um lado Crono e os Titãs, seus cúmplices; de outro, meus irmãos e eu. – É doloroso lembrar que foi durante essa luta que começaram os nossos desentendimentos – lamenta Gaia.
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O combate, que depois passamos a lembrar com o nome de Guerra dos Titãs, estendeuse dramaticamente por um tempo que nos parecia interminável. Medir forças no campo de batalha era totalmente inútil nessa guerra de deuses contra deuses. Gaia me avisou que, se eu pretendesse me sair vitorioso da guerra, deveria pedir ajuda aos seus filhos mantidos presos por Crono no mundo subterrâneo: os temíveis Ciclopes – com um olho no meio da testa – e aos Cem Braços, seres de extraordinária força física. Tenho como norma tomar decisões por conta própria. Detesto interferências, seja lá de quem for. Talvez a vitória tivesse pendido para o meu lado com mais rapidez se eu não fosse tão irredutível. Por fim, acabei cedendo – foi a atitude mais acertada. No clímax da cruenta batalha, Gaia chamou os Ciclopes e lhes dá os meios para forjarem os instrumentos que nos foram muito úteis e que ainda hoje conservamos. Hades recebeu um capacete que o torna invisível e Poseidon, o tridente capaz de fazer estremecer a terra e o mar. Quanto a mim, tive mais sorte: recebi raios e trovões, que imediatamente disparei contra os adversários. O efeito foi fulminante. Imobilizados pelas chamas, eles se tornaram alvo fácil para a avalanche de rochas que os três Hecatônquiros, com seus trezentos braços, lançaram contra eles. Os Titãs não tiveram mais como se defender e, então, compreendemos que a vitória havia finalmente pendido para o nosso lado. Tomei das mãos de Crono a foice
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A Guerra dos Titãs
que ele usou para mutilar o próprio pai e, com a mesma lamina, desta vez fui eu que amputei seus órgãos e os atirei no ínfero. “A maldição de Urano finalmente se cumpriu!” gritaram os deuses em coro. Os selvagens brados de guerra deram lugar aos gritos de celebração da vitória. Reuni meus aliados: quem seria empossado como rei dos deuses e do mundo? Depois de muita discussão, tive a idéia de fazer um sorteio entre mim e meus irmãos, Poseidon e Hades. E foi assim que eu conquistei a supremacia do Universo. Poseidon se tornou o deus dos mares e Hades, o deus do mundo subterrâneo. Lançamos os Titãs nas profundezas do Tátaro e a paz volta a reinar. Mas por pouco tempo. Gaia, que nos havia ajudado a vencer a guerra, tentou nos convencer a libertar seus filhos, os Titãs. Mas nada nos fez mudar de idéia – muito pelo contrário. Bloqueamos saída do Tártaro, para estarmos seguros de que eles lá permaneceriam para sempre. Inconformada com nossa ingratidão, Gaia resolveu se vingar. Sabia que, sozinha, não teria forças para nos derrubar. Então, ela instigou contra nós os terríveis Gigantes, criaturas de força descomunal, nascidos da Terra fecundada pelo sangue de Urano. Para protegê-los, Gaia preparou um xarope feito com uma mistura de ervas que ela mesma havia gerado e que os tornariam imunes aos nossos golpes. Por sorte, fui avisado a tempo. Convoquei Héracles, meu filho mortal, e Dioniso, com todo o seu cortejo de sátiros. Os demais deuses foram chegando aos poucos. Com a ajuda das flechas de Héracles, conseguimos exterminar cada um dos temíveis Gigantes. Mas Gaia não se deu por vencida. Numa última tentativa, se uniu ao Tártaro com a intenção de gerar a criatura mais aterrorizante que o mundo jamais havia conhecido: Tifão. Nem em meus mais terríveis pesadelos – que foram muitos e me deixaram insone durante todo o período da guerra contra os Titãs – jamais havia encontrado uma criatura tão monstruosa. Lembro bem do seu tamanho desmedido: era tão grande, que sua cabeça tocava o teto do mundo e espetava as estrelas. Quando levantava os braços, Sol escurecia. E, quando os abria, uma de suas mãos tocava o nascente, enquanto a outra, o poente. Da cintura para baixo, seu corpo era coberto por víboras, tinha asas imensas e seus olhos lançavam chamas. O impacto dessa visão foi de tal forma apavorante, que os deuses abandonaram seus palácios no Olimpo e fugiram em desabalada carreira para o Egito. A guerra recomeçou, ainda mais acirrada. Foi só depois de muita luta que finalmente consegui dominar Tifão com a força de meus raios. Ao perceber que a luta estava perdida, o covarde fugiu. Eu o persegui sem trégua, até alcançá-lo. Por ser imortal, jamais conseguiria matá-lo ou destruí-lo. O que fiz então, foi soterrá-lo sob o monte Etna, na Sicília, onde o monstro permanece até hoje. De vez em quando ainda ouço seus gemidos. É quando ele trai a sua presença, soltando lava e fumaça em devastadoras erupções vulcânicas. Por vezes me assaltam pensamentos terríveis em noites insones: e se Tifão tivesse vencido a batalha? E se fosse ele – e não eu – quem estivesse hoje sentado neste trono? E se, ao invés de meus pares, aqui estivessem as forças caóticas da desordem celebrando a vitória? Quando o dia amanhece e me vejo novamente em meu palácio, confortavelmente
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rodeado de súditos e adulado pelos mortais, sinto um grande alívio. No entanto, quando meu olhar se perde no mundo dos humanos e vejo tantas desavenças, destruição e medo, percebo que, de algum modo, meu terrível inimigo não desapareceu por completo. Apenas foi varrido do nosso mundo imortal para prosseguir no convívio dos homens, imprimindo sua marca de violência com uma naturalidade cada vez maior.
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Vencido Tifão, os deuses novamente tiveram motivos para comemorar. Por justo direito, eu tomei definitivamente posse do governo do mundo. No Olimpo, iluminado por milhões de estrelas, o cenário era de festa. Até nos confins mais longínquos durou toda a noite e, quando Hélio novamente clareou o céu com seus raios luminosos, os deuses compreenderam que já não havia mais sangue derramado no mundo e que nossa vitória marcaria definitivamente o início de uma nova era. Minha filha, Atena, liderou um grupo de animados vencedores que vieram ao meu encontro e, em nome de todos, ela falou: “Presenciamos um momento importante demais para tão curta celebração. É preciso que a conquista seja cantada, festejada, exaltada e eternamente lembrada por deuses e mortais!” A aprovação foi unânime, o que é difícil acontecer entre nós. Só não sabíamos ainda o que fazer. Foi então que eu tive uma idéia inspirada. Coloquei-me diante de todos e declarei: “A partir de agora eu, Zeus, governante do Universo dou início à sagrada instituição das assembléias dos deuses. Todos os deuses têm obrigação de comparecer a esses encontros para que, em conjunto, possamos resolver questões de interesse coletivo.” A tranqüilidade durou pouco. Logo em seguida teve início um grande alvoroço, cada um querendo fazer prevalecer a sua opinião. A princípio tentei ser cordato. Afinal, meu reinado estava apenas começando e eu ainda não tinha noção das dificuldades que teria
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O governante do universo
que enfrentar. Quando a desordem e a confusão tomaram conta da reunião, eu percebi que precisava urgentemente reafirmar minha autoridade. Dei um grito tão forte, que toda a Terra estremeceu. Felizmente surtiu efeito imediato e todos se calaram, em respeitoso silêncio. Minha intenção era ser diferente de meu pai Crono, que além de nunca ter tido o menor respeito pelos seus aliados, era cruel e arbitrário. A justiça deveria imperar sempre: tal era o meu ideal. Cedo aprendi que o mundo dos deuses e dos homens seria um lugar perfeito se fosse feito apenas de idéias. A partir dessa experiência compreendi que, para ser o chefe na hierarquia dos deuses, deveria manter a disciplina desde o primeiro momento. Sem me afastar do trono, tomei a palavra e disse com firmeza: “Nossa luta foi longa e penosa. Como deus da Justiça, eu reconheço que, apesar de minha evidente supremacia, tenho muito a agradecer a todos os que me ajudaram na difícil conquista. As forças da inteligência e da luz venceram a natureza selvagem e a ordem foi finalmente restabelecida. De agora em diante, não há lugar para indisciplina. Que ninguém dentre vocês ouse jamais se colocar acima de mim ou contestar minhas ordens! ” Depois dessas palavras e de deixar bem claro quem era o chefe, nunca precisei mais do que um leve gesto, aceno de cabeça ou um franzir de sobrancelhas para fazer valer minha vontade. Mesmo assim, por vezes preciso usar de violência para fazer valer a minha autoridade, o que – reconheço – não é nada fácil. Gravar na memória do tempo a conquista que me colocou no trono do Universo me pareceu desde o início uma imagem tentadora. Ser eternamente lembrado é tudo o que nós, deuses, podemos desejar. Mas o que fazer para tornar isso possível? Depois de pensar muito, tive a idéia de pedir a Mnemósine, a deusa da Memória, para me ajudar. Desci do Olimpo e caminhei em direção à cidade de Piéria, onde sabia que iria encontrá-la. Trocamos poucas palavras. Tomei-a em meus braços e nos unimos durante nove dias e nove noites de amor. Para que a claridade não perturbasse a nossa paz, proibi Hélio de aparecer no céu. Foram momentos inesquecíveis para um deus cujas conquistas amorosas geralmente não merecem mais do que alguns momentos de minha divinha atenção. Depois veio o tempo de ansiosa espera, até que realizei por fim meu objetivo: nasceram as Musas, minhas nove filhas geradas por Mnemósine, que viriam ser as maiores inspiradas dos poetas. Freqüentam o Olimpo apenas em ocasiões especiais para compartilhar nossos banquetes, quando cantam em coro para nos alegrar. São elas que levam a música a todos as celebrações populares: funerais, combates, festas, jogos, cerimônias. Houve um tempo em que as Musas não tinham descanso. A todo o momento os poetas as invocaram, em busca de inspiração, principalmente antes de compor suas obras líricas ou épicas. Todos os que trabalhavam com algum tipo de arte, que necessitasse de uma boa dose de imaginação, a reverenciavam. Quem é que se lembra delas agora? Recolhidas, passam grande parte do tempo afastadas de todos e, se eu não for pessoalmente chamá-las para trazer um pouco da antiga alegria à morada dos deuses, elas se manteriam eternamente solitárias. Apesar de quase indiferença dos poetas e artistas, eu jamais ouvi de seus lábios um único lamento. Pelo contrário, repetem que nunca deixarão de estar presentes em casa amante da arte que tinha ouvidos para ouvi-las e
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sensibilidade para compreender os seus sinais. Seja no mundo divino ou no mundo humano, cabe à memória e a suas filhas Musas a difícil tarefa de manter afastada a deusa Lete, do Esquecimento, irmão da Morte e do Sono. Hermes se aproxima para me avisar que já estão todos me aguardando no jardim em frente ao meu palácio. Acostumado a não ser regido pelo tempo,, não me dei conta de que Sol já estava quase no meio de seu caminho e que dentro de instantes chegaria ao seu ponto mais alto no Céu. Observo Hermes se afastar, com seu jeito brincalhão de dar cambalhotas no ar, numa alegria contagiante. Os deuses se encaminham para a assembléia.
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Levanto-me e caminho sem pressa por um atalho florido de exuberantes açucenas, ao encontro de meus companheiros. Não posso negar que, depois de tanto tempo e de tantas histórias em comum, nossas vidas se tornaram um complexo emaranhado de acontecimentos. Sei que os deuses já devem estar me aguardando, até mesmo os que não visitam o Olimpo há tempos. À medida que me aproximo, eles formam uma alameda de fila dupla para me saudar. Erguem taças de ouro à minha passagem e me acompanham enquanto subo os lances de escada te chegar ao trono, onde finalmente me sento. Desde que fizemos do Olimpo a nossa morada, obedecemos a este ritual. Faço questão de eternizar os rituais, porque são a garantia de nossas tradições e laços sociais. A cerimônia começa com o som dos tambores divinos que só usamos em ocasiões especiais. A batida ritmada tem o poder de reproduzir o som da Terra, inaudível para os mortais. Tem início a celebração. O ikhôr, ou sangue divino, pulsa em nossas veias e o batimento de nossos corações se acelera ao som primordial da Criação. Levanto-me e convido minha esposa Hera para que se sente a meu lado. Extravasamos as mágoas acumuladas que só conseguimos aliviar com nossos freqüentes ataques de cólera, quase sempre desproporcionais aos fatos. Hera, minha esposa, tem poucas
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A Purificação de Mnémosine
razões para sentir ciúmes de mim ultimamente, mas continua me perseguindo e me irritando com suas acusações infundadas. Reparo que a sempre bela Afrodite está com um estranho hábito de tomar banhos de espuma cada vez mais demorados. Quando perguntamos, ela responde que quer reafirmar para ela mesma o nome que recebeu. – Recebi um nome bem apropriado, já que “aphros” significa “espuma”. Sintome reconfortada quando estou no meu elemento – responde a deusa, sacudindo os ombros bem torneados para demonstrar seu pouco-caso conosco. No fundo, o que ela sente é um indisfarçável tédio. – Crise de identidade... – diz Hera com ironia. Sei que é difícil contar com Hermes, uma eterna criança que continua com suas brincadeiras como se nada estivesse acontecendo. Apolo, por sua vez, é orgulhoso demais para deixar transparecer algum mal-estar. Hefesto e Héstia estão cada vez mais calados e deles nada podemos saber. Felizmente tenho uma fiel aliada: minha filha Atena. Ela me compreende apenas com um olhar. Foi ela quem me apoiou durante a assembléia e me ajudou a manter a ordem. Em meio às acaloradas discussões da assembléia, exijo silêncio e aviso: – Da próxima vez que o Céu escurecer com o abraço de Selene em seu irmão Hélio, vamos nos preparar para o dia mais importante de nossas vidas. Ares ergue sua estrondosa voz para me desafiar: – E o que tem de tão extraordinário num evento que há milênios repetimos? Quando Ares se manifesta, tenho que fazer um enorme esforço para não me descontrolar. Sei que quase nunca sou bem sucedido. Como minha idéia era justamente harmonizar, respiro fundo e respondo: – É que dessa vez vamos ter uma novidade. A celebração vai se chamar “A Purificação de Mnemósine – a deusa da Memória” – título, aliás, bastante esclarecedor. Vou lhes explicar por quê. Há bastante tempo, venho observando que estamos cada vez mais distantes uns dos outros e já não conversamos como antes. Não trocamos idéias, não compartilhamos experiências, não gargalhamos como costumávamos fazer. Cada um de nós fica fechado em seu próprio mundo, com suas próprias certezas. Já que estamos condenados a manter o nosso o convívio por toda a eternidade, compreendi que temos muito para falar e devemos aproveitar esta ocasião para expor nossos mais profundos sentimentos e ressentimentos. Fiquei satisfeito com o efeito que meu discurso provocou na assembléia. Claro que minha autoridade pesou bastante e minha expressão enérgica não deixava dúvidas quando ao fato de que eu teria que ser obedecido sem contestações. Contei com a aprovação geral e não precisei dar maiores explicações. Sabia que, para nós, o mais benéfico seria conseguir expulsar as emoções nocivas – não necessariamente eliminá-las, mas deixá-las sair, para que o alívio e a alegria voltassem a reinar entre os deuses. A partir desse episódio, mergulhei em lembranças que até então acreditava esquecidas e bem sei que aconteceu o mesmo com os meus companheiros do Olimpo.
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Finalmente é chegado o momento mais importante do dia – o ritual de Purificação em honra à deusa Memória, que dá início ao grande banquete. Levanto minha mão direita e mantenho por um instante suspenso no ar o punho cerrado. É o sinal para que as vozes se calem e os risos cessem. Com voz eloqüente, digo: – A marcha do tempo é implacável. Crono e sua insaciável goela tudo devora e tudo corrói. Mnemósine é a única capaz de nos conceder a imortalidade. De nada vale nossa condição divina se não somos mais reconhecidos nem por nossos nomes nem por nossas ações. Que hoje, o dia em que reverenciamos Mnemósine, a guardião da memória, nossas palavras possam ecoar nas mentes e nos corações dos homens para transformar novamente em narrativa o que um dia já foi vivido e, assim, de alguma forma, garantir sua permanência. A década silhueta de minha irmã Héstia se destaca do grupo e lentamente se aproxima da chama sagrada. Enquanto caminha, o manto branco que lhe cobre o corpo jovial ondula,formando desenhos sinuosos atrás de sim. Héstia pára diante do lugar consagrado por nós, inclina-se sobre a pira onde, dia e noite, onde a Eterna Luz e toma nas mãos uma semente do Fogo. Este momento é o ponto culminante de todas as nossas celebrações solenes.
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O ritual de Purificação
Desço do trono e coloco-me no meio do círculo. Ao meu lado direito, Apolo tona na lira a Dança Ritual da Suprema Luz. Os demais deuses formam uma esfera de três raios, que se estendem na direção do Céu, da Terra e do Mundo Subterrâneo. Héstia agora vem em minha direção para que eu a consagre mais uma vez como a venerável virgem do fogo. Tomo a chama de suas mãos e entrego uma faísca a cada um de meus pares, enquanto as Musas e as Cárites começam a rodopiar graciosamente, imitando a ronda cíclica do Sol. – Eu sou Héstia, deusa do fogo da lareira, deusa protetora do lar e da família. – Saudamos a deusa Héstia, filha de Crono e Réia, a mais respeitada das deusas! – recitamos em coro. Com voz suave, lentamente, e sem demonstrar qualquer emoção, Héstia diz: – Não esperem de mim algo notável e vocês bem sabem que jamais conseguiria deleitá-los com alguma aventura ou fato surpreendente. Prefiro o silencioso anonimato. Sou de poucas palavras e de muitos chegam ate a esquecer que eu existo. Acostumeime com a solidão ao longo tempo em que estive presa nas sombrias entranhas de meu pai. Pouco me importo com o prestígio e o poder, tão significativos para vocês. Héstia raramente participa conosco de algum evento. Felizmente Hermes conseguiu convencê-la de que sua presença de hoje seria indispensável. – Gosto de me manter afastada de todos e por isso não costumo tomar parte das assembléias e reuniões. Basta ter sido contemplada com a honra de ser a pura essência do fogo sagrado. Nunca me mostrei aos homens e jamais deixarei que os humanos usem meu corpo para ser exibido em sua arte. Os poetas não mencionam meu nome em seus poemas porque não existe nada de interessante para contar a meu respeito. Apesar de meu calado recolhimento, faço questão de preservar alguns princípios, como promover a concórdia no seio da família e fazer com que os hóspedes sejam recebidos como irmãos. Há bastante tempo não me interesso em observar Héstia. Ela faz tão pouco para atrair nossa atenção, que até nos acostumamos com sua ausência. Hoje percebo que ela é de fato belíssima e não me admira nada que ainda existam deuses disposto a seduzi-la. – Fiz questão de me manter afastada dos sortilégios do amor e da sedução – prossegue Héstia, como se tivesse ouvido meus pensamentos. – Jurei me manter eternamente pura, para demonstrar claramente minha recusa em sentir qualquer desejo de prazer. – Peço licença para protestar mais uma vez contra a mania irritante de algumas deusas que insistem em se manter virgens.– intervém Afrodite. – Para mim, isso não faz o menor sentindo. Não preciso repetir que desprezo todos os que se fecham ao amor, tanto que fui eu quem incitou a paixão do Apolo e Poseidon. – Aqueles insensíveis e inconvenientes! – protesta Héstia. – Cansei de repelir suas investidas e por isso resolvi acabar de vez com a esperança dos galanteadores. Quando estávamos todos reunidos para mais uma de nossas assembléias, pedi a palavra e, diante do espanto geral, fiz o juramento de me manter eternamente virgem.
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– Ela deve ter algum tipo de doença, coitadinha... – zomba Afrodite. Lembro que estranhamos a determinação de Héstia. De fato, naquela tarde sem aviso e sem alarde, ela se colocou diante de nós e com firmeza jurou permanecer para sempre longe dos sortilégios do amor. – Não preciso dizer que eu não tinha a menor intenção de concordar com essa idéia absurda, que vai contra todos os meus princípios – digo. – Chamei Héstia para uma conversa e ela me confirmou que sua decisão era irrevogável. Pedi alguns dias para pensar. Acabei cedendo, a contragosto. Depois me arrependi: parecia até que eu estava prevendo o verdadeiro surto de deusas virgens que viria a seguir: além de Héstia, também Atena e Ártemis manifestaram o desejo de permanecerem intocáveis pelo amor. A continuar nesse ritmo, em pouco tempo a vida aqui no Olimpo iria se tornar decididamente intolerável. – O amor é um fogo que faz o coração vibrar de emoção, purifica o corpo e a alma – garante Afrodite. – Amor, tentação, fusão, envolvimento... são sensações que você, minha querida, nunca se permitiu experimentar. Héstia lança-lhe um olhar de reprovação, mas Afrodite prossegue, provocadora: – Admita que, mesmo tão recatada, você se sentia lisonjeada por ter tantos admiradores! – Jamais me deixei corromper pela paixão. Nunca senti nada por nenhum deles, se é o que você quer saber. A chama do amor que trago no peito, minha cara, não é dirigido a um ser em especial, mas a toda a comunidade, mortal ou imortal. Agradeço a meu irmão Zeus por fazer de mim a mais venerável de todas as deusas e me conceder o privilégio único de ser honrado no centro dos templos e dos lares, onde as chamas a mim delicadas nunca poderiam ser apagadas. Os homens sabiam que podiam contar com minha proteção enquanto o fogo sagrado ardesse em seus lares ou no centro da cidade, lar de todos os cidadãos. Se, por alguma razão, o foto se apagasse, era sinal de que grandes desgraças estavam para acontecer. Pois eu concordo com Afrodite. Estou convencido que, por trás de seu jeito tímido e discreto, ela gostava de se sentir cortejada. Quem não gosta? Até desconfio que foi justamente o seu jeito recatado que abriu tantos admiradores. Apolo me contou que Héstia esteve a um triz de ceder. Mas, voltou a essa história de castidade, fechou o seu corpo ao amor e dedicou sua atenção aos mortais. Embora fria e distante, sentia enorme prazer em ser venerada por eles. – Não sou saudosista nem pretendo ficar cultivando o passado. Ficou para trás o tempo em que eu era tratada com consideração, a época em que nenhuma casa podia ser considerada um lar, nenhum templo era abençoada por mim enquanto ali não ardessem as chamas vivas da madeira. – De todos nós, você foi a deusa mais honrada – comenta Hermes. – Na Terra, era impensável qualquer celebração sem a sua divina presença. As famílias se reuniam em torno da lareira e fortaleciam o seu vínculo. Conversavam, cozinhavam ou se
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O ritual de Purificação
aqueciam nas noites de frio. Sobre o fogo se derramava o primeiro e o último gole de vinho, como preciosa oferenda. Apesar de Dioniso ser o deus do vinho, era à deusa do lar e da lareira que os mortais faziam a oferenda do primeiro e do último gole em todas as festas. E não só isso: quando os homens partiam para fundar um novo povoamento, o fogo do local de origem era levado com uma bênção da deusa. E, quando um jovem casal se unia, cabia à mãe da noiva tomar uma parte do fogo de seu próprio lar e com ele acender o fogo da lareira da nova morada. Só a partir da entrada da deusa é que a casa poderia ser reconhecida como um verdadeiro lar e, então, ser habitada. – Desde que você se afastou do convívio humano, a chama da virtude se apagou – lamenta Hera. – Sei que posso parecer ultrapassada, mas são poucos os que ainda a respeitam. Pronto, aí está novamente Hera com a mesma velha história. Sei perfeitamente aonde ela quer chegar com seus comentários. Como ela é desagradável e repetitiva! – Escolhi a castidade e nunca tive filhos, ou uma família – continua Héstia. – No entanto, sou a protetora da família e do lar. Tanto que, de todas as cerimônias, a que mais me alegrava era a da chegada dos filhos. Eu descia do Olimpo especialmente para assistir à cerimônia, que acontecia quando a criança e davam várias voltas ao redor da lareira para comemorar sua acolhida ao seio da família. Só depois, tinha início o banquete para festejar o acontecimento. À medida que Héstia foi sendo desvalorizada pelos humanos, mais se voltou para dentro de si mesma. Uma única vez eu a ouvi se lamentar que os mortais a haviam negligenciado a ponto de esquecerem por completo as chamas sagradas. Apesar de tudo, ela se mantém quase impassível diante dos acontecimentos, enquanto que nós inventamos um sem-número de artifícios para negar o vazio em que nos encontramos. Os tambores agora pulsam num ritmo frenético. Marcando a cadência com palmas e batidas de pés, formamos um enorme círculo. A semente do fogo brilha em cada mão – deuses com a direita e deusas com a esquerda. O barulho vai se tornando ensurdecedor a nos traz de volta a mais arcaica das lembranças: o momento primeiro em que o mundo ainda estava imerso na escuridão do caos, da instabilidade e da desordem. Lentamente os tambores se acalmam e, mais uma vez a lira de Apolo se faz ouvir. A harmonia da música flutua no espaço com, um bálsamo de esperança. Depois da Grande Luta em que a ameaça dos inimigos da luz e da ordem pairou sobre o mundo, finalmente venceu o equilíbrio da Justiça divina. Com a nossa vitória, o mundo foi criado novamente. Entro no círculo e junto em minhas mãos as Sementes do Fogo. Depois, elevome acima dos demais deuses e calmamente as devolvo a Urano, o Céu, para que se misturem ao céu estrelado e brilhem sobre todos nós.
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Terminado o ritual, as batidas dos tambores silenciam. A deusa Memória caminha em minha direção. No dia que dedicamos especialmente a ela, o papel que assume é tão importante quanto o meu e, portanto eu lhe concedo a honra de se sentar ao meu lado direito. Precisamos da Memória tanto como qualquer humano. Ela é o nosso referencial, a garantia de nossa própria identidade. Quando a deformidade caótica do universo deu lugar à beleza, à harmonia e à ordem,quando alcançamos um nível de perfeição jamais experimentado antes, minha satisfação foi absoluta. Reuni os imortais para um banquete especial em que exibi aos meus pares a maravilha da criação. Do topo do mundo, apresentei-lhes orgulhoso uma visão extraordinária dos rios, mares, montanhas, bosques e florestas. Por ser ainda inexperiente em meu novo cargo de governante do mundo, eu acreditava que a criação estava completa, que não faltava mais nada. Até que fui surpreendido por uma voz que se levantou: “De que adianta tanto esplendor, se não temos criaturas que reconheçam a grandeza do mundo?” Apesar do espanto, tive que concorda que a pergunta fazia sentido. E apressei a criação dos seres humanos, planejando-os em cada detalhe, para que fossem feitos à semelhança dos deuses. No entanto, o resultado não ficou à altura da minha expectativa. Não apenas porque os homens logo se mostraram arrogantes e desprezaram os deuses, mas
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Porque convoquei o banquete
principalmente, porque, pela pressa com que foram fabricados, eles saíram mal acabados. De todos os defeitos humanos, o pior, sem dúvida, é seu intolerável esquecimento. Tentei consertar essa falha concedendo-lhes o dom da arte através das Musas. Meu pensamento vagueia durante o breve intervalo em que Mnemósine sobe os degraus para tomar o seu ligar. Aguardo as manifestações de costume e, solenemente, me pronuncio: – Eu, Zeus, soberano dos deuses e... dos homens... As palavras dançam em meus lábios, parecem zombar de mim e eu me controlo para não demonstrar nenhuma hesitação. Aprumo novamente o corpo, enquanto os deuses exclamam: – Honra e glória a Zeus, supremo governante do Universo! Sua vontade é a vontade de todos! Depois de uma breve paus, prossigo, senhor da situação: – Eu sou e serei para toda a eternidade Zeus, pai do Céu luminoso, deus dos deuses e governante do Universo, distribuidor das graças e dons para todos os seres da Terra, deus da Justiça, senhor do raio, do trovão e das tempestades. Se existem ordem e justiça no mundo onde antes reinava o caos, é porque Eu existo. Com o poder que me cabe, dou novamente início às comemorações em honra à inesquecível memória do evento que me colocou no trono do Universo. Concedo hoje a palavra para quem quiser se manifestar, sem medo da verdade ou de causar qualquer constrangimento. Não se preocupem em narrar fatos que não ofereçam nenhuma novidade para nós. O propósito de nosso encontro hoje é ouvir respeitosamente o que cada um tem a dizer, mesmo que suas palavras possam magoar, ofender ou fazer sofrer algum de nós. Chamo Hebe, a copeira do Olimpo, e peço-lhe que encha as nossas taças de néctar. Precisamos estar preparados para a longa jornada que temos pela frente. E precisamos, sobretudo, de coragem em nossos corações e clareza em nossas mentes.
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Meu olhar encontra o de Gaia. Ela nunca apreciou os nossos festejos, porque sabe que foi a grande derrotada da nova ordem. A Grande Deusa Mãe lutou com todas as suas forças, e usou todos os recursos de que dispunha, para não perder seu lugar. Reconheço que, com a minha vitória, teve início a ascensão da supremacia dos deuses em detrimento do poder das deusas, do Pai sobre a Mãe, do céu sobre a Terra. Respiro profundamente o ar puro desta esplêndida manhã. Pressinto que vai ser um dia difícil para mim e resolvo aproveitar o belo momento para começar o primeiro ato da purificação. A um aceno de cabeça, dou a palavra a Mnemósine, que declara: – A Grande Mãe deve ser reverenciada até o final dos tempos. É ela que a cada estação distribui suas magníficas dádivas por toda a natureza. Faz nascer os seres viventes e os recebe de volta quando a vida termina. Graças a ela existem as montanhas, florestas, rios, lados, oceanos. Os campos se enchem de flores a cada primavera e as árvores oferecem em abundância seus frutos. Os ventos do outono sopram seu nome enquanto caem as folhas. É ela que adormece a terra no inverno e a ressuscita quando o sol traz de volta seus raios que aquecem os campos. Ela é eternamente jovem e a eternamente velha, a Mãe de todos nós. Meus companheiros divinos erguem suas tacos ruidosamente.
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O corpo maltratado de Gaia
– Salve a Grande Mãe Terra! Gaia dá um passo à frente. – Eu, Gaia, para sempre fonte da Vida e Senhora da Morte, peço a palavra. Zeus, meu neto e divindade suprema do Universo e todos os deuses aqui presentes, ouçam bem. Antes de existirem os deuses do Céu, todos reconheciam minha importância e me reverenciavam com devoção. Compreendiam que meu útero de mão era a matriz de todas as coisas e que das deusas nascem os deuses, assim como das mulheres nascem os homens. Deméter, a deusa que preside os nascimentos, balança a cabeça em sinal de aprovação. Gaia prossegue: – No tempo em que os ciclos da Terra eram sagrados, os seres viviam em harmonia com as leis da natureza e essa harmonia se espalhava por toda a criação. Meu corpo mostra que a sucessão de morte e renascimento é inevitável e que toda existência tem seu início e seu final. Assim como a natureza, os homens também enfraquecem e morrem. Olhem bem para mim agora, para este meu corpo maltratado e você vão entender que é o corpo da Terra que está profundamente ferido. Gaia fecha os olhos e respira fundo. – Zeus, você que ouvia com tanto interesse as minhas narrativas, desde que se sentou em se ostentoso trono passou a contar os fatos da sua maneira, como faz todo vencedor. Nem seque se preocupou em me perguntar por que instiguei contra vocês os Gigantes e depois por que gerei Tifão. Tentei mostrar o desespero de uma mão que queria, acima de tudo, restabelecer a paz entre os filhos, porque entendia que dessa paz dependia a sorte de todo o planeta. As palavras de Gaia provocam entre os presentes um profundo desconforto. Mesmo sendo o dia que cada um pode expor livremente seus sentimentos, todos se agitam em com receio de que Gaia tenha se excedido ao dirigir-se a mim daquela forma, o que pode ser considerado um sério precedente. Mas para mim, Gaia está acima de qualquer cortesia desnecessária, mais ainda quando se trata de questões que a afetam diretamente. – Tenho que concordar com você, querida avó – sorrio, mostrando solidariedade. – Mas é bom lembrar quantas vezes eu mandei aos homens terríveis flagelos com a finalidade de purificar e regenerar seu ventre de Terra Mãe. Lembre que por causa do desgosto que nos causa a raça humana, enviei um grande dilúvio para afogar nas aguar todos os mortais. Mandei Bóreas soprar com toda fúria para o norte e, depois, Noto escurecer o céu de nuvens negras, soprando em direção ao sul. Para anunciar a tempestade, lancei meus raios como descargas elétricas para cortarem o céu com trovões ameaçadores, que rugiam sem trégua. – Primeiro, fiz cair uma chuva violenta, que se transformou numa imensa enxurrada de lama. Tudo o que havia pelo caminho foi arrastado pela força das águas: homens, animais, colheitas, árvores, casas e santuários. Os homens corriam
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para todos os lados, tentando desesperadamente se salvar, subindo ao topo das árvores ou das montanhas. Não tendo mais a quem apelas, gritavam nossos nomes suplicando ajuda, faziam promessas e orações. Tarde demais. As águas engoliram suas vezes e, quando o mundo se transformou numa imensa massa líquida, tombou sobre a Terra um silêncio de morte. – Não gosto nem de lembrar – sussurra Afrodite, ajeitando uma mecha de cabelo que lhe cai sobre os olhos. – Para que fosse criada uma nova era e uma nova humanidade, aceitei que salvasse apenas um casal, o único que nos tinha respeito e veneração: Deucalião e Pirra. Prometeu os avisou sobre o castigo que estava prestes a acontecer e os ensinou a construir uma barca de madeiras. Eles navegaram ao sabor das ondas durante nove dias e nove noites até chegarem ao alto do monte Parnaso, onde desembarcaram. Foi só então que fiz cessar o dilúvio e as águas começaram a baixar. Nada mais restava no mundo, além de um homem e de uma mulher. Deucalião e Pirra encontraram um antigo templo imerso em lama. Limparam o altar e me invocaram com profunda devoção. Percebi que lhe era impossível viver nessa situação de isolamento e por isso achei até bastante justo me pedirem para repovoar a Terra. Seguindo minha ordem, foram consultar o oráculo de Têmis, que respondeu que eles deveriam atirar para trás os ossos de sua Grande Mãe. – Ossos? De sua Grande Mãe? – pergunta Deméter, intrigada. – Pirra também não conseguia compreender o significado destas palavras e julgou que se tratava de uma grande crueldade. Eles estavam prontos a recusar o que o oráculo havia ordenado, até que Deucalião concluiu: a Grande Mãe era a Terra e as pedras eram os seus ossos. Só então resolveram obedecer ao oráculo. Cobriram suas cabeças, afrouxaram o cinto de suas vestes, apanharam pedras do chão e as lançaram para trás. Foi imensa a sua surpresa quando verificam que das pedras atiradas por Deucalião surgiram homens e das pedras atiradas por Pirra surgiram mulheres. E o mundo foi repovoado por uma nova raça. Observo que Gaia não consegue disfarçar a emoção provocada pelas lembranças. Voltome novamente à assembléia para concluir: – Fiz questão de relembrar o episódio para mostrar que não importa o quanto estamos distanciados do mundo dos mortais, seja nas alturas do Olimpo ou nas profundas do mar. Temos sob nossos pés a mesma Terra que é – e sempre será – sua verdadeira mãe. – Realmente senti reavivar minhas forças depois do dilúvio – diz Gaia. – Mas quantos dilúvios seriam necessários hoje para limpar em mim as nódoas do sangue e das devastações?
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– Por que será que você só conseguiu o lugar de Deus Supremo com o sacrifício das Grandes Deusas? – insiste Gaia. – Tantas vezes eu lhe fiz esta pergunta e só tive como resposta sua indignação. Mesmo que pro toda a eternidade você insista em negar, eu volto a afirmar: você só se tornou o governante do Universo à custo dos atributos que pertenciam unicamente ao feminino. Você sabe perfeitamente que, apesar de todo o seu poder, jamais teria a suprema honra de gerar com o útero. Por inveja e por despeito, você resolveu fazer com que deuses e homens acreditassem que o masculino é superior ao feminino. – Gaia, eu lhe peço que não insista em conversas que me irritam – digo com voz firme, na tentativa de encerrar o assunto, Gaia nunca vai reconhecer as evidências dos deuses em relação às deusas é incontestável e não há quem não reconheça, também na Terra, a superioridade dos machos mortais. Como deus supremo, faço tudo para que o mais elevado ideal da perfeição continue a ser a minha maior qualidade. Apesar de tudo, devo reconhecer que Gaia tem sua razão. Realmente, para me tronar o mais sábio dos deuses, eu precisei antes me apoderar da sabedoria, atributo do feminino. Invoco Mnemósine para que me traga a lembrança da mãe de Métis, a Sabedoria. As recordações me levam de volta ao tempo em que eu era ainda bem jovem e me apaixonei por
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Métis, a Sabedoria, minha primeira esposa
ela. Quando a vi pela primeira vez, compenetrada, preparando uma mistura de erva para que Réia desse ao meu pai Crono com a finalidade de fazê-lo vomitar os filhos engolidos, eu senti que ela era a deusa dos meus sonhos: perfeita para ser minha esposa. A filha de Oceano, Métis, produziu em mim um impacto devastador. Pela primeira vez fui tocado por Eros e só tinha um pensamento: fazer dela minha esposa, minha primeira mulher. Deusa da sabedoria, da prudência e da inteligência prática – enfim, todos os predicados de que um bom governante necessita, Métis foi a primeira de uma longa série de amantes, todas a fugir de mim por medo do amor sem fidelidade que lhes oferecia. Embora assustado diante de uma sensação que nunca havia experimentado antes, algo me impelia a não desistir. Foi por isso que não hesitei em perseguir o objeto de meu desejo durante o tempo que fosse necessário. Meu temperamento é passional e sigo uma única norma: nunca aceito recusas. Naquela época, eu era um jovem inexperiente, que nada conhecia das ciladas do amor. Acreditava ingenuamente que, para conquistá-la, bastaria de mim um olhar, um aceno ou uma palavra gentil. Não contava que Métis fosse escapar ao meu assédio e que, para tanto, ela usasse vários disfarces. Acontece que, quando quero algo, não sou de desistir, mesmo diante das maiores dificuldades. E assim, apesar de ter assumido outro aspecto, consegui reconhecê-la, a tomei em meus braços e fiz dela minha mulher. Penso que ainda estaríamos casados, não fosse o oráculo. Não tenho nenhum poder sobre os acontecimentos futuros e por várias vezes recorri aos oráculos para que me ajudassem nas decisões mais importantes da vida. Alguns acreditam que os deuses estão acima do Destino. Puro engano. Pressenti que algo estranho estava para acontecer que logo que Métis anunciou a gravidez de nosso primeiro filho. Custei a seguir minha intuição. Até que um dia tomei o caminho do oráculo de Gaia e o que ouvi naquela manhã me deixou muito abalado: “Ouça bem o que eu tenho a lhe dizer: você cometeu um terrível engano ao desposar Métis. Ela o fará pai de dois filhos. Primeiro virá uma filha, cuja semente já cresce no ventre de sua mãe. Ela será motivo de grande orgulho para você. Mas logo virá um filho que vai ultrapassálo em inteligência, força e ousadia. Tudo isso talvez não trouxesse resultados tão desastrosos se o filho que está para vir não fosse também ambicioso e cruel. Para alcançar seu objetivo de substituílo no trono do Universo, ele vai traí-lo e usar de força para expulsá-lo do Olimpo. “Expulsar-me do Olimpo?”, perguntei, assustado, “Para onde?” Gaia me olhou com piedade e respondeu: “Para as profundezas do Tártaro!” Olhava para o ventre de Métis, a cada dia maior, e sofria como sofre qualquer soberano quando percebe que seu poder está ameaçado. Tinha que tomar uma providência, por mais radical que fosse e o mais rapidamente possível. “Não permitirei que o destino se cumpra!”, exclamei, enquanto pensava no que fazer. Até que tive uma idéia. Naquela mesma noite, quanto Métis se aproximou de mim e a convidei para se deitar ao meu lado, senti que tinha que por em prática o mais rápido possível o plano que havia idealizado. Apesar da certeza sobre a atitude a tomar, tive um momento de hesitação, quando contemplei o seu rosto, mais belo do que nunca. Um momento breve, felizmente.
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Eu a chamei para perto de mim e a cobri de carinhos como se nada de diferente estivesse acontecendo. Depois, perguntei da maneira mais ingênua que consegui: “É verdade que você pode tomar qualquer forma que escolher?” Diante da resposta afirmativa, mais uma vez a desafiei: “Um unicórnio, por exemplo?” E Métis me respondeu: “Nenhum problema, meu amor.” Em segundos, tinha diante de mim um magnífico unicórnio. “Incrível!”, exclamei, demonstrando um entusiasmo exagerado. “E agora, que tal, um dragão que lança fogo pelas narinas?” “Fácil!”, exclamou Métis, feliz com aquela nova diversão e sem desconfiar de nada. Pulei para trás diante da estranha criatura que surgiu na minha frente. E, antes que ela percebesse minhas intenções, resolvi abreviar a brincadeira: “Já vi que você consegue assumir a forma de figuras enormes e assustadoras; Mas duvido que consiga se transformar numa pequena gota de água salgada...” Antes mesmo de terminar minha frase, percebi uma gota brilhando ao meu lado. Com todo o cuidado, segurei a gota com o dedo indicador e, tranqüilamente, a levei à boca. Foi assim que pude facilmente engolir Métis. Depois desse episódio, fiquei muito aliviado por ter eliminado a tempo a ameaça ao meu poder e logo me esqueci do acontecido. Tempos depois, quando caminhava pelas margens do lago Tritônio, senti de repente uma tremenda pontada na cabeça. A dor foi tanta, que mal conseguia me manter de pé. Só de me lembrar, sinto novamente a mesma insuportável sensação que experimentei naquele dia. Era como se um garrote estivesse apertando sem piedade meu cérebro. Dei um berro tão forte, que o chão estremeceu a meus pés, as ondas do mar se agitaram e Hélio freou no céu seus cavalos de fogo para ver o que estava acontecendo. Hermes veio me acudir e, sem saber como agir, pelo menos teve a ótima idéia de chamar Hefesto, o ferreiro de Olimpo, Logo que vi, gritei: “Pegue seu machado e livre logo minha cabeça dessa dor insuportável, nem que para isso você tenha que arrancá-la fora!” Hefesto arregalou os olhos, incrédulo. Hesitante, pegou o machado. Olhou mais uma vez para mim para se certificar se era isso mesmo que ele deveria fazer: – “Rápido!”, gritei, quase desmaiando de dor. E foi assim que, com um só gole, profundo e certeiro, Hefesto rachou meu crânio ao meio. Senti um alívio imediato, que só não foi maior do que a alegria que veio em seguida. Da ferida aberta surgiu a belíssima Atena, já adulta e vestida com uma brilhante armadura. Na cabeça, trazia um capacete de ouro e, nas mãos, escudo e lança. Ao engolir Métis, aproveitei também para me apropriar da sua sabedoria, qualidade que nunca aceitei que pertencesse às mulheres. Com isso, além de me livrar de um futuro problema, eu me tornei o mais sábio, prudente e esperto dos deuses, qualidades que me valeram muito mais nos vários episódios em que tive que defender minha soberania. Como o oráculo havia anunciado, eu estava destinado a ser a divindade suprema do Universo e não podia de forma alguma deixar de lado tais atributos, se quisesse também ser o mais justo dos deuses.
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Quando Atena, a virgem resplandecente, emergiu de minha cabeça, um jorro de luz iluminou o Universo. O Céu e a Terra Mãe tremeram com o seu triunfante grito de guerra. Na cabeça ela trazia um capacete de ouro, no corpo uma reluzente armadura e na mão uma lança. Diante da extraordinária aparição, os deuses foram tomados de espanto e respeito. Estendo as mãos em direção à Atena e digo: – Deusa das armas e dos exércitos, Atena, guerreira de coragem incomparável, filha que herdou de mim o poder e de sua mãe Métis, a prudente lealdade. Dirijo a Ares um olhar ameaçador, para cortar qualquer possibilidade de protesto. Confiante, minha filha ergue a voz com a desenvoltura que todos conhecem tão bem. Atena se levanta, pousa uma das mãos no quadril e com a outra segura a lança com firmeza. Dirige-se ao centro da rosa dos deuses e declara: – Sou Atena, filha de Zeus, deus protetora de Atenas. – Honra e glória e Atena, deus guerreira, protetora dos heróis e inspiradora das artes! – ecoam os deuses em uníssono. Imponente e majestosa, Atena retira da cabeça o elmo dourado e inclina a cabeça em sinal de agradecimento. – Diante de todos, reafirmo o orgulho de ser a deusa da razão. Nasci da cabeça
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Atena, a guerreira deusa da sabedoria
de meu pai, Zeus, vestida com uma armadura e minha primeira palavra foi um grito de guerra. Não fujo da batalha se o que estiver em jogo for a Justiça, que prezo acima de tudo. Os homens que me rendem culto e me oferecem sacrifícios antes de partirem para o combate, sabem que, apesar de armada, sou uma deusa que protege o guerreiro e privilegia, antes de tudo, a paz. – Você se alimenta do passado, irmã, do passado! – grita Ares. – Os homens lhe rendiam culto, é bom frisar, para que fique bem claro. – Passado ou presente, o que importa? Olhamos para trás e temos relatos, lembranças, ou para frente e temos projetos, propósitos. Para nós, os dias representam apenas uma parcela de tempo onde os fatos se inserem. Continuo a ser a deusa da guerra. Não da odiosa carnificina, mas da guerra justa. Desprezo a força bruta e não sinto nenhum prazer com a visão dos corpos dilacerados, espalhados pelos campos de batalha. Quando os apelos de paz são inúteis, eu me junto aos guerreiros que lutam por um ideal e defendem da fúria do inimigo suas casas, suas mulheres, seus filhos e o futuro de suas cidades. A estratégia e a prudência são minhas únicas armas. Não preciso de outras para chegar à vitória. Ares, o deus da guerra sem glória, nunca conseguiu entender que, apesar de ser uma guerreira, Atena sempre defendeu as causas nobres. – Um dia, vi o bravo guerreiro Tideu, um de meus protegidos, estirado no chão, gravemente ferido em combate. Implorei a Zeus em seu favor e recebi dele um medicamento capaz não apenas de salvar e curar Tideu, mas também de torná-lo imortal. Desci do Olimpo com a droga nas mãos e, para minha decepção, o encontrei cheio de ódio, prestes a se vingar do inimigo, de forma cruel e desumana. Reunindo as últimas forças de um agonizante, o guerreiro se preparava para devorar o cérebro do adversário. Diante do horror que me causava a cena, eu me retirei do campo de batalha edesisti de imortalizá-lo. – Tideu? Tenho uma vaga lembrança... Acho que conheci aquele belo rapaz – comenta Afrodite. – Que pena. Podíamos ter desfrutado de sua bela presença aqui no Olimpo, não fosse... – Sua mediocridade me irrita. Não suporto suas palavras tolas e superficiais –reage Atena. Afrodite abre a boca para responder, mas Atena a interrompe. – Ao contrário de certas deusas que fazem da vaidade sua principal virtude, meu interesse maior é o saber, em todas as suas manifestações. O espírito criativo de Atena não tem limites: sempre consegue inventar alguma coisa para facilitar o trabalho de homens e mulheres em áreas tão diferentes como a fiação, tecelagem e bordado ou agricultura, arquitetura, escultura, belas artes, ciência. Atena segura com força a lança. – Ares e sua fiel companheira Éris, a Discórdia, são meus maiores inimigos. Viveríamos bem melhor sem um deus cujo maior prazer é semear o ódio e a desunião
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entre irmãos. Tentei mostrar-lhes diversas vezes que nas batalhas não se deve usar apenas a força bruta e cega. – Sei que você me considera a encarnação do mal, - reage Ares – um deus desprezível, sempre tomado por um descontrolado frenesi de sangue e de morte. Não me importo, eu tenho as minhas próprias convicções. Ares serra os punhos e seus músculos se retesam, fazendo palpitar de raiva as veias do pescoço. – Toda essa falação de paz para mim não tem o menor sentindo. É possível ignorar que a história da humanidade foi escrita com sangue. E sabe por quê? Simplesmente porque a destruição é necessária para a vida prossiga. A vida, minha cara,se alimenta da vida e nada mais é do que uma seqüência de riscos e conflitos. Vida se alimenta da vida... Muito interessante... De onde será que Ares tirou esta idéia? Garanto que da cabeça dele é que não foi.
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Nunca escondi de ninguém que Atena é a minha filha predileta e, por esta razão, lhe concebi muitos privilégios. – Você é meu exemplo, aquele a quem mais admiro – diz Atena. Hera, Deméter e Afrodite, legítimas representantes das figuras de esposa, mãe e amante, não se conformam com a evidente admiração que dedico a Atena. Não tanto pelo fato de duvidarem da estima que tenho por elas, mas porque nunca aceitaram o fato de eu ter concordado com sua insistência em ser uma deusa virgem. Deméter, que adora dar conselhos, já perdeu a conta das vezes em que tentou convencer Atena sobre a alegria de ter filhos. Para minha esposa Hera, a questão não é ter filhos: o que ela nunca entendeu é como se pode querer passar uma vida solitária, sem a companhia de um marido. Quando à Afrodite, ela mesma já se ofereceu inúmeras vezes para lhe emprestar a cinta mágica, o chamado cinto de amor. – “Infalível numa conquista”, garante ela. Ofendida com a castidade de Atena, certa vez Afrodite chamou Eros e o provocou: “Vejo a satisfação com que você dispara sobre deuses e mortais as setas que despertam o amor. Você diz que tantos os homens como os deuses se apaixonam imediatamente, mal a flecha toca seus corpos, mesmo que suavemente. Eu mesma já senti várias vezes os seus efeitos. Só uma questão me intriga: por que suas setas são inúteis quando se trata de Atena? Por que razão ela
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A castidade de Atena
sempre se mostrou imune ao amor?” Eros deu de ombros, murmurando: “Atena? Caso perdido! Não perco mais meu tempo com ela. Minhas setas não têm o poder de ultrapassar sua armadura e ela faz questão de manter à distância qualquer possível pretendente.” Eros tem razão. Guerreira, masculina e racional, minha filha realmente tem uma atitude que espanta qualquer possível pretendente. O único em quem ela confia sou eu. Só eu sei que, por trás daquela aparência de donzela armada de escudo, lança e capacete, se esconde um jovem sensível e vulnerável. É possível que ela tenha sofrido muito a falta do carinho da mãe. E o resultado é a dificuldade de se abrir para o amor, talvez até para não arriscar à dor de uma nova perda. Atena interrompe meu devaneio quando começa a falar sobre o grande desgosto de ter sido desrespeitada por Hefesto. – Se existe algo que nunca esqueci nem perdoei é o fato de Hefesto não ter respeitado a promessa que fiz de me manter eternamente virgem. Por sua causa eu passei mais vergonhosa e humilhante experiência de minha vida. Atena faz uma pausa tensa. – Um dia precisei ir à sua oficina, na ilha de Lemnos, para lhe encomendar uma nova armadura. Eu estava distraída, admirando suas obras, quando ele me atacou. Seus braços musculosos enlaçaram meu corpo com violência, que sua voz rouca sussurrava palavras incoerentes. Ainda sinto um arrepio de nojo quando penso na cena. Atena engasga, envergonhada com a situação. – Levei um grande susto, pois não estava preparada para tal atitude. Gritei para que me soltasse e quanto mais eu lutava, mais ele me prendia. Consegui me desvencilhar do infame e fugi dali o mais rápido que pude. Mas ele foi mais ligeiro e me alcançou. Mesmo que por apenas alguns segundos, senti com repugnância seu hálito ofegante junto a mim. Quando finalmente me libertei de seus braços, percebi em minha coxa algumas gotas de seu sêmen. Não tenho palavras para descrever o nojo que eu senti. Mais do que depressa, peguei uns trapos de lã, esfreguei minha pele com tanta força que quase provoquei um ferimento. Depois, atirei o pano longe, o mais longe que consegui. Hefesto, com seu jeito de eternamente rejeitado, contesta: – Entendam, eu estava fora de mim, passava pelo momento mais difícil da minha vida. Minha esposa Afrodite, meu único e verdadeiro amor, havia se deixado seduzir por Ares. Quando descobri a traição, tive a sensação de que o mundo havia desabado sobre a minha cabeça e que nunca mais conseguiria sentir nada por alguém. Foi então que vi Atena. Meu sangue ferveu, o coração pôs-se a bater descompassado. Foi mais forte do que eu. Não consegui me controlar. – Que desrespeito! – exclama Afrodite. – Não venha agora pôr a culpa em mim e se eximir da responsabilidade por um ato tão sórdido. Gaia me dá um passo à frente e pede novamente a palavra, já que havia participado
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diretamente do acontecido. – Eu fui testemunha involuntária desse incidente, realmente abominável. Como Deusa Mãe, rejeito qualquer ato de violência em relação ao feminino. Contra minha vontade, quis a Natureza que o sêmen germinasse e produzisse uma estranha criatura que recebeu o nome de Erictônio, o filho da Terra. Uma criatura monstruosa, metade humana e metade serpente. – Aviso que nunca engoli as críticas que me são feitas – emenda Atena. – Não me comparem com Deméter, somos totalmente diferentes. Para ela, ter um filho é a suprema felicidade, é o seu temperamento. Não conheci minha mãe e escolhi ser uma deusa virgem. Apesar de tudo, trago em mim a essência de uma Grande Mãe, cujo maior mérito é a capacidade criadora. Inspiro as mulheres para que se lancem sem medo na grande aventura que é a vida. Mas sou incompreendida quando afirmo que não nasci para casar e gerar filhos. – Ela deve ter algum problema muito sério... – murmura Deméter. – Só poder ser porque ela não teve mãe, coitada. – Pois para mim só existe um remédio para trais casos: uma paixão arrebatadora – responde Afrodite no mesmo tom de voz. –Não preciso de ninguém para me proteger, me servir de amparo ou me dizer o que devo ou não fazer – continua Atena. – Estou fora do domínio masculino, sou autoconfiante. Eu me basto. Quando Erictônio nasceu, fui eu quem o recolheu. Apenas preferi não expô-lo no Olimpo nem quis que vocês soubessem da existência deste pequeno monstro. Fechei-o dentro de uma arca e secretamente o entreguei às filhas de Cécrops, fundador de Atenas, para que tomassem conta dele. – Confiar em mortais? Quanta ingenuidade! – rebate Gaia. – Tem razão. Logo percebi o erro que eu havia cometido. Apesar de todas as recomendações, a curiosidade foi mais forte e elas abriram a arca. Quando se depararam com o estranho ser que estava escondido lá dentro, fugiram apavoradas. Foi impossível controlar minha fúria. Castiguei-as à altura de sua transgressão e as enlouqueci. Completamente transtornadas, atiraram-se do alto da Acrópole. Atena encara Deméter, desafiadora. – Você nunca perdeu a oportunidade de me humilhar, como se o útero fosse a única parte importante no corpo de uma fêmea. Pois eu lhe digo que, apesar de não ter gerado Erictônio dentro de mim, não o deixei desamparado. Eu o levei para o recinto sagrado da Acrópole e foi a única responsável por sua educação até ele atingir a maioridade e assumir o trono de Atenas. E dirigindo-se a Afrodite: – E você, que é uma deusa cuja única finalidade é promover o amor e a beleza, saiba que valorizo acima de tudo a minha liberdade. Desprezo todas as suas tentativas de agradar os outros a qualquer custo, como é de seu feitio. Não tenho a menor
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A castidade de Atena
simpatia por sua exagerada preocupação com a estética. Considero puro desperdício de energia ocupar-se o tempo todo com o penteado, com a beleza do corpo e todas essas ridículas futilidades. – A falta de amor a faz tão amarga... – revida Afrodite. – Sou a deusa protetora das artes – continua Atena sem alterar a voz. – O que permanece, senão a arte? Sou eu quem concede aos mortais, efêmeros seres destinados ao nada, o privilégio do impulso criador. Criar é a única possibilidade de garantir uma parcela de eternidade. Como deusa, sei que tudo na Terra é efêmero, que tudo passa, todos os momentos se escoam como fina areia entre os dedos. Vão-se as criaturas, os amores, os impérios. Só a arte permanece. Sei bem o que digo, pois foi graças a meu impulso criador e a meu gênio inventivo que muitas coisas surgiram. – O quê, por exemplo? – desafia Afrodite. – O tear – responde Atena prontamente.
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– Vocês aqui são testemunhas de todo o meu esforço para ajudar os mortais no sentindo de promover a paz – diz Antena. – Não preciso repetir o quanto a guerra me causa desgosto. Combates roubam meu tempo do que amo realmente de fazer: tecer, bordar e ensinar às mulheres a minha arte. É preciso um mínimo de sensatez para perceber que é impossível comparar seus trabalhos com as minhas obras. – Não existe recompensa possível para um mortal que tem a infelicidade de ignorar suas limitações – proclamo. – Quem? – pergunta Afrodite, para quem as disputas de Atena não têm grande importância. – Uma jovem tecelã da Lídia. Ela era realmente muito talentosa – admite Atena. – Provavelmente eu jamais tomaria conhecimento de sua existência, não fosse o Destino colocá-la diante de mim, justamente quando a tola teve a triste idéia de proclamar ao Céu e à Terra a perfeição de suas obras. Foram as ninfas dos bosques e dos lados que vieram me contar sobre a sua habilidade. Elas me disseram que costumavam largar tudo o que estavam fazendo só para observar, maravilhadas, o trabalho da jovem no tear. Além das ninfas, também homens e mulheres vinham de lugares distantes só para vê-la tecer. Diante da platéia que se formava, todos os dias à sua volta, Aracne se vlangoriava: “Meus trabalhos são mais perfeitos dos que os de
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A ousadia de Aracne
Atena! Vejam – sou ou não insuperável?” – Realmente, trata-se de uma insolência imperdoável - concorda Afrodite, enquanto molhou os lábios na taça de néctar. – Um dia enviei um mensageiro só para lembrá-la de que sua habilidade havia sido concedida por mim e que ela era apenas uma discípula da deusa das artes e dos trabalhos manuais. Aracne nem deixou ele terminasse aqueles discurso e foi logo falando, com indisfarçável ironia: - “Pois então digam à minha grande mestra que eu a desafio!” Sem se importar com o espanto do mensageiro, a atrevida continuou indicando com o dedo a bela peça que havia acabado de tecer: – “Diga-me com sinceridade se minha arte não suplanta a da própria Antena!” E acrescentou: - “É verdade eu devo a ela os primeiros pontos, mas tenho certeza de que até ela reconhece o meu valor e que não vai querer passar pela vergonha de perder uma competição comigo”. – Como são ingênuos os mortais que, como Aracne, ousam desafiar um deus! – exclama Hermes, indignado. – Mesmo assim, como herdei de meu pai a generosidade, resolvi lhe dar uma chance. Eu me transformei numa velha de cabelos brancos, trêmula e enrugada, e fui bater à sua porta. Do local onde eu estava, consegui observas suas tapeçarias pendendo do teto e estendidas pelo chão. Consegui ouvir perfeitamente as comparações que os admiradores da jovem faziam a nosso respeito. O tom da voz de Atenha se torna mais áspero. – Controlei a minha cólera e a alertei sobre o grande perigo que ela corria ao esquecer-se de sua condição humana. Avisei-lhe que evitasse cometer um ato que, para os deuses, é imperdoável: a ultrapassagem de sua medida mortal, a hýbris, como nós chamamos desde o início dos tempos. Disse-lhe que ela devia ser mais prudente e, se era fama e prestígio que almejava, devia buscá-los entre os mortais. Depois, recomendei que se arrependesse para obter o perdão da deusa. – Suponho que a presunçosa não tenha lhe dado ouvidos – apóia Ártemis. – Acertou. Aracne estava tomada pela vaidade e não me deu ouvidos. Continuou o seu trabalho, ignorou a minha presença e simplesmente não deu a menor importância às minhas palavras. É claro que eu não podia deixar tamanho atrevimento passar em branco. Atirei longe meu manto e minha bengala e, com um gesto, alisei as rugas do rosto. Endireitei o corpo e lhe revelei minha condição divina. Ao invés de se sentir amedrontada, a jovem se mostrou feliz por estar na minha presença. Tinha tanta certeza de que eu não teria coragem e aceitar seu desafio, que continuou com suas provocações: – “Que sorte encontrá-la, assim que posso lhe propor pessoalmente uma competição. Assim todos poderão comprovar qual de nós duas é a melhor tecelã.” Minha filha Atena não apenas herdou minha generosidade, mas também meu caráter enérgico e decidido. Confio totalmente em suas decisões e não julgo os seus critérios quando
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alguém a provoca e ela resolva se vingar. – Claro que você aceitou o desafio... – comenta Ártemis. – Sem dúvida. E ainda convoquei todos os deuses para assistir ao confronto. Pela primeira vez nos vimos frente a frente, com nossos teares e fios coloridos. Ficou combinado que cada um deveria escolher o tema de sua obra e eu decidi tecer os deuses do Olimpo em todo o seu esplendor. Bem no centro do trabalho, em posição de destaque, bordei meu pai Zeus, sentado em seu trono de ouro. – Reconheço que você me retratou magnificamente, minha filha! – digo com indisfarçável orgulho. Atena esfrega a testa, como faz sempre que algo a aborrece. – Nos quatro no canto da tela, bordei cenas mostrando o que acontece com os mortais que ousam desafiá-los. Com isso, eu mais uma vez alertava Aracne para que fosse mais prudente, pois com sua ousadia ela se arriscava a receber uma severa punição. No entanto, ela fingiu perceber. Continuava firmemente decidida a me desmoralizar. Mais do que isso: ela claramente pretendia ridicularizar meu pai Zeus diante de todos. Imaginem, logo o deus supremo dor mortais! Revelar publicamente suas venturas amorosas com todas aquelas imagens... Era demais! Por outro lado, reconheço que na arte da sedução Zeus é insuperável. E Aracne foi capaz de retratálo com crua perfeição, em pleno exercício da arte da conquista amorosa: raptando Europa sob a forma de um touro, atraindo Astéria como águia, Leda como cisne, Calisto como Ártemis... – Chega! – interrompe Hera, contrariada. – Continue seu relato e poupe nossos ouvidos dos sórdidos detalhes. Atena coloca as mãos na cintura, desafiadora. Se ela concordou em calar, estou certo de que não foi para poupar Hera, mas para me preservar. – A tapeçaria de Aracne era perfeita nos mínimos detalhes, da combinação das cores à idéia de movimento que parecia dar vida às cenas. Impossível encontrar uma falha, por menor que fosse. – Afinal, você ficou mais irritada com a perfeição de sua obrar ou com o fato de expor aos olhos humanos o que se passa nos bastidores do Olimpo? – perguntou Hermes. – Os dois. Concordo que reagi com muita violência àquele insulto. Antes de me expor ao ridículo julgamento para decidir qual das duas era a melhor, tomei a tapeçaria das mãos da insolente e rasguei-a em pedaços. –Má perdedora é o que ela é! – comenta Ártemis. – Depois, eu a feri com uma de suas agulhas. Foi só então que ela compreendeu o que significava desafiar uma deusa. Tarde demais! Desesperada, tentou se enforcar no galho de uma árvore, mas eu não o permiti e a mantive suspensa no ar, enquanto ela agitava nervosamente braços e pernas. – Que triste espetáculo... – murmura Ártemis.
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A ousadia de Aracne
– Pois apesar de grotesca, aquela situação me inspirou. E formulei sua sentença: – “Se é de tecer o que você tanto gosta, de hoje em diante eu a condeno a tecer sem parar, para o resto da sua vida. A diferença é que agora sua arte não vai mais atrair olhares de admiração, e ninguém jamais vai ousar compará-la a um imortal.” Enquanto eu falava, o corpo de Aracne começou a diminuir até tomar a desprezível forma de uma aranha, que imediatamente começou a retirar de seu abdôme finíssimos fios de seda que ela se pôs a tecer com seus múltiplos braços. – Se esse fato pelo menos tivesse servido para mostrar aos mortais a fragilidade das aparências ilusórias... – reflete Apolo.
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Poseidon se levanta, bate com o tridente no chão e pede a palavra. Faço um sinal para que prossiga. – Sou Poseidon. O mar é meu território, a parte que me coube na partilha do Universo entre meus irmãos. – Salve Poseidon! Senhor dos mares, responsável pelos abalso na Terra, deus das tempestades e maremotos! – Depois que nosso pai Crono bebeu a poça mágica e vomitou os filhos um a um, unimos nossas forças para derrotar o tirano. Graça a mim e aos presentes oferecidos pelos Ciclopes, garantimos nossa vitória e o governo do mundo. – Graças a você? – protesta Atena. – Sabemos que o sorteio foi carta marcada pelas Moiras, as Senhoras do Destino. Tudo bem, eu aceitei o fato sem protestar, mesmo sabendo que elas privilegiaram abertamente Zeus. Não se pode voltar atrás. Para falar a verdade, nem quero. Foi nas águas que encontrei meu elemento e não troco mar por nada deste mundo. Hades é que ficou deslumbrado quando lhe coube o reino das trevas, foi ele mesmo que me contou. Disse que adorou a idéia de reinar sobe multidões, pouco lhe importando se de almas vivas ou não. E, realmente, do jeito que o mundo está, com
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Poseidon se afoga em mágias passadas
tantas guerras, miséria e epidemias, ele não tem do que se queixar. – Poseidon, o sensível “Abalador da Terra” – caçoa Ares. – É no fundo dos oceanos que eu afogo a mágoa de ser tão mal compreendido. Tenho dificuldade de expressar meus sentimentos e me magôo com facilidade. Extravaso minhas emoções nas súbitas mudanças de humor, que passam rapidamente de calmaria à turbulência. – Um fato é inegável: nenhum deus o supera quando se trata de antigos ressentimentos – interrompe Atena. – Pois saiba que ainda não engoli o fato de você ter me vencido na disputa daquela cidade da Ática. Atena sorri, orgulhosa. – De fato, Atenas valia qualquer esforço. Quando Atena quer algo, nada a faz mudar de idéia e não mede esforços para alcançar seus objetivos. – Na época em que os deuses escolhiam cidades para serem seus protetores, – conta Poseidon – eu me encantei com um belo vilarejo montanhoso na Ática, uma região árida e pouco habitada. Acontece que o lugar também chamou a atenção de Atena. Por coincidência, nós dois chegamos lá quase ao mesmo tempo e por isso nos achamos no igual direito de reivindicá-lo para nós. Outros deuses também se interessaram, mas desistiram logo que perceberam o empenho com que nos lançamos à disputa. – Ninguém se atreveria a decidir por um dos dois e correr o risco de ser alvo de vingança do perdedor – comenta Ártemis. – Lembrem-se de que foi Cécrops, o então governador daquela região, quem sugeriu que a escolha do vencedor deveria caber à população – digo. – A idéia foi boa, mas não deu certo. – Nem poderia – acrescentou Poseidon – Os soldados deram o seu voto à Atena, com a alegação de que precisavam de sua proteção nos combates. – E você teve a imediata adesão dos marinheiros, que, em troca do seu apoio, pediram que lhe enviasse ventos favoráveis à negação – corta Atena. – Se ainda hoje lançar-se ao mar é uma tarefa arriscada, imaginei no tempo em que as embarcações eram frágeis! Bastava um acesso de mau humor de Poseidon para que naufragassem nas tempestades. – Os habitantes da futura Possidônia só teriam a ganhar se fosse eu o escolhido. Eu faria da cidade uma inigualável potência marítima. – Cécrops era um rei esperto – enfatiza Atena. – Reuniu os habitantes de seu reino e anunciou: – “Já que a decisão está tão difícil, proponho que chamemos os deuses para julgar a questão. Aquele que der o presente mais útil à cidade deverá ser reconhecido como vencedor.” Lembro que, ao ouvir as palavras do rei, meu impulso foi eliminá-lo com meus raios.
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Não suporto que alguém, muito menos um mortal, desafie minha autoridade. Ditar regras para os deuses é uma audácia que merece uma punição imediata. Desisti da idéia a pedido de Atena, certa de sua vitória. –“Deixe que eu mostre aos humanos que sou o mais capaz”, pediume ela. – “Só assim serei honrada como mereço”. – Eu me apresentei primeiro – diz Poseidon, com um gesto dramático. – Diante do júri, bati com o tridente no chão e, da fenda aberta, jorrou uma fonte de água salgada. “Eis aqui o meu presente”, disse. Em seguida, fiz surgir um magnífico cavalado alado. A multidão que assistia ao julgamento aplaudiu com entusiasmo, porque compreendeu que os presentes que eu lhes oferecia seriam muito úteis para arar e irrigar a terra. – É inegável que Poseidon estava inspirado naquela tarde – emenda Atena. – Sua oferta se mostrou muito vantajosa para todos. Mas ainda não havia chegado minha vez. Deixei que acreditasse que seria ele o vencedor. Coloquei-me diante dos deuses e mais uma vez o povo se animou com a possibilidade de receber algo precioso. E eu declarei: “Se for eu a escolhida, farei sua cidade reconhecida por todos os povos como a cidade da beleza e do conhecimento. Aqui haverão de progredir as letras, as artes e a ciência”. Recebi aplausos entusiasmados. A seguir, apontei minha lança para o solo, dele fiz entusiasmados. A seguir, apontei minha lança para o solo, dele fiz brotar uma frondosa oliveira. “Eis o meu presente”, disse. “Em toda a região da Ática brotarão árvores iguais a esta. Vocês poderão se alimentar com os seus frutos e o azeite extraído também será útil para iluminá-los”. Os deuses pediram um tempo para pensar. – E todas as deusas votaram em Atena e todos os deuses votaram em mim. – Poucas vezes em minha vida presenciei algo tão injusto! – lamenta Poseidon. – Hoje não tenho mais dúvidas de que a deusa da estratégia só venceu por ser a filhinha predileta do grande Zeus, o deus da imparcialidade! – E assim, a oliveira foi reconhecida como o presente mais útil. Venci a disputa e, em minha honra, a cidade passou a se chamar Atenas. Conforme a vontade do rei, o povo da Ática construiu em minha honra templos e estátuas no alto da Acrópole. As Panatéias, festas que aconteciam a princípio a cada cinco anos, eram muitos concorridas. Tinham início com um grande banquete público, seguido de uma série de competições atléticas. Até nós descíamos do Olimpo para prestigiar a festa com nossa invisível presença. Além da corrida, não podiam faltar os concursos de música e de poesia. Era sem dúvida um belo espetáculo, que ficava ainda mais lindo quando a cidade se iluminada com a corrida de tochas acesas. Os prêmios aos vencedores eram ânforas repletas de azeite, extraído das sagradas oliveiras.
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A verdade é que Poseidon jamais se confirmou com a decisão do júri. Para mostrar sua revolta, enviou ondas imensas que inundaram toda a planície de Elêusis, que fica em volta de Atenas. É bem do seu feitio se manifestar através cataclismos. Quando contrariado, Poseidon perde totalmente o controle. – Não tenho sorte – geme Poseidon. – perdi injustamente a Ática para Atena. Fiquei animado com Argos, mas lá tive que enfrentar Hera, que me venceu, com o consentimento do Zeus. – Não venha com desculpas tolas! – exclama Hera. – A verdade é que você perdeu mais uma disputa e a decisão coube mais uma vez a um júri. Lembre-se que você prometeu não repetir a inundação que você provocou em Atenas, caso os deuses me favorecessem. – E eu cumpri a minha promessa – ironiza – O que você está dizendo? – pergunta Atena. –Estou dizendo que cumpri a promessa de não fazer o mesmo que havia feito em Atenas. Então, fiz justo o contrário: sequei todas as fontes! Pelo menos o povo, assustado, construiu um templo em minha honra. Disseram que era para me acalmar...Há! Há!
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Atlântida, o prêmio de consolação
O maior orgulho de Poisedon é gritar bem alto: “O mar é meu reino!” Depois, com um gesto largo, aponta em direção ao infinito para mostrar a extensão de seus domínios. “Quero deixar bem claro que nos mares não admito intromissões”, repete. –No chão do mar Egeu, bem próximo á costa da Eubéia, construí para mim um formidável palácio, bem a meu gosto. A princípio, eu fazia um grande esforço para freqüentar as assembléias do Olimpio. Depois decidi aceitar o fato de que eu me sentia terrivelmente desconfortável em meio àquelas discussões. Só estou aqui porque Zeus foi pessoalmente me chamar e me convenceu de que hoje é um dia especial. Mas não vejo a hora de poder voltar ao meu reino. – Não temos dúvida de que o mar lhe pertence – reage Atena. – Mas sobre os rios a situação é outra. Neles você não pode mandar como pretende, já que cada um tem a sua divindade própria, fato que você é obrigado a respeitar, mesmo que a contragosto. Para compensar, você não perde uma chance de tentar exercer também seu poder sobre a Terra. –A Terra me cabe, por direito. E eu exerço este poder de acordo com a minha disposição do momento. Ninguém aqui duvida que eu seja capaz de provocar inundações, secas violentas, maremotos ou tremores de terra. Depois vem a melhor parte e eu me delicio em observar os mortais contabilizarem seus mortos. Choram e imploram minha ajuda. Assim como cada um de vocês aqui presente, adoro vê-los fragilizados. E, vocês sabem, meu humor é variável como as marés. Nos dias em que Poseidon está bem com a vida, sai do palácio para percorres o seu império sobre uma carruagem puxada por cavalos brancos com crina de ouro e patas de bronze. Daqui do alto, eu consigo ver o cortejo de nereidas, tritões, cavalos marinhos, delfins, fluindo na superfície do mar numa alegre sinfonia. Mas Poseidon nunca se dá por satisfeito. Certa vez ele veio se lamentar comigo que considerava seu reino pequeno demais: “Mereço mais, muito mais!” O fato aconteceu logo depois dele ter perdido aquela disputa com Atena. A sorte decididamente parecia não acompanhar meu irmão. Ele perdeu Atenas para Atena, Naxos para Dioniso e, em Egina, fui eu o vencedor. Disputou Corinto com Hélio. Perdeu a acrópole, mas pelo menos consegui ficar com o istmo. – Zeus foi generoso quando me ofereceu Atlântida – suspira Poseidon. – Você quer dizer, como prêmio de consolação – ridiculariza Ares. – Você fala por desrespeito: jamais se permitiu fazer algo que não fosse nos sangrento campos de batalha. Nem em sonhos você seria capaz de imaginar o que significa um paraíso de terras férteis, uma ilha exuberante em fauna e flora, cujo solo escondia fantásticos tesouros, como ouro, prata, bronze, cobre e ferro. – Fala a verdade, Poseidon – manifesta-se Afrodite, com seu jeito sedutor. – Você só foi capaz de se recuperar rapidamente da série de decepções que sofreu por causa daquela linha mortal chamada Clito, que vivia em Atlântida. Fique sabendo que fui eu a responsável pela união de vocês dois, para que tivesse início a
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família real em Atlântida, com seus dez filhos – cinco pares de gêmeos, todos varões. Durante muito tempo os homens acreditaram que Atlântida fosse uma utopia, um não lugar, ou seja, um lugar que existia somente na imaginação dos poetas. Deixei que assim pensassem, mesmo porque, com Poseidon, nunca se sabe o que é real e o que não é.
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Sei que o sonho secreto de Poseidon é tomar o meu lugar. Ele não se conforma com o fato de que nós temos uma natureza completamente diferente. Enquanto que eu tenho um brilho natural, uma capacidade inata para ser a autoridade máxima do Universo, Poseidon é emotivo, passional. Sou reconhecidamente um grande governante porque possuo a frieza necessária para tomar as decisões mais acertadas e não me deixo levar pelo coração. Poseidon é muito idealista. Ele vive num mundo que construiu só para si e, quando por alguma razão é obrigado a sair das profundezas do mar, tem dificuldade para lidar com a realidade. Talvez este defeito seja o responsável por seus acessos de ressentimento, mau humor e vingança. E para piorar, ele é imprevisível. Em um momento é um deus pacífico, cordato e confiável. De repente, sem nenhum aviso, ele explode em ataques de fúria e destruição. Mas, um fato é inegável: sua figura é imponente. Os cabelos e a barba, revoltos como as ondas do mar em dias se tempestade, lhe conferem uma fisionomia interessante, ao mesmo tempo austera e atormentada. – Tive muitos amores que nem vale a pena mencionar – revela Poseidon. – Clito foi apenas um deles, mas o único que me interessa falar é de minha verdadeira e única esposa: Anfitrite. –Ora viva, chegamos finalmente ao que interessa: amores! – anima-se Afrodite.
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O amor delirante de Poseidon por Anfitrite
–Em uma bela manhã como tantas outras, mandei preparar a carruagem as águas de meu reino e saber o que ocorria à superfície das ondas. Os peixes, golfinhos, tritões e cavalos marinhos, que fazem parte de meu cortejo, saltitavam animados, minha volta. Ao chegar à ilha de Naxos, eu me deparei com um espetáculo deslumbrante. Poisedon fecha os olhas e sorri, extasiado. – Segurei com força as rédeas dos cavalos e fiquei por um momento em transe, sem conseguir se mover. –Pare com tanto suspense – protesta Ártemis. – Até parece que aconteceu algo tão diferente. Aqui no Olimpio vocês, deuses, não se dão conta do quanto são repetitivos... Poseidon parece não ouvir. Aponta para um lugar imaginário, e continua: – Lá, diante de meus olhos encantados, eu vi várias ninfas dançando descalças nas areias da praia. Eram as filhas de Dóris e Nereu, as lindas nereidas. Anfitrite era de longe a mais bela. Contemplei a beleza perfeita do corpo sinuoso, a suavidade do movimento dos quadris, o sacudir da cabeça que fazia agitar a farta cabeleira dourada. O encanto da ninfa me fascinou de tal modo que não consegui pensar em outra coisa senão tê-la em meus braços. – Um sonhador visionário... – sussurra Apolo. – Desci da carruagem e caminhei em sua direção. Tinha pressa em falar sobre os meus sentimentos. Assustada com a minha presença, a tímida donzela correu para o mar, onde mergulhou e desapareceu na imensidão. Mergulhei atrás dela e a procurei em vão por todas as ilhas, grutas e recifes. O olhar de Poseidon se perde no vazio. – Despejei no mar toda a minha frustração. Com o meu tridente, provoquei ondas gigantescas que, durante muito tempo, prenderam nos portos as embarcações. Finalmente, eu me acalmei e compreendi que era inútil tanto desespero. Chamei à minha presença o mais ágil e esperto dos delfins de minha comitiva. – “Vá procurar Anfitrite onde ela estiver e convença-a de acompanhá-lo à minha presença”, ordenei. E, antes do delfim se retirar, ainda gritei: – “Diga que me caso com ela!”. Hera e Afrodite suspiram, comovidas. Uma cena decididamente patética. – Quando Anfitrite chegou, eu estava na porta do palácio, numa espera ansiosa. Ela me sorriu com um jeito tão encantador que não tive nenhuma dúvida em fazê-la minha esposa, a rainha do mar. Arrebatado pela lembrança, Poseidon mergulha em um profundo silêncio. “Tenho intensidade emocional, coisas que vocês desconhecem”, costuma repetir. Como se fosse um fato do qual pudesse se orgulhar...
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Chamo para perto de mim Têmis, a deus da Justiça divina, minha segunda esposa. Repito o gesto a cada celebração importante e em todas ainda consigo sentir o olhar cortante do indisfarçável ciúme de Hera. Como sempre, finjo não perceber. Manter a ordem e cuidar para que as leis sejam respeitadas sempre foram tarefas desgastantes e admito ter cada vez menos paciência para tais coisas. A minha sorte é contar com a ajuda de Têmis. Como filha de Urano e Gaia e, portanto, da família dos Titãs, ela deveria estar acorrentada junto com os seus irmãos nas profundezas do Tártaro. Eu a poupei porque, desde que a vi pela primeira vez, senti que nossa união seria vantajosa para mim. E, como sempre, não me enganei. – Têmis tem o dom da palavra certa, na hora certa – digo. – Não tenho nenhum pudor em admitir que costumo recorrer aos seus sábios conselhos antes de tomar alguma decisão importante. Hera se ajeita no trono e tenta disfarçar o desconforto. Mas não se contém, levanta-se e dispara: – Meu divino esposo ignora completamente meus conselhos. Ele nunca me dá ouvidos, mesmo diante do argumento mais convincente! Teima em fazer tudo à sua maneira. Por outro lado, basta uma palavra de Têmis para que ele imediatamente concorde com o que ela diz.
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Para que existimos, afinal?
– Você tem razão, Hera – afirmo, desafiando sua cólera. – Nunca escondi de você que tenho por ela enorme consideração. Cera vez encontrei Têmis muito preocupada. Durante dias, permaneceu pensativa e silenciosa. Sabia que não adiantava perguntar-lhe a razão, porque é de seu temperamento se manter calada e só compartilhar suas decisões quando tem certeza da solução. Passado um tempo, ela me chamou e disse, com fisionomia grave: “A Terra está se tornando muito pesada com o excesso de população. Se as pessoas continuarem a se multiplicar sem controle, não vai haver alimento nem água suficientes para todos. É preciso tomar uma atitude.” Eu sempre estava pronto a acatar qualquer idéia que ela tivesse em mente, porque confiava cegamente em seu bom senso e sabedoria. Mas, quando ela me expôs seu pensamento, tive que me apoiar na pilastra do jardim, tamanha a surpresa: “Vou provocar uma guerra longa, difícil e cruel. Estou certa de que essa será a melhor solução, mesmo sob o risco de ver a Terra tingida pelo sangue dos guerreiros.” Acho que concordei por habito e por conhecer a imparcialidade de suas decisões. Não tomei nenhuma atitude e tampouco tentei fazê-la desistir de seus planos. Acontece que os fatos começaram a se desenrolar tão rapidamente sob a coordenação precisa de Têmis, que, antes de nos darmos conta, teve início a longa e sangrenta Guerra de Tróia. – Eu demorei a compreender que a Guerra de Tróia, combate que haveria d ceifar tantas vidas, foi fruto de um processo cuidadosamente elaborado. Um dia, ouvi Têmis dizer que não suportava mais aquelas versões fantasiosas e equivocadas dos fatos, inventadas pelos mortais. – “Afinal, planejei a guerra em seus mínimos detalhes”, disse-me ela, – “E o que temos? Histórias, invencionices...” Ares se agita, bate com a lança no escudo e provoca um desagradável ruído. Ele detesta ouvir sobre o assunto, já que, foi o grande perdedor desta guerra. Continuo o meu relato: – Chamei as Musas com uma importante missão: inspirar o poeta Homero para que ele contasse em seus grandiosos, poemas, que ele chamou de Ilíada e Odisséia, os principais episódios acontecidos no decorrer da Guerra de Tróia. – Imagino que vocês queiram saber sobre como começou a guerra – intervém Têmis. – Poucos conhecem a verdade, então eu vou lhes revelar que um dos primeiros elos da série de acontecimentos que formaram o prólogo da guerra foi tramado por Prometeu, um Titã que havia sido poupado de ser lançado ao Tártaro. Foram tantos episódios e as personagens que desempenharam um papel importante nesta guerra, que é difícil estabelecer uma ordem coerente dos fatos. Chamo para perto de mim Mnemósine e digo: – O banquete hoje é em sua homenagem. No dia da purificação da memória, peço-lhe que ilumine agora minhas lembranças dos fatos que ficaram tanto tempo guardados num canto obscuro de minha mente. Procuro uma posição confortável e, com a voz pausada e firme, início a narrativa: – Quando Céu, Terra, Mar, Montanhas, Vales, Planícies, Fontes e Rios foram
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cada qual para o seu devido lugar, o mundo estava enfim pronto. Escolhemos o alto do Olimpo para ser morada dos deuses. Naquela época, nossos dias eram tão doces e suaves quanto o néctar e a ambrosia. Nada nos perturbava a paz, exceto uma ou outra desavença interna. Os dais transcorriam em monótona calmaria. Até que comecei a sentir certa inquietação em causa aparente. Eu me perguntada: “Mas o que é que nos falta?” Passeio o olhar sobre meus pares, que me escutam com vivo interesse. – Existimos para quê, afinal? Hoje, por vários outros motivos, procuro não pensar a respeito. Mas, naquela época, esta era uma questão aflitiva para mim e por longo tempo não me saía da cabeça. Tornei-me mais amargo, menos disposto a participa dos banquetes festivos. Hera me perseguia, com mil perguntas: - “Quem é ela? Responda! Só pode ser dor de amor, nunca vi você assim.” Pobre esposa, sempre com idéia fixa em minhas amantes! Só que nem ao menos para novas conquistas eu me sentia disposto. Quando convoquei os imortais para uma assembléia, como era freqüente acontecer, uma idéia revolucionária surgiu como um relâmpago, iluminando minha mente: criaríamos novos seres para que nos venerassem! Passado o choque inicial, ouvi alguns murmurarem: - “É, faz sentindo...” Ares dá um pulo e esbraveja: – Eis a nossa maior fragilidade. Temos sorte dos homens não possuírem a menor consciência de que não somos nada sem eles. Se eles soubessem disso, seriam livres e invencíveis. Ares me irrita. Cada vez que ele abre a boca tenho que me controlar. A maneira com que fala, suas atitudes... Tudo nele me é insuportável, mesmo quando tem razão. Odeio quando ele me interrompe. –O episódio criou várias vozes discordantes, mas vocês todos sabem que é a minha vontade que deve prevalecer sempre. Só não sabíamos ainda como proceder para atingir nosso objetivo. – Fui eu mesma que chamei Prometeu para nos ajudas na tarefa – enfatiza Atena. – Por que deveríamos escolher Prometeu, logo ele, que pertence à raça dos Titãs, nossos inimigos? – pergunta Apolo. – O maldito filho de Jápeto e Clímene havia sido poupado de ser atirado ao Tártaro, juntamente com seu irmão Epimeteu. – Prometeu foi um grande traidor e eu me arrependo amargamente de telo convocado! – exclama Atena com indignação. – Traidor, sem dúvida, ele foi. Mas devo admitir que muito esperto também. Tanto que conseguiu me enganar. Fingiu-se neutro na Grande Luta contra Crono e seus filhos Titãs, enquanto nos empenhávamos em combatê-los. – Quando ele percebeu que estávamos próximos da vitória, colocou-se fingidamente ao nosso lado e, com ares de muito prestativo, acabou conquistando a nossa confiança – diz Atena. – É verdade, filha. Acontece que, por vezes, sou tomado por um enorme
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susto de generosidade. É o meu mal. Assim, apesar de todos os protestos, mantive minha vontade de poupar Prometeu e permiti que participasse de nossos banquetes e celebrações. Falar em Prometeu provocava uma grande agitação. Todos querem falar ao mesmo tempo. – Durante todo o tempo em esteve entre nós, ele se mostrou cúmplice e aliado! –protesta Ares. – Na verdade, só esperava o momento certo de agir. – E o momento chegou quando erroneamente o escolhemos para criar um ser que fosse superior aos animais para nos honrar – rebate Atena. Hermes levanta o dedo indicador e pede a palavra: – Era finalmente a chance que ele tanto esperava para cumprira a sua vingança! Já premeditando o que iria fazer, desceu à Terra e nos pediu que o deixássemos a sós, sem interferir em seu trabalho. Foi muito difícil controlar minha curiosidade... – Devemos reconhecer que ele foi um artista de raro talento – interrompo. – Seguiu à risca a ordem de criar seres semelhantes aos deuses. É inegável que Prometeu conseguiu chegar próximo à perfeição. Quando deu sua tarefa por terminada, sentiu tanto orgulho de sua obra, que decidiu criar uma legião de seres semelhantes. Suas criaturas eram realmente admiráveis: o porte ereto, o aspecto altivo, a cabeça erguida, voltada para o céu, bem diferente dos animais que rastejavam ou farejavam o chão, com os olhos voltados para baixo. Concedi primeiramente a Atena a permissão de conhecer a magnífica obra de Prometeu. – Eu imaginei que seres aparentemente tão perfeitos deveriam possuir algumas qualidades especiais – diz Atena. – Por onde deveríamos começar? Avaliei que o mais adequado seria dar-lhes as características que já existiam nos animais. Assim, transferi para os homens a força do touro, a fidelidade do cavalo e a espertava da raposa. E ainda lhes acrescentei a voracidade do lobo e a vaidade do pavão. O resultado foi surpreendente e, aos poucos, as figuras de libertaram-se da imobilidade e começaram a se mexer. – Já ouvi esta história um milhão de vezes, até parece que é novidade – boceja Afrodite. Eu me lembro, mal consigo controlar a irritação. – Não estamos aqui hoje em busca de novidades. Pensei que havia ficado claro para todos que estamos aqui reunidos para purificar a memória das nódoas do passado. Cada um aqui tem direito de se manifestar como quiser. Quem não tiver paciência para ouvir, que se retire! Afrodite oculta no manto um sorriso envergonhado. – Eu avisei, fui bem claro – diz Apolo. – “Tome cuidado, não permita que os homens sejam feitos à nossa semelhança. Não vai dar certo. Com o tempo vão pensar que podem ultrapassar sua medida sua medida mortal e que podem tomar o nosso lugar. Faça-os apenas um pouco superiores aos animais...” – Só bem depois é que pude avaliar a sabedoria de suas palavras – lamento. – Fui então que Prometeu percebeu que a obra ainda não estava terminada –
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acrescenta Hermes. – Sim, ainda faltava o detalhe mais precioso: a faísca divina – diz Atena. – Subi ao Olimpo e voltei com uma taça de néctar. Em seguida, fiz com que as criaturas bebessem algumas gotas da bebida da imortalidade e imediatamente uma faísca de luz brilhou sobre a cabeça de cada uma delas. – Estavam prontas, pensei. Reuni meus pares e, diante disso, declarei: “Está criada a raça humana! Agora todos os deuses têm a permissão de verificar com seus próprios olhos as criaturas que vieram ao mundo para servi-lhes.” – Realmente, estaria tudo perfeito se não tivéssemos verificado um detalhe que fez toda a diferença – apressa-se a contar Atena. – Embora dotados de alma, ainda se comportavam como animais que obedeciam apenas aos seus instintos. Vagam pela terra arrancando frutos para se alimentarem. Despidos, usavam folhagens para se abrigar do frio. À noite se juntavam aos bandos e se refugiavam em cavernas escuras e frias. Ao invés de satisfação, começamos a sentir pena dessas indefesas criaturas, que continuavam a ignorar a existências dos deuses. – Seres que nos ignoram não merecem viver! – reclama Ares. – Contenha sua raiva – ordeno. – Quando senti que os deuses estavam esboçando uma nova resolva, chamei Prometeu expliquei-lhe a situação. Ele me pediu tempo. Na Terra. Observou cuidadosamente o comportamento de suas criaturas, até compreender que lhes faltava o dom da consciência. Nada sabiam ainda sobre a natureza ou a vida. Então, Prometeu ensinou aos homens as sutilezas da natureza. Mostrou a diferença entra as estações do ano, o dia e a noite, o nascer e o pôr-do-sol. – Ele empenhou-se ao máximo em passar todo o seu conhecimento porque sabia que era justamente desse aprendizado que dependia a sua vingança – diz Atena. – Aliás, ele teve suficiente para planejar uma desforra, enquanto que nós simplesmente não fizemos nada para evitá-la... – critica Apolo. – A etapa seguinte foi bem mais difícil. Prometeu ensinou aos homens como domar os animais para colocá-los a seu serviço, como usar ervas e raízes da natureza para preparar ungüentos, poções e remédios para acalmar dores e cicatrizar feridas. Ensinou-lhes a melhor maneira de afiar as pedras para corta o couro e mostrou como poderiam cobrir seus corpos com a pele de animais para se abrigarem nas noites mais frias. Quando sentiu que estávamos prontos, reuniu em volta de si as novas criaturas e anunciou: – “Finalmente vou mostrar algo que vai surpreendê-los.” Em seguida, rasgou a terra e revelou aos homens sua riqueza inesgotável. – Pois foi justo a partir daí que terminou o meu sossego – reclama Gaia. – Reconheço que nós ingenuamente acreditamos que a missão de Prometeu estava terminada. Ignorávamos que seus planos eram bem mais ousados: ele havia conseguido criar uma nova raça e lhe dado a consciência de deu poder. – Consciência de suas limitações e imperfeições, você quer dizer – retruca Ares.
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– Em troca da consciência, eles passaram a entender que suas insignificantes existências estão fadadas ao sofrimento, à doença e à morte. – Simplesmente perdemos o controle sobre as nossas criaturas: elas ganharam vontade própria. Sentiram-se poderosas e ousaram nos desafiar. Mandei-lhes raios e trovões, mas já não expressaram nenhum temor. Novamente nos reunimos em longas assembléias. Não sabíamos o que fazer. Ainda não havíamos percebido que entre nós havia um traidor, provavelmente divertindo-se com a nossa frustração. Havia chegado o momento de tomar uma grave decisão: deveríamos permitir que os homens continuassem vivendo ou o melhor seria exterminá-lo de uma vez, para acabar definitivamente com o problema que nos afligia?
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Colocada a questão, o debate se estendeu por vários dias, como sempre acontece em tais ocasiões. Já que se tratava de um assunto prioritário e merecedor de nossa total atenção, não nos ocupamos com mais nada além dele. Era fundamental conseguir o temor e o respeito dos homens. Que suplicassem por nossa ajuda, que sacrificassem animais em nossa honra. Se eles conseguissem cumprir a sua parte, nós cumpriríamos a nossa, concedendo-lhes a continuidade da vida. Por um breve período de tempo, chegamos a acreditar que a ordem do mundo havia sido finalmente restabelecida: os mortais se curvariam à nossa vontade. Até que Prometeu entrou novamente em ação e revelou seu verdadeiro objetivo. Aconteceu certa tarde de estarmos reunidos com os homens para um banquete. Naquela época, a convivência entre deuses e mortais era pacífica e considerei que aquele seria um excelente momento para testarmos a sinceridade do Titã. Chamei Prometeu e o encarreguei de fazer a divisão das carnes de um boi, em que a metade caberia a nós, os deuses, e a outra metade seria destinada aos mortais. E foi o que ele fez. Com uma calma premeditada, Prometeu depositou sobre a mesa duas grandes travessas. Uma parecia muito apetitosa, porém, em vez de carne, continha apenas ossos, cuidadosamente encobertos por uma bela capa de gordura branca. A outra porção, apesar do aspecto bastante desagradável, escondia as partes comestíveis do animal: a carne e as entranhas.
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Os humanos recebem o castigo merecido
O grande equivoco de Prometeu foi fazer pouco de meu discernimento. Imediatamente percebi a armadilha, já que as partes eram claramente desiguais. No entanto, preferi deixar que ele pensasse que havia conseguido me enganar. Escolhi a porção mais bonita e, quando retirei a gordura de cima dos ossos, encenei um explosivo ataque de raiva. Se ele se considera esperto, eu sou infimamente mais. Na hora do grande grito, fingi que havia sido enganado e minha indignação foi a justificativa que eu precisava para as punições que viriam a seguir. Hera percebe meu olhar distante. Segura minha mão com firmeza e tenho uma espécie de sobressalto, como se tivesse acordado subitamente de um sono profundo. Minha esposa não suporta ficar fora de meus pensamentos e ameaça uma nova cena de ciúmes. Tento contornar a situação e faço algo que ela adora: sussurro palavras ao seu ouvido. Mais calma, Hera me deixa novamente em paz e, assim, posso voltar às minhas lembranças. Fiquei possesso com o atrevimento de Prometeu. Encerrei o banquete e imediatamente convoquei uma nova assembléia. Os deuses compreenderam a gravidade da situação e exigiram uma atitude enérgica. Afinal, todos se sentiam atingidos. Ser desrespeitado por mortais, que acabavam de ser criados e já se julgavam mais importantes do que os deuses, foi um insulto sem precedentes. Meus pares exigiam que eu aplicasse uma punição severa: “Veja como os mortais estão cada vez mais seguros e confiantes! Compreenderam que tudo o que conseguem alcançar é devido ao seu próprio valor e empenho. Não precisam de nós para nada. Dominam a natureza, constroem sozinhos suas cidades e impérios, acumulam riquezas.” Tive que gritar para ser ouvido: “Eu sou a lei! Como deus supremo, responsável pela perfeita ordem do mundo, não permitirei que os filhos de Prometeu nos desafiem.” Eu sabia que o castigo deveria ser exemplar e definitivo. Primeiro, castiguei os homens retirando-lhes o fogo, a chama da inteligência, elemento indispensável à evolução e ao progresso. Fiz com que perdessem a capacidade de se aquecer nas noites de frio e, sem a chama da para assar os alimentos, eles voltaram a ingerir alimentos crus. Imediatamente Prometeu percebeu que, com isso, suas criaturas estavam ameaçadas a desaparecer. E, ousadia das ousadias: devolveu aos homens o fogo divino! Escolheu um galho de funcho, de fácil combustão por ser seco por celeste, e o entregou aos homens. Vimos quando as fogueiras novamente iluminaram a noite e sentimos a fumaça das carnes sobre os braseiros se espalharem no ar. Prometeu mais uma vez me desafiou e, portanto, selou definitivamente a sua sorte. Havia chegado o momento de tomar uma atitude forte e radical dos mortais os cereais, a cevada e o trigo. Se eles quisessem se alimentar, que mergulhassem suas mãos na terra, que lançassem as sementes no solo, que trabalhassem de sol a sol, sem descanso. Mas o castigo ainda não era suficiente para conter o atrevimento dos homens. Era preciso fazer com que os filhos de Prometeu voltassem a ser dóceis e obedientes. Não me ocorria nenhuma nova idéia, nenhuma solução. Quanto mais o tempo passava, mais aumentava meu temor de perder o domínio da situação. Certa tarde, a caminho do meu palácio, senti um perfume familiar. Olhei em volta e encontrei frente a frente com Afrodite. Seus cabelos brilhavam contra o sol, formando uma
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moldura dourada para o seu belo rosto. Mais uma vez admirei seu corpo esguio e bem torneado, seu sorriso irresistível. Ela parecia estar com pressa, de modo que apenas meu cumprimentou com um alegre aceno. Naquela mesma noite tive um sonho, uma grande revelação. Graças à inspiração que me veio de Afrodite, a deusa da beleza, ao acordar já sabia o que fazer. Chamei Hefesto e pedilhe que usasse toda a sua reconhecida habilidade de artesão para moldar uma figura ideal, que se assemelha-se o máximo possível à mais bela das deusas. Sugeri que usasse a mesma argila de que Prometeu se valeu para fazer suas criaturas. Contudo, deveria ter algo diferente, algo que provocasse neles o mesmo impacto que a aparição de Afrodite tinha me causado no dia anterior. Para ser bem claro sobre minhas intenções, expliquei: “Quero a mais bela e sedutora dos mortais.Que os homens sejam tomados por um insuportável tomento ao vê-la e que seus sentidos fiquem alterados de tal forma, que eles não consigam pensar nem desejar outra coisa. Quero que seja uma criatura capaz de despertar o amor e o ódio com igual intensidade. E que seu aparecimento provoque conflitos e discórdias entre os mortais.” Têmis sorriu, satisfeita. Mais um passo havia sido dado em direção à Guerra de Tróia.
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Hefesto se isolou em sua oficina e, durante um tempo, que nos parecei excessivamente longo, não tivemos notícias dele. Até que finalmente ele nos trouxe a sua obra mais deslumbrante. “O divino artesão conseguiu se superar!”, exclamamos, maravilhados. Não passada ainda de uma estátua, um simples protótipo de mulher, porque até então só existiam homens sobre a Terra. Para fazer com que recém-criada se tornasse ainda mais irresistível, cada imortal lhe ofereceu um presente. Afrodite brindou-a com a beleza e lhe ensinou a arte da sedução. A seguir, Atena vestiu-a com uma linda túnica de fios dourados, enfeitou sua cabeça com uma coroa de flores e concedeu-lhe o divino dom da tecelagem. Hermes insuflou seu coração de falsidade, simulação e astúcia. Mas faltava, ainda, uma importante dádiva: a fala. Assim, Hermes não apenas lhe ofereceu o dom da palavra, como também lhe deu o nome de Pandora, para que ela fosse eternamente lembrada como um “presente de todos os deuses” para os homens. A etapa seguinte foi entregá-la a Epimeteu. Hefesto perguntou, surpreso: “Por que não a Prometeu?” Tive que lhe esclarecer: “Preste atenção ao nome. Prometeu, aquele que prevê, é aquele que compreende antes. Epimeteu, aquele que compreende depois.” Hefesto sorriu e exclamou: “Bem pensado!” A essa altura, Prometeu já havia percebido o que estava para acontecer e correu para
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Com Pandora, a primeira mlher, começa a desgraça dos homens
avisar o irmão: “Em hipótese alguma receba qualquer presente enviada pelos deuses. Se isso acontecer, evite olhá-lo e devolva-o imediatamente.” Epimeteu jurou obedecer às recomendações de Prometeu. De nossa parte, só faltava decidir a ocasião apropriada para o encontro de Epimeteu e Pandora. Escolhemos uma noite toda especial, em que Selene, a Lua, pairava no céu, em seu total esplendor. Noite já ia alta no céu quando Epimeteu ouviu suaves batidas na porta. Distraído, atendeu ao chamado. Foi um susto, um choque, uma paixão instantânea. Ele nunca havia visto criatura tão bela e sedutora. Seus pensamentos se embaralhavam, sentiu-se aturdido, extasiado. Não sabia se era a beleza do céu e dês estrelas, o encanto provocado pelo visitante, seu perfume inebriante ou a promessa de felicidade que ele viu no intenso brilho de seu olhar. O fato é que Epimeteu imediatamente se esqueceu da promessa feita ao irmão. Na verdade, ele perdeu totalmente sentido do que estava fazendo. E foi assim que aconteceu a primeira união entra um homem e uma mulher. A partir daí, os homens deixaram de surgir por geração espontânea e passaram a ser gerados no vente das fêmeas. Na claridade do dia seguinte, ela pareceu ainda mais fascinante. Epimeteu experimentou uma sensação nova, revigorante, que encheu seu coração de alegria. O que ele não suspeitava era que o pior ainda estava por vir. Pandora aguardou a ocasião oportuna para sussurrar com voz doce aquilo que, para um ouvido apaixonada, era a mais pura música celestial: “Trouxe para você. Presente de Casamento.” E Pandora estendeu-lhe a linda caixa que havia trazido do Olimpo. Nem por um instante Epimeteu se lembrou da recomendação de não receber nada enviado pelos deuses. Estava tão deslumbrado, que desfez o laço do presente sem conseguir tirar os olhos da jovem. Murmurando palavras de agradecimento, permitiu que Pandora, levada pela curiosidade feminina levantasse a tampa da caixa. Do alto do Olimpo, os deuses reunidos prenderam a respiração, atentos para o momento mais aguardado. Enfim, livres da prisão em que estavam encerradas, voaram pelo mundo as mais variadas formas de calamidades e infortúnios que passaram a afligir a humanidade: doença, sofrimento, dor, desgosto, tristeza, raiva, vingança, ciúme, inveja, cansaço, medo. O merecido castigo que impomos aos mortais foi perfeito. Até hoje, as invisíveis desgraças chegam sem se fazer notar. E como elas são instáveis! São inquietas, parecem estar em todos os lugares ao mesmo tempo. “Os homens não vão agüentar!”, protestou Deméter, com toda a razão. Ordenei, então, que a raça humana não sucumbisse totalmente. Não porgenerosidade, ao contrário: eu queria que a punição divina fosse completa.Simplesmente permiti que a Esperança se misturasse a todos os males. Aconteceu exatamente como eu previa: só ela se manteve presa à beirada da caixa para dar aos mortais a vã ilusão de que algum dia eles alcançariam a salvação. Enfim, podíamos nos sentir aliviados. Os homens que se julgavam tão poderosos como os deuses, convencidos de sua força e inteligência foram transformados em frágeis criaturas, que sucumbem facilmente à violência e à corrupção.
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Faltava castigar Prometeu pelo atrevimento de ter criado uma raça com a intenção de desafiar os imortais. “Mais uma vez convoquei Hefesto: “Acorrente Prometeu no alto no Cáucaso”, ordenei. “Depois solte minha águia para que ela possa se alimentar de seu fígado.” E assim foi feito. Durante o dia, a águia vinha bicar incessantemente o fígado do prisioneiro, enquanto ele se contorcia em terrível sofrimento. À noite, o órgão se regenerava e, no dia seguinte, a tortura recomeçava. Tentei acalmar os ânimos dos olímpicos e garanti que ele ficaria acorrentado ali por toda a eternidade. “Que garantia você pode nos dar de que isso irá mesmo acontecer?”, perguntou Ares. “Fiz um juramento diante do rio Estige”, respondi. “E daí?” “ Quando lutamos contra os Gigantes, Estige e todos os seus filhos se colocaram do nosso lado e contribuíram para a vitória. Como sinal de agradecimento, eu determinei que, a partir de então, todos os juramentos feitos sobre suas águas não poderiam ser quebrados, sob pena de o infrator receber uma pesada punição. ” A partir daquele dia, quem quebrasse o juramento receberia a pena de permanecer durante nove anos sem se alimentar de néctar e ambrosia e seriam impedidos de freqüentar nossos festins e assembléias. Por um longo tempo, Prometeu sofre o suplício das dores dilacerantes, mas em nenhum momento me propôs um acordo ou se mostrou arrependido por ter se colocado contra os olímpicos. Muito pelo contrário, continuava me desfiando com ironia: “Conheço um segredo a seu respeito, que vai lhe interessar muito”, repetia. “Mas só lhe conto se me soltar das correntes.” Eu me mostrava totalmente indiferente, mas, no fundo, era imensa a minha curiosidade. Afinal, que segredo seria aquele? Um dia, ouvi Prometeu murmurar: “O azar é seu. Pouco me importo. Não é meu reino que está em perigo.” Depois de séculos enchendo meus ouvidos com a mesma história, Prometeu finalmente pronunciou as palavras mágicas, as que sempre provocavam em mim um arrepio de pavor. O que ele queria dizer com “não é o meu reino que está em perigo?”Se a intenção do mais esperto dos Titãs era me abalar, ele conseguiu. Não pude mais parar de pensar no assunto. Ao mesmo tempo, havia feito um juramento sobre o Estige e não podia voltar atrás. Fui me aconselhar com Têmis sobre o que fazer. E ela sabiamente me disse: “Meu querido, quem faz o juramento é que está proibido de quebrar a promessa. Mas, pense bem, nada o impede alguém em seu lugar para ir ter com Prometeu.” Para Têmis tudo parece sempre tão claro e tão simples. Como é que não havia pensado nisso antes? Aproveitei o fato de Héracles estar a caminho do Jardim das Hespérides, em busca de uma das maçãs de outro para cumprir um de seus Doze Trabalhos. Ordenei que ele se desviasse um pouco de sua rota e passasse pelo Cáucaso, com a missão de libertar Prometeu. E foi o que ele fez. Com habilidade, Héracles lançou sua flecha contra a águia e livrou o Titã das pesadas correntes que o prendiam. Depois, fui ao encontro de Prometeu para cobrar-lhe a revelação do segredo: “Afinal, o
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que você tem a me dizer?” Ele ainda tentou fazer um suspense, mas eu não estava disposto a ouvir seus gracejos. Fiquei sabendo que, se eu me unisse à nereida Tétis, teria um filho que me destronaria. De fato, por aquela época eu e Poseidon estávamos cortejando a deusa Tétis, a mais bela das ninfas do mar. Felizmente, nós dois fomos avisados a tempo e escapamos de colocar em risco nossa supremacia. Evidente que a última coisa que nós queremos é perder o poder, mesmo que seja para um descendente direto. Tétis ficou furiosa quando fui procurá-la com uma desculpa qualquer para terminar nosso relacionamento. Ela chorou, suplicou, perguntou o que havia feito de errado para não merecer mais o meu amor. Lamúrias nunca me comoveram. Pelo contrário, me irritam profundamente. Ela me segurava com focar, soluçava alto. Eu me desvencilhava de seus braços e respondia com evasivas. Jamais poderia contar-lhe que o problema não era propriamente ela, mas, sim, a ameaçadora profecia do oráculo. A mensagem havia sido clara, claríssima. Dizia, sem meias palavras: “Se o deus supremo do Céu fecundar a ninfa das águas, ele perderá seu trono.” Só de me lembrar da profecia me dá calafrios. De certa forma, foi até um alívio terminar minha relação com Tétis, porque ela já estava assumindo certos ares de rainha, com planos de tomar o lugar de Hera.
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Certamente o que eu menos precisava naquele momento era me envolver em mais uma confusão. Novamente fui obrigado a pensar rápido e, assim, resolvi me encontrar diretamente com Poseidon nas profundezes do mar Egeu. Eu me deparei com ele prestes a subir em sua carruagem, como faz todos os dias, para percorrer seus vastos territórios. Minhas visitas a Poseidon são tão raras, que , quando ele me avistou, imediatamente percebeu que se tratava de algo grave. Dispensou os cavalos e me convidou a entrar em seu palácio. Eu lhe expus toda a situação, expliquei-lhe o risco que estávamos correndo e, diante de argumentos tão convincentes, concordou que o melhor seria providenciar imediatamente um casamento para Tétis e, assim, afastar de vez o perigo. Aproveito a inusitada presença de Tétis em nossa celebração, chamo-a para perto de mim e justifico: – Sei o quanto você sofreu quando eu a rejeitei. Na época eu não tinha autorização para contar-lhe a razão e hoje já posso fazê-lo. Eu e Poseidon fomos alertados pelo oráculo sobre o perigo que estávamos correndo, caso um de nós se unisse a você. E, simplesmente, tivemos que tomar providências urgentes. Com um sorriso irônico, Tétis rebate: – Ah, então foi isso que aconteceu. Vocês chamam de providências urgentes a
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A perigosa disputa pelo amor de Tétis
escolha de Peleu, rei da Ftia, para ser meu marido. Quanta generosidade! – Precisávamos colocar em nosso lugar um substituto à altura. E Peleu, diga-se de passagem, era um ótimo partido. Sequer cogitamos na possibilidade de você se recusar a colaborar com o nosso plano. Para nossa surpresa você não se interessou pelo pretendente. – E por que vocês acham que têm a competência de escolher com que eu deveria me casar? – pergunta Tétis. – Eu já havia experimentado antes a emoção de ser tocada por Eros. Por infelicidade, apaixonei-me e fui abandonada. Apesar da enorme decepção, continuei a ter sonhos como qualquer jovem. Nunca desisti de amar e ser amada. – Os planos já estavam traçados e certamente não iam ser seus anseios juvenis que nos fariam mudar de idéia. Como se não bastassem as minhas apreensões, você ainda me veio com aquele seu irritante sentimentalismo. Lembro que não foi nada fácil dobrá-la. Não conseguimos convencê-la a se casar com um mortal e, para fugir de Peleu, ela apelou para todos os recursos que conhecia. Escapou o quanto pôde das investidas do pretendente. Cada vez que Peleu se aproximava, estendo-lhe os braços com ardor, ela escapava do assédio assumindo as mais diversas formas. Para afastá-lo, tomou a forma de feras e monstros. Mas ele não desistiu. Então Tétis se transformou em fogo, depois em vento, árvore, peixe, leão, serpente... As divindades marinhas são como a água que escorre entre os dedos, ninguém consegue retê-las. – Mesmo passando tanto tempo, a simples menção do fato ainda me faz sofrer. – lamenta Tétis. – Não fosse Peleu um homem maduro e vivido – continuo – há muito tempo já teria desistido deste casamento, por mais que eu lhe garantisse que era apenas uma questão de tempo. Sorte nossa que o entusiasmo dele por você lhe deu a paciência necessária para aguardar a ocasião oportuna. – A transformação é um artifício muito cansativo. Queria logo parar com tudo aquilo, exigir que ele desistisse de mim. Estava exausta, sem forças. E me deixei aprisionar. Orientado pelo centauro Quíron, Peleu segurou Tétis com firmeza em seus braços e a imobilizou. Sem ter mais como fugir, ela se deu por vencida e finalmente concordou em sem casar com ele. – Nós escolhemos o alto do monte Pélion para a belíssima festa de núpcias – diz Hera, com fingida gentileza. – Todos os deuses desceram do Olimpo e eu mesma fiz questão de que fosse uma celebração inesquecível. Sem dúvida foi, mas por motivos bem diferentes do que eu imaginava. Ordenei que Hera supervisionasse todos os pormenores do banquete e ela me obedeceu sem reclamar, aliviada por se livrar de uma rival. Enquanto a lista dos convidados não parava de crescer, Hera caminhou pelos jardins, fazendo as contas de quantas mesas e cadeiras seriam necessárias e providenciava cada detalhe para que nada faltasse na hora da festa. As bodas transcorreram em clima de confraternização, com danças, cantos e muita
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alegria. Foi um sucesso. Generosos, os deuses ofereceram aos noivos belíssimos presentes. Hefesto, por exemplo, ofereceu-lhes uma lança de carvalho e uma armadura, ambas confeccionadas por ele. Poseidon trouxe dois cavalos imortais, Balio e Xanto, tão rápidos como o vento e que, ao invés de relinchar, comunicava-se na linguagem humana. – Nunca me adaptei a esta união forçada a que vocês me obrigaram – reclama Tétis. – Eu nunca amei Peleu. Somos feitos de substâncias diferentes.
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Hera sabia do meu interesse pela bela filha de Nereu e também de sua recusa em se casar com o rei Peleu. Tétis bem que pensou em ir procurá-la para pedir conselhos. Felizmente teve o bom senso de desistir. O que elas evidentemente não sabiam é que o casamento fazia parte dos planos de Têmis para propiciar o nascimento de Aquiles, o maior dentre os heróis gregos em Tróia. Apesar da indiferença de Tétis pelo marido, o casal teve sete filhos. Os primeiros seis morreram nas mãos da própria mãe, por causa da sua ânsia em imortalizá-los, inconformada pelo fato de Peleu, por ser mortal, só gerar filhos mortais. Na tentativa de purificar as crianças da natureza humana herdada do pai, Tètis usou as técnicas de que dispunha. Passou ambrosia sobre seus corpos e depois os tostou sobre o fogo. Para sua enorme tristeza, eles não resistiram e acabaram morrendo. Quando nasceu Aquiles, o sétimo filho, ela tentou algo diferente. Foi até o rio Estige, que tem a característica de tornar invulnerável quem nele se banha, segurou o pequeno pelos pés e mergulhou-o nas águas. Preocupado com o risco de não deixar sucessor e, desgostoso por ter perdido todos os seus descendentes até então, Peleu decidiu tomar uma atitude contra aquela obsessão de sua esposa. De longe, viu quando Tétis afundou o menino no rio e o manteve por alguns momentos suspenso pelos pés. Apavorado com a possibilidade de ter que enterrar
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mais um filho, ele o arrancou violentamente das mãos da mãe. Inconformada com a tarefa inacabada, Tétis simplesmente abandonou o menino: “Não quero nada que me lembre a humilhação pela qual me forçaram a passar com um casamento sem afeto e a decepção de só ter gerado filhos mortais.” Peleu nunca aceitou a loucura da esposa. Mortal ou não, ele não havia se casado para deixar seu trono sem herdeiros. E, antes que o único filho que lhe restava tivesse o mesmo destino dos demais, ele o entregou ao centauro Quíron para que o educasse. Criado nas encostas verdejantes da montanha, Aquiles cresceu belo e vigoroso. Não fosse o plano de Tétis e a concordância das Senhoras do Destino, tenho certeza de que ele continuaria a viver calma e despreocupadamente até o fim de seus dias. – Enganam-se os que tiram conclusões precipitada e me enxergam somente como uma assassina de meus filhos – diz Tétis. – Eu sofri no meu próprio corpo a dordas chamas que faziam meus filhos gritarem de dor. Foi por amor que tentei eliminar pelo fogo o medíocre e sofrido invólucro humano. Falhei, admito. Mas faria tudo novamente se fosse preciso. – A imortalidade não nos garante a ausência de sofrimento – sentencia Apolo. – Eu fiquei inconformada com a impossibilidade de terminar a minha tarefa. Não fosse a atitude precipitada de Peleu, que arrancou Aquiles dos meus braços quando faltavam apenas os calcanhares para torná-lo imortal, estou certa de que daquela vez eu conseguiria imortalizar o nosso filho. Diante da situação, preferi abandoná-lo. – Abandonou o próprio filho... – censura Deméter. – Não queria nada que me lembrasse a humilhação pela qual me forçaram a passar com um casamento sem afeto e a decepção de só ter gerado filhos mortais. – Não existe justificativa para a mãe que abandona o próprio filho... – insiste Deméter. – Saibam que não me esqueci do meu filho um instante sequer. Estava sempre perto dele sem ser vista e jamais me neguei a ajudá-lo ou a protegê-lo. Tanto que, quando eu ouvi do adivinho Calcas a profecia de que os gregos só alcançariam a vitória contra os troianos com ajuda de Aquiles, tive um terrível pressentimento. Preferiria mil vezes não ter conhecimento algum sobre o futuro e teria feito o que estivesse ao meu alcance para enganar o Destino. Quando compreendi que, apesar de ser uma deusa, não tinha o poder de salvá-lo, decidi ir ao encontro do centauro Quíron para exigir o meu filho de volta. Tétis aponta com o dedo o próprio peito. – Apenas uma mãe desesperada diante do perigo eminente de perder um filho poderia pensar num artifício aparentemente tão absurdo. Foi minha idéia de enviálo à corte de Licomedes, na Ilha de Ciros, para que ele vivesse um tempo disfarçado como uma moça, em meio às filhas do rei. Lá ele era chamado de Pirra, a ruiva, em alusão à sua vasta cabeleira de cor acobreada que ele havia herdado do pai. – Disfarçado de moça! Ora, ora, quem diria... – zomba Ares.
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– Naquela época, Aquiles era um rapazola de traços perfeitos, rosto liso, livre dos pelos que logo começariam a aflorar. Ao ver meu filho vestido de roupas femininas e delicadas, longe da vida rústica que levava, fiquei confiante de que seria impossível descobri-lo. A principio, Aquiles se sentiu um tanto desconfortável por participar de brincadeiras femininas às quais não estava acostumado. Em meio às meninas, sufocava sua verdadeira natureza, cantava e dançava ao som de músicas suaves, como um igual. Enquanto isso, os gregos, que não conseguiram derrubar os muros de Tróia, já se impacientavam com a demora. Começavam a duvidar da profecia de Calcas de que conseguiram derrotar os troianos. – Ai de nós, deuses, que nada podemos contra o Destino cego e irrevogável –suspira Atena.– Exatamente – concorda Tétis. – Os gregos foram avisados da presença de Aquiles na corte de Licomedes e logo partiram em sua busca. Porém, quando lá chegaram, encontraram apenas as belas e delicadas filhas do rei. Vasculharem todo o palácio, percorreram a ilha de ponta a ponta... e nem sinal de Aquiles. Saíram de lá de mãos vazias. Respirei aliviada. Lamentavelmente minha tranqüilidade durou pouco. Ulisses foi o único a não se dar por vencido e preparou-lhe uma cilada. – Por sinal, uma brilhante cilada. A esperteza mais uma vez vence a sabedoria – comenta Hermes. – Ulisses conseguiu permissão de entrar no palácio disfarçado de mercador, desses que viajam por toda a parte vendendo suas quinquilharias. Assim que o viram, cinqüenta e nove das sessenta meninas da corte correram curiosas para ver as jóias, fitas de cetim e tecidos bordados que ele trazia. Apenas uma das jovens se manteve distante, sem demonstrar o menor interesse pelas mercadorias. Ulisses trazia também uma bela arma e a colocou num lugar bem visível. Imediatamente os olhos de Aquiles brilharam de satisfação e, fascinado, tomou a arma nas mãos, examinando-a com cuidado. – Finalmente uma atitude viril! – exclama Ares. – Nesse momento foram ouvidos gritos de guerra, cada vez mais próximos do recinto onde estavam. As meninas correram assustadas, para se refugiarem em um lugar seguro. Na contramão da correria e do alvoroço, sobrou Aquiles, que se colocou em posição de luta, disposto a enfrentar sozinho o perigo, empunhando corajosamente a arma e um escudo. Desmascarado, não teve como negar sua verdadeira identidade. Não pude fazer mais nada para impedir que Aquiles fosse enviado ao campo de batalha. O rosto de Tétis se contorce de uma amargura jamais curada. – Mesmo assim, tentei como último recurso preveni-lo do perigo eminente: “Lembre-se, meu filho: se você for para Tróia terá uma existência breve, mas seu nome ficará para sempre impresso na memória de deuses e mortais. Se, ao contrário, você escolher ficar, poderá desfrutar de uma vida longa, sossegada, sem grandes desafios.
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E, quando a Morte vier buscá-lo, você será levado para o Hades como qualquer humano, um morto anônimo, sem glória. Como se jamais tivesse existido.’’ Ninguém aqui desconhece a história do herói Aquiles, no entanto, todos se mostraram profundamente tocados pela narrativa. Evidentemente, não é a piedade que nos vê, longe disso. A recusa de Aquiles de se tornar um morto anônimo é que nos perturba. – Para minha tristeza, Aquiles preferiu deixar a segurança para trás, abandonar tudo e assumir os riscos, ainda que fosse para morrer jovem. Escolheu a fama e a imortalidade. Antes de me retirar, ainda tive tempo de avisá-lo: “Em hipótese alguma seja o primeiro a colocar os pés em solo troiano. Não permita que a morte o leve antes de qualquer soldado.” Tétis enxuga com a ponta do manto uma gota de suor que escorre em sua fronte. – Vi o momento em que Tânatos chegou para levá-lo para o Reino das Trevas. Pedi-lhe que esperasse um pouco para que eu pudesse me despedir de meu filho, mas a única coisa que consegui foi assistir ao trágico instante em que Páris, o príncipe troiano, fez pontaria e tirou a vida de Aquiles com uma flechada certeira no calcanhar. Logo no calcanhar, o único lugar de seu corpo que eu não havia conseguido banhar no rio Estige! Não fui capaz de fazê-lo imortal, tampouco devolver-lhe a vida. Meu único consolo é pensar que, apesar de não tê-lo eternamente ao meu lado como eu pretendia, ao menos tenho certeza de que seu nome e seus feitos jamais serão esquecidos. Tétis baixou a cabeça e, lentamente, se encaminha de volta a seu lugar. Acompanhamos com o olhar seus passos e, movidos pelo mesmo sentimento de solidariedade, todos começam a falar ao mesmo tempo.
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Hermes começa a dar sinais de impaciência. Não consegue ficar sentado, gira no ar de um lado ao outro, derruba a taça de néctar sobre o manto de Atena que, enfurecida, ameaça-o com sua lança. Ártemis tem pressa de voltar para a floresta, lugar onde se sente livre. Hefesto resmunga palavras inaudíveis. Olho para Têmis que, imediatamente, adivinha meus pensamentos. Inclina-se na minha direção e segreda: – Proponha uma pausa. Falaremos a sós sobre a Guerra de Tróia. Levanto-me do trono e ergo a mão direita. Ao meu gesto todos se calam Hermes retoma o se lugar e todos os olhares se voltam na minha direção. – Vamos interromper a nossa reunião por alguns instantes. Logo estaremos de volta, por que ainda temos muito para falar. Aguardem meu sinal. Desço as escada e ofereço o braço a Têmis. Hera fita-me de longe e sacode negativamente a cabeça. Levanto a sobrancelha, em sinal de desagrado e ela se afasta. Caminhamos pela alameda florida e nos acomodamos no mesmo banco onde me sento todas as vezes que preciso de calma para refletir. O relato da Guerra de Tróia me traz à lembrança minha paixão por Leda. – Antes de encerrarmos o assunto sobre a Guerra de Tróia, quero falar um pouco mais sobre Helena. Muitos se perguntam se ela realmente existiu ou foi apenas
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Da breve paixão por Leda, nasce Helena
delírio de um poeta cedo. Têmis encolhe os ombros, enigmática, e não faz nenhum comentário. – Quando os poetas começaram a cantar que eu era o pai de Helena, não me preocupei em confirmar ou negar tal fato. Para chamar a atenção dos ouvintes, eles criam suas próprias versões e depois se atrapalham na confusão que eles mesmos provocam. – Os poetas são muito criativos. É essa a sua função... – diz Têmis. – Aliás, se você faz tanta questão de falar sobre Helena, que tal começarmos por Leda? – Leda, claro, por que não? – digo. – Na época eu tive que agüentar a fúria de Hera, que, por sinal, ficou indignada quando ouviu alguns poetas dizerem que eu me senti atraído por Leda, justamente no dia de seu casamento com Tíndaro, rei de Esparta. Eles descreveram a cena com tamanha riqueza de pormenores, que até parecia que tinham assistido pessoalmente a tudo. Certo dia, contaram eles, eu estava no alto do Olimpo, o olhar perdido na Terra, quando de repente meus olhos pousaram numa bela jovem. – Admita, eles estavam bem perto da verdade! – caçoa Têmis. – Não, esta é apenas parte da verdade. Da fato, na noite em que meus olhos pousaram em Leda, ela se banhava num lago cheio de cisnes. Eu andava pelos jardins do palácio, insone. Havia sido com minha esposa uma daquelas discussões irritantes, motivada, como sempre, por ciúmes. Na tentativa de me distrair, voltei meu olhar para a Terra. É uma estratégia que ainda costuma surtir efeito: em pouco tempo consigo atrair sono para minhas pálpebras. Como todos os deuses sabem, a vida dos mortais é demasiado monótona. Pego um galho seco e risco o chão, compenetrado. – Que ninguém mais nos ouça: Leda realmente me encantou, o que não significa absolutamente que eu estivesse apaixonado por ela. Você sabe que amor e paixão são para nós simples forçar de expressão. Os mortais têm mania de projetar em nós sentimentos que não nos pertencem. Não compreendem que os deuses não precisam se completar no outro: já vivem na plenitude. Eles, sim, por pura carência, estão condenados ao amor. Já comigo, as coisa são diferentes. Desejo, atração, fascínio, arrebatamento: por tais sensações sou capaz de mover o mundo. Têmis sorri e murmura. – Eu sei... Você vive repetindo... – Não existe nada que eu odeio mais do que não realizar meus impulsos. O desejo é o motor que me impede à vida. E foi justamente a urgência do meu desejo por Leda que mobilizou todos os meus sentidos naquela noite que, por sinal, não poderia ser mais propícia. Selene percorria o Céu deixando atrás de si um rastro luminoso, fato que me dava uma nítida visão do objeto de minha cobiça. – Meu plano foi estudado minuciosamente e incluía detalhes que foram se desdobrando aos poucos. Mesmo sem você saber, precisei de sua ajuda. Assim como
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precisei de Tétis para dar nascimento a Aquiles, precisei de sua ajuda para que Helena pudesse nascer. Fiquei feliz quando você escolheu Leda, só não podia saber de antemão os artifícios que você iria usar para se aproximar de uma noiva em sua noite te núpcias. – Minha tática foi simples. Transformei-me em um belo cisne e, com isso, foi fácil chegar perto da jovem, sem ser rejeitado. Como eu já previa o rumo dos acontecimentos, ordenei que Noite alongasse sua trajetória e que o carro do Sol esperasse um pouco mais, antes de se lançar ao Céu. – Claro, um cisne... Muito criativo. – Leda admirou minha plumagem e, tal como eu previa, deixou que eu me aproximasse e encostasse meu pescoço em seu rosto. Era uma jovem ingênua e não desconfiou de nada. “Que bela ave!”, exclamou. Colocou-me no colo e me acariciou. Correspondi a cada um de seus doces afagos e, por baixos das penas, senti um inequívoco arrepio de prazer. E, assim, disfarçado, pude finalmente realizar nossa união. Naquela mesma noite, Leda se deitou com Tíndaro, seu marido. Meses depois, saíram de seu ventre dois ovos, frutos da dupla união. De um dos ovos nasceram Castor e Helena e do outro, Pólux e Clitemnestra. Helena e Pólux eram meus filhos, enquanto que Castor e Clitemnestra foram gerados por Tíndaro. – Esqueci completamente do episódio. Só muito tempo depois, vieram me contar que Helena havia se tornado uma jovem de grande beleza, dessas que atraíam todos os olhares e não deixavam ninguém indiferente. – A beleza foi um detalhe importantíssimo para a realização de meus planos... – Soube que jovens príncipes chegavam a Esparta, vindos de todos os lugares para pedir a sua mão ao rei. Tíndaro não sabia o que fazer com tantos pretendentes que vinham bater à sua porta. Helena se sentia pressionada e não se resolvia por nenhum deles. A cada dia a confusão aumentava. Então Odisseu, o rei de Ítaca, aconselhou o rei a deixar Helena fazer sua escolha sozinha. Todos deveriam aceitar o eleito e, em troca, deveriam fazer um juramento de que, em caso de perigo ou ameaça, estariam obrigados a se unir para socorrer uns aos outros. Tíndaro acatou a idéia e Helena escolheu Menelau, que assumiu trono de Esparta. Sem dúvida, por trás da história de Helena e Menelau havia um jogo bem armado por Têmis. Para meu deleite as peças se encaixavam, uma a uma, com perfeição.
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– O segundo passo do plano, que eu arquitetei, foi o casamento da deusa Tétis com o mortal Peleu. – Devo admitir que foi um golpe de mestre deixar fora da lista de convidados justamente Éris, a deusa Discórdia. – Sabíamos perfeitamente que tal esquecimento a deixaria furiosa e provocaria nela um incontrolável desejo de vingança. Lembro que você me fez um sinal com a mão quando a viu entrar no salão principal, a se esgueirar pelos cantos para não ser notada... – ... quando Éris deixou sobre a mesa do banquete nupcial aquela maçã de ouro, acompanhada por uma inscrição. Nós nos aproximamos e li em voz alta o que ali estava escrito: “Para a mais bela”. Se a intenção de Éris era causar desavença, ela acertou em cheio. Logo outros convidados se aproximaram e, curiosos, deram início a um enorme alvoroço. – Admita, até você ficou surpreso com a minha estratégia. Foi precisamente o pomo da discórdia trazido por Éris que acelerou todo o desdobramento do meu plano, já que atraiu a cobiça das deusas. Imediatamente se apresentaram as que se julgavam digna de tamanha honraria. Afrodite, a própria representação da Beleza, foi obviamente a primeira a se apresentar: “Afastem-se todos daí!”, disse ela. “Ninguém
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Em Tróia, concretiza-se o plano de Têmis
se atreva a toca a maçã, ela me pertence. Alguém a deixou especialmente para mim. Leiam a inscrição, está bem clara.” – Foi uma cena bem engraçada. Claro que tudo estaria perfeitamente resolvido se as outras deusas aceitassem o fato sem contestar. Decididamente faz parte da natureza feminina criar caso. A primeira a reagir foi Hera, que avançou em direção à maçã. Transtornada de raiva, também exigiu o direito para si: “Saiam da frente! Eu sou a esposa de Zeus! Ordeno ser respeitada.” Ainda bem que Hera não está aqui agora para presenciar meu riso de sarcasmo! Meu gracejo contagia Têmis e nos divertimos com a situação. – Não me surpreendi com a atitude de Afrodite, nem com a de Hera. A grande surpresa com a atitude foi minha filha Atena, que nunca se mostrou vaidosa, de repente também se considerar merecedora do título! Pronto: em questão de instantes formouse um tumulto de proporções extraordinárias. Faltou bem pouco para as três deusas se lançarem umas contra as outras, numa briga que certamente seria difícil de acalmar. – Elas deveriam ter se visto com os rostos vermelhos retorcidos de raiva, os olhos saltados, os cabelos em desalinho! – diz Têmis, às gargalhadas. – Você foi testemunha de que, apesar de divertida, tudo o que eu queria era ficar fora da briga. Mas não consegui. Antes que a situação ficasse incontrolável, fui chamado para julgar a questão. É claro que não aceitei. Provocar um conflito com minha própria esposa? Nem pensar... Resolvi, então, pedir a sua ajuda, que mais uma vez mexeu as peças e fez uma jogada magistral: “Peça a Páris”, você me disse. Lembra? Têmis não responde e apenas sorri, satisfeita com a lembrança. – Puxei-a para um canto e lhe perguntei, ansioso: “Páris? Quem é esse tal de Páris?” No fundo, eu achei excelente a idéia de empurrar a responsabilidade para algum mortal. – Páris era o mais jovem dos quatorze filhos de Príamo, rei de Tróia, e de sua esposa Hécuba. Quando a rainha estava no final da gravidez, teve um sonho que a deixou muito pertubada: ela se viu dando à luz uma tocha incendiária de onde saíam serpentes sibilantes, enquanto que Tróia era consumida em chamas. Viu homens e mulheres correndo em todas as direções, corpos feridos e chamuscados, caídos pelo chão. Confusa, contou o sonho para seu esposo, que também não conseguiu decifrar o seu significado. – Sem dúvida, um sonho aterrorizante – observo. Príamo ficou realmente assustado. Tanto, que foi consultar um hábil intérprete de sonhos, que lhe disse: “O filho que Hécuba traz no vente vai ser a ruína de Tróia. Para salvar o seu reino de ser destruído pelo fogo e para que não se percam preciosas vidas, é preciso eliminar a criança logo que nascer.” Príamo não teve coragem de contar nada a Hécuba e esperou até ser comunicada do nascimento do filho. Quando vieram lhe avisar que era um varão, teve um breve momento de
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dúvida. Olhou para o rosto do inocente e só então revelou o cruel segredo que havia carregado sozinho por tanto tempo: “Eis a tocha incendiária de seu sonho, Hécuba, a destruição de Tróia.” – As história sempre se repetem. – penso em voz alta. – É incrível como o cenário muda, os personagens são outros, mas o medo de ser destronado atravessa os tempos, intacto. Têmis faz que sim com a cabeça voltamos a mergulhar em nossas lembranças, interrompidas vez por outra por um comentário, um suspiro, um sorriso. Hécuba não conseguiu compreender o sentindo daquelas palavras. Trêula e enfraquecida, ainda tentou proteger o filho. Por puro instinto, ela embrulhou a criança em uma manta e correu em direção à floresta. Príamo foi mais rápido: conseguiu arrebatar o menino das suas mãos e o entregou a uma criada. Ao chegar ao Monte Ida, a criada o deixou-o com um pastor, dizendo que tinha ordens do rei para que fosse abandonado à própria sorte, até morrer de fome, sede ou frio. O pastor obedeceu sem contestar. Cinco dias depois, ele voltou ao mesmo lugar e ficou surpreso ao encontrar uma ursa amamentando o menino. Pensou que era um aviso dos deuses para que ele fosse poupado e resolveu, então, tomá-lo aos seus cuidados. As peças começavam a se ajustar com precisão e os acontecimentos seguiam o rumo previamente planejado por Têmis. – Longe dos humanos, à mercê das feras selvagens... – murmura Tétis. Ao contrário da expectativa de Príamo, o menino não morreu. Ele transpôs as portas da morte e tronou-se um sobrevivente, uma pessoa especial. Páris recebeu o nome de Alexandre e cresceu em meio aos pastores, sem saber quem eram seus verdadeiros pais. Ele havia se tornado um rapaz forte, belo e corajoso. Várias vezes eu o observei enquanto subia e descia as montanhas, seguido por um rebanho que obedecia docilmente ao seu comando. Certo dia, Príamo mandou seus escravos escalarem o Monte Ida para escolher o mais belo touro que encontrassem. O rei queria oferecê-lo como prêmio ao vencedor dos Jogos Fúnebres, que mandava realizar todos os anos em memória de Páris, o filho que julgava morto. Grande ironia: o animal escolhido foi justamente o preferido de Páris. Sem ser percebido, o rapaz seguiu de longe os servos do rei, até chegar a Tróia. Lá ficou sabendo sobre os torneios e imediatamente resolveu participar, para ter seu touro de volta. Talvez ele devesse sua notável habilidade atlética ao ar puro das montanhas ou às longas caminhadas que costumava fazer. O fato é que ele era, de longe, o mais bem preparado dos competidores e conseguiu ganhar todas as provas. Seus adversários não os conformaram em perder para aquele que julgavam ser um simples pastor: “Não podemos deixar que nos desmoralizem diante de nossos súditos”, disseram os filhos de Príamo, sem imaginar que estavam diante do próprio irmão. “Vamos persegui-lo e acabar com seu sonho de campeão.” Páris se assustou com a ameaça e foi se refugiar justamente em eu templo. Cassandra, a filha de Príamo que tinha o dom da profecia, viu quando o pastor entrou no santuário e gritou: “Prendam imediatamente este estrangeiro! Tróia vai ser destruída por sua causa!” E
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ordenou à guarda do rei que prendesse o maldito e o eliminasse de vez. Páris foi condenado e foi por um triz que conseguiu escapar da morte. Cassandra o reconheceu como irmão, herdeiro legítimo dos reis de Tróia, e o levou até Príamo, que durante todo esse tempo ainda se culpava por ter abandonado o filho recém-nascido. O rei acolheu em seu palácio, feliz pelo reencontro, ignorando assim o sonho de Hécuba e a terrível profecia. E foi justamente Páris que Têmis escolheu para julgar qual das três deusas era a mais bela, quando ele ainda desconhecia quem eram seus pais e vivia no Monte Ida, lugar inóspito onde os jovens heróis exercitavam as virtudes da coragem e da resistência. Hera, Afrodite e Atena fizeram uma majestosas aparição diante do rapaz. Assustado com o divino esplendor, Páris tentou fugir da enorme responsabilidade. Alegou que ele não passava de um simples pastor e não tinha capacidade para fazer uma escolha tão difícil. Hermes, muito hábil na arte de argumentar, convenceu-o de que se tratava de uma ordem de Zeus – portanto, incontestável. Ele não podia ser mais convincente e Páris obedeceu. Com um olhar temeroso, atreveu-se a contemplar as deusas que estavam à sua frente e sentiu, pela primeira vez na vida, seu corpo forte e corajoso estremecer de medo. – Lembra do pavor de Páris diante das deusas que ele, um simples mortal, foi obrigado a julgar? – pergunto. – Pobre criatura! Quase podíamos ouvir o que estava pensando:“Como posso escolher uma deusa, sem que as outras duas não se vinguem de mim depois?” – Os fatos mostraram que ele estava certo. – As três deusas prometeram acatar a decisão de Páris, fosse qual fosse. Sem que as outras percebessem, Hera sussurrou ao seu ouvido: “Se for eu a escolhida, o império da Ásia será todo seu.” Atena usou a mesma estratégia e lhe garantiu o dom da sabedoria para vencer todas as batalhas. – Páris ficou perdido, sem saber o que dizer das excelentes propostas de Hera e Atena. – Sim, até Afrodite fazer a sua irresistível oferta: “Minha proposta é sedutora e irrecusável. Se você me eleger a mais bela, não vai se arrepender...” – diz Têmis, imitando os trejeitos sensuais de Afrodite. – Ah, a bela Afrodite... Sempre insuperável na arte da sedução! Quem é capaz de resistir aos seus encantos? – Depois de um longo suspiro cheio de insinuações, Afrodite continuou: “Vou lhe dar o amor da mais bela das mortais: Helena. Farei com que ela não resista aos seus encantos e lhe ofereça a suprema felicidade, como esposa e como amante.” Talvez tenha sido o efeito Pandora, que jamais desapareceu da face da Terra. O fato da Terra. O fato é que nenhum homem é capaz de resistir ao poder de atração de uma bela mulher. Está para nascer homens ou deus que o consiga. Eu que o diga. – E foi assim, caro Zeus, que Afrodite ganhou facilmente a competição. Ah, os homens! Tão iguais e tão previsíveis. – exclamou Têmis. Páris foi para Esparta, reino de Menelau, na época marido de Helena. Lá ele foi
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recebido de acordo com as sagradas leis da hospitalidade. O rei o acomodou em um luxuoso aposento e ofereceu-lhe as mais finas iguarias, servidas por escravos eficientes. Ninguém suspeitava qual era a real intenção do jovem troiano, que se comportava com mais um hóspede ilustre. Poucos dias depois, Menelau teve que viajar a Creta para assistir aos funerais de seu padrasto e transferiu à sua esposa Helena e a responsabilidade de fazer as honras da casa para o convidado. Páris tinha o seu favor a beleza, a juventude e, sobretudo, a valiosa ajuda de Afrodite. Durante o dia, os dois passeavam juntos pelos jardins do palácio e nem percebiam o tempo passar. Em pouco tempo, Páris conquistou Helena. E ela, por sua vez, torcia secretamente para que Menelau adiasse o seu retorno. – Afinal, Helena abandonou o palácio de Meneleau e seguiu Páris até Tróia por livre vontade? – perguntou, tentando satisfazer uma antiga curiosidade. – De fato, o grande problema era Menelau chegar de repente de viagem e descobrir a traição dos dois. Tive que agir com rapidez. Fiz com que fugissem às pressas, carregando tesouros e escravas do reino. – Então, Helena realmente se apaixonou por Páris? – insisto. – Sempre imaginei que Helena tivesse sido raptada por ele. Teria sido bem mais interessante. Têmis não responde e parece pouco interessada em revelar os detalhes amorosos. Apesar das alarmantes profecias, o casal chegou a Tróia e foi muito bem recebido por Príamo e toda a sua família. Quando Menelau voltou a Esparta, soube que sua esposa tinha abandonado o palácio. Vai procurar o irmão, Agamêmnon e lhe dá a notícia da traição de Helena. Todos os ex-pretendentes foram convocados para vingar a ofensa. Mas antes de declarar guerra, Menelau, acompanhado de Ulisses, toma o caminho de Tróia, para tomar a esposa de volta. Alguns troianos defendem, em assembléia, a solução pacífica. Mas Páris não aceitou nem devolver Helena nem os tesouros roubados. Diante de tal afronta, a guerra entre Tróia e Esparta se tornou inevitável. – A profecia foi plenamente cumprida: o filho de Hécuba foi ruína de Tróia. – E você alcançou o seu objetivo: a Terra pôde, enfim, se sentir mais leve.
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Ofereço meu braço para Têmis e lentamente tomamos o caminho de volta. Encontramo-nos com Hermes e peço para ele avise que estou pronto para recomeçar a reunião. Subo os degraus que me levam ao trono. Hera está com a fisionomia séria e me aguardo, no lugar que lhe cabe. Tomo a palavra e, sem perda de tempo, digo: – Peço que Mnemósine ilumine a mente de Têmis, minha segunda esposa e eterna conselheira. Têmis me atraiu desde o primeiro momento e, para meus olhos encantados, não havia deusa mais bela nem mais sábia. Mais uma vez não tive dúvidas de que era ela quem eu queria como esposa. – Salve Têmis, deusa da Justiça, mãe das Moiras e das horas! As Moiras inclinam a cabeça ao ouvir seus nomes mencionados. – Têmis não suportava ouvir certos poetas cantarem as Moiras eram filhas da Noite ou ainda filhas da Necessidade. Vinha chorosa se lamentar comigo. Eu enxugava suas lágrimas e dizia para consolá-la: “Vai ver que é porque elas não têm a beleza de suas irmãs.” – Ora, beleza! – diz Têmis, em defesa das filhas. – Aqui no Olimpo é só o que importa! – reclama Atena.
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– As Moiras podem até ser feias, envelhecidas e ter aspecto sinistro – concorda Têmis. – Mas será que vocês não percebem que seu aspecto sério e envelhecido se deve ao enorme peso de suas atribuições? Hefesto, o manco, tropeça em suas próprias pernas e provoca risos descontrolados. Faz cara de enjeitado, o que me irrita profundamente. O sempre inadequado Hefesto... Ergo minha sobrancelha direita. E em instantes o silêncio volta a reinar. Vivo testando minha autoridade e fico mais confiante quando percebo que pequenos gestos com este ainda funcionam. Melhor assim. Volto novamente minha atenção a Têmis, que ficou um tanto deslocada com a breve algazarra. Peço-lhe que prossiga. – Na véspera de dar à luz às Moiras, tive uma percepção que me deixou intrigada. Naquela época, eu e Zeus costumávamos conversar longamente sobre a existência sem sentindo dos homens. Daqui de cima, assistíamos ao trágico espetáculo da vida lá na terra, num mundo em formação. Jamais pretendi interferir na história da humanidade. Pelo contrário, torcia para que os mortais aprendessem alguma lição com o seu sofrimento. – As grávidas são sempre mais sensíveis – reflete Deméter. – Uma tarde, percebi que seus olhos cinzentos brilhavam com uma intensidade diferente – conto. – Têmis então compartilhou comigo a forte imagem que lhe havia ocorrido. – Imaginei que, para escaparmos de novamente mergulhar na escuridão desordenada do Caos, fazia-se necessário criar uma ordem cósmica diferente da que agora nos rege. Uma força de tal forma superior, que até mesmo nós, seres divinos, fôssemos impedidos de transgredi-la. Quanto aos mortais, que passavam sua frágil existência apenas para saciar necessidades corriqueiras como a fome de alimento e de amor, eles deveriam com muito mais razão se curvar ante a vontade ordenadora. – Então é por isso que os poetas declaravam que as Moiras haviam nascido logo depois do Caos! – alegra-se Hermes. – Genial! – diz Ares, que aparentemente só conhece uma palavra para expressar sua aprovação: “genial”. Lembro que acatei as palavras de Têmis com veneração, tal como ainda hoje faço. Só que, naquele dia, eu demonstrei também algum receio, porque não conseguia compreender exatamente onde ela queria chegar. Afinal, já não contávamos com a deusa Nêmesis, a deusa da vingança? É ela que se apressa em restabelecer a ordem sempre que ocorre alguma transgressão, seja em relação aos deuses, ou em relação aos humanos, como por parricídio, incesto ou quebra das leis da hospitalidade. – Foi necessário fazer surgir uma energia maior – continua Têmis. – Uma divindade capaz de controlar a boa e má sorte dos humanos, uma força que pudesse colocar limites ao seu tempo de permanência na Terra. Era preciso ainda que as súbitas e incompreensíveis mudanças não fossem mais atribuídas ao acaso.
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Na realidade eu não tinha intenção de sequer considerara hipótese de perder um milímetro que fosse de minha autoridade ou mesmo admitir a existência de alguma outra força que competisse com o meu poder. Quanto aos homens, até apreciava a idéia de não me responsabilizar tanto pelos acontecimentos terrestres. Eu sempre achei um despropósito intolerável ser acusado por todos os males que afligem a humanidade. – Pouco tempo depois, nasceram nossas filhas e Têmis muito apropriadamente lhes deu o nome de Morias, que significa a parcela de sorte – ou de desventura – sobre a qual os seres viventes não têm nenhum controle. Desde o primeiro momento, sabíamos que elas seriam as deusas do Destino, responsáveis por uma lei à qual nem mesmo os imortais podem desobedecer. Aos humanos, só resta aceitarem ou se revoltarem contra os acontecimentos que não conseguem controlar. Aceitação ou revolta, pranto ou súplicas: nada disso é capaz de mudar o que as moiras reservam para eles. Na hora de escolher os nomes, Têmis pediu que eu a ajudasse, mas não tenho nem paciência nem jeito para essas coisas e deixei que ela resolvesse sozinha. Adoro seduzir, conquistar e sinto orgulho ao ver crescer minha prole. E é só. Dar nome, tratar, cuidar, são tarefas exclusivamente femininas. Prefiro me manter bem longe desses trabalhos corriqueiros e banais e, para falar a verdade, para mim tanto faz o que acontece com meus filhos. Tenho coisas bem mais importantes com que me ocupar. Têmir ficou aborrecida comigo, alegou que eu sou um pai desnaturado e, por isso, decidi sumir de cena por alguns dias. Detesto deusas lacrimejantes do meu lado. Só resolvi voltar quando percebi que a situação já estava bem mais calma. As Moiras dão um passo à frente e se apresentam como as poderosas Senhoras do Destino. – Saudamos as Moiras, representantes do Destino cego e impiedoso! As responsáveis pelo início e pelo fim, pelo nascimento e pela morte. A lei necessária e perfeita que rege todos os seres viventes. Cloto faz uma reverência e diz: – Somos as deusas fiandeiras do Destino, da focar invisível que comanda o mundo e regula a vida, humana ou divina. Somos nós que fiamos, tecemos e cortamos o fio da vida de cada mortal. – Fio branco: dias felizes. Fio negro: dias de tormenta – receita Atena. – As Moiras são as únicas a quem devo respeito – sentencio. – Infeliz daquele que não acredita na força do Destino! – proclama Hera. – Sou a mais jovem das três – diz Cloto. – Meu nome significa “fiar”. A mim cabe segurar o fuso e ir aos poucos desenrolando o fio da vida de cada ser humano, desde o nascimento até o final de seus dias. Tenho à minha disposição fios de todas as cores e de todos os tipos. Escolho seda e ouro para os mortais a quem determino uma existência de plena felicidade. A lã e o cânhamo são para os miseráveis e infelizes. Láquesis faz uma reverência e se apresenta.
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– Sou Láquesis, a sorteadora. Sou eu quem enrola o fio e sorteia o nome dos que vão morrer. – Sou a mais velha das irmãs – diz Átropos. – A mim cabe a tarefa de cortar o fio da vida e escrever no papiro com letras indeléveis o destino que aguarda cada mortal. Arbitrária ou não, nossa decisão é inexorável e o que está escrito não pode ser jamais mudado nem apagado. Nenhum deus pode interferir em nossas decisões sem colocar em risco a ordem do universo. Urano pensou que podia escapar de seu destino e sufocou seus filhos no seio da Terra. Foi destronado por Crono, que, por sua vez, também fracassou ao ser destronado. – E, como ninguém foge dos seus desígnios, eu o substituí no governo do mundo. – No silêncio da noite, ainda hoje permanecemos em nosso palácio, ocupadas em gravar em ferro e bronze o destino imutável dos homens – dizem as Moiras ao mesmo tempo. – Ali tecemos o fio da vida e decidimos quem deve viver e em que momento sua vida deve ser ceifada. Algum tempo depois, nasceram as Horas, que comandam a regularidade do fluxo do tempo. Eternamente jovens e graciosas, não me lembro de algum dia tê-las visto triste e parece mesmo que elas só estão onde a felicidade é possível. Juntas, as chamamos de Horas, mas foi Têmis que escolheu sozinha o nome de cada uma: Dique, Irene e Eunômia, ou seja, Justiça, Paz e Disciplina. Elas tiveram a sorte de herdar da mãe o senso de justiça, preciosa para os deuses e absolutamente necessário aos homens, para garantir a ordem social no mundo. Apesar dos ataques de ciúmes de Hera, é inegável que as Horas também herdaram da mãe o encanto. Quando chega a primavera, minha divina esposa Hera fica insuportável: exala rancor por todos os poros à medida que a beleza se espalha pelos campos. Por isso, todos os anos as Horas cumprem o mesmo ritual de descer à Terra e proteger dos ataques de fúria de Hera os brotos que esperam o tempo de florescer. A minha contribuição, na qualidade de deus do raio e do trovão, foi presentear a Terra com as chuvas fecundantes do verão, necessárias ao amadurecimento dos frutos. Embora tal decisão tenha me custado muitos aborrecimentos familiares, decretei que os primeiros frutos deveriam ser ritualmente ofertados às Horas. Só bem mais tarde, quando os homens entenderam que o dia podia ser dividido em doze partes iguais, é que essas minhas três filhas foram lembradas para emprestar seu nome a cada uma das partes em que se divide o dia.
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Dionísio, duas vezes nascido
Solicita, Hera se oferece para encher minha taça de néctar. Vejo que estava certo em determinar que a inesquecível celebração em honra à Mnemósine fosse um banquete. Afinal, é em volta de uma mesa que surgem as mais secretas revelações. Não abrimos mão do néctar e da ambrosia nos dias comuns. Em meio a conversar banais, e também nos nossos rituais, quando adquirem um caráter solene. Dioniso bem que tentou nos convencer sobre as vantagens do vinho, mas eu fui terminantemente contra. “Néctar e ambrosia são os nossos únicos alimentos, nosso corpo não está preparado para mais nada diferente disso”, reagi. Hermes, o mais curioso, foi o único entre nós que experimentou do líquido e, no terceiro gole, caiu desacordado. Meu filho Dioniso ainda era um adolescente quando, um dia, colheu alguns pesados cachos de uva no vinhedo que cobria as paredes da gruta onde ele havia sido criado. Num momento de rara inspiração, espremeu o suco e inventou o vinho. Ele bem que tentou encher nossas taças com o líquido de cor púrpura, querendo nos convencer de que este tinha poderosas propriedades. – Sinto falta de Dioniso, o deus do vinho – comenta Deméter, adivinhando meus pensamentos. – Por que ele não aceitou o nosso convite? Por que não veio ao Olimpo, para o nosso banquete?
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Dionísio, duas vezes nascido
– Por razões óbvias. Eu mesma o proibi de pôr os pés no Olimpo – se irrita Hera. – Ele subverte a ordem por onde quer que passe com seu cortejo de sátiros e mênades em desvario místico enlouquecidos pelo vinho. – Além do mais, sua presença seria um desrespeito a Héstia. Ou você se esqueceu de que ele a expulsou do Olimpo e se colocou entre nós como se fosse um de nós? Foi um custo retirá-lo daqui. Deixe que continue lá na Terra, de onde, aliás, nunca deveria ter saído. – Um subversivo, um transgressor – apóia Atena. – Um excêntrico perigoso – emenda Apolo. – Vocês estão enganados. Dioniso é apenas um deus errante, pertence a todos os lugares e não é de nenhum lugar – defende Deméter. – Dioniso é uma longe história – digo. – Vamos deixá-la para outro dia, quando ele vier nos visitar. Hera fica transtornada cada vez que ouve o nome de Dioniso. Diz que dos meus filhos bastardos quer distância. Pior para Dioniso, o deus nascido duas vezes e duas vezes bastardo. O primeiro nascimento foi fruto de uma relação efêmera que tive com Perséfone, a rainha dos Infernos. Como não poderia deixar de ser, Hera conseguiu descobrir o paradeiro do pequeno deus e ordenou aos Titãs que o raptassem e o matassem. Os Titãs encontraram o seu esconderijo e o atraíram com brinquedos. Para não serem reconhecidos, polvilharam seus rostos com gesso. Quando conseguiram pegá-lo, cortaram-no em pedaços, depois o cozinharam num caldeirão e o devoraram. Atena conseguiu salvar-lhe o coração que ainda batia e ele pôde voltar à vida. Depois, a princesa tebana Sêmele o engoliu e, assim, engravidou do segundo Dioniso. Ah, Sêmele, só de pensar na bela princesa sinto de volta o mesmo antigo entusiasmo. Pena que minha esposa tenha interferido em nosso romance. Logo que Hera adormecia, eu escapava para me encontrar com Sêmele. Não existe esconderijo, nem no Céu nem na Terra, capaz de escapar ao olhar atenta de minha esposa. Ela não demorou a descobrir nosso caso de amor. Disfarçada em uma ama da princesa chamada Béroe, Hera a convenceu a exigir de mim uma prova de amor. No calor daquela aventura, eu evidentemente faria qualquer coisa que ela me pedisse. Até jurar sobre o rio Estige, mesmo sabendo que, se assim o fizesse, não poderia voltar atrás. Acreditei que Sêmele iria me pedir um belo colar de estrelas, uma tiara de conchas do mar ou qualquer coisa do gênero. Quando me apaixono, decididamente paro de raciocinar e nem me passou pela cabeça que o seu pedido viesse a lhe ser fatal. Mal aconselhada pela falsa ama Béroe, Sêmele me pediu que eu lhe aparecesse em todo o meu esplendor divino. Lamentei o fato, tentei fazê-la desistir do insensato pedido, argumentei que um mortal não agüenta o impacto da visão de um deus... Mas foi tudo em vão: ela estava totalmente obcecada pela idéia de me admirar como realmente sou. “ Não me importo em morrer. Mas, por favor, atenda o meu pedido, nem que seja por um breve momento”, suplicou-me Sêmele. Todas aquelas súplicas já estavam me deixando irritado. Tanto que eu acabei por perder completamente o interesse nela. Então, decidi lhe aparecer em toda a minha grandeza divina,
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em meio a raios e trovões. Incapaz de suportar tamanha luminosidade, Sêmele foi consumida pelas chamas e seu palácio se transformou em uma imensa fogueira. Antes de morrer, envolta em chama, ela ainda deixou escapar de suas entranhas um fruto inacabado. Não costume me sensibilizar com situações desse tipo e me afasto sempre que surge alguma dificuldade no relacionamento. Mas a visão de um ser ainda incompleto me trouxe de volta à lembrança o perigo que corri quando vim ao mundo. Compreendi que a vida de meu filho dependia inteiramente de mim. Mas como encontrar um receptáculo para terminar a gestação? Foi aí que tive uma idéia engenhosa, fato que provocou em minha esposa o maior despeito e a fez tramar as mais terríveis perseguições. “Por justa causa”, Hera costumava afirmar. Sabia que àquela hora não conseguiria nenhuma deusa ou mortal que se prontificasse a emprestar o seu útero. Num ato de coragem, cantado até hoje pelos poetas, fiz um profundo rasgão em minha coxa direita, onde Dioniso se alojou até completar o tempo de gestação. Assim, a criança passou a ser meu fruto direto e, com isso, pude conceder-lhe a divindade – coisa que Sêmele, como mortal, jamais conseguiria. O nascimento de Dionisio foi um evento marcante, inigualável. Lembro que estava indisposto aquele dia e me demorei mais no leito. Felizmente Hera não desconfiou de nada. Quando minha coxa começou a se contrair em espasmos dolorosos, percebi que havia chegado a hora do nascimento do meu filho. Chamei Hermes elhe pedi ajuda. Disse que não tinha a menor idéia de como proceder em tais casos. Mais do que depressa ele foi chamar as Musas, que me deram todo o apoio necessário. O parto, se é que posso chamar aquele estranho evento assim, foi rápido e logo Dioniso emergiu de minha coxa. Depois dessa experiência, agradeço todos os dias ao Destino por ter-me feito deus e não deusa e valorizo mais ainda um papel de um macho civil. Sabia do perigo que meu filho corria. Hera não tardaria a descobri-lo, com realmente aconteceu. É fato que eu não dou a mínima importância aos meus filhos. Repito quantas vezes for preciso que não me envergonho nem tampouco procuro esconder de ninguém tal fato. Existem raras exceções, é claro, como o caso de Dioniso. Com ele foi diferente. Penso, que por tê-lo gerado em minha coxa, ficamos mais próximos um do outro. Daí eu ter me empenhado pessoalmente em salvá-lo das garras enlouquecidas de Hera. Novamente convoquei Hermes, meu filho e fiel mensageiro, e ordenei para que levasse o pequeno Dianiso à corte de Átamos, para que sua esposa Ino, irmã da falecida Sêmele, cuidasse de sua educação. Determinei que o vestisse como menina para não despertar suspeitas. Parecia um plano perfeito, já que tinha implacável esposa estava à procura de um menino. Infelizmente não deu certo. Até agora não consegui compreender como foi que ela descobriu Dioniso por baixo daquelas roupas femininas. Tomada por um ódio incontrolável, Hera enlouqueceu o casal que adotara Dionisio. Transformei Dioniso em um bode e ordenei a Hermes que o levasse ao Monte Nisa. Ali ele cresceu até a idade adulta, em companhia de ninfas e sátiros, bem longe do alcance de Hera. Um dia, Dioniso me segredou que o motivo de seu caráter inconstante e de ser conhecido
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como o deus da loucura deve-se à infância conturbada que teve. Não dei nenhum crédito às suas palavras, mesmo porque todos os deuses aqui do Olimpo sofreram algum tipo de problema quando crianças. Eu mesmo fui arrancado dos braços de minha mãe e exilado no Monte Ida. E estou aqui, inteiro, física e emocionalmente saudável. Dramas não faltam na morada dos deuses. Enquanto eu tenho maior trabalho para perseguir as beldades que despertam o meu desejo e conseguir tê-las como amantes em meu leito, Dionisio não tem absolutamente do que se queixar. Afinal, é o deus das mulheres, vive rodeado de mênades, mulheres de coração palpitante, que dançam em êxtase para ele. Saio do devaneio e volto novamente minha atenção ao festim. Meu olhar passeia por cada um de meus companheiros do Olimpo, como se fosse pela primeira vez. Quero saborear o aqui e o agora como uma novidade, cansado que estou de velhas rotinas, desgastando com as mesmas situações que se repetem num ciclo enfadonho e interminável.
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Tempos atrás, bastava meus olhos descobrirem uma bela jovem que meu coração disparava e eu não conseguia me controlar. Fazia qualquer coisa para ter em meus braços o objeto de minha cobiça. Inventava as mais sórdidas armadilhas e mais absurdas mentiras para despistar minha esposa. Mas ela, mais esperta do que eu, não demorava muito para descobrir minhas trapaças. Foram muitos os romances que, por sua vez, geravam uma infinidade de filhos. Apesar de tudo, Hera se manteve ao meu lado, sempre fiel. Reconheço que nunca fui feliz com ela, talvez até por culpa minha. Nenhuma esposa toleraria tantas infidelidades e, por essa razão, ela se tronou insuportavelmente amarga. Hera segura minha mão com firmeza. Reparo que, apesar do seu eterno azedume, marcado por um vinco nos cantos dos lábios, ela se mantém linda. E especialmente hoje que ela está magnífica com a veste lilás, minha cor predileta. Caprichou no penteado, colocou um diadema de outro para enfeitar os cabelos que caem em largas ondas sobre os ombros, como no dia em que nos conhecemos. Quando vi minha Irmã Hera pela primeira vez fiquei transtornado. No mesmo instante em que meu olhar, tão acostumado à beleza feminina, pousou em suas formas perfeitas, fui tocado por Eros. Houve entre nós uma instantânea simpatia e um desejo, diferente de todos os que eu havia sentindo antes, invadiu o meu corpo.
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Minhas núpcias com Hera
Quando nossa mãe Réia foi tomada à força em casamento por Crono, não teve a quem recorrer para salvá-la das mãos impiedosas do irmão. O tempo foi passando e ela se acomodou. Não eea feliz, mas como também nunca havia passado por uma experiência prazerosa, começou a acreditar que viver com Crono não era de todo mal. Apenas lamentava o pavor do marido de ter filhos. Quando Hera nasceu, Réia se sentiu a mais feliz das criaturas. Não cansava de admirar a beleza da filha, enquanto a acalentava em seus braços. A menina retribuía o amor com um sorriso inocente, sem nenhuma idéia do sofrimento que estava prestes a enfrentas. Tão logo soube do nascimento, Crono soltou um grito tão alto, que fez estremecer de pavor as mais altar montanhas e fez Réia despertar de seu enlevo: “Traga a criança! Quero vê-la de perto.” E, antes que Réia pudesse esboçar qualquer reação, o tirano fez de uma só vez desaparecer a filha goela abaixo. Depois, vieram se juntar a ela outros irmãos de infortúnio, cuja presença não a deixou menos infeliz. Quando finalmente foi libertada de seu terrível cativeiro, Hera já se havia transformado em uma bela jovem e Réia teve medo de que Aldo sinistro voltasse a lhe acontecer. Por isso a entregou a Oceano e Tétis, que cuidaram dela durante todo o tempo que durou o difícil combate pelo governo do mundo. Eu já havia assumido a posição de deus dos deuses, quando fui visitá-la em seu esconderijo. Lembro que era uma clara manhã de primavera, cenário perfeito para o nosso primeiro encontro. Sentamos na relva macia, onde rompiam os primeiros brotos. Soprava uma aragem fresca e perfumada. Sol imediatamente percebeu meu enlevo e rodeou Hera com seu halo luminoso. Ficamos longamente conversando. Um assunto emendava no outro e, encantados, aos poucos descobríamos a grande afinidade que havia entre nós. Ríamos e gargalhávamos de pura alegria. Não demorei a perceber que estava apaixonado e pedi que ela fosse morar comino no Olimpo. De repente, o belo sorriso desapareceu de seus lábios e, com uma fisionomia séria, respondeu: “Deixe-me aqui, onde a vida corre calma e sem nenhuma inquietação. O amor que você me oferece é efêmero como as flores que desabrocham na primavera. Não aceito ser mais uma em sua longa lista de conquistas.” A recusa só fez acender ainda mais o meu desejo. Tentei todas as estratégias que conhecia, mas nada que eu fizesse ou dissesse conseguia convencer Hera da sinceridade de meus anseios. Enquanto eu tentava conquistar seu coração, na Terra as flores começaram a murchar, os campos foram ficando amarelecidos e as árvores, despidas de folhas, deixavam cair seus frutos maduros. Quando veio o inverno, tive uma idéia. Transformei-me num cuco e, sob a forma de uma ave trêmula de frio e fome, fui pousar no jardim da casa de minha bela irmã. Assim que Hera viu a frágil criatura, seu coração generoso se apiedou e, tomando-a em seu divino colo, tentou aquecê-la com muitos beijos e carinhos. Sob as penas da ave, eu vibrava a cada nova carícia e rapidamente meu desejo se tronou incontrolável. Quando Hera descobriu a armadilha, já era tarde demais. Em meio aos beijos e carinhos, eu havia cedido ao prazer e não podia voltar atrás. Sua fisionomia ficou sóbria e seu rosto se contorcia de raiva, enquanto dizia: “Sinto muita vergonha do que me aconteceu.
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Eu não aceitei suas propostas e você me seduziu. Agora exijo que seu ato seja imediatamente reparado!” Afinal, por que tanto rancor? Tive vontade impor-lhe à força minha vontade de deus absoluto, mas me contive. O tempo logo me mostrou que Hera não é daquelas que se deixam dominar. “Meu desejo é autônomo, tem suas próprias leis e toma suas próprias decisões, que não dependem da minha vontade”, tento me justificar. Eis a inegável verdade! O desejo não me pede licença, tem vontade própria, é irrefreável. Não discuto nem questiono, apenas obedeço ao comando de meu corpo. “Desejo autônomo, que bela desculpa!”. Hera nunca esquece estas palavras. Em nossas brigas provocadas por ciúmes, ela não se cansa de repeti-las. E, diga-se de passagem, cena de ciúmes é o que não falta em nossa vida conjugal. Eu sou verdadeiramente um deus especial, digno de toda a veneração, só por agüentar suas intermináveis queixas. Na maioria das vezes, é importante frisas, sem nenhum motivo. Sentada à minha esquerda, ela vigia meus pensamentos, observa qualquer gesto meu com olhar severo. Para chamar minha atenção, Hera puxa conversa, faz observações: – Afrodite é sempre tão vulgar, seu perfume me intoxica. Ela irrita qualquer um com seu jeito de andar, de falar e, principalmente de se vestir. Será que nem hoje, um dia tão solene, ela não consegue pelo menos fingir um pouco de decência? Minha esposa mal se controla quando me surpreende em algum cochicho ou gesto mais afetuoso, principalmente quando se trata de Afrodite, sua rival mais temida do mundo divino. Conheço bem a rivalidade das duas e não tenho a menor intenção de me meter nessa questão. Tento mudar de assunto: – Querida, lembra do dia do nosso casamento? O Olimpo estava em festa, todos os convidados vieram nos prestigiar... – Todos, menos Quelone – emenda Hera, de mau humor. – Ou você já se esqueceu daquela tola que nutria uma paixão secreta por você? Sei bem que a situação o lisonjeava e você até sentia prazer em alimentar esse sentimento. Bela maneira de começar a nossa vida de casados! – Percebo que com você não dá para puxar assunto sem que termine em briga. Está cada vez mais difícil a gente conversar em paz – respondo, contrariando. Proponho-lhe alguns goles de néctar para adoçar a boca. Ela recusa, com um gesto brusco. Teremos toda a eternidade para discutir e brigar, se for preciso. Mas hoje preciso manter a calma. Mudo de tom de voz e digo: – É claro que me lembro de Queolone, a ninfa que morava numa casa à beira rio. Vamos deixá-la em paz, ela já recebeu castigo bem severo. Por que você insiste em se lembrar dela? – O que ela fez foi humilhante, não dá para esquecer. Pior do que se apaixonar por você foi ela ter subestimado o convite para o nosso casamento. E olhe que eu havia encarregado Hermes de ir pessoalmente convidá-la!
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– Concordo que ela devida ter se sentido honrada! – Mas fez pouco caso e não compareceu à cerimônia. Pensou que podia nos enganar, caminhando a passos lentos, com uma falsa dificuldade. Claro que ela não tinha a menor intenção de chegar ao Olimpo! Fiquei furiosa – e com toda a razão. Hermes dá um salto, sobrevoa a mesa de banquete e vem se colocar ao meu lado. – Assim que as Horas vieram me contar sobre a ausência de Quelone, eu voei imediatamente em direção à sua casa para ver se ainda a encontrava pelo meio do caminho. “O Olimpo é tão longe...”, disse-me ela com um largo bocejo, logo que me viu, mal saída da cama e ainda em trajes de dormir. “Você pelo menos tem asas. Eu sou obrigada a nada a pé e o calor está tão forte... Veja, estou derretendo...” Eu a empurrei com força para a estrada, mandei que se apressasse e ainda a alertei sobre o perigo que ela estava correndo com tal displicência. “Pode deixar, ainda temos muito tempo”, zombou. Como eu não quis me atrasar para a festa, deixei-a para trás. – É óbvio que Quelone não tinha a menor intenção de chegar à nossa festa de núpcias – reage Hera, irritada. – Depois eu soube que ela adormeceu no meio do caminho. Quando acordou, a festa já havia terminado e os convidados voltavam para as suas casas. “Se a festa acabou, então não preciso mais me apressar”, disse ela. E voltou para sua casa à beira do rio. – E foi lá que a encontrei – acrescenta Hermes. –“Já que você é o mensageiro do Olimpo, vá dizer à primeira-dama que um dia desses eu apareço por lá. Agora, deixe-me dormir, que estou exausta”, disse-me ela. Fiquei furioso! Arranquei-a do leito e a jóquei no rio, junto com a casa e tudo. E fui-me embora. – Ela foi uma tola. Merecia ser castiga só por perder uma festa como aquela! – exclama Afrodite. – Quelone afundou no rio com o peso da casa. Quando emergiu das águas, seu corpo estava completamente mudado. Ela havia se transformado numa tartaruga, condenada a carregar com passos lentos e muita dificuldade sua própria moradia nas costas. – E que os seus descendentes por toda a eternidade jamais se esqueçam do que pode acontece com quem ousa provocar um deus – acrescenta Hera, com uma sonora gargalhada. – Lembro que, no dia do nosso casamento, os deuses me proibiram de vê-la antes da cerimônia o que me deixou imensamente intrigado. O tempo passava e você não chegava. Eu me perguntava aflito: “Será que Hera desistiu de se casar comigo?” Minha ansiedade crescia, enquanto que os demais deuses faziam o possível para distrair a minha atenção. Hera parece divertida e surpresa com a revelação. – Se as Horas não tivessem me ajudado, eu ainda não estaria pronta. Colocar a veste com reluzentes bordados de ouro foi caprichar no penteado. Queria que meu cabelo ficasse perfeito, exatamente como havia idealizado e, para isso, eu as
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fiz desmanchar e recomeçar meu penteado inúmeras vezes. Experimentei coques e tranças. Por fim, escolhi tê-lo solto, enfeitado com o diadema real. – Você estava deslumbrante naquele dia... – falei com afetada doçura. – O nosso casamento foi tão lindo, que todos são unânimes em reconhecer que jamais, em tempo e lugar algum, ele foi superado em grandeza e esplendor – relembra Hera, com um súbito sorriso a lhe iluminar o rosto. – Foram tantos os convidados reunidos num mesmo lugar que, por momentos, tive a sensação de que o Céu e a Terra ficaram desertos enquanto durou a cerimônia. Fazia tanto tempo que não conseguíamos trocar um diálogo ameno, que chego a esquecer a esposa ranzinza que tenho ao meu lado. Retribuo o sorriso e continuo: – Depois da cerimônia, você se sentou ao meu lado, pela primeira vez como a rainha do Olimpo. A lira de Apolo envolveu nosso palácio com sua divina música, enquanto as Graças, as Musas e todos os deuses celebraram nossa felicidade com cânticos e louvações. Aos poucos, o som celestial se espalhou por toda a Terra, pelos bosques, fontes, vales e montanhas. Ainda inebriados pela melodia, os convidados vieram, um a um, oferecer seus ricos presentes. Quando parecia que não havia mais nenhuma oferenda a ser feita, eis que de repente brota do chão uma magnífica árvore com maçãs de ouro. Ficamos por um momento em silêncio, deslumbrados com aquela visão. “Esse é o meu presente para vocês dois”, ouvimos Gaia dizer. – Fiquei tão feliz, que fui pessoalmente plantá-la no meu Jardim – acrescenta Hera, com um suspiro. – Logo em seguida, partimos para uma lua-de-mel de trezentos anos! Nós nos divertimos muito e eu fiz todas as suas vontades, lembra? – É claro que me lembro e reconheço que foi a época mais feliz de minha vida. Mas foram apenas trezentos anos... tempo curto demais para o que eu tive que agüentar depois, quando voltamos ao Olimpo. A propósito, eu sempre fico muito desconfiada com toda esta bajulação – responde ela, de volta ao seu estado normal de mau humor. Que pena, penso. Estávamos indo tão bem! Sei que basta uma simples palavra para reacender antigas hostilidades e, depois de passarmos por tantas experiências juntos num casamento tão longo, começo a reconhecer minhas limitações. Compreendo perfeitamente porque Hera jamais me considerou um modelo ideal de esposo. – Tentei proteger o nosso casamento o quanto pude. Quando você começou a se ausentar do Olimpo com as mais variadas justificativas, achei normal. Afinal, ser o deus dos deuses requer assumir certos compromissos inadiáveis. Ainda era ingênua demais para ter qualquer desconfiança a seu respeito. Você sempre voltava reclamando do trabalho insuportável que era manter a ordem no mundo, que preferia tomar sozinho todas as decisões a ter que delegar poderes aos seus mensageiros, todos incapazes. E eu sempre acreditava. Hera jamais valoriza os nossos momentos felizes: na primeira oportunidade, despeja rios
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de mágoa em cima de mim. – Logo compreendi que suas palavras contrastavam com o lampejo de satisfação que eu percebia em seu olhar cada vez que voltava de suas andanças. Nas minhas tentativas de pegá-lo em flagrante de infidelidade, fui ridicularizada pelos deuses e pelos mortais. Quantas vezes vocês se divertiam às minhas custas, totalmente insensíveis ao meu sofrimento! Abri mão de meus mais profundos anseios e me humilhei. Persegui seus filhos bastardos porque não podia admitir ser desrespeitada em papel de esposa. Hera seca as lágrimas com a ponta do manto. – Sou um exemplo de esposa respeitável e fiel. Pois eu não nasci para ser deus de apenas uma esposa, isso decididamente não combina com a minha natureza. Eu tento convencê-la de que ela é minha única e verdadeira esposa, mas não adianta. Basta eu dar uma piscadela diferente para ela se virar com toda a fúria em direção ao objeto de meu olhar.
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– Jamais cedi ao assédio de deuses e mortais, disso eu posso me orgulhar – continua Hera. – Não diga... Pois eu já ouvi comentários sobre o seu relacionamento com Íxion... – intromete-se Afrodite. – E você por acaso acredita em tudo o que ouve? – reage Hera. – Prefiro não tocar em um assunto tão desagradável. Eu detesto lembrar daquele ser desprezível. – Vamos lá, não se acanhe... – diz Hermes, com um sorriso malicioso. – Afinal, existem tantas versões dos fatos, que não sabemos em qual acreditar. – Pois então vou contar-lhes o que realmente aconteceu. Quero provar que sou uma esposa digna, embora não me tenham faltado admiradores. Ares ensaio um assovio, Hermes finge aplaudir, Afrodite dá uma piscadela. – E vou contar-lhes a história desde o início. Íxion, rei da Tessália, se apaixonou por uma jovem chamada Dia e ele prometeu a Dioneu, seu futuro sogro, presentes valiosíssimos. É o que todos os enamorados faze. Acontece que ela não cumpriu a promessa, simplesmente porque não tinha anda a oferecer. Levou a filha e não pagou nenhuma por ela uma moeda sequer. – E o que fez Dioneu quando percebeu que havia sido enganado? – pergunta
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Afrodite, inclinado o corpo com vivo interesse. – Íxion deixou de cumprir a sagrada obrigação de pagamento do dote e Dioneu fez o que devia ter feito: foi bater à porta do genro para cobrar o lhe havia sido prometido. Íxion se recusou a recebê-lo e, ainda por cima, o expulsou da casa repetidas vezes. – Que infame! – exclama Afrodite, horrorizada. – Guarde sua indignação, que o pior ainda está por vir – diz Hera. – Um dia, Íxion mandou chamar o sogro para um banquete a pretexto de uma reconciliação. Apesar da humilhação sofrida, Dioneu aceitou prontamente o convite. Quando ele chegou à casa da filha, achou estranho não encontrá-la no portão para lhe dar as boas vindas. Já dentro do salão, viu a mesa posta, como que para recepcionar um digno visitante, e suas dúvidas se dissiparam. – Certamente não suspeitou de que se tratava de uma armadilha – comenta Ártemis. Hera concorda com a cabeça e continua. – Íxion se mostrou caloroso e inventou uma desculpa qualquer para conduzilo e um lugar afastado da casa. Dioneu nem teve tempo de perceber que de repente o chão se abriu aos seus pés e ele foi traiçoeiramente lançado numa fosse repleta de brasas ardentes. Enquanto o pobre homem se debatia em meio a dores insuportáveis, o perverso gritou bem alto: “Aí está o que eu lhe devo! Faça bom aproveito!” – Transgredir a lei da hospitalidade, por si só, já é uma falha imperdoável! – aponta Héstia. – Mais do que isso – interrompe Hera, – ele cometeu um grave sacrilégio, já que traiu os juramentos solenes que selam o compromisso entre o noivo e o futuro sogro. Como se isso não bastasse, cometeu um crime dentro do seio da própria família. Sem falar que, com sua mentira, ele manchou a cerimônia do banquete, o momento sagrado em que os mortais se comunicam com os deuses. – Imperdoável! Imperdoável! – repete Artémis, baixinho. – E o que acontece com a filha dele? – pergunta Afrodite, sem conseguir desviar sua atenção de Hera. – Pobre moça, quando seu pai foi atirado ao fosso, ele reconheceu por entre as cinzas o corpo carbonizado da coitada. Morreu abraçado com os farrapos que restaram dela. Na época, todos nós ficamos indignados e, por conter os ânimos exaltados diante do um fato ainda sem precedentes, Zeus convocou uma assembléia. Decidimos por unanimidade que sua falta tinha sido tão grave que ninguém teria a impressão de purificá-lo de seus crimes. – Eu não estava no Olimpo nesse dia – diz Afrodite. – Por isso não me lembro... – Provavelmente ocupada com um de seus incontáveis amores... – ironiza Hera. – Mas deixe-me continuar. O povo também ficou indignado e, por onde quer que ele andasse, era vítima de pedradas e xingamentos. Os homens lhe negavam abrigo
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e se recusavam a lhe dar qualquer tipo de alimento, até mesmo o pão mais mofado. Era enxotado da porta das casas e dos templos. Faminto, esfarrapado e com corpo coberto de feridas, Íxion penetrou no templo de Zeus, sem que ninguém visse. Teve a sorte de elevar suas súplicas em um dia que meu divino esposo devia estar com um excepcional bom humor. E foi assim que ele conseguiu ser absolvido de seus crimes hediondos e as portas foram abertas para que ele freqüentasse a nossa morada. Aproveito para me defender. – Não foi apenas uma questão de bom humor. Tratava-se de uma questão de solidariedade. Vocês sabem que não sou desses que ficam se mortificando com a dor alheia, mas, quando vi o rei da Tessália, o antes todo-poderoso naquele estado lamentável e suplicando minha ajuda, fiquei penalizado. Chamei-o para passar uns tempos aqui no Olimpo. – A principio, Íxion se mostrou agradecido e parecia regenerado – continua Hera. – Enganou com tamanha habilidade o deus dos deuses, que até conseguiu obter o perdão dele para seus crimes. É claro que eu reclamei, tentei de todas as formas alertar sobre o perigo que estávamos correndo. Mas meu marido é prepotente o bastante para se fazer de surdo quando isso lhe convém. Como ele costuma achar que está sempre certo, me deixou falando sozinha. – Tive minhas razões. Sei que errei em minha avaliação, fui precipitado... Pronto! Não vou perder mais tempo com estes detalhes. Assim como eu previa, Hera não vai deixar passar uma ótima chance de me espetar com suas afiadas farpas. – Como se não fosse suficiente toda aquela descabida generosidade, Zeus foi ainda mais longe: acolheu-o entre nós, aqui no Olimpo. E, o que é pior, em nosso palácio! Sinto horror só de me lembrar daqueles tempos. Ìxion sentava-se à nossa mesa, usava nossas taças e aproveitava todas as ausências de Zeus para me adular. Mal eu abria os olhos e lá estava ele me perguntando se havia dormido bem, se Hipno me havia presenteado com bons sonhos e outras chateações. Durante o dia, ele me seguia como uma sombra. Insistente, pegajoso, insuportável. E onde estava meu amado esposo naquelas horas? Ausente, sempre ausente. Dizia-se ocupado, que não tinha tempo para ouvir minhas queixas. Contei para Afrodite o que estava acontecendo e ela respondeu com malícia: “Aproveite, querida, agarre esta chance que pode ser a única. Vai ser a sua melhor vingança.” Afrodite dá uma gargalha e confirma o ocorrido balançando a cabeça. – Eu não tinha com quem conversar – prossegue Hera –, ninguém para me proteger. Cada dia Íxion ficava mais inconveniente, nem se preocupava mais em esconder suas verdadeiras intenções. Comecei a evitar sua presença. Aconteceu um dia ele me encontrar contrariada com mais das aventuras de Zeus. O esperto imediatamente tramou tirar proveito de meu momento de fragilidade e, gentilíssimo, ofereceu o ombro amigo. Aproveitou ainda para encher meus ouvidos com propostas
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indecorosas. Por um segundo, confesso que me passou pela cabeça seguir o conselho de Afrodite. – Que bela confissão! – exclama Afrodite. – Mas afastei imediatamente o sórdido pensamento e fugi para os meus aposentos. Eu estava firmemente decidida esperar o tempo que fosse necessário pela volta de Zeus e contar-lhe o que estava acontecendo. Noite já havia cruzado com Hélio pelo Céu, quando ele finalmente chegou, Não sabia a quem deveria primeiro dirigir minha fúria, se ao abusado Ixíon ou ao infiel Senhor do Olimpo. Por um instante eu me divirto com a idéia de minha divinha esposa, tão séria e recatada, nos braços de outro. Hera me lança um olhar gélido. – Acho que nunca lhe passou pela cabeça que alguém pudesse algum dia me assediar. Se você se indignou com o meu relado, foi certamente menos por mim e mais pelo fato de um mortal ter tido a ousadia de me importunar. Tanto que, a princípio, você duvidou de minhas palavras. –Convenhamos que era uma acusação sem provas e sem testemunhas. Não queria que você ficasse falada por bocas maldosas. Você bem sabe que a Fama não perde tempo e que seu maior divertimento é espalhar pela Terra intrigas mal intencionada. Portanto, antes de tomar qualquer atitude, eu precisava me certificar dos faros. Afinal, como soberano da Justiça Eterna não posso cometer deslizes... – Mas, querido, deslizes é só o que você sabe fazer. Mesmo sem compreender, acatei sua ordem de permanecer trancada no quatro até que me desse a permissão para sair. – Não queria que você estragasse meus planos. – E, afinal, que planos foram esses? Você nunca me contou os pormenores e, naquela época, eu estava tão zangada que não quis saber de nada. – Minha idéia foi bastante simples. Primeiro, convidei-o a tomar uma taça de vinho nos salões de nosso palácio. – Vinho? Ora essa, e como ele veio parar aqui? – pergunta Hermes. – Foi Dionisio quem me trouxe e eu recusei, naturalmente. Mas ele pediu: “Guarde-o, tenho certeza que um dia você vai precisar...” – Sábias palavras... – diverte-se Hermes. – O tolo do Íxion não estranhou meu excesso de gentilezas. Enquanto eu o distraía com conversas amenas, enchia as taças repetidas vezes até ter certeza de que estava embriagado. Depois moldei uma cópia perfeita de suas feições numa nuvem e me afastei. Por trás de uma pilastra, observei a cena: a falsa personagem se aproximou do infama com atitudes sensuais. – Pena eu não estar no Olimpo aquele dia... – repete Afrodite baixinho. – Como fui perder um espetáculo como aquele? Imperdível, mesmo sendo o de uma falsa Hera. – Ele acreditou ser real a imagem e, feliz por se sentir correspondido, a envolveu
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em um libidinoso abraço. Chamei os deuses para testemunhar a cena junto comigo. Logo depois, puderam ouvir o quando ele se vangloriou de haver gozado dos favores de Hera. – Você não imagina como eu sofri... – resmunga ela. – Claro que não podia deixar impune aquela traição. Lançá-lo nas profundezas do Tártaro era um castigo suave demais. Então, prendi-o a uma roda em chamas para que ficasse girando no Tártaro por toda a eternidade, para servir de exemplo a deuses e mortais. E, assim, a paz entra nós volta a reinar, mas por bem pouco tempo.
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Um dinha minha divina esposa se zangou de tal maneira comigo que nem me deu chance de tentar acalmá-la. Aos prantos, me ameaçou: “Chega! Não suporto mais viver ao seu lado, faça o que bem entender da sua vida porque vou embora do Olimpo para sempre.” Passei que era mais uma de suas milhares de ameaças e não lhe dei grande importância. Também nem estava com paciência para ouvir as velas lamúrias, justamente na época em que eu estava ocupado com uma trabalhosa conquista. O que eu não esperava que ela cumprisse a ameaça. À noite, na hora de me recolher, estranhei a cama vazia. Mal consegui dormir. No dia seguinte, logo de manhã, pedi a Hermes que posse procurá-la, por não estava gostando nada do comportamento da esposa do governante supremo do Universo. Péssimo exemplo para os outros, sem falar Hera abandona o Olimpo. Logo vieram me contar que ela estava realmente furiosa e tinha se retirado para a ilha de Eubéia. “Pois que vá”, falei com desprezo. O tempo foi passando e eu me sentia cada noite mais triste. Não tinha nenhuma idéia de que o nome dessa tristeza era saudade. Nem me dei conta de que, de posse da tão sonhada liberdade, eu nada fazia de diferente. Pelo contrário, cheguei até abandonar o assedia a uma linha mortal e sequer me ocupei em flertar com as ninfas, livre da preocupação de ser surpreendido a qualquer momento.
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Hera abandona o Olimpo
Um dia eu acordei decidido a trazê-la de volta. Tinha que pensa em algo que fosse criativo o suficiente para comovê-la, sem correr o risco de cair no ridículo diante de todos. Nem podia admitir a hipótese de me rebaixar e lhe pedir perdão. Então, chamei Hermes para lhe dar as instruções: “Deixe todos sabem que me apaixonei por uma bela princesa e que vou me casar com ela. Espalhe a notícia de que dentro de dois dias minha eleita vai percorrer a ilha de carruagem.” Ao mesmo tempo, mandei preparar uma boneca de madeira em tamanho natural, vestida com roupa de noiva e enfeitada com ricas jóias. Coloquei-a numa bela carruagem para que, no dia e na hora anunciada, ele desfilasse pela ilha. Quando Hera soube, ficou possessa, totalmente fora de si. Com os olhos faiscantes de ódio e desejo de vingança, ela se colocou numa curva da estrada para aguardar a passagem do desfile. Pouco depois, o carro enfeitado de flores brancas passou diante dela. Como eu havia previsto, Hera não se conteve: atirou-se furiosa sobre a rival e despedaçou seu vestido de noiva. Só parou quando percebeu que, por baixo da roupa, havia penas uma boneca de pau. Sua reação, por incrível que pareça, foi soltar uma sonora gargalhada. Eu observava a cena de longe e confesso que me senti lisonjeado. Quando ela me viu, abri um largo sorriso. Aliviada, ela correu em minha direção e se atirou em meus braços. Festejamos a nossa reconciliação com intermináveis noites de amor. Mas a trégua foi curta. Pouco depois, voltaram as mesmas discussões e os insuportáveis escândalos de sempre. O pior é que na Terra as mulheres também começaram a imitar o caráter possessivo de Hera, com suas queixas e exigências descabidas. Passaram a cobrar de seus maridos amor e atenção absolutos. E, o que é péssimo, as mortais se tornaram intolerantes a qualquer tipo de traição. – Por acaso você quer que eu enumere suas amantes, que eu diga o nome de todos os seus filhos bastardos, um a um? – pergunta-me Hera, quase aos gritos. – Certamente não faríamos mais nada hoje. Mas, já que começamos, não pretendo parar, mesmo porque só vai me fazer bem extravasar a amargura que sufoquei sozinha durante tanto tempo. Só tenho uma dúvida: por onde devo começar? Não entendo por que Hera não se contenta em ser a esposa do deus dos deuses. Quantas outras não fariam qualquer coisa para estar no lugar dela e ter pelo menos um pouco do seu prestigio? É uma ingrata, eternamente insatisfeita!
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– Amado esposo, – diz Hera, voltando-se para mim com ironia – já que hoje é o Dia da Purificação, que tal você nos contar aquele episódio... Conheço bem seu ar de zombaria e sei que é pura provocação. De Hera conheço todos os sinais, mas me faço de desentendido e devolvo com o mesmo tom de voz: – Do que é que você está falando? Sabe que para você, meu amor, eu não tenho segredos... – Estou falando “daquele” episódio – diz ela, fazendo um pouco de mistério e enfatizando cada palavra – aquele que você chama de “tropeço”, “instante de fraqueza”... Sinto olhares de curiosidade se voltaram em minha direção e me pergunto, sinceramente intrigado: “Afinal, o que há de tão extraordinário assim em me apaixonar por um mortal?” Com voz firme, olho bem nos olhos da minha esposa e digo: – Sempre me orgulhei de minha condição de macho viril e, diga-se de passagem estou certo de que a pratico com desembaraço e criatividade. É como macho que quero ser reconhecido por toda a eternidade. Acontece que nem mesmo a minha condição de divindade suprema é capaz de me livrar das armadilhas que o Destino por vezes coloca em meu caminho. Depois de um saudoso e proposital suspiro, continuo:
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Ganimedes: Um momento de fraqueza
– Vocês devem reconhecer que existem desejos tão fortes que ultrapassam qualquer medida de bom senso. – Aliás, o que não faltam são oportunidades em que o bom senso é o primeiro a se retirar... – dispara Afrodite, que conhece os assuntos do coração quase tão bem quanto eu. – Quem não tem um segredinho guardado? – pergunta Hermes, o especialista em trapaças. Hera se irrita. – Não há nada a esconder, nada que me faça sentir diminuído ou arrependido. Pelo contrário, voltar àquela época só vai me trazer recordações maravilhosas. Nosso casamento estava em crise por causa de mais um de seus acessos de ciúmes. Ficamos vários dias sem nos falar. Lembra? Hera desvia seu olhar. Continuo meu relato: – O clima aqui no Olimpo estava insuportável. Resolvi descer à Terra para espairecer. Era um alívio sentir-me livre para outros vôos, se é que vocês me entendem. Não estava especialmente interessado em ninguém, o que aumentava a minha sensação de liberdade. Como de costumes, dirigi-me ao Monte Ida, lugar onde nasci e passei a minha infância. A tarde estava agradável o cheiro da grama me lembrou os longos passeios que fazia com minha avó Gaia. Sentei-me à sombra de uma árvore, distraídos com belas lembranças de Gaia, Amaltéia e tantos amores vividos... – Feliz aquele que é tocado pelo amor – acrescenta Afrodite, nostálgica. – Como eu dizia, o Destino, essa força invisível, nos reserva certas surpresas das quais nem mesmo o mais poderoso do deus consegue escapar. Não estava à procura de nada em especial e, de repente, surgiu diante de meus olhos a mais extraordinária aparição. A figura de um jovem príncipe troiano, que pastoreava o rebanho do pai, imobilizou meus sentidos. No mesmo instante, fui capturado pela sua juventude, pela perfeição de seu rosto, torso, perna, mãos. Ganimedes era, sem dúvida, o mais belo de todos os mortais. Meu coração começou a bater furiosamente. Meu corpo respondeu com uma sensação diferente, mas igualmente deliciosa. – Já chega! –grita Hera. – Calma, foi você que pediu e eu mal iniciei a minha narrativa. Sinto-me quase vingado e continuo com prazer redobrado. – Eu estava tomado pela beleza do jovem Ganimedes. Meu primeiro impulso foi correr até ele e declarar-lhe o meu desejo, levá-lo comigo para o Olimpo. Mas como justificar a presença de um mortal no domínio dos deuses? Tive que refrear meus impulsos e pensar em alguma outra estratégia. Se Hera desconfiasse de minhas intenções, suas faíscas de ódio iram crescer como labaredas e incendiar nosso palácio. Não podia arriscar. Mal conseguia me controlar e esperar o momento propício para agir. Ansioso, aguardei que Noite surgisse no Céu trazendo seu cortejo de sombras e me transformei em uma águia. O poder de transformação já havia se mostrado eficaz em outras ocasiões.
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– Nem eu escapei de suas artimanhas – diz Hera, com uma expressão contrariada. – Um cuco! Foi esse o recurso que você usou para me enganar... – Águas passadas – respondo, com desprezo. Percebo que minha esposa se agita no trono. Jamais havia ouvido meus lábios tão sincera confissão. Faz um movimento para se levantar. Mas logo desiste. – Ganimedes se preparava para guardar seu rebanho. Era o momento perfeito que eu estava aguardando e lancei minhas garras sobre a bela pressa. Em instantes. Estávamos os dois mergulhados na escuridão do Céu. Foi assim que, em pleno vôo, sobre o manto de nuvens, apenas com a noite como silenciosa testemunha, nos unimos pela primeira vez... Ares se prepara para fazer um de seus gracejos, mas felizmente se cala. – Logo que o depositei num lugar seguro, assumi minha verdadeira identidade. O pastor não demonstrou surpresa, apenas se disse preocupado com seu velho pai, que a essas horas devia estar aflito com sua demora. – Que bela troca ele fez! Perdeu o filho e ganhou como recompensa cavalos divinos... Diz Hermes em tom brincalhão. – Todos conhecem bem o final da história. Trouxe Ganimes para o Olimpo e o apresentei como o novo copeiro. Queria tê-lo bem perto de mim, sem despertar suspeitas. – Pois eu lamento que aqueles bons tempos tenham terminado – diz Afrodite fazendo charme, enquanto sacode os cabelos. – Com Ganimedes como copeiro, até o néctar e a ambrosia tinham um saber mais doce. O que não dava para agüentar eram as lágrimas de Hebe, que não parava de se lamentar por ter perdido o seu cargo. – Sim, eu amei o jovem pastor e declaro diante de todos a minha inusitada afeição sem nenhum pudor. Amei toda aquela juventude e beleza e devo dizer, a bem da verdade, que vivemos juntos momentos felizes e prazerosos. – E mais uma vez você abusou de minha boa fé e me fez acreditar que Ganimedes era apenas um mortal contratado para aliviar o trabalho de nossa filha Hebe, que andava muito estafada e precisava de ajuda – resmunga Hera. – E o que é que você queria que eu dissesse? – pergunto. – Dei-lhe de presente asas, para desgosto dos deuses que não ganharam de mim tal privilégio. Quando a Morte sobreveio e desgraçadamente o afastou de meu convívio, coloquei-o no Céu como o aguadeiro, para poder contemplá-lo sempre que quisesse. Amei muito, inúmera vezes. Talvez tenha amado mais do que devia, mas amei infinitamente menos do que era capaz. Sou grato a todos aqueles que, de formas diferentes, me ensinaram algo sobre a arte de seduzir. A arte das artes. Heras jamais foi capaz de me compreender e confesso que esse assunto para mim já está desgastado. Agora estou mais calmo, meu coração já não se inflama com tanta freqüência e as melhores lembranças eu as guardo só pra mim. Por vezes, Hipno passa rapidamentesobre minhas pálpebras e desperto quando a
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Ganimedes: Um momento de fraqueza
Noite ainda não terminou seu percurso no Céu. Nessas ocasiões, que estão se tornando cada vez mais freqüentes, gosto de abandonar o leito para, no silencio do jardim, caminhar em meio às estrelas que iluminam meus passos. Hera se fechou em seu pequeno mundo aqui no Olimpo. Ela nem quer saber mais sobre as coisas que estão acontecendo na Terra. Se soubesse, ficaria corada de indignação em verificar a inconstância dos mortais, a quem ela se dedicou com tanto zelo para impor a fidelidade acima de qualquer compromisso moral.
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A lembrança do belo Ganimedes faz com que eu convoque mais uma pequena pausa na cerimônia. Encaminhou-me para um lugar silencioso, ao abrigo dos demais deuses. Faço um gesto para que não me sigam e que me aguardem. Preciso me recompor. Tempos atrás desconhecia o prazer de me deitar na grama e ficar observando no Céu as constelações. Hoje, me sinto reconfortado em pensar que cada uma delas tem suas histórias e muitas foram recompensas de amores que desfrutei. Minhas lembranças me levam à Europa, uma linda princesa da Fenícia. Seu pai, o rei Agenor, estava procurando um bom marido para ela e, enquanto a escolha não fosse feita, proibiu-a de se aproximar de qualquer homem. Passei algumas noites em claro, trêmulo de paixão, pensando em como enganar um pai tão zeloso da pureza de sua filha. Afinal, resolvi recorrer à velha técnica do disfarce – por que não? Já havia funcionado tantas vezes e agora, certamente, daria certo de novo. Só faltava escolher a aparência que eu deveria tomar. Desci à Terra para observar Europa bem de perto, conhecer suas inclinações e preferências. Admirála foi uma tarefa extremamente prazerosa. Não demorou muito para perceber que, além de colher flores, tecer coloridas guirlandas e correr pela praia com as amigas, ela demonstrava uma afeição especial pelos touros de seu pai. Transformei-me, então, num belíssimo touro branco de olhos meigos e aspecto inofensivo.
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Europa: Desejo e arrebatamento
Em seguida, misturei-me ao rebanho do rei. De onde estava, consegui avistar Europa brincando com as amigas. Fiquei completamente fascinado pelo som de sua risada e pela juventude do corpo flexível a dançar na areia, por entre as pedras. Vi quando, cansada, deitou-se à sombra de uma árvore, enquanto suas companheiras continuavam a alegre diversão. Finalmente Europa ficou sozinha. Era a oportunidade que eu aguardava. Mais do que depressa, afastei-me dos outros animais e encaminhei-me até onde estava a ingênua princesinha. Quando ela me viu, deu um salto de susto. Fiquei com medo de que corresse para longe, mas, para minha alegria, passando o sobressalto, ela se aproximou cuidadosamente. Sei suas delicadas mãos acariciarem meu dorso de pêlo branquíssimo e me deitei docilmente aos seus pés. As outras jovens interromperam sua diversão e também vieram me fazer festas e agrados. Meus olhos ignoraram todas elas e pousaram cobiçosos na beleza de Europa. Animada e cada vez mais confiante, ela enfeitou meu pescoço com uma guirlanda de flores. Sem dúvida, todo esse carinho me agradava muito. No entanto, meu corpo já mostrava sinais de impaciência debaixo do disfarce. Aproveitei o momento em que as amigas correram para um mergulho no mar, dobrei as patas e inclinei meu volumoso corpo para que Europa montasse nas minhas costas. Ela hesitou um pouco até que, ao fim de alguns instantes, tomou coragem e subiu no meu dorso. Saí trotando vagarosamente, enquanto ela dava gritinhos de satisfação. A nova brincadeira chamou a atenção das outras jovens, que vieram correndo participar também. “Vamos, querida amiga, desça daí, nós também queremos brincar!”, disseram ela, rindo de excitação. Quando percebi que as moças avançavam em minha direção para desalojar Europa, tomei impulso e me lancei ao mar, por sobre as ondas do Mediterrâneo. O contentamento se transformou rapidamente em horror e a jovem começou a gritar desesperadamente por socorro. As companheiras ao conseguiram esboçar nenhuma reação, paralisadas de espanto. Mesmo que tentassem, nada poderiam fazer, já que arremessei meu corpo com a velocidade de um raio, em direção à ilha de Creta. Europa agarrou-se firmemente em meus chifres para se equilibrar. “Para onde você esta me levando? Volte agora mesmo para a praia! Deixe-me saltar!”, gritar ela, com a pouca força que ainda lhe restava. Quando já estávamos próximos de Creta, virei a cabeça para trás e, ao ver o resto da jovem pálido de susto, disse-lhe com toda a calma: “Eu sou Zeus o deus supremo, o Governador do Mundo. Não tenha medo, Europa: quero que seja minha esposa. Você é a minha eleita para ser honrada com filhos de nobre descendência.” Ao ouvir minhas palavras, ela se calou. Durante o resto do percurso, consegui apenas perceber de vez em quando soluços e alguns suspiros, que nunca soube se eram de medo ou de resignação. Logo depois, chegamos a Creta e Europa pôde finalmente colocar os pés no chão. Foi quando eu me revelei na figura de um belo jovem e, ali mesmo, junto a uma fonte, pude enfim demonstrar-lhe todo o meu ardor. Europa me deu três filhos: Minos, que mais tarde se tornou rei de Creta, Radamanto, a quem couberam todas as ilhas do mar e Sarpédon, que veio a ser o fundador da cidade de Mileto.
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Paixões são sempre breves, têm os dias contados. Preferi me afastar. Para evitar que Europa tivesse um futuro solitário, eu a casei com Astérion, rei de Creta, que aceitou nossos filhos e os tratou com o carinho de um verdadeiro pai. Tempos depois, fiquei comovido com a notícia da morte de Europa e ordenei que lhe fossem prestadas honras divinas, para que ela jamais fosse esquecida. Como ainda me pareceu pouco, imortalizei-a na constelação de Touro, pela memória da infinita alegria de havê-la tido um dia em meus braços.
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Exceto por uma ou outra aventura que anima os meus dias, vivemos aqui no Olimpo uma tediosa rotina. Dormir, acordar, conversar com os mesmos deuses, nos mesmos lugares, ouvir as mesmas gargalhadas, as mesmas intrigas. Mais sábios foram os mortais, que invocaram com a história de deus único. Não sei quem é nem onde se esconde, mas os homens acreditam cegamente que ele está em toda a parte. Graças a essa figura mágica, os mortais deixaram de nos adorar. Se eu fosse o único, o verdadeiro, o todo-poderoso, não precisaria ficar me desgastando com diplomacias supérfluas – como este banquete, por exemplo. Teria o Universo todo só para mim. Todas as preces e todas as súplicas tomariam uma só direção. Já é hora de voltar. Terei todo o tempo do mundo para as minhas lembranças, quando a cerimônia terminar. Enquanto caminho rumo ao trono, ordeno que encham novamente a minha taça com néctar. Observo que Hermes está mais inquieto do que de costume. Voa de um lado para o outro, cochicha no ouvido de Afrodite algo que a faz riri, dá um volteio no ar e se aproxima de Hera, que o enxota com um gesto de impaciência. Alisa com as mãos o cabelo de Atena e provoca Ares, que se enfurece e ameaça transpassá-lo por sua lança. – Chega! – ouço HEfesto gritar, irritado com suas brincadeiras inconseqüentes. Mnemosine faz um sinal com a cabeça compreendo que Hermes, sempre muito falante e espontâneo, está ansioso por se apresentar. Chamo-o para perto de mim e mais uma vez reparo
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que ele tem os cabelos louros e encaracolados de Maia, sua mãe. Sei que, no fundo, todas as fêmeas se parecem – e, de fêmeas não existe ninguém que entenda mais do que eu. A diferença está nas formas de se conquistá-las. Algumas dão mais trabalho, exigem uma boa dose de paciência e criatividade; outras são bem mais simples. Mas todas as conquistas começam invariavelmente com novas ilusões novas esperanças. Queria que com Maia fosse diferente e, por alguns momentos, até pensei que seria assim. Não sei se foi a sua beleza exuberante em contraste com o seu jeito tímido e silencioso, o fato é que ela me arrebatou o coração. Não costumo perder o controle quando apaixonado, porque para mim é essencial manter firmes a rédeas da situação. Mas não posso negar que dessa vez foi diferente, mesmo que por um tempo curto. Eu esperava ansiosamente que Noite apontasse no horizonte e Hera se recolhesse em seus aposentos para me encontrar às escondidas com minha amada. “Desta vez Hera não haverá de me pegar em flagrante”, pensava. E encarreguei Céu de deflagrar o estrondo de meus trovões para que o barulho do nosso ardente amor não se deixasse ouvir. Apesar de todos os cuidados, sou incapaz de disfarças quando estou apaixonado. Tanto que não demorou muito para que a sempre desconfiada Hera descobrisse minha aventura e lançasse sobre sua rival toda a mágoa de esposa traída. Maia foi obrigada a fugir para a Arcádia, justamente quando ela estava a ponto de dar à luz o nosso filho. Hermes interrompe meus pensamentos. Com um divertido salto no ar, bem ao seu estilo, atrai nossa atenção. Com um sinal, concedo-lhe a palavra. – Eu sou Hermes, deus de muitos atributos e funções. – Salve esperto Hermes, filho de Zeus e Meia, mensageiro do Olimpo! – respondemos em coro. – Meu pai, Zeus, mês escolheu como o mensageiro e intérprete da vontade dos deuses junto aos mortais. Não tenho do que me queixar, adoro o que faço e desempenho com muito orgulho todas as minhas funções. Dá um passo à frente e, com a fisionomia séria, começa a relatar sua história. – Nasci numa profunda caverna no alto do monte Cilene, ao sul da Arcádia. Logo que vim à luz, minha mãe me embrulhou com faixas e, depois de me deixar bem confortável e aquecido, adormeceu, exausta pelo esforço do parto. Aproveitei que não havia ninguém me vigiando e, sem esforço, desatei as tiras de linho que dificultavam meus movimentos. Para minha surpresa, quando deslizei para fora do berço, encontrei no chão um minúsculo par de sandálias aladas. Um presente perfeito para quem mal nasceu e já sente vontade de voar! Desde o meu primeiro instante de vida, sempre tive sede de liberdade e a sensação de aprisionamento me é simplesmente insuportável. Por isso, previ que aquelas sandálias me seriam muito úteis dali em diante. Hermes enfatiza suas palavras com um gesto: – Dei um impulso com o corpo para frente e, no momento seguinte, já estava voando. Assim, comecei minha vida fazendo o que sempre me deu prazer: explorar
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novos domínios, sem meta e sem rumo. Para meus olhos de recém-nascido, a bela visão do alto, ao sobrevoar bosques, vales e campos, me pareceu esplêndida. Foi assim que cheguei à Tessália. No caminho, encontrei por acaso, um rebanho que estava sob a guarda de meu irmão Apolo e pensei: “Por que não reservar uma parte desse rebanho para mim?” –Já nasceu ladrãozinho barato! – exclama Apolo. –E foi o que eu fiz – continua Hermes, sem dar atenção ao comentário. – Separei cinqüenta cabeças para mim. Para evitar ser descoberto, tive o cuidado de amarrar uns galhos secos na cauda dos bois, para que seus rastros fossem varridos à medida que se deslocassem. Hermes imita o andar dos bois com os galhos presos à cauda e provoca risos. –Para garantir meu anonimato, tive a idéia de calçar as minhas sandálias ao contrário e, assim, confundir as pegadas. Depois de conduzir os animais até um lugar seguro, decidi que já era hora de voltar para casa. Na estrada passou por mim um velho andarilho, que estranhou a ver uma criança caminhando com cinqüenta bois e vacas. Curioso, perguntou-se para onde estava indo com os animais. Fiquei com medo de que ele me denunciasse e, antes que ele pudesse colocar meu plano todo a perder, propus: “Escolha um bezerro para você”. Em troca, ele deveria se manter calado e esquecer o assunto. Este meu filho era sem dúvida precoce. Desde pequeno, tão hábil na arte de negociar e na arte de subornar. Insuperável! – E ele, é claro, aceitou imediatamente a proposta e escolheu a mais gorda das novilhas, a de pêlo mais lustroso. Não pensem que acreditei na promessa do silêncio daquele velho. “Confie em mim”, repetiu várias vezes. Claro que fiquei desconfiado. Apesar de não passar de um recém-nascido, sem nenhum conhecimento das maldades do mundo, naquela hora percebei que todo o cuidado era pouco. Para testar sua honestidade, preparei-lhe uma armadilha. Hermes adora fazer suspense. Passeia por entre as cadeiras, abre os braços em gestos teatrais. A seguir, alguns momentos em silêncio, à espera que alguém se manifeste, o que invariavelmente acontece. – E então? – pergunta Ártemis impaciente para saber o final da história. –Então, eu assumi a forma de um pastor e contei-lhe com voz aflita que meu rebanho havia sido roubado. “Você por acaso viu o ladrão que levou meus bois?”, perguntei. O velho hesitou um pouco e eu lhe ofereci quatro bois como recompensa pela informação. Quando ele ouviu a proposta; seus olhos brilharam de satisfação. No mesmo instante, apontou seu dedo magro em direção ao caminho por onde eu havia passado com o rebanho. Fiquei furioso... – E, naturalmente, se vingou, seguindo o conhecido modelo de comportamento dos deuses do Olimpo – intervém Ares, com sarcasmos. – Depois dizem que eu é que sou o violento.
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– Temos enormes diferenças – responde Hermes. – Enquanto você conhece apenas a brutalidade para se expressar, eu prefiro sempre o caminho da conversa, da conciliação. Quanto àquele velhote, não fiz nada além do que ele merecia – por sinal, apliquei-lhe um castigo bem leve. – Castigo bem leve, pois sim... – sorrio. –Apenas fiz com que um pedaço de rocha se deslocasse e caísse bem encima da sua cabeça de bisbilhoteiro. Bem, não quero perder tempo com detalhes tão insignificantes. Depois desse, digamos, acidente de percurso, continuei a conduzir o rebanho até chegar a gruta, em Pilos. Lá preparei o sacrifício de dois bois em honra aos deuses e dividi os animais em doze porções. – Mas naquela época, nós éramos apenas onze! – exclama Ártemis, distraída. – É que eu me antecipei e me promovi sozinho a décimo-segundo, ora! – Prossiga! – ordeno. – Pois bem, depois de agradar os deuses com o meu sacrifício, tomei finalmente o caminho de casa. Na entrada da caverna, vi uma tartaruga e achei graça do seu jeito de andar. Hermes imita o andar lento da tartaruga e provoca mais risos. – Pensei: “Afinal, para que serve um animal tão lerdo? Ele pode ser bem mais útil para outros fins, basta um pouco de criatividade. – Então recolhi do chão aquela carapaça andante, retirei-lhe a carne com a ajuda de uma pedra pontiaguda, prendi pedaços de cana de diferentes tamanhos ao seu redor e fixei nas extremidades sete tripas das novilhas que havia sacrificado momentos, antes, esticando-as bem. Experimentei dedilhas naquelas tripas estendidas e gostei dos acordes que ouvi. – Além de esperto, é criativo – diverte-se Afrodite. – Foi assim que eu inventei a lira, que passou a animar nossos festins. Entusiasmado com meu novo brinquedo, voltei ao berço e me aninhei sob as cobertas. Minha mãe ainda dormia profundamente e nem deu pela minha falta. Não demorou muito e Apolo veio me perturbar a paz. – Você pensou que podia me enganar – disse Apolo, fingindo-se zangado. – Esqueceu que sou o deus da adivinhação! Eu enxergo longe, coisa de que, com toda a sua esperteza, você não é capaz. Por isso não demorei em descobrir que havia sido roubado e – o que é mais importante – quem me havia roubado! – Não precisava ter feito todo aquele escândalo. Chegou até a me acordar, justamente quando eu estava no melhor do sono! Poderíamos ter conversado como dois bons irmãos e... – Hoje podemos dizer que somos bons irmãos: eu o perdoei. Mas você me fez passar um susto enorme! Você tem alguma noção de como me senti culpado com o desaparecimento das cinqüenta cabeças de gado, por não me acreditar à altura da minha responsabilidade? Seu jeito sedutor pode enganar os outros, até mesmo nosso
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pai, Zeus, mas não a mim! Hermes acha graça. – Como eu estava dizendo, Apolo entrou na caverna, acusando-me de ter roubado seus bois. Mamãe acordou com a gritaria e correu para me proteger do perigo. Apolo me ameaçou, dizendo que me jogaria nas profundezas do Tártaro se eu não lhe mostrasse onde havia escondido os animais. Um verdadeiro drama! – Precisava ter visto sua cara de vítima. Chegou até a jurar que nada sabia de meus bois, que não passava de um inocente recém-nascido, incapaz de sair sozinho do seu berço. Fiquei indignado com tamanho cinismo e arranquei-o dali para levá-lo à presença de nosso pai, no Olimpo. E, mesmo diante de Zeus, você jurou não saber do que eu estava falando. Sorrio ao me lembrar da cena. Apolo entrou furioso no meu Palácio e jogou Hermes em meu colo, ameaçando esganá-lo com suas próprias mãos. O bebê ensaiou um choro e repetiu várias vezes que Apolo estava enganado, que, antes de fazer uma acusação tão grave, deveria procurar melhor seus bois, vasculhar todos os campos. Talvez estivessem lá, pastando. – Então eu disse para ele: “Olhe bem para o tamanho das minhas perninhas e das minhas mãozinhas: são tão frágeis! Como é que eu poderia ter forçar suficiente para roubar bois tão grandes?” Que habilidade com as palavras, que trapaceiro! Uma criaturinha recém-nascida, que desaparecia em meu colo, de tão pequena. – O espertinho também pensou que Zeus ia se deixar levar por suas artimanhas – continua Apolo. – No entanto, o deus dos deuses ordenou-lhe que me levasse até o lugar onde havia escondido o rebanho roubado. Só quando o larápio viu que seus argumentos mentirosos haviam se esgotado, obedeceu. – Eu não estava mentindo, estava apenas contando o outro lado dos acontecimentos. O que me faz mais sabido que os demais é o fato de saber que a verdade tem várias faces. Enquanto que os outros pensam que só tem uma. Como todos aqui bem sabem, uma transação comercial exige certos dons especiais: um discurso convincente, uma habilidade para negociar... – E foi precisamente por isso que, dentre todos os deuses, eu o escolhi para ser meu mensageiro. – Isso não me surpreende – comenta Apolo. Enquanto ajeita com a mão direita seu longo manto drapejado. – O deus do comércio é também os deus dos ladrões! – Não seja injusto comigo. É verdade que me tornei o patrono dos ladrões, mas foi contra minha vontade, você bem sabe. Tanto que inventei a balança para pesar as mercadorias, justamente para proteger os compradores de negociantes desonestos. Hermes nunca demonstrou qualquer pudor para mentir ou se apoderar de objetos que não lhe pertencem. Furtar as novilhas foi apenas a primeira de uma série de travessuras. O irrequieto Hermes uma vez atraiu a fúria de Poseidon, ao esconder o seu tridente e, não satisfeito, escondeu também a espada de Ares. Se não fosse a minha interferência, Ares teria
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pendurado o trapaceiro de cabeça para baixo, sob a ameaça de lhe furar os olhos. Quando libertei Hermes das garras de seu exaltado irmão, ele jurou ter aprendido a lição. Mas foi por pouco tempo. Num momento de distração, ele fez desaparecer meu cetro. E, mais uma vez, jurou inocência. Como se eu não o conhecesse... O que antes me irritava, hoje só me faz rir. Afinal, o que há de mais interessante aqui no Olimpo senão estes esparsos episódios de transgressão?
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Hermes rodeia Apolo. Toma nas mãos uma lida invisível, e a dedilha com os olhos fechados, fingidamente compenetrado. Não consigo olhar para Hermes sem sorris. Ele sempre mostra algo criativo e surpreendente. – Naquele dia, você ficou ainda mais enfurecido quando descobriu que, além de ter roubado boa parte do seu rebanho, eu também havia sacrificado duas de suas novilhas. Lembra como os seus olhos faiscavam de raiva enquanto caminhava ameaçadoramente em minha direção? Mal tive tempo de pegar a lira e dedilhar uma música suave. Foi engraçado. Imediatamente seu semblante mudou e, como eu havia previsto, ficou enfeitiçado com o som do novo instrumento. Na mesma hora, me sugeriu uma troca, disse que eu podia fazer o meu preço, qualquer que fosse. – Não exagere. Eu só lhe propus tocar a sua lira pelo rebanho furtado. – E eu lhe respondi que, se o som da minha lira lhe causava tanto gosto, então podia ficar com ela. Você me olhou desconfiado: não podia acreditar em tanta generosidade. Sei que sou insuperável na comunicação, na arte de convencer e de encantar os outros com palavras. Mas, de fato, a generosidade nunca foi o meu atributo mais forte. Mesmo assim, não me importei em dividir com meu irmão Apolo o mérito de ser o protetor da música. Um tempo depois, eu inventei a flauta de Pã...
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Hermes e sua irrestível arte de convencer
–... e mais uma vez você me propôs uma troca. – Eu somente faço negócio quando a troca é vantajosa – para mim, é claro. Ganhei como presente um caduceu de ouro do qual nunca mais me separei. Mas desta vez eu queria mais. Afinal, a flauta era uma invenção muito valiosa, merecia ser bem aproveitada... – Respeito a sua esperteza – diz Apolo, inclinando o corpo numa reverência. – Você se aproveitou de minha boa vontade. – Boas invenções não acontecem todos os dias. Tinhas que aproveitar. Outra idéia tão brilhante como essa talvez só me viesse à ocorrer dali a muitos milênios... – Afinal, que troca foi essa? Por que tanto mistério? – pergunta Ártemis, já irritada por estar tanto tempo sentada. – Tenha um pouco mais de paciência, não vou me alongar – responde Hermes, que não desperdiça uma oportunidade de exercitar sua arte de atrair a atenção de seus ouvintes. – Pedi a Apolo lições de adivinhação e, modéstia à parte, eu me revelei um ótimo aprendiz. Se não fossem minhas múltiplas funções, poderia perfeitamente ter superado meu mestre. Mas, vejam: além de mensageiro dos deuses, sou deus do comércio, das estradas, da comunicação, protetor dos viajantes. Sou também o protetor dos atletas, daí existirem tantas estátuas com a minha imagem as arenas e ginásios. – Até serem todas destruídas... – murmura Atena. – Detesto ficar parado, criar raízes. Amo estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Nunca me nego a ajudar meu pai quando se trata de inventar novas estratégias e disfarces para o sucesso de seus súbitos amores. Hera cora de raiva e ordeno que Hermes omita essa parte do seu relato. – Além de tudo, sou o condutor das almas dos mortos para sua morada no reino subterrâneo e depois as trago de volta, quando chega o momento de reencarna. E, se vocês ainda acham que é pouco, lembrem-se de que sou também “o guia de todos os magos”, porque sou a única divindade capaz de transitar entre os três mundos. Sinto-me tão à vontade no Olimpo quanto na Terra e no reino subterrâneo. Para falar a verdade, já nem me lembrava mais do quanto Hermes era versátil em suas múltiplas funções. Hoje, só o vejo voando do Olimpo para a Terra e, de lá, de volta ao Olimpo, nunca corrida inútil e sem sentido. Apesar de tudo, Mnemósine ainda o considera como eu seu mais poderoso aliado, já que é o deus da arte de comunicar as idéias pela linguagem, o intérprete de todas as línguas. Daí os mortais o invocarem para mais facilmente conseguirem transformar em palavras seus sonhos, fantasias e lembranças. – Certamente você não pediu a palavra apenas para contar a todos o quanto é versátil e esperto – ironiza Hera. – Vamos lá, Hermes. Como protetora das esposas e dos amares legítimos, eu já desisti de fazê-lo levar um compromisso a sério. Com razão o chamam de “solteirão do Olimpo”. – Detesto qualquer tipo de compromisso. Tenho horror a relacionamentos duradouros e sufocantes. Preciso de liberdade, tanto quanto o ar que respiro. Só
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podia ter sido invenção da Hera esse negócio de “sagrados laços do matrimônio”. Ela faz qualquer negócio para se manter casada, sem medir as conseqüências. Olhem em volta e me digam, sinceramente: quem aqui é feliz no casamento? Hera novamente ameaça se levantar e eu a contenho. – Já que é o dia da deusa Memória, vamos recapitular apenas alguns exemplos. Gaia, a Mãe Terra e urano, o Pai Céu foram muito infelizes. Corno, o filho caçula libertou a mãe do sofrimento. Por acaso ele mesmo conseguiu construir uma relação satisfatória? Tomou à força sua irmã Réia por esposa e, com medo de ser destronado, engolia todos os seus filhos. Depois veio meu pai Zeus, também o filho caçula que expulsou Crono. Ele certamente acreditou que com ele seria diferente. Afinal, um rei precisa de uma rainha à altura. E o que vemos? O único autêntico casal do Olimpo só se mantém junto porque hera não suporta a idéia de separação. E insiste na fantasia de querer encher o Céu e a Terra de amores e filhos legítimos. – É verdade, eu mesma já sofri na carne os preconceitos de Hera – apóia Afrodite. – A deusa do amor e da beleza foi dada em casamento a Hefesto, mas o traiu com Ares. Não foi feliz com um nem com o outro. Apolo, o belo, teve muitos amores, todos fracassados. Para quê? Prefiro viver a vida em liberdade. De galho em galho, de flor em flor. – Quantas lágrimas derramadas, quanto sofrimento... – diz Hera. – Não sou nem um pouco responsável pelo sofrimento alheio. Que aprendam a encarar a vida como uma aventura, como eu faço. Quando percebo que está na hora de partir, o passado fica para trás, esqueço tudo imediatamente. Só sei que tive muitos amores e muitos filhos. Não me perguntem por eles, nem sei por onde andam. – Sedutor, encantador, mentiroso... Quase qualidades! – irrita-se Atena. – Você não conhece nada sobre os feitiços do amor – diz Hermes, querendo encerrar de vez a discussão. – A mentira faz parte da conquista. Sempre. Apesar de ser a divindade suprema, muitas vezes não posso dizer o que penso. Ainda bem que o meu filho fala por mim. A mentira faz parte do jogo de conquista... Genial. Esperto, o garoto.
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Hera fecha a cara e contrai os lábios, sinal mais que evidente de seu descontentamento com o rumo que se tornou a declaração de Hermes. Minha esposa nunca se dá por vencida. Foi a mais entusiasmada com a idéia do Dia da Purificação. Desde o momento em que o os detalhes da cerimônia foram acertados, eu a surpreendi várias vezes falando sozinha, riscando sinais na terra, enigmática. Tentei saber o que tinha em mente, mas é claro que se fechou e se negou a me dar qualquer informação. Agora percebo claramente que seu plano era me desmoralizar, contabilizar as minhas aventuras e fazer-se vítima diante de todos. Tento ficar calmo, não posso me deixar levar pela irritação. Ainda temos uma jornada de revelações pela frente. Hera realmente acreditava da fidelidade. Desistia de tentar convencê-la de que não existe nenhum sentimento envolvido em minhas conquistas. A sedução é a arte que exercito com maior prazer – e competência. E Hera, principalmente, não percebe - ou se recusa a perceber - que, cada vez, que me entrego à chama do desejo, tenho a sensação do que sou capaz de amar, que existo. Seria tão mais fácil se minha esposa me compreendesse e parasse de uma vez por todas de me atormentar por causa disso. Cai um pesado silêncio. Minha divina esposa tem o poder de provocar um mal-estar
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O sofrido nascimento de Apolo e Ártemis
coletivo. Sustenta o olhar fixamente em mim, mais uma vez, expõe sua hostilidade. – Para me purificar das nódoas do passado, preciso falar de Leto, aquela imortal da raça dos Titãs. Leto enrubesce e levanta-se, num sobressalto. – Quando fiquei sabendo que você estava tendo uma aventura com meu marido, eu sofri muito.Logo depois, recebi a notícia que estava grávida. Fiquei furiosa. Desejei com todas as forças que você morresse, sumisse, desaparecesse. Infelizmente isso seria impossível porque os deuses são eternos. Mas pelo menos podia me vingar e fazê-la sofrer bastante. Apolo se encaminha até onde está Leto e a incentiva a narrar sua história. Eu a chamo para se colocar diante de Hera e ela se encaminha lentamente em direção ao trono real. Quase num sussurro, diz: – Hera proibiu a Terra de me acolher quando estava próximo o momento de dar a luz. Percorri o mundo inteiro em busca de um chão para me apoiar e poder conceber meus filhos Apolo e Ártemis… Apolo segura carinhosamente sua mão. Ártemis se junta ao irmão e à mãe. – A dor do parto se tornava cada vez mais forte. As contrações não me deixavam respirar e, já quase sem forças, recebi o apoio de Poseidon, a quem sou imensamente grata pela coragem de me ajudar, apesar das ordens de Hera. Foi ele quem me mostrou como chegar a Ortígia, uma ilha estéril e flutuante no mar Egeu, portanto, fora do alcance da vingança de Hera. Ainda assim, foi difícil convencer Ortígia a me abrigar, porque ela tinha muito medo de ser punida. Ortígia, na verdade seria minha irmã Astéria, que se havia transformado naquela ilha para fugir do assédio de Zeus. Leto respira fundo para encontrar a coragem de relatar experiências antigas de que eu nem me lembrava mais. – Foi isso mesmo que aconteceu. Não contente em me conquistar, Zeus também cobiçou Astéria. Ela era uma jovem que levava uma vida sossegada nas montanhas, entre pastores e camponeses, até ter a infelicidade de ser desejada por deus dos deuses. Animada por finalmente conseguir falar o que há tempos guardava só para si, Leto continua: – Condenada sem culpa pelo incontido desejo de Zeus, que jamais assuma a responsabilidades de seus atos impulsivos, fui atirada à própria sorte logo que começou a se sentir ameaçado com a visão de meu ventre, já denunciava a indesejada gravidez. Ainda que acolhida por Ortígia, sentindo próximo o momento do parto, não conseguia ter meus filhos. Abracei-me a uma palmeira, único amparo existente para meu corpo exausto. Impotente, assisti nove amanheceres e nove entardeceres, enquanto as crianças agitavam dentro de mim. Pronto: já me colocaram novamente no centro das atenções! Hermes expôs abertamente seus argumentos nesta assembléia e nem por isso ouvi alguém classificá-lo de libertino. E eu, que deveria ser respeitado e reverenciado incondicionalmente por todos, só escuto recriminações.
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Ando numa fase muito condescendente, embora isso não signifique que eu tenha que ser tolerante quando me colocaram no alvo preferido por tantos ressentimentos. – A questão é essa mesmo e ponto final: quem quiser entenda – ouso dizer – Eu apenas obedeço meus instintos. Depois, deixo tudo por conta do Destino, que sabe melhor do que eu qual o rumo dos acontecimentos. Isso não significa absolutamente que eu não tenha sentimentos. Hera contesta com veemência: – Não me arrependi em momento algum de haver retido no Olimpo minha filha Ilítia, a deusa dos partos, o imposto a Leto um sofrimento desmedido, até mesmo para uma imortal. Que o castigo servisse de exemplo a todas outras que ousassem cruzar o meu caminho. Não me envergonho de defender o que é meu caminho. Faço questão de frisar: eu sou a única esposa de Zeus – e mais ninguém! Para manter minha posição de legítima esposa, eu não me importo de ir às últimas conseqüências. Se não for por Atena, a minha vingança teria sido completa e seus filhos jamais conheciam o Olimpo. E eu não teria que passar pelo constrangimento de tê-los aqui à minha frente. Atena se inquieta e, com um gesto súbito, pede licença para falar: – Eu e todas as deusas ficamos comovidas com a dor de Leto. A princípio fingimos não dar importância ao fato e evitamos tomar qualquer partido, até que a situação chegou a um ponto insustentável. – Fui a primeira a me revoltar com a situação – lembra Deméter. – Sou mãe e senti na própria carne a sua dolorosa agonia. – Ora, ninguém precisava ter passado pela experiência de gerar um filho para perceber o quando Leto estava sofrendo – ruge Atena. – Até eu fiquei aflita com seus gemidos. Só que não sabíamos como ajudá-la. De repente, surgiu uma hipótese criativa: e se nós oferecêssemos a Hera um presente que ela gostasse muito? Talvez em troca ela aceitasse liberar Ilítia, para que os filhos de Leto pudessem nascer. Fui até a oficina de Hefesto e pedi-lhe que usasse toda a sua capacidade artística para criar um presente tão belo que fosse capaz de abrandar o coração de Hera. Uma vez mais, nosso engenhoso artesão não nos decepcionou. Hefesto faz um sinal positivo com a mão satisfeito. Olho para Hera, que dá um pulo do trono e, nervosa,coloca-se de pé. Ensaia uma resposta, mas eu ordeno que se cale para que Atena prossiga. Minha esposa fica com raiva de mim, engole em seco e volta ao seu lugar. – Em seguida fui falar com Íris, a mensageira das deusas, para que levasse a Hera o irrecusável presente: um reluzente colar de fios de ouro entrelaçados com âmbar, medindo mais de três metros de comprimento. Seria ingênuo acreditar que o presente conseguiria fazê-la esquecer ou perdoar a amante de seu marido. Estávamos certas de que não tinha a mínima intenção de desistir da perseguição a Leto. O que pretendíamos naquele momento era apenas fazer com que Hera aceitasse o presente e liberasse a deusa dos partos.
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– Caí numa armadilha... balbucia Hera. – Como fui tola... – Ela ficou tão entusiasmada com a beleza do colar, que nem se deu conta de que, com o simples gesto de aceitasse o presente, ela ligou emocionalmente a Leto e liberou Ilítia, que pôde enfim descruzar as pernas e, assim, desbloquear o canal do nascimento. Primeiro nasceu Ártemis, que logo se prontificou a ajudar a mãe no nascimento de seu irmão gêmeo Apolo.
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Ártemis dá um passo à frente e pede a palavra: – A visão da agonia de minha mãe foi tão marcante, que jurei a mim mesma jamais ser tocada por Eros. Eu sou Ártemis, a deusa virgem. Sou a deusa da natureza e do mundo selvagem, a caçadora, a sempre jovem, que se anima na dança e na música. – Nós te saudamos, Ártemis, a deusa virgem, filha de Zeus e da titânide Leto! – exclamou todos ao mesmo tempo. – O trauma deve ter sido muito forte, mesmo... – observa Afrotide. – Permanecer virgem por toda a eternidade! – Foi um pedido muito estranho, esse que me fez – digo. – Sempre fui contra sua decisão de renunciar à melhor invenção de Eros, o mais sublime dos prazeres, mas você foi irredutível. Desde criança já mostrava caráter determinado. – Pai, eu apenas lhe pedi para ser independente, fazer minhas próprias escolhas. Isso significa correr pelos campos, livre da escravidão masculina, dona de meu próprio corpo, imune ao amor. Saiba que jamais pretendi renunciar os prazeres da vida, tenho-os de sobra. Ser a deusa da natureza selvagem é para mim o bem supremo, o sentido da minha existência. Observo Ártemis, com sua veste curta que deixa à mostra suas pernas jovens e bem
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Ártemis, a deusa da natureza selvagem
torneadas, e vejo nela a mesma criança que um dia Letos trouxe para me conhecer. Minha posição de deus supremo e absoluto não me permite melosas demonstrações de carinho paternal, no entanto, quando vi aquela menina de olhos espertos em meu colo, fiquei tão encantado que quis lhe mostrar minha generosidade. Perguntei o que ela queria ganhar de mim. Com sua voz infantil, mas já com a segurança de uma grande deusa, ela começou a enumerar: um conjunto de arco e flecha, cães de caça... Depois, parou uns instantes com a fisionomia pensativa e não pude conter o riso quando ela continuou: “Quero também uma túnica curta para não atrapalhar meus movimentos, da cor do açafrão e contornado com uma barra vermelha. E mais sessenta ninfas do mar, filhas do Oceano, todas com nove anos de idade, para fazerem parte de meu cortejo e companhia em minhas brincadeiras.” Quando pensei que já tinha esgotado toda a sua criativa lista de presentes, ela ainda me pediu todas as montanhas do mundo e também uma cidade. Achei seus pedidos tão interessantes, que não lhe neguei nada. E ainda fui mais além: em vez de apenas uma cidade, dei-lhe trinta! De todas elas, Esparta é a sua preferida. – Faz tempo que você não participa de nossas reuniões festivas aqui no Olimpo – observa Hermes. – Está cada vez mais longe do nosso convívio. – Eu tenho o que quero, não preciso de mais nada. Gosto de viver a minha vida em completa liberdade, junto à natureza. Prefiro me isolar em lugares selvagens, longe dos deuses e dos homens. Admiro a juventude de Ártemis, a energia que transmite seu corpo flexível e vigoroso... Tão diferente da rigidez sisuda de Hera! – O Olimpo é pequeno demais para mim, com suas regras e hierarquias. Preciso de espaços abertos, preciso de movimento. – Temos a mesma natureza – vibra Hermes – E somos tão incompreendidos... – Como a deusa da caça, sou, ao mesmo tempo, a protetora das feras selvagens e cuido para que a vida animal não seja tão destruída, que o caçador não se bestialize na crueldade da perseguição predatória. Lanço minhas flechas certeiras quando reconheço a necessidade de se matar o animal para garantir a sobrevivência dos que caçam. No entanto, castigo sem piedade os que ousam maltratar as fêmeas prenhes e os filhotes. Os olhos de Ártemis brilham de orgulho. – A liberdade é meu maior trunfo e faço qualquer coisa para preservá-la. Quando escolhi o belo cervo selvagem como o meu animal preferido, estava me espelhando na imagem daquele que, como eu, recusa qualquer tipo de domesticação. Não tolero sequer a idéia da submissão, muito menos o controle masculino. Atena sorri, solidária com as idéias de liberdade da irmã. – Eu me vejo em todas as mulheres que, como eu, escolheram não se deixar aprisionar dentro dos estreitos limites de uma rotina doméstica, de cuidados com marido e filhos. Esse é o verdadeiro sentido de minha virgindade e por isso sou implacável quando exijo que as ninfas do meu cortejo se mantenham em absoluta castidade. Afrodite, sempre atenta às questões do coração, nunca se conformou com a recusa de
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Ártemis de se entregar às artes da sedução. – Você insiste em fugir do amor. Afirma, com arrogância, que se sente completa sem um homem, que a única união que admite é com a natureza e que preferes a companhia das ninfas e dos animais selvagens. Mas vejo que sua tão alardeada virgindade e seu espírito independente e não lhe fazem tanto bem quando você imagina! O amor acalma, suaviza, minha querida. Como esse é um sentimento que você sempre desprezou, acabou se tornando cruel e vingativa. Você está sempre pronta a punir com a morte os consagrados ao seu culto que se atrevam a transgredir sua severa lei da castidade. Coitada da Calisto, aquela bela virgem que fazia parte de seu cortejo... É inevitável. Quando Hera ouve o nome de Calisto, me fuzila com um olhar frio de desaprovação, pronta a ferir novamente meus ouvidos com seus insuportáveis lamentos. Novamente tomo a palavra com certo prazer, quase uma provocação. – Na tarde em que eu passeava distraidamente meu olhar pelas ninfas que fazem parte do cortejo que acompanha Ártemis, eu não me detive especialmente em nenhuma. Até que, de repente, senti-me atraído pelo belíssimo corpo de uma delas: Calisto. – De repente... para você tudo acontece de repente – esbraveja Hera. – É um inocente que não faz nada, apenas “passeia” o seu olhar. Ora, não me venha mais uma vez com suas desculpas abomináveis! – Vocês hão de convir que a vida aqui no Olimpo é por vezes insuportavelmente tediosa. Com um pouco de sorte, podemos arranjar algo com que nos entretermos. Assim, tive tempo de sobra para arquitetar um plano para me aproximar da jovem, mesmo sabendo que ela devia total obediência às rígidas ordens de Ártemis. Na verdade eu tinha pressa para realizar o meu desejo. Sabia que Ártemis costuma alertar suas virgens contra os deuses e os homens e não consegui pensar numa estratégia melhor daquele momento do que assumir as feições da própria deusa. Foi a maneira que encontrei para me sentir protegido, confortável o suficiente para chegar perto da bela Calisto. Assim poderíamos trocar muitos beijos e carícias, sem despertar nenhuma desconfiança. O meu grande problema sempre foi a pressa. É um detalhe que abrevia o meu gosto pela aventura. – Tempos depois – prossigo – eu soube que Calisto, já visivelmente grávida, se banhava numa fonte com suas companheiras, quando foi descoberta por Ártemis. – Fiquei furiosa em saber que uma das jovens do meu cortejo havia violado o voto de castidade! – reclama Ártemis. – E então a transformou numa ursa – digo. – Devo esclarecer que a única responsabilidade que tive nesse episódio foi meu incontido desejo. Todos os que me acusam de ter permitido a cruel condenação de Ártemis por medo do ciúme de Hera não sabem o que estão dizendo. A verdade é bem outra. Quando percebi que Ártemis estava prestes a incitar seus ferozes cães contra o belo animal selvagem em que Calisto se havia transformado, imediatamente tentei salvá-la. E o privilégio que depois concedi à jovem foi bem maior que toda e qualquer recompensa: transformei-a na constelação da Ursa Maior e a criança que trazia no ventre, na constelação da Ursa Menor.
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Terminada a minha versão dos fatos, Ártemis retoma a palavra para responde ao desafio de Afrodite: – Antes de mais nada, devo lembrar que não fujo de nenhuma provocação e, se estamos hoje aqui reunidos, é justamente para purificar nossas mentes e corações de todas as amarguras. Quero que todos saibam que não sou imune ao amor, como afirma Afrodite. Se hoje o nosso compromisso é com a verdade, ouso confessar algo que até agora neguei com veemência: sim, é verdade, eu me apaixonei por Órion. – Justamente a deusa que fez votos com eterna virgindade, que revelação! – comenta Afrodite, claramente surpresa. – Talvez tenha sido sua bela figura, de porte atlético, com aqueles braços musculosos. Ou talvez porque acreditei finalmente ter encontrado uma alma gêmea na figura de um caçador, como eu. Tudo aconteceu muito rapidamente. No instante em que o vi caçando nas montanhas, senti meu coração disparar e fiquei desconcertada com aquela estranha sensação. É preciso que entendam que meu amor é construído no companheirismo e na amizade e foi exatamente o que aconteceu entre nós. Ártemis joga o cabelo para trás, num insólito gesto de sensualidade. – Órion era meu irmão de alma. Passávamos dias e dias ao ar livre, em alegres
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Ártemis confessa seu amor por Órion
conversas, enquanto percorríamos bosques e florestas em busca de animais selvagens. Ao cair da noite, enquanto preparávamos uma fogueira para nos aquecer, falávamos de alegria de viver em permanentes aventuras. Apesar de apaixonada, mantive a minha castidade e confesso que estava a um passo de experimentar o amor que Afrodite proclama aos quatro ventos com tanto entusiasmo. – Sem dúvida uma grata surpresa! – exulta Afrodite. – Então quer dizer que nem tudo está perdido... – Acontece que meu irmão estava atento. Não sei dizer se felizmente ou não, mas fui impedida pelo acesso de ciúme de Apolo, que chegou justo a tempo de evitar nossa união. – Pena que o Destino tenha batido na porta errada. Eu até que gostaria de ter conhecido esse tal de Órion. Poderíamos ter vivido um belo romance – resmunga Afrodite. – Você se sente mesmo a tal, só porque é a deusa do amor. Nem passa pela sua cabeça a hipótese de algum dia não ser correspondida em seu frenesi erótico. Definitivamente, não somos movidas pelas mesmas motivações. Aliás, é bom que você saiba que Órion era tão belo, que por onde passava ia deixando atrás de si um rastro de apaixonadas. Mesmo assim, só tinha olhos para mim. – Pare com tantos rodeios – diz Hermes. – Nenhum de nós aqui parece saber o que realmente aconteceu nesse seu encontro com Órion. Por que tanto mistério? Como não houve testemunhas, ninguém sabe o que realmente se passou e cada um se acha no direito de contar os fatos à sua maneira. – É claro que muitas vezes o que mais nos importa não é a veracidade dos acontecimentos, mas o que se imagina que eles foram... – comenta Poseidon, quebrando o seu silêncio. – E já que Ártemis é declaradamente uma deusa virgem... – insinua Afrodite. – Chega! – ordeno – Não podemos perder tempo com discussões sem importância. – Pois bem, – prossegue Ártemis – deixe-me começar do início. Órion tinha um porte tão descomunal que alguns poetas chegaram a afirma que era filho de Gaia, já que ela é mãe de tantos gigantes. Outroz diziam que era filho de Poseidon, deus do mar, de quem teria herdado o poder de caminhar sobre as águas. Sua primeira esposa foi Side, que acreditava ser a mais bela de todas as jovens mortais e teve a infelicidade de se julgar ainda mais bela que qualquer deusa. – Uma atrevida! – reage Hera. – Tão logo esse atrevimento chegou aos meus ouvidos, resolvi encerrar de uma vez a questão e a lancei do alto d um rochedo para que caísse diretamente no Tártaro. – Órion ficou tão abalado com o triste fim de sua amada, que por um bom tempo andou perambulando pela Terra, sem rumo – continua Ártemis. – Até que ele foi parara numa bela ilha chamada Quíos, onde avistou a princesa Mérope sentada à beira de um rio. – Deixe-me adivinhar: um simples olhar entre os dois foi suficiente para
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despertar a paixão em seus corações. Estou certa? – pergunta Afrodite. – Sim, você está certa. Acontece que o rei o havia encarregado de liberar a ilha, que estava sendo devastada por animais ferozes. Ele não gostou nada de saber que os dois haviam se apaixonado e fez tudo para impedir a sua união. Ouvi dizer que orei embriagou Órion e, quando se certificou de que ele estava mergulhado num sono profundo, pegou uma espada e vazou-lhe os olhos. Cego e desorientado, Órion chegou à forja de Hefesto, onde pediu ajuda ao ferreiro Cedálion. Colocou-o, então, sobre os ombros e pediu que lhe virasse o rosto em direção ao sol nascente. E foi assim que ele conseguiu recuperar a visão. – Passou por tanto sofrimento, merecia um final feliz! – exclama Hermes. – Existem tantas versões para o episódio quantas espécies de flores existem na natureza – observa Atena. – E vocês contam esses detalhes como se tivessem certeza do que dizem! – acrescenta Ártemis. – Esperei um bom tempo calada e agora o peço que me ouçam. Sei perfeitamente que cada um de vocês pode pensar e inventar as histórias que bem entender. Mas a verdade só eu sei. – Continue e vá direto ao que interessa – ordeno. – Na manhã do triste evento, Sol espalhava pela Terra um calor reconfortante. Apolo me convidou para passear e eu, ingenuamente, acreditei que se tratava apenas de um alegre encontro de irmãos. Não podia supor que o ciúme... – Excesso de zelo – corrige Apolo. – Nem mesmo um “excesso de zelo”, como você afirma, poderia ser um argumento aceitável para me induzir a cometer um crime contra a minha vontade. Naquele dia, Órion também resolveu aproveitar a bela manhã de sol para passear pela ilha de Delos. Por infelicidade, teve que fugir para longe da praia, com um escorpião ao seu encalce. Ártemis alisa uma prega de sua veste, como se estivesse querendo se livrar de uma nódoa invisível. – Apolo o avistou de longe e, quando ele se tornou um minúsculo ponto negro no horizonte, veio me dizer que aquele era terrível monstro marinho. Ele, então, me desafiou a exercitar minha pontaria e convenceu-me a atirar num alvo que ele tinha certeza eu não erraria: “Vamos lá, irmãzinha, mostre que você é invencível na mira!” Achei graça e aceitei a brincadeira. Logo com a primeira flechada, acertei bem na cabeça de Órion. Antes que eu pudesse me vangloriar do feito, as ondas do mar mostraram meu equívoco: trouxeram seu imenso corpo de volta à praia. Quando descobri que havia sido enganada, fiquei desesperada e supliquei aos deuses para que devolvessem a vida a Órion. Mas vocês não se importaram com a minha dor... – Não foi minha intenção lhe causar qualquer sofrimento, acredite! – desculpa-se Apolo. – Fiquei inconsolável. Não conseguia aceitar o fato de ter sido eu a responsável pelo trágico desaparecimento de Órion. Para diminuir a saudade que me doía
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Ártemis confessa seu amor por Órion
no peito, coloquei meu amado no Céu, na forma de uma bela constelação, para que pudesse admirá-lo sempre que quisesse. Mas senti que ainda era pouco, pois continuava atormentada pelo fantasma da culpa involuntária. Vocês se enganam quando pensam que eu não tenho sentimentos, que não sou capaz de sofrer. Emocionada, Ártemis olha para o alto. – Então resolvi eternizar o momento em que Órion se atirou no mar para fugir do terrível Escorpião e coloquei-os em campos opostos. Quando Órion declina no poente, junto ao mar, Escorpião se ergue no nascente. Nas noites claras, ele aparece em toda sua beleza, segurando firmemente a clava em uma das mãos e o escudo em outra. Traz a espada presa no cinturão de estrelas e, a seu lado, o inseparável cão Sírius, que tantas vezes nos acompanhou em nossas caçadas. Para homenagear sua fidelidade e companheirismo, transformei Síruis na estrala mais brilhante de todo o céu. Só assim tive paz.
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Ártemis enlaça os ombros de Leto, e diz: – Espero que agora vocês entendam as minhas razões. O sofrimento não poupa ninguém, nem no Céu, nem na Terra. Cada um de nós tem uma história triste para conta. As marcas que carregamos deixam rastros indeléveis. Leto beija o rosto da filha. – Estou aqui para dizer que, apesar de tudo o que passei, tenho a sorte de ter filhos que me defendem e protegem, mesmo que por vezes exagerem em seus cuidados. – Ela certamente quer se referir a Níobe, a filha de Tântalo – comenta Hermes. – Níobe! Aquela infeliz ousou me humilhar – reage Leto – Ela poderia ter vivido longos anos ao lado de seu esposo Anfíon, rei de Tebas. Dizia ser a mulher mais feliz do mundo. Era a rainha, seus pedidos eram ordens que todos respeitavam. Gabava-se do amor que sentia por seus filhos: sete rapazes e sete moças. Arrogante, desafiou os imortais e teve a ousadia de exigir que o povo de Tebas dirigisse a ela as honrarias e os incensos que queimavam para mim, em meu templo! – O que ela queria era convencer a todos que era superior à minha mãe só porque havia gerado quatorze filhos – apóia Ártemis. – Sua velha ama bem que a alertou sobre o perigo que ela corria, mas a
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Leto impõe a Níobe um merecido castigo
insensata respondeu: “Como pode Leto, que só teve dois filhos, ser melhor do que eu?” E exibia seus filhos, toda orgulhosa: “Vejam como são belos e fortes! Não existem atletas mais perfeitos, nem meninas mais belas – na Terra ou no Olimpo.” – Presunçosa! – exclama Afrodite. – E os mortais ainda acham que nós é que somos injustos com eles. – Níobe pensou que tais palavras ficariam impunes. Contei para os meus filhos, que exigiram uma desforra imediata. Só que eu tinha outros planos. Enviei uma ordem a todas as mães de Tebas: elas deveriam oferecer um sacrifício em minha honra. Aquelas que não me atendessem seriam punidas à altura desfeita. Todas então se apressaram em me obedecer, com exceção de Níobe, que permaneceu em seu palácio. Mais uma vez alertada sobre a punição, ela deu de ombros e respondeu que não tinha medo de minhas ameaças. Afinal, era a esposa do rei... – Ficamos enfurecidos! – intervém Apolo. – Meu irmão e eu estaremos sempre ao seu lado e jamais permitiremos que nenhum deus ou mortal a ofenda – acrescenta Ártemis, com um gesto de carinho. – Com a aljava cheia de flechas mortíferas, partimos para Teba – conta Apolo. – Lá chegando, vimos que todos os jovens da cidade estavam reunidos num estádio fora dos muros da acrópole, ocupados com uma competição atlética. Fiquei escondido atrás das nuvens e logo reconheci os sete filhos homens de Níobe em meio aos outros rapazes. Separei sete flechas e calmamente fiz pontaria. A primeira flecha cortou os ares com um zumbido e, silenciosamente, sem m gemido sequer, um dos atletas caiu fulminado no chão. Toda a cena aconteceu muito rapidamente, não lhes dei tempo de esboçar reação alguma. Instantes depois, todos os filhos daquela infeliz jaziam sem vida, sob o olhar aterrorizado de seus companheiros. Como sempre fazia na época das competições, o rei Anfíon foi para a porta do palácio esperar pelos competidores e saudar os vencedores.Em lugar de gritos de alegria e entusiasmo, o que se ouviu foram gritos de dor. Quando o rei compreendeu a dimensão da tragédia, pegou sua espada e a cravou fundo no próprio peito. – Depois de Apolo cumprir sua parte na vingança, foi então a minha vez – diz Ártemis. – Nesse momento, apareceram Níobe e suas sete filhas, alertadas pela grande confusão que se formou. Desesperadas, abraçaram os corpos sem vida daqueles sete jovens estendidos no chão. – Mesmo enlouquecida de Dora, Níobe ainda encontrou forças para me desafiar mais uma vez – afirma Leto. – Gritou com todas as forças o meu nome e, tomada de ódio, disse que nem toda a crueldade cometida contra seus setes filhos havia conseguido torná-la menos importante do que eu, já que ainda restavam sete filhas, enquanto que eu continuava com apenas dois. – “Não seja por isso”, eu disse na mesma hora àquela pretensiosa – continua Ártemis sacudindo no ar o seu arco. – Alinhei minhas sete flechas com cuidado e a primeira chegou rapidamente ao seu destino. Sem dificuldade, mirei o coração das
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belas jovens, condenadas a morrer tão cedo graças à imprudência da mãe. Quando a sexta moça caiu por terra, Níobe suplicou com Clóris, a mais nova e mais querida das meninas, fosse poupada. – Ele se disse arrependida pelos insultos e implorou o meu perdão – acrescenta Leto, com indiferença. – Alucinada de dor, seu corpo todo se contorcia e os olhos reviravam em meio a uma torrente de lágrimas. Sem o marido e sem os filhos a quem tanto amava, sua vida já não valia mais nada. A cena era de cortar o coração de qualquer um, mas me mantive firme. Confesso até que senti prazer em ver Níobe se humilhar daquela forma diante de mim, totalmente destruída. – Você não precisava ter sido tão cruel assim, Ártemis! – repreende Deméter. – Níobe foi desrespeitosa, concordo. Mas não a ponto de merecer uma punição tão implacável. – A última flecha partiu certeira em direção ao peito de Clóris, que caiu fulminada – continua ela. – Chega! – pede Deméter. – Não agüento mais ouvir. – Calma, que o castigo ainda não terminou – prossegue Leto. – Eu não acho que tenha exagerado. Afinal, que mãe não faria tudo para proteger seus filhos? – Quer dizer que ainda tem mais? – pergunta Deméter, tapando os ouvidos com as mãos. – Não seja ridícula! – protesta Hera. – Deixe-me acabar o relato. Concluída a primeira parte da vingança, enviei uma mensageira à Terra para avisar aos mortais que era proibido sepultar os filhos de Níobe. Que servissem de pasto aos abutres! Foi o golpe de misericórdia. A infeliz não pôde mais suportar tanto sofrimento e foi chorar sua amargura no monte Sípilo. Vocês tiveram pena dela, me acusaram de crueldade e confesso que num determinado momento, até que senti uma ponta de remorso. Foi por isso que não protestei quando resolveram transformá-la em um rochedo para que nunca deixasse de derramar suas lágrimas. Leto pega um cálice e molha os lábios com néctar. Volta para o seu lugar e se cala. Hera a acompanha com um olhar cortante. Como eu havia previsto, o dia tem tudo para ser longo e cansativo. – Apolo – digo – pegue sua lira e toque algo para nós. Mnemósine, escolha a melodia. Os deuses imediatamente tomam seus lugares na mesa do banquete e enchem suas taças. As conversas recomeçam e os risos acalmavam o ambiente. Os deuses se divertem, como sempre. Diante da perspectiva de eternidade, todos os fatos se tornam ridiculamente banais.
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De longe, admiro a beleza de Apolo, enquanto ele nos brinda com sua divina melodia. Apolo é a representação da beleza em seu estado puro – beleza da juventude, da arte, da música ou da poesia. Os artistas que perseguiam a forma perfeita encontravam em seus traços bem delineados a imagem ideal. Mas como eles poderiam reproduzir uma perfeição intangível, muito além do alcance de seus olhos? Foram várias as tentativas. Algumas vezes, o recurso era escolher os mais belos entre os jovens. Depois de colocá-los lado a lado, selecionavam o que cada um possuía de mais harmonioso: cabeça, olhos, nariz, lábios, mãos, pés, torso. Todos os detalhes eram cuidadosamente reunidos num só corpo. E assim, os artistas esculpiam no mármore o que julgavam mais se aproximar da perfeição divina na forma humana. Apolo observava e sorria, satisfeito com tanto empenho, embora soubesse que mesmo a mais caprichada de todas as obrasde-arte não conseguiria sequer chegar perto de sua verdadeira figura. O som da lira de Apolo me remete a um tempo distante. Lembro que, na manhã de seu nascimento, Sol entrou em meus aposentos com uma intensidade diferente. Pressenti que algo de muito bom havia acontecido e logo vieram me contar sobre o nascimento de meus filhos gêmeos, Ártemis e Apolo, na feia e estéril ilha de Ortígia. Fiquei feliz, mas não me atrevi a ir conhecê-los pessoalmente porque estava sem paciência de enfrentar as cenas patéticas que Hera certamente aprontaria.
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Apolo, o triunfo da luz sobre as trevas
Depois de surgir das sofridas entranhas de Leto, ao invés de leito materno, o pequeno deus recebeu de Têmis néctar e ambrosia. Mal o alimento dos deuses tocou os lábios do menino, ele foi tomado por tamanho vigor, quede um salto desatou as mantas nas quais Leto o havia enrolado e de imediato começou a manifestas todo o seu poder divino.Sem demora, transformou Ortígia na brilhante ilha de Delos. Uma luz dourada resplandeceu durante todo o dia e por todos os lados podia-se sentir o doce perfume das flores. Do solo, antes estéril, brotou uma exuberante vegetação. Cisnes começaram a circular em volta da ilha, enquanto entoavam hinos de louvor ao recém-nascido. Do alto do Olimpo, ordenei que levassem Apolo para Delfos. Ao invés disso, ele foi conduzido ao misterioso país dos Hiperbóreos, antes da chegada das sombras da noite e dos rigores do inverno, Lá, num recanto paradisíaco, onde o céu é de um azul eternamente límpido, Apolo permaneceu durante um ano até o retorno da primavera. Desde então nunca mais deixou de cumprir seu retiro anual nesta terra abençoada pela luz de onde retorna, a cada ano, a tempo de presidir as festas em sua honra, que mercam o retorno do verão. Quando Apolo veio me conhecer, eu quis oferecer algo à altura do filho do deus dos deuses. “Quero um conjunto de arco e flechas”, pediu ele. Chamei Hefesto e disse-lhe que interrompesse todos os trabalhos que estava fazendo em sua oficina para criara o presente de Apolo. Meu filho aprendeu tão rápido o manejo do arco, que logo se tronou também o deus arqueiro, de mira infalível. Apolo sente que o observo. Aproveito o momento de silêncio em que todos pararam para ouvir sua música, levanta-se e avança confiante na minha direção. – Sou Apolo, o deus Sol! Não há quem não me conheça: eu me apresento claramente diante de todos. Sou o deus que ilumina o mundo. Com a luz que emana de meus raios, posso prever o futuro e revelá-lo aos mortais e imortais. – Salve Apolo, soberano da Luz, filho de Zeus e Leto! Mimado! – Sou o deus do Sol, da Arte, da Música e da Medicina. O senhor das horas douradas do dia, da luz que triunfa sobre as trevas e as forças maléficas. A claridade que emana de meu ser aquece e fertiliza a terra, para que os brotos germinem a colheita seja farta. Meus raios dourados afugentam a obscuridade mais sombria e iluminam as mentes, para que todas as coisas se tornem claras e visíveis. Sou o brilho da inspiração que os artistas buscam para exercer suas artes. A luz da profecia que faz enxergar longe desvenda os mistérios e aponta o caminho a seguir. É a minha luz que guia os navegantes e não deixa que se percam em mares nebulosos. Depois de seu retiro purificador no país dos Hiperbóreos, o futuro deus Sol chegou a Delfos em meio a grandes celebrações. Por toda a parte, o povo cantava e dançava para saudar a chegada da divindade. Até a natureza participou da festa: bandos de aves se aproximaram para admirálo, cantavam as águas dos rios, fontes, lagos. E as árvores se enfeitaram de flores para recebê-lo. Mal alcançou o monte Parnaso, Apolo tomo o rumo de Delfos. Tinha um único objetivo: enfrentar Píton, a medonha serpente nascida do lado da terra. – Antes de qualquer coisa, eu precisava me vingar da serpente que, por ordem
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de Hera, atormentou minha mãe Leto enquanto ela ainda estava grávida. Aquele réptil medonho morava numa caverna e só saía de seu esconderijo para assolar a região, matando quantos pastores e rebanhos encontrasse pela frente. Eliminar o monstro era uma aventura arriscada e eu sabia que nada podia fazer para ajudá-lo. – Eliminas Píton foi a primeira grande prova de minha vida, não podia falhar. Eu me aproximei de seu esconderijo, oculto pela espessa vegetação. Em uma das mãos levava o arco e, na outra, uma tocha acesa para iluminar o alvo. Para que o animal saísse do covil, lancei para dentro uma seta de fogo. Tonta pela súbita fumaça negra que impedia sua visão e não a deixava respirar, a medonha criatura finalmente apareceu. Fiz pontaria, retesei o arco e lancei das flechas pontiagudas, que cortam o ar com um zunido sibilante. Em instantes, Píton jazia no chão, dilacerado de dor, em meio a urros colossais. O monstro demorou algum tempo se contorcendo numa mistura de lama e sangue, até exalar um pestilento suspiro final. Apolo passa a mão pela testa com uma expressão de alívio. – Para me expurgar do sangue derramado, fui para o valo do Tempo, na região da Tessália. Só depois disso é que eu pude voltar a Delfos, coroado de louros. A multidão me recebeu com festejos e honrarias, feliz por finalmente ter-se livrado do temível flagelo. A ocasião merecia uma comemoração à altura. Por isso eu instituí, em honra a Píton, os Jogos Píticos, celebrados a cada quatro anos em Delfos. Os Jogos tinham uma dupla intenção: primeiro, perpetuar a lembrança da extraordinária vitória de Apolo: segundo, aplacar a cólera do monstro depois de morto. Muitas vezes eu e outros deuses descíamos à Terra para presenciar as provas físicas e os concursos de poesia e música. Quando um atleta ou artista chamava nossa atenção ou simplesmente caía no nosso agrado, sabíamos vibrar como qualquer mortal. Nunca interferíamos na premiação aos vencedores, o que dava um sabor especial à disputa. No dia do encerramento, era meu filho Apolo quem pessoalmente entregava o prêmio a cada um dos vencedores, coroando-os com uma grinalda de folhas de louro. A voz de Apolo me desperta do breve devaneio: – Vocês ouviram da boca de minha mãe como o meu nascimento e o de minha irmã Ártemis foram penosos. Acredito que até mesmo um deus vem ao mundo de acordo com os desígnios das Moiras. Fui gerada para me tornar o deus da Luz, com a missão de derrotar definitivamente as antigas divindades da Terra e eliminar as trevas da ignorância e da inconsciência. Graças a mim foi possível dar início a outra era, de claridade e lucidez. – Mas que preço alto as deusas tiveram que pagar por isso! – corta Deméter. – Ora, você ainda está magoada porque, quando eliminei Píton, tomei para mim o Oráculo de Delfos, onde ergui meu santuário. – A mágoa que ainda sinto não é nada, comparada às feridas que os homens impuseram ao meu corpo.
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Apolo parece não ouvir o protesto de Deméter. Talvez porque ele não agüente mais ouvir as mesmas velhas reclamações. Nem eu mesmo as suporto. Mas só hoje consegui enxergar outra possibilidade: Apolo não gosta de ouvir a ninguém mais senão a si mesmo. A não ser que seja o seu próprio eco. – Depois, eu voltei ao lugar onde havia deixado a monstruosa serpente sem vida. Retirei cuidadosamente sua pele para cobrir a cadeira trípode de bronze, sobre a qual se sentava minha sacerdotisa e intérprete, a quem dei o nome de Pitonisa. Suas cinzas foram depois colocadas dentro de uma urna e enterradas sob o umbigo de Delfos.
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Delfos! Apolo insistia em me falar da importância de Delfos como o umbigo do mundo. Fiquei curioso. Então, eu lhe propus soltar duas águias nos dois pontos extremos do mundo. Em seguida, nos reunimos nos jardins do Olimpo a tempo de assistir ao exato momento em que as duas águias se encontraram no Céu. Para nossa alegria, especialmente de Apolo, não tínhamos mais como duvidar de que o ponto central da Terra ficava em Delfos, precisamente no lugar do oráculo. Depois daquele sinal, fizemos uma bela cerimônia para marcar devidamente o local com uma rocha e lhe demos o nome de “ônfalo”, umbigo. Não tinha mais como duvidar de que foi justamente a partir deste ponto central que o mundo foi criado e começou a se irradiar em todas as direções. – Eu nunca compreendi direito aquele êxtase louco das pitonisas na hora de fazer suas predições – interrompe Ares. – Ouvi dizer que certos vapores... – Ora, eu duvido que você se interesse em saber de algo que aconteça fora dos sangrentos campos de batalha – provoca Atena. Gaia, que havia se ausentado da cerimônia “para tratar de assuntos de interesse da Terra”, está de volta e diz: – Talvez vocês não saibam, ou não se lembrem, mas houve um tempo em que Delfos ainda me pertencia e não passava de um podre vilarejo perdido nas montanhas.
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O deus dos oráculos
Muitas cabras costumavam ir lá pastar. Pois, no chão do santuário, exatamente no centro, havia uma fresta bem estreita. Um pastor que tomava conta de seu rebanho observou intrigado que as cabras começavam a apresentar umas reações estranhas quando se aproximavam da fenda e inspiravam o vapor que emanava lá de dentro. – Rações estranhas? – pergunta o curioso Hermes. – Sim, estranhíssimas! As cabras começavam a correr, a saltitar em círculos e de suas gargantas saía um som desconhecido. O mais surpreendente é que, quando o pastor, por curiosidade, também chegava bem perto da fenda, tinha a mesma reação de seus animais. E não só isso: ainda manifestava o poder de fazer precisões sobre o futuro! Até a deusa Fama saiu voando de seu palácio de bronze para espalhar por toda a região o que acontecia quando alguém ficava sob o efeito daqueles misteriosos vapores. Em pouco tempo começaram a chegar muitos intrometidos, atraídos por todas aquelas histórias estranhas. – Esta foi uma das razões porque eu decidi colocar meu poder de adivinhação a serviço daquela gente – intervém Apolo. – Como naquele tempo não havia santuário nem sacerdotes em Delfos, eram os próprios consulentes que serviam de adivinhos uns para os outros. Eram muitos os que chegavam, ansiosos para encontrar soluções para seus conflitos pessoais. – E deixou que o lugar, antes sossegado, ficasse conhecido como milagroso – reage Gaia. – Fez de tudo para se promover como o deus da adivinhação, até ignorou que os vapores, na verdade, saíam das minhas entranhas. – Suas perigosas entranhas, por sinal. A grande fonte de inspiração, a fenda por onde saíam os vapores, logo se mostrou uma verdadeira armadilha. Algumas pessoas se aproximavam demais da abertura na rocha e, inebriadas, acabavam sendo tragas para dentro e simplesmente desapareciam. Quando percebi que passar a acreditar que delfos era também um lugar arriscado, resolvi interferir antes que todos se afastassem. Eu mesmo escolhi uma jovem e a nomeei Pitonisa, a profetisa de meu oráculo. Ser escolhida como Pitonisa era uma honra e certamente um enorme responsabilidade ser colocada a serviço de Apolo. A escolhida passava por um treinamento, supervisionado pelo próprio deus. – Não tive nenhuma dificuldade para fazê-las entrar em estado de êxtase para transmitir as minhas mensagens. Aceitaram facilmente se vestirem de branco, como verdadeiras noivas, as noivas de Apolo. Minha grande dificuldade foi fazê-las obedecer à ordem de manter a castidade. Quando uma delas engravidou de um peregrino, eu desisti. E passei a nomear como pitonisas apenas as mais velhas e, portanto, menos sedutoras. Só assim acabaram os aborrecimentos. – Os deuses são mesmo muito estranhos. Sentem ao mesmo tempo atração e repulsa pela virgindade. Por um lado, exigem a castidade e, por outro, desprezam as castas... – observa Afrodite.
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Mais uma vez Apolo ignora o comentário e continua: – Eu falava através da boca da Pitonisa. Mas dificilmente os mortais conseguiam compreender minha mensagem, decifrar meus códigos. Os peregrinos chegavam de toda a parte, em busca de previsões e conselhos. – Bons temos aqueles, em que Delfos ficava lotado na época das consultas – relembra Afrodite. – Eu mesma, várias vezes já tive vontade de conhecer o futuro de certos amores... – A princípio, as consultas só aconteciam uma vez por ano, no meu aniversário, dia sete do mês délfico de Bísio. Como o prestigio das sacerdotisas se espalhou rapidamente, a clientela aumentou muito e foi preciso estender o período das consultas para o dia sete de cada mês. Reis, generais, comandantes e políticos só tomavam suas decisões depois de consultar o oráculo. E não só os poderosos, também pessoas de todas as classes sociais iam, pelo menos uma vez na vida, a Delfos para fazer uma visita à Pitonisa e indagar o que o futuro lhes reservava. – Ocasiões especiais sempre mereceram rituais especiais. Assim foi e sempre será – sentencia Ártemis. Apólo balança afirmativamente a cabeça, em sinal de aprovação. – Antes de qualquer coisa, os consulentes tinham que pagar uma taxa, que variava de acordo com as possibilidades de cada um. Uma vez efetuado o pagamento, formavam uma fila enorme para a purificação obrigatória na fonte Castália. A seguir, levavam para junto da fonte os animais a serem sacrificados em minha honra, geralmente cabras ou bodes, onde eram aspergidos com água. O momento, de grande importância ritual, era acompanhado por um profundo silêncio. Ansiosos, os consulentes aguardavam o sinal de que podiam contar com a minha aprovação, caso o animal a ser sacrificado tremesse em contato com a água Só então, surgia a Pitonisa com sua rica vestimenta. Depois da cerimônia de sacrifício, a Pitonisa se banhava na fonte e se dirigia ao templo, para defumá-lo com farinha de cevada e folhas de loureiro. Era seguida pelos sacerdotes e por um cortejo de peregrinos ávidos por respostas que pudessem dar fim às suas angústias. – Castália era uma linda jovem que morava em Delfos – lembra Apolo, pensativo. – Certa vez eu me apaixonei por ela, sem ser correspondido – diz Apolo, pensativo. – Grande novidade... – ironiza Afrodite. – Eu me apaixono depressa demais e, na ânsia de ver meu desejo satisfeito, acabo não deixando nenhum espaço para que o ser amado se manifeste. Reconheço que isso aconteceu muitas vezes e com Castália não foi diferente. Angustiada pelo meu assédio insistente, ela preferiu se atirar numa fonte, onde encontrou a morte. Para homenageá-la, deu o nome de Castália à fonte que Consagrei ao meu culto. – E era diante dessas águas limpadas e frescas que muitos poetas vinham se inspirar – explica Hermes. – A Pitonisa descia para o recinto que ficava num plano abaixo do templo. Ele
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tocava o “ônfalo”, o umbigo do mundo ali materializado numa grande pedra. Depois, sentava-se sobre o banco de três pés e, mascando folhas de louro, respirava os vapores que chegavam até ali através de uma fenda da rocha. Estava pronta para as consultas. Ao lado, num espaço separado, ficavam os sacerdotes e os consulentes. Ao lado, num espaço separado, ficavam os sacerdotes e os consulentes. Eu respondia às perguntas através da Pitonisa, à medida que eram formuladas. Por vezes os consulentes tinham que gritar para serem ouvidos, porque ela mergulhava num transe profundo e suas palavras soavam freqüentemente ambíguas e obscuras. Alguns poucos sacerdotes a serviço do santuário, que conheciam bem minha linguagem, anotavam e depois interpretavam. – E as pessoas realmente acreditavam que a mensagem era ditada por você? – pergunta Hermes. – Claro que sim. A voz da Pitonisa, quando em estado de êxtase, ficava completamente alterada. Ninguém tinha dúvida que era a minha voz que podia ser ouvida. – Será que alguém aqui pode me responder por que os mortais insistem tanto em saber sobre o futuro? - pergunta Ares com desprezo. – Que diferença faz o futuro em uma vida ridiculamente frágil e breve? – Os deuses não gostam de confessar, mas até mesmo eles sentem vontade de saber o que o futuros lhe reserva – afirma Afrodite. – E para quê? Eu nunca acreditei em uma palavra do que dizia a profetisa. Nada disso existe mais, ainda bem... – conclui Ares. O burburinho é imediato. Evidente que não sou eu o único a me irritar com Ares. Apolo cerra os punhos, visivelmente contrariado. – Se não fossem aqueles conquistadores de povos distantes que saquearam o templo e levaram nossas estátuas, talvez eu ainda hoje estivesse reinando em Delfos. Mas eles eram muitos e vinham de toda a parte com novas idéias. Consideraram atrasadas as nossas práticas. – Destruíram tudo – emenda Ártemis. – E conseguiram apagar todos os possíveis traços de nossa presença. Tentei resistir quanto pude e fiz o que estava ao meu alcance para manter os meus santuários. Mas havia tal volúpia sanguinária em seus atos e eles se mostravam de tal forma arrebatados pela nova fé, que mesmo aqueles que antes nos reverenciavam ficaram atônitos de medo e incerteza. Todos falam ao mesmo tempo. A indignação é evidente em meio a gritos de protesto e indignação. – Outros deuses vieram nos substituir nos templos, santuários e pedestais – diz Atena. – Quando já quase nada restava em nosso templo, mandei minha última mensagem: “Vá e diga ao rei que o glorioso templo está destroçado. Apolo já não se encontra mais sob esse teto. Calaram-se as folhas de loureiro. As fontes e os arroios estão secos e sem vida.”
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– Embora banidos, éramos nós que estávamos lá, apenas com outros nomes e outras vestimentas – clama Ares com sua voz estrondosa. Têmis olha para mim e pede: – Contenha as manifestações, antes que escapem ao seu controle! – Prefiro deixar que cada um expresse seus ressentimentos. Um momento de desabafo só vai fazer bem.
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“Seu filho é tão belo, pena que seja tão rejeitado”, é assim que Hera gosta de se referir a Apolo. Pelo brilho no olhar que observo em minha esposa, estou certo que ela vai tocar justamente no ponto mais vulnerável de Apolo: seus amores, todos fracassados. Ela não demonstra nenhuma emoção com a história de Apolo. Ao perceber minha expressão de carinho solidário, murmura entre dentes, cheia de antigos ciúmes: – Todos só se lembram de Apolo, o magnífico, o ofuscante! Ele adora ficar sozinho com toda a fama e omite o fato de que ele jamais seria reverenciado como o deus dos oráculos sem a ajuda das pitonisas. Sem elas, de que maneira suas revelações chegariam aos homens? Claro, porque ainda que ela tenha se apropriado do oráculo de Delfos, ele mesmo jamais profetizou. Pois para mim, importantes eram as Sibilas. Apolo não passa de um aproveitador, um filho bastardo, isso sim! Os ânimos finalmente se acalmam e todos voltam aos seus lugares. E, como eu previa, ela aproveita para desafiar Apolo: – Você gosta de ser o centro das atenções, de falar sobre suas façanhas. Mas foge de comentar sua vida amorosa. Sabemos que seus amores foram todos malsucedidos, mesmo sendo o mais belo entre os deuses e o filho predileto de Zeus. O comentário parece pegar Apolo desprevenido.
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Apolo tão belo, tão rejeitado
– Pelo licença à deusa Mnemósine para não tecer comentários sobre a minha vida amorosa, assunto que ainda me machuca muito. – O nosso compromisso hoje é falar sobre o que nos incomoda, o que temos dificuldade – responde a Mnemósine. – Portanto, exijo que você abra o seu coração, da mesma maneira que o fizeram todos aqui presentes. Animada com o apoio, Hera dispara: – Vamos então começar com as pitonisas. Você por acaso se lembra de Sibila, a famosa adivinha? Ela deve ter sido muito importante, já que todas as pitonisas depois dela passaram a se chamar “sibilas”. Apolo se levanta, puxa nervosamente a ponta do manto que ficou presa no pé da cadeira e fala, com falsa naturalidade: – Impossível me esquecer da mais importante de todas as pitonisas que inspirei para transmitir meus oráculos. Sibila era o nome de uma jovem da cidade de Éritra, na Jônia, que já nasceu com o dom da profecia. Muitos a conheciam como Sibila de Cumas, porque foi lá que ela passou grande parte de sua vida. Ela era tão inspirada, que fazia suas predições em forma de versos. Compreendia como ninguém meus sinais e tínhamos uma perfeita sintonia. Eu me comunicava com ela através do assobio dos ventos que passavam pela fenda da gruta. Esse sibilo, e daí seu nome era traduzido para os consulentes do oráculo. Sinto pena do constrangimento a que meu filho está sendo obrigado a passar. Eu poderia interromper o diálogo, se quisesse. – Um dia, ao acaso, percebi que ela também tinha uma qualidade que eu nunca havia percebido antes. Era linda! Para conquistá-la fiz uma proposta irrecusável: ela podia me pedir o que quisesse, eu estava pronto a satisfazer qualquer desejo seu. – Tal pai, tal filho... – murmura Hera. Melhor ainda, poderia interromper o próprio banquete. Poucos instantes atrás eu permiti calmamente a livre expressão. De repente algo me deixa furioso e quero acabar com tudo. Obviamente este “algo” tem um nome: Hera. – Sibila então me pediu uma vida longa. E eu lhe disse: “Vou lhe conceder tantos anos quantos grãos de areia você conseguir juntar em suas mãos”. E assim foi feito. Infelizmente, por descuido ou esquecimento, ela não me pediu também o dom da eterna juventude. Quando percebeu o engano, suplicou para que eu não a deixasse envelhecer. Vocês sabem como sou justo em minhas ofertas, portanto não lhe neguei mais este pedido, apenas sugeri uma pequena troca: a sua virgindade. Nunca compreendi porque ela ficou irredutível em sua recusa, como se eu estivesse pedindo algo excepcional. Preferiu envelhecer a se entregar a um deus esplêndido como eu. – Tal pai, tal filho... – repete Hera. – Na medida em que passavam os anos, ela foi ficando mais e mais enrugada. Encolheu até ficar tão pequenina quanto uma passarinho. Depois, foi colocada numa espécie de gaiola e pendurada no teto do meu templo, em Cumas. As crianças
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caçoavam dela e gritavam, em algazarra: “Sibila, por que você está triste?” E ela respondia, com os olhos baixos: “Deixem-me em paz, eu só quero morrer...” Afrodite bebe um gole de néctar e limpa delicadamente com o verso da mão o líquido que lhe escorre pelo canto da boca. – Ouvindo sua narrativa, Apolo, e na condição de deusa do amor, principalmente do amor correspondido, não posso deixar de observar o quanto seus relacionamentos amorosos são parecidos. – Parecidos como? – vira-se com as sobrancelhas erguidas interrogativamente – Não sei o que você quer dizer... –... Ora, você foi rejeitado por Dafne, Castália, Sibila, Cassandra... Não lhe parece estranho? Apolo tem um súbito acesso de tosse. – Cassandra, a princesa troiana... – lembra Hermes. – Outra profetisa inspirada, tal como a Sibila. – O maior sonho de Cassandra era dominar a arte da adivinhação – responde Apolo, aparentemente refeito. – Então eu lhe fiz uma proposta muito justa: em troca de meus ensinamentos, ela deveria ceder aos meus desejos. – Mais do que justa! E ela, concordou? – pergunta Afrodite, para quem todas as histórias de amor são empolgantes. – Sim. Ela concordou com a minha proposta e eu, naturalmente, fiquei ainda mais animado ao imaginá-la em meus braços, trocando ardentes carícias. Tolice a minha. Assim que recebeu o dom de profetizar, Cassandra se recusou a cumprir o que havíamos combinado. Fiquei possesso de raiva. Minha vontade era retirar-lhe imediatamente o dom, mas infelizmente não poderia mais voltar atrás. Então eu lhe dei um castigo bem merecido: cuspi na boca da mentirosa! Que ela continuasse a fazer suas previsões à vontade: ninguém mais acreditaria em suas palavras! Apolo faz uma pausa. Depois, revela com um tom de tristeza: – Sei perfeitamente que sou muito infeliz em minhas investidas amorosas. Não consigo estabelecer nenhum vínculo duradouro e nunca pude compreender porque sou tão rejeitado. Afrodite sacode o cabelo e sorri com ironia: – Permita-me responder à sua pergunta. Ser o filhinho predileto de Zeus é bem mais difícil do que parece. Mais do que qualquer outro filho, você sempre foi muito mimado e coberto de atenções e carinho. Hera concorda veementemente com a beça. Nunca pensei que um dia fosse vê-la apoiar Afrodite. – Por isso nunca aprendeu a lidar direito com suas frustrações – continua Afrodite. – Sei que não vai gostar de ouvir o que tenho a lhe dizer, mas a verdade é que você, por mais que se esforce, nunca vai conseguir chegar ao poder de Zeus. Jamais terá o mesmo magnetismo que ele tem. O seu problema é que você busca
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Apolo tão belo, tão rejeitado
todo o tempo a aprovação de seu pai. Falta-lhe profundidade, entrega! Você vive perseguido deusas e mortais, faz juras de amor eterno, mas o único a quem você ama é a si mesmo. E mal consegue ser uma cópia ridícula e desbotada de seu p... Interrompo Afrodite com um gesto enérgico, porque sinto que a conversa se encaminha por um caminho perigoso. Conheço meu filho e sei quando ele se controla para não explodir. Seu rosto fica imediatamente tomado por um rubor intenso e os olhos começam a brilhar como duas faíscas lançando dardos. Provocado, tenta ser igualmente irônico e responde: – Bela Afrodite, a mais bela entre as deusas! Aquela que adora espalhar pelos quatro ventos que é livre e ama quem lhe agrada. Mas o que ela não revela a ninguém é que, apesar de entregar a paizões fulminantes e de conhecer mais do que qualquer outra as artes da sedução, à noite, na solidão de seus aposentos, ainda sonha com o verdadeiro amor. As palavras de Apolo provocam na bela deusa um visível mal-estar. Sente-se como que desnudada diante de todos. Rapidamente, volta as costas para Apolo, ajeita mais uma vez o cabelo e encerra ali o assunto.
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Preciso chamar Apolo para uma conversa particular. Tenho que contar-lhe certos segredos de conquista, ensinar-lhe umas armadilhas infalíveis. Afrodite tem razão, ele é meu filho, mas lamentavelmente não herdou o meu magnetismo, o meu poder de sedução. – Afrodite pode ter desistido, mas eu não – insiste Hera, maldosamente. – Voltemos à questão e que tal nos contar sobre o seu caso com Dafne? – Sem problemas. O que você quer saber realmente? – Não tente desconversar, deus da Luz. Esclareça-nos o que de fato aconteceu – provoca Hera novamente. – Se você quer saber, não ligo a mínima para suas aventuras amorosas. Apenas faço o papel de guardiã de verdade... – Guardiã de verdade, essa não... – ri Atena. Apolo faz sinal para que se calem. – Pois bem, uma tarde encontrei Eros, o deus do Amor, que carregava sobre o ombro uma aljava cheia de flechas. Achei graça da cena e lhe disse: “Você, Eros, não passa de uma criança. Não deve ficar por aí brincando com armas perigosas. Deixe as flechas para mim, senhor do arco, único que sabe manejá-la com perfeição. Jamais errei um alvo e minha pontaria é infalível.” – Apolo, sempre infalível... – caçoa Ares.
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A metamorfose de Dafne
– Se Eros estivesse aqui poderia das a sua versão dos fatos – reage Afrodite. – Realmente, mas ele anda muito ocupado na Terra – digo. – Os humanos não o deixam em paz e ele não tem mais tempo para nada. Parece que agora tudo gira em torno dele. É o centro das atenções. – Sorte a dele... – comenta Afrodite. – Querem ou não ouvir? Eros se mostrou muito aborrecido quando eu comentei ser um arqueiro perfeito, enquanto ele não passava de uma criança. “Não duvido de que suas flechas sejam certeiras, mas as flechas que trago comigo têm qualidades muito especiais. E pode acreditar: são capazes de ferir até mesmo o poderoso Apolo!” Achei graça da ousadia do menino, o que o irritou ainda mais. – E ele resolveu se vingar, é claro – devolve Afrodite. – Sim, mas não imaginei que sua vingança chegaria a tanto. Eros se afastou enquanto eu continuava minha caçada. Assim que ele saiu do meu ângulo de visão, retirou da aljava as duas flechas encantadas que carregava consigo: uma com ponta de outro, para despertar o amor, e a outra com ponta de chumbo, para provocar repulsa. Ele subiu até o alto do monte Parnaso e esperou. Não demorou muito e avistou ao longe uma bela ninfa. – Dafne, aquela linda virgem? – pergunta Ares. – Eu mesmo já me interessei por ela, até que... – Sim. Ela mesma, Dafne – corta Apolo com um gesto de impaciência. Apolo olha para os lados, em busca de um olhar cúmplice, mas só encontra a simpatia de sua irmã Ártemis em meio à indiferença e curiosidade. – Eros escolheu a flecha da aversão e disparou com o arco encantado. Acertou em cheio o peito de Dafne. Depois, voou bem alo para me procurar e me encontrou à sombra de uma árvore, distraído, tocando minha lira. Mirou o meu coração e atiroume a penetrante seta do amor. Como as setas eram invisíveis, nem eu mesmo entendi porque fui subitamente tomara por uma volúpia tão avassaladora, como jamais havia sentindo antes. – Foi assim que você conheceu o poder das setas de Eros e o amargo sabor de sua vingança! – se alegra Afrodite. – Naquela mesma tarde, movido por uma força irresistível, eu fui em direção ao bosque e, ao longe, avistei Dafne. Imediatamente senti uma dor aguda no coração, no mesmo lugar onde a flecha havia acertado. Não ouso dizer, mas a beleza de Dafne também chamou a minha atenção. Ela era uma jovem de espírito independente, que recusava a corte de todos os rapazes e parecia totalmente imune aos apelos do amor, feliz com sua liberdade. Seria um belo jogo de conquista, que me tomaria algum tempo e, sem dúvida valeria a pena. Desisti de Dafne quando vi Calisto, outra bela ninfa que fazia parte do corte de Ártemis. – A flecha de Eros produziu um efeito imediato – confessa Apolo. – Fiquei perdidamente apaixonado por ela. Paixão, atração, desejo, todos os sentimentos se
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misturaram dento de mim. Fiquei sem ação, sem voz, sem palavras. Disfarçado na pele de um pastor, tentei articular algumas frases de efeito. Só consegui gaguejar “Olá, você vem sempre por aqui?”. Dafne arregalou os olhos como se estivesse frente a uma assombração. E saiu correndo apavorada. – Uma bela assombração, se é possível – ri Hefesto. – Infelizmente nem todas as súplicas e promessas de amor eterno que eu lhe fiz conseguiram comovê-la. – Como é possível que Apolo, o grande deus dos oráculos, o que prevê os acontecimentos, não conseguir ver o seu próprio futuro! – ironiza Ares. – Certa tardem, eu caminhava pelo bosque e a avistei, linda e solitária. Tentei me aproximar, mas ela nem me deu tempo, fugiu tão rapidamente quanto suas pernas o permitiram. Era como se, de repente, tivessem surgido asas em seus pés delicados. Corri ao seu encalço e, quanto mais eu corria, mais ela acelerava. Dafne se desesperou ao perceber que a distância entre nós ficava cada vez mais curta. Apolo estende o braço e repete o festo de quase alcançá-la. – Quando ela compreendeu que eu não tinha mais como escapar dos meus braços, gritou pelo pai, o deus-rios, e implorou que ele a salvasse. Foi aí que eu vi acontecer diante de meus olhos uma surpreendente metamorfose. O corpo da ninfa foi tomado por um torpor paralisante. De seus pés surgiram raízes, os braços se transformaram em galho, os cabelos em folhas. Tristemente abracei minha amada e meus braços tocaram uma árvore inerte. Apolo nunca conseguiu se curar deste amor. As flechas de Eros, além de certeira, são permanentes. – Você está certa, Afrodite, eu não suporto ser rejeitado. Tenho amor próprio. Mesmo assim, quando vi que a minha amada havia-se transformado em um perfumado loureiro, naquele mesmo dia, consagrei-a como a árvore de meu culto. Raras vezes ouvi Apolo falar de seus sentimentos com tamanha sinceridade. – Ainda magoado com o acontecido, recolhi alguma folhas de louro e as trancei como uma coroa. Ordenei aos mortais que eles, dali em diante, realizassem naquele mesmo lugar competições a cada quatro anos em honra a Dafne. Caberia aos vencedores, heróis, guerreiros e artistas, a suprema honra de receber como prêmio uma coroa de louros, símbolo da imortalidade adquirida pela vitória.
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– Já que estamos falando do belo Apolo, é bom esclarecer que ele não foi rejeitado apenas pelas ninfas – manifesta-se Hera, que não poderia deixar passar essa boa oportunidade de zombar do “querido filho bastardo de meu marido”, como ela gosta de chamá-lo. – Que tal agora nos lembrarmos daquele episódio passional com Jacinto? Apolo enrubesce, mas não perde o ar arrogante. – O que você sabe sobre Jacinto? Não me envergonho de minha amizade com ele, se é que é isso que você quer saber. Acho até que falar de nossa relação hoje é uma ótima chance para prestar minha homenagem ao parceiro mais leal que já tive na vida. A primeira vez que nos vimos foi no Peloponeso. Fiquei impressionado com a beleza, o corpo atlético e harmonioso daquele jovem. Parece que a admiração foi recíproca, porque a partir daquela tarde nos tornamos amigos inseparáveis. Muitas vezes passávamos o dia caçando e sempre me surpreendia com a coragem que ele demonstrava ao enfrentar as feras mais perigosas. Mesmo arriscando a sua vida, ela jamais permitiu que eu interferisse para ajudá-lo: “Quero sentir sozinho o sabor da vitória”, dizia. Depois de abater o animal, Jacinto jogava-o aos meus pés e dizia que havia conquistado aquele troféu em minha honra. Era apenas mais um motivo para nos embriagarmos de prazer e de alegria.
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Apolo e Jacinto: Um episódio Passional
Apolo faz uma pausa e sorri. – Nosso passatempo predileto era o arremesso de disco. Ainda posso ver jacinto nitidamente diante de mim: sua bela silhueta recortada contra o espaço azul, seus músculos contraindo-se um a um, à medida que seu corpo girava sobre si mesmo como numa dança de movimentos precisos, até o momento do arremesso do disco de cobre no ar. Eu queria que aquele momento mágico não terminasse nunca. Mas, desgraçadamente, as Moiras já haviam traçado seu triste destino. Jacinto havia feito uma bela jogada e, para mostra-lhe como eu estava satisfeito com seu desempenho, agarrei o disco no ar, aproveitei o impulso e lancei-o de volta para ele com força. Animado com o arremesso, meu companheiro correu para apanhar o disco. Foi a última vez que ouvi seu riso franco, que enchia de luminosidade e alegria os meus dias. Em questão de instantes, o disco bateu no chão e o atingiu violentamente na testa, abrindo uma profunda ferida. – Morto? – pergunta Deméter, arregalando os olhos. – Demorei um pouco para compreender o que havia acontecido, enquanto Jacinto permanecia estendido no chão, sem sentidos. Meu corpo tremia de pavor ao tomá-lo nos braços, enquanto tentava estancar o sangue que corria de sua feriada aberta. Desesperado, gritei seu nome. Tentei usar meu poder divino para reanimá-lo. Tudo em vão. O olhar de Jacinto já estava coberto com a névoa da morta quando ele me fitou pela última vez. Tentou esboçar um sorriso para acalmar meu sofrimento, deu um longo suspiro e sua cabeça pendeu para o lado, sem vida. Láquesis havia cortado o fio de sua vida. Deméter enxuga discretamente uma lágrima. Apolo baixa o tom de voz e todos nós fazemos um grande esforço para ouvi-lo. – Eu me senti tão culpado pela morte do meu querido amigo, que cheguei a pedir aos céus para que levassem dali, ao invés dele. Ao compreender que minhas súplicas não seriam jamais atendidas, peguei minha lira e prometi diante de seu corpo inerte que ele viveria para sempre na minha memória e no meu canto. Assim que terminei de falar, em meio à relva banhada com o sangue de jacinto, surgiu uma linda flor, cujo formato lembrava o do lírio. Em suas pétalas inscrevi as iniciais de Jacinto e, ainda que as flores sejam efêmeras, a marca do meu amor ficou grava para toda a eternidade. – Sensível demais para o meu gosto... – murmura Ares. – A cada primavera, quando a vegetação ressuscita, desço à Terra para contemplar os jacintos, cheio de saudade. Só muito tempo depois fiquei sabendo que o autor do trágico evento na verdade havia sido Zéfiro, o vento oeste. É que ele havia se apaixonado por Jacinto e se sentiu desprezado, pois o jovem dirigia toda a sua atenção a mim, Zéfiro não conseguiu controlar o ciúme e resolveu se vingar. Num sopro, desvio o disco de sua rota para que atingisse Jacinto mortalmente.
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Apolo mal consegue se refazer emoção provocada pela lembrança de Jacinto, quando Hera novamente intervém, se dar-lhe trégua: – Outra história sua que nunca entendi direito foi aquela do Asclépio... – Mais um caso de amor fracassado – cochicha Afrodite. Apolo começa a demonstrar certo cansaço e irritação. – Dizem as más línguas que meu maior prazer é estar sempre no centro das atenções. Sei que provoco inveja em meus pares por ser reconhecidamente belo, majestoso, inteligente, perspicaz. – E sem dúvida, modesto – zomba Hefesto. – Quero contar algo de realmente novo para vocês: o meu maior desgosto é ser criticado, ainda mais por aqueles que pouco ou nada conhecem dos fatos. Se hoje estou aqui diante de todos vocês, expondo de coração aberto minhas antigas cicatrizes, é porque concordei em assumir este compromisso com a deus Mnemósine. Nunca fui do tipo de sofrer à toa. O que passou, passou. Afinal, nenhum de nós está imune aos arranhões provocados pelos desencontros amorosos que o Destino nos impõe. – O Tempo cura todos os amores e deixa em seu lugar apenas lembranças – diz Hefesto.
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A medicina de Asclépio
– Lembrar de Corônis, a bela princesa, é voltar atrás no tempo e reviver um amor efêmero que os mortais conhecem tão bem. Depois de um mal sucedido romance com Dafne e do trágico final de meu companheiro Jacinto, senti que meu coração havia se fechado para sempre. Corônis foi um ar novo e refrescante que derreteu o gelo onde eu havia aprisionado os meus sentimentos. – Ah, o amor! Que poético! – exclama Afrodite, batendo as pestanas. – A notícia de que ela estava grávida me deixou muito feliz e talvez pudéssemos ter vivido mais um tempo juntos, se... O barulho seco da lança de Ares caindo no chão corta o raciocínio de Apolo. – Se... – repete Hermes interessado. – Ela não tivesse me traído. Algo me dizia que suas juras de fidelidade eram falsas. Ordenei a um corvo que a seguisse por onde quer que ela fosse e depois viesse me contar o que andava fazendo. Em pouco tempo pude confirmar meus piores pressentimentos. – Nem ao menos respeitou o filho que levava no ventre – indigna-se Deméter, para que os filhos são sempre sagrados. – Quando a vi abraçada a Ísquis, seu amante mortal, eu me descontrolei. Empunhei o arco e fiz a pontaria. Ainda ouvi o pranto da infeliz suplicando meu perdão e tentando me convencer a poupar sua vida com argumentos ridículos: “Tenho medo de envelhecer, de ficar feia e enrugada e que você me abandone por isso”, soluçava. Ao invés de sentir compaixão, suas palavras me irritaram ainda mais. E rapidamente disparei a seta que calou para sempre a ingrata e seu amante. – Ora, isso não me parece digna de um deus que prega o equilíbrio, a moderação, o meio-termo – ironiza Ares. – Acho que Apolo lhe fez foi um grande favor. Na verdade, abreviou o que de qualquer forma aconteceria mais dia, menos dia – apóia Ártemis. –Não pensem que a abandonei. Muito pelo contrário, eu lhe proporcionei um final digno. Ordenei que preparassem a pira funerária, onde seria cremada. Antes que o fogo a consumisse, retirei meu filho que ela trazia no ventre e consegui reanimá-lo. Senti uma inexplicável ternura pelo pequeno ser que era um pouco maior que a palma de minha mão. Dei-lhe o nome de Asclépio e logo percebi o óbvio: eu não seria capaz de criá-lo sozinho. Por isso, o entreguei aos cuidados do centauro Quíron, o mais sábio e o mais justo de todos os centauros, para que se encarregasse de sua educação. – Logo um centauro, aquele ser animalesco! – protesta Afrodite. – Engano seu. Quíron não tinha nenhum parentesco com os centauros selvagense violentos que viviam nas florestas, se embriagavam e se divertiam em violentando as ninfas. Ele era pacífico e um verdadeiro sábio. Foi ele quem ensinou a Asclépio tudo o que sabia sobre o poder das ervas medicinais e, em pouco tempo, meu filho superou o mestre. Apolo faz sinal a Hebe para que ela sirva mais uma taça de néctar. Depois de dar
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alguns goles, prossegue: – Algumas vezes fui encontrá-los na gruta onde moravam. Eu passava despercebido em meio a uma enorme fila de doentes que chegavam de toda a parte em busca de cura para seus males. Asclépio os recebia um a um e os ouvia com toda a atenção. Fazia perguntas, rabiscava algo que só ele compreendia e, por fim, colocava as mãos suavemente no local da enfermidade. Depois de alguns minutos em silenciosa concentração, ele saía da gruta e caminhava em direção a um descampado, onde tinha à sua disposição uma enorme variedade de plantas medicinais. De longe, eu o observava colher um punhado de uma erva, um bocado de outra e de mais outra. Quando considerava a mistura pronta, voltava à gruta e estendia o preparado de ervas ao doente, com todas as orientações de dosagem e preparo. – Ressuscitar os mortos! – exclama Hermes. – Os deuses são tão inseguros de seus privilégios, que qualquer atitude mais ousada é imediatamente interpretada como uma ofensa – devolve Hefesto. Hermes acena com um gesto de desculpa e se intromete na história de Apolo: – Eu estava no Olimpo, justamente no palácio de Zeus, quando começou toda a confusão. Caronte, o barqueiro responsável pela travessia das almas através dos rios infernais, entrou no aposento divino esbravejando e gesticulando sem parar. Estava tão nervoso que mal conseguíamos entender a razão daquela gritaria. Tive que voar longe para não ser atingido pelo remo que ele agitava violentamente em uma das mãos. “Estou no meio ofício há milênios e exijo respeito!”, repetia. A essa altura eu e Zeus encarávamos Caronte cheios de curiosidade. Atraídas pelo barulho, Hera, Afrodite e Atena chegaram ao meu jardim e ficaram paradas juntos ao portão de entrada, sem saber se deviam ou não participar daquele acontecimento inédito. – Entendemos que você defenda o seu filho – diz Atena. – Mas, Asclépio não era um simples curador de feridas ou doenças. Teve o atrevimento de ressuscitar os mortos! Convenhamos que é uma afronta permitir tal poder a um mortal.! Todos começam a falar ao mesmo tempo e ordeno com a mão para que se calem: – Um dia, Caronte recebeu a visita de Tânatos, a morte em pessoa. “Estou aqui a mando de Hades, deus da morada das sombras”, – diz Apolo, imitando a voz rouca daquele deus. –“Quero quer você vá agora ao Olimpo falar diretamente com Zeus para exigir uma providência enérgica e urgente.” – À essa altura dos acontecimentos, já estava mais do que claro que a situação estava fora do controle – explico. – Se ninguém mais ficasse doente ou morresse, nosso prestígio estaria com os dias contados. Quem precisaria de nós? Como diz Ares, os deuses que não impõem respeito não deveriam ser chamados de deuses. – Sim. Fui obrigado a concordar com Caronte: ele estava realmente contrariando a ordem do mundo... –... ultrapassou todos os limites permitidos a um mortal, você quer dizer –completo. – Mais uma vez concordo com você, meu pai. Sempre fiz questão de advertir
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que mortais não são deuses e, por isso, jamais deveriam ousar a se comprar a nós. Tanto assim, que até mandei gravar na entrada do meu oráculo, em Delfos, a inscrição: “Conhece-te a ti mesmo”. Mesmo assim, estou certo de que isso não lhe dá o direito de arremessar seus poderosos raios e simplesmente eliminar aqueles que você julga indesejáveis. – Sou o deus do Céu e da Terra – respondo num tom áspero. – Minha função é zelar pela ordem e punir todo aquele que ameaçar transgredi-la. Lembre-se de que você sempre foi o primeiro a aplaudir as minhas atitudes. E só porque Asclépio é seu filho, você acha que as leis deveriam mudar? – Se fizermos um concurso para saber quem é o mais vingativo destes dois, garanto que vai dar empate – ouço Ares falar. – É... a dor dos outros nunca nos afeta – comenta Afrodite. Apolo olha para o chão, imerso em suas recordações. – Para piorar a situação – continua ele – Héracles entrou intempestivamente na gruta de Quíron, em perseguição a um centauro chamado Élato e arremessou uma seta envenenada, que lhe atravessou o coração e atingiu Quíron de raspão. A dor que veio a seguir foi tão insuportável, que nenhuma erva, nenhum bálsamo foi capaz de amenizá-la. – E por que será que Asclépio, o formidável salvador de vidas, o ressuscitador, não o curou? – pergunta Hera com ironia. – Ele tentou, tentou muito. Trabalhou sem descanso: preparou todas as poções curativas que conhecia, fez massagens, uso ungüentos. Mas o veneno já havia contaminado todo o corpo do centauro e não havia mais nada a ser feito. Quíron implorou aos céus o fim de sua agonia e que o levassem para o outro mundo – fato impossível, já que era imortal. Depois de um longo sofrimento, Zeus teve um lampejo de piedade e trocou sua imortalidade com a de Prometeu. Só assim o mais íntegro e sábio dos centauros pôde finalmente descansar em paz. – Tanto melhor para ele, que foi transformado na constelação de Sagitário! –exclama Atena. – Fiz o que qualquer bom governante, que zela pelos domínios, teria feito –justifica. – Pelo fato de ser filho de Apolo, eu reservei a Asclépio a honra de ser eternamente lembrado. Permiti que Epidauro se tornasse o primeiro centro de medicina e que a sua arte de cura pudesse ser conhecida por todos os mortais. – Aqueles que vieram depois se apropriaram das nossas técnicas de cura – lamenta Apolo. – E, no lugar do antigo esplendor de nossos templos, santuários. Ginásios e centros médicos, deixaram apenas ruínas. Mnemósine intervém e nos pede para que, em nome de Apolo, nos lembremos de Asclépio e dissipemos a amargura que ainda está presente em seu divino coração. – A medicina, feita para curar os mortais, também deve valer para curar os imortais. Também somos passíveis de mágoas, falhas, erros, deslizes. Todos estes sentimentos provocam nódoas no pensamento. Quando a nódoa permanece
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incubada na mente, surgem as doenças. O propósito de estarmos hoje aqui reunidos é fazer com que a harmonia volte a reinar entre nós. E, para que isso seja possível, precisamos praticar a terapia da palavra. Não imporá que doa, não importa que traga de volta sensações que pareciam enterradas para sempre dentro de cada um de nós. – Pensar santamente – acrescenta Ártemis, – em harmonia com a ordem. – Puro deve ser aquele que entra no Templo perfumado. E pureza significa pensamentos sadios, tal como estava inscrito na estrada do tempo de Asclépio – suspira Apolo, com o olhar voltado para longe.
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Mnemósine ajeita a cauda da túnica e deixa descoberta, por um breve instante, parte de sua pena. Observo-a com cautela, para não provocar o despeito de Hera. Mnemósine parece sempre tão senhora de si, tranqüila, equilibrada. Tem a voz firme e, ao mesmo tempo, doce. Não costumo ser saudosista nem olhar para trás, mas... e se fosse ela quem estivesse sentada agora ao meu lado no trono, como a legítima esposa do Senhor do Universo? Talvez eu não precisasse correr tanto trás de novas aventuras. Quem sabe eu até fosse um governante mais sereno e o mundo um lugar menos violento e competitivo? E se a paz, que sinto agora ao admirá-la, pudesse ser transferida aos deuses e aos mortais? Imagino nossas nove filhas, as Musas, brincando alegres no jardim do Olimpo... A deliciosa cena me faz sorrir, enlevado. De repente, a voz de Hera me desperta do devaneio. – Quer que eu lhe traga uma almofada, querido? Você está muito tempo sentado e vai ficas com as costas doloridas. Detesto tantas demonstrações de cuidado por parte de Hera, porque sei quesempre escondem segundas intenções. Com certeza ela pôde ler meus pensamentos e se esforça agora em mostrar que não existe esposa mais atenta ao bem-estar do marido. Quanto aos filhos, jamais vi em minha esposa qualquer demonstração de afeto. Hefesto se aproxima, caminhando com dificuldade. Hera suspira com desprezo e fica propositadamente de costas para ele. É digno de pena, Hefesto, o talentoso deus das forjas. O tempo
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todo ridicularizado, ignorado, desprezado. Hera o evita porque não consegue esconder a vergonha de ter um filho feio e coxo, fato que sempre lhe causou profundos transtornos emocionais. Sofre em silêncio, o coitado. Quando os outros deuses o vêem se aproximar da mãe, calem-se, embaraçados. – Peço a palavra – saída num aceno rígido. – Eu sou Hefesto...– Salve Hefesto, artesão e artista, o deus do fogo e da metalurgia – dizem todos em coro. – Minha mãe, eu peço perdão pela vergonha que sempre lhe causei – diz Hefesto, com a voz embargada de emoção. – Sei que os poetas falam muito e acabam me confundindo com tantas versões sobre as circunstâncias de meu nascimento. O que lhe peço hoje é que me conte a verdade. O olhar de Hera é frio e indiferente. – A verdade! – responde de má vontade – Que importância tem a verdade? – Nunca me atrevi a lhe perguntar e estou certo de que todos aqui também estão curiosos. Não agüento mais ouvir atrás de mim cochichos e risadas por onde passo. Jamais gostei de subir ao Olimpo e agora, mais do que nunca, prefiro ficar recolhido ao anonimato em minha oficina. Encontro um pouco de paz junto ao vulcão, enquanto trabalho o metal e crio belos objetos para alegrar a todos. – O que você quer, realmente, é consolo. E isso eu não posso lhe dar. Muito pelo contrário, sei que vai sofrer mais ainda quando ouvir de meus lábios que você não passa do fruto de uma vingança. Hefesto está em pé diante de Hera. Disforme, os braços enormes, musculosos, e pernas ridiculamente finas. Sua feiúra sempre foi motivo de caçoada, mas hoje todos contêm o riso em respeito à sua dor de filho mal-amado. Hera olha para mim e diz com um olhar cortante. – Meu marido é o meu maior tesouro. E também o meu pior tormento. Não tenho mais disposição para repetir velhas histórias que até o mais ignorante dos mortais já conhece de sobra. Só existe uma verdade. A confusão quem faz são os poetas, que vivem da imaginação e por isso não têm o menor compromisso com a veracidade dos fatos. Eles são mestres na arte de inventar casos. – Não se desvie do assunto – ordeno. – Sempre causou estranheza e até algum mal-estar o fato de Hefesto ter nascido coxo e disforme. Daí as várias versões para explicar o porquê de uma aparência tão desagradável. Os mortais têm uma enorme necessidade de conhecer a razão de todas as coisas, mas se satisfazem com qualquer resposta, mesmo a mais absurda. Alguns afirmam com convicção que Hefesto é nosso filho legítimo. E, aqueles que acreditam que Hefesto é filho legítimo do nosso casamento contam, até com minúcias, que Zeus ficou constrangido com o nascimento de um filho deformado. – Parece-me uma reação bem normal: qualquer um de nós sentiria vergonha de ter um filho assim, tão em desacordo com a beleza divina – diz Afrodite, enquanto dá suaves tapinhas no rosto para ganhar colorido. – Poucos são os fatos, muitas as invenções – sentencia Hera.
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Hefesto morde o lábio e baixa os olhos. – Contam que uma tarde nós estávamos todos reunidos num banquete – continua ela. – Hefesto apareceu com seu grotesco andar cambaleante, justamente no meio de uma discussão acalorada. Quanta mentira... Dizem que eu estava mais uma vez cega de ciúmes, desta vez de Héracles, um dos incontáveis filhos bastardos do meu infiel marido. – Dizem também que eu tomei as dores de minha mãe e a defendi – interrompe o rejeitado. – Não me lembro de nada disso. Hera não gosta de ser interrompida. – Hefesto teria se lançado contra o pai com toda a fúria Tomado de ódio, Zeus gritava: “Deve ter havido algum engano, essa coisa não pode ser meu filho!” E se atirou na direção do infeliz, que não teve tempo de esboçar qualquer reação. Com um chute violento, jogou-o para fora do Olimpo, enquanto esbravejava: “Criatura insuportável! Não agüento mais a sua feiúra. Você fere meus sentidos!” – A imaginação humana não tem limites. Em nome de uma falsa verdade, inventam as mais estranhas histórias... – afirma Atena. – Deixe-me continuar! Não foi o que meu filho pediu? Pois bem, na versão de alguns poetas menos esclarecidos, o infeliz rolou o dia inteiro pelo espaço até cair, já ao pôr-do-sol, na ilha de Lemmos. A queda foi tão violenta, que ele quebrou as duas pernas. A partir daí foi obrigado a desenvolver grande força nos braços. Os nativos que viviam naquela ilha vulcânica o abrigaram e lhe deram todas as condições para que lá instalasse sua oficina. E ele passou a ser conhecido como o deus das forjas. – A realidade é um tanto diferente – intervém o coxo. – Sim, a realidade não é bem essa – responde Hera com os olhos fixos em mim e a cabeça erguida, num gesto desafiador. A seguir, volta-se para os demais deuses e diz:– Vocês podem achar que a origem de Hefesto não traz nenhuma novidade, mas os detalhes que vou revelar agora eu guardei só para mim durante todo esse tempo. Não gosto nem um pouco de ver expostos detalhes de minha vida conjugal. E não tenho dúvidas de que é justamente esta a intenção de Hera. – Certa noite, Hipno me trouxe em suas asas um magnífico sonho. Eu me vi dando à luz um filho belo e talentoso, com as minhas feições. Em tudo ele era parecido comigo. Os demais deuses formavam uma fila na porta de meu palácio, cheios de curiosidade. Enquanto examinavam o rosto da criança, magnífica, saudável e esperta, eles me cumprimentavam com mal disfarçada inveja. Hefesto encurva ainda mais seu corpo. – Acordei decidida: terei um filho só meu! Não podia existir vingança maior e mais perfeita. Sem demora, eu me recolhi num canto solitário e fiz gerar dentro de mim um filho que, estava certa, seria ao mesmo tempo meu orgulho e minha vingança. Enquanto fala, os olhos de Hera adquirem um brilho diferente. – Nunca poderia passar pela cabeça de meu amantíssimo esposo que o filho
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que carregava em meu ventre não lhe pertencia. Eu mesma alimentei certo mistério: nunca confirmei nem neguei nenhuma das versões do fato. Todas as vezes que ele me questionava, eu simplesmente mudava de assunto, tal como ele sempre faz quando eu lhe pergunto sobre suas aventuras. Apesar de conhecer bem o episódio, cada vez que o ouço, meu sangue ferve .Tudo o que minha esposa quer é me desmoralizar, ainda mais agora, quando encontra uma platéia. “Não posso perder o controle...”, digo a mim mesmo. Tenho que manter a atitude e a dignidade que minha posição exige. – Estava ansiosa e fazia mil planos para a chegada de meu primeiro filho. Passas os dias tecendo mantos, enquanto aguardava o momento sublime de tê-lo em meus braços. Zeus demonstrou algumas vezes carinho, não posso negar. Poucos momentos, entretanto. Na maior parte do tempo, ele continuava absorto em seu entretenimento predileto: conquistar novas vítimas. Tenho a vaga lembranças de que foi numa manhã especialmente claro que senti um intenso aperto no ventre. Era o sinal que eu aguardava com ansiedade. Vesti minha melhor túnica e me recostei entre as almofadas. Estava pronta. Respirei fundo e expeli a criança de uma só vez. Preferi não ter ninguém ao meu lado para saborear sozinha o primeiro encontro com o filho tão esperado. Hera faz uma pausa. O silêncio pesa entre nós. Com uma expressão de contrariedade imita o gesto de segurar o bebê no colo. – De repente, como por encanto, desapareceram as expectativas, a alegria, o orgulho. Mal podia acreditar no que via: uma criatura horrenda, de feições disformes e colorido estranho. Seu choro feriu os meus ouvidos. Não era propriamente um choro, mas um guincho estridente. Desejei com todas as forças que ninguém além de mim ouvisse aquele som. Sentia-me humilhada e confusa. Precisava pensar rapidamente no que fazer, antes que os outros deuses percebessem que eu havia gerado um ser monstruoso. Ao contrário do que havia planejado, meu filho estava longe de causar algum tipo de inveja. Menos ainda ser usado como instrumento de vingança. Pelo menos não sou eu o responsável por tamanha deformidade. Todos os filhos que gerei, dentro e fora do casamento, são belíssimos. E perfeitos, penso com alívio. – Ouvi passou e vozes se aproximando. Certamente os deuses estranhavam minha ausência. Embrulhei Hefesto em uma manta que havia bordado com tanto cuidado e fiquei parada por um momento, sem saber ao certo o que fazer. Estava profundamente decepcionada. Meu filho, aquele que seria minha alegria, aquele que haveria de me restituir meu amor-próprio, estava ali agora, disforme, envolto num embrulho que queimava minhas mãos de vergonha. O melhor que tinha a fazer era livrar-me o mais rápido possível daquela criatura que eu não reconhecia como saído de minhas entranhas. Precisava esquecer o triste episódio. Girei o menino no ar e lancei-o sem pena do alto do Olimpo. Quem sabe as Moiras se compadecessem dele e lhe dessem um destino mais digno? Depois, inventei uma desculpa qualquer era o desaparecimento da criança e ninguém mais me questionou ou falou a respeito.
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Hefesto se mantém calado, de cabeça baixa. Controla as lágrimas para não dar mais um motivo de caçoada. Finalmente roupe o silêncio e contra, com a voz embargada: – Fiquei durante um dia e uma noite inteira rodopiando no espaço em queda livre. No amanhecer do dia seguinte eu vi o mar crescer rapidamente à minha frente e me senti ainda mais só e desamparado. Do fundo do mar, duas deusas correram para me amparar: Tétis e sua filha Eurínome – essas sim foram minhas verdadeiras mães! Pela primeira vez na vida recebi um afago, um gesto de afeição. Elas me levaram para uma gruta submarina, um lugar cálido e protegido, onde vivi durante um tempo. Na gruta aprendi a forjar o ferro, a trabalhar o bronze e os metais preciosos. Descobri as maravilhas de que eu era capaz. Hefesto encara a mãe como se nunca a tivesse visto antes. – Tenho uma dívida de gratidão para com as deusas que me criaram e me ensinaram que, apesar de feio, manco, e disforme, eu era capaz de moldar a beleza em obras de arte que vocês, com toda a perfeição, nunca conseguiram... – Sei perfeitamente que você nunca me perdoou – interrompe Hera rispidamente. – O sofrimento de ser um filho rejeitado marcou profundamente a minha vida. Apesar de todo o carinho de Tétis e de Eurínome, ainda quis conhecer a minha verdadeira origem e fiquei perdido com tantas informações contraditórias. Um dia, alguém com pena de mim disse, só para me consolar, que eu era filho legítimo de Zeus e Hera. Minha felicidade durou pouco, pouquíssimo. Quando Tétis soube, resolveu me chamar para uma conversa séria: “Você já está crescido”, disse-me ela. “Já é hora de saber a verdade.” Foi aí que eu fiquei sabendo de tudo. Felizmente descobri minha verdadeira vocação: a arte. Trabalhar foi a forma que encontrei para suavizar a imensa tristeza que ainda me atormenta até hoje. Hefesto esfrega nervosamente as mãos. – Sei que vocês me desprezam não apenas pela minha feiúra, mas também porque sou o único deus que trabalha. Esse é o meu consolo, o único alívio que me resta. Algumas vezes, apesar de todo o carinho que recebia de Tétis e Eurínome, a dor do desprezo de minha mãe era insuportável. À noite, no canto escuro que me servia de leito, eu chorava a mágoa de haver sido tão brutalmente rejeitado. Quantas vezes eu acordei no meio da noite, trêmulo de medo, e revivia a sensação aterrorizante de cair no espaço vazio. Até que um dia senti uma irresistível vontade de me vingar... – Dispenso seus pormenores sobre a cena humilhante que até hoje me causa profunda irritação! – interrompe Hera. Hefesto olha para a mãe, pela primeira vez com a coragem de desfiá-la. – Usei todo o meu talento para forjar um magnífico trono de ouro e oferecerlhe de presente. Fiquei orgulhoso com o resultado: a peça ficou realmente belíssima. Depois, mandei entregá-la no Olimpo, sem esclarecer a quem se destinava. – Ah, agora me lembro... – diz Hermes, com um sorriso mordaz. – Certa manhã nós encontramos uma reluzente trono de ouro no meio do jardim. Todos queriam
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experimentá-lo. Houve até uma discussão sobre quem teria o direito de sentar nele. – Se o trono estava em meu jardim, evidentemente me pertencia – reage Hera. – E caiu na armadilha – acrescenta Hermes, às gargalhadas. – Teria sido preferível se você tivesse deixado qualquer um de nós desfrutar aquele falso presente. Pelo menos você teria sido poupada do tremendo vexame! – Nem me passou pela cabeça que pudesse ser uma cilada – diz Hera. – E, ao que parece, ninguém mais pensou nisso, encantados que estavam com a magnífica peça trabalhada em ouro e enfeitada com reluzentes pedras preciosas. –Eu me esmerei... Ninguém se lembrou de perguntar como o trono havia parado lá. Ficamos conversando ao sabor do dia, que depois se transformou em tarde e logo escureceu. Noite passou por nós com seu manto estrelado. Os deuses se despediram para se recolherem em seus palácios. Hera decidiu ficar mais um pouco, queria saborearaquela preciosidade. – Fiquei sozinha, sentada no trono de ouro, até que meu corpo começou a reclamar por descanso. Tomei um impulso para me levantar. Não consegui. Algo me prendia. Tentei outra vez... e mais outra... Cansada daquele esforço inútil, dei um grito tão alto que acordou todo o Olimpo. Saíram os deuses à pressas em suas túnicas de dormir a se arrastarem pelo chão. A cena foi grotesca, mas eu estava tão preocupada em me livrar daquela armadilha, que não sabia se ria ou amaldiçoava o autor do ato infame. Nunca soube ao certo o que aconteceu... – Para realizar minha obra com perfeição, eu me isolei me minha oficina e trabalhei arduamente. Depois de forjar um trono perfeito nos mínimos detalhes, acrescentei-lhe uma rede finíssima, que só eu conseguia enxergar. Uma invisível trama a prendeu e você não conseguiu se levantar... – Invisível trama... – repete Hera. – Maldito trono! Eu o desprezo por ter me assustado dessa forma. Pensei que jamais poderia me livrar daquela cilada. Hélio já estava quase pronto para sua viagem no Céu e, em vez de me libertarem daquele horror, vocês ficaram ali parados, a dar palpites disparatados. Felizmente alguém se lembrou de Hefesto. “Só pode ter sido ele”, gritou. Como não havia jeito de me levantar, Zeus mandou Hermes com a incumbência de buscar o coxo em sua forja. – E por acaso vocês imaginaram que eu ia cair na conversa dele? – Meus argumentos são sempre infalíveis. Foi a primeira vez... – tenta justificar Hermes. – Um mensageiro incompetente, isso sim! – diz Hera. – Foi incapaz de cumprir a sua missão e voltou de mãos vazias. Depois, foi a vez de Ares, o brutal deus da guerra que prefere resolver tudo na base da violência, se oferecer para trazê-lo. Você o recebeu com flechas de fogo e ele também fracassou. Eu já me imaginava sentada para sempre naquele trono que há muito deixara de ser confortável. Meu corpo inteiro doía e o que eu mais queria naquele momento era poder voltar ao meu leito de lençóis macios. Hefesto contrai os lábios cada vez que sua mãe se refere a ele. Hera continua afalar e suas palavras se atropelam uma nas outras, descontroladas.
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– Até que Dioniso se ofereceu para buscar Hefesto. O que aconteceu, de fato, nós nunca soubemos, mas quando vimos Dioniso surgir no Olimpo com o infeliz às costas, foi fácil deduzir que ele estava totalmente embriagado. Esperamos ansiosamente que se refizesse da bebedeira e que se levantasse ansiosamente do lugar onde havia sido jogado, grotescamente esparramado. – Ah, então foi isso... Não me lembrava como tinha parado no Olimpo. Só me lembro que quando abri os olhos, ainda atordoado, vi todos os olhares grudados em mim. Ouvi os gritos de minha mãe ecoarem cada vez mais fortes em meus ouvidos: “Tire-me daqui, imediatamente!” Ouvem-se risos debochados. Animado pelo sucesso obtido em sua vingança, Hefesto provoca: – Ainda cambaleante pelo efeito do vinho, tive uma grande idéia. E disse, olhando direto nos olhos de minha adorável mãe: “Eu posso soltá-la agora mesmo, se quiser”. E, antes de ouvir qualquer resposta, continuei: “No entanto, exijo algo em troca”. “Quanto atrevimento”, exclamaram vozes indignadas. Não me intimidei e fui em frente, porque sabia que não podia perder a grande chance de minha vida. Pela primeira vez, eu não me senti nem coxo, nem disforme. Tinha todos os belos deuses na minha mão. Podia pedir o que quisesse. Sentia-me poderoso. Hermes imita a voz de Hera: – Zeus, aceite! Aceite qualquer coisa que ele pedir! Mais risos. Os lábios de Hera franzem, uma expressão ameaçadora. – Não respondi imediatamente. Disse que precisava pensar, que estava em dúvida, afinal era uma decisão difícil e arriscada. Hera se debatia no trono, o rosto contorcido de raiva, enfim uma delícia. Passado um tempo, exigi com voz autoritária: “Quero que me permitam voltar a transitar no Olimpo quando bem entender.” Zeus respondeu prontamente: “Claro, claro...” Foi cômico ter o deus dos deuses aos meus pés. Com um olhar de desprezo, ele me ordenou: “Agora, liberte-a”. Claro que sua arrogância não o permitiu compreender que os fatos não eram assim tão simples. Eu ainda não havia chegado aonde eu queria. “Calma”, respondi. “Tem só mais um detalhe: quero a sua autorização... para me casar com a bela Afrodite!” Afrodite faz uma careta de desgosto. – Eu, a deusa nascida para o belo, certamente esperava algo bem melhor com marido. E, no entanto, fui obrigada a aceitar esse traste de marido feio e, ainda por cima,defeituoso. Hefesto novamente se encolheu e acentua ainda mais a sua deformidade.
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– Sei perfeitamente o que vocês devem estar pensando – diz Afrodite. Ninguém ignora que eu traí Hefesto e eu teria feito tudo da mesma forma novamente, sem o menor arrependimento. A propósito, permitam-me a pergunta: qual de vocês nunca traiu? Hera descruza as pernas e se ajeita no trono. Então, se preferir, eu posso inverter a pergunta especialmente para você, Hera: quem nunca foi traído? Pressinto no ar o conflito eminente, mas gostei da pergunta e permito que aconversa siga seu rumo. – Tudo o que é belo me atrai, me fascina. Amo o masculino, o viril, o guerreiro. Quando o deus da guerra se aproximou de mim sussurrando palavras doces ao meu ouvido, quando senti seus braços musculosos enlaçando minha cintura até me fazer perder o fôlego, não resisti. Ares faz uma reverência e sorri, orgulhoso. – Reconheço que com ele vivi uma paixão fulminante, dessas que só acontecem uma vez na vida e deixam suas marcas, mesmo em alguém como eu, feita para viver a diversidade do amor. Todos os dias eu esperava ansiosamente que Hélio desaparecesse no horizonte para que Hefesto me deixasse livre algumas horas e fosse trabalhar em
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sua forja. Além de não sentir nenhuma atração por meu marido, tinha que agüentar suas demonstrações de ciúmes. Durante o dia, costumava me acompanhar como uma sobra. Atrás de uma árvore, no meio do bosque, algumas vezes disfarçado de camponês, ele não me deixava em paz. Era decididamente um ser repulsivo! Hefesto está pálido e ofegante. Rapidamente, antes que alguém perceba, enxuga com o dorso da mão uma lágrima que teima em deslizar pelo seu rosto. – Você nunca me amou... – suspira. – Não tenho culpa se Zeus me deu a você em casamento em troca de livrar Hera do trono de ouro. Sou romântica, repito. E, para mim, não existe amor fora da estética. Amor e beleza caminham sempre juntos. Hefesto murmura palavras ininteligíveis. – Eu não tinha amor para lhe oferecer e você não tinha beleza para me dar. Não podia dar certo mesmo. – Você nem ao menos tentou... – Engano seu. Reconheço que no início suas gentilezas e delicadeza me encantaram. Fiquei até um tanto dividida: por um lado sentia versão e por outro, resignação. Aos poucos fui me acostumando com o seu jeito meigo, sensível. Você me cobria de agrados e não perdia uma oportunidade de me trazer presentes: “É para comemorar a data de nosso encontro”, dizia. Depois, veio o ciúme, cada dia mais intenso. Se eu reclamasse, você repetia que era por amor, excesso de cuidado. Comecei a ficar irritada, nervosa. Em meu divino rosto começaram a aparecer uns estranhos sinais. Eu me olhava no espelho dos lagos e não me reconhecia. Passei a recusar convites para os festejos, reuniões, banquetes. Até que finalmente descobri a razão de meu isolamento. – Não diga... e qual foi? – pergunta Hermes. – Digam quanto tempo vocês acham que uma deusa do amor pode ficar longe do amor? Impossível! Mal Hélio desaparecia no horizonte, Hefesto ia para a sua forja e me deixava sozinha. Meus dias eram vazios e as noites, solitárias. Hermes inclina o corpo para frente, interessado. – Foi então que Ares apareceu. Confesso que sempre o achei agressivo demais e seus acessos de fúria me incomodavam muito. Mas, em meio a tanta carência, eu até que me senti atraída por seus músculos bem definidos, seu jeito viril. Ares percebeu que eu estava infeliz no casamento e passou a me cortejar com delicadeza. Seus elogios me devolveram a auto-estima... – Fútil e volúvel – repete Hera, minha fidelíssima esposa. – Não me arrependo nem um pouco. Com Ares conheci um amor intenso e sem pudores. O deus da guerra se sente elogiado, infla o peito e sorri. – Eu gostava de admirá-lo em sua reluzente armadura de guerra e nos divertíamos inventando mil brincadeiras. Durante o tempo em que estivemos juntos,
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cheguei a pensar que éramos feitos um para o outro e que nenhum outro deus ou mortal jamais me atrairia mais do que ele. Pra que pudéssemos viver nosso romance com tranqüilidade, Ares trazia sempre consigo um jovem chamado Aléctrion, para servir de sentinela. Ele tinha a obrigação de nos avisar assim que Hélio começasse a sua jornada pelo Céu. A tarefa era bem simples e durante algum tempo funcionou perfeitamente bem. Até que, por pura incompetência, o rapaz adormeceu e não viu que Aurora havia aberto as pálpebras do Dia e que Hélio se despontava no horizonte. Fico pensando se por acaso não teriam sido as Moiras que nos prepararam essa armadilha. Bem, agora não tem mais sentindo ficar me lamentando, mesmo porque depois vieram outros amores, alguns até bem mais emocionantes, e segui em frente, como sempre faço. – Foi Hélio que veio me contar sobre a cena infame a que havia assistido – intervém Hefesto, visivelmente ansioso pela chance de desabafar. – Eu não podia acreditar no que estava ouvindo e reagi com indignação. – Vai me dizer que você nunca desconfiou de nada? – pergunta Hermes. – Não, nunca me passou pela cabeça que Afrodite estivesse me enganando – e justamente com o deus da guerra! Pela segunda vez na vida, me senti como se estivesse caindo num profundo abismo. Fui extravasar minha dor na forja, enquanto malhava o ferro com violência. Aos poucos, coloquei em ordem meus pensamentos e resolvi que apenas a vingança poderia me trazer um pouco de alívio. – Vingança, a nossa velha conhecida! – exclama Hermes. – Se já havia dado certo uma vez com o trono de Hera, poderia dar certo novamente. Então, forjei uma rede finíssima, uma trama tão delicada e invisível, que nem as aranhas mais habilidosas conseguiriam tecer obra mais perfeita. Enquanto Afrodite se mantinha ocupada em um de seus intermináveis banho de espuma. Dirigime ao quarto nupcial e prendi a rede aos pés do leito e a estendi cuidadosamente até o alto do dossel. Depois, foi só ficar de tocaia e aguardar o momento oportuno para pegar os amantes em flagrante. Ares, como sempre o fazia, aguardava impaciente a hora da minha partida. Assim que percebeu o caminho livre, correu ao encontro de sua amada. Hefesto deixa pender os braços e mantém por momentos os olhos no chão: – Muito pior do que saber foi ver. E eu vi. Vi abraços que nunca recebi, beijos que nunca senti... e me doeu tanto assistir a essa cena, que nem a mais fina lança crava no meu coração poderia provocar um sofrimento maior. – Que humilhação... – reage Afrodite, envergonhada. – Escolhi cuidadosamente um lugar por entre os arbustos. E esperei. Eles não desconfiaram de nada. De onde eu estava, pude observar quando, entre beijos, abraços e sussurros, os dois se sentaram no leito. Imediatamente a rede se fechou sobre eles e os prendeu. “Finalmente consegui pegar os dois”, pensei. Tentei gritar bem alto para que todos ouvissem meu desespero, mas eu estava tão furioso, que mal consegui articular um som. Com muito esforço, as portas de meu palácio e expus aos
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olhos dos deuses o ato infame. Que cena grotesca! Ares é meu filho e não herdou nada da minha esperteza. Se ele tivesse me consultado antes, eu teria lhe dado alguns bons conselhos e ele certamente não teria passado por tamanho vexame. Quem conhece como eu a arte da sedução, conhece também a perigosa arte da traição. E eu jamais fui surpreendido, mesmo com toda a vigilância de Hera. – Ouvimos uma estranha gritaria e logo percebemos que algo de grave estava acontecendo – diz Hermes, que adora intrigas. – Corremos em direção ao palácio de Hefesto, entre curiosos e preocupados. Com exceção de Afrodite, as deusas se mantiveram fora do quarto, por pudor. Ficamos algum tempo parados na soleira da porta, perplexos. Passada a surpresa, rimos às gargalhadas. – Eu me senti muito humilhado com todo esse episódio. Como se não bastasse a dor da traição, ainda tive que agüentar a zombaria dos deuses, que cinicamente me cumprimentaram pelo belo trabalho. Imagina existir pelo menos alguma solidariedade divida. Por mim, eu teria deixado os dois presos na rede até hoje, mas vocês insistiram tanto, que acabei por libertá-los. Saíram do meu palácio como dois fugitivos, cobertos de vergonha. Afrodite foi se refugiar na ilha de Chipre, longe de olhares curiosos. Quanto a Ares, foi buscar outras batalhas na distante Trácia. – Por pouco tempo, diga-se de passagem – diz Atena. – Depois, eles voltaram para o Olimpo como se nada tivesse acontecido. Só tenho pena do pobre jovem Aléctrion, que acabou levando a pior. – Para ele aprender que não se deve dormir em serviço, eu o transformei em um galo – diz Ares agitando a sua lança – para que ele nunca mais deixasse de anunciar com o seu canto a chegada da carruagem do Sol. – O amor de vocês foi tão incompatível como o são o Dia e a Noite, a Paz e a Discórdia – interfere Hera. – E gerou odiosos frutos: os terríveis Deimos e Fobos, companheiros inseparáveis do pai nos campos de batalha. – Não se esqueçam de que o encontro dos opostos gerou também um fruto verdadeiramente sublime: a figura da bela e suave Harmonia, tão ignorada por Ares – observa Deméter. – Nesse ponto, sou igual ao meu pai – contesta Ares. – Tenho mais o que fazer do que ficar pajeando crianças. Depois de crescidos, que enfrentam a seu modo o pior e a mais cruel das batalhas, que é a vida. Nunca os poupei com mimos nem desperdicei meu tempo com conversa fiada. Sabem que na hora do perigo podem contar com o meu apoio. Mas sabem também que eu não tolero qualquer sinal de covardia. Comigo aprender o que significa ser macho de verdade. Deimos e Fobos, meus companheiros de luta e de sangue, aprenderam muito bem essa lição.
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Afrodite dirige-se a Hefesto, com um grito de raiva: – Antes de vocês se deixaram enganar pelas palavras de Hefesto e sentiram pena do coitado só porque ele é feio, manco, disforme e mal-amado, é bom refrescarem a memória e se lembrarem do mal que ele causou à filha Harmonia! – Sou realmente um rejeitado – geme Hefesto. – Fui rejeitado pela minha mãe e desprezado por Afrodite, a quem um dia dediquei o melhor dos meus sentimentos. – Não venha novamente com lamúrias. Você sabe perfeitamente que o único sentimento que eu sempre nutri por você foi o desprezo. – Sim, eu sabia perfeitamente que o eu amor não era correspondido, mas pegá-la em flagrante foi demais. Em instantes, passei por amor ao ódio, tenho essa facilidade. E mais uma vez encontrei consolo em meu trabalho, que sempre me ajudou muito em meus piores momentos. Quanto maior o sofrimento, maior a inspiração. Cheguei à conclusão de que é para isso que serve o sofrimento: para inspirar os artistas. Dia e noite naquela forja, num calor abrasador, só um pensamento me movia: a desforra. Sou paciente e não me importo com a longa espera. O momento certo iria chegar, não tinha dúvida. E, de fato, chegou. Um dia, recebi um convite para o casamento do rei Cadmo com Harmonia, a filha do amor adúltero de minha esposa com Ares.
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Colar encantado destrói Harmonia
Compreendi imediatamente ser essa a grande oportunidade que eu aguardava. Fabriquei um belo colar de ouro e entreguei à noiva como presente de núpcias. – Então é verdade! Foi ele mesmo quem deu de presente à minha filha aquele deslumbrante colar de ouro! – exclama Afrodite, horrorizada. – Deslumbrante, disse-o bem. Harmonia mostrou seu contentamento e até meu pediu para ajudar a colocá-lo em seu delicado pescoço. Depois, foi se olhar no espelho. Estava belíssima. Quando vi a alegria inocente da noiva, por um instante, brevíssimo instante, passou pela minha cabeça poupá-la de minha vingança. Ela não tinha a menor idéia do que a esperava: o colar estava impregnado com uma poção mágica que haveria de envenenar até sua quinta descendência! Sêmele, a filha de Harmonia e Cadmo, mais um dos casos de Zeus, foi a primeira vítima. Deixei que acreditassem que toda aquela história da jovem admirar o deus dos deuses em todo o esplendor divino havia sido uma idéia da ciumenta Hera. – Infeliz! Eu recebi toda a culpa! – esbraveja Hera. – Na realidade foi o efeito do colar que desencadeou seu fim prematuro – continua Hefesto. – Envolta em chamas, morreu carbonizada, deixando o fruto inacabado que Zeus costurou em sua própria coxa: Dionisio. O colar prosseguiu seu caminho em busca de justiça: Ino foi a vítima seguinte. Pretendia defender o filho de sua irmã Sêmele e o escondeu, provocando o ódio de Hera, uma aliada à minha altura. – É o que faltava! Suas revelações estão me fazendo muito mal – protestas Hera. – Pois eu fico fascinado quando penso nos requintes de crueldade que você usou no episódio. Primeiro, enlouqueceu Ino e, não satisfeita, enlouqueceu também seu marido. Fora de si. Ino lançou seu filho caçula nas águas ferventes de um caldeirão e em seguida atirou-se abraçada ao cadáver do filho nas profundezas do mar. O marido, por sua vez, acabou com a vida do filho mais velho. – Ouçam bem isso: agora vocês têm a prova de tudo o que eu sempre digo – interrompe Afrodite. – Por trás da aparência de pobre coitado, esconde-se a mais cruel das criaturas! – Posso ser um deus bruto, mas tenho sentimentos. Para pagar o preço da enorme humilhação que sofri, ainda foi barato. Agave, a terceira filha de Cadmo e Harmonia, também pagou sua parte do tributo. A força do colar a contaminou igualmente e ela foi tomada pela loucura. Possuída por Dioniso, em delírio, matou a dentadas seu filho Penteu. – Basta!Agora quem não está suportando mais sou eu. Cale-se não quero ouvir mais! – pede Afrodite. – Crueldade por crueldade, meus queridos, ao que parece não existem diferenças significativas entre nós... Já que começamos, agora temos que terminar. Não é o que vocês dizem? Faltam apenas dois filhos: Antônoe e Polidoro. Serei breve. A maldição fez um desvio em seu caminho e atingiu o filho de Autônoe, um caçador. Ele teve a infelicidade de passar pelo lugar onde Ártemis se banhava e vê-la em sua
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divina nudez. A deusa o transformou em um veado para que fosse estraçalhado por seus cães. Polidoro foi o último. Esperei nascer seu bisneto, Édipo. Se é que vocês não se lembram, foi aquele que matou o pai, se casou com a mãe e furou seus olhos de desespero quando descobriu a tragédia. Pronto, finalmente eu me considerei vingado. Vingado de ter que suportar a humilhação de você ter me traído e ter tido filhos com outro, não comigo. – Harmonia, minha pobre filhinha, que desgraça! – lamenta-se Afrodite.
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Com uma careta de indignação, Hefesto mostra que não teve nenhum prazer em reviver toda aquela rede de crueldade e rapidamente volta à questão que que diz diretamente respeito. – Não pensem que as paixões de Afrodite terminaram naquele sórdido flagrante de adultério. Sua lista de conquistas nunca parou de crescer. Aliás, naquela mesma manhã em que ela foi surpreendida em pleno adultério com Ares, trocou significativos olhares com Hermes. E não teve sequer o pudor de esconder que sua feria já havia cicatrizado. – Você fala por despeito. É um magoado, um infeliz! – Minha caríssima Afrodite: você julga que só você tem a propriedade de falar de amor, mais ninguém. O fim da nossa relação me deixou arrasado, como todos sabem. Não preciso repetir. Chorei um pouco, não vou negar. Mas logo me recuperei. O tempo cura qualquer paixão. Saí em busca de novas parceiras e até encontrei algumas, mas não fui feliz. Tive também muitos filhos, mas tudo o que me trouxeram foram mais mágoas e decepções. – Aqui se faz, aqui se paga – diz Deméter em tom de profecia. Apolo se dirige ironicamente a Hermes: – Que tal você responder agora à pergunta que lhe fiz naquela tarde?
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Hermes se levanta e, sem nenhum pudor, responde: – Você quer saber se eu ficaria feliz se pudesse estar no lugar de Ares, preso à rede, junto com Afrodite? Não preciso esconder de ninguém que, para me deitar com a deusa do amor e da beleza, não me importaria se as correntes daquela rede fossem três vezes mais fortes. Afrodite desperta desejo em qualquer um de nós. Ela é totalmente irresistível! – Efeito da minha cinta mágica – enfatiza Afrodite. – Por isso me chamam de deusa do amor. Animada, a deusa simula um beijo ardente. – Hermes era tudo o que eu queria naquele momento, a figura perfeita para um relacionamento sem compromisso, bem ao nosso gosto. Passamos uma ou duas noites de amor, saboreando a alegria e o prazer dos casos passageiros – o que, aliás, é bom lembrar, resultou num belo fruto: Hermafrodito. Como não tenho vocação para a maternidade, deixei que fosse criado pelas ninfas do Monte Ida – Mais uma mãe que abandona o seu próprio filho! O que de bom podemos esperar delas? – pergunta Deméter. Afrodite inclina-se para trás e faz escorregar propositalmente a túnica para deixar os belos ombros à mostra. – Meu filho se tornou um rapaz de extraordinária beleza. Quando ele completou quinze anos, resolveu percorrer o mundo, como costumam fazer rapazes antes de entrar no mundo adulto. Certa tarde, depois de muito caminhar, sentiu o efeito do cansaço e procurou um lugar onde tivesse água para se refrescar. Foi assim que ele chegou a uma fonte presidida pela ninfa Sálmacis. A beleza de Hermafrodito chamou a atenção da jovem, que imediatamente se sentiu atraída por ele. Meu filho, que ainda não havia sido tocador por Eros, não se deixou seduzir e rejeitou. Sálmacis fingiu desistir de sua investida e virou-lhe as costas. De que adiantou ser belo como a mãe, se ele não herdou a sua intensidade amorosa? – Aliviado por ter conseguido se livrar da ninfa, o jovem despiu suas vestes e mergulhou na água da fonte. Por algum tempo Hermafrodito banhou-se despreocupado, sem suspeitar que Sálmacis o observava, escondida por entre as folhagens. Feliz por ele ter entrado em seus domínios, a ninfa mergulhou e, sem que ele tivesse tempo para reagir, ela enlaçou o seu corpo e o cobriu de beijos. Tão louco e súbito foi esse amor, que a ninfa desejou ardentemente fundir-se no corpo do amado. Ele ainda tentou se livrar, mas Salmácis implorou aos deuses que eles não fossem jamais separados, e sua súplica foi atendida. Os dois corpos se juntaram em um só e geraram um novo ser, de dupla natureza: metade macho e metade fêmea. – Um homem pela metade não merecer ser chamado de homem – diz Ares, torcendo o nariz. – Por isso que meu filhou pediu que, dali em diante, todo aquele que se banhasse nas águas dessa fonte se tornasse como ele: um homem pela metade, sem vigor e impotente. E o seu pedido também foi atendido.
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O olhar de Ares se volta para Afrodite, aquela por quem um dia ele se apaixonou e prometeu fazer feliz para sempre. Penso que sentido pode ter uma promessa tão absurda. O que significa para nós o “para sempre”, condenados que estamos à eternidade? Palavras, apenas palavras usadas no calor da conquista. O fato é que, no tempo em que estiveram justo, Ares foi gentil, afetuoso, aprendeu a tratá-la com delicadeza e soube cobri-la de afeto e de atenções. Seus companheiros de batalha estranharam aquela súbita falta de interesse pela violência e, decepcionados, caçoavam do seu enigmático olhar distante, sonhador. Eles instigavam sua brutalidade, contavam bravatas sobre os golpes desferidos, contabilizavam os guerreiros dilacerados no fio de suas espadas. Alguns previam que ele nunca mais seria o mesmo. Impacientes, perguntavam onde estaria escondido o amante impetuoso que sentia prazer em violentar brutalmente as ninfas que recusavam o seu amor. Ares está em pé diante de nós. A mão direita apóia com firmeza a lança e de sua fronte brotam gotas de suor pelo enorme esforço para se manter calado. A fisionomia se mantém tensa. Até agora, sua voz trovejante apenas se fez ouvir em um ou outro comentário. Na maior parte do tempo, se manteve em silêncio. Em alguns momentos, cheguei a pensar que ele estava a ponto de explodir, tamanha a cólera que transparecia em seu semblante. Quando Ares sente que finalmente havia chegado o momento de tomar a palavra,
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caminha sem pressa para o centro da cena. É inegável que ele tem uma bela presença, com seu corpo forte e musculoso. Minha atenção se fixa nas faíscas douradas de sua armadura, que brilham à sua passagem. Afora este detalhe, não tenho mais nenhum pensamento favorável a respeito do único filho legítimo de meu casamento com Hera. Não nego que o considero o mais intratável dos deuses que habita o Olimpo e sei também que nunca fui um bom pai para ele. Na verdade, sequer me esforcei. Mantemos uma relação de frio distanciamento e jamais disfarcei o desprezo que sinto por seus atos impulsivos e violentos. Tamanha antipatia tem uma razão de ser: a óbvia semelhança de Ares com sua mãe, Hera. Os dois são muitos parecidos sem seu comportamento intolerante e agressivo que me causam profundo desagrado. Com o olhar desafiador, proclama: – Eu sou Ares, o deus que leva aos homens a coragem de agir, o guerreiro que mostra ao mundo o orgulho da força viril. – Salve Ares, deus guerreiro, filho de Zeus e Hera! Deus das lágrimas, bêbe do de sangue, belicoso e cruel! – A luta me anima e me enche de energia. Desprezado, detestado pelos meus pais e pelos demais deuses do Olimpo, fui desde pequeno obrigado abrir o meu caminho à força. Não guardo nenhuma lembrança de minha infância, exceto cenas vagas preenchidas de rejeição e abandono. Aprendi pelos meus próprios meios que, para ser respeitado, jamais poderia baixar a cabeça ou me acovardar. Perdi a conta das vezes que precisei curar sozinho minhas feridas sem que ninguém me estendesse a mão. – Não foi o único, posso garantir! – exclama Hefesto, feliz por encontrar um aliado para o seu sentimento de rejeição. – Ora, Hefesto, você não passa de um choramingas desprezível. Vive por aí dizendo que a causa de seu sofrimento é o abandono dos pais, que é uma pobre criatura indefesa! Pois eu lhe digo: sou reconhecido como filho legítimo de Zeus e Hera, o que, eu lhe garanto, não me fez um momento sequer mais feliz. Eu também, nunca recebo de meu pai um mínimo gesto de afeição E, por mais que eu me esforce em criar situações heróicas, ele jamais me dirigiu sequer um olhar de aprovação. “O mais odioso de todos os imortais que habitam o Olimpo”: é assim que o grande Zeus se refere a mim! Ares se volta para Hera. – Não conheço o toque de pele de minha mãe. Cresci ouvindo ordens ríspidas e palavras de reprovação. O carinho não recebido se transformou em explosões de raiva. Para me fazer respeitar, tornei-me insuportável, concordo. Compreendi que a única forma de sofrer menos era manter todos a uma distancia confortável. Deixei que meus olhos secassem e meu coração endurecesse diante de qualquer atitude sentimental. Ao mesmo tempo, descobri um inesperado gosto pela carnificina. Passei a buscar com maior freqüência o barulho metálico do choque das espadas, os corpos tombados nos campos de batalha e o cheiro de sangue. Felizmente, e para meu total
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prazer, nunca faltaram guerras, lutas nem conflitos. Atena se levanta e acusa: – É certo que os mortais são suficientemente tolos para perderem a vida nos combates. Não precisam da sua ajuda para derramar ainda mais seu frágil sangue. O prazer da carnificina não lhe trouxe nada além do desprezo dos deuses e o terror que você semeia à sua passagem. É em minha honra que os homens elevam suas preces e oferecem os sacrifícios antes do combate – e não a você. É para mim que são dedicados templos e santuários, não para você. A diferença, meu caro, é que em vez de semear a brutalidade, eu governo a inteligência. Eu penso antes de agir – provoca Atena, saboreando a palavra “penso”. – Nunca admiti nenhuma forma de censura ao meu comportamento e, não fosse o respeito que tenho por Mnemósine e por toda essa cerimônia, já teria usado meus próprios métodos para calar esta insuportável afronta. Só tenho um arrependimento... – Ora, viva! – exclama Hera. – Um arrependimento! Isso por acaso significa que existe a vida sensível por baixo da sua armadura? O sangüinário cerra os punhos: – Só me arrependo do que não faço! – grita. – Ser incapaz de manter o autocontrole é o seu pior defeito, admita! – provoca Atena. – Pior é não saber de que lado virá o soco – caçoa Hermes. – Sei perfeitamente que me irrito com facilidade, sou violento, agressivo, impaciente, não precisam repetir. Desde que nasci, ouço que tenho o temperamento turbulento de minha mãe. Falo o que me vem à cabeça, coisas de momento. Minhas reações são físicas e detesto perder tempo com reflexões intelectuais. Deixo isso para Atena. Acusam-me de ser a personificação da guerra, de que tenho sede pela matança e que, para mim, não tem a menor importância saber quem deve vencer ou morrer, porque meu prazer é a luta pela luta. Dizem ainda que meus filhos foram educados para ser tão cruéis e sanguinários quanto eu. Vocês são todos muito arrogantes, têm os olhos sempre voltados para o próprio umbigo. Jamais procuram enxergar nos outros suas reais motivações. Vira-se em direção a Atena e aponta o dedo ameaçador: – Não suporto mais ser insultado por você. – Derrotado, você quer dizer. – Não me irrite ainda mais! Sou o deus da guerra, criado para a luta, não se esqueça. Você pode até ser a deus da estratégia, da prudência e todas essas tolices que adora repetir. Quem por acaso se lembra hoje que Atena existe? Sou o único, dentre todos vocês aqui presentes, que não tem um só instante de descanso. Não tenho nenhuma dúvida de que Ares herdou de sua mãe a mesma maneira os desagradável de falar. Ele me é insuportável. – Perdi a conta dos golpes que desferi, das mortes que provoquei, por puro
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Ares, o odioso deus da guerra
esporte. O que eu quero mesmo é sentir o doce perfume do sangue correndo, ouvir os gritos de dor e desespero, que são como música para os meus ouvidos. Não tenho culpa se alguns tolos mortais insistem em continuar cultuar Irene, a deusa da Paz. Eles chegam ao cúmulo de queimar incensos, fazer oferendas, vestiram-se de branco. Ridículo e totalmente inútil. Jamais serão atendidos. Eunômia, a Disciplina, Dique, a Justiça, e Irene, a Paz, estão demasiado ocupados em dançar para alegrar os deues em seus intermináveis banquetes. – As coisas da Terra não nos dizem mais respeito – dizem todos numa única voz. – Quando Zeus e Têmis conceberam as Horas, tinham a ilusão de que através delas a Justiça e a Paz fossem suficientemente fortes para se espalharem pelo mundo –rebate Ares. – Eu tive mais sorte. Fiz de meus dois filhos Deimos, o Terror, e Fobos, o Medo, os melhores companheiros, sempre prontos a me acompanhar em qualquer campo, em qualquer batalha. – Filhos que gerei em meu ventre... – lamenta Afrodite. – E eles não são os únicos a cultivar o esporte da guerra, podem acreditar. Quando Éris, a deusa que semeia a discórdia, e Enio, a devastação, me vêem atrelas os cavalos, correm na minha direção e me pedem para que eu não os deixe fora de mais uma batalha. No caminho é certo encontrarmos Queres, que ostenta suas vestes negras salpicadas de sangue como um troféu, que não tira do corpo por nada. São como abutres sedentos que se lançam sobre os cadáveres, para dilacerá-los com suas garras afiadas. – Que horror! – exclama Deméter. – Pois eu lhes digo, se é que vocês, deuses tão poderosos, ainda não compreenderam: para além de seu belo mundo colorido e cheio de falso romantismo, existe um mundo cruel. Não tenho nenhuma responsabilidade sobre as ações humanas. Não sou eu quem provoca as guerras. Elas acontecem pela intolerância e pela ambição humana. Vamos convir que o que não falta são lugares onde há luta, desentendimento, discórdia. O que me irrita mais em Ares é saber que apesar de fanfarrão e estúpido, ele tem suas razões. A chama da guerra jamais vai se apagar...
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Afrodite aproxima-se de Ares e toca de leve o braço de seu antigo amante, solidária. Depois, como se estivesse representando um papel, uma ensaiada, repete o ritual que já havíamos presenciado diversas vezes ao longo do dia. – Eu sou Afrodite, para sempre a deusa do amor. – Salve Afrodite, filha de Urano, o Céu, rainha de eterna beleza, a protetora de todos os amantes! Afrodite sorri e toma fôlego. – Para mim não há qualquer sentindo fora do amor. – Grande novidade... – sussurra Hera. – Apesar de valorizar o amor acima de qualquer outra coisa, meu nascimento foi marcado por um ato de violência. Com um golpe de foice, Crono castrou Urano e se apoderou de seu reino. Foi do encontro do sêmen do órgão castrado de Urano com a espuma do mar, que eu nasci. Gaia me contou que, apesar de ter sido a responsável pela idéia de castrar Urano, ela ficou comovida ao ouvir o grito de dor de seu companheiro e ao ver que o Céu ficou rubro com a cor do seu sangue. – Eu surgi para a vida dento de uma belíssima concha de madrepérola que
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Afrodite: A deusa que surgiu da espuma do mar
me serviu de berço. As ninfas que passeavam àquela hora à beira da praia na ilha de Chipre puderam presenciar as contrações do mar. Foram testemunhas de que, depois da tormentosa agitação, as ondas serenaram e eu emergi do espelho das águas. As Horas e as Graças me receberam com suspiros de admiração. Cuidadosamente me vestiram e me enfeitaram com colares, anéis e braceletes. Depois, me coroaram com um diadema de ouro. Naquela radiosa manhã de primavera, as ninfas que moravam na ilha de Chipre perceberam um inusitado perfume no ar. Estranharam que o solo estava mais verdejante, as flores mais viçosas e os pássaros contavam uma inédita sinfonia. – Mal meus pés tocaram a areia macia e alvíssima da praia, um suave aroma de perfume se espalhou ao meu redor. Flores coloriram o chão à minha passagem e um cortejo formou-se imediatamente atrás de mim: a Eros, o Amor, meu companheiro inseparável, se juntou Hímero, o incontrolável desejo amoroso, e Potos, um estranho sentimento que aprendemos com os mortais se chamar saudade. O nascimento de Afrodite provocou um grande alvoroço entre os mortais, queimediatamente se renderam aos seus encantos. Apenas as deusas virgens Atena,Ártemis e Héstia se mantiveram afastadas, fora do domínio do amor e da sedução. Bem que a princípio Afrodite tentou se aproximar delas, mas desistiu quando percebeu que elas evitavam seu contato. – Apesar de todo o amor e beleza que me cercaram no dia do meu nascimento, nunca tive mãe... – diz a deusa, pensativa. Ao ouvir que Afrodite havia sido gerada sem mãe, Gaia protesta: – Agora eu compreendo o porquê de sua busca desenfreada pelo amor. No fundo você não entende nada sobre essa questão. Quem nunca passou pela divina experiência de ter sido gerado dentro de um útero nada sabe sobre o amor. Não tivesse meu casamento com Urano terminado em fracasso, talvez estivéssemos juntos até hoje e você teria nascido de minhas entranhas! – Queria Gaia, – continua Afrodite, cheia de entusiasmo – mesmo sem ter tido mãe, sempre considerei o amor como o mais importante e fundamental dos sentimentos. Às vezes até penso que... Bem, se naquela época eu já existisse, certamente não teria permitido que vocês se separassem por causa de uma tola briga de casal. Foi Eros quem os aproximou e eu saberia instruí-lo para que reacendesse em seus coração uma nova paixão. Não vou repetir o óbvio, mas é bom lembrar que nessa arte sou a maior especialista... – Ora, Afrodite,– retoma Gaia num tom áspero – você só conhece uma parte da experiência do amor. Nunca foi rejeitada, nunca sofreu a dor de um afeto não correspondido. Tudo isso foge ao seu entendimento. Amor é mais do que o encontro entre dois corpos, minha cara. Amor é o encontro de duas essências. – Quem precisa de paixão? – intromete-se Atena. – Pois eu faço questão de permanecer imune a um sentimento que só confunde a mente e embora os sentidos. Da arte de amar faço questão de conhecer somente a teoria. Nunca bebi dessa fonte e fujo de qualquer tentativa de aproximação amorosa, seja de um deus ou de um
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mortal. Talvez, bem lá no fundo, eu até admita uma enorme frustração... a de nunca ter tido filhos... – Aí está! – grita Deméter, a deusa da maternidade. – Finalmente chegamos ao âmago da questão: filhos! Vocês, que nunca experimentaram a mais elevada sensação de plenitude, não podem falar sobre o significado do verdadeiro amor. O amordoação de uma mãe por um filho só pode ser compreendido por outra mãe. Apenas a maternidade nos engrandece... – Devo lembrar que tive três filhos – interrompe Afrodite. – Demos, Fobos e Harmonia. – E Eros.. Esqueceu? – emenda Ares. – Ah, sim... Existem grandes diferenças entre nós, Deméter, sobre isso não há o que se discutir. Para mim a gravidez é uma aberração, uma deformidade! Detesto observar meu ventre crescer. O que tem de tão sublime um corpo deformado? Não tenho nada contra você continuar com a sua louvável tarefa de cuidar da fertilidade da terra e de todos os seres. E deixe-me em paz enquanto me encarrego de estimular o amor físico, indispensável para que o momento mágico da união aconteça. Eu me emociono só de falar. Afrodite seca com seu manto uma invisível lágrima no canto dos olhos.
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Basta apenas um único momento de amor para justificar todas as minhas loucuras. Quando atinjo meu objetivo, não me sinto estimulado a continuar o jogo amoroso. Sorte de hera! Se ao menos ela não fosse tão ansiosa, compreenderia que não precisa se desgastar tanto em furiosas perseguições. Volto novamente minha atenção para a bela Afrodite. Aliás, ela hoje está mais bela do que nunca. – Vocês sabem o quer dizer ser filha da união do sêmen com a espuma do mar? Significa ausência total de pais físicos. É por isso que eu tento preencher o imenso vazio que sinto dentro de mim com amores, muitos amores. Preciso do contato físico com o ar que respiro, preciso me sentir amada, desejava, venerada. – Não se esqueça de que eu também... – interfere Atena. – É bem verdade que você também não foi gerada em um ventre materno. Mas pelo menos sente orgulho de ter nascido da cabeça de seu pai, a quem recorre sempre que precisa de m conselho, de uma orientação. Algum de vocês tem idéia do que é sentir-se totalmente só? Admiro a auto-estima de Afrodite, que não tem a menor vocação para pobre coitada. Seus lamentos são puro charme.
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O amor de afrodite move o mundo
– É claro que vou vaidosa, não fosse eu a deusa da beleza. Não tenho o menor pudor em reconhecer que gosto de me perfumar, de passar horas me enfeitando, penteando meus sedosos cabelos, cuidando de minha aparência. Reverencio tudo o que é belo e tenho certeza de que, se todos os deuses e mortais fizessem o mesmo, teríamos muito menos guerras, menos discórdia e... muito mais amor! – Quanta futilidade! – dispara Atena. –Frívole e cabeça de vento... – concorda Hera. Afrodite sacode mais uma vê a magnífica cabeleira e sorri, com desdém. – Hera e Atena nunca se conformaram com o fato de eu ter sido escolhido por Páris, o príncipe de Tróia, como a mais bela das deusas. – Você só venceu porque foi desleal, subornou um mortal – diz Atena. – Já falamos sobre o fato hoje e é inútil ficarmos batendo na mesma tecla – devolve Hera. – Só mais um detalhe que vale a pena esclarecer e que não foi mencionado aqui – diz Atena. – Eu joguei limpo, não tentei subornar Páris para ser a escolhida. Apenas lhe prometei a vitória em todas as batalhas. – Eu também joguei limpo e prometi que, em troca de ser a escolhida, eu lhe daria todas as terras da Ásia. O tem de mal nisso? – questiona Hera. – Não sejam tão ingênuas! Estávamos em uma competição, vocês usaram as suas armas e eu usei as minhas – revida Afrodite. – Prometi a Páris o amor da mais bela das mortais, só isso. Simples assim. – Só isso? Vamos refrescar sua memória – contra-ataca Atena. – Você desatou propositadamente os nós de sua túnica e a deixou cair com a óbvia intenção de se exibir diante daquele mortal na plenitude de sua nudez. E logo para um mortal! – Que, convenhamos, ficou totalmente extasiado e me entregou o pomo da Discórdia sem pestanejar! Se valer alguma coisa para vocês, aí vai uma lição bem simples: para amar o outro, é preciso antes de tudo amar-se a si mesma. Atena, você se defende muito, escondida aí atrás dessa armadura. Quem conhece o seu corpo, para quem, em algum dia, exibiu as suas formas? Uma única vez que eu sabia. Foi no dia em que, por infelicidade, o jovem Tirésias caminhava distraído pelo bosque em busca de água para saciar a sede. Não tinha a menor idéia de que o Destino o conduzia para fonte onde você se banhava. Pobre Tirésias... Você entendeu que ele havia ido propositadamente até lá para espiá-la em sua virginal nudez e o castigo com a cegueira. Até hoje se comenta a injustiça. – Mas ao menos eu o recompensei depois! – protesta Atena. – Claro, reconheço que você lhe deu o dom da adivinhação, mas o mal já estava feito e ele teve que se arrastar na escuridão até o fim de seus dias. Ou até a eternidade, se levarmos em consideração que você o fez carregar sua cegueira para o Reino dos Mortos. O grande problema é a sua incapacidade de entrega, tudo tem que estar sob o seu absoluto domínio. Você pensa muito e sente pouco.
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– Suas palavras são enganosas e mostram que você sabe muito pouco a meu respeito – responde Atena secamente. –Se você estivesse aberta para o amor, s tivesse experimentado por uma única vez que fosse, esse sentimento mágico e transformador, com certeza não seria tão dura, tão intransigente. – Será que, depois de tanto tempo, você ainda não foi capaz de perceber que a sedução pode ser expressa de várias maneiras? A tarefa que me cabe é bem mais árdua que a sua, já que é da luz da sabedoria que vem o meu fascínio, não do encanto do corpo... – Vivo para o amor. O amor, em todas as suas múltiplas formas, me fascina. Não existe missão mais importante do que estimular o prazer, promover o encontro de dois corpos, para que o sublime êxtase possa acontecer. Amar significa viver a experiência de plenitude. Nesse momento fugidio, nesse breve instante de puro arrebatamento, amor e morte, Eros e Tânatos, se encontram em completa sintonia. É por isso que também me sinto responsável pela continuação das espécies. Hera percebe meu entusiasmo pelas palavras de Afrodite. Não fosse a sua presença, sempre a me censurar, eu já estaria de pé, batendo palmas, freneticamente. O amor é tudo, minha querida! É o Amor que move o mundo, o Céu e a Terra!
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Dizem por aí que a bela Afrodite nunca sofreu por amor... – diz Hermes com um sorriso sarcástico. – Não é verdade. Vocês podem se vangloriar de terem ouvido dos meus belos lábios que um dia eu provei o gosto amargo da morte. – Logo você, a deusa do feitiço e da sedução, a irresistível? – pergunta Atena. – Foi quando me apaixonei por Adônis, filho de Mirra e Cíniras. – Custo a acreditar... Conte! – pede Hermes. – Tudo começou com o atrevimento de Mirra. Um dia vieram me contar que ela queria competir em beleza comigo. Não agüentei tamanha audácia. – Deixe-me ver se consigo adivinhar – zomba Hermes. – Então, é claro, você teve que lhe impor um castigo à altura da sua insolência. De fato, somos tão previsíveis... – Só porque era filha do rei, Mirra se achou no direito de me ignorar. Imaginem que ela declarou a quem quisesse ouvir que duvidava de meu poder como deusa do amor. Eu tive que lhe dar uma resposta à altura. Fiz com que Mirra sentisse uma incontrolável paixão... pelo próprio pai! Para realizar meu plano, usei como aliada sua velha criada, a licenciosa Hipólita, que liberou o acesso do quarto do rei que
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Adônis conquisra a deusa do amor
Mirra consumasse o incesto. Durante doze noites seguidas, não desconfiou de nada. Por fim, na última noite, eu o despertei do seu torpor e o fiz perceber que havia sido enganado pela própria filha. – E ela ainda faz questão de se glorificar como deusa do amor... Imagine se não fosse! – murmura Deméter. – Que crueldade! – exclama Ártemis, cheia de horror. – Não aceito ser chamada de cruel. Tenho momentos, que por sinal são muitos, de pura compaixão. Eu apenas lhe apliquei o castigo justo. – Castigo justo? Que bela desculpa para tanta atrocidade! – geme Hefesto. – Deixem Afrodite contar. E o que aconteceu depois? – pergunta Hermes, sempre curioso. – Ao descobrir que havia cometido um incesto involuntário com a filha, o rei ficou possesso de raiva. Mirra foi obrigada a fugir da perseguição de seu pai, que queria matá-la. “Maldita, infame”, ele gritava, “vou persegui-la até o fim do mundo!” Dali em diante, e durante os nove meses seguintes, Cíniras não lhe permitiu nenhum momento de descanso. Quando Mirra começou a sentir as primeiras contrações, já não conseguia mais fugir. Sem fôlego, ofegante, ela suplicou aos deuses que a levassem, mas que pelo menos poupassem a criança. – Que culpa tinha a infeliz criança? – suspira Deméter. –Apelar aos deuses é fácil, qualquer mortal faz isso, mesmo pelo motivo mais tolo. O que eu queria realmente é que ela suplicasse a minha ajuda, que me mostrasse arrependida por ter me causado tamanho aborrecimento. Demorou, mas ela finalmente se rendeu e implorou o meu perdão. Posso ser vingativa, mas tenho meus acessos de compaixão. Só por essa razão permiti que seu sofrimento fosse abreviado. Procurei o deus dos deuses para que ele e dissesse o que fazer. – Novidade... – resmunga Hera. – Ninguém aqui no Olimpo é capaz de decidir nada sozinho. – E ele deu a sentença: “Mirra vai ser transformada numa árvore que vai receber o seu nome”. – Sim, mas faltava decidir o que fazer com a criança – diz Deméter. – Desta vez a idéia foi minha – orgulha-se Afrodite. – Com m gesto eu retirei da árvore inflada um menino, que recebeu o nome de Adônis. A criança era belíssima e não há nada que me comova mais do que a beleza. Por coincidência eu andava um tanto carente naquela época e resolvi levá-lo comigo. – Mas você foi incapaz de criá-lo! – protesta Deméter. – Não seja ingrata, minha cara. Só desisti de criá-lo porque sou uma deusa de muitos compromissos. Por isso eu o entreguei aos cuidados de sua filha Perséfone, não está lembrada? “Apenas por uns tempos”, eu lhe garanti. O problema é que ela também ficou encantada com a beleza de Adônis e, quando resolvi pedi-lo de volta, ela se recusou. Fiz um escândalo, exigi que me devolvesse meu filho imediatamente. E sabem o que a cínica respondeu? “Mãe é quem cuida”.
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– Ela está certíssima – rebate Deméter. – Novamente fui chamar Zeus para arbitrar a questão. Ele não quis nem ouvir. – Tinha outros assuntos mais importantes para me preocupar – digo. – Depois de muita insistência e sem nenhuma inspiração, ele deu o veredicto: durante quatro meses por ano Adônis permaneceria comigo e quatro meses com Perséfone. O tempo restante ele escolheria com quem ficar. Eu não fiquei nada satisfeita com a decisão, é claro. Queria Adônis só para mim – Dizem que a história não foi bem essa... – ironiza Hermes. – Eu sei bem o que alguns andaram espalhando por aí. Disseram os mal intencionados, ou muito mal informados, que minha paixão por ele foi provocada por uma brincadeira desastrada com as flechas de Eros. Imaginem se eu preciso da flecha do amor para me apaixonar! O amor desperta meu coração com muita facilidade, ainda mais diante de Adônis, tão belo, que quem o conheceu dizia, sem hesitar, que sua beleza superava em muito a do próprio Apolo. Foi atração à primeira vista e não tenho dúvida de que fui inteiramente correspondida em meu sentimento. Ares faz uma careta de contrariedade e se esparrama na cadeira, bem do seu feitio. – Tudo o que vocês podem imaginar como sendo amor de verdade é incomparável ao que eu vivi com Adônis. – E com tantos outros – murmura Atena. – Queria congelar o tempo e jamais ter que devolvê-lo a Perséfone. Tremia de ciúmes só em pensar que nossa união seria breve como o desabrochar das flores na primavera e que logo chegaria novamente o momento de me separar dele. Infelizmente houve um dia, justamente quando o Adônis mais precisou de mim, em que eu não pude ficar com ele. Antes de partir, eu lhe fiz muitas recomendações. Avisei, pedi, quase implorei para que ele evitasse se expor ao perigo dos animais ferozes. E me afastei, com o coração apertado de preocupação. Afrodite silencia e olha para o vazio. – Contiune, continue... – diz Hemes, interessado. – Ora vamos, Hermes, esse caso não é segredo para ninguém. – responde Afrodite. – Mesmo assim, nunca ouvimos de sua boca – retruca Hermes. – Pois bem. Como eu estava dizendo, naquele dia fatídico eu tive que me afastar de Adônis, mesmo com o dolorido pressentimento de que algo muito grave estava prestes a acontecer. Eu me arrependo até hoje de não ter dado importância à minha intuição. Subi em minha carruagem puxada por cisnes e me despedi dele. Desgraçadamente, meu amado era demasiado orgulhoso por ouvir conselhos e aproveitou minha ausência para se embrenhar pelo bosque em busca de um javali. Seus cães lhe indicaram com fortes latidos o local do covil onde a fera havia se escondido. Adônis lançou com toda a força seu dardo contra o animal que ficou apenas ferido. Enlouquecido de dor, o javali deu um salto e cravou as presas afiadas nas costas de Adônis. E ele caiu mortalmente ferido.
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Adônis conquisra a deusa do amor
– Amar um mortal tem seus riscos – afirma Atena com desprezo. Afrodite vira a cabeça e lança-lhe um rápido olhar. – Pois eu prefiro correr todos os riscos a ficar seca e amarga como você – dispara. Afrodite alisa no manto uma invisível dobra. – Eu percorreria a planície com minha carruagem alada, quando ouvi gemidos. Apesar de quase inaudíveis, reconheci imediatamente a voz de Adônis. Os gemidos se tornaram cada vez mais fracos e demorei um pouco para localizar de onde vinham. Quando finalmente encontrei o seu corpo, ele estava imerso em uma poça de sangue. Fiquei transtornada. Quando meu amado me viu ainda tentou sorrir para me acalmar e, por um breve instante olhou para mim com toda a ternura que conseguiu reunir. Logo depois, com um último e sofrido soluço, partiu para o reino das trevas. Não consegui me conformar com sua morte. Devia ter feito algo para impedi-la, devia ter implorado às Moiras que me deixassem com ele por mais algum tempo. Fiquei só, completamente só. Foi então que decidi manter viva a sua memória e, sobre o sangue que manchava a relva, espalhei um pouco de néctar. Pouco depois, a mistura começou a borbulhar e do solo brotaram lindas flores vermelhas, cor de sangue. – Uma imagem sem dúvida romântica! – vibra Hermes. – A flor recebeu o nome de anêmona, flor do vento. Assim como meu belo Adônis, que morreu em plena flor da juventude é uma flor que tem uma vida efêmera. O vento abre com seu sopro os botões e, com o mesmo sopro os botões e, com o mesmo sopro, atira longe suas pétalas. – O vento traz, o vento leva... – reflete Hermes. – A bela deusa do amor mais uma vez ficou sem ninguém... – cantarola Hera. – Ora, deixe-me em paz! – responde Afrodite, enquanto se afasta com um andar sinuoso. Inútil provocá-la. A mais desejada das deusas não entra em nenhuma discussão, foge de todos os aborrecimentos e provocações. “Não faço nada que possa afetar minha beleza”, costuma dizer.
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Chamo Hebe e peço que encha nossas taças com néctar e sirva a ambrosia. Sinto-me exausto depois de um longo dia de discussões e preciso de alimento para me revigorar. Deméter se encaminha lentamente para o centro da assembléia. A túnica azul revela seus fartos e maternais contornos. As faces estão rubras de acanhamento e ele tenta inutilmente controlar a inquietação. – Alguns me chamam de guê meter, ou Mãe Terra. Na verdade, e de acordo com meu temperamento, sou ambas as coisas: sou deusa da Terra e doadora de vida, a deusa da fertilidade. – Salve Grande Mãe Deméter, deusa da terra cultivada, das plantações e das colheitas, filha de Crono e Réia! – Detesto ser o centro das atenções e tenho muita dificuldade de falar de mim. Se hoje eu me manifestei, por vezes até com bastante ênfase, é porque detesto injustiças... – Prossiga Deméter. E faça o favor de deixar de lado a sua irritante humildade – ordeno, rispidamente. Deméter olha para mim e diz com a cabeça baixa: – Só concordei em participar da comemoração porque vocês insistiram muito. Como deusa da terra cultivada, da semeadura e da colheita... – Não se esqueça de mencionar que foi Zeus quem lhe garantiu o privilégio de
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As revelações de Deméter
reinas sobre todos os campos e todos os bosques do mundo – interrompe Atena. – E também foi ele quem me deu a difícil incumbência de ensinar aos homens como cultivar a terra e, assim, impedi-los de serem aniquilados pela fome. Por aquela época meu culto era levado a sério, principalmente em Elêusis... –Bem lembrado – entusiasma-se Afrodite. – Eu sempre tive curiosidade em saber o que acontecia no ritual dos Mistérios de Elêusis. Agora finalmente você vai nos contar! Hermes dá uma gargalhada. – Ora, depois eu é que levo a fama de curioso e intrometido! Deméter continua no mesmo tom: – Como o próprio nome diz, são mistérios e, portanto, são secretos e eu ainda os antenho guardados. Todos os iniciados tinham que fazer um juramente solene de manter segredo absoluto sobre ali aprendessem. “Quem sabe não fala” – sempre foi o nosso lema. Os impuros que fossem surpreendidos espiando os ritos sagrados eram punidos com a morte e se algum dos iniciados revelasse os segredos da cerimônia era severamente punido e tinha suas terras confiscadas. Afrodite não desiste: – Mas querida, você já pode nos contar, mesmo porque não existem mais iniciados e Elêusis hoje não passa de um monte de ruínas... – O que mais me entristece não é a destruição do meu templo Telesterium, nem pensar que os ritos foram tragados pelo abismo da intolerância. O que realmente lamento é que ninguém mais tem a noção de que a Terra seja um organismo vivo. Gaia faz um gesto de concordância que incentiva Deméter a prosseguir. – Houve um tempo em que o corpo de Gaia tinha o frescor da juventude intocada, jovem e bela. Para beneficiar com a luz e o calor todas as partes do planeta, a cada intervalo de tempo, a Grande Mãe girava o seu imenso corpo. – Ora, para que tanto saudosismo? Acaso hoje é diferente? – pergunta Afrodite, enquanto usa a taça de ouro como espelho para retocar seu cabelo. – Acho compreensível que você não note nada diferente, já que no Olimpo o ar é sempre fresco e a temperatura não muda – diz Ártemis. – Sugiro, então, que você para de se contemplar apenas por um momento e dirija seus lindos olhinhos para baixo. Não vai ser difícil perceber a cruel devastação da Terra. Onde está aquela magnífica visão de beleza agora? As Estações continuam a oferecer os seus ciclos, Gaia jamais se esquece de girar seu corpo. No entanto os mortais, tão orgulhosos de seus saberes, estão provocando uma lesão irreversível no corpo da Grande Mãe. Em sua imprudência, esquecem que as forças da Natureza são muito mais poderosas do que qualquer invenção humana. Deméter sacode a cabeça em sinal de censura. – Os efeitos destrutivos já se fazem sentir. Irritados, os Ventos começaram a soprar desordenadamente e, em sua fúria, não obedecem mais ao comando do rei Éolo. Poseidon também não fica impassível e ergue seu tridente e incita a revolta
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das águas que destrói tudo o que encontra pela frente: homens, animais, florestas e cidades. – Não me preocupo com os mortais, eles terão o que merecem – diz Afrodite com desprezo. – O Olimpo está acima e além de toda e qualquer tragédia. Nada vai acontecer aos deuses. Continuaremos a existir, eternamente. – Não fale bobagens, Afrodite – recrimina Atena. – Se Gaia sofrer, sofreremos juntos, engolidos pelo esquecimento. Afrodite acha graça. – Esquecimento? Minha cara, eu a desafio a contar nos dedos quem hoje se lembra de nós! – Calem-se! – ordeno. – Prossiga, Deméter. –Concordo que vivemos do passado. O que nos resta são fragmentos e farrapos que tentamos desesperadamente costurar para que a nossa existência tenha um mínimo de sentindo. O que nos resta, além de colecionar lembranças? – Antigas lembranças, por sinal... – suspira Afrodite, nostálgica. – Prossiga – repito. – Detesto atitudes melancólicas e não é para isso que estamos aqui hoje. – Ah, sim... Mas onde eu estava? – Você estava num tempo que já passou – exclamou Hermes. – Tem razão. Pois bem, há muito tempo atrás, a longa e sangrenta luta contra os Titãs deixou atrás de si um rastro de destruição e o sangue derramado tornou o solo estéril. Então, Zeus me escolheu para realizar a missão de novamente produzir frutos e, assim, todos os seres viventes foram novamente salvos da extinção. – Sábia decisão... – diz Atena. – Dirijo a Gaia a minha especial gratidão por ter-me confiado o segredo da fertilidade, o mistério da semente que cresce e se transforma em alimento. – Bravo! – aplaude Afrodite. – Bem, tudo isso nós já sabemos. Agora vamos ao que interessa... amores! Se até as deusas virgens têm a sua história, imagino que com você não seja diferente. – É verdade, cada um de nós tem a sua história. Só que infelizmente elas são muito parecidas e, pelo o que ouvi aqui hoje, todos nós passamos pelas mesmas desagradáveis experiências. E eu não sou diferente: os deuses também não me deram trégua com suas inacreditáveis promessas de amor. Nunca alimentei falsas expectativas, sempre soube me manter em silêncio ou dizer “não” com firmeza, quando necessário. Quando a insistência era exagerada, eu simplesmente fugia, desaparecia da vista do sedutor. E... – E...? – Afrodite estende o ouvido atento. –... Poseidon foi o único que não deu ouvidor à minha recusa. Faz-se o silêncio que precede as grandes revelações. Afrodite arregala os olhos, curiosa. Hermes chega mais perto e Hera redobra sobre mim a inevitável vigilância.
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As revelações de Deméter
Percebo no ar um amargo gosto de vingança. – Poseidon passava todos os limites. Aonde eu ia, lá estava ele, com a fala melosa, cheia de intenções. Um dia, o atrevido não se conteve mais. Falou que pensava em mim dia e noite, que sua vida havia se transformado num verdadeiro tormento e outras tantas coisa que ainda hoje me aborrecem e faço questão de não lembrar. Diante das minhas negativas, suas palavras se tornaram cada vez mais ásperas, e seus gestos mais violentos. Só encontrei uma saída: fugir: E foi o que eu fiz. Só que Poseidon não desistiu, correu atrás de mim. Conseguiu me agarrar. – Já nem me lembrava mais desse tempo! – exclama Poseidon – Vocês fêmeas, adoram exagerar. Criam um drama de qualquer episódio sem a menor importância. – Obrigada, já estou bem. Depois de uma pequena pausa, continua: – A muito custo consegui me desvencilhar aqueles braços que me enlaçavam com força. Saí correndo pelos campos, já me sentia perdida, quando avistei um bando de cavalos pastando. Imaginei que estaria a salvo se me transformasse numa égua e me misturasse aos animais. Meu alívio, no entanto, durou bem pouco. Poseidon imediatamente percebeu meu disfarce. Tomou a forma de um garanhão e ali mesmo me violentou. – Não compreendo a razão de tanto melindre – ironiza Poseidon. – Você devia era sentir lisonjeada por ter sido o objeto de meu desejo... – Ninguém soube de nada porque preferi me calar, jurei a mim mesma manter essa história só para mim. Mas, agora que comecei... Depois do incidente vieram os longos meses de gestação até dar à luz o cavalo Aríon... – Por sinal, um cavalo belíssimo dotado de crinas azuis e de uma rapidez admirável – acrescenta o deus dos mares. – E uma filha... –... cujo nome jamais revelei a ninguém. Apenas os iniciados nos mistérios de Elêusis o conheciam. – Prometemos contar tudo, lembra-se? – provoca novamente Afrodite. – Basta vocês saberem que ela era chamada simplesmente de Déspoina, a Senhora. É tudo o que eu posso dizer, não insistam. – Déspoina... – repete Afrodite. – Déspoina... – Profundamente humilhada pelo ocorrido, abandonei o Olimpo e parti em direção à Terra. Vocês souberam da violência e, simplesmente, não se manifestaram. Ninguém foi capaz de me estender a mão. Enquanto fala e reúne os pensamentos, Deméter esfrega nervosamente as mãos. – As lágrimas pela dor de levar dentro de mim duas criaturas indesejáveis me fizeram secar o solo e destruir as plantações. Logo eu, que nasci para presidir a gestação, o nascimento e todas as formas de perpetuação das espécies! Vi a miséria e horror se espalharem, mas em assim me senti aliviada. Tinha atitudes que não reconhecia em mim, provocava a morte e a destruição e, a cada dia que passava, me sentia pior por contrariar a minha verdadeira natureza. Precisava arrancar da
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mente e do coração o cruel acontecimento. Foi então que Ártemis me aconselhou a mergulhar no rio Ladão, por seu poder de apagar a tristeza e lavar todo o horror e todo o ressentimento. Finalmente, percebi que, apesar de todo o sofrimento pelo qual atravessava, não havia perdido a capacidade de amar. Estava pronta para voltar ao Olimpo. – Talvez você não saiba, mas sou eu que me encarrego pessoalmente de não permitir que essa capacidade não se perca – assinala Afrodite – Meu poder surpreende... – É, pode ser... O amor chegou sem avisar e me pegou de surpresa quando vi o belo Iásion. Vivemos momentos de intenso romantismo sobre o campo três vezes arado, junto aos sulcos abertos, à espera da semente. Eu me sentia refeita do sofrimento, embalada por palavras doces que meu amado derramava como mel em meus ouvidos. Criava uma fantasia de eternidade para não pensar que Iásion era um mortal e que o nosso amor tinha os dias contados. Deméter hesita, sob o gélido olhar de Hera. Parece refletir, por um instante, sobre o quanto desta história ela quer realmente expor. – Eu teria prolongado minha felicidade se Zeus não tivesse sido tomado de ciúme ao descobrir nossos ardentes encontros. Empunhou um raio e mirou Iásion, que caiu fulminado sobre o campo... três vezes arado. Em meu ventre já crescia Pluto, o deus da riqueza agrária. – Aquele cego? – pergunta Hefesto. – Sou um deus imparcial e não admiti que ele favorecesse apenas os justos. A riqueza e a abundância devem ser destruídas para todos, justos ou injustos – acrescento. – Mal refeita de uma desgraça, logo me vi mais uma vez enlutada. O grande Senhor do Olimpo, que acredita que tem o Céu e a Terra sobre o seu comando, se aproveitou da minha fragilidade e me envolveu em sua irresistível conversa. Mas tive uma compensação: uma linda filha, minha maior alegria. Como ela posso viver o papel mais importante e significativo da minha vida: ser mãe... Hera fecha a cara, irritada. Certas atitudes são tão óbvias que nem vale a pena dar-lhes grande importância.
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– Perséfone foi um presente do Destino, que se apiedou de mim. Com minha filha, vivi os momentos mais felizes da minha vida. Ela era a minha alegria e o meu consolo. Perto dela eu me esquecia de tudo o que havia passado... O olhar de Deméter se volta na direção de Afrodite. –... até que me vi diante de uma nova provação. Perséfone foi arrancada de meus cuidados maternos, raptada por Hades, o sombrio deus do mundo dos mortos. Em meio ao enorme infortúnio que mais uma vez se abateu sobre mim, eu me perguntava: “Por que eu? Por que isso foi acontecer comigo?” Soube depois que a responsável havia sido Afrodite, ofendida porque Hades jamais havia se rendido ao poder de Eros. – Você sabe o quanto desprezo daqueles que são incapazes de amar. É a minha natureza – reage a deusa do amor. – Confesso que eu estava impaciente com tanta indiferença. Mas só isso. Desta vez não posso ser responsabilizada por nada. – E, em busca de uma bela noiva, dentre todas as deusas e ninfas da Terra, você tinha que escolher justamente minha filha Perséfone? Afrodite abre um belo sorriso e responde com ironia. – Você bem sabe como eu sou sensível à beleza...
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O rosto de Deméter revela uma expressão triste. – Nenhum de vocês jamais experimento o amor mais puro que existe, o amor entre mãe e filha. Minha maior alegria era ouvir o som da voz de Perséfone, sua gargalhada juvenil. Com satisfação eu a vi crescer e se tornar uma bela donzela. Já havia apagado de minha mente todo o sofrimento do passado e me sentia plenamente feliz junto à minha menina. – Quantas palavras melosas, que enjôo! – exclama Atena. – Por alguma razão, que não consigo explicar, algo me deixava inquieta. Reconheço que eu a protegia com excesso de zelo e raramente a deixava se afastar de mim. Infelizmente aquela triste manhã provou que meus pressentimentos estavam certos. Perséfone insistiu muito para brincar com as ninfas nos campos de Ena: “Promete voltar logo, não se preocupe”, disse. – É o que sempre falo, mimar muito um filho não dá bom resultado – comenta Ares. – Os meus filhos, por exemplo... – Você não entende nada a respeito – corta Deméter rispidamente – Meu coração de mãe só tinha um propósito na vida: fazer minha filha feliz. Contrariei os maus presságios e concordei que fosse brincar com as ninfas. Ainda hoje me culpo quando penso no acontecido, tanto já sofri e chorei arrependida. Poderia ter evitado o trágico evento se ao menos tivesse cuidado melhor da minha menina. Perséfone, tão jovem, tão inocente, não percebeu o perigo ao se afastar do grupo de amigas. Não se afastou muito, apenas o suficiente para se debruçar sobre o penhasco e estender suas mãozinhas em direção a um narciso que crescia entre os arbustos. Deméter estende os braços na direção de um imperceptível objeto. – Não vi a cena. No entanto, mesmo tendo-se passado tanto tempo, a imagem assustadora continua a me aparecer em sonhos. Vejo a Terra se abrir e, de dentro dela, surgir o soturno Senhor do reino dos mortos. Ouço soluços e súplicas, gritos desesperados de Perséfone, que chamam por mim e imploram minha ajuda. Corro em direção aos gritos e, impotente, só consigo ver a Terra novamente se fechar e minha filha ser tragada pela escuridão. – Não existe felicidade duradora, nem para deuses, nem para mortais – sentencia Apolo. – Naquela manhã, depois que deixei minha filhinha com as amigas, relutei muito em voltar para o Olimpo. Não queria ficar longe dela. Minha inquietação era quase insuportável. Hera passou por mim e comentou que eu estava com uma expressão sombria. “Estou muito preocupada com Perséfone”, respondi. “Ela está brincando com as amigas, no campo. É a primeira vez que a deixou sozinha.” Hera zoou de meus cuidados: “Ora, onde já se viu prender uma filha desse jeito, como você faz? Deixe-a crescer, como todas as outras jovens.” De repente, um vento frio soprou e um estranho calafrio percorreu todo o meu corpo. Nesse momento, tive certeza de que algo de muito ruim estava para acontecer com minha única filha. Quando ouvi
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os gritos de pavor da menina, fiquei alucinada. Corri para onde estavam as ninfas e exigi que me contassem o que havia acontecido. – Filhos, quem precisa de filhos? Só dão trabalho e preocupação – confidencia Ártemis a Atena. – As ninfas foram logo me dizendo, aos prantos: “Não foi culpa nossa! Tudo aconteceu tão rápido...” Elas então me contaram que Hades surgiu de repente e a carregou à força para o seu reino, o reino dos mortos. Uma carruagem puxada por cavalos negros se lançou sobre elas, que ficaram muito assustadas e a partir daí não conseguiram ver mais nada. Comecei imediatamente a minha busca pelos mares, montanhas, bosques, planícies, que ainda ecoavam com os gritos de minha filha. Busquei-a por toda a parte, desesperadamente. Deméter respira fundo. – Nove dias. Foram nove dias e nove noites de busca incessante. Eu não conseguia dormir nem me alimentar. Como um archote acesso em cada mão, procurei por Perséfone pelo mundo inteiro. Perguntei à Selene se havia testemunhado o rapto. Ela afirmou nada ter visto em sua passagem noturna pelo Céu. Quando amanheceu, fiz a mesma pergunta à Aurora e a resposta foi idêntica. Ela de nada sabia, mas se prontificou a ajudar: “Vou levá-lo ao palácio dourado de Hélio. Estou certa de que ele vai saber lhe dar alguma informação”. Foi assim que, no décimo dia, Hélio me contou o que havia acontecido: Zeus a havia dado em casamento a Hades! Mal consegui acreditar em suas palavras. Zeus fou responsável por mais esse ato de crueldade. Foi ele quem colocou uma flor de narciso para atraí-la para a beira do abismo. – Ora, Deméter, não seja tão dramática – digo-lhe. – Meu irmão estava procurando uma noiva e eu lhe dei uma ajuda. – Claro, depois da infalível seta de Eros, a mando de Afrodite... – resmunga Deméter. – Um dia, o solitário Hades me mandou um recado: queria se casar. – lembro. – Depois de percorrer inutilmente seu tenebroso reino à procura de uma esposa, decidiu procurá-la na Terra. Quando seus olhos, mal acostumados com a claridade do dia, se fixaram em Perséfone, ficou deslumbrado. Foi então que ele veio me procurar, precisava da minha autorização. Não vi nenhum mal em lhe prestar esse favorzinho. Deméter olha para mim, furiosa. – Relembrar a história do rapto de Perséfone: traz de volta toda a minha dor, minha ferida jamais cicatrizada. Afrodite se levante e, de dedo em riste, declara: – Aproveito para esclarecer de uma vez por todas que não tive nenhuma participação no evento, como insinuam alguns, maldosamente. De fato, confesso que a versão de Hades ao amor estava começando a me aborrecer, mas nada fiz para mudar tal situação. Refleti melhor e decidi que eu não tinha nada a ver com os fatos que ocorriam lá embaixo, no mundo subterrâneo. – Eros me contou que foi você que o convenceu a lançar a seta mais afiada de
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sua aljava, a dourada flecha do amor, e crivá-la em Hades para fazê-los se apaixonar – contesta Atena. Deméter faz um gesto para que as duas se calem. – Implorei a Zeus que fosse falar com o Senhor das Trevas, para obrigá-lo a me devolver Perséfone. Ele não me deu a mínima atenção. Sem conseguir suportar o sofrimento que me causava a simples presença do deus dos deuses, vi que não poderia ficar aqui no Olimpo nem mais um instante. Meu único desejo era encontrar minha filha, custasse o que custasse. O peito de Deméter se agita com um soluço. – A vida sem minha filha não faz nenhum sentido. Abandonei a função divina de deusa da vegetação e deixei que a amargura tomasse conta de mim. Perdi o interesse por tudo. Pouco me importava que nenhuma semente brotasse da Terra ressecada. Olhava com total desinteresse a fome que se alastrava rapidamente como uma epidemia fatal. Homens e animais sucumbiam por todos os lados à falta de água e de alimento. Que meu luto se espalhasse por toda a Terra e que a minha perda fosse sentida por cada mãe, cada mortal. – Eu precisei interferir pessoalmente para que tal calamidade não colocasse em risco toda a raça humana – justifico. – Devesse ter pensando antes de me ferir tão profundamente. Eu repetia que a única coisa que eu queria era ter minha filha de volta e você insista em me mandar mensageiros para tentar me acalmar, me convencer a trazer novamente a vida à Terra seca! – Eu bem que tentei... – lamenta Hermes. – Como mensageiro de meu pai, fui procurá-la e usei todos os argumentos de que dispunha para reverter a situação. Nada consegui além de ouvir seu próprio lamento. Voltei para o Olimpo, certo de que minha missão havia fracassado. –Enviei Hermes ao reino dos mortos para convencer Hades a libertar Perséfone. Ele respondeu que era impossível, que estava apaixonado por ela, eram casados. Felizmente, a muito custo, meu irmão compreendeu que não podia mais prender Perséfone junto a si e deixou partir. – Como assim, “felizmente”? Que preço alto nos fez pagar por tanta generosidade! Ou você se esquece de que, graças a você, hoje não tenho minha filha ao meu lado no banquete, como eu tanto gostaria? – Por uma semente de romã... – sussurra Afrodite. – Um evidente sinal de sedução... Infalível. Conheço todos os sortilégios amorosos. Aliás, fui eu que ensinou Hades a... – Sim, por causa da semente de romã! Hades só a deixou partir porque achou mais conveniente não contrariar Zeus. Meu sofrimento estava próximo do fim, se não fosse por um pequeno detalhe: algumas poucas sementes de romã. O Senhor das Trevas convenceu minha filha a comê-las. A probrezinha não queria... Tenho certeza, isso ela mesma me contou depois... Fui seduzida contra a sua vontade. – Não sei porquê de tanta amargura. Um dia isso tinha mesmo que acontecer
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– interrompe novamente Afrodite. – É a ordem natural das coisas. Ou você queria para ela um futuro igual ao de Atena ou de Ártemis? – Ora, fique quieta! –protesta Hermes. – Eu conheço bem melhor que vocês o que realmente aconteceu, porque fui eu quem resgatou Perséfone das profundezas infernais. Saibam que, assim que cruzei o portal do mundo das trevas, eu a vi sentada em seu trono ao lado do marido. Ainda deu tempo de presenciar a cena de Hades forçando-a comer sementes de uma romã. – Pois isso mesmo que ela me disse... – Quando subimos no carro dourado que Hades mandou aprontar para nossa volta, percebi que a fisionomia de Perséfone estava mudada. Tinha um semblante adulto e já não parecia mais a criança pura e inocente de antes. – Para mim ela foi e sempre será a minha doce filhinha... Eu estava tão aflita para revê-la, que a espera parecia não ter fim. Quando a vi correr ao meu encontro, eu não consegui contar a emoção. Choramos de saudades em um longo abraço, que poderia atravessar a eternidade. No momento em que senti seus braços se afrouxarem em volta de meu corpo, eu lhe disse que estava na hora de voltarmos ao nosso palácio no Olimpo: “Vamos tentar esquecer tudo o que passou e, a partir de agora, vou viver só para cuidar de você...” – A romã... – murmura Afrodite novamente. – Foi então que tive a triste revelação. Perséfone havia quebrado o jejum, a rigorosa lei do reino dos mortos. Mesmo tendo sido vítima de uma trapaça, ela não poderia mais retornar ao mundo dos vivos, nem ao Olimpo. – Fiz um favor especial a vocês, não se esqueçam disso – corto com rispidez. – Graças a mim, você poderá ter sua filha junto de si quando Hélio voltar a iluminar a Terra. – Sim, eu sei. E espero com ansiedade a sublime ocasião de reencontrar Perséfone. Para dar-lhe as boas-vindas, a cada ano enfeito a Terra como para uma grande celebração. Enriqueço-a de seivas nutritivas para que possa oferecer seus mais deliciosos frutos. Torno os campos mais verdes e favoreço o desabrochar das flores para que enfeitem o mundo com sua infinidade de cores. Permite até que o inebriante perfume chegue ao Olimpo para que vocês também possam compartilhar a minha alegria. Deméter dá um passo atrás e deixa os braços penderem ao longo do corpo. – Concordo com Apolo: mesmo para os deuses, os bons momentos não passam de um breve instante. Logo chega o frio e novamente minha Perséfone tem que me abandonar para retornar ao mundo das trevas. De tristeza, resseco a Terra, amareleço as folhas e me retiro do convívio de todos para novamente chorar o meu luto... – É nessas horas que eu fico ainda mais certa de ter tomado a decisão correta em não querer ter filhos – comenta Atena. – Não troco minha liberdade por nada... Deméter controla a irritação que lhe causa esse comentário fora de hora e continua:
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– Lamento sua amargura, minha cara. As Senhoras do Destino foram cruéis com você. Não a deixaram provar o amor mais puro, mais inteiro e perfeito, que é o amor entre mãe e filha. Não importa o quanto você admire seu pai, jamais conseguirá chegar perto da sensação de plenitude que traz gerar um filho. Após uma pausa, Deméter conclui: – Meu consolo é aguardar o retorno de Perséfone, a época do contentamento e da celebração, quando permito que os grais novamente brotem do solo. A Terra se veste de cores e se enfeita para recebê-la de volta. E a alegria ecoa por todo o Universo. Deméter se cala e, emocionada, volta para o seu lugar. O silêncio é minha última palavra. Preparo-me para encerrar a cerimônia
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Hermes vem me dizer que Sol está prestes a terminar sua jornada pelo céu e Noite só espera meu sinal para desdobrar sobre nós o escuro véu. Depois de seu longo dia, a celebração chega ao final. Seguro o braço de minha divina esposa e juntos descemos as escadas do trono em direção à Chama Sagrada. Com passos lentos, os deuses acompanham o som ritmado dos tambores e se aproximam para formar um círculo em torno do Fogo. Hélio obedece ao meu aceno e, enquanto se despede tingindo o céu de vermelho, interrompe por alguns momentos o percurso do Tempo. Os tambores silenciam. Chega, enfim, o momento do ritual mágico. Mnemósine estende as mãos, onde Héstia delicadamente pousa a Semente do Fogo. – Como Deusa da purificação e da renovação, eu transfiro para suas mãos, deusa Memória, a Sagrada Semente, para que essa luz jamais se apague. – Tenho a honra de encerrar a cerimônia que, a partir de agora, será conhecida como “O Inesquecível Banquete dos Deuses”. Ordeno que as labaredas purifiquem nossos corações de toda a amargura. E que a luz da Sabedoria ilumine por toda a eternidade a nossa memória ancestral. Daqui por diante, caberá a nós cuidar para que a lembrança de nossa divindade e de nossos feitos não seja mais destruída. Atena dá um passo à frente e diz:
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Palavras Finais
– Em nome de meu pai Zeus e em nome da Sabedoria que me foi confiada desde o momento de meu nascimento, quero proclamar diante de todos aqui presentes que jamais deixarei nossa imagem e nossos feitos caírem no esquecimento. Em qualquer momento ou lugar, agora e sempre, a Terra será cada vez mais o lugar onde os humanos irão se esforçar em imitar os deuses. E, cada vez mais, os mortais serão o espelho no qual poderemos nos contemplar. Os tambores voltam a pulsar. Lentamente, vamos refazendo o círculo, desta vez em torno de Mnemósine. A música acompanha seu gesto e ressoa num compasso crescente. Hermes tinha razão. O encontro foi necessário e o banquete, o evento mais importante dos últimos tempos. Falamos o que nos foi conveniente, apesar da promessa de não ocultarmos nada e do visível esforço de não deixarmos coisa alguma por revelar. Evidentemente, ainda há tempo para ser dito, episódios que estão enterrados sob pesadas camadas de vergonha ou nódoas provocadas por mal-entendidos, teremos perigosos que hoje preferimos não trilhas. Não tenho idéia de como vai ser a nossa vida daqui para frente. Talvez fiquemos mais próximos, talvez não. Enfrentar a eternidade na solidão e no anonimato tem sido um castigo não merecido. Foi meu pai Crono quem ensinou que a marcha do tempo é implacável, mesmo para nós, que nos julgamos acima de qualquer temporalidade. Nada nos resto senão a Memória para transformar nossa narrativa, recriar a experiência e, assim, garantir de alguma forma a nossa permanência. Continuo a acreditar na eternidade dos deuses,mesmo que adquiram novos nomes e novas roupagens. Os mortais são frágeis e, por mais que o tempo passe, eles jamais deixarão de não necessitar de nossos favores, como sempre foi. Somos nós, os deuses, que lhes servimos de modelo e conforto para superar a mísera condição humana. O que na realidade não é consolo, mas triunfo da nossa existência. Noite inicia sua cavalgada pelo mundo e, à medida que as trevas se tornam cada vez mais espessas, o Fogo Sagrado cintila num ponto de intensa luz. Bato três vezes com o cetro no chão. As batidas ressoam por toda a Terra, para despertar a consciência dos homens. Quando o tremor cessa, os olhares se voltam em minha direção. – Quando assumi o governo do Universo, – declaro com firmeza. – fiz um juramento solene de mostrar aos mortais que os deuses são a realidade mais importante e, por esta razão, devem ser constantemente temidos e adorados. Não aceitamos a condição de provisórios: recusamo-nos a desaparecer, simplesmente. Renascemos a cada momento, recriados em novos nomes. Pouco importa. Nossa essência permanecerá intacta para sempre. Mais do que reverenciados, estamos impregnados na essência de cada ser humano. Mnemósine caminha pelo círculo e faz uma reverência diante de cada um de nós. Depois, retira de dentro de si mesma uma semente de pura energia, que junta cuidadosamente ao Fogo Sagrado. E, num gesto largo, a louça para o alto. Em contato com o Éter, a semente se multiplica em milhões de faíscas, que descem suavemente em direção à Terra.
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