DAMN BLOOD
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Nem sempre os segredos podem se manter escondidos de todos!
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Cidade de Bucareste 23 de novembro Hora: 00:15 p.m. O último corpo cai inerte aos meus pés, sua cabeça rolara para a estrada vindo a parar próximo a uma igreja tamanha a projeção de minha força ao arrancá-la com minha espada. A chuva lavara todo o sangue que havia se acumulado na lâmina gasta de minha espada assim o fazendo também com cada parte em mim, sejam elas pele, jaqueta ou calças, tudo se foi como se nunca tivessem existido. O frio já não me persegue mais, o medo se esvaiu como o sangue na chuva escorrendo para os ralos podres da cidade, não havia mais nenhum. Nenhum porco vampiro restara vivo a não ser aqueles que se tornaram meus amigos e juntaram-se as lutas finais em prol de uma humanidade perdida entre a insanidade e a lucidez. Não há mais o que temer... A não ser claro que algum de nós, algum, por certo, louco se aventure a desafiar a nova ordem da Orquídea Vermelha. Mas é claro que não restará um de pé antes mesmo de que venham a enlouquecer, eu estarei aqui para evitar a destruição deste mundo já perdido... Ou eu não me chamo Madde! Você com certeza deve de estar se perguntando que diabo de história é essa certo? Pois bem, eu vou começar desde o início e vou logo dizendo 4
que não vai ser uma história bonitinha como as de costume... E também aviso que não era nada disso que eu queria pra mim e para a minha vida!
CAPÍTULO 1 Minha tia nunca escondeu de mim nenhum segredo, talvez ela quisesse assim, talvez por desafio aos pais – meus avós – ou simplesmente por que era necessário que eu soubesse o que eu realmente era. Imagine você de repente descobrir que a sua alta sensibilidade à luz solar ou mesmo aversão a certos alimentos que se deveria comer normalmente é por que se devem a metade dos genes vampiros circulantes em suas veias. O que você sentiria se nunca tivesse o conhecimento de tal história? O que seria de você se resolvesse sair mordendo todos os pescoços que visse causando dor e a indiferença dos outros? O que seria sentir repulsa de si mesma por sua própria condição? Por matar injustamente alguém ou algum pequeno ser? 5
Bem eu não sei dizer o que eu realmente sentiria se nunca tivesse tido a chance de conhecer sobre a minha própria história, mas sei que odiaria para o resto da vida aqueles que quiseram esconder de mim. Não quero dizer que odeio meus avós por quererem me proteger de mim mesma, mas eu tinha o total direito de saber de minha condição meio humana meio imortal, estou certa ou não? Pois é... Eu sei que sempre estaria certa nesse tópico, mas ninguém sabe na realidade como me sinto por dentro por ter que guardar tal segredo dos outros com quem convivo. Às vezes eu penso em como seria a minha vida sem essa minha metade feroz e sanguinária que me arranha todas as noites enquanto penso deitada em minha cama, imagino como seria ter minha mãe ao meu lado me apoiando em tudo e todas as minhas decisões, me ajudando a crescer e a obter uma sessão de valores e conceitos que nem meus avós e nem minha tia conseguira me passar. Imagino como seria diferente se em minha vida existissem um pai e uma mãe normais, com vidas normais e com amigos e diversões normais onde poderiam se empenhar junto comigo, mas eu não tenho nada disso, nem sequer tive a chance de conhecer a mulher que teve a ousadia de me por no mundo. Minha mãe sabia dos riscos, sabia que eu, o embrião que ela gerava dentro do ventre, lhe estava sugando a vitalidade e ela nunca saberá como me repudio por isso, eu não quis, eu nunca quis que ela sofresse por mim... Eu nunca quis que ela morresse para eu nascer... 6
Metade do meu tempo é dentro de meu quarto, pensando, escrevendo ou simplesmente mergulhada em sombras o tempo todo, pensamentos odiosos, desejos reclusos, batimentos cardíacos acelerados a cada alma vivente que passa do outro lado da porta ou mesmo na rua tantas vezes calma. Por algum tempo eu não quis sair, não quis estudar nem mesmo trabalhar, por algum tempo me mantive isolada do resto do mundo até por que na época eu ainda tinha muito medo de minhas ações. Mas hoje em dia não, eu não sinto tanto medo quanto antes, eu ainda sinto o pungente cheiro adocicado do sangue quase transparentes nas peles daqueles por quem tenho de esbarrar todos os dias na rua, no meu trabalho ou mesmo em parques, ou outro lugar muito movimentado. - Madde... – Uma voz suave e cantante chamou-me no patamar abaixo. Era tia Glendora e aposto que me chamava para o café da manhã. – Vem, preciso de sua ajuda na cozinha. - Sim, já estou descendo! Eu podia sentir no ar que ela estava feliz, e o motivo era Mirage sua filha. Era a primeira vez que sua filha vinha para casa após um longo período fora. Ela estudava em Paris, França e só agora conseguira ter as desejadas e sonhadas férias estudantis de um ano. Logo de primeira assim que cheguei à cozinha fui assaltada por um desejo avassalador, o pesado cheiro de almíscar ainda não conseguia disfarçar o cheiro do sangue de tia Glen, ainda era difícil, mas eu conseguia segurar. 7
- Oh... – Ela se assustou com a minha aparição tão repentina na cozinha. – Eu não sabia que você já havia chegado aqui! Sente-se, eu vou lhe servir de um boa taça de salada de frutas, suco e panquecas. Sorri tentando engolir um calombo que se formava em minha garganta, algo arranhava minha gengiva e era de dentro para fora. Minhas presas queriam sair, mas eu travei o maxilar justamente para evitar sua repentina e não pronunciada aparição. Ela não percebeu. Havia se voltado de costas para mim de frente para o fogão onde terminava de temperar seu prato contendo bacon e ovos fritos. - Dormiu bem está noite? Não teve nenhum pesadelo ou sonho estranho? – Perguntou ela ainda de costas. Seu coração batia suavemente enquanto suas veias pulsavam deixando-me zonza. “O que há comigo?” Me perguntei. - Ahn... O que? – Fechei os olhos enquanto abaixava a cabeça e entrelaçava os dedos uns nos outros nervosamente. - Perguntei se não teve mais pesadelos esta noite! Você não me escutou? - Ah... Sim... Sim escutei tia... – Eu não conseguia disfarçar mais do que minha vontade permitia, tia Glendora iria descobrir minha fraqueza logo cedo e isso não seria muito agradável de se acontecer. Bem como havia pensado, ela apagou o fogo deixando a frigideira com os ovos sobre o fogão, secou as mãos úmidas pelo vapor numa toalha 8
branca e sentou-se de frente para mim. Desconfortável, pois o cheiro de seu sangue me vinha diretamente agora ao nariz, tentei me ajeitar à mesa, mas isso apenas serviu para me entregar. - Há quanto tempo não se alimentas Madde? Responda-me e eu espero que sejas sincera! – Perguntou-me séria. - Não tia Glen... Eu... - Madde! – Ela me encarou com ar de reprovação. Eu quis mentir, céus como eu tentei mentir, mas minha insegurança e desconhecimento da mentira me fizeram ainda mais culpada por algo que devia fazer e não faço. Fechei mais uma vez os olhos tratando de apertá-los tão forte que podia sentir uma dor fininha açoitar-me por dentro como farpas enferrujadas de agulhas. - Três dias... – Minha boca abriu-se pouco, meus olhos eram pequenos e apenas viam os dedos entrelaçando-se nervosamente diante de si. - Três dias? O que você quer? Entrar em estado de torpor e me deixar louca aqui cuidando de você? Sabes que não posso chamar um médico, eles iriam desconfiar logo! - Desculpe-me tia, mas eu não posso... Eu tentei e não consegui, não posso matar nem um animal para satisfazer isso! Eu não quero... - Mas você sabe que é necessário, por que teimas em não fazê-lo? - Por que não é de mim que vem esse maldito desejo! Eu sei o que sou, mas eu não quero ser! Eu não pedi para nascer assim, eu só queria ser como você, Mirage ou qualquer outra garota normal que come, bebe e se 9
sente bem assim... – Agora meus dedos comprimiram-se formando punhos fechados em ambos os lados. Não conseguia nem chorar, as lágrimas haviam secado dentro de mim e agora me arranhavam por dentro como a minha sede por sangue. Tia Glendora tinha sempre o poder de me fazer dizer tudo o que vinha de dentro do meu peito onde um coração ainda batia como qualquer outro, ela conhecia, sabia de todas as minhas necessidades e de uma maneira tão ampla que eu quase podia pensar que ela queria isso para si também. Tia Glen era dona de belos olhos ligeiramente puxados e grandes, sempre maquiada não importando a hora ou circunstância lembrava uma mulher dos anos 80 ou 90 com seus belos penteados e roupas, seus traços firmes era suaves quando sorria transmitindo-me uma paz q mais ninguém sabia transferir e eu às vezes podia sentir dentro de mim mesma como ela se sentia desconfortável com as minhas sensações de mal estar e luta contra meu ser, o monstro que habitava parte de mim. - É tão difícil pra mim... Acordar todos os dias assim, com essa vontade! Eu não queria isso. - Ninguém queria isso pra você Madde querida, mas sabes que as circunstancias foram totalmente inevitáveis, sua mãe não teve culpa do que aconteceu tampouco você! Vamos lá minha menina, não desanimes e nem desistas desta vida. Pode ser que você não consiga domar seus instintos, mas um dia conseguiras e vais lembrar de meus conselhos e ajuda. – Ela sorriu enquanto sua mão tocava-me a pele da face levemente 10
aquecida, ela não sabia como aquilo poderia ser tão tranqüilizante para mim. – Vá e se alimente, são só animais! Novamente ela trouxe sua mão até mais próximo de seu corpo abstendose de levantar-se quando me levantei, eu não queria fazer isso, mas meu corpo exigia de mim assim como minha mente, eu teria de sair e caçar algo e dava sorte por morar bem próximo de um bosque onde animais residiam, pelo menos ali ninguém iria me interromper, o bosque era fechado demais e apenas uma sabia como entrar e sair dali e esta era eu! O sol quase me cegara quando pus os pés para fora, rapidamente coloquei os óculos escuros que tia Glen comprara há alguns dias após uma saída breve para as compras e continuei meu caminho. O doce cheiro assaltara-me novamente o olfato altamente aguçado e logo quando pude embrenhei-me no denso bosque tendo a certeza de não ter sido vista por nenhum vizinho bisbilhoteiro. Parei no centro de uma clareira onde o sol me atingia com suavidade a pele e aspirei o ar novamente tomando nota de qual direção vinha aquele cheiro delicioso e após constatar que vinham de mais adentro do bosque apressei-me a correr. Tudo em mim era diferente, o olfato era altamente apurado assim como a visão e a audição, eu quase podia sentir o gosto das coisas que usava para me fortalecer, minha agilidade, velocidade e força eram dez vezes mais potentes que o normal para um humano qualquer, eu podia correr, saltar de lugares altos e arremessar coisas muito mais pesadas que minha própria constituição física permitia, minha percepção assim como uma 11
série de outros alarmes era rapidamente acionada quando havia algo de errado acontecendo, eu podia sentir o medo, ouvi-lo murmurando em meus ouvidos, sentir dentro de mim como se eu fosse a presa a ser caçada... Arranquei os óculos do rosto colocando-os presos na gola da camiseta preta, novamente aspirei o ar e iniciei uma longa corrida para o norte onde até então minha presa, um cervo, se encontrava. O vento batia em meu rosto frio e suave, o sol me seguia por vezes a se esconder por entre as altas árvores, o seu calor fazia-se meu como o desejo por aquele sangue, talvez até mais forte que isso, mas não sobreviveria de calor, precisava muito mais do que isso. Meus pés eram silenciosos, ninguém poderia me escutar chegando assim tão rapidamente, nem mesmo o mais inteligente animal, eu era como um tubarão que sente o cheiro e gosto do sangue a mais de duzentos metros, um predador assassino que não sossega enquanto não tiver o seu objeto de desejo nas mãos, o ar estava impregnado como se uma droga escapasse por este, entrando em minhas narinas e nublando meu instinto humano libertando a parte animal reclusa, meu coração acelerado quase me saltava pela boca, minha cabeça doía assim como o corpo com a esperança de poder ter para mim aquele ser, tomar de si como um bêbado toma de uma cara garrafa de vinho. Lá estava o meu alvo, um cervo solitário a pastar numa outra clareira aberta, o sol estava todo sobre ele o que provavelmente o cegava para a movimentação ao seu redor. Escondi-me atrás de uma árvore observando 12
atentamente o trajeto dos olhinhos do animal, dor me invadiu a mente e coração me obrigando a pensar como gente, como uma pessoa normal, eu não iria conseguir tirar a vida de um animal puro como aquele, renegaria o meu desejo em prol da vida daquele bicho por mais que me matasse aos poucos ou só me enfraquecesse. Outro cheiro misturou-se ao ar, sangue humano, sangue de um caçador armado. Ele vinha na minha direção e sabia exatamente o que tinha vindo caçar. O cervo não percebeu a movimentação a mais de cem metros de si, o homem posicionara-se próximo de onde estive e mirou exatamente naquele meu objeto de desejo. Olhando de cima eu parecia um gavião vigiando e zelando pela integridade do bosque e de tudo o que vive nele, parecia um animal furioso que se controla para não fazer nenhum mal a outro ser igual, ele puxou o gatilho, sorriu docemente como se contente por achar a sua fonte de riquezas e murmurou algo para si que eu consegui escutar como se falando ao pé de meu ouvido. - Vem para o papai baby! Fechando um dos olhos ele atirou, eu não tive nem tempo de olhar para o lugar onde este havia mirado e atirado, quando vi estava sobre este o socando e arranhando sua pele, a fúria me absorvendo a última partícula de humanidade. O cheiro de ferro invadiu-me as narinas, o animal tinha sido ferido e eu senti como se a ferida fosse minha, um enorme buraco em meu peito abrira-se e a dor foi insuportável.
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O caçador estava desmaiado, sua arma jogada longe agora se encontrava presa no alto de uma árvore, o cheiro de pólvora afundava-me em profunda amargura, o cervo estava agonizando e agora o que eu faria? Não poderia resistir, ele estava morrendo, não havia como reverter! A próxima sensação que tive foi como se tivessem injetado heroína direto em minha veia – se é que posso fazer uma comparação com isso – minha cabeça parou de doer e era como se anestesiada pelo doce sabor do liquido vermelho vivo, não escutei mais nada a não ser meu próprio coração batendo dez vezes mais rápido, minha pulsação chegava ao cumulo de me irritar, meu corpo tremia em frenesi, mas a sensação com certeza não era a mesma de estar sugando o sangue de um humano, porém era mais do que suficiente. Quando senti que o animal já havia expirado, exalado o último suspiro abandonei-o, o sangue de um animal ou ser qualquer que dê o último suspiro torna-se impuro, poderia me matar até. Limpei o canto de meus lábios com a barra da camiseta tendo sobre mim agora os olhos do caçador ainda meio grogue, meu coração disparou novamente e desta vez foi de medo e surpresa, me senti na pele do cervo que usei para me alimentar, sua arma estava apontada para mim e eu sabia que não deveria ter mexido com aquele homem. Eu sabia que ele não podia enxergar-me realmente, seus olhos estavam inchados e provavelmente a dor neles não o permitia enxerga mais do que um metro a sua frente, a sua volta eu vi uma luz estranha e era de um 14
forte tom Carmim, senti sua fúria golpear-me, mas eu fui muito mais rápida, antes que este tentasse me atingir com uma pistolazinha qualquer chutei sua mão arremessando a arma para qualquer lugar longe de seus olhos, ele não sabia com quem estava mexendo! Minhas mãos doíam, mas não por fraqueza ou sensibilidade, doíam por que soquei demais aquele homem e agora me arrependia amargamente por tê-lo feito. Bem, pelo menos o deixei respirando amarrado àquela árvore na beira da estrada do outro lado da cidade. Dificilmente alguém descobriria o que fora aquilo, possivelmente achariam que ele apanhou de um bando de bêbados motoqueiros estrangeiros. Atravessei a cerca que afastava o bosque do quintal da casa de tia Glen e depois de checar três vezes se não havia nada fora do lugar entrei tendo uma surpresa diríamos que ao mesmo agradável, desagradável. - Oh... Ela chegou, Madde sua prima resolveu fazer uma surpresa e veio sozinha para casa! Meus olhos foram dela para Mirage sentada de costas para mim, os longos cabelos castanhos tinham um brilho natural de ruivo, o cheiro de seu sangue não me afetava tanto agora, mas tinha um cheiro ainda mais doce que o da tia Glen. Mirage voltou-se para mim com os grandes olhos castanhos por me encarar, não tinha um ar muito feliz em me ver, isso eu sentia emanando de seus pensamentos e sensações corpóreas, o ar estava impregnado com
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um ar apimentado e arisco de rivalidade, trinquei os dentes esperando não manifestar nenhum momento de insanidade. - Hei vamos garotas... Cumprimentem-se! Minhas mãos estavam escondidas atrás das costas, ninguém ali poderia saber o quão feridas elas estavam ou mesmo quanto sangue eu escondia ali. - Bom dia prima! – O seu jeito abusado de cumprimentar os outros ainda não havia sido extinto. Ela estendeu a mão para mim e eu recuei, temendo mostrar as minhas mãos cheias de lesões que se fechavam lentamente. Ela me encarou franzindo a testa como quem diz que está esperando sua ação, mas eu não correspondi as suas expectativas, tia Glendora, porém me encarou séria com um ar inquisitivo como se já soubesse do problema. - Ah... – Tentei sorrir, mas as presas ainda estavam fora do lugar então o sorriso voltou a ser um mero traçado nervoso em minha face. – Bom dia. Rapidamente esgueirei-me para fora da cozinha sem mostrar minhas mãos e assim que consegui atravessar a porta corri para o andar de cima na direção do banheiro. - Hmm... O que há com ela? - Nada filha... Continue seu café da manhã, eu vou ver o que está acontecendo com a Madde!
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A água gelada não adiantava para esfriar o sangue quente que corria vivo em minhas veias, meus dedos esfolados curavam-se em um ritmo lento, eu sabia o por que disto. Sangue animal não é tão forte e rico como o humano. Está bem, eu nunca provei do sangue de um humano qualquer, mas eu sei que quando vampiros bebem do sangue humano suas feridas cicatrizam com uma rapidez sem igual. Ainda tremia de ponta a ponta, meus olhos cor de mel esverdeados ligeiramente mudavam para o tom avermelhado sangue, mas nada que pudesse vir a me comprometer, apenas as presas permaneciam intactas para fora e doíam muito também. - O que está acontecendo com você Madde? – Sussurrou tia Glen ao abrir a porta entrar no banheiro e fechá-la. - Ai céus... Tia! – Olhei para ela espantada, a sensação de coração saindo pela boca era quase palpável. - Madde! O que foi que aconteceu? – Ela perguntou de uma maneira ríspida como uma mãe faria, seus olhos estavam o tempo inteiro em minhas mãos. - Tive um contra tempo... Nada demais! – Respondi tentando esconder as mãos. - Nada demais? Você brigou com alguém? Bateu em alguém? - Eu não tive culpa está bem? Eu não mando um caçador entrar na frente de minha caça, eu tive que defender o que era meu e quase levei chumbo por isso! 17
- Você brigou... – Ela disse parando instantaneamente para inspirar. – Você ousou bater em um homem? Um caçador? Você ficou louca? Poderiam ter te matado Madde! - Eu sei disso tia, mas não me mataram, estou aqui não estou? - E o que aconteceu ao homem que lhe fez isso? – Ela pegou de assalto minhas mãos e as pôs esticadas diante de si própria elevando o meu campo de visão para as lesões. Minha boca ficou seca, meu peito parecia querer explodir, meus olhos ardiam enquanto os dentes voltavam para o seu destino tradicional. - Eu o deixei amarrado do outro lado do bosque... – Engoli em seco. – Beirando a estrada principal! - Céus, céus, céus... O que faremos se ele te reconhecer? - Tenha calma tia... Não vai acontecer nada! Eu apaguei a cena da memória dele. Ele não se lembrará de mim... – Com uma toalha em mãos escondi ambas debaixo dela tomando cuidado para o atrito não me causar mais dor. – Pelo menos eu acho que não! - Você ainda acha que não? Meu Deus, você está querendo que eles lhe cacem? Só pode... - Tia... – Minha voz subiu duas oitavas. – Eu tenho tudo sob controle, tenha calma... Ela se afastou descrente, a porta se abriu para permitir a sua passagem e logo ela já estava descendo as escadas e eu digo que seu humor não era um dos melhores agora pela manhã. A sua volta havia um estranho tom 18
verde claro que me ditava a descrença dela em minha mania de sempre achar que sei o que estou fazendo. Bem, eu sei que às vezes faço coisas erradas, mas não tenho culpa por ser assim e ninguém tem o direito de me jogar isso na cara! Voltei-me para o espelho por alguns segundos, meus olhos cintilaram pela última vez o belo tom vermelho claro tornando-se verdes quase como a cor do mel. Eu tive certeza agora de que estava bem, tirando claro o estado das mãos lesionadas. A manhã passou assim como a tarde sem mais delongas, eu não sei o que houve com o homem presa a árvore, não sei o que ele iria contar nem até onde ele poderia vir a lembrar e nem quando. Apenas sei que dormi muito mais do que na última noite em que tive folga. Após alguns problemas no bar onde costumava trabalhar todos os funcionários foram liberados até que algumas reforminhas básicas fossem feitas. Bom tempo para ficar deitada e ler algum estúpido romance antigo. Eu não sei, eu sou aquele estilo de garota que não se apaixona por um Edward Cullen ou mesmo um Jacob, muito menos sou uma garota boba como a Bella Swan, arranjar um estereotipo de mocinha para a minha pessoa fica complicado, sou forte, corajosa, mas fraca ao mesmo tempo em que covarde quando a minha parte monstruosa tenta se libertar. Mas
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eu ainda assim gosto da personagem da Elena Gilbert em Diários de Vampiro. Apenas perco para ela no quesito humanidade, eu sou metade humana não dá pra considerar infelizmente. Tenho exatamente os desejos que Stefan pelo sangue da sua amada e o mesmo conflito pessoal que ela enfrenta após descobrir que ele é um vampiro, mas não sou perseguida por nenhum irmão louco e muito menos sou amada por um belo e Cortez homem do século XIX. “Toc, toc, toc...” Alguém batia a minha porta. - Sim? – Perguntei sem desviar meus olhos do segundo livro da séria Diários de Vampiro. - Éh... Posso? – Ela olhou para dentro de meu quarto e vou logo dizendo que não esqueço o jeito como ela olha para mim ou para as minhas coisas. Esclarecendo logo, tia Glendora nunca contou a mais ninguém sobre minha condição dhampir, era apenas eu e ela sabendo de toda essa história, nem mesmo Mirage tinha conhecimento. Bem... Ela nem podia ter tal conhecimento! - Pode! – Continuei deitada na cama lendo o último parágrafo do capítulo sete. - Está bem... Mm... - Fale logo, pra que veio até aqui? – Virei a página um pouco tensa.
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- Eu queria saber se você tem alguma coisa programada para esta noite. Eu fiquei sabendo pela minha mãe que você está de folga no seu trabalho então pensei que... - Eu poderia sair com você esta noite? – Eu ri um tanto descrente. - Mm... É! Se não tiver nenhum problema! Fechei o livro, o que será que Mirage tinha na cabeça? Ela nunca quis nada comigo, nunca me tratou como seu eu fosse sua prima, pra ela eu era mais um bode expiatório que leva a parcela da culpa por alguma coisa quebrada ou fora do lugar. Eu sentia cheiro de coisa errada, algo de muito estranho sondava-me e eu sentia isso emanando dela. - Sejamos sinceras prima... Por que o repentino interesse em querer me convidar para sair? Eu... Realmente não entendo você! Mirage reagiu da maneira que eu pensei... - Puxa, eu só queria passar um tempo com você! Eu passei cinco anos em outro país, só queria recuperar o tempo perdido! – Revirei os olhos. “Recuperar o tempo perdido, me poupe!”. - Sinceramente eu acho que deveria recusar. – Falei tentando voltar a minha leitura. - Mas... Por que? Eu pensei que... - Desculpe-me pensou errado prima... Ela aspirou o ar com a boca no estilo, “espera, você não pode me deixar assim no vácuo!” Eu sinceramente não sei o que se passava dentro
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daquela cabecinha podre dela. Ela mal sabia que eu sentia tudo o que se passava dentro daquela mente sórdida. Ela simplesmente calou-se e vendo que eu não iria respondê-la mais se retirou do quarto com passos firmes, porém muito balançados pela sua primeira perda do fim de tarde. A porta bateu rápido e forte demais, as vibrações no ar provocadas pelo atrito da porta com o batente me fez tremer e arrepiar-me. Minha audição é um pouquinho só sensível. Caindo à noite ouvi um barulho de pneus quebrando gravetos na estrada, o cheiro de sangue embriagado fez-me parar para prestar atenção na imagem que vinha se sobrepor à escuridão da rua. Um brando vento frio sacudia as galhas altas das árvores ao redor açoitando a vidraça de minha janela, meus dedos tocaram esta desejando tocar aqueles pequenos ramos, mas era impossível me dependurar a mais de um metro e meio do chão para alcançar uma galha a mais de dois. A porta lá embaixo se abriu, as janelas sacolejaram imperceptivelmente para olhos limitados como os dos jovens meio bêbados na direção daquele carro, Mirage não percebera isso, bem, ela nunca notaria na realidade, ela não sente o cheiro do sangue como eu, ela não sente a essência de tudo aquilo que a circunda e eu digo que tudo aquilo iria gerar conseqüências.
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- E ai gata quanto tempo... – Um rapaz de cabelos escorridos e castanhos abriu um largo sorriso exibindo em uma das mãos uma latinha de Red Bull Depois dizem que essa coisa não é alcoólica. - Mirage oh Deus... - Cinco anos em Paris deixaram-na perfeita! – A loirinha falou, a única garota de um grupo de quatro rapazes. - Pois é... Paris é um charme! Minha testa franziu, não podia acreditar que ela iria realmente sair com um pessoal como aquele, era arriscar demais sendo ela a única filha de Glendora Kaio. Seu rosto voltou-se para o andar de cima e seus olhos encontraram-se com os meus tão frios e misteriosos que me inspirava pensamentos e imaginações um tanto que apavorantes. Rapidamente saltei da mesinha que usava para estudos e dirigi-me até o guarda-roupa buscando o meu melhor couro e blusa de gola rule. - Ué... Vai sair Madde? – Tia Glen me assaltou com a pergunta logo que nos cruzamos no corredor próximo à escadaria. - Pois é... Se sua filha não tem o devido juízo eu tenho... E demais! – Ajeitei os cabelos ruivos soltos para trás, minha pele branca estava demasiado em evidencia agora. - Por que você não aceitou ir com ela e os amigos então? Evitaria ter de andar naquela coisa que chamas de automóvel em duas rodas! – Eu ri.
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- Tia... Desde quando você me viu sair com o grupinho da Mirage? Bem, desde quando a senhora me viu sair com alguém? Sabes muito bem que é inviável! - Inviável pra você! Existem muitos que vivem na sua condição e tem suas amizades por ai! - Lá vem à senhora com a história de Eliza Staps, blá, blá, blá... - E por que desdenhas da história de Eliza? É verdade mesmo ué! - Tia... Eu sou eu. Eu tenho os meus problemas, eu resolvo-os sozinha, portanto... Não sou igual a ela, nunca serei! Eliza teve a ajuda de amigos para chegar onde está hoje e eu? Eu sou só uma garota qualquer de Bucareste que tenta levar a minha própria maneira algo que não é comum. Ela suspirou, tia Glen era daqueles tipos de mulheres que se vidravam em histórias do tipo Eliza e a ordem da orquídea vermelha, e por ai vai. Ela sempre tinha esse costume de contar histórias, mas hoje em dia eu têm as minhas duvidas, é impossível para não dizer nulo as chances de uma ordem ser perfeita como a que Liz criou. Eu podia até desdenhar, mas eu trazia dentro de mim certa admiração por esta garota que veio a descobrir ser uma híbrida ou dhampir, como acharem melhor a designação, como eu, não foi fácil para ela com certeza assim como para mim nunca vai ser. Ela conseguiu reconstruir a sua história, se adaptou a própria diferença, mas eu não posso fazer o mesmo infelizmente. - Madde! – Ela chamou-me a atenção mais uma vez. 24
- O que? - Não deixe minha pequena se meter em brigas ta? Eu sorri... O coração de tia Glen era tão puro que era quase impossível não sentir nada daquela declaração de puro cuidado com sua progênie, ainda mais sendo Mirage filha única. - Nunca... Eu vou estar em cada sombra que ela entrar, ninguém vai mexer com ela! Eu juro...
CAPÍTULO 2 O frio vento alisava-me a pele da face descoberta, os cabelos dançavam ao rumorejar da brisa de início de noite enquanto minhas narinas captavam todos os tipos de odores a que se tem direito. O doce cheiro de sangue ia e voltava dos carros que passavam por mim voltando pelo caminho de onde tinha vindo deixando para trás a fumaça pesada de seus escapamentos. A cidade passou por mim como simples e meros borrões de tinta dourada e prateada, os restaurantes estavam lotados de carne fresca, as ruas 25
estavam
repletas
de
pessoas
conversando
entre
si totalmente
despreocupadas, suas auras muitas das vezes manifestando alegria e exatidão cegava-me, como as pessoas podem viver felizes quando o mundo esconde seres diabólicos? Como elas não suspeitam de que “nós” existimos? O que fariam se soubessem? Sacudi a cabeça. Isso não são horas de se estar questionando por uma filosofia de vida errada. Eu tinha de achar o bar onde Mirage havia se metido e tinha de ser logo antes que meu pressentimento se concretizasse! Alguns minutos mais tarde vim a diminui a velocidade de minha moto ao ver um carro semelhante ao que aquele jovem dirigia parado no estacionamento do outro lado da rua de frente para um bar barra pesada que acolhia muitas das vezes motoqueiros bêbados, drogados e prostitutas. Toda a sorte de perversão se encontrava ali, acredito que parcela da cidade estava ali àquela noite a julgar pela superlotação do estacionamento. - Hei senhorita... Moça espera não pode entrar, as vagas estão todas... Rapidamente tratei de encaixar minha moto entre o carro daqueles jovens e um outro, não foi uma boa idéia já que arranhei os dois veículos, mas se tratando de Mirage eu tinha de fazê-lo até para que o bem dela fosse preservado.
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- Ocupadas! – O rapaz que não passava de dezessete anos soltou quase que sem ânimo algum a palavra. - Onde estão os donos desse veículo? – Perguntei ao jovem apontando para o veículo enquanto minhas narinas tentavam absorver a essência das vestes daqueles baderneiros de plantão. - Lá dentro senhorita por que a pergunta? - Para o seu bem rapaz... Não me faça mais perguntas! – Meus olhos voltaram-se para ele de repente tão selvagens quanto um lince pronto a atacar. O garoto cujo nome Ben vinha escrito num crachá deu um passo para trás temendo pelo pior. Um sorriso criou-se em meus lábios enquanto eu caminhava me direcionando para fora do estacionamento. Tirei algumas pratas do bolso da jaqueta e arremessei no ar esperando por ouvi-las cair ao chão, mas quem diz que estas fizeram exatamente como pensei? - Oh... Muito obrigada senhorita! - Quando for à hora traga-me a moto! Não vou demorar. Ele voltou-se para trás e vendo que a moto trazia na ignição as chaves arqueou as sobrancelhas, acredito que um pouco confuso uma vez que sua aura mostrava-se aos meus olhos num tom intenso e mosqueado de cores que ainda não conseguia captar. Novamente sorri de maneira a encantá-lo, pronto, não precisava de mais nada, ele iria me obedecer. - E sem esse negocio de “senhorita”, entendeu? Ben balançou a cabeça afirmativamente sem hesitar. 27
Atravessando a rua e passando sem esbarrar nos que estavam do lado de fora conversando seus “blá, blá, blás” eu empurrei a porta com os punhos abertos esperando por dentro ser golpeada por uma mistura de sangue com química e álcool. Bem... Exatamente como eu pensei aconteceu,
uma
grande
confusão
se
dava
dentro
do
grande
estabelecimento, um som pesado de bateria ecoava pelos cantos do grande salão de shows invadindo também o lado do bar e a parte reservada, nada de Mirage ou seus amiguinhos. Para ser mais exata, eu nunca precisei sair de casa para entrar em um lugar como esse, a mesquinharia e os desejos da carne cegaram aqueles jovens para a realidade brutal. Muitos deles mutilavam-se ali colocando aqueles trecos que chamam de “alargadores” de lóbulo ou mesmo marcando a pele com bestas ou símbolos que vão totalmente de encontro com a religião que eu sei que maioria freqüenta. Pergunta-se se os pais deles sabem disto certo? Rá... Antes eles ligassem! Hoje em dia a maioria não quer nem saber se o filho está bem, quem diria brigar por causa de uma tatuagem! Eu mesma fiz três em minha época de rebeldia! Mas o que estava me incomodando no momento não era o fato das tatuagens ou alargadores e piercings e sim o que tinha de acontecer para que esses três itens fossem cumpridos satisfatoriamente. Todas as técnicas tinham uma base, mas todas elas necessitavam de um único material para serem realmente realizadas conforme o escrito, agulhas para injeção de anestésicos os preparavam para uma dor encoberta, 28
sangue veio de todos os pontos e eram muitos... O cheiro quase me deixou zonza, mas eu consegui me controlar, se eu me excedesse não sei o que seria de mim. Desviando a minha atenção destes caminhei até o balcão lotado atrás de um lugar para sentar, joguei o cabelo para trás enquanto sentava-me confortavelmente na cadeira de assento acolchoado, o olho maledicente dos mais próximos pairaram sobre mim e eu sabia que não era só por que eu estava bem vestida ou perfumada. Havia algo em mim que atraia as atenções e infelizmente não iria nunca conseguir desligar esse estranho sistema hipnotizador, apenas em casos específicos demais! - Desejas algo querida? – Um barman aproximou-se da bancada enquanto secava um copo e o colocava de volta ao armário. - Absinto! – Respondi de uma só vez encarando a multidão atrás de mim. Quantos ali perdiam sua juventude com atos tão ilícitos céus! Ouvi comentários, muitos deles maliciosos outros um pouco que reprovatórios, porém todos era sobre a minha pessoa, droga, eu não pensava em atrair tantas atenções justamente hoje. Olhando criticamente para todos os possíveis pontos fixei minha atenção em uma tatuagem que representava bem o fim dos tempos, mas o que me atraiu a atenção na realidade fora o segundo ponto de vista, seres sugadores de sangue da terrível noite traziam em seus lábios a macula do pecado displicente, o sangue de um inocente derramado era retratado
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pela agulha e tinta que marcaria para sempre as costas daquela garota completamente doida pela droga em sua circulação. Um grito fez-me perder a atenção daquele ponto fixo e meus olhos rastrearam cuidadosamente o lugar de onde este som havia saído. Detalhe! Apenas eu havia percebido e ouvido aquele som quase impossível de se notar dentro de um lugar fechado com um som tão alto e extremamente depressivo. Lá estava Mirage rindo do que parecia ser uma cantada feita pelo rapaz de cabelos loiros, um desconhecido como sempre. - Aqui! O barman colocou um pequeno cálice a minha frente com o potente liquido azulado que me desceria pela garganta queimando como brasa. Meus olhos não desgrudaram de minha prima que se deleitava em fazer do rapaz um fantoche para os seus mais sórdidos desejos. - Oh Mirage... Se sua mãe soubesse a metade do que você é de verdade! Tsc, tsc, tsc... – Balancei a cabeça contraria enquanto virava todo o conteúdo do cálice goela abaixo. Uma careta de aprovação, doce gostinho arisco semelhante ao anis fermentado misturado a outras químicas, devolvi o cálice à bancada arrancando vários suspiros dos homens sentados a volta do mesmo. Saltei do banco não desejando ter de fazê-lo, mas já o fazendo. Meu sangue fervia com a possibilidade de uma briga em potencial, meu peito inflava a cada inspiração, minhas veias pulsavam em minha testa. 30
O rapaz loiro que estava com ela beijava-lhe o pescoço enquanto esta fazia o seu jogo de cintura para não derrubar a bebida que trazia na mão, cigarros à parte o ar estava ficando a cada instante mais impuro assim como os sentimentos e pensamentos que eu conseguia interpretar. Mas eu durei na realidade a entender o que realmente estava por acontecer e acho bom não comentar, apenas posso dizer que Mirage já não era mais aquela criancinha que tia Glen insistia em dizer que ela era. Aposto que ela odiava ser chamada de “a menininha da mamãe” ou pior, ela devia de repudiar minha tia – sua mãe – por chamá-la de “seu bebê!” Meus punhos tremiam de raiva, eu não sabia se a deixava ali ou se simplesmente partia a cara do garoto que estava com ela ali num agarramento explicito. Minha atenção desviou-se por completo quando um arrepio me obrigou a olhar para a porta, um bando adentrou o bar e eles não vieram apenas para curtir uma festinha dessas de universitários de férias. Eles curtiam o mesmo que eu tinha tanto nojo. Eles gostavam de carne fresca, sangue quente! Suas auras eram densas de um pálido cinza em dia de tempestade, frio me consumiu repentinamente como se todo o sangue me fugisse das veias periféricas, meus lábios entreabriram-se enquanto estes se espalhavam, por entre os grupos. A primeira vista ninguém diria que estes eram vampiros, seus trajes típicos de mauricinhos denunciavam a posição de Ventrue recém abraçados. As portas deste ambiente homens altos e carecas montaram 31
guarda como se esperassem evitar a fuga de qualquer um ingrato ali presente, o barman nem ligou, ou simplesmente ignorou a existência daqueles ali, era como se não existissem para ele ou para qualquer outro presente no mesmo ambiente. A brincadeira iria começar e eu não queria presenciar o teatro dos horrores que iria dar início, almas seriam roubadas, mas ao mesmo tempo eu não conseguia deixar de pensar naqueles ignorantes principalmente em minha prima em sua degeneração pessoal. Rapidamente desloquei-me até a banca reservada em que ela se encontrava batendo na mesa com grande força trazendo em minha face cara de poucos amigos de sempre. - Ola prima... – Ela disse desconcertada, as bochechas vermelhas como tomates. - Vamos embora agora! – Tratei de ser bem categórica. - Nem louca... Vai curtir alguma coisa prima, você precisa ser livre... Seja você e me deixa! – Seu hálito açoitava-me o nariz e o cheiro grosseiro de cerveja atingira-me causando náuseas. - Sem discussão ou conversa Mirage! Estou mandando que se retire já! – Agarrei seu pulso com uma estranha firmeza. - Vá pro inferno Madde! – Ela se soltou de meu puxão. Seus pulsos ficaram marcados pela forte compressão que fiz. - É... Deixa a Mirage em paz garota!
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- Cale-se inútil! – Nem precisei olhar para o rapaz para confirmar que este se encolhera em sua insignificância. A nossa volta o círculo se fechava, eu podia sentir o cheiro de sangue dos pescoços sendo perfurados no intenso turbilhão de sensações e emoções que a dança e a música hipnotizante causava. - Mas o que há com você? Ficou maluca? Bebeu? - Talvez... Mas não tanto quanto você quer fazer o favor? Precisamos ir e já! Um berro de dor foi ouvido por todos que de repente pararam sua diversão para prestar atenção numa jovem que tremia excessivamente enquanto tentava se soltar de um rapaz cujos cabelos ondulados e pele pálida cravava-lhe os dentes no pescoço, tensão se fez nos olhos dos muitos jovens que tentavam agora sair, mas a porta de entrada estava fechada assim como a dos fundos por onde eu havia pensado em usar como rota de fuga. No intenso desespero anunciado o empurra-empurra deu início a um duelo entre humanos e vampiros, onde todos sabiam muito bem que nada iria adiantar a não ser que usassem de armas concretas, mas que armas haveriam de existir em um bar cheio de jovens? Só se você pensa em usar os dedos anular e indicador para furar os olhos de um ser como esses o que seria cômico de se ver acontecer. Não é mesmo? - Droga...
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- Oh Deus... O que está acontecendo aqui? – Mirage encarou descrente a todas as cenas aterrorizantes de jovens sendo atacados por sanguessugas. - Isso é o que acontece com os desobedientes vem! Sai puxando Mirage pelo braço obrigando-a a entrar no banheiro feminino, o ar pelo menos por ali parecia mais limpo do que o ambiente causticante de puro sangue, bebidas e drogas que deixamos para trás. - Mas o que é tudo aquilo? O que está havendo lá fora Madde? – Nervosa Mirage começou a me questionar enquanto eu me encontrava mais preocupada em barrar a passagem com qualquer coisa e procurar uma saída mais lógica daquele lugar. - Quer ficar quieta e me ajudar a achar uma saída daqui? Muito ajuda aquele que não atrapalha com perguntas fora de hora. Pela primeira vez em toda a minha vida pude presenciar o esforço de Mirage em escapar de um lugar que lhe impunha perigo, ela estava pálida como papel e tremula como um gatinho acuado. Era a primeira vez que a via me ajudando uma vez que sempre a vira pisando em mim como um capacho e olha que eu sou mais velha tendo 23 anos e ela apenas 19. Algo atingiu a porta, gritos desesperados pediam por socorro, mas era tarde demais para voltar e pensar em ajudar. - Linda... – Mirage voltou seus olhos para a porta. – Não podemos ir, temos de ajudar Linda e os outros!
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- Você não viu o que está havendo lá fora? Eles estão mortos, se não estão falta pouco para se tornarem o lanche daqueles sanguessugas! - Não... Eles não vão ficar para trás... - Olha aqui garota... – Perdi o controle, minhas mãos voaram de encontro à gola de sua blusa forçando-a contra a parede de concreto gelado, o vento entrava pela janela e era tão amargo e frio quanto o possível abraço de um vampiro. – Se você tem amor pelo menos a sua mãe vai me respeitar ao menos uma vez e sair por aquela janela... Acho que me faço bem clara quando digo que pior é morrer e fazer Glendora sofrer do que estar agora o mais cedo que pode nos braços dela e esquecer tudo isso. Foi escolha de vocês virem a um lugar tão barra pesada, arque com as conseqüências agora. Seus olhos me encararam profundamente e era um olhar de medo. Pela primeira vez eu a via respeitar-me, não havia disputa, brigas nem encontro de idéias, claro num momento como esse não há como discutirmos a possibilidade de voltar e ajudar os amigos dela. Sentia medo por nós, temor pelos outros e a dor pelo sofrimento eterno que os pais da maioria ali presente sentiria. Meu coração parecia assemelhar-se ao de uma formiga de tão pequeno, minha mente quase terminava por nublar de uma vez não fosse pela maior parte em eu ser ainda humana. Eu sentia em minha pele como se unhas me corroessem, minha alma estava agitada com tanto banho de sangue, a carnificina atrás de nós e
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isso não ia acabar enquanto eles não conseguissem pegar a mim e a Mirage minha prima. Socos atingiram a porta e eram fortes, acredito que tão fortes quanto os meus próprios socos e eu me vi necessitada a forçar Mirage para cima do conjunto de armários que empurramos para baixo da pequena janela. - Vai sai... Eu vou logo atrás de você! - Não eu não... Um estrondo se ouviu, a porta quebrou-se ao meio como se feita de papelão, um grito apavorado escapou dos lábios de Mirage e esta sem mais tempo para questionamentos saltou pela janela por onde eu pude escutar um som oco de seu corpo batendo contra o solo lá fora. Ela gemeu, rolou um pouco para fora do alcance do banheiro e recuperou-se ao pôr-se de pé. - Madde! – Ela chamou, o vento quase levava suas palavras. - Corre... – Gritei. – Corre o mais rápido que pode e se esconda! - Eu não vou sem você... - Não discuta Mirage, vai... – Gritei tentando superar o barulho ao meu redor. O vampiro que conseguiu entrar no banheiro trouxe consigo outros dois e estes eram ainda jovens, suas presas eram infantis, fáceis de partir-se com alguns belos socos bem dados. Lambendo as presas ainda manchadas com o sangue dos inocentes lá fora ele sorriu balançando nas mãos o que pareciam ser correntes. 36
- Qual é belezinha? Que tal eu lhe pagar um drink? – Qual é... Aquela piadinha já saiu de moda a séculos! Minhas sobrancelhas franziram em descrédito, não acredito que alguém fora capaz de tal sandice, ninguém me canta assim desde Patrick Powler no primeiro ano da escola. Os outros dois recém transformados riram da piadinha compartilhando do mesmo tipo de humor que o mais velho à frente deles. Uma ligeira oscilação no ar quebrou o vigente silêncio à volta de meus ouvidos surdos pelo barulho do lado de fora do banheiro. A corrente que o homem de negro carregava cortou o ar atingindo a porta de madeira de um dos reservados revelando um sanitário de azulejo cinza encardido. - Ora... Rapidinha você! – O carinha aparentava estar embriagado. Pois é... Vampiros têm esse tal costume de beber vinho e ficarem completamente loucos. - Não ouse se meter comigo ou vai se arrepender! – Rosnei. - Mmmm... Adoro desafios! Minha percepção mais uma vez me alertou para um novo golpe de fúria da parte do meu agressor obrigando-me a desviar e a assumir a posição de luta o que era injusto visto que este trazia consigo correntes e os seus lacaios escondiam sob os punhos de suas jaquetas facas de lâminas curvas a qual eu sentia o vento se quebrar sobre. O espaço era pequeno demais, havia sido pega de surpresa num cubículo e agora não sabia se fugia ou se lutava. 37
- MADDE! – Ouvi alguém gritar o meu nome, a voz esganiçada vinha da garganta abafada de Mirage que pelo ar deixava escapar o odor fétido do seu pior pesadelo. O medo! O burburinho havia extravasado o ambiente de carnificina que era o bar e agora a agonia gritava pelas ruas e vielas próximas, Mirage estava em apuros lá fora e eu precisava agir rápido se queria resgatá-la. Outro golpe e de repente me senti presa por correntes justas e apertadas, meu pescoço havia sido envolvido por aquelas malditas tranças de aço e estas pareciam ganhar vida a cada movimento que eu tentava fazer. - Seja bem vinda ao mundo irmãzinha! – Sussurrou o vampiro mais velho em meus ouvidos, este chegara tão rápido atrás de mim que eu jurava estar vendo dois daquele maldito homem de cabelos grisalhos. - Vá... Pro... Inferno! – Disse engasgada. O ar não queria entrar em meus pulmões de forma alguma, calor subiu minha cabeça enquanto sentia as veias dilatando-se quase prontas a romperem. Cai de joelhos diante do vampiro mais velho, a força já quase me abandonavam. - Ah... Ah... Ah! Não diga isso ao seu novo mestre! - Ninguém... Vai ser... Meu mestre! – Bufei raivosa. Um outro grito mais abafado eu escutei vindo lá de fora. O cheiro de medo afundou-me em um desespero contínuo enquanto aquela maldita corrente comprimia meu pescoço, tontura e vertigens pronunciaram-se, porém antes mesmo que este pudesse me derrubar levantei-me de um só 38
impulso e atingi o mestre daqueles jovens com um belo soco no meio daquela carinha de fuinha que ele tinha surpreendendo-me com a sua real imagem quando este ergueu sua cabeça incapaz. - Vadiazinha de quinta... Vais se arrepender de ter destruído meu belo rosto! As correntes arrebentaram-se em minhas mãos caindo aos meus pés enquanto eu deixava que a besta que dentro de mim vivia subir a tona, só pedia aos céus para que não viesse a perder a cabeça. O vampiro mais velho a minha frente, cujo belo rosto antes intacto tornara-se monstruosa com seus dentes a mostra, pertencia à classe dos vampiros apelidados de “ratos de esgoto”, Os Nosferatu melhor explicando, não duvido muito que aqueles seus seguidores de meia pataca não fossem do mesmo clã. - Veremos... – Desafiei. Rosnares a parte, ninguém sabia quem seria o primeiro a atacar, por via das duvidas resolvi já me colocar em posição de defesa e luta, minhas veias pulsavam irritantemente enquanto meus sentidos aguçados ao mesmo tempo em que sentiam a oscilação do lado de dentro captavam os movimentos inconstantes de Mirage que com certeza lutava para se salvar mesmo que fosse inútil. A ligeira vibração no ar fez meus pêlos da nuca arrepiarem-se dando o sinal de que o mais jovem dos três vampiros a me circundarem dera início a um duelo desigual onde eu era a mocinha-vítima desarmada enquanto eles três continham armas brancas. Desviei... O vampiro 39
tropeçou em seus próprios pés vindo a cambalear para frente enquanto o outro se arremessava pelo outro lado aonde eu novamente vim a desviar tomando cuidado para não atingir a pia ou qualquer outra parte do ridiculamente pequeno e estreito banheiro feminino. Som de socos eu ouvi, dor abrangeu-me a pele não tão profundamente, Mirage estava lutando como podia, eu não podia salvá-la, não sem antes me salvar! O mais velho sacou de trás de sua longa capa escura o que me parecia um chicote com pontas repletas de pequenos cravos, espinhos esses tão afiados quanto as duas lâminas curvas nas mãos dos outros dois. A tira de couro viajou no ar cortando-o e junto consigo arrancando-me sangue e pequenos filetes de pele, dor me invadiu ainda mais o âmago, meu braço havia sido atingido e parte da jaqueta agora estava rasgada. Esbarrei na pia, o braço tremulo mal conseguia se erguer diante do corpo. - Merda... – Olhei do braço para o vampiro mais velho que se deleitava, sem tirar os olhos de minha imagem, em provar do meu sangue ali contido naquela arma. - Hmmm... Com certeza o melhor que já provei! – Ele lambeu os lábios de uma maneira nojenta, mas que fazia parecer sensual. – Meio humana e meio vampira... Será que subo de classe se matá-la? - Vai sonhando! Saltei para frente atingindo os dois mais novos com os pés e obrigandoos a serem arremessados contra a parede atrás deles, esta rachou quando 40
o loiro bateu e caiu, a outra se abriu revelando um mar de sangue e corpos sendo usados para a alimentação dos cretinos lá fora, o vampiro de cabelos castanhos apagou, seu pescoço estava torto num ângulo impossível de se imaginar. O chicote novamente passou raspando pelas minhas costas aumentando minha dor e raiva. Sangue espirrou por toda a parede leste os berros agora de Mirage eram estranhamente de alegria, eu não consegui entender aquela nova essência. - Droga... – Disse enquanto arrancava a jaqueta de qualquer jeito. – Essa era a minha melhor jaqueta! O vampiro jogou um sorriso matreiro sobre mim. A blusa que usava era da cor vinho com uma gola alta própria para me proteger, ele mal sabia, mas carregava uma gargantilha de couro com prata abaixo dele, se ele tentasse me atacar iria antes se queimar. Meus braços ficaram desnudos, o sangue escorria da ferida aberta abaixo da dobra do cotovelo, minha blusa atrás agora tinha uma enorme mancha de sangue camuflada pelo tom escuro do vinho do tecido e logo claro um rasgo por onde a afiada tira de couro havia passado. - Imagina se fosse minha... – Ele silvou com desejo e eu olhei-o com nojo e desprezo. – Desperdício de talentos... Eu me armei com coragem o suficiente não captando mais no ar a essência de Mirage lá fora, o vento frio inundava meus pulmões com uma aguda dor capaz de me congelar a alma, parti para cima do vampiro 41
a minha frente tomando cuidado em desviar-me do seu chicote que dançava no ar como se tivesse vida, consegui inutilizar seus braços caindo sobre eles e com minhas mãos acabei de livrar sua face medonha da máscara da beleza que até então não mais lhe servia. Com seus pés ele me atirou no ar e eu senti meu corpo atingir o teto e logo após cair sobre os escombros, os dois vampiros mais novos levantaram-se, um com o pescoço torto enquanto o outro tinha a coluna partida, aberrações sobre duas pernas, escória da humanidade que decidiram por perder as almas ao invés de viver e morrer como manda a regra. Pois bem, eu continuo firme e forte, não há quem me tire o direito de lutar agora! - Peguem a garota! – Exigiu o vampiro Mor aos seus ajudantes incapazes. Rapidamente levantei-me e corri para fora do banheiro pela brecha arrombada na parede ao meu lado, os gemidos eram constantes e me ensurdeciam, o som da última respiração, da última lufada de ar nos pulmões vivos daqueles moribundos jovens me sufocava, matava-me por dentro como se uma doença me comesse viva, os olhos arregalados da maioria ainda consciente me traziam a lembranças pesadelos acordada dos tempos de escola, minhas presas roçaram nos lábios arranhando-os, meus olhos queimavam por causa das lágrimas que queriam sair, mas eu não as permitia.
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Ouve uma ligeira alteração no tempo e espaço, eu senti isso, ainda mais quando meu corpo atingiu o chão coberto com o precioso sangue humano ali manchando o antes tão claro piso azul cristal. O gosto deste quase veio aos meus lábios não fosse por ter sido simultaneamente jogada contra a bancada do bar. Nem sinal do barman, aquele maldito sem vergonha, deveria de estar longe agora! - Você... – Rosnou o jovem de pescoço quebrado. – Não vai fugir! Um soco e uma joelhada e eu jurava que podia contar às estrelas que giravam a frente de minha vista, minha cabeça zunia enquanto meu corpo servia-lhes como saco de pancadas, eu não sei o que estava de errado, acho que os efeitos colaterais de não me alimentar do sangue humano estava se mostrando agora. A fraqueza de espírito se dava simplesmente em sentir o cheiro da mancha de sangue que escorria pela maçã de meu rosto, meu olho fechado de um lado ardia ao contato deste com a mucosa, eu tremia, minhas mãos assim como pés estavam completamente dormentes, anestesiados como se aplicados anestésicos fortes naquelas regiões cegando minhas terminações nervosas. Senti-me cair e depois um chute me pegou de jeito, sai rolando por sobre o mar de corpos inertes e já esfriando, um grito lá fora me fez brecar os sentimentos de dor intensa, Mirage estava viva e bem, mas por quanto tempo? Eu fracassei? Não agi corretamente ou isso tinha de acontecer pra me testar? Droga, maldita filosofia a minha que não me deixa raciocinar nem sequer agir. Tentei me levantar, mas fui empurrada ao 43
chão outra vez, o gosto do sangue veio a minha boca assim como o seu odor impregnando-se em minhas narinas, uma revolta se criou dentro de mim enquanto segurava o pé do rapaz de coluna quebrada, este veio ao chão quando o girei no seu próprio eixo, sua cabeça eu tratei de comprimir com uma estante que forcei a cair, urgh... Aquilo foi extremamente nojento de se ver. O outro me agarrou pela gola da blusa e logo me soltou sentindo as mãos queimarem em ambos os dorsos, a prata dera um jeito no cretino metido a sabichão, o chicote me atingiu o tornozelo me erguendo do chão no ar e trazendo-me a este com um som oco e timpânico, logo eu só conseguia ver a escuridão do céu estrelado acima de mim e os berros de Mirage que ao longe era contida por um rapaz ao qual reconheci por ser Ben o menino guardador das vagas no estacionamento do outro lado. - Você vai aprender a não repudiar a sua verdadeira essência! Vai aprender que não pode viver com esses miseráveis humanos que só nos servem de alimento... – O carinha cuja máscara caíra agora me pisava a face, minhas mãos tentaram conter seu pé, mas a força já escapulira deste. – Tsc, tsc, tsc... Você renegou a própria besta que existe em você, mas mal consegue sobreviver sem ela, olha o que você se tornou filha de Cain, uma miserável sem forças até pra defender a própria vida. - Saiba que faremos uma festinha particular com a sua prima e aquele idiota que a defende agora, e com você... Hmmm... Quem sabe ser exposto como um sanguessuga por ai lhe cai bem! 44
A ameaça foi quase aplaudida por uma platéia silenciosa, o vento zumbia próximo aos meus ouvidos cantando uma melodia triste e final sinalizando que eu podia já dar adeus a minha vida como uma mera humana pela metade, o cheiro de asfalto mergulhou-me em dor e repulsa, nunca ninguém me fizera descer tão baixo como agora. As mãos, ou eu poderia dizer “garras” do vampiro Mor suspenderam-me pela blusa já rasgada e suja enquanto a outra mão livre arrancava o artigo em meu pescoço lançando-o longe, suas mãos não queimaram talvez por causa da proteção extra, uma bela luva negra de couro que apenas chiou com o breve toque deste com a prata. - Talvez antes eu possa sentir mais uma vez o gosto do seu sangue, não se importaria de deixar-me pegar um pouco... – Ele riu ironicamente e eu sabia o por que. “Um pouco” como ele mesmo disse é todo o meu sangue humano e possivelmente minha vida e alma também. - MADDE... – Gritou Mirage sendo afastada por Ben. - Mirage... – Meus olhos foram mais uma vez de encontro com os dela, medo transparecia de seus grandes e pedintes olhos castanhos. A boca escancarada do vampiro Mor mostrou-me uma infinidade de dentes pontudos e finos, o cheiro pútrido de seu corpo fantasmagórico me deixava cada vez mais zonza e foi ai que senti que estava tudo perdido quando meu corpo atingiu o chão de súbito. Eu não esperava por isso... 45
CAPÍTULO 3 - Deixa a garota em paz Menoc! O que ela te fez para merecer tanto? O carinha que eu nem sei dizer de onde surgiu acabava de apanhar no ar algo que me lembrava um bumerangue negro, como eu disse, não tenho certeza alguma uma vez que meus olhos estavam turvos com o meu próprio sangue.
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- O que faz aqui Danov? Essa área não lhe pertence e sabes bem disto! – Rosnou o vampiro de nome Menoc. Era evidente a raiva que este tinha do jovem ali a sua frente. - Desde quando um lugar não é meu por direito Menoc? Desde quando não posso transitar entre uma cidade e outra só por que queres? Eu tenho mais direito que você irmão e não vou permitir que oprima esses jovens! - Ou pelo menos o que sobrou deles... – Riu o jovem de cabeça torta, ele estranhamente tinha colocado a cabeça no lugar original. - Solte a garota Menoc... Não me obrigue a usar de métodos drásticos contra você! - Pois você que tente... – Desafiou o vampiro de feições horrendas. Menoc o vampiro que me perdera numa queda, repentinamente ergueume novamente no ar e estava pronto para me atacar quando de repente o seu sangue negro grudou em minha pele, o vampiro a minha frente largou-me mais uma vez e desta vez por que sua cabeça havia deixado seu corpo num único golpe. O jovem vampiro ao lado querendo se mostrar partiu para cima do outro mais distante, porém teve o mesmo destino que seu mestre, sangue escorreu pela calçada e asfalto enquanto os gritos de Mirage ecoavam no estacionamento atrás dos carros. Eu vi quando o jovem guardador de carros abaixou-a como se a protegendo. O homem na outra ponta guardou a arma dentro de um suporte lateral escondido debaixo de sua capa escura, os olhos azuis faiscantes 47
cintilaram quando de encontro com os meus e eu senti meu coração palpitar estranhamente mais rápido, era como se o conhecesse não sei, meu medo maior era de este fazer o mesmo que com os outros dois, porém ainda pior que isso era a sensação de que ele me traria a vida e paz novamente. Seus passos ecoaram pela estrada agora deserta, os outros vampiros foram embora após seu lanche ser realizado sem interrupção. Tentei piscar, porém o tom vermelho de meu sangue obstruía a visão e o atrito das pálpebras sobre a região causava-me dor e queimação. Eu não conseguia enxergar na realidade, só podia ouvir e sentir as oscilações a minha volta. - Droga... – Suspirou o rapaz diante de mim. Sua aura era pálida também como os dos outros vampiros. Estremeci ao sentir o calor que suas mãos traziam a minha pele. – Menoc não podia fazer isso! - Não me toque! – Silvei, minha inspiração cada vez mais profunda e ruidosa. - Calma... Eu não quero seu mal! Apenas deixe-me ver o que posso fazer por você! - Não... Você é como um deles... - E você também! Ou pensas realmente que renegar parte da sua herança de sangue irá livrá-la dos pesos e da sua cruz? Encarei-o um tanto que surpresa por tal resposta, nunca gostei de ser afrontada, mas daquela vez eu podia sentir o quão aquele estranho de 48
nome Danov tinha razão. Ele tirou seu longo casaco estirando-o sobre mim, uma blusa negra de algodão e gola alta trazia um pequeno emblema dourado sobre seu peito do lado direito, lembrava-me uma rosa dourada, mas olhando fixamente tratava-se de uma orquídea, talvez fosse idéia minha, mas ninguém da Ordem da Orquídea Vermelha me protegeria, não aqui em Bucareste um fim de mundo, uma vez que os membros desta viviam em Phoenix Arizona segundo minhas pesquisas. Meus olhos viajaram para as mãos dele, estas sacaram algo de dentro do bolso interno da capa, um frasco típico de uso de um alcoólatra saiu do curto espaço e este desatarraxando a tampa de metal virou-me o conteúdo garganta adentro e este tinha um doce e suave gosto como um bom vinho tinto. Isto é... Era embriagante... Afastei o frasco mediante um desejo taxativo e dominante de querer mais do conteúdo, eu sabia que não era vinho, eu já havia provado do mesmo, porém de um animal e com certeza era muito mais doce que o sangue de terceiros. Mas o medo e a culpa me invadiram o âmago. De quem seria aquele sangue? Quem teria sido a vítima? - Pronto, pronto, sente-se melhor agora? – Ele me encarou enquanto colocava o frasco de lado. – Sentes o gosto? Quando passa pela garganta parece tão suave e sutil quanto uma dose de vinho, eu sei que provavelmente és contra tal gesto, mas como pensas em voltar para casa ou para perto de sua prima completamente arrebentada?
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Eu o encarei tremula, o frio se voltava contra mim agora, o desejo que me vinha neste exato momento era o de ter mais e mais daquele líquido precioso em meus lábios, pelo menos ter uma gota a mais, não faria mal se estava contido dentro do frasco. - Madde... Madde meu Deus o que foi tudo isso? – Mal havia notado a chegada brusca de Mirage. Por um lado ela estava feliz por nada de mais ter me ocorrido, porém eu sabia que dentro de si sobrara um fiasco de decepção por não terem logo acabado comigo. Antes ela soubesse o que eu sou... - Ela vai ficar bem, só precisa de um pouco de descanso e de um banho! - Quem é você? Ele tornou a encarar-me seu semblante misterioso e sedutor como a maioria dos vampiros tende a ser. Não havia sorrisos faceiros naqueles lábios, não havia um olhar galante naqueles penetrantes olhos azuis que só sabia ser frio na maneira de encarar-nos, seu nariz reto e perfeito inflava quando inalava ar. Ao todo sua expressão facial era rude, mas a beleza não lhe sumia dela. Engoli em seco, minha visão periférica estava voltando com uma ligeira demora. - Acho que já sabe demais sobre mim! - Sua resposta bateu fria e seca dentro de meu âmago, dor e rancor desciam pela minha espinha só em ouvi-lo. 50
Ele abaixou e pegou o frasco com a bebida poderosa que agora eu sentia aflorar justamente onde havia sido ferida e guardou-o dentro de seu bolso tornando a levantar-se e sair caminhando. Tentei me levantar e falar, mas algo me fez calar repentinamente, as sombras haviam engolido o sujeito, uma escuridão me fez desmaiar. - Mas como isso foi acontecer Mirage? Diga-me o que foi que houve com vocês para que sua prima chegasse no estado que chegou! Era difícil me readaptar ao silêncio dentro de meu quarto fechado com tanto barulho do lado de fora, a luz do alvorecer estava crescendo ao leste da cidade enquanto tia Glendora aplicava mais uma de suas perguntas capciosas a Mirage que irredutivelmente mantinha-se com um silêncio mortal a atar seus lábios. Muito pelo contrario do que possam estar pensando, ela não estava tão preocupada comigo, na realidade eu podia sentir um fluxo totalmente diferente em seus vasos e artérias, a raiva fluía mais rápido do que a clemência e eu sabia que as próximas frases seria dolorosamente reais e verdadeiras como manda o script. - Eu não mandei ninguém vir atrás de mim mãe! Eu me sairia bem daquele lugar com ou sem a parva da Madde me seguindo! Algo parecido com o som de um tapa bem dado subiu aos meus ouvidos, sensação de pesar e dor flutuou pelo ambiente, de repente eu me senti culpada e arrependida, mas eu sabia realmente que essas eram as emoções que tia Glen demonstrava. 51
Lentamente fui me colocando sentada sobre a cama, dores musculares quase me obrigaram a deitar novamente não fosse por minha determinação em por meu corpo novamente de pé, com os olhos fechados pus as pernas para fora desta caçando os chinelos em algum canto, gosto de sangue me veio aos lábios, abri meus olhos temerosa de encontrar algo de errado em minha face, mas o meu reflexo no espelho não mentia quando me mostrou que estava tudo bem. Respirei fundo, meus ouvidos captaram os pedidos sussurrados por tia Glen a Mirage que com passos pesados preparava-se para subir ao seu quarto. - Perdoe-me filha... Eu não quis, por favor... Perdoe-me! – Implorava ela. - Deixe-me em paz... – Falou pausadamente Mirage, calor lhe subia a cabeça e eu podia apostar quanto que ela estava vermelha de tanto ódio. Deixei a cama e alcancei a passos vacilantes a porta e foi ai que me deparei com Mirage furiosa cujos olhos marejados quase faltaram me arrancar à alma a gritos, lágrimas escorreram destes pela sua face, eu senti sua ira me arranhando por dentro, sua dor se fez minha, mas eu mantive-me irredutível ali para não deixar que ela percebesse que eu sabia o que ela sentia por dentro. - Tudo isso é culpa sua... - MIRAGE! – Tia Glen berrou de onde estava. Ela encarou-a furiosa e dirigiu-se por fim, após lançar-me mais um olhar raivoso, ao seu quarto, os pássaros cantaram lá fora anunciando que o sol 52
logo sairia enquanto a porta do quarto de Mirage batia violentamente. Toda a casa de certo modo estremeceu e junto com esta tia Glen. Baixei meus olhos, eu sabia que tinha de ter apagado Mirage antes do ataque para evitar que ela presenciasse tudo aquilo. Tia Glen sentou-se à mesa da sala de jantar apoiando o rosto sobre as palmas das mãos, esbanjava cansaço e estresse, Mirage não podia ser tão rebelde e agressiva com ela, Glendora era a melhor pessoa no mundo inteiro a quem se devia amor e respeito. Alguém como ela não merecia tanto da parte de sua única filha. - Eu não sei por que ela age assim! Ela não era assim tão... – Sua testa franziu em reprovação. - Me perdoe pelo que ela disse Madde, não foi a intenção dela. - Não peça perdão por ela tia, a senhora não tem culpa alguma do que a Mirage diz ou deixa de dizer. Acho que devia de tê-la apagado antes de toda aquela confusão, fiz mal em querer mantê-la acordada para ver os amigos morrerem. - Os amigos... O que? Como assim morreram? - Hmmm... Bem! O bar onde Mirage se encontrava foi atacada por vampiros. Não contei antes por que com certeza apaguei, mas pensei que ela tivesse lhe contado!
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- Não, não... Eu não sabia dessa história. Mirage vai ouvir umas poucas e boas da minha parte, filha minha não vai a bares que servem de ponto de alimentação de vampiros! - Não tia... Por favor,... O melhor favor que me fazes é deixar essa história quieta. Eu a tirei de lá ilesa, isso é o que importa, por favor, não se estresse mais do que já se encontras. Tia Glen fazia o tipo de mulher irredutível que não volta atrás em suas convicções, mas desta vez ela o fez e graças a minha pessoa, Mirage não sabia do que estava escapando, um sorriso perpassou os cantos dos lábios de Glendora que veio a segurar minha mão e apertá-la tão forte quanto uma mãe aperta as mãos de uma filha em apuros. - Oh Madde... Você me fez lembrar sua mãe agora! – Meu sorriso desvaneceu temporariamente. Lembrar de minha mãe não me fazia sentir bem. – Tão carinhosa e gentil sempre tinha uma maneira única de fazerme ficar calma e não perder a cabeça... – Ela apertou minha mão massageando as costas desta. – Não sabes o quanto me ajuda ter você aqui agora... Acho que surtaria sem alguém como você por perto. - Mesmo que eu não seja exatamente como imaginas? Mesmo com as condições em que vivo? Duvido! - Não fale assim... O que aconteceu a Chrysta foi uma fatalidade. Não tens culpa ter nascido assim... Você para mim é a garota mais especial de todas num raio de cem quilômetros. - Não exagera tia. 54
- Sem exageros Madde, é a mais pura verdade! Um sorriso tornou a preencher o espaço vago em meus lábios, cansaço transpareceu em mim como uma fina nevoa branca dissipada pela claridade do dia que inundava o recinto com belos tons de branco e azul, a madeira da mesa reluzia graças ao brilho dado por tia Glen um dia antes. - Vem... Ajude-me com uma coisa! - Mas... Com o que? – perguntei surpresa pela súbita mudança de assunto. - Não interessa, só quero que me ajude vem... O porão da casa ao estilo colonial de tia Glen era espaçoso como as adegas de antigamente, não que eu seja muito mais velha que as demais pessoas de meados dos anos 80, mas aprendi com uma das melhores pessoas a conhecer o estilo de porões e outros espaços onde poderiam ser guardados artigos que não valessem mais a pena guardar em quartos, banheiros, salas ou cozinhas. Neste caso o porão de tia Glen guardava relíquias do seu passado, coisas que eu nunca imaginei que fossem ser guardadas lá estavam enfileirados dentro de caixas encostadas contra a parede. Quadros de família onde ela, o ex-marido Garmond e Mirage apareciam felizes e sorridentes, um violão antigo do mesmo, jóias, armários desmontados, aquele lugar parecia mais um deposito de quinquilharias
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sem mais valor algum, pelo menos eu pensava isso das coisas ali guardadas. - Nossa tia, eu não sabia que ainda tinhas isto! – Disse pegando um velho desenho feito por mim de nossa casa. – Há quanto tempo não via essas coisas. – Minha face iluminou-se eu podia sentir pelo grande calor que sentia percorrer a face. - Pois é... Eu nunca joguei nada fora, muito pelo contrário, eu quis guardar tudo o que dizia respeito sobre nossa família. Todos os quadros, fotos, recordações em geral estão contidos dentro de cada caixa aqui neste porão. Se for abrir um de cada vez vai se espantar com o que for sair dali. - É... – Eu nem quis duvidar. - Imagino! Ela caminhou por entre um estande cheio de caixinhas pequenas e pegando uma delas distanciou-se enquanto eu continuei a vasculhar uma das fileiras mais próximas de caixas abertas. Uma pequena caixinha de música com uma bailarina torpe paralisada e amarela pelo tempo trouxeme a memória os tempos de infância quando eu imaginava minha vida como aquela pequenina boneca na ponta dos pés. Oh como a vida poderia ter sido diferente sem todos os problemas que eu enfrentei pela frente. Como as coisas poderiam ser melhores se eu não tivesse nascido metade vampira e metade humana, era algo muito ruim de se pensar se for ver pelo meu lado. - Madde... – Chamou-me tia Glen de algum canto. 56
- Aqui! – Respondi-lhe enquanto guardava novamente o artigo a caixa. - Venha aqui, tenho algo para lhe mostrar. Abandonando com um pouco de dó as caixas com mais artigos interessantes guardados me aproximei do estante localizando tia Glen sentada ao fundo de um pequeno corredor de armários vendo o que me pareciam ser fotos e um caderno surrado cheio de manchas amareladas. - Que foi tia? - Ela era tão alegre... Nem parecia uma Kaio. Sempre disposta a trabalhar e estudar gostava tanto da vida quanto a vida dela. Meu sorriso de certo modo deixou de me seguir, eu sabia que ela estava falando de minha mãe e aquilo me magoava profundamente. Parecendo perceber o meu desanimo, tia Glendora abaixou as fotos até que estas encontrassem suas pernas. - Madde... – Disse ela descontente consigo mesma. – Eu juro que não foi culpa minha trazer a sua mente a lembrança de sua mãe! Eu só achei que fosse propicio lhe mostrar algumas coisas que tinha dela guardados aqui, você merecia ver como sua mãe era, saber como eram os seus olhos, seus cabelos... Eu juro que se não tivesse de mostrar tudo isso eu não lhe mostraria... - Não tia... Eu am... – Pisquei algumas vezes, enquanto meus dedos agarravam-se a beirada da estante. – Acho que adiei demais esse dia! – Aos poucos iniciei uma caminhada curta até ficar paralela a Glendora que tornava a encarar as fotos e os cadernos de minha mãe. – Na 57
realidade eu acho que tinha um pouco de medo, aliás, foi por minha culpa que ela deixou de lado a própria vida... - Não, não, não... - Sim tia foi sim... Se ela tivesse desistido de mim a tempo com certeza estaria aqui hoje com você e meus avós... - Shhh... Não fale isso menina... Você não sabe o quanto que viria a fazer falta. Imagine você nunca nascer para proteger-nos! Seria duplamente pior para todos inclusive para sua mãe se ela o tivesse feito, pense nas conseqüências da sua não existência... Achas que Mirage teria realmente salvado a si mesma do ataque de ontem? Achas mesmo que sua mãe estaria assim tão protegida se deixasse sua vida se esvair como água? Tia Glen era famosa entre nós na arte da culpa e auto-reflexão, ela sempre tinha um argumento diferente para defender os atos de Chrysta minha mãe e mesmo que eu me negasse à aceita mais de cem vezes ela iria continuar dizendo as mesmas coisas até que minha cabeça rachasse ao meio e ali se enfurna as idéias dela. - Pequena Madde, nunca mais penses assim de sua vida e dos dons que o Senhor lhe proveu, se nascestes assim é por que tinha de acontecer, está escrito em seu destino e não se pode mudar o curso de sua história. Pessoas morrem como manda a regra todos os dias, seja em ataques vampíricos ou por doenças, você acha justo não querer ter nascido quando muitos ainda irão precisar de ti? Am? Olha pra mim mocinha, 58
você acha mesmo que iríamos saber nos virar sem alguém como você por perto? Suas mãos espalmaram-se contra meu rosto e eram quentes, suaves e delicadas como as mãos de uma boneca, fechei os olhos enquanto respirava fundo, o cheiro de seu perfume vinha até mim assim como o cheiro de seu tão precioso sangue, ela me abraçou apertado bagunçando meus cabelos que lhe caiam sobre o ombro esquerdo, senti-me de certo modo protegida, tia Glen era como a mãe que eu infelizmente perdi, doce, meiga, gentil e carinhosa, algo que Mirage perdia a cada segundo em que a desprezava e eu sentia muito mais por isso do que o grande afeto que tenho por ela. Por um longo período da extensa manhã eu e ela ficamos ali sentada bem no centro de um porão completamente desorganizado, caixas e mais caixas haviam se acumulado abertas ao nosso redor, era impossível contabilizar as riquezas materiais e um tanto pessoais que ela colecionava, diários, agendas com anotações importantes cuja lembrança não lhe permitia apagar, cartões escritos por ela para minha mãe e as cartas com as respostas, jóias – não valiam muito, mas tinham grande valor sentimental – e uma série de outras coisas que não tive tempo de relacionar mentalmente se encontrava ao nosso alcance, era como ter uma biblioteca sem livros, algo que ninguém estimaria em uma vida inteira.
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Senti uma breve oscilação, as tábuas rangeram acima de nós revelando que Mirage havia se retirado de sua clausura na qual transformara seu quarto, a passos leves ela dirigiu-se a cozinha de onde saiu carregando um prato que eu não pude identificar os cheiros por causa da grande quantidade de poeira que já havia aspirado, até que está repousou na sala de jantar. Tia Glen sabia bem quando eu sentia as coisas no ar e no ambiente e logo, pedindo desculpas com os olhos, retirou-se do porão as pressas e desapareceu ao subir as escadas. Bloqueei eu mesma meus instintos de metade vampira e experimentei ficar completamente sozinha pela primeira vez e apenas escutava os sons dentro do porão velho e sentia apenas um pouco de frio. Uma foto antiga caiu de dentro de um dos diários, a bela mulher de belos cabelos ruivos aloirados sorria pouco, mas um sorriso insinuante, faceiro típico das mocinhas audaciosas como ela em seu tempo, os belos olhos verdes conferiam-na uma beleza típica de pinturas clássicas assim como sua branca pele pouco corada, mas rosada como a pele de um bebê, um sorriso surgiu em meus lábios, eu senti o grande esforço em meus músculos para que tal coisa ocorresse, notei as semelhanças, o tom dos cabelos, a textura de pele e o jeito de sorrir, só não nasci copia perfeita dela, pois ainda tinha a outra metade por parte de meu genitor. Uma lágrima saltou de meus olhos e de repente sentia-me estranhamente triste e vazia por dentro, algo me obrigou a largar a foto e os diários dentro da caixa mais próxima e me afastar de tudo, o ambiente parecia carregado 60
por uma esfera sombria e sufocante de um passado triste e pesaroso, eu senti-me tão só quando se está acompanhada de pessoas no centro da cidade, me senti desalentada, desolada e repentinamente algo me dizia que aquelas eram as sensações que Chrysta, minha mãe, tivera antes de saber o que eu realmente era. Tratei de me levantar, gemidos e gritos ecoaram dentro de meus ouvidos como se estivesse num mundo pósapocalíptico, vozes sofridas e um tanto assustadoras fizeram-me me afastar das caixas, tornei a voltar até estas e passei a mão sobre a foto que ficara ainda para fora do diário. Rapidamente tratei de subir as escadarias de madeira puída e retirei-me daquele lugar antes que viesse a enlouquecer. Esbarrei-me com tia Glen que perseguia Mirage pelo corredor e quase cai não fosse por me apoiar na parede, ela nem me pediu desculpas, bem... Antes ela tivesse me notado ali com tanta confusão e gritaria. Meus ouvidos tornaram a voltar ao normal, mas eu nem dei tempo para escutar os berros de Glendora para as paredes. Subi até o meu quarto e guardei a foto de minha mãe em um livro o único que ficava quase sempre aberto sobre a mesinha de escrivaninha. O sol iluminava o quarto irritantemente forçando-me a me esconder nas sombras uma vez que se fechasse à janela sentia que as presenças sombrias retornariam e me atormentariam como no porão. “Madde... Madde!”.
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- Deixe-me em paz... Deixe-me em paz! – Minhas palmas espalmaramse contra os ouvidos na tentativa cega de não escutar mais nada. Outros sons misturaram-se aos gemidos abafando aquela voz suave que me chamava, durei um pouco até perceber que os sons eram minhas mãos em atrito constante com minha orelha e cabelos, porém agradeci muito a isso, pois se não houvesse de tampá-los com certeza estaria ainda sendo perturbada pelos berros do além. Um baque eu escutei do lado de fora de meu quarto, tia Glen estava aos pés desta esperando por uma resposta minha. - Madde filha... Você está bem? Fale comigo menina... - Eu estou bem tia... Estou bem... – Respirei fundo até que me livrei totalmente das mãos em meus ouvidos, o quarto estranhamente encontrava-se mais iluminado agora. - Abre a porta filha, por favor, não me mate de aflição... “Click” A porta rangeu como fazem as portas dos filmes de terror de Hollywood, a luz afundou o corredor numa claridade incandescente, as paredes de terracota brilharam numa bela imitação de pôr-do-sol. Glendora encontrava-se ali parada a encarar-me, a luz do sol não era páreo para sua beleza senhoril, os tempos poderiam passar e ela continuaria sendo a mulher perfeita que é. - Como você está menina? Saístes correndo do porão assim tão repentinamente, aconteceu alguma coisa que mereça ser de meu 62
conhecimento? – Ela entrou em meu quarto sorrateiramente vindo a sentar-se à beira de minha cama. - Não foi nada tia... Eu só não me senti tão bem ficando lá. Não fui tão verdadeira ao falar, nunca fui boa em esconder coisas de Glendora, mas nos últimos anos eu vim me superando nas elaborações das mentiras. Porém nem tudo permanece num status de aceitação, eu sabia que ela poderia sim acreditar no que eu acabara de dizer-lhe, mas duvido que ela o quisesse. - Eu sinto uma nota de preocupação no seu modo de agir e responder, o que foi que houve Madde e seja sincera, por favor! Tornei a silenciar-me, contar a verdade só confirmaria o meu atestado de loucura momentânea, mas como negar o fato de que ouvi vozes? Como negar que não me senti bem antes de deixar o porão? Será que sempre vai ser assim? Droga, meu cérebro estava por dar um nós já de tanto me questionar e não ter uma resposta satisfatória. Recostei-me mais a cabeceira da cama puxando o travesseiro para mais perto de minha cabeça e agarrando-o como uma criança que não quer largar a cama cedo a olhei com um ar pesaroso e descontente onde um sorriso tentou iluminar-me a face e não dera certo. - Madde! – Repreendeu-me ela gentilmente. - Desculpe-me tia, eu tentei... Tentei ficar e ver mais coisas que tinhas guardado de minha mãe, mas foi demais... Não sei, eu só não consegui
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continuar num ambiente aparentemente carregado sabe, quando as coisas estão pesadas demais você imagina coisas... - Que coisas? – Ela me encarou inquisitiva. - Coisas que aos olhos dos outros seria loucura pura... – Calei-me antes de poder soltar qualquer besteira, ela não iria acreditar numa coisa dessas. Ela já acreditava em assombrações demais para que eu lhe impregnasse com mais outros. – Desculpe... – Baixei a cabeça. - Não há problema algum. Eu respeito a sua decisão de não querer falar mais, eu é que fui à culpada por levá-la para lá e no final deixá-la sozinha com lembranças tristes... - Tia... – Foi a minha vez de repreender. - Não discuta... E agora... O que você acha da gente fazer sua torta favorita? Glendora tinha a maior facilidade em mudar de assunto céus, aquilo ainda me confundia as tampas! Sem mais conversa tornamos a deixar o quarto e nos encontramos na cozinha silenciosa. Havia algo de diferente, tia Glen nunca ficava tão silenciosa como agora, Mirage fizera algo que ela não deva ter gostado nem um pouco. - Tia... - Hmm... - Aconteceu alguma coisa com você e a Mirage? – Fiz de tudo, mas parece que minha pergunta não saiu simplesmente como uma curiosidade. 64
A cozinha mergulhou novamente num silêncio causticante onde só se ouvia o ruído das panelas ao fogo e das colheres a bater o bolo manualmente. Meus olhos deixaram o cenário de bagunça que eram as pilhas de caixas e pequenos pacotes de farinha vazios para voltar-se a ela que de certa forma lutava para não deixar transparecer a sua preocupação de mãe. - Tia? Ela inspirou o ar com certa dificuldade, o mundo parecia ter caído-lhe sobre as costas frágeis eu senti bem quando seu coração deu uma ligeira descompassada. - Eu realmente não sei o que há com sua prima Madde, eu juro que tento ser uma boa mãe, mas às vezes parece que ela não é a mesma garota de anos atrás! – Suas mãos pararam de bater o bolo, a vasilha deste veio a repousar sobre a pia. – Desculpe-me estar lhe contando coisas pessoais demais, mas sua prima anda muito estranha, não parece ser mais a minha filha. A gana, o ódio, a inveja pareceram corroer-lhe a alma antes tão pura... Isso me dói, dói demais... - Não devias tê-la deixado partir aquela época. Cinco anos é muito tempo para que as mudanças ocorram, com certeza ela teve influencias para que isto ocorresse. - Eu sei, eu sei minha menina... E não pense que eu nunca avaliei a situação antes dela partir... Eu fui uma tonta mesmo em acreditar nas
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palavras de... Oh... Esquece, esquece tudo isso Madde. Não tem nada a ver com você! - Mas o que... Glendora Kaio, mas é claro que isso tem a ver comigo! Eu moro aqui, sou sua sobrinha e prima de Mirage, quem disse que esses assuntos não me dizem respeito? – Minha voz alteou uma oitava. Ela baixou a cabeça enquanto seus olhos apertavam-se como se sentisse dor. – Não se preocupe, eu vou ficar de olho em Mirage de agora em diante e se ela pisar só um pouquinho fora da linha eu juro que a colocarei em seu lugar... - Madde... MADDE espera... Toda aquela situação me fez perder totalmente à vontade de comer, minha cabeça agora não parava de rodar as voltas de uma só idéia, fazer Mirage enxergar que Glendora sua mãe queria-lhe bem, se eu me meti ou não noite anterior dentro de um bar para tirá-la de uma enrascada ainda maior foi por minha conta e não de minha pobre tia. Ela iria pagar com aquela língua suja dela por ter magoado sua mãe e minha tia. - O que você vai fazer Madde? Espera... Quer fazer o favor de parar... – A última frase saiu com um ímpeto tão grande que meus músculos por inteiro estremeceram, nunca ouvi Glendora gritar daquele jeito com alguém e muito menos que esse alguém fosse eu. – Não ouse fazer qualquer coisa que vá colocar em risco o que és, você mesma viu na noite anterior o que aconteceu e não fosse pela sua condição meio humana teria levantado suspeita aos olhos de todos inclusive aos olhos 66
de Mirage. Eu conheço a filha que tenho e sei exatamente que ela seria capaz de qualquer besteira para vê-la prejudicada. – Ela engoliu em seco, a respiração espaçada. – Por favor, Madde... Esqueça isso pelo menos desta vez... Pelo seu bem e o de todos desta casa, não cometa um erro que lhe custe a sua paz... Pensando pelo lado pratico de toda a situação Glendora tinha razão, provavelmente se eu fosse atrás de Mirage agora ela poderia por em cheque todo o meu mundo sombrio e o que eu menos queria era ter meus segredos expostos em praça pública. A minha raiva começou a dissiparse aos poucos, porém ela ainda era suficiente para me fazer guardar até o momento certo aquela história de magoar a Glen. Dando-me por vencida “por enquanto” soltei todo o ar que tinha dentro dos pulmões que me fazia altear o peito em pura demonstração de poder, poder este que na realidade eu não tinha nem dez por cento. - Está bem... Eu não farei nada então! Mas fique sabendo que se ela lhe altear a voz de novo eu mostro com quantos paus se faz uma canoa, a se juro! A seriedade tornou-se obvia demais em ambos os rostos até que ela, Glendora, caíra na gargalhada, eu não agüentei e acabei também caindo na risada junto com ela, rapidamente deixei o caminho que eu seguia em direção ao quarto e tornei a voltar à cozinha para o então preparo do bolo.
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CAPÍTULO 4 A tarde passou sem mais delongas numa cozinha a pleno vapor, entre bolos e conversas informais sobre o dia, trabalho e caçadas. Em instante algum fomos interrompidas, a não ser pela série de risadas que dávamos a cada pensamento por vezes equivocado ou mesmo por graça expostos. Mirage não voltara para casa, mas nem mesmo assim tia Glen se apavorava, ela sabia que esta deveria de estar num shopping gastando seus trocados com roupas ou acessórios caros, Mirage tinha esse costume 68
desde que entrou para o colegial, estressava-se com qualquer coisa, sejam professores, outros colegas de classe ou namoradinhos e lá estava ela na frente de uma loja fazendo uni-duni-tê para escolher o que iria levar o que sempre dava errado, pois ela cismava que tinha de levar tudo. Pobre do bolso de Glendora naquela época, os cartões dela sempre sumiam de sua carteira e isso ela só ia sentir depois quando a conta vinha com o limite estourado. Por quantas vezes eu a livrei de contas e mais contas com o meu próprio dinheiro, quantas longas noites em claro eu passei dentro de um fétido bar servindo bêbados inveterados, tarados e até gente barra pesada. Longos tempos aqueles! Quando o pai de Mirage resolveu lhe mandar para Paris estudar num dos melhores colégios nossas vidas se tornaram muito mais simples, mas ela iria estudar claro por conta própria, trabalharia pra conseguir se sustentar e pagar as contas da faculdade enquanto ele ficava aqui cuidando da casa e das coisas, até o dia em que faleceu, estúpido senhor Arrow, ninguém nunca imaginava que o carinha teria problemas com bebida, sempre batia em tia Glendora quando não estava satisfeito com algo. Lembro-me de um fato nada interessante de ser relembrado em minha memória, aquela noite era uma terrível noite chuvosa onde eu trabalhava a todo vapor no bar, James o dono divertia-se ao seu modo diante do junkebox tocando sucessos dos anos 70 algo que era incrivelmente irritante não só para os meus ouvidos. O burburinho alto 69
dos drogados e bêbados que chegavam estavam me causando dor de cabeça com os poderosos ecos na beira de meus ouvidos, meus olhos estavam fixos sobre a bancada enquanto minhas mãos equilibravam duas garrafas escuras de wiskey doze anos combinado com tequila, os trovões rolavam sobre nossas cabeças do lado de fora, quanto mais gente chegava mais se encontravam encharcados e com cheiros peculiares, lama condensava-se nos assoalhos de madeira até que uma única pessoa entrou em meu campo de visão. Garmond Arrow esposo de tia Glendora, ele estava junto com outros dois colegas da serralheria onde ele era gerente, conversavam em voz alta e tinha um ar reconhecível de trambiqueiros. Apesar de ser um bom trabalhador, tio Garmond era um falastrão bêbado que mal segurava as calças quando entornava todas, seus olhos assim como dentes já manifestavam a cor amarela típica, ainda bem pelo menos que este não fumava, era menos um odor para suportar. - Hei, princesa... – Um dos caras que se encontravam com tio Garmond abriu o bocão pra gritar. O som das bolas em colisão na ala oeste do bar sinalizava a pontuação de um dos motoqueiros barra pesada que freqüentavam quase assiduamente o local. A junkebox tocou “White Flag” da Dido. – O que teremos hoje? - Pare de jogar charme pra cima da minha sobrinha Cortês! Ela não é pro seu bico!
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Revirei os olhos, antes todos ali soubessem o que eu realmente escondo desde que nasci. - O que vocês vão querer? – Tratei de ser rude e seca como sempre soube ser com todos os que me galanteavam. - Pode trazer três doses duplas e uma porção de fritas como aperitivo! Tudo por minha conta... – Garmond quase batia no peito de alegria em demonstração de superioridade. Isso me cheirava a promoção. - Você realmente deveria parar de beber senhor Arrow! – Falei distraidamente. Ele sentou-se com um ar superior que me indignava às vezes. - Sobrinha querida... – Eu o olhei por sobre os olhos, minha atenção inicial ia diretamente para a bancada onde o liquido dourado queimado escorria para dentro dos copos. – Vai ver se eu estou lá na esquina vai! – Respondeu cínica e secamente a minha indagação anterior. Risadas ecoaram por sobre minha cabeça, meus dedos quase quebraram a garrafa tamanha era a minha raiva. Notando melhor eu conseguira trincar a garrafa de 02 cm de espessura de vidro. A música ambiente mudou para uma insinuante música. - Acalme-se Madde, sabes como é o seu tio, não mecha com ele hoje! Com uma brutalidade absurda lancei os pequenos copos sobre a bancada na direção dos outros bebuns que até tremularam diante da minha reação. - O problema James é que eu sei exatamente onde isso tudo irá refletir mais tarde. – Meu maxilar trincou, eu podia escutar os dentes roçando 71
dentro de minha cabeça. – Eu juro que se ele encostar um só dedo em Glendora eu acabo com ele em menos de dois tempos! James sacudiu a cabeça contrário a minha reação, mas no fundo, no fundo ele sabia que os meus instintos eram assim tão protetores. A única coisa que ele não precisou por enquanto saber era o quanto de mim manifestava essa estranha frieza e fúria. Ele nunca saberia o por que disso tudo. Preparei as três bebidas e enchendo o peito com coragem e paciência o suficientes equilibrei os três copos junto com uma tigela cheia de batatas fritas como aperitivo, ketchup, mostarda e palitinhos em minha mão direita enquanto a outra abria passagem pela bancada. James me olhou de relance, estava ocupado demais terminando de secar o seu lado da bancada molhado pelo beberrão do Arnold um velho gaga que sempre derrubava o último gole só por graça para conseguir mais um outro trago. Tive a impressão de ouvi-lo sussurrar “Boa sorte” em meio à música alta que ecoava por todos os cantos e com isso criei a coragem necessária para encarar meu tio e os dois amigos beberrões dele, estufei o peito cheio de ar e soltei-o vagarosamente enquanto caminhava do meu modo tradicional, sem muitos rebolados ou quebradas. Eu sempre usei tênis pra evitar isso!
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- Aqui está... Três doses duplas de cerveja e batatas fritas pra acompanhar. – Abaixei a bandeja até o nível de seus rostos e esperei que tivessem a displicência de pegarem seus respectivos copos. Porém quando os dois amigos de Garmond preparavam-se para pegar seus copos este os barrou... - O que é que você está pensando que somos? – Olhou-me astuta e gananciosamente Garmond. – Sirva-nos, é para isto que estás trabalhando aqui garota... Segurei-me para não dizer poucas e boas na cara dele, meus nervos não seriam colocados em frangalhos por causa de um miserável beberrão como ele. James baixou a cabeça, mas não perdeu a conexão de seus olhos com os meus. Respirei fundo, achei que o problema não poderia se estender além disto, aliás, era o meu trabalho mesmo! Novamente suspendi a bandeja e retirei primeiro os copos colocando-os diante dos pedintes sentados naquela mesa sob os olhares bravios dos três ali, logo após repousei a vasilha cheia de batatas fritas recém saídas do óleo e ainda a chiarem e em seguida a este os potinhos de ketchup e mostarda e palitinhos. - Assim está bem melhor não acham rapazes? – Garmond continuou a me encarar com aquele sorriso meio louco num dos cantos de seus lábios, me virei sem esperar mais uma gracinha e retornei para detrás do balcão.
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- Muito, muito bem mesmo Madde, seu autocontrole manteve-se em alta. Estou realmente satisfeito que não tenhas arrumado confusão por hoje! Arremessei a bandeja dentro da pia enquanto minhas mãos agarravam-se ao metal deste com toda a força que podia até amassar o aço inox brilhante. Como eu tinha vontade de voltar até lá e socar aquela cara. - Eu me pergunto a todo instante o por que de ainda não ter partido aquele nariz adunco que ele tem... – Soltei varias vezes o ar que respirava meio que arfante, era lívido em minha face o ódio de tipos como aquele cara. – Deus dê-me forças pra suportar até onde achares que é bom! - Passou viu? Não se preocupe, eles não vão ficar por muito tempo... – A voz de James foi cortada por um trovão assustadoramente barulhento, tudo estremeceu repentinamente, as luzes das ruas piscaram assim como as do interior do bar, a música parou e as vozes dos fregueses tornou-se atormentada e assustada, tudo isso para não dizer que furiosos com a parada brusca da música e pelo susto. – Droga... Espere aqui, eu vou dar um jeito naquela geringonça. Meus olhos fitaram a imagem que acabava de desaparecer fora da porta da cozinha que ia dar de frente para o bar, não havia como enxergar alguém além disto, nem alguém poderia me ver lá de dentro. As luzes oscilaram novamente e a chuva lá fora se tornou impiedosa e devastadora, o frio estava se acentuando as paredes do bar que 74
estranhamente tornavam-se como as prisões do século XIX, tão frias e intempéries como rochas das encostas do mar. A luz acabou assim como a paciência de muitos lá do lado de fora, ouvi James xingar, a chuva quase os ensurdecia para mim. Soltei-me da pia sentindo um alivio percorrer-me a ponta dos dedos, o metal havia entortado com a força que fiz e não havia modo melhor de torná-lo reto a não ser retirando-o e trabalhando minuciosamente sobre. - Droga... – Eu sussurrei. James iria notar aqueles calombos fundos a beira de sua pia, sorte a minha de estar... Espera... Acabo de me enganar, não estou completamente sozinha! Não agora... - Quem está ai? – Podia sentir meus olhos querendo mudar, controleime ao máximo, poderia ser apenas um bêbado querendo saber onde era o banheiro. Ao contrário do que eu poderia vir a pensar este não respondeu, eu apenas senti o cheiro de cerveja derramada e lá no fundo tabaco, o som dos sapatos, botas de couro sintético, ecoaram em meus ouvidos como se eu os tivesse recostado ao chão, o coração do individuo estava acelerado assim como o seu pulso na jugular. Cheiro de sangue quente afundou-me numa estranha sensação de embriagues, eu não podia controlar-me mais, não com uma aproximação tão rápida e cheia de segundas intenções, seja lá quem for eu não ia me conter por mais tempo. 75
- Seja lá quem for, deixe-me em paz... Por favor, eu lhe peço! Uma risada mortal veio junto com uma mão boba em minha cintura, em pouco tempo senti-me como sendo envolvida por um abraço tão quente quanto o fogo, dor me invadiu a alma, ser tocada algumas vezes podem trazer a mim sensações diferentes, eu senti dor por que a pessoa que me tocava sentia dor, estranha essa ligação não é mesmo? Mas eu também senti nojo, o mesmo asco que sempre sinto com qualquer tarado tentando se aproveitar de mim. Quando seus lábios tentaram se aproveitar dos meus o empurrei com toda a minha força obrigando o personagem a cambalear e derrubar tudo o que tinha em cima da mesa logo adiante, meus olhos duraram um pouco para se adaptar a escuridão, mas de relance eu senti e pude ver a cara raivosa do meu agressor. Meus gritos ecoaram dentro da enorme cozinha, correr a essa altura estava fora de cogitação uma vez que nem sabia para que lado iria já que não podia manifestar meus dons vampíricos ali em publico. - MADDE! Eu ouvi James gritar e posteriormente tropeçar em alguma coisa, cheiro de sangue vivo novamente me assaltou os nervos olfativos, dor me invadiu a boca quando senti minhas presas rasgando a gengiva, James havia se machucado na queda e eu não conseguia saber o quão grave fora. O personagem que me derrubara sentaram-se sobre meus quadris paralisando-me as pernas, minhas mãos foram de encontro com o seu 76
corpo e rosto mais não consegui atingi-lo apenas o enfureci mais, eu podia sentir as endorfinas em sua corrente sanguínea vacilante, meu coração acelerou junto ao dele, algo molhado tocou-me a pele do rosto e eu não quis acreditar quando quase o senti me beijar que aquilo fosse sua língua, argh... - MADDE... – Uma voz abafada e sussurrada me chamava e não pertencia ao homem que tentava abusar de mim. Desviando uma das mãos atingi de um só golpe o rosto do idiota e assim que ele rolou para o lado eu escapei para fora da cozinha, as gengivas a sangrar por causa das presas recém expostas. - JAMES... James onde você está? – Gritei. Meus olhos ardiam e vultos pronunciaram-se na cor vermelha. – James? – Algo esbarrou em mim, me virei tentando enxergar o que fora. - Não querida... Sou eu! Mal tive tempo para respirar, uma mão puxou-me pelos cabelos e eu senti meu rosto sendo arremessado contra a estante, vidros partiram com o impacto, finos cortes fizeram minha face verter sangue. Sangue verteu também de meus caninos para fora da boca. - MADDE! – Soltei um gemido de dor, era bom reconhecer uma voz pelo menos. Quem me chamava tinha uma voz rude e seca típica voz de James quando este está zangado com alguma coisa. Ele saltara para dentro do 77
curto espaço pertencente ao barman e dele próprio interpondo-se entre mim e o meu agressor. Suas veias inflamavam-se assim como todo o seu ser por minha culpa, agora uma coisa eu não sei dizer bem, pois minha visão noturna ainda não está amadurecida completamente. Digo que não treinei quando era para treinar, apenas enxergo vultos, nada definido. - Cai fora cara, essa garotinha ai nem merece o tanto que estás fazendo por ela! – Aquela voz era conhecida, mas eu não consegui identificar, apenas sei que o seu tom era cínico e ameaçador. - Não... Eu não aceito que alguém de fora venha a falar mal dessa menina. Afaste-se ou eu e todos os outros iremos colocá-lo pra fora do estabelecimento! O personagem riu escandalosamente como se achasse graça da piada, o que não era pra ser encarado como uma piada claro, pois James já expulsou muitos do bar simplesmente por que bancaram os espertinhos de me azarar. Falta de sorte eu não sei, mas este parecia me conhecer muito mais que qualquer outro que já tenha tido a má sorte de mexer comigo. E agora o que eu faria? Meus segredos pareciam estar à beira de um colapso e se eu deixasse que isso fosse a diante seria ainda pior, mas o que fazer meu Deus, estava completamente perdida e tudo o que eu fosse tentar fazer não iria prosseguir, estava por um fio. Ouvi o som dos socos cortando o ar, minha visão periférica captou os vultos dos dois homens duelando naquele curto espaço enquanto eu continuava caída sentindo meu rosto latejar pelo fato dos cacos ainda 78
estarem cravados na carne. James não podia se arriscar tanto por alguém que ele realmente não conhece, não era isso que eu queria, nunca quis na realidade que alguém me defendesse e por isso aprendi a me defender sozinha. Algo aconteceu, as pessoas haviam se afastado e foi ai que entendi que meus olhos podiam enxergar muito mais além dos vultos, era tão nítido que até parecia que as luzes haviam retornado, porém a única peculiaridade que muda toda a forma de se ver uma cena é a cor da iluminação e meus olhos pareciam manchados de vermelho. James e o outro homem estavam quase por se matar quando eu percebi que o agressor, o outro homem ali a socá-lo se tratava nada mais nada menos de meu tio Garmond, susto congelou-me da cabeça aos pés, como ele soubera da minha condição? Como ele podia fazer tal absurdo só para me prejudicar? Bom... Até parece que eu já não o conhecia! Os caninos retraíram-se um pouco mais rápido talvez do que quando vieram a aparecer rasgando a gengiva sensível, minhas forças que antes haviam de me abandonar retornaram de uma maneira tão brusca que eu quase fui posta de pé sem me apoiar, porém antes de pensar em agredir alguém eu pensei e pesei todos os prós e contras, Garmond poderia me denunciar ou simplesmente aproveitar-se dessa situação para me chantagear como ele sempre fazia com Glendora. James fora encurralado por ele, estava cansado e todo machucado por causa dos socos e joelhadas, agora praticamente estava indefeso. 79
Garmond que era alguns centímetros mais alto e rico de musculatura aproveitava-se para desferir os últimos dilacerantes golpes, sangue espirrou da boca de James quando este veio a cair, o ar custava-lhe a entrar nos pulmões por hora bloqueados, eu sentia a sua angustia me sufocar e em conseqüência a raiva me subia à cabeça. Antes que qualquer um viesse a me bloquear atingi Garmond com toda a minha força e potencia, na escuridão ele nunca viria, a saber, de onde vinha o ataque e foi o que aconteceu. Ele saiu voando bancada a fora quebrando mesas e algumas cadeiras, quase escapuliu pela janela não fosse por uma parede. Sangue escorreu de seu lábio e este o secando com a manga da jaqueta pôs-se de pé tentando ver de onde fora atingido. Sem tempo para uma segunda recuperação ataquei-o novamente com vários socos. Eu não notei, mas a luz havia voltado e todos estavam a me observar, alguns cuidavam de James enquanto os outros apenas observavam apavorados a briga desigual entre uma garota e seu agressor. Os amigos de Garmond voaram para ampará-lo enquanto outros me agarravam pela cintura bloqueando meus golpes. - Não... Deixem-me acabar com ele... Soltem-me! - Já chega Madde, você já deu o que tinha de dar, agora acabou... – Falou-me Bjorn o leiteiro que só viera esperar a chuva passar. - Olha só como ela deixou o cara... – Sussurrou um outro cliente tão alto que mais parecia um grasnar. 80
Aparentemente Garmond estava tranqüilo demais, mesmo com tantos machucados e pequenas lesões um sorriso era esbanjado de seus lábios na direção dos meus olhos. Uma gargalhada gutural surgiu do fundo de seu âmago pronunciando-se primeiramente na garganta e depois se exteriorizando para fora da sua boca arrebentada. - Do que está rindo seu idiota? – Cuspi fervorosamente irritada. - Isso é tudo? – Ele me questionou sem piscar. Acho impossível que ele consiga piscar com dois hematomas prestes a crescer ali. – Tem certeza de que não tem nada mais pra me mostrar e mostrar a toda essa gente? – Fui golpeada por um jato de ar frio que sei lá de onde surgiu, apenas sei que me soltei e soquei bem no centro da face quadrada de Garmond. Ele caiu para trás desacordado, nada fiz além de recuar e suspirar... Minha raiva dissipando a cada golfada de ar ressurgida de algum canto do bar. - Acabou mesmo? Ou não acha que faltou um outro golpezinho ali? Sorri quando James falou meio engasgado enquanto outros o seguravam. - Acabou... – Afirmei tornando a olhar o bêbado do tio Garmond, nojo me fez contorcer a face culpa não me açoitava mais e isso me era de grande satisfação. Eu ri da situação um pouco estúpida e ridícula, tudo para não exteriorizar os pensamentos que estavam querendo interporem-se a nossa conversa entre sobrinha e tia. 81
- No que pensavas para andar tão sorridente e faceira ai mocinha? - Nada não tia... Nada não... Somente lembranças que merecem de algum modo serem apagadas! Meu sorriso não se apagaria, não pelo menos pelos próximos cinco dias...
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CAPÍTULO 5 Tudo correra perfeitamente bem nos dias que se seguiram, eu controlei minha raiva ao máximo para não voar no pescoço de Mirage e ela trabalhou perfeitamente bem sem tocar uma única palavra comigo, era estranho algo assim acontecer entre primas, mas totalmente normal uma vez que coisas entre família sempre terminam ou começam assim. Tia Glen continuou escondendo sua frustração de sempre ao ver sua filha bancar a indiferente com ela. E pensar que Mirage não dava nenhum valor a sua mãe enquanto eu nem tinha uma para dar tanto valor assim, quanto mais desprezar. Pois bem... 83
Estava eu saindo do banheiro e me dirigia ao quarto para vestir-me e sair quando topei com ela no corredor. Glendora não se encontrava, ela tinha saído para ir comprar algumas coisas no mercado. Sorte a minha, poderia tentar pôr um pouco de juízo na cabecinha oca de minha prima. - O que diabos você tem na cabeça? – Esperei que ela tivesse me cruzado por completo e agora faltasse pouco para fechar a porta do banheiro para falar. – Por que desprezas a única pessoa que realmente ama você, a única pessoa que você tem de família a não ser eu e nossos avós? - Vai se catar garota... – Ela nem me encarou pra início de conversa. Minha mandíbula mexeu irritantemente, eu não ia me contentar com um “Vai se catar!”. - Quer saber de uma coisa? Não... Eu não vou me catar coisa nenhuma. Agora eu quero que você me escute pelo menos uma vez nessa sua inútil vida. - O quê que é hein? Tirou o dia pra me atormentar? – Ela tornou a abrir a porta do banheiro, suas mãos elevaram-se até os quadris. - Te atormentar? Vê se te enxerga garota... Eu to tentando conversar pacificamente com você e simplesmente queres me dar uma patada! Qual é... Ela suspirou bravamente como o seu pai costumava fazer.
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- Será que dá pra andar logo? Eu tenho um encontro agora! – Uma sobrancelha ergue-se acima de seus olhos, eu conhecia por acaso aquele modo de olhar dela. Revirei os olhos, me parecia que ela nunca iria dar valor a nada que fosse falado com ela, parece que todos os adolescentes de 19 anos tem uma pressa em viver que inutiliza seus cérebros um tanto infantis. Como se isso ajudasse ou piorasse alguma coisa! Um nó apareceu em sua testa, ela estava tensa eu podia sentir no ar, as quebras de sua defesa estavam se evidenciando, mas eu fingi que elas não existiam apenas para me focar na real conversa que eu estava tentando a custo estabelecer. - Por que você trata sua mãe com essa indiferença e frieza? Glendora é a melhor pessoa no mundo, cuidou de você, ensinou-a e protegeu-a de uma monte de coisas que poderiam ter muito bem lhe tornado uma pessoa frustrada moralmente e agora merece tudo isso que você está dando a ela? Ao invés de agradecê-la você a castiga por ter nascido? Mirage, por favor, não faça isso com ela! Você mal sabe o que se passa dentro daquela mulher pra pisar como você tem feito... Não jogue o seu ouro fora por vaidade! – Tudo o que eu falava eu sentia ecoar dentro de mim como um quarto sem janelas onde os sons ricocheteiam num estranho ar pesaroso de dor e medo, não fazia idéia de qual seria a reação de Mirage, mas se fosse eu teria imediatamente me arrependido.
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Sua mandíbula mexeu-se inquietantemente, seus olhos por um momento pareceram vazios e distantes como se pensando e pesando tudo o que disse em miúdas palavras, porém eu sentia algo totalmente diferente invadir-me a pele, uma sensação de incerteza misturada a uma inquietante convicção que até agora nubla meus sentidos. Seus olhos estreitaram-se de maneira fria como sempre e de certo modo calculista. - Olha... Se for tudo eu agradeço! Mas eu não estou interessada em mais um Blá, blá, blá pra me fazer entender o que eu tenho de fazer ou não. A mãe é minha e não sua. Não mando você se intrometer. Aliás, ultimamente você tem se metido demais entre nós, por que não vive a sua vida como qualquer prima faria? - Você é patética sabia? - Ah agora eu sou patética? – Ela riu amargamente. – Vê se te enxerga Madde! Você tem é ciúmes de mim por que eu tenho uma mãe, você sente raiva por eu tratá-la como eu bem entendo... - Não eu não... - Espera ai eu não terminei... – Disse ela enquanto tornava a caminhar na minha direção.- Você foi a rejeitada, de alguma forma, de um jeito que não se explica humanamente você não era pra ter mãe nem pai, é sua sina ser assim uma órfã mal amada que busca nos outros um amor que sabes muito bem que nunca terás. Não vem dizer que eu estou sendo a irracional, a mal compreendida que desconta na mãe as frustrações... Eu já entendi o que você é... Apenas uma garota que tenta suprir seus 86
desejos e estímulos refletindo na minha mãe algo que você nunca vai conhecer... Eu, pra sua inteligência, sei sim dar valor à mãe que eu tenho, você é que não compreende, você tem inveja de mim... Você inveja a vida que eu tenho, a chance que tive de estudar enquanto você trabalhava em um bar a noite sabe-se lá fazendo o que pra ganhar um trocado por fora! Um estalo alto ecoou por toda a casa, admito não ter um bom autocontrole de meus atos, mas às vezes as pessoas merecem isso falando sério. Nunca ninguém jogou tão sujo comigo como ela, nem Garmond que falou algumas coisas enquanto “bêbado”, ousou ir ao longe. Isso dói realmente e dói demais! Nunca me senti tão mal por ser afrontada daquela maneira, eu sei não tenho uma mãe, mas isso não quer dizer que eu precise espelhar o amor de minha mãe de verdade em minha tia. Dor pronunciou-se em minha mão, uma mistura de arrependimento, raiva, frustração e outra série de coisas ruins a se imaginar me invadiram e eu tive certeza absoluta de que estes sentimentos eram meus e apenas meus. Outro estalo forte e vivido atingiu-me a face do lado esquerdo meu rosto virou-se enquanto o corpo acompanhava o trajeto, controlei a minha raiva e o impulso de meio vampira de atacar Mirage, as presas até que tentaram pronunciar-se, mas eu as retive até a última gota de boa vontade. Nos olhamos ao mesmo tempo em que nos odiamos e juramos sem falar uma só palavra que nunca mais iríamos sequer dizer “oi”, eu não iria nunca mais dar o braço a torcer por ela e ela nunca mais se 87
meteria comigo seja por qualquer motivo ou razão. Após quitarmos nossas dividas com tapas ela se voltou para o banheiro, lágrimas rolaram de seus olhos, eu senti, pois dos meus também saltaram e eram lágrimas de raiva por que eu não queria ter feito aquilo. Porém era extremamente necessário. - Posso não ter uma mãe... – sussurrei. Senti que ela havia hesitado diante do banheiro. – Mas se eu tivesse uma com certeza não agiria como você age! Mãe é uma, e você também vai passar pelo mesmo que eu passo todos os dias um dia... – Caminhei em direção ao meu quarto e me tranquei nele sentindo meu coração partir com o impacto estrondoso de minha própria ‘minante’ dor. Caminhei vacilante até minha cama e sentei-me nela vagarosamente sentindo cada músculo doer na menor tentativa de fazê-lo. A luz do sol sombreava através da cortina a foto que eu havia capturado pra mim de minha mãe, seu sorriso suave e misterioso me fazia derramar mais lágrima ainda que o pedido e exigido de um filho, eu queria tanto que nada daquilo tivesse acontecido, pedia tanto que ela pudesse voltar que quase podia sentir de verdade meu sonho sendo realizado, mas quando abria os olhos eu podia ver que a realidade era cruel, a vida não dura pra sempre ainda mais se tratando de seres como eu e muitos outros iguais a minha condição, imagino quantas mães devam ter sofrido como a minha, quantas sobreviveram, quantas não tiveram a mesma sorte... Ouvi falar que Eliza tinha a sua mãe viva, bem, pelo menos por longos vinte anos 88
após sua ordem se firmar. Pelo menos ela tinha uma com que se preocupar e estabelecer laços. O que eu tinha no máximo era uma foto de Chrysta Kaio, uma garota que tinha tudo pra ser feliz e que, no entanto, por uma fatalidade alguém lhe roubou a inocência e gerou algo dentro de si que a destruiria, alguém como eu! Pelo resto da tarde fiquei ali no meu canto, isolada, necessitando de um tempo pra pensar e refletir sobre a minha vida e a minha história, sentada no batente de minha janela eu observava o pôr-do-sol tornar-se presente, negligenciando o uso de óculos escuros, a minha proteção primitiva para a sensibilidade a mais. Aquela altura da fatídica história eu já nem me importava mais. Calei-me para o restante do mundo, fechei meus olhos esperando não ver mais nada e também evitei ouvir, se eu desse ouvidos aos sons externos perderia a minha conexão comigo mesma. Ao cair da noite deixei todos os pensamentos esvaírem-se como o pó de minhas botas de soldado, vesti-me como tinha costume de me vestir pra sair e bloqueei meus olhos perigosamente escuros a cintilar um vermelho vinho típico de quando me fechava para “balanço”. Tia Glen quis saber aonde eu ia, mas eu não lhe disse, tinha certeza de que Mirage escutava a conversa do andar de cima e não queria que ela me dissesse que estava abusando da boa vontade de sua mãe.
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- Por favor, alguém quer me dizer o que há de errado aqui? O que foi que houve com você nesse tempo que eu fiquei fora? Madde! - Por favor, tia... Eu preciso ficar sozinha está bem... Nada pessoal... – Minhas mãos bloqueavam a sua passagem enquanto eu afastava-me lentamente para fora da casa, minha moto encontrava-se travada na garagem como sempre sem nenhum arranhão ou mesmo amassado, minha querida moto preta com raios cor de vinho nas laterais, algo típico de alguém como eu claro. - Querida... Aonde vais a essa hora? Está anoitecendo! - Não se preocupe Glen, eu volto antes do raiar do dia... Só não se preocupe demais! O olhar pesaroso e cansado de minha tia não lhe abandonou nem no momento em que tentei confortá-la pelas palavras e muito menos quando a moto rangeu como um leão faminto para fora da garagem, da janela lateral da casa eu percebi que estava sendo vigiada por minha irresponsável e linguaruda prima, eu nem liguei, apenas acelerei a moto e parti sem uma direção certa. Todos os lugares onde poderia estar de alguma forma foram colocados ao chão ou fechados apenas me restando uma opção, a igreja no final da cidade sobre uma colina que estendia ao seu redor pequenos casebres também construídos como o lar onde eu morava desde que nasci. A única coisa que mudaria toda a minha história de vida era o fato de entrar em uma igreja, talvez eu encontrasse ali a minha tão desejada 90
paz de espírito, talvez eu conseguisse sentir a presença de minha mãe que eu tanto desejei conhecer. Sua foto repousava comigo agora dentro de minha carteira, olhar para a sua imagem me trazia paz de algum modo. Após certificar-me de que a capela estava vazia parei a moto ao lado desta escondendo-a das vistas ardilosas dos vizinhos estranhos adjacentes aos terrenos da região. Caminhei com minhas botas de soldado pela grama fresca e verde tendo por companhia no mais alto céu azul escuro como o veneno que corre nas veias de um vampiro a prateada meia lua, ela parecia de alguma forma sorrir para mim gentil e caridosa com minha dor, retribui o sorriso e adentrei o saguão da pequena igreja. Estava tão fresco lá dentro que até confundiria facilmente com o frio a limar todo o azulejo que imitava aqueles pisos originais de séculos atrás. Acima no teto residiam belas pinturas arcaicas, imitações perfeitas daquelas pinturas que adornavam as grandes catedrais metropolitanas. Os bancos reluziam ao breve rutilar das chamas douradas das velas de sétimo dia, penso que deva ter tido algum culto religioso ali, alguns laços ainda balançavam quase soltos nos penduricalhos no alto dos castiçais. Talvez um casamento eu pensei, ou um batismo, palpites são só palpites. Nunca fui muito ligada a religiões de certo, se quiserem até podem dizer que sou pagã, porém nunca duvidem do meu lado espiritual. Prostrei-me ligeiramente diante duma imagem referida a Cristo, sua mão cujas chagas teimavam em atrair as atenções estendia-se sobre minha 91
cabeça como se me desse alguma benção. Eu prefiro mil vezes acreditar nele assim a crucificado, não é isso que diz na bíblia. “E no terceiro dia ele ressuscitou!”. Não acredito nos homens, na realidade nunca fui capaz de tais proezas. Suas mentes sujas criaram muitas coisas fora do contexto e por isso nunca freqüentei qualquer igreja, claro há aqueles que dizem coisas que realmente tem sentido, mas de 99,9% dos que dizem um monte de besteira, só 1% diz algo que realmente seja verdade. Busquei algum canto para me sentar nas sombras, algum lugar onde poderia vir a passar despercebida e por assim fiquei no silêncio apenas a sentir a brisa fria invadindo a igreja e sacudindo meus longos cabelos ruivos. O cheiro de terra molhada fez-se presente e eu podia dizer que quase conseguia escutar os trovões a quilômetros de distancia atrás dos morros e colinas próximas a cidade ou a sua volta, sorri ao tentar encaixar o fato numa lembrança. O seu som lembrava aos meus ouvidos e memórias o arrastar dos móveis no andar de cima da casa de onde vim. - É proibido invadir propriedade alheia sabia? Congelei... Juro que meu susto foi tão grande que fiquei completamente paralisada eu senti meu coração vir à boca até. Virei-me para trás a fim de ver de onde surgira àquela doce e suave voz de advertência, porém a pequena capela estava até então mergulhada num profundo breu desproporcional a toda a claridade anterior. 92
Durei um pouco até poder entender que as velas tinham sido apagadas com a forte brisa fria e agora os únicos lugares mais iluminados eram o altar e o lugar onde me encontrava. - Quem está ai? – Quase gritei não fosse pelo grosso nó que cresceu dentro de minha garganta. – Apareça agora ou eu... – Olhei para todos os lados. – Eu! – Mas não encontrei nada para me trazer defesa. Repentinamente pombos saltaram do alto das vigas deixando suas penas cinzas e por vezes branca cair no piso quase se confundindo com a poeira o que fora um modo inteligente e organizado de mostrar o meu estranho vigia das sombras. Ele estava a mais ou menos três metros ou quatro de distancia do chão, parecia muito confortavelmente sentado numa das vigas de sustentação da abobada e me encarava firmemente com um sorriso malandro nos lábios. Aqueles olhos, belos olhos de um azul tão profundo capaz de afogar-me em ilusões, belos lábios finos e tortos num sorriso sedutor, fino nariz que dava consistência ao belo rosto quadrado cuja rala barba fina por fazer o tornava mais homem me prenderam e eu engasguei mesmo sem abrir a boca para aspirar ar. Incomodo se fez diante deste profundo olhar cheio de uma ambição contida e inerte. Ele ao contrário de minha pessoa parecia estar adorando o meu desconcerto, porém eu é que não me sentia bem assim deste ponto de vista. - O que a mocinha faz fora de casa a essa hora? Não sabes que há muitos perigos ocultos nas sombras lá fora? – Perguntou-me ele sutil e 93
sarcasticamente como se estivesse falando com uma pré-adolescente desmiolada. - E você seria parte disto? Duvido! – Retruquei desde já sabendo que não o deveria ter provocado. Justamente como disse, pra que fui abrir a minha bocarra? O rapaz aprumou-se na viga e com um impulso e certo estrepito lançouse dali do alto direto para o chão e tão próximo que eu nem havia calculado o grau de aproximação deste. Por varias vezes eu galguei um caminho dentro das sombras já por dissiparem-se e não notei quando vinha me aproximando duma pilastra cujas costas bateram suavemente refletindo todo o gelo do mármore em minhas vestes como num abraço mortal. Ele me encurralou ali com o seu olhar e corpo tão próximo que o ar tornava-se rarefeito, estranho não sentir isso algumas noites antes, mas a ligação que senti passar entre nós por uma linha invisível foi tão intensa que tremeliques se formaram dos tornozelos aos joelhos, eu ia cair se ele não se afastasse. - Que foi? Não tens medo de homens, mas tens medo de mim? – Disse ele estreitando o já tão curto espaço entre eu e ele. Seu corpo estranhamente quente quase me restringia os movimentos. - Eu não tenho medo de nada! – Retruquei sabendo que aquilo era mentira. Meu corpo tremia. Meu coração batia acelerado. Por um breve instante ele inclinou a face na direção da minha e pareceu aspirar profundamente a minha essência, pronto, estava eu perdida. Meus 94
pensamentos estavam embaralhados e tudo o que eu conseguia movimentar dentro de minha mente era empurrá-lo e correr, mas cadê as forças? Alguém por favor, explica-me o que há de errado comigo? - Você treme... – Seus olhos abriram-se lentamente revelando um repentino brilho vermelho vivo em sua íris. Eu senti o sarcasmo aumentar em suas atitudes. – Como podes não ter medo se seu próprio corpo me responde o contrário? – Sua voz saia quase num sussurro lascivo, um estranho desejo quase me fez amolecer em seus braços. Eu não tive mais voz, sentia-me completamente dominada, invadida por sentimentos no mínimo rudes e misteriosos, algo que já era de fato natural. Seus olhos tornaram-se novamente azuis por vezes, curtas vezes refletindo o brilho vermelho como num código. Seu rosto chegou muito, mas muito próximo mesmo do meu, eu quase pensei que ele me roubaria um beijo ou agiria como o porco de meu falecido tio com suas ousadas investidas, mas ele não o fez, ao contrario, sua respiração saia fina pelas narinas roçando em minha pele, seus músculos contraíram-se de maneira a demonstrar uma estranha tensão, as veias em sua testa pronunciaram-se como se forçadas a isso. Ele se afastou com uma necessidade e velocidade desconcertantes, o calor sumiu assim como o laço de ternura que se criara as nossas voltas. Minha cabeça zumbiu enquanto minhas mãos fixavam-se na parede fria forçando as pernas a suportar o meu próprio peso. - Desculpe-me... – Ele disse brevemente enquanto se afastava. 95
Eu lutei para entender, o estranho fluxo de calor que antes me aconchegou no frio mármore também me abandonou neste exato instante. Minha mente experimentou uma onda de confusão misturada a uma curiosidade inimaginável, meus olhos demoraram-se em suas costas, mas ele não se voltou novamente, ao contrário, pequenas contraturas musculares evidenciavam que o jovem diante de mim tentava controlar alguma fera guardada no peito, seu corpo inteiro dos pés a cabeça tremulavam, sua inspiração era lenta e desajustada. - Quem é você? – Perguntei mesmo já sabendo de antemão o seu nome. Uma risada sagaz deixou-lhe a garganta ecoando por toda a capela, meu medo voltara como se de repente tivesse sido posta contra a parede, a sensação se foi assim como veio. Muito, muito rápido. - Tudo o que precisas saber já sabes de mim, agora se não se importa... – Ele não virou um instante sequer para me encarar, agora quem parecia ter medo de alguém era ele. - Não... – Eu quase gritei temendo não o ver mais. – Espere! O jovem de nome Danov parou no meio do corredor, a escuridão quase o possuindo. Só agora eu fui me ligar no tipo de vestimenta usado por ele, uma calça Levi preta, botas de mesma cor de cano escondido pelo tecido e uma blusa de algodão preta de gola em “v” com um símbolo dourado costurado no lado direito do seu peito, eu me lembrei de tê-la visto
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aquele dia quando me salvou, porém agora ele tinha uma jaqueta de couro encobrindo-a parcialmente. - Você me salvou... – Tremulei ao falar, mas nada fora do comum. – Por que? Eu senti a impaciência lhe substituir a tensão, de certo não foi por completo, mas ele agora pelo menos não tremia nem inspirava desajustadamente como se controlasse o próprio instinto de me atacar. Seu rosto tornou a aparecer, porém de perfil, seus olhos encaravam o chão abaixo de meus pés, a mandíbula ainda trincada volta e meia mexia nervosamente. Suas sobrancelhas grossas e escuras, assim como o tom de seus cabelos, estava alinhadas na mesma posição questionadora, ele estava pensando para me responder. - Por que você simplesmente não pode se contentar com o fato de que lhe tirei de uma roubada e me agradecer? Por que sempre tem que perguntar o “Por que” das coisas? Sua rudeza feriu-me a alma, nunca ninguém me tratou como ele estava me tratando, tirando claro Garmond e Mirage. - Por que eu tenho o direito como vítima de saber os motivos que levaram você a me ajudar... Eu não posso é isso que está me dizendo, ou você não o quer? - Eu não o quero... – Ele rosnou ainda mais impaciente. Sua face voltou-se para as sombras onde ele terminava por quase desaparecer. O silêncio ia novamente se apoderar do lugar, porém como eu sentia ainda 97
a sua presença corri para evitar sua fuga. Ele topou comigo bem diante de seus olhos. - Sai da minha frente... – Guinchou ele. - Não eu não saio até que você relaxe e me diga o que eu preciso e quero saber! Ele tentou me empurrar e eu lembrei-me de ter trazido comigo um canivete suíço. Arranquei-o do bolso quase que o deixando cair, a lâmina saltou de dentro desta enquanto a sua ponta voltava-se contra o pescoço do personagem misterioso. Ele parou abruptamente não entendendo o por que de eu estar me forçando a tal situação, enquanto eu tentava formular algo dentro de minha mente e rápido antes que ele voltasse àquela lâmina contra mim. Tarde demais... Ele voltou à ponta do canivete direto ao meu pescoço usando ainda minha mão para isto. - Se eu cortar-lhe o pescoço irão achar que você suicidou-se, não me obrigue a agir assim! – Sua voz suave acariciava minha pele. - Se achas que isso vai ser o melhor a fazer faça! – Engoli saliva. – Mas eu ainda vou achar que estás com medo de minha pessoa. – Peitei-o, eu não sei de onde vinha toda aquela coragem. Sua mão firme sobre a minha armada oscilou sem abandoná-la, sua outra mão, a que me envolvia pela cintura puxando-a contra o seu próprio corpo se apertou como desejando aprofundar-se mais e eu secretamente 98
comecei a desejar o mesmo, porém antes mesmo de eu recuperar meu fôlego ele me soltara. - Danov! – Quando me voltei para trás tive uma bela surpresa, onde ele tinha ido parar? – Droga... – Bati o pé no chão, raiva me possuindo. “Por que aquele idiota simplesmente não me respondeu? Eu o mato, juro que o mato!”. Aturdida por não ter sido satisfatoriamente respondida pelo estranho Danov tornei a guardar o canivete no bolso sentindo o silêncio e a paz me corroerem o coração e alma. Frio se fez presente no interior da capela de onde tratei de me retirar antes de surta. Sujeitinho mal educado aquele, com certeza não devia de pertencer a uma grandiosa ordem como a Orquídea Vermelha, que eu saiba os seus integrantes são sociáveis e respeitadores, um rebelde como Danov simplesmente não se daria ao luxo de pertencer a um lugar que lhe ferem os instintos morais. Saltei para fora da capela, os céus revoltos mostravam aos meus olhos que um grande temporal estava por chegar e que este assolaria a cidade, trovões eu escutei agora um pouco mais próximo e raios correram pelos céus desenhando teias de luz invisíveis, um espetáculo realmente de cores e força. Novamente montei em minha moto e dei partida desejando não ter de voltar nunca mais aquele lugar já que praticamente fora expulsa, meu coração batia, tremia em descontentamento, eu sentia a raiva tentar se apoderar de mim, o ódio por ter sido esnobada se fazia maior ainda, 99
aquele parvo idiota iria se ver comigo a próxima vez que nos encontrássemos, ninguém me afronta como ele me afrontou... A moto pegou de primeira e enquanto me atirava no ar com ela lágrimas escorreram pelos cantos de meus olhos forçando-me a baixar os óculos escuros. O relógio marcava as dez e meia em ponto no grande relógio ao centro da grande e sombria cidade, em cada ponto desta as luzes tremulavam, piscavam ou simplesmente mantinham-se constantes num verdadeiro picadeiro mortal onde os palhaços eram os diferentes, os marcados pela maldição do vampirismo, os que assim como eu ou buscavam satisfação e poder ou tentavam impor a justiça ao seu lugar de devido direito. Do alto do prédio central pertencente ao governo encontrava-me eu, sentada na beirada deste com as pernas apoiadas sobre a única proteção que me mantinha viva daquele lado do prédio, o vento trazia o ar puro e o cheiro de terra úmida, a chuva ainda não chegara à cidade, mas em poucas horas aposto que sobreviria-nos como afiadas facas de gelo, Bucareste tende a ser muito quente nos verões obrigando a sua população a sair de suas casas para tentar pegar uma fresca nas varandas e quando o inverno toma o lugar o frio quase congela os ossos, de certo não é o mesmo que ir para a Rússia e tentar caminhar de regata e short, não, o frio daqui ainda é um pouco suportável.
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Estava lá observando o show de cores produzidas pelas oscilações dos raios entre as nuvens negras, o som dos motores dos carros a mais de vinte e cinco metros de altura misturava-se quase desaparecendo quando os trovões tocavam a ponta do céu, tremores por causa destes tornavam o ar instável e meu corpo frágil, desprotegida do abrigo dos olhos alheios eu fiquei ali a repousar minhas costas e cabeças no muro alto. Dali do alto eu tinha o privilegio de poder sentir os mortais, seus doces perfumes contidos dentro de seus frágeis corpos subiam no ar como se impulsionados, mas eu sabia que era o meu olfato apurado que os trazia as minhas narinas, ninguém normal sente qualquer cheiro que não seja o de água e tempestade. A alguns metros de distancia uma festa rolava numa boate a duas ruas da de onde me encontrava, jovens avançavam para dentro da casa escura com luzes de néon, bem eu não sei bem o que tinha escrito na fachada, porém eu podia sentir no ar que a coisa não era cem por cento boa. Meus olhos fixaram-se em uma limusine preta, dela o cheiro inebriante do sangue estava mais do que evidente no ar, algo ali estava fora do alcance normal e antes que pudesse ver de quem se tratava eu saltei para o lado protegido do prédio onde me encontrava correndo contra o tempo agora para assuntar e talvez até livrar aqueles jovens de mais um famigerado ataque. Alcançando agora a rua após uma longa descida de escada do prédio do governo fechada a noite eu me via necessitada da ajuda de minha moto escondida entre dois arbustos densos que faziam parte da decoração do 101
gigantesco jardim que visto de cima mal preenchia o espaço. Arrancando capim com as rodas eu me dirigi velozmente pelas ruas principais entrando em vielas para encurtar meu caminho, o som de música alta ensurdecia-me e por algum breve momento realmente inutilizei minha audição apenas para não me distrair. Sangue se fazia no ar como fumaça, meu desejo por este era ardilosamente animalesco. O grande prédio onde os tais jovens haviam entrado e logo depois aquela limusine preta parara se chamava ‘Pepper Blood’ nome totalmente sugestivo claro. Minha pele tremia com o insinuante som, porém o odor de tantas espécies é que me cegava todos os sentidos. Controlei meu desejo por este a fim de observar aqueles que entravam no lugar. Da escuridão eu podia me camuflar e vigiar a entrada fortemente guardada por seguranças de mais de um metro e noventa, homens de porte tão forte que qualquer pirralho maricas se borraria caso arranjasse encrenca tentando entrar, mas havia logo ali algum problema, aqueles homens não eram tão comuns assim, logo visualizei diante de uma densa movimentação marcas quase invisíveis em seus pescoços. Grande... Os guardas eram recém transformados em vampiros, isso sim é que é uma grande idéia... Um bar de sangue, uma danceteria infernal que traria aos seus convidados a doce surpresa de uma noite de diversão e bebedeira, quem descabeçado o suficiente freqüentaria um lugar sem saber o que ele realmente guardava dentro? Resposta simples e fácil, adolescentes como minha prima... 102
Outra grande limusine chegou às portas da danceteria, havia ali algo ainda mais sombrio a espreita, a porta se abriu dos dois lados revelando três jovens da mesma faixa etária que Mirage, espantei-me ao ver de quem se tratavam e um flash de noites atrás me afogou num assombroso momento. - Mas... Não pode ser! Linda a bela e loira garota de olhos verde esmeralda e semblante que lembrava o de um anjo de candura e inocência, hoje tinha em seus olhos o mortífero olhar sobre aqueles que entravam no clube noturno, sua palidez excessiva era ainda mais profundamente caracterizada por aquela luz néon, suas vestes eram ainda mais ousadas que as usadas naquela terrível noite no bar de quinta da estrada saindo quase de Bucareste, hoje ela usava um espartilho preto e uma calça justa de couro combinando com algumas partes de seu espartilho que mesclava o vermelho ao preto. Seus pés estavam calçando botas de salto alto desafiadoramente perigosos. Seu corpo assim como os dos outros dois que deixaram o veículo tinha adquirido algo que só os vampiros tendem a ter, a sensualidade... O garoto que beijava minha prima era um dos três ali presentes, trajava uma blusa de manga longa de algodão onde um emblema muito pequeno dizia aos meus olhos que eles agora pertenciam a alguma classe de vampiros, porém meus olhos foram ofuscados pela luminescência das fluorescentes lâmpadas néon. Todos os três eram amigos de Mirage da 103
época de colégio, todos estavam com ela àquela noite e agora eles estavam aqui prontos para um banquete de sangue num bendito clube no meio da cidade. Será que ninguém via? Ninguém percebeu para o que servia aquele lugar? Dias e mais dias jovens desapareciam e nunca ninguém desconfiou realmente do caso, isso era o que mais me enfurecia. Minhas mãos fecharam-se em punhos tremendo nervosamente desejando poder pegar um pelo pescoço e esganar até dizer chega. Estes caminharam até a entrada aonde os guardas vieram a afastar as portas para deixá-los entrar, dentro deste o tom de luz era escuro e na maioria das vezes um vermelho pulsante, meus olhos doeram novamente e eu podia sentir meus instintos mais selvagens rasgando-me por dentro, recostei-me contra o muro de um prédio antigo condenado pela prefeitura a ser demolido, um prédio cujos tijolos vermelhos evidenciavam-se diante de meu toque por causa do desgaste dos anos. Terra caiu sobre minhas botas sujando não só elas como minhas mãos também, até onde eu conseguia controlei minha sede, porém não sei por quanto tempo iria conseguir não manifestar meus anseios. Armei-me de coragem e confiança que até então estavam totalmente abalados e iniciei uma caminhada para fora da viela, não sei se iria convencer aqueles dois brutamontes, eu também não esperava convencêlos, porém eu precisava fazer isso, mesmo que não viesse a conseguir defender aquela gente eu tentaria alguma coisa, porém antes de eu pensar em sair a luz fraca de postes algo me puxou de volta para as sombras. 104
Aquela mão quente o suficiente para me fazer sentir os pêlos da nuca eriçarem me empurraram contra a parede que tremulou com a força do breve impacto, as sombras escondiam o idiota que ousara me parar e ele também o fez calando-me com uma de suas mãos. - O que pensas que vai fazer entrando naquele lugar? Sacudi-me ao máximo tentando me libertar de suas mãos que mais me lembravam algemas, aprisionando-me contra a parede, mordi com força a mão que me cobria os lábios desejando não tê-las tão cedo envolvendo meu rosto outra vez, o cheiro de colônia masculina mascarava o seu odor vampiro, bem, de certa forma aquilo me atraia. - Solte-me seu... – Após um breve momento eu realmente entendi o sentido dele estar ali. – Você está me seguindo? - Pense da maneira que quiser, eu não vou permitir outra vez que entres naquele lugar e se autodestrua. - Rá, Rá, Rá... Até parece que isso me esclarece o mundo de duvidas que paira sobre seus sórdidos motivos... Deixa-me em paz credo! – Cuspi fora minha raiva. Desvencilhando-me de seus apertos novamente segui pelo longo corredor envolto pela escuridão da noite e arrependi-me de não ter agido rápido, pois quando pensava novamente em pisar a luz de postes suas mãos me puxaram bruscamente como da primeira vez, porém antes que eu pudesse raciocinar sua boca estava pressionada contra a minha acabando de tirar todo o meu fôlego. 105
Por um instante eu me vi presa em um redemoinho de sentimentos em sua maioria contrários, dor e desejo se confrontaram como dois gorilas gigantes lutando pelo território. Eu não podia, era errado, nojento e asqueroso... Porém era um mal extremamente necessário, doce e hipnotizante. Como disse uma séria confusão mental! Meu coração parecia que ia explodir de excitação enquanto sua língua deslizava dentro
de
minha
boca.
Repeli-o
involuntariamente
arfando
profundamente, seus olhos não me permitiam olhar para outra direção a não ser para eles, o seu belo tom azul lembrava-me o arredio mar em tempos de ressaca, ressaca essa que acabava de liderar uma revolução em meu peito, outra vez ele me beijou arrancando-me de meu mundinho de vingança e justiça, trazendo-me para uma realidade totalmente diferente, os ares ao nosso redor tornaram-se tão limpos quanto os ares da cidade, uma fina garoa desceu dos céus negros trovões se fizeram presentes destes iluminando a viela vazia. Suas mãos já não me prendiam mais, sua boca afastara-se da minha como se experimentando um pouco de liberdade, minha pulsação estava a mil por hora enquanto minha mente zumbia como se com vários parafusos soltos pulassem dentro igual a pipoca. O frio tocar da chuva em minha pele não conseguia se fazer capaz de apagar a chama interna que eu nem sei como descrever, apenas sei que esses desejos ocultos vagavam dentro de uma parte minha que eu nunca ousei explorar.
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- Eu... Eu am... Desculpe-me, foi puro impulso... Não esperava fazer isso eu peço perdão. Mas que perdão porcaria nenhuma, me devasta com um beijo e ainda pede perdão! Isso foi à única coisa que ninguém nunca tentara fazer e era a primeira vez que eu me via gostando de tal situação. Porém o que dizer e o que fazer naquele momento? Eu estava mais perdida que cego em tiroteio, mais lerda que uma lesma pra raciocinar, tudo o que fiz foi sorrir as escondidas enquanto meus dedos avançavam sobre os lábios ligeiramente dormentes. Ele deu as costas para mim e para a entrada da viela, ele ia embora outra vez e eu não poderia permitir isso, ninguém me deixa sozinha após evitar que eu cometa uma das maiores burrices da história com um beijo daqueles. - Não vá... – Balbuciei voltando-me para onde ele se encontrava, as sombras quase já o engolindo novamente. Seu rosto tornou a voltar-se para trás, os olhos brilharam sonhadores, brilho esse que eu ainda não tinha visto. – Droga... Será que poderia me explicar o que há de errado acontecendo aqui? Eu nem te conheço direito e todas as vezes que pareço chegar perto o bastante você some... Por favor! – Arfei. – Não me deixe, não de novo! Ele sorriu sedutora e jovialmente para mim, um tímido sorriso de um garoto que acabou de criar coragem para fazer tal coisa.
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- Eu a verei outra vez... Não cometa nenhuma besteira que não possa controlar sozinha! E assim ele se foi no breu da noite, um raio junto com um trovão iluminou tudo ali numa extensão de três quilômetros. Nada de Danov, ele se fora, mas o seu calor, gosto e cheiro não...
CAPÍTULO 6 O temporal caía do lado de fora da casa chacoalhando as árvores e arbustos menores à volta desta. Os sons do chapinhar das gotas grossas d’água batiam no telhado e nas calhas provocando um ruído metálico que eu conhecia bem, sempre acima de minha janela e sempre tão contraditório. Quando me encontrava tensa demais aquele som me irritava, mas quando tranqüila e assim tão avoada este parecia me ajudar a distrair-me, realmente duvidoso e interessante. Eu gostava daquele som, digo, ainda gosto do riscar da água na janela e paredes, adoro o som do vento uivando 108
ao contornar a casa, gosto das folhas a sacudirem no alto das galhas finas das árvores produzindo um murmúrio triste e rumorejante, a natureza parece-me cada dia mais fascinante e viciante, queria eu sempre ter a oportunidade de relaxar assim e apenas prestar atenção. Estava eu no banheiro tomando um banho quente, era quase duas da madrugada e por sorte, muita mesmo peguei tia Glen e Mirage a dormir, nenhuma das duas me viu chegar nem ao menos me escutou entrar na casa ou no banheiro para tomar um banho. Quem dera pudesse ter essa tranqüilidade sempre. Gostaria na realidade de ter uma casa só minha ou até então um apartamento, quem sabe não conseguia isso mais para frente? Sorri para mim mesma com a possibilidade de um dia morar sozinha, aliás, já estava na hora e eu apenas adiava por não ter como pagar, ajudar nas despesas da casa de minha tia às vezes era de exaurir até o último centavo do bolso. Mas eu não somente sorri por esta razão, também o fiz pelo simples fato de as lembranças me trazerem ao corpo as exatas sensações que no momento. A sensação do toque frio da garoa a cair em minha pele contrastava com o suave toque quente das mãos e do corpo de Danov contra o meu, essa mistura de quente com frio gerava em mim arrepios que mesmo estando agora dentro de uma banheira de água quente não paravam um só instante. Aliás, estar ali dentro faziame pensar estar sendo abraçada por ele, algo totalmente surreal, eu sei, eu sonho às vezes alto demais, mas isso não irá matar-me! Por um breve instante fui fisgada 109
ainda que de olhos fechados pela sensação de estar sendo beijada. Quão doce era esta sensação eufórica do beijo, arrepiava-me por inteiro só em lembrar. Pequenas gotículas d’água condensaram-se em meus lábios imitando a sensação do toque. Beijos roubados, delicados e cobiçados por talvez uma centena de outras iguais a nós ou até mesmo meras mortais, beijos mortais que seduziam até mesmo enquanto lembrava-me destes, beijos que me carregariam direto para o caminho da perdição, beijo tão doce que me afligia a alma queixando-se em meus músculos a sua falta, beijo que me fazia desejar desesperadamente por mais e mais. Se houve alguém com coragem o suficiente para fazê-lo fora apenas Danov, ele sim ousou e foi longe, mas o quão longe ele ainda iria por mim? Espera... O quão longe eu me permitiria chegar por ele? Meus olhos abriram-se para vislumbrar meu reflexo no vidro do Box, confusão adornou meus pensamentos assim como iludia meu coração, pensei ter visto no embaçado vidro uma presença masculina, mas como disse eu apenas imaginei, o vapor de ar quente subiu formando o que parecia uma silhueta. O seu sorriso fezme estremecer, seu olhar me encorajava a fazer o que eu menos esperava. Ajeitei-me novamente na banheira procurando abraçar minhas pernas enquanto meu queixo repousava sobre os joelhos. Meus olhos tornaram-se mais alegres assim como o traço reto a curvar-se lentamente em meus lábios. Caminhando preguiçosamente de volta para o quarto deparei-me com a porta do quarto de Mirage 110
aberta e por mais que eu tivesse raiva dela por ser tão mimada e grosseira eu tinha de agradecer por sempre estar no lugar e hora errados. Glendora nunca se perdoaria se algo acontecesse a sua única filha. Não entrei e nem mexi na porta, apenas observei-a por alguns instantes e tornei a seguir meu trajeto original. Secando os cabelos com a toalha eu fechei a porta sem olhar para esta e direcionei-me a minha penteadeira, cansaço se fez sobre meus olhos cor de mel um tanto enegrecidos pela pouca claridade, eu assim quis para não chamar a atenção, ascendi à luminária localizada do lado oposto ao que me encontrava justamente para evitar que alguém acordasse. Retirei uma escova de dentro de uma das gavetas e iniciei uma longa e tranqüila escovação dos cabelos ainda úmidos. Confesso que não estava nem um pouco interessada em pentear meus cabelos, na realidade minha mente ainda não conseguia se desprender da doce e hipnotizante lembrança da noite anterior, porém eu não podia simplesmente negligenciar os cuidados necessários as minhas madeixas. Depois de concluído com sucesso a escovação dos longos fios retirei-me da frente da penteadeira e fui deitar-me esperando que o sono chegasse o mais rápido possível e me tirasse do sonho acordada em que havia me metido, não era certo e nem um pouco prático ficar pensando em coisas como aquele beijo, nem era pra estar me importando tanto, aliás.
Por horas e horas eu fiquei ali como se de castigo a espera de minha recompensa, porém ela não veio. Meu 111
corpo ainda estava agitado assim como minha mente com a sensação do toque de Danov, eu quase xingava de raiva por não conseguir ficar deitada, quanto mais sentada na cama. Eu queria andar essa era a realidade, estava inquieta demais, porém eu não só precisava andar, eu também necessitava falar, conversar com alguém, mas com quem se Glendora estava a essa altura no seu sétimo sono? - Droga... Por que você simplesmente não sai da minha cabeça? – Resmunguei para mim mesma diante do espelho. Novamente pus-me a andar por dentro do quarto com os pés descalços sobre o carpete, a chuva dera uma trégua lá pelas tantas da madrugada assim como o show de relâmpagos e trovões, tudo estava tão silencioso quanto num dia de madrugada sem chuva, o ar fresco entrava por uma pequena fresta da janela jogando o frescor da terra molhada para dentro de meu quarto, as estrelas haviam reaparecido no céu, mas em menor quantidade, nada de fantástico aconteceu, apenas sei que me sentei no batente da janela recostando minha cabeça contra ela enquanto meu corpo abraçava as pernas carinhosa e cuidadosamente. O dia chegou sem que eu a visse, pra ser mais exata eu nem sei a que horas fui dormir e nem muito menos sei quem foi que me colocou na cama por que tenho a certeza absoluta de que não havia ido parar ali sozinha. Senti-me revigorada e com isso agradeci grandemente por terem sido razoáveis e me posto envolta em cobertas quentes. Havia algo de estranho comigo e eu já sabia o por que, precisava de sangue, 112
minhas entranhas estavam por se rasgar por tanto tempo em abstinência, bem, haviam se passado mais de cinco dias agora e precisava recarregar as baterias. Cuidadosamente deixei a cama, coloquei um moletom azul petróleo que tinha de ginástica, penteei meus cabelos buscando não prendê-los e caminhei na direção da janela, a casa inteira ainda repousava. - O que pensas que está fazendo mocinha? Fugindo de novo é! Outra vez um belo e grande susto, tia Glen tem essa famosa mania de querer tentar matar um na base do susto. - Tia... Puxa, assim meu coração sai pela boca! Ela sorriu, porém tinha um ar desconfiado e astuto típico de uma tia que mais me tratava como se eu fosse sua filha. - Precisas mesmo sair? – Ela me olhou após suspender a cabeça, em suas mãos encontrava-se um papel muito pequeno, acho que um cartão pelo detalhe meio que formal na frente. - Tenho sede, não posso adiar por muito tempo! – Olhei o cartão e depois pra ela. - Pelo menos podes esperar por alguns segundos? Isto chegou pra você agora cedo. – Ela ergueu o cartão, havia um emblema de uma flor, uma rosa vermelha com
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o meu nome escrita à caneta e numa letra que imitava as letras de alguns séculos atrás. - Quem deixou? – Perguntei curiosa, vai que ela leu o bilhete antes de mim! - Não sei... – Ela deu nos ombros. – Estava sobre o tapete de entrada. Leia e me diga! – Seu olhar era inquisidor, eu nunca escondi nada dela, mas eu sentia um desejo incontrolável de manter a noite anterior escondida entre os lençóis. Sabe quando você sente que algo é seu e somente você pode saber, mais ninguém? Então... Era isso que eu sentia com relação ao misterioso e galante Danov. Ela me entregou o cartão sem hesitar seus olhos viajaram deste para mim e de volta para o pequeno papel dobrado e selado com um adesivo uniforme. Eu o peguei sentando-me no batente lentamente, meus dedos passaram por sobre o relevo da rosa vermelha procurando sentir à textura do papel, dali um perfume discreto subiu as minhas narinas me fazendo lembrar justamente dele, Danov. Sorri, sorri sem perceber que sorria e isso com certeza atraiu os olhares curiosos de minha tia. - E ai? De quem é? – Ela caminhou na direção de minha cama e sentou-se na ponta dela. As mãos unidas entre as pernas. Abri o cartão e nele encontrei um conjunto de palavras, três linhas bem definidas e escritas da mesma maneira que a assinatura na frente. 114
“Restaurante Villeport as sete. Não se atrase!”. Outro largo sorriso fez meus dentes e presas aparecerem por livre e espontânea vontade, meu coração deu pulinhos envoltos em uma felicidade incomum. Logo em seguida um certo medo fez meus pêlos da nuca arrepiarem, fechei o bilhete guardando-o no bolso camuflado do casaco de moletom, olhei de volta para Glendora que esperava por sua resposta pacientemente, mas não tive a mesma coragem para lhe responder. - Madde? – Curiosa ela me chamou. - Outra hora tia, outra hora! - Não... Volta aqui Madde... MADDE! Meus pés bateram no chão de terra recoberto por uma fina camada de grama, uma fina e breve dor abateu-se sobre minhas juntas, mas nada que pudesse me causar alguma deficiência, aliás, nada poderia fazê-lo uma vez que minha metade não humana não o permitia. Acima de mim havia ficado Glendora com o corpo atravessado em minha janela, ela se equilibrava no peitoril arriscando me observar com seus grandes olhos já tão pouco espantados com a minha capacidade de saltar de lugares altos e não me ferir. - Mocinha você não vai fugir e me deixar aqui falando sozinha! – Esbravejou ela, seriedade escapandolhe pelas culatras. Eu apenas sorri, gostava de quando brincava de tirar minha tia do sério. A passos largos me afastei dos 115
terrenos da casa pertencente a ela. Por se tratar de ainda ser seis da manhã nenhum outro vizinho acordara, a grande maioria ali era de idosos e todos sabem que parte deles descansa até um pouco mais tarde. Melhor assim, ninguém precisa ficar fazendo comentários de como eu sou estranha ou anormal.
As nuvens ainda não haviam abandonado o céu, porém nem mesmo na presença dela o sol deixava de se expor, meus olhos arderam me dizendo claramente o que eu havia esquecido em meu quarto, meus óculos escuros. Resmunguei comigo mesma por isso, eu não podia voltar agora que me encontrava tão longe, meus olhos teriam de suportar, pelo menos pelo prazo de meia hora até minha alimentação completa. Procurando agora caminhar por entre grossos ramos de raízes que formavam um emaranhado de tranças sombrias no chão, folhas e gravetos adentrei mais e mais o bosque de intenso verde escuro e de aroma campestre excepcional, só aquela região tinha tal fragrância assim como incrível senso de presença, nada de cervo, pássaros, esquilos ou qualquer outro animal, ao contrario, estava eu sozinha no meio de um assombrado lugar que por anos fora meu alvo maior de ataques. Passando por um conjunto de árvores conhecidas pelos meus olhos doloridos encontrei a minha primeira marcação, meus dedos roçaram no risco escavado onde as iniciais de meu nome se encontravam, nada muito marcante, mas também não tão simplório de o tempo vir e agir sobre, pelo menos eu sabia naquela época como me guiar por ali dentro. Eu estava perto agora, tão perto que podia sentir o rumorejar das águas de um córrego ali próximo. 116
“Se há um córrego há um rio, se há um rio... – Eu sorri para mim mesma. - há alimento!”. Minha cabeça doía ao menor deslize com o tempo, parecia dizer-me que sabia do que eu necessitava e cavava ainda mais fundo esperando que eu agisse mais rápido. Meu coração acelerou assim como o calor começou a me deixar com o corpo suado. Com rápidas passadas largas cheguei à beirada da pequena e íngreme ladeira de onde pude visualizar a minha caça, lá estava um belo e indefeso cervo jovem pastando quase beirando as águas limpas e intempéries do córrego que corria sempre para norte, onde ia dar eu ainda não sei, mas sei que não deveria demorar mais do que estava me permitindo. Dentro de minha cabeça um plano já estava formado, nada de culpa, nada de selvagerismo nada dessas coisas que só fazem piorar a imagem de um meio humano meio vampiro para a sociedade, tinha de ser rápida, não provocar nem a dor nem o sofrimento daquele pequeno animal, apenas alimentar-me e fugir de volta para minha casa só isso. “Bem vindo ao dia do caçador meu caro cervo...” – Pensei sorrindo quase aliviada por sentir o cheiro fresco de sangue jovem. Preparei-me deixando que meu corpo inclinasse para frente e que minhas mãos tocassem a terra abaixo de meus pés, meus olhos arderam, mas não por causa do sol e sim pela reação da libertação do ser que me envolve, presas surgiram onde havia um canino normal enquanto
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agora saltava livre sobre o animal que mal teve tempo de reagir...
O animal caiu morto aos meus pés, seus vasos já não continham mais nada o que sorver, a última gota escorregava faceira pelos cantos de meus lábios algo que eu não deixei claro escapar. Afastei-me o suficiente do cadáver animal e aproximei-me do córrego de águas tão cristalinas quanto pedras safira. O calor contido em minha mão fora quebrado quando o toque frio do espelho d’água recobriu-a em seus longos lençóis intempéries, frio se fez em minha face quando levei desta mesma água a ela, minhas presas rapidamente sumiram como se amedrontadas. Ouvi um “Click” vindo de algum canto, armei meus sentidos olhando para todas as direções a tentar sentir a presença de alguém ou algo, mas nada, absolutamente nada me era visível. Bem eu não sei se por que não estava me concentrando ou se por mero acaso mesmo, não me posso dar ao luxo de estar ficando louca, isso é para os tolos Malkavian! “Clip, clip, clip...” – O som de botas de caçador ecoou dentro de meus ouvidos e rapidamente sentindo a sua presença tão próxima quanto seria o usual eu corri preparada para escutar o primeiro tiro ricochetear em uma base de pedras logo atrás de mim. Daqui pra frente era correr pela sobrevivência, quanto mais eu me aprofundava no bosque mais longe ia ficando do caminho real que me levaria para casa, o 118
forasteiro continuava em meu encalço com sua espingarda de cano serrado tendo como mira a minha figura, outro disparo e assim meu coração bateu contra meu esterno com grande propulsão, dor se fez em meus ouvidos, estilhaços voaram para o meu lado esquerdo destruindo parte de um tronco jovem. Por um breve e desesperado instante senti que meu corpo oscilara sobre os frágeis tornozelos que acabavam de entortar num único escorregão, mãos lançaram-se sobre galhos, pedras e folhas secas meio úmidas por causa da chuva noite passada, desviei de mais um projétil que por pouco não me atingiu em cheio a cabeça, assustada demais para acreditar que estava sendo caçada como aquele pobre cervo indefeso ousei olhar para trás e tive tempo o suficiente para ver o caçador mirar novamente sua espingarda na minha direção. Meus olhos encontraram os dele e eu tive um lampejo de memória, eu já havia estado com aquele homem, eu o havia amarrado contra a árvore do outro lado do bosque depois de quase desfigurar seu rosto a golpes descomunais, agora ele viera para tirar-me à vida, tirar-me à única coisa de real valor que tinha em toda esta humilhante existência. Naquele exato momento desejei não ter nunca conhecido ele, nem muito menos atingido ele com meus punhos, ainda podia-se ver hematomas em sua face quadrada de queixo duplo, o nariz carregava sobre si um curativo indicando a fratura ao qual o submeti, pequenos cortes aos poucos sumiam, mas ainda podiam ser vistos transpassando a sobrancelha direita, lábio e têmporas. Dava para notar pelo tom nada usual de sua pele facial que este estava realmente furioso e revoltado, a vermelhidão era indicativo de que a raiva lhe corroia não só a carne como também a alma. 119
- Um dia é da caça... Outro é do caçador! – Ele sibilou parecendo orgulhoso de si quando me encurralou, minhas mãos tatearam na terra fofa e lamacenta, ardência obrigando lágrimas a banhar-me as vistas. Seus dedos tocaram o gatilho e eu tive a impressão de que seria a última vez que sentiria o ar puro em meus pulmões. No exato instante em que ele apertou o gatilho eu saltei esquivando-me do próximo projétil, dor preencheu o ambiente de perseguição, mas eu não parei, na realidade eu nem sei dizer como consegui tal força para pôr-me novamente de pé quando tudo conspirava para que eu ficasse ali e recebesse o golpe fatal. Algo frio descia-me pela testa assim como pelas costas, meu suor estava congelando por causa do vento frio, mas meu corpo estava extremamente quente, os músculos, Rá... Antes eu imaginava tê-los agora eu já nem os sinto mais, é mais ou menos como não tê-los. Outro projétil ecoou pelo grande espaço entre as árvores, algo me atingiu, mas eu nem dei bola, preferi acreditar que um galho me atingira numa de minhas passagens pelo emaranhado de galhas marrons cobertas por uma densa camada verde que de longe se assemelhava a algodão tingido. Sem ao menos prestar atenção estava eu atravessando a rua de volta a vizinhança, poucas eram as pessoas que caminhavam pelas ruas com seus cães a ladrarem enquanto eu passava as pressas, contornei a casa sete pertencentes à tia Glendora e adentrei esta sem ao menos pensar no que encontraria atrás da porta. 120
- Mas... Hei mocinha... – Glendora já vinha me inquirir, porém ao ver meu estado deteve-se. – O que foi que houve? Por que essa cara de espanto? Não a respondi, acho que tudo foi muito rápido, uma negra escuridão nublou minha vistas e era como se minha cabeça e corpo pesassem toneladas. O frio piso de madeira da ante-sala veio ao meu rosto, ou seria ao contrário? Bem eu não sei, eu não conseguia sentir mais nada, nem ao menos escutar, falar ou ver... Cheiro de sangue adentrou-me as narinas e o gosto do mesmo eu senti subir-me aos lábios.
CAPÍTULO 7 Um pouco rápido demais, e um tanto frio demais, tudo parecia girar quando me encontrei deitada sobre uma cama notoriamente mais desconfortável que a minha própria, meus olhos se abriram para a custosa tarde que havia se formado há horas atrás, dor atingiume em cheio as costelas quando tentei me mover, minha coluna parecia arder em brasas. - Hei, hei, hei... Não faça isso mocinha! – Uma voz serena de mulher sussurrou-me de algum canto. Ao virar a cabeça para o lado reconheci o perfume de tia Glen e dei graças aos céus por ela estar ali. – Está querendo o que? Sua coluna ainda está se recuperando! 121
- Hmm... – Gemi. – O que foi... – Minha memória estava desajustada, aquele quarto não era meu, nem muito menos a vista de uma cidade complexa a se movimentar lá fora. – Que houve? - Eu é que pergunto, o que foi que houve enquanto estavas lá fora no bosque Madde? Brigou com alguém? Brigou com algum maldito caçador? Os olhos de Glendora inspiraram raiva e preocupação, eu não podia culpá-la e nem me justificar, meu temperamento e ações não me ajudavam mesmo. Diríamos que tive maior parcela de culpa por tudo isso. Eu não deveria brincar com fogo, mas eu sou teimosa e o faço sem sequer pensar nas conseqüências mais tarde... É... Pois é! Quem brinca com fogo se queima... Assim como eu! - Eu... Eu am... – Antes que pudesse vir a negar uma clara e objetiva imagem do cano serrado de uma espingarda entrou em meu campo de visão, dor irradiou de minha coluna para a cintura e costelas... – Não tive culpa desta vez tia... Eu juro! - Como você pode me jurar que não fez nada quando as provas me induzem a pensar o contrário? – Ela esbravejou agarrando-se a barra aos pés da cama. – Desculpe-me Madde, mas eu não posso acreditar depois que a vi despencar diante de mim bem no meio de nossa ante-sala! Como você acha que eu me sinto? Como achas que me senti quando a vi entrar tão pálida quanto a última vez em que não se alimentou? Como você acha 122
que eu reagi quando vi um rombo em suas costas? Deus do céu, você quer me matar é isso? - Não tia eu... - Cale-se... Eu ainda não terminei! - Desculpe! – Quem não ficaria frustrado com um pedido nada carismático de sua parte? Eu é que não iria ousar causar um enfarte em Glendora com minhas sarcásticas e irônicas respostas. - Eu não sei se você compreende, mas eu ainda sou a responsável por você depois que sua mãe morreu, eu sei, você tem os seus problemas, as suas particularidades, mas deveria pelo menos uma vez controlar os seus impulsos... - Não foi culpa minha... Au! – Meu corpo caiu sobre a cama, à carne parecia rasgar ainda mais a cada movimento. Dou sorte de ser meio vampira, meus ferimentos estavam cicatrizando lentamente. Também, pólvora corrói carne meio imortal. - Então de quem foi à culpa? Não me diga que esse tiro foi sem querer por que eu não vou acreditar! – Ela me encarou dura e friamente, céus como eu pedia para não ter uma discussão com ela como essa! A dor fustigava em minhas costelas assim como em minhas têmporas, perder sangue não era algo bom assim como estar quase perdendo a paciência. O rosto daquele infeliz ao qual sentia o desejo repulsivo de esmagar contra a sola de minhas botas e o chão dançava em 123
minha mente como um filme estragado de cinema de quinta, náuseas estavam me tirando do meu momento “puxão de orelha” com a tia Glendora, droga, por que eu fui reagir? Havia outros cervos no bosque, outros ao qual eu poderia vir a me valer, não, eu tinha que atacar um homem e por fim amarrá-lo do outro lado do bosque na saída da cidade! Droga, mil vezes droga! - Está vendo? Isso é tudo o que me podes responder. Com silêncio, mais que droga Madde. Você não sabe pelo que eu passei ao entrar com você baleada num hospital como esse, eles estão até agora se perguntando como você não ficou paralítica com um tiro que praticamente esfacelou sua coluna! Estão se perguntando que tipo de garota sai para ir a um “passeio” no bosque e volta com pólvora impregnada nas vestes e pele, você mal sabe como estava realmente antes de chegar não é? Bosta! – Depois de tudo isso ela parou para respirar, seu peito subia e descia visivelmente irritados como se inspirassem fogo, seus olhos pareciam perolas negras cintilando fúria marrom como chocolate derretido, sua expressão era irritadiça e cansada como a de uma mãe que vela por um filho pequeno que infelizmente fez besteira ao brincar com o que não devia. Meu coração estava acelerado, meus músculos tão tensos quanto molas esticadas ao máximo meu cérebro racionalizando cada instante gravando como um gravador cada fala para mais tarde talvez usá-las para me fazer desistir de qualquer besteira que calhasse de me tirar do sério. Na realidade eu deixei a única pessoa que se importa comigo realmente zangada e nunca, repito,
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nunca deveria fazer isso em toda a minha inútil vida meio imortal. - Agora me diz... – Após respirar profundamente e se afastar da cama para ir observar a tarde ela tornou a falar. – O que eu faço? Diz-me como vou fazer pra livrar-nos desse problema antes que ele se complique ainda mais! Sinceramente se ela não sabia nem eu iria saber responder, minhas têmporas estavam tremulando por causa da falta em excesso do sangue que antes preenchia tais vasos e artérias, eu sei, ainda tenho viva a minha parte humana, mas diríamos que eu sou como um carro com entrada pra gasolina e álcool, pois é, total flex literalmente. Engoli em seco, eu sentia o ar seco a minha volta com um leve toque de detergente de hospital, droga... Como eu odiava aquele cheiro, como eu odiava o ambiente deprimente onde eu estava, o cheiro de morte ressonava por todos os cantos impregnando-se nas paredes e frestas de portas e janelas, nem adiantava as funcionarias limparem aquilo ali, o último paciente a habitar aquele quarto e leito ainda mantinha-se como um fantasma em sua cama de colchão fino. - Madde Kaio... Não me ignore! Meus olhos abriram-se após uma sucessão de cenas impiedosamente gravadas na parede de minha memória, cenas que eu queria esquecer, mas uma eu não conseguia apagar. Os cristalinos olhos de Danov obrigaram praticamente tudo o que tinha de ruim a desaparecer 125
como se com medo do que aqueles sedutores olhos azuis fariam. - Desculpe-me tia... - É tudo não é? “Desculpe-me” é tudo o que tens a me dizer! - O que a senhora quer também? Eu não tenho culpa se um louco furioso resolve me caçar por ai, me perdoe eu não posso ser perfeita, eu não sou e nunca serei perfeita mais que droga! Para... Para de me cobrar, de querer que eu seja como qualquer outra garota, eu não sou igual a ninguém! – Desesperada minha língua soltou tudo o que estava travado na garganta de uma maneira histérica onde todas as dores conjuntas mergulharam-me em um mar de profundo desespero e agonia. Sussurros bradavam a beira de meus ouvidos a duvidosa e enganosa impressão de estar ficando louca. Cobri meus ouvidos com as mãos espalmadas contra estes tentando abafar até o som de minha inspiração ruidosa. - Perdão... Perdão eu não devia... Eu simplesmente me neguei a escutar o resto, eu não queria ouvir desculpas, na realidade não queria escutar mais nada. Apenas queria fechar os olhos e desaparecer daquele lugar e de qualquer maneira.
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Desesperadamente eu queria fugir, queria esquecer tudo o que aconteceu, mas estava presa aquela cama de hospital, presa ao cheiro e companhia de fantasmas que mais desejava roubar-me as forças vitais sobre humanas que simplesmente me dar algum conforto e alivio. Tia Glendora estava inconsolável em seu canto, na realidade inconsolável não seria a palavra real para caracterizá-la e sim imensamente irada para comigo. Realmente eu nunca deveria ter mexido com um ser que por natureza é rancoroso e vingativo, Glendora havia me avisado sobre isso e o que eu fiz? Soquei um homem que agora havia quase me destruído. Fechei os olhos ignorando as imagens que dançavam a frente de minha retina, cansaço novamente me abateu trazendo o sono para me conciliar. A dor já não me era um empecilho. A brisa no alto do palácio pertencente ao governo era calma e docemente suave à vista também era algo de que eu deveria me orgulhar em minha cidade. A Romênia tinha os seus atrativos quando vista do alto de uma construção monumental. Lá embaixo as pessoas caminhava alheia ao que as observava, também, quem iria notar a presença de uma garota a mais de vinte e cinco metros de altura? Nenhum louco aventurar-se-ia a olhar diretamente para o sol, visto que a minha direção era exatamente esta. Achei estranho a principio, não me lembrava de como havia ido parar ali e muito menos me lembrava de não sentir nada agora que percebia o sol altaneiro brilhando como uma bola de fogo no centro de um vasto céu azul piscina. Meus olhos não ardiam, minha pele não reclamava do excessivo calor que estava fazendo, mas também não achei que isto fosse um
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sonho, talvez eu tenha passado tempo demais ali naquele lugar. Isso é o que chamaríamos de insolação. A delicadeza com que o vento açoitava minha pele da face era de tal gentileza que superava quaisquer toques humanos que poderiam existir ou que já existissem, meus cabelos eram os que mais estavam agradecidos por mãos invisíveis a jogarem contra os ombros e ao mesmo tempo balançá-las ao leu como se brincassem com as longas madeixas vermelhas. O cheiro de terra, grama, sangue e asfalto abraçaram-me dando-me conforto enquanto a visão cansada tornava a fechar-se e a lembrar do que houve a noite anterior, foi ai que eu me perguntei se tudo realmente acontecera, a sensação do beijo era terminantemente realístico, meus lábios pareciam guardar o gosto. “Será realmente que tudo aconteceu? Será que sonhei? Ou será que isto é um sonho?” – Perguntei-me quase sem parar a tocar os lábios distraidamente. As perguntas me cercavam como arame farpado pronto a cravar-se nos meus músculos e foi ai que senti que algo naquele cenário estava errado, era muito clichê pro meu gosto para ser real. Aquele sol na realidade era um incêndio, o céu naturalmente azul piscina tornou-se tão negro quanto a noite e fumaças ladearam minha visão de todos os pontos possíveis. A sensação de sufocamento me trouxe a realidade alternativa, uma vizinhança inteira sofria com um imenso incêndio de proporções catastróficas, tudo estava mergulhado em desespero e pânico, tudo era simplesmente agonia, prantos e urros desesperados. Era agora tudo tão claro e conciso que eu podia ver que estava sentada no alto de uma árvore ao 128
invés do palácio do governo de Bucareste, realmente era um sonho, ou melhor, um pesadelo e olha que isso é muito difícil de uma pessoa comum identificar antes de acordar! Cinzas reviravam pelas calçadas de frente para o que antes fora um conjunto de casas construídas a muito mais tempo que o conhecido, os telhados triangulares e os tetos abobadados eram lambidos e quase engolidos pelo fogo. Todo o povo se encontrava aos tropeços tentando inutilmente apagar as chamas com baldes d’água que eu ainda era incapaz de saber de onde tiravam. Desci do alto daquela árvore aturdida, as pessoas esbarravam em mim como se não pudessem me enxergar, o ar poluído por fumaça irritava meus pulmões obrigando-me a tossir. “Como tudo se parece tão real... Mas não pode... Não mesmo!” – Pensei enquanto galgava a passos vacilantes a calçada a minha frente. Foi ai que tudo começou a ficar claro, o cenário aos poucos foi deixando de ter tanta fumaça acumulada, claro, não ficou tudo tão limpo como eu desejava, mas as chamas trouxeram aos meus olhos outra perspectiva. Tudo me parecia muito familiar, as pessoas, as casas, o bosque logo atrás de mim... Até as estrelas que eu todas as noites observava de minha janela pareciam semelhantes as que eu observava agora. Compreensão saltou aos meus olhos, eu de repente sabia muito bem o que estava acontecendo. De repente me vi correndo aos tropeços por entre desesperados vizinhos agora tão fáceis de reconhecer que achei realmente que os via em 129
carne e ossos, sendo tudo apenas parte de um sonho. Corria por que sabia que a penúltima casa da vizinhança era a de tia Glen. A casa de numero sete. Eu implorava para que nada de mal estivesse por acontecer. Temia que tia Glen ou mesmo Mirage estivessem em perigo, porém, antes que eu conseguisse chegar à fachada da casa fui pega de surpresa por um estranho turbilhão onde uma densa nevoa de escuridão começou a cegar-me, a luminosidade e o calor das chamas já não me atingiam nem afligiam mais, mas a sensação de suor frio escorrendo pela testa e meio das costas não. Foi agora à vez de acordar em outro lugar, estava deitada no mais profundo e escuro canto de um quarto ao qual durei até entender que era o meu, suor frio escorria através de minhas vestes até onde estivera a lesão que antes me doía até a alma... - Interessante! – Disse tocando-me na região onde antes existira um rombo. – Não há nada aqui! Meus olhos procuraram na escuridão por sombras em minha pele descoberta agora por minhas mãos ágeis que suspendiam o tecido da camiseta que estava usando. Não entendi a principio o por que e como havia ido parar em meu quarto e àquela hora... “Céus...” – Pensei quase saltando da cama para fora do quarto. Minhas mãos alcançaram o relógio de pulso que repousava sobre a mesinha do criado-mudo, lugar onde estivera toda a manhã intacta. – “Mas que droga...”. 130
Rapidamente deixei a cama, vesti qualquer coisa que peguei de dentro do armário e tratei de pentear-me não me importando nem de estar na escuridão. Sai do quarto aos solavancos, ainda nem havia conseguido me vestir, a blusa da cor do Carmim estava pendurada em meu antebraço assim como a calça jeans e as meias, as botas de couro e salto alto balançavam de um canto a outro enquanto me encaminhava até o banheiro para um rápido banho. “Restaurante Villeport às sete. Não se atrase!”. – Eu repetia mentalmente para não esquecer. – Ai droga... Por que me deixaram dormir demais? Um banho simples e rápido foi o que deu para fazer em plenas seis e meia da noite, a maquiagem não seria lá tão caprichada, mas também não permitiria que eu saísse como um fantasma por ai, tinha de dar a impressão de saúde, apesar de que não iria atrair tanto a atenção assim de alguém que na realidade também era semelhante a mim. “Não se atrase... São quase sete!” – Uma voz repetia continuamente dentro de minha cabeça esta frase, meu corpo tremia quase que de excitação. - Aonde pensas que vai a essa hora mocinha? Não deverias estar na cama descansando? – Cara eu juro que se não fosse pela minha eximia educação teria xingado tia Glen de todos os nomes feios possíveis. Pus minhas mãos espalmadas contra o peito sentindo o coração tamborilar rudemente contra meu esterno, meus pulmões roçavam nas costelas arquejando vulneráveis. 131
- Tia? – Encarei-na furiosa, espero ter passado essa mesma idéia a ela. - Responda-me se não quer ficar um mês de castigo... Olha que eu nunca precisei fazer isso com você! - Eu... Am... Eu vou a um lugar, juro não demorar! - E que lugar é esse? - Um restaurante... – Esperei que isso fosse tudo. - Você quer dizer ir a um restaurante sozinha ou com alguém? - Céus você precisa mesmo fazer todo esse escarcéu? - Claro, quero me certificar de que você não vai se envolver de novo em enrascadas! Antes isso do que a ver morta na frente de casa. – Os braços cruzados na altura do peito mostravam-me o quão tensa e irritada ela podia se mostrar. Seus sentimentos oscilavam demais quanto a essas emoções. - Está bem... Eu vou sair com alguém, mas não é ninguém com que devas se preocupar tia, eu juro que não irei arrumar nenhuma confusão agora, por favor, estou atrasada! - E desde quando você se importa com encontros as sete? Você nunca fez questão de chegar na hora! 132
Madde, isso me cheira a confusão armada, não me engane por que se o fizer sabes que perderas a credibilidade! - Ele me salvou... – Sibilei derrotada, meu relógio de pulso tilintava como se os ponteiros tivessem virado martelos quase rachando invisivelmente o vidro da lente. Iria dar sete horas e eu ainda nem havia chegado próximo da porta da frente. - Salvou? – Ela perguntou confusa e ao mesmo tempo preocupada, suas mãos descruzarem-se do peito e agora barravam por completo a minha passagem ao se espalmarem contra as laterais da porta. – Como assim salvou? Engoli em seco, meus olhos fechados quase podiam enxergar a fúria por baixo da sutil e frágil calma de Glendora. - Quando livrei a cara de Mirage dos vampiros assassinos eu fiquei exposta e quase, repito, quase fui “morta” teoricamente falando não fosse por essa pessoa ter me salvado. - E quem seria essa pessoa? Se lhe salvou eu quero conhecer. - Am... Acho que não tanto! Ele não é fácil de se encontrar... - Como assim...
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- Deus do céu, já chega, eu acho que já me expliquei demais não acha? - Madde Kaio... - Glendora Kaio! – Exaltar-me não era uma boa, mas já que o tinha feito era bom não parar. Nós duas paramos ali uma encarando a outra, culpa inundava meus olhos de nervosismo e receio, o que ele poderia fazer se eu não chegasse a tempo? Fugiria de novo para não me encontrar mais? Ou viria até onde eu moro me buscar? Isso de certo modo seria humilhante! “São sete horas, está se atrasando!” – De novo a voz me incomodava lembrando a cada segundo que estava atrasada. Droga será que nem minha mente me deixaria em paz? Com certeza bater de frente não era uma das melhores coisas com Glendora, mas ela sabia reconhecer quando estava começando a passar dos limites comigo. Seus olhos furiosos passaram agora a demonstrar uma estranha confiança que antes eu não conhecia como sendo sua. Ela se afastou assim como fazem as mães que não querem mais motivos para os filhos não confiarem mais nelas, gentilmente abriu passagem para que eu saísse e suspirou audível mente. - Vai... – Disse ela de cabeça um pouco abaixo do nível comum.
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Eu quis... Tentei articular frases ou palavras, mas nada me saia da garganta para fora a não ser ar e mais ar. Felicidade estúpida felicidade me encobria os sentidos, quão tola eu estava sendo ao desafiar a minha tia apenas para correr um risco talvez até maior que o necessário. Abracei-a com uma força tão grande que quase podia sentir seus ossos prestes a se partir, ao contrario disto eu pude escutar seu coração bater lá no fundo faceiro e trapaceiro. Ela sorriu pouco, seus olhos não encararam os meus, medo e resignação lhe ascendiam à alma, seu medo tornou-se meu de uma maneira sutil e leve. - Eu juro... – Comecei... - Vai logo antes que eu mude de idéia! – Ela me cortou. Nunca a ouvi ser tão gentil assim com outra pessoa além de mim. Sorri em retribuição e logo em seguida beije-lhe o rosto e me retirei. - Obrigado... Ela balançou a cabeça contraria a tudo aquilo, mas o que ela podia fazer? Brigar com uma meio imortal seria perda de tempo! Um último olhar para a minha pessoa e esta se voltou para dentro de sua confortável e quente casa, um súbito pensamento me ocorreu enquanto deixava a vizinhança tranqüila. Aquele pesadelo não fora tão comum quanto todos os outros que já vislumbrei em anos de vida. Aquele pesadelo era para mim um alerta. 135
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CAPÍTULO 8 O relógio à frente do restaurante Villeport marcava exatamente sete e vinte da noite, culpa trovejou em meus pensamentos por aquele desatino cruel contra a pessoa que me esperava. Meus olhos vaguearam através das varias carteiras preenchidas por casais ou simplesmente amigos ou famílias reunidas, nenhuma cara conhecida felizmente, não estava muito a fim de ser vista com alguém que inspirasse cuidados aos olhos de outros. Nada... Absolutamente nada de Danov por perto. Um homem robusto trajando um belo fraque abordou-me cauteloso e gentil. - Deseja alguma coisa senhorita? Voltei-me para ele com uma esperança inútil, Danov poderia muito bem ter se cansado de esperar e ido embora, mas eu não teria certezas concretas se não perguntasse. - Hmmm... Eu tinha um encontro aqui exatamente as sete, o nome do meu... – Tive medo de soar bobo demais então preferi não falar o que me vinha a mente. – O nome do meu amigo é Danov. - Ah... Sim como não! Siga-me senhorita Kaio! 137
Estranho, minha testa franziu, ninguém nunca me chama pelo sobrenome, não... Eu tenho quase certeza absoluta de que ninguém me conhece ali naquela cidade o suficiente para me chamar pelo sobrenome o que fazia minhas estranhezas e duvidas aumentarem a cada segundo. Enquanto o rapaz, um homem de estatura bastante avantajada para a sua carinha de bebê me guiava através das mesas rostos cada vez mais desconhecidos mostravam-se ferozes enquanto um único ao longe se mostrava gentil e condescendente com o meu atraso, e lá estava Danov vestido com uma blusa de abotoar preta e jaqueta. Era tudo o que eu podia ver estando ele sentado e a mesa coberta por uma toalha de seda preta com outra por sobre esta verde oliva. Todo o salão estava organizado do mesmo modo. Quando ele me viu ao longe seu rosto imparcial mostrou-se repentinamente sorridente e jovial, bem, não que jovial queira dizer que ele aparentava ser velho, nada disso. Sua beleza saudava a todos os que passassem através dele, era como se ele fosse um eterno rapaz em seu auge de 21 anos, bem... Olhando por esse lado eu o acharia novo demais para alguém como eu, mas levando em conta os tempos em que ele era vampiro juro que deveria ter muito mais. - Ora, ora senhorita Madde Kaio! Pensei que me negaria sua presença em um encontro! Sorri quase que instantaneamente e obriguei-me a pensar que tinha sido forçado, porém não foi como bem pensei. Ele me encantava tanto que conseguia me fazer sorrir quase como se numa brincadeira.
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- Tive alguns... – Antes de vir a soltar um monte de histórias que não valem a pena serem contadas retomei as rédeas da situação e tratei de falar algo menos irritante. – Tive alguns pequenos contratempos. Mas estou aqui... Agora faça o favor de ser rápido com o que viestes resolver! Pronto, acabei com o primeiro e único encontro de toda a minha vida. Aliás, por que eu, Madde Kaio, estava tão preocupada com um encontro como este? Eu nem deveria de estar me interessando por alguém com mesmos princípios, mesmo desejo. Alguém com uma fera como eu aprisionada dentro de uma bela casca humana. - Calma... Pode deixar que eu não vá lhe persuadir a nada, nem muito menos forçá-la a alguma estupidez. - Você já me persuadiu não vê? Estou aqui, isso já foi o suficiente. – Ele sorriu. - Vejo que estar aqui não é o único problema certo? Tentei formular alguma coisa, alguma frase com sentido para desmontá-lo, mas meu cérebro ágil pouco esta noite. Não sei o que havia comigo, acredito que por estar ainda frágil pelos acontecimentos do dia minha mente não iria trabalhar da mesma forma com a qual estou acostumada que trabalhe. - Calma, eu não vim aqui a fim de deixá-la tensa ou constrangida, eu só achei que convidar uma bela 139
jovem como você que não tem aparência de que sai muito seria uma boa. A noite está bela hoje, não podes negar isto! Algo martelava em minha mente, meus dedos agarravam a barra da blusa de gola alta nervosamente tímidos, meus dentes cravaram-se em meus lábios inferiores mordendo-os e soltando-os de maneira charmosa e delicada, droga eu disse charmosa? - Que tal você começar me dizendo por que me assustou naquela capela? Ou por que me impediu de entrar naquela casa de festas? Ele alteou a cabeça permitindo-me ter uma melhor visão de seus olhos azuis como cristais, seu queixo perfeitamente barbeado hoje me lembrava um rapaz tão jovem quanto sua voz e aparente idade me diziam. Recostando-se a sua cadeira ele tornou a me encarar de maneira sonhadora e suave, um sorriso de satisfação lhe guiou os lábios por caminhos cegos, ele parecia tão indulgente e sereno isso me deixava ainda mais curiosa sobre ele. - Tantas perguntas para uma única resposta! Não achas que vai se enrolar com tudo isso? - Responda-me! - Não seria melhor começarmos pelo aperitivo? Por que lhe salvei algumas noites atrás?
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- Já que puxou o assunto! Fale... – Recostei-me na cadeira assim como ele. Novamente ele se tornou imparcial, seu jovial rosto de rapaz saudou-me com um intrigante olhar penetrante, formigamento subiu-me pela espinha e notei que estava tremula, eu não sabia dizer o por que, mas quando este cara aparecia tinha a plena sensação de estar sendo vasculhada e isso em termos literais mesmo, meu corpo parecia não agir quando seus olhos observavam meus movimentos. - Fui com a sua cara! – Essa foi à resposta. Eu ri. Onde mais alguém poderia vir a dizer uma resposta tão estapafúrdia como essa? - Ah não me desculpe... Não podes estar falando a verdade! Não pode simplesmente me salvar por “ir com a minha cara” isso não é nada plausível! - Mas é a verdade! Eu poderia muito bem ter deixado sua prima e aquele rapazinho sofrerem nas mãos dos seus amiguinhos assim como você e ir embora, mas eu não o fiz assim, eu fiquei e lhe ajudei! Eu gostei de você. – Ele deu de ombros de uma maneira charmosa. - Rá... – Eu ri de novo agora baixando o tom. Alguém numa mesa atrás da nossa pediu silêncio. – Você só pode estar de brincadeira comigo! - Não estou! - Então por que me assustar na capela? 141
Ele riu, parecia lembrar da cena toda o que me deixava irritada a cada instante que ele mostrava seus belos dentes, fez-me intimamente lembrar de quão atraente ele se mostrara a mim naquele lugar e o tão perigoso podia se mostrar aos meus olhos. Isso me constrangeu momentaneamente e me fez pensar que aquela igreja era para ser sagrada para os humanos e amaldiçoado para os pecadores transformados, ou em melhores palavras nós vampiros ou metade deles. - Por que ri? Achas graça de alguma coisa em mim ou no fato? - Em você e no fato sim... Você soa forte o suficiente e se julga a dona de si e de seus atos, mas mal sabe se livrar de alguém como eu. Se eu fosse o inimigo com certeza teria lhe destruído em segundos sem ao menos permitir que respirasses! - Como ousa... - Eu falo a mais pura e digna verdade ou estou enganado? Eu hesitei, ele tinha a completa razão sobre o caso, eu não tinha o costume de admitir a derrota, mas naquele caso ele reconheceu-a apenas de me encarar nos olhos. - Viu... - É pouco ainda... Seus olhos me fitaram ainda mais profundamente, era como se me escavasse as paredes da memória, senti-me 142
invadida, mas não conseguia me desvencilhar, minhas mãos e pés estavam atados assim como minha alma por dentro. Seus lábios pareciam se mexer, porém não havia som ou assim eu achei após constatar que estava sob forte compulsão. Não conseguia mover-me, apenas podia sentir um calor tão forte me açoitando a pele macia, o vento inundou o lugar com uma mistura morna de perfumes dos mais variados tipos e chuva, o tempo iria virar novamente lá fora e eu ainda aqui sentada. “Vamos... Pergunte-me... Pergunte-me por que lhe beijei... Eu sei que queres saber sobre... Vamos!” – Uma indulgente e impecável voz masculina desejava ouvir de meus lábios tais questões, eu estava convicta de que não me prestaria a tal caso, nunca. - Não... – Balbuciei, mas não conseguia me escutar. – Não! “Anda... Por que o medo? Sentes medo de mim? Hmmm... Não... Não sentes medo, é outra coisa!”. Minha mente estava sendo posta de pernas pro ar, meu coração num pulo único fez-me voltar momentaneamente à realidade. Olhei para baixo mesmo contra o controle mental que Danov tinha sobre mim, seus dedos estavam quase por tocar minha mão livre sobre a mesa, o que me fez pensar. Eu não havia colocado as mãos por sobre a mesa! - Pare de vasculhar minha mente! – Sibilei tentando não atrair mais atenções, estava me sentindo quente por dentro como se mãos pecadoras me tocassem
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onde ninguém mais tem autorização de tocar. – Pare agora... - Não antes de ouvir... – Droga, eu não ia ceder, mas também não poderia deixar que ele fizesse um de seus joguinhos mentais. Olhei-o nos olhos e tentei o mesmo, o brilho azul de seus olhos se esvaiu assim como o meu brilho mel acastanhado. Sentia-me mergulhando num oceano desconhecido, um mar negro vacilante que tentava me engolir quando me aprofundei em sua mente oca. “Pare... Ou eu juro que passaras por um vexame maior do que possas controlar”. Seus olhos tornaram-se tão pequenos e apertados que eu pensei até que pudesse lhe estar causando dor, mas ele fez pior, seu controle psíquico estava me levando por um caminho sem volta, descendo por uma ladeira em uma montanha russa sem freios, meu coração disparado me alertava para o pior, minhas unhas cravaram-se nas palmas das mãos, senti o sangue verter dos ferimentos a dor me arrancou do pesadelo altamente sedutor ao qual ele me submetia. Confuso ele parou, parecia não ter mais como me penetrar à mente e realmente ele não o podia, não enquanto sentia fortes dores nas palmas das mãos. - Por que fez isso? – Disse ele encarando minhas mãos manchadas por breves filetes de sangue. - Não queira entender os meus motivos! 144
Ele sorriu enganosamente para mim, seu sorriso inspirava-me culpa, eu pequei contra algo tão mais sagrado quanto meu próprio ser podia sequer imaginar. Sacudi a cabeça, suor escorria das palmas para as lesões em forma de meia lua isso ardeu e me fez sentir ainda mais dor e culpa. - Por que não me deixou entrar no Pepper Blood? Temes que eu vá me meter em encrenca novamente? - Depois do que vi naquele barzinho de quinta eu acho que já tenho a minha resposta formada. - Idiota... – Resmunguei sem ao menos pensar. - Do que me chamas? – Ele me encarou, sorriso formando-se no canto esquerdo de seu lábio. O lado de sua face que mais me inspirava malicia e perigo. Aliás, todo ele me inspirava malicia e perigo. Revirei os olhos. Sabe àquelas horas em que você tem vontade de se bater por falar uma besteira? Então... Eu tenho vontade de me atirar no primeiro buraco fundo e sumir. Até então não havia encarado-o de novo, sentia-me de certa forma mal por tê-lo chamado de “idiota” assim tão estupidamente alto, de certo modo eu agora estava extremamente mal por isso. “Olhe pra mim...” – Uma voz ecoou dentro de minha cabeça, meus olhos tornaram a fitá-lo e este se ajeitava em sua cadeira e parecia muito confortável conforme sua pose demonstrava graça. Seus olhos 145
fitavam muito além de meu ser, senti meus ossos queimando em uma chama azul indistinta. - Se eu, por algum acaso, permitisse que entrasses naquele lugar, irias se comportar? - Como você pode me pedir uma coisa dessas? - Responda-me! Meu sangue por dentro das paredes das veias inflamou a ponto de borbulhar de tanta raiva. Meu corpo estava praticamente incapaz de manter-se imóvel e meu coração batia com profunda exasperação, parecia sem ritmo quase a ponto de explodir. - Por que me pedes isso se sabes a minha resposta? - Por que não é bem assim como você pensa que as coisas acontecem. Espera... Ele quis dizer o quê com isso? Por algum tempo ele ficou ali apenas a me observar, porém eu já não agüentava mais encará-lo. Minha mente dava voltas na tentativa frustrada de entender o que se passava, ele parecia hipnotizado por eu me comportar assim. - Então como as coisas acontecem de verdade? Diga-me por que eu não consigo compreender!
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- Desde que vampiros, humanos, dampiros e todas as espécies de seres sobrenaturais existem há um lugar onde todos eles residem e um outro para alimentação. A Pepper Blood, apesar do nome parecer um pouco condescendente, é um desses lugares onde os vampiros e dampiros vem para saciar suas vontades, e os humanos que ali se encontram, vão por livre e espontânea vontade, ninguém precisa morrer como naquele bar naquela noite, diríamos que os humanos nos doam parte de sua essência. Compreendes agora? – Ele parou para respirar, seus olhos como cristais azuis não me deixaram nem por um instante. – O que aconteceu naquela noite foi uma fatalidade, um bando desgarrado dos Nosferatu ousou passar dos limites a eles permitidos, isso tudo por que estão presos a uma tradicionalidade que os segue desde os tempos de escuridão. Acho que me expressei bem e agora me compreendes certo? Agora quem se sentia a total idiota ali era eu, depois de tal explicação fica difícil não compreender as reais intenções dos vampiros naquele lugar. Mas por que eu ainda sinto dentro de mim que algo ali não é correto? Por que eu tenho a sensação de que as coisas iriam cada vez mais desandar? Por que eu sentia na pele que aquele pesadelo me tinha funcionado como uma espécie de aviso? Meus olhos arriscaram ir além de seu belo rosto, seus olhos me escoltaram através de uma nevoa de questionamento, eu balancei a cabeça para afirmar que tinha compreendido e deixei que meus olhos caíssem à altura de sua camisa preta social entreaberta na altura de seu colo desnudo, um colar pendia ali escondido, uma flor, uma das mais raras flores referidas a Ordem 147
tremulava sob um colar de ouro branco, legal quando você tenta fazer prata parecer brinquedo, mesmo quando a prata ali em questão é ouro folheado. - Você pertence a alguma Ordem? Seus olhos desceram até a abertura de sua camisa, ele puxou o pingente de uma flor de ouro branco uma flor semelhante a uma rosa tilintou sob a correntinha. - Ganhei depois de me formar na academia! – Ele sorriu voltando a me encarar, parecia orgulhoso de si mesmo quanto ao caso. - Nunca imaginei um vampiro freqüentaria academias, ainda mais militares pelo que pude entender. - Mas nós freqüentamos, não aprendemos a nos defender sozinhos a princípio. Só os grandes Mestres o sabem por natureza, os recém nascidos ainda são “vulneráveis” de certo. – Ele disse o “vulneráveis” de uma maneira tão sutil que o fez parecer um bebezinho. - E aposto que você não está aqui por estar. Certo? - Certo! Meu dever aqui é zelar para que a ordem permaneça na mais original paz já declarada. Até agora não falhei! Eu sorri. Ele sabia ser “humilde”. - Então por que você de repente parece tão preocupado? 148
Seu sorriso mostrou-se agora diferente do sorriso sedutor que ele tentava me lançar antes, seus lábios quase perderam aquela curvinha atraente, seus olhos desfocaram-se por alguns instantes voltando quase que de supetão a brilhar. - De certo modo a paz ainda reina neste lugar, mas fiquei sabendo através de informantes em outras partes da cidade e até mesmo na base que fica na América que um grupo de rebeldes tenta tomar o lugar da princesa Elisa Staps. Há algum tempo venho observando um certo grupo, mas eles aparentam serem inofensivos. - E por que pegar no meu pé? Ele franziu a testa de uma maneira que eu nunca imaginei que pudesse acontecer, sua testa parecia um conjunto de filamentos fundos de cordões repuxados além da conta. - Eu não peguei no seu pé... - Pois bem que parece! - Oh... Miss simpatia à solta... – Ele zombou. Eu não gostei... - Sinceramente eu ainda me pergunto por que aceitei vir aqui! - É simplesmente pelo fato de ser extremamente educada e cordial... Você não consegue ser tão rude 149
quanto és com outros. Sua humanidade assim como seu lado animal não a deixa perder o único juízo que a muitos já falta pelo fato de há anos estarem andando pela terra. Sua raça assim como a da princesa Elisa e a minha guardam a única essência da vida de verdade... – Ele parou abruptamente, eu não sei o por que, mas meus músculos tornaram-se flácidos e eu relaxei sobre a cadeira. – E agora o que pedirás? Ele se mostrara tão misterioso agora quanto seus olhos e sua alma podiam transparecer, duvida ainda me açoitava enquanto uma sede por saber me castigava a ponta da língua. Eu queria mais, muito mais, queria que ele me contasse tudo o que se passava por sua irônica mente, aliás, nossa conversa havia parado na metade do caminho, porém não havia como ser recomeçada agora. Minha curiosidade sobre sua linhagem e mesmo sobre ele aumentou quando ele referiu-se a Elisa, a mim e a sua própria descendência.
Após um jantar sem muitos comentários e muito menos olhares traiçoeiros ou arredios deixamos o restaurante. Em silêncio ele acompanhou-me até a garagem atrás do restaurante onde havia eu deixado a moto, como ele sabia que eu o havia deixado ali eu ainda não sabia, mas logo após entrarmos e de eu ver que ele continuou a andar percebi que tinha um carro que podia muito bem portar minha moto em sua caçamba. - Então... – Eu disse assim meio que curiosa. – Boa noite...
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Ele não sorriu nem fez que não com seus olhos ameaçadoramente gentis, aquele azul agora mal iluminado pelas lâmpadas amarelas dos postes lembrava mais o negro céu à noite, sua face tornou-se um pouco mais pálida e sombria. Algo nele ainda me inspirava preocupação e sedução. Algo nele me deixava zonza. - Será que é mesmo uma boa noite? – Ele de repente lançou no ar uma pergunta que nem eu haveria de entender, quanto mais um simples mortal. Pergunta essa típica de grandes filósofos incompreendidos pela humanidade afim. Meus olhos baixaram a altura dos pneus do carro estacionado ao lado de minha moto, culpa castigou-me de repente o lado onde estivera à ferida criada por pólvora, sorte a minha de ser pólvora, não conheço muito sobre ferimentos, mas acredito que prata haveria de me incapacitar. - Sente-se melhor? – Ele perguntou e eu quase caí por cima da moto. Sua leve mão segurou-me pelos cotovelos. - S-sim... – Eu de repente quis saber o por que da pergunta, mas outra fisgada tornou-me a apunhalar a coluna. Sentia-me repentinamente fraca das pernas, eu não havia me alimentado como deveria, mesmo depois de um bom jantar com raviólis ao molho pesto. - O que há com você? Não... O que houve com você? Estás tão fraca de repente!
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- Não foi nada, apenas fraqueza, só isso! – Minhas respostas eram vagas assim como meus fracos pensamentos. Eu sentia que não ia suportar por mais um segundo. - Preciso que me leve embora... Acho... – Engoli em seco. – Acho que não sou capaz... – Antes de terminar a frase o torpor já havia tomado conta de todo o meu corpo, meus olhos congelaram diante da visão de seus belos azuis pálidos, seu rosto atraente desaparecia aos poucos diante de uma nevoa cinzenta, meu corpo parecia pesar toneladas enquanto caia num profundo abismo, mas eu não estava caindo, não... Eu senti quando mãos me resgataram da iminente queda e me trouxeram em segurança para um assento confortável. Tudo ficou tão escuro quanto pude suportar, sussurros afogaram minha consciência enquanto o ronco dos motores de um veículo a muito distante soaram. Gritos ecoaram dentro de minha cabeça, alguém estava sendo perseguido, não... Eram apenas os sons dos pneus a cantar para fora do estacionamento.
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CAPÍTULO 9 A próxima coisa de que me lembro é de uma música incomoda, sedutora e intimamente alta que soava pelos arredores de um aposento cuja única porta encontrava-se entreaberta. Esta permitia uma onda de odores diferentes, almíscar igual ao perfume de tia Glen, cítricos, doces como frutas frescas e ferro. Eu estava num bar desses de sangue e de repente me senti tão culpada quanto um réu sendo julgado numa corte desonesta. Levantei-me de um salto, minha coluna parecia inflamada e eu estava sem minha jaqueta, à blusa de gola alta escondia meu pescoço e debaixo deste uma espécie de coleira que eu sempre usava com uma boa parte dela de prata original, qualquer bobo que tentasse se fazer tocando-me ali iria se queimar, mesmo que muitos não acreditassem no mesmo, eu havia banhado até o couro da gargantilha com água benta. Meus braços ainda ficaram para fora descobertos, mas o calor ambiente era aconchegante demais para me fazer pedir por qualquer outra coberta, minhas tatuagens reluziam no imponente calor das chamadas dançantes dentro da pequena sala, a lareira funcionava a pleno vapor assim como a febre que sentia oscilando dentro de mim. Toquei-me nas costas, o ferimento não havia se rompido nada disso, minha pele estava novamente integra, porém meus músculos não haviam sido 153
reconstituídos a tempo, meu período de descanso fora pouco de manhã cedo até agora à noite. Eu estava no lugar onde menos desejava estar, o bom disto é que poderia vir a bisbilhotar, minha curiosidade não fora completamente saciada pela explicação dada por Danov que, aliás, por falar nele, havia desaparecido me deixando sozinha a dormir numa grande sala vazia ao som oco do silêncio misturado ao tilintar das fagulhas de madeira a retorcerem-se dentro do fogo e o breve som de música eletrônica do lado de fora. Meus olhos ainda que deitados vislumbraram um teto brevemente pintado de um bege misturado com terracota, o piso era de veludo liso e macio enquanto os tetos revestidos por uma camada grossa de um material que abafava os ruídos tanto do lado de dentro quanto de fora. “Como queria às vezes ter isso em meu quarto!” – Pensei. - Que bom que gostas do ambiente! – Uma voz materializou-se do nada, levantei-me rápido já me arrependendo duramente pelo brusco movimento. Meus músculos das costas pareciam repuxar numa agonia profunda e dolorosa. – Acalme-se jovem, não lhe farei mal! Danov me disse que precisavas de uma ajuda especial e eu vim ver se já havias acordado. Um homem apresentou-se a mim com seus belos cabelos cortados rente a cabeça e estes eram tão negros quanto o breu duma madrugada sem lua ou mesmo estrelas. Um eclipse místico que só se quebrava um pouco pelo tom de seus olhos claros brevemente amarelados pela luz da fogueira na lareira a contraposto deste. Seu rosto forte mostrava-se imparcial no meio daquele belo par de
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costeletas que se movia graciosamente ao rude mover de seus lábios num sorriso retesado. Sua blusa era de um tecido muito fino quase transparente onde cadarços pendurados deixavam a vista um peito liso livre de pelugem, porém de traços muito fortes, o homem deveria ter 1,90m de altura ou próximo disto não sei bem, sentada ele aparentava está altura, eu poderia estar enganada. Os lábios finos me saldaram com um belo sorriso misterioso, por que todos os vampiros encantam só de dar um mero sorriso? - Por que este é o nosso ponto! – Ele pareceu responder a pergunta que eu havia me feito por dentro. Rubor subiu pelo meu corpo parecendo concentrar-se em meu rosto, mais respectivamente falando em minhas bochechas, mas acho que ele não viu, a escuridão no ambiente iluminada apenas pelas chamas na lareira não o permitiram ver mais. Outra vez seu sorriso mostroume dentes retos perfeitos, eu não conseguia imaginá-lo atacando alguém, prefiro na realidade nem imaginar. - O que faço aqui? Como vim parar neste lugar? E que lugar é esse? - Você está na minha morada senhorita Kaio. Quem a trouxe até aqui foi Danov depois que desmaiaste nos braços dele num estacionamento. Poderia me dizer por que não se alimentou? - Am... O que? Minha cabeça parecia fora do lugar, o que ele estava dizendo mesmo? 155
O homem desconhecido até então me encarou como se me investigasse com olhos rígidos e curiosos, leve e gracioso ele pousou em uma poltrona à frente do sofá onde me encontrei agora sentada. Minha coluna inflamada dava-me calafrios terríveis que em sua maior parte faziam meus dentes baterem. - Desculpe-me eu não me apresentei como devia. Chamo-me Dimitri. Você é Madde certo? Madde Kaio! - Er... Sim! – Continuei me fazendo de idiota, minha mente realmente estava demorando pra se adequar ao ambiente agora luxuriosa mente silencioso. - Se lhe serve de consolo, Danov me contou sobre você. Há quanto tempo você não se alimenta senhorita Kaio? - Espera, ele contou o que de mim? - Atenha-se a responder o que eu perguntei antes que seus sentidos desvaneçam novamente! – Disse ele ríspido. - Na realidade eu me alimentei mais cedo... – As palavras grudaram como cola em minha garganta tornando muito mais difícil a pronuncia destas e mesmo de minha respiração. Minha mente de repente trouxe novamente a lembrança de um caçador de queixo fendido irado apontando-me uma espingarda de cano serrado, eu senti novamente dor. - Madde... Madde o que há? Diga-me o que há de errado! 156
- Um caçador... Ele me atingiu com um tiro e eu perdi sangue! – Dor enviesava cada entranha e reentrância de meus músculos, uma estranha febre corroia-me por dentro como se a carne estivesse por ser comida por bichinhos nojentos e repugnantes. – Acho que não tinha só pólvora... – Balbuciei. Arrepios seguiram-se a forte dor que novamente latejava em meus músculos, Dimitri com sua grande força forçou-me a deitar e enquanto o fazia com uma mão livre a outra ele elevava até os lábios onde afastou com dentes lisos e retos a manga de sua camisa branca imaculada. Meu corpo aos poucos começou a encolher como se com frio e medo por algum mal invisível, as chamas pareciam agora criar forma e gritos lamuriantes ecoaram dentro de minha mente, eu vi a casa de número sete incendiar-se diante de minhas vistas sensíveis, ouvi berros estrondosos ecoarem de dentro para fora enquanto meus pés tentavam sem êxito alcançar a porta de entrada. Escuridão pôs escuridão puxava-me para cada vez mais longe de minha casa, havia alguém lá dentro, havia gente em minha casa. Mãos tentavam me conter, eu não as via, mas sabia que elas me continham, o suave gosto de sangue me veio aos lábios jorrando quente e fresco de meus lábios direto através de minha garganta, as imagens da casa sete ficaram borradas, calor parecia fulgurar em minha pele as chamas que envolviam uma silhueta alongada, uma pessoa gritava enquanto outras empurravam-na em direção ao chão, estava eu enfrentando o pior de meus pesadelos, os olhos da mulher que rolava 157
desesperadamente no chão tentando fugir das chamas que a cercavam me fitaram irrequietos, eu tentei inutilmente me soltar da nevoa escura que teimava em me sugar para a realidade, aliás, a qual delas eu pertencia? Tudo parecia tão estranhamente real de repente, meu coração dava pulos enquanto minha mente agitava-se. O doce e pungente gosto do sangue descia pela garganta como mel, meus músculos saltavam por causa dos espasmos parecendo agradecer ao presente que me era ofertado. Meu corpo estava atado por laços negros onde somente meus olhos podiam ficar livres para ver a agonia de uma mulher cujas chamas lamberam toda a sua vivacidade, medo me tomou, raiva me persuadiu a lutar mais uma vez, porém já me dando por derrotada. Aquela mulher de grandes e assustados olhos amendoados era a imagem e semelhança de Glendora o que me fez estremecer e paralisar. Fechei os olhos piscando varias vezes desejando que todas as cenas se dissolvessem, mas elas não queriam, pareciam resistir até que em meio a borrões eu os vi. Eu vi Danov puxando-me para um apertado abraço enquanto Dimitri afastava-se se deixando cair sobre a poltrona de frente para o sofá, eu juro que podia sentir a vibração de tudo ali, seus corpos trêmulos contra meus sensíveis ouvidos, minhas emoções testadas até o último instante, tudo não passara de um pesadelo vivido de cinco minutos, tudo me era tão doloroso que fazia a realidade parecer fichinha diante de um pesadelo imenso. Com grandes arfadas, golpes maçantes do ar impregnado por fumaça fininha e sangue adentravam meus pulmões, ainda podia sentir o pulsar das veias do estranho Dimitri 158
em minha pele, seu sangue escorrendo pela minha garganta fazia lembrar-me o sangue de um animal, talvez um lobo ou não sei um grande cão, talvez sim, mas eu não sabia nomear, era muito estranho, fora do comum. Frio concentrou-se em meus pés, abracei Danov com toda a força que podia, eu quase podia sentir o seu medo, quase podia tocá-lo, mas antes disto meu nível de consciência tornou-se novamente decaído e as vagas imagens de uma mulher mutilada pelo fogo dançaram a frente de minhas vistas, ela parecia querer falar, mas a única coisa que eu ouvia era “socorro”, medo fez-me tremer, um único suspiro induziu a todos naquele ambiente a acreditarem que desmaiei, na realidade eu continuei consciente, só não sei precisar bem o quão consciente ainda me encontrava. Quando se está no escuro tudo parece loucura, tudo parece sofrimento...
Meus cabelos ao vento roçavam em minha pele do rosto, senti o chão abaixo de mim quente como num tenebroso entardecer, porém como eu sempre irei dizer não há sol, nunca há sol quando estou apagada. Abri os olhos, o céu que se mostrava aos meus olhos cansados era um céu escuro encoberto por densas camadas de fumaça, o ar cada vez mais pesado e visivelmente nublado afundava-me em um clima estranho e irreconhecível. Rolando para o lado pude apoiar-me num dos braços e limpar as vistas turvas. Tudo havia acabado, o incêndio havia parado e agora apenas caminhões encontravam-se a metros de mim 159
apagando os pequenos focos de incêndio. Meu coração disparou, a casa sete estava aos pedaços, onde estaria Glendora? Onde estaria Mirage? “Droga”. – Resmunguei. Minha cabeça me doía estava novamente envolvida por uma escuridão brilhante, confortável repousava silenciosamente sobre um sofá de onde não havia saído desde que cheguei, aliás, há quanto tempo estava mesmo ali? O som de música alta havia se extinguido tudo se encontrava numa estranha e incompetente calmaria. Levantei-me cambaleante, a lareira ainda fulgurava alguns lances de luz tremulante, calor afundou-me numa gostosa, porém custosa sensação de conforto. - Tudo bem... Está tudo bem agora Madde, você vai ficar melhor! Meus olhos correram por todo o ambiente até encontrar de onde vinha à voz sombria e sedutora, eu reconhecia aquele tom de voz... - Danov? Seu rosto veio em minha direção como se uma luz natural o sondasse de perto, seus olhos obstinados estavam sobre mim com uma estranha cautela, ele não sorria, muito pelo contrario, seu jeito de me olhar e seus lábios contraídos mostravam-me um ser preocupado e triste. Algo acontecera e eu sentia isso tão aterradora sobre mim quanto qualquer outro sentido que brotasse em minhas veias.
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Não sei por que, mas senti um desejo enorme de tê-lo em meus braços num custoso abraço apertado, parecia que ia perdê-lo a qualquer momento, minha alma não poderia viver com aquilo, nada de solidão de novo... - Madde... – Sussurrou ele, seus sussurros saíram feridos e doloridos como se magoado com algo. Oh não, eu não estava gostando desse tom de voz. – Madde! - O que? O que há de errado Danov? Ele me empurrou até que nossos rostos estivessem diante um dom outro, nossos narizes quase podiam se tocar. Angustia me corroia só de entrar em contato com seus frios olhos safira gelantes. - Há um problema... – Sua voz saiu ríspida e entrecortada, parecia tentar soar confortadora, mas aquilo só estava me deixando ainda mais tensa. - Que tipo de problema? – Meus olhos não encontraram com os dele, tive medo de que a noticia fosse me fazer cair novamente, mas como se eu já estava sentada? Isso era pra ser cômico, mas o momento não o permitia nem mesmo por breves segundos. - Sua casa... – Deus minha casa... A casa de número 7, a única casa onde vivi por tanto tempo, o único lugar em que vivi e fui aceita pelos seus ocupantes, ou poderia por assim dizer a ocupante já que Glendora era minha tia e por direito tinha minha guarda... Oh céus tia Glen, eu sentia, eu quase podia tocar o pungente medo que me açoitava novamente a memória com imagem de uma mulher em chamas, droga 161
isso não poderia estar acontecendo, minha cabeça está novamente girando... – Houve um incêndio... Desculpe... – Por que ele se desculpava? Eu não entendo... Levantei-me não ligando nem mais para minha tonteira, deixei Danov sozinho a me chamar, meus ouvidos estavam com seu volume muito reduzido eu sabia que não era normal, mas o que a essa altura pareceria normal para alguém como eu? Esmurrei a porta a minha frente e esta se abriu para fora num baita estrondo que seria capaz de chamar a atenção dos ocupantes em outros andares, Danov insistia em me chamar, mas meus pés mais ágeis já tratavam de me tirar do segundo andar daquele prédio onde agora apenas uma agonizante e penosa sombra do silêncio pairavam, tranqüilidade que cega, calma que mata... Estava eu correndo sem me importar se estava descalça ou não, frio tocou-me a pele e me fez tremer, eu não liguei, nada mais me importava, queria saber se estava tudo bem, queria saber se tia Glen estava bem... Nada mais me importava naquele exato instante... A moto estava dentro da picape cabine dupla, não sabia o que escolher assim de vista, mas foi fácil montar em minha moto depois de forçar a plataforma da caçamba para baixo, dei sorte de minhas chaves ainda permanecerem no bolso de trás de minha calça. Danov até que se esforçou, mas nossas forças competiram, eu não o deixei me parar como da última vez, não o deixaria fazê-lo por mais uma vez e sequer por outra, ninguém me para, ninguém pode fazê-lo, não contra mim.
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- Mas o que houve? – Dimitri se aproximou correndo. - Eu não pude manter em segredo, ela precisava saber o que aconteceu! Dimitri olhou para a rua agora deserta, o seu relógio de corda marcava as exatas meia noite e quinze, horário predestinado à morte certeira vagar por aquelas ruas e vielas escuras. - Entre na picape, vamos atrás dela antes que cometa uma loucura. A moto ganhava velocidade a cada instante que a forçava numa curva fechada, os pneus cantavam nas esquinas escuras, o vento carregava o som surdo de gritos apavorantes que me faziam lembrar de meus tenebrosos sonhos, tremor dominava-me, porém eu me controlava para não permitir que este me tomasse. Meus sentidos estavam embaralhados, não sabia se chorava ou se sentia raiva, repulsa de minha própria pessoa por ter abandonado a casa que quase nunca abandonava, raiva por achar que algo de ruim poderia estar se passando com Glendora, raiva por estar onde não deveria nunca ter estado, raiva por aceitar sair... Limpei com as costas da mão direita a lágrima solitária que se precipitará em minha face, mas esta já secara com a ajuda do cortante vento frio que batia em meu rosto como finos açoites, ar afundava meus pulmões numa sensação claustrofóbica, asmática de desespero uma forma de me condenar, uma forma de me fazer
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arrepender de qualquer mal que possivelmente tenha acontecido. A minha frente um cenário começava a se mostrar e não era um desses cenários alegres típicos de vizinhanças de filmes felizes com direito a latidos esbaforidos de cães por trás das cercas, esse não era um horário comum para todos, este era um dos piores dias, horários, anos de todos... Larguei a moto no meio do caminho ainda em movimento e corri desesperada na direção da casa de número sete, tudo era cinzas, o cheiro de madeira e carne queimada lastreava o ar como um alarme, um aviso. Uma mão elevou-se quase que de súbito até os lábios e tocaram-nos com uma sutileza maligna, ver o que via não estava me sendo tão bom, enjôo bateu-me na boca do estomago, queria vomitar, queria na realidade sumir, ser consumida pelas chamas como muitos provavelmente havia sido consumidos. Mas eu pedia para que uma pessoa em especial não o tivesse merecido, e esse alguém era minha tia. Desesperada surrei a porta já abalada e está se deixou cair para dentro levantando uma onda de poeira e cinzas fazendo-me tossir. O que restara da sala de estar fora uma carcaça de sofá, o belo sofá estofado de cor bege combinava com as paredes em tom pastel melancólico, a lareira havia permanecido intacta embora todo o resto houvesse sido destruído pela fúria das chamas. Avancei mais um pouco, podia agora ver a sala de jantar, nada restara, na cozinha, apenas a pia restara de pé assim como os encanamentos de ferro agora sobrepostos a uma coluna descascada e carcomida, as escadas mal suportariam o peso de uma pessoa normal quanto mais alguém como eu, mas suportaram pelo menos a súbita 164
antes de deteriorarem-se miseravelmente. Os quartos estavam em pior estado que os cômodos abaixo destas, o quarto de Mirage estava preto carvão contrastando com o rosa pastel que antes enfeitara aquelas paredes, quadros estavam caídos ao chão no meio de pilhas e pilhas de madeira contorcida, era possível ver a luz do luar refletir-se sobre os vidros quebrados quase derretidos empilhados sobre algumas telas queimadas. Fotos não restaram para contar-me história. Meu quarto havia sido consumido da mesma maneira, as paredes antes azuis estavam em igual estado que o de Mirage com uma leve diferença de fagulhas azuis sobreviverem em meio à orquestrada baderna do incêndio, um anel permanecia lá imóvel sobre o antigo criado-mudo eu não conseguia lembrar-me dele, mas ao velo ali coberto de fuligens recolhi-o e guardei-o. Um quadro jazia aos pés do que antes fora minha cama, tremula o apanhei e limpei o vidro intacto, uma foto antiga pertencente a minha mãe, era a única lembrança que tinha agora dela e de minha tia uma vez que ambas encontravam-se juntas sorrindo, seus rostos jovens congelados para nunca mais serem esquecidos... Voltei-me para o quarto de minha tia, desolação me perseguia e eu já sabia muito bem o fim dessa história toda... - MADDE! - MADDE? Hei alguém? Vozes masculinas voaram pelo ar, rolaram até meus ouvidos como cascatas murmurantes suaves, vozes 165
preocupadas algo bem difícil de ocorrer a alguém como eu, mas eu sabia o por que e era simples, eu era como eles, vampiros preocupam-se com os seus... E agora? Com quem me preocuparia? - Madde, céus ficou louca? Sabias que dirigir assim tão agitada poderia lhe custar muito? – As palavras fluíram como águas cristalinas dos lábios de Dimitri, minha dor não sararia ali, precisava de muito mais para me persuadir a sentir-me novamente bem, eu precisava saber o que havia acontecido e se estava tudo bem com os ocupantes da casa. - Por que não me avisaram? Por que não me acordaram? – Rosnei um rosnado baixo e altamente ofensivo. Mãos agarrando o que restara da cabeceira da cama de minha tia. - O que poderias fazer? Vir correndo e se arriscar a morrer numa casa coberta por chamas? Você não ia poder fazer nada Madde, compreenda isso de uma vez por todas! - Eu poderia sim ter feito algo, eu poderia ter tentado tirar minha tia daqui, poderia ter evitado um transtorno muito pior... Vocês não tinham o direito de me esconder isso não mesmo! - Senhor tenha misericórdia... – Sibilou alto Dimitri com suas mãos voltadas para as têmporas. – Escute-me Madde, não há nada a fazer assim como nada poderia ser feito. Um incêndio é um incêndio ninguém pode apagá-lo assim num estalar de dedos entenda... Um 166
Passaro não pode carregar mais do que seu próprio ser dispõe você se destruiria! - Que se dane o que vocês acham, eu devia de ter sabido disto há muito tempo... – Engoli as palavras com uma raiva cruciante me machucando por dentro, havia muito mais a ser dito com palavras, mas eu não tinha mais forças, sentia-me doente, altamente e terrivelmente doente. Onde estava Glendora? Onde estava Mirage? - Onde elas estão? – Encarei-o nos olhos, minha altura não competia nem um pouco com a dele. – Onde estão Glendora e Mirage? Onde elas estão? – Eu quase podia fazer-me escutar fora daqueles muros derrubados, meus olhos lacrimejavam irritantemente. Eu quase esmurrava o peito de Dimitri que me pareceu agora como uma caixa forte, músculos adornavam seu esguio corpo masculino, a camisa antes aparentemente folgada estava muito mais apertada e colada aos membros o que parecia dez vezes anormal. Ele estava talvez muito mais alto ou era impressão minha? Tanta força não caberiam em um homem com o porte dele. Danov apareceu no corredor em estado de calamidade. Meus olhos esbanjavam lágrimas raivosas, eu queria acabar com eles, queria destruir-lhes, mas não sabia nem mesmo como fazer para sair daquela posição desconfortável diante de Dimitri, meus ossos queimavam nas juntas, eu sentia o desespero das almas torturadas no ar e elas não estavam nada felizes isso eu posso jurar que não.
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- Por favor,... – Eu sussurrei, mas acho impossível que Danov não tenha me escutado. – Vocês não podem me negar isso, eu lhes peço! – Minha voz saiu suplicante, me senti uma tola por estar me humilhando. Dimitri agora arfava, a roupa antes justa começava a ficar um pouco mais folgada, sua altura era consideravelmente menor alguns centímetros, nada tão espetacular claro. Danov baixou os olhos, eu sabia que havia algo de muito errado, eu não deveria nunca ter saído de casa. - Não sabemos onde anda sua prima Mirage, mas sua tia está em um hospital há algumas horas daqui, não se preocupe, ela está bem. Teve algumas queimaduras de 1º e 2º grau, mas já se encontra medicada e bem... – A última frase não me convencia, mas saber que ela estava viva já me servia e muito. - Eu quero vê-la... Eu desejo saber se ela realmente está bem... Eu quero ver Glendora e quero-o agora! – Exigi, a voz embargada pelo choro. - Entenda, não podemos ir agora... Esse hospital só atende depois das seis da manhã, tenha cautela, espere até o amanhecer e tudo se resolverá! Quis revidar, quis brigar para sair dali e ir até onde Glendora se encontrava, mas algo me implorava por dentro para que obedecesse ao homem diante de mim, seus olhos inspiravam-me tranqüilidade e sinceridade. Mesmo que um homem como aquele não me inspirassem sinceridade. 168
- Vamos embora... Não há nada mais a ser feito por este lugar! Sua grande mão apanhou-me pelo ombro forçando-me a deixar o lugar quase que contra a vontade, pois bem, eu não queria mesmo permanecer num lugar como aquele, não queria ficar nem mais um segundo num lugar miserável onde somente me traria dor como os pesadelos. E enquanto caminhava para a saída lógica eu pensei e repensei. Meu sonho não pode ter sido apenas coincidência, eu fui avisada antes mesmo de tudo acontecer, mas eu não dei bola, agora tudo estava perdido, tudo menos uma foto, um anel e as outras lembranças que eu podia sentir ainda vivas no patamar abaixo de nós.
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CAPÍTULO 10 O rosto contra o vidro gelado contemplava um belo amanhecer entre as árvores altaneiras que nos circundavam. Eu não sabia para onde estava indo, mas sabia que era longe o suficiente de toda a confusão da cidade e principalmente da confusão que estaria instalada na vizinhança agora toda em frangalhos. Por exceção de algumas poucas casas que se salvaram da maré vermelha dourada todas as outras a começar pela casa sete estavam destruídas por completo. Se o contingente de mortos superara a de vivos e sãos eu não sabia informar, sabia apenas que aquele lugar cheirava a dor e agonia. Minhas entranhas estavam manchadas de fuligem, meus dedos contemplavam um anel dourado que nada sofrera a não ser por breves acentuações de fuligem em suas curvas perfeitas em forma de círculo, a pedra solitária presente nela era uma marca registrada do bom gosto de tia Glendora, ela sempre gostou muito de jóias deste cunho, puxei o cordão que usava por baixo do colar de couro que já me deixava com a carne vermelha de tão apertada e junto com a bailarina dourada coloquei o pequeno anel que poderia agora estar em meu dedo, porém achei melhor guardá-lo onde olhos cobiçosos não o veriam e este lugar seria em meu pescoço debaixo de uma camada de tecido de cor vinho empoeirado. Meus olhos afundaram-se no estofamento do carro, uma picape cabine dupla sabe ser confortável e amiga, ninguém mais me olharia estando eu escondida atrás do 170
banco do motorista, fora também que o vidro deste era revestido por uma camada fume onde luz alguma cegaria aos convidados a nela viajarem. Nem Danov e nem Dimitri abriram o bico durante toda a viagem, cada um tinha um olhar critico perdido voltado para posições estratégicas, Danov olhava para fora, seus olhos aparentemente pequenos pareciam cansados por algum motivo, eu não sei dizer, mas ele aparentava não dormir a dias, mas suas belas feições não me diziam o mesmo, eu tinha vontade de tocá-lo, porém como disse, fora apenas uma vontade o que quer dizer que me contive. Já Dimitri não. Dimitri olhava fixamente para frente prestando atenção a cada centímetro já percorrido pelo gigantesco carro naquela estradinha que começava a nos levar para fora da cidade principal, recuperei a postura e consegui fitar apenas o rosto de Danov pelo espelho, ele não percebera ou fingira que não quando o observei, suas sobrancelhas grossas estavam de certo relaxadas assim como os olhos pequenos e cansados, o brilho azul cristal me torturava enquanto flashes de luz solar lhe caiam sobre, sua pele branca como a neve saudava-me com um desejo quase invisível de serem tocados, meus dedos coçaram, tornei a baixar os olhos antes que pensamentos nada comuns a uma moça como eu tirassem-me completamente do sério. Ele olhou pra cima, seus lábios finos estava reto, calor subiu pelo meu pescoço até o rosto, minhas bochechas ficaram vermelhas e quentes, eu tinha que me lembrar justo num momento como esse do nosso “encontrozinho às escuras” no beco de frente para o Pepper Blood. Aparentando gostar da reação ele voltou a jogar o olhar mortal para fora, divagando talvez sobre o dia em sua 171
mente enquanto eu tentava esquecer-me daquele sorriso meio sádico. O tempo estava começando a mudar a partir das dez horas. Inicialmente o céu trouxera em sua longa manta azul e branca a luz faiscante do sol, tudo parecia perfeito, as paisagens a estrada, as casinhas ao longo do extenso caminho percorrido pela picape, mas tudo mudou de uma hora para a outra assim como se o tempo fosse controlado por controle remoto. O sol aos poucos foi perdendo espaço para as novas grossas nuvens que prediziam uma tempestade daquelas brabas, pensei comigo por um instante enquanto meus olhos perscrutavam o belo cinza pálido que acabara de tomar lugar do brilho sola: “Por que não continuou chovendo por uma semana? Por que tinha de parar e permitir que toda aquela gente sofresse tal dor? Droga será que até a natureza está contra nós?” Lembrei-me de que minha tia estava bem, porém mesmo assim a dor de perder tudo não se esvaia de meus pensamentos nem mesmo de meu sangue. Uma chuva fina de vento carregado começou a cair sobre o teto da picape, o seu som era baixo e estridente como tachinhas minúsculas derrubadas sobre uma placa de metal, o pára-brisa agora borrado mal saberia distinguir a olhos desatentos o que era uma árvore ou o que era um outro veículo a quinhentos metros de distancia, meus olhos perderam-se novamente dentro daquele grande veículo, meu refugio, meu único cantinho aconchegante, percebi que não conseguira dormir como quis, minha cabeça estava girando assim como meus olhos nas órbitas estava realmente na hora de um breve cochilo. Restava saber se eu iria conseguir fazê-lo...
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O som de rodinhas metálicas gastas num curto espaço ecoou em meus ouvidos quase como garras arranhando o solo, gemidos e sussurros eram audíveis assim como o som estertoroso das respirações doentes dos acamados abri meus olhos, mas nada podia enxergar, parecia ter os olhos tapados, cegos para o resto da humanidade, meus lábios queriam abrir, queriam falar, pronunciar palavras, pedir socorro... Mas de nada adiantou, pareciam coladas com cola especial, ou espera... Eu... Eu não estaria mais no comando deste corpo, será? Forcei um pouco a barra, alguém pedia por socorro e eu tinha certeza de que não era eu, alguém chamou meu nome... - Madde... Madde... Madde! A agonia refletida naquela voz me causava arrepios, parecia que uma alma atormentada voltara do mundo dos mortos para me buscar e de repente me senti tão desprotegida quanto uma criança de cinco anos depois de assistir a um filme não próprio de sua idade, minha pele arrepiava-se continua e irritantemente, dor sugira em meus olhos por tentar forçá-los a abrir, o que de nada adiantava eu repito. - Ajude-me Madde, estou aqui... Aqui! Por favor, por favor, por favor... A voz pedia insistentemente e meu coração gemia alto quase berrando seu “tum-tum-tum” constante. Meus dedos afundaram no que parecia ser um colchão, mas ao examinar minimamente os detalhes o que se apresentava na ponta de meus dedos inflexíveis era pura e simplesmente lama fofa, eu não estava mais naquele 173
ambiente que se assemelhava a um hospital, ou eu nunca estive lá? Droga... Estou confusa, desesperada, frustrada... Tentei gritar, de nada adiantou mais uma vez, minha garganta parecia fechada, nem ar passava... Então como estava respirando? Céus eu estava morta? Mãos me agarraram, ou pelo menos o tentavam ainda um pouco distantes, não, eu sei agora que o tentam... Estão me arranhando, unhas cortantes e gélidas igual vidro afiado, minha pele frágil ia romper-se. Unhas aprofundaram-se em minha carne, dor surgiu, mas fui incapaz de me mover... Agonia, espanto, desespero e prantos me afogavam ou afogariam na mais profunda e bizarra escuridão, queria gritar, queria mandar que a coisa seja lá quem fosse me soltasse, bani-la de minha presença, mas não podia, não conseguia... Leves tremores fizeram-se presentes, suor escorria por minha testa até encontrar-se com a gola alta da blusa que usava, estava sentada no banco traseiro da picape já parada não sei por quanto tempo, percebi que estava tremula de verdade e pela primeira vez eu sentia um medo aterrorizante, não sabia onde estava nem que pessoas eram aquelas, apenas conhecia de rosto Danov e Dimitri, ambos tão semelhantes e tão diferentes ao mesmo tempo. - Madde? – Dimitri me chamou, minha mente demorou a assimilar. O céu estava cinza escuro, a chuva aumentara e pessoas do lado de fora corriam para se proteger debaixo de marquises. Que lugar é esse? Pensei. - Hmm... Onde estamos? – Notei que minha voz estava fechada, baixa e rouca. Um nó aos poucos foi se 174
desfazendo, melancolia invadia os sons que a garganta produzia. - Levante-se, nós vamos sair... Logo irás saber onde estamos, vista isso, faz frio lá fora! Um casaco longo e grosso foi colocado em minhas pernas, estremeci a menção de “frio” do lado de fora, o vento chicoteava o nada com seus galhos de árvores altas, eu quase pensava que elas queriam abraçar o veículo e lançá-lo longe. É nessas horas que eu desejo não ter mentalidade tão fértil, eu sempre acabo me dando mal quanto ao que imagino. Danov não estava perto quando Dimitri me acordou o que me fez pensar que estava ali por tempo demais. Porém como ele poderia ter deixado o automóvel há tempos se seu perfume ainda permanecia vivo empestando todo o ambiente? Vento frio açoitou-me a pele do rosto e braços ainda descobertos, apressei-me a colocar o longo e grosso casaco espantando-me com o porte deste, parecia feito sob medida para mim e aquecia-me igualmente como estava imaginando que este o faria. Botões dourados adornavam o mesmo como os botões de uma jaqueta de soldado, um capuz estendia-se atrás de minha cabeça, puxei-o para proteger minha cabeça da chuva, não estava a fim de molhar os cabelos, não quando poderia fazê-lo debaixo de um bom banho quente. Olhei a minha volta abraçando-me violentamente tentando me proteger do forte vento, o casaco sibilava
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no ar abaixo de meus joelhos, agradeci por estar calçando botas. - Boa tarde ‘Bela Adormecida’! – Danov brincou, ele não sabia que eu estava com zero de humor para tolerá-lo. Os olhos discriminatórios de Dimitri foram direto para ele que se sentiu mal ao ser fuzilado pelos nossos olhares, calor subiu-me a cabeça e minhas veias começaram a latejar, eu sabia que não estava bem, porém também ignorei, depois do estranho e aterrador sonho não queria ter de me lembrar nem de uma simples dor de cabeça. - Seja bem vinda ao nosso aconchegante espaço senhorita Kaio! Não se preocupe, todos aqui são de bem, ninguém fará mal algum... – Dimitri abriu caminho pela chuva através de um denso corredor de cerca viva um pouco alta demais para o seu estilo, piso de pedra se alinhavam diante de meus pés evitando o contato destes com a lama escorregadia nas suas bordas, Danov estava parado contemplando-me da porta seu semblante um pouco menos triste, porém mais misterioso e sedutor. Ele me parecia tão volúvel... Indecifrável na realidade. Passei pela porta me sentindo talvez tão importante quanto o próprio Dimitri até por que os olhos que se voltaram para mim o faziam veneravelmente. Engoli em seco enquanto abaixava o capuz quase agradecendo instantaneamente pelo forte calor que me recebeu após a porta atrás de eu ser fechada.
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- Madde conheça Jensen, Ester, Faris Bagmat e Simon Habded. Todos os outros você conhecerá mais tarde talvez... – Acenei brevemente para todos de uma única vez, estava um tanto apreensivo por ser recebida com aqueles olhares. Ester a garota franzina mais baixa que eu de cabelos negros e brilhosos logo saltou a minha frente com seus olhinhos pequenos e amendoados, estes eram de um profundo cinza olhos-de-gato, seu sorriso assemelhavase com o de uma menina, aliás, ela em si era uma menina, deveria ter o que, uns 17 ou 16 anos só. - Prazer... Sou Ester Deveraux você é a Madde certo? Madde Kaio! Franzi a testa meio animada e meio desconfiada, começava a achar que todos saberem o meu nome e sobrenome era anormal. - Sim eu... - Jensen Sílex a seu dispor senhorita! – Agora sem dar tempo para cumprimentar a jovem menina que se agarrara ao meu braço direito aninhando-se como um gatinho que acabara de achar algo quente e atraente um homem alto, não tanto quanto Dimitri, porém um pouco mais alto que Danov se apresentou, tinha a postura de um homem da época medieval, seus olhos eram estreitos como os de um felino e tinham o mais poderoso tom mel esverdeado capaz de hipnotizar, repentinamente sentime extasiada, quase fui capaz de sorrir, mas ao perceber realmente o que se passava pisquei me libertando da aparente ligação que este tentava fazer, o que também 177
não durou muito, pois o mesmo quebrou a magia, tinha longos cabelos aloirados que se encontravam presos por um rabo-de-cavalo frouxo. - Faris Bagmat, o espadachim... A seu dispor senhorita! - Ele pode ensiná-la tudo o que sabe sobre espadas e a arte da luta com o mesmo. – Dimitri explicou o termo “espadachim” com o qual Faris se auto denominou. Faris tinha um belo cabelo ondulado que nunca se alongava além da nuca, eram negros como o breu da noite assim como seus olhos castanhos quase também pretos como perolas negras, sua barba e cavanhaque lhe conferia certa masculinidade se não o tivesse com certeza aparentaria ser um rapaz como Danov aparentava ser. Era forte e de boa estatura, nem alto nem baixo a considerar que Jensen competia com este. O último e único que não se pronunciou me encarava com olhos vazios e intimidadores, parecia um mudo diante de uma platéia em algazarra, congelei, por um instante seus olhos cinza cor de vidro embaçado me fitaram e eu senti minha alma sendo habilmente manipulada, eu é que me curvei sobre meu próprio corpo numa reverencia antiga típica de reis e rainhas, princesas e príncipes, ouvi alguém quebrar a ligação enigmática. Era Danov. - E este é Simon Habded. Não ligue para ele, desde que o encontramos ele só fala o necessário na hora
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e momentos certos, acho que ele vai demorar a se acostumar a você! Eu não consegui sorrir, Simon parecia inofensivo, porém tinha nos olhos aquele ar de que conhecia até os mais obscuros pensamentos que eu tinha, era como me despir de todo o pudor e senso sem precisar mover os dedos. Seus cabelos curtos loiros e repicados em cima lhe conferiam um jovialidade essencial à quase todos os que já tive o prazer e desprazer de conhecer. - Venha comigo, eu irei levá-la até o seu quarto... Não se preocupe, o restante Ester irá lhe mostrar. – Ele sorria mais para si mesmo do que para me convencer de que estava tentando me seduzir, ele não iria me enganar. Não depois de tudo o que já passei mesmo sendo em poucos dias. Caminhando pelo extenso corredor adiante de meus olhos pude vislumbrar uma ante-sala, uma sala de estar e uma de jantar, todas mobiliadas com um certo requinte e bom gosto, duvido de que o dono de tal iniciativa não seja Dimitri, ele tem bem a cara de fazer tudo nos conformes. Danov continuava a guiar-me pelo corredor, silencioso e prestativo como se mostrara desde a minha chegada ao Pepper Blood, bem a minha chegada aquele lugar não fora planejada, eu nem sequer queria ter ido parar lá, nem sei ainda por que inventei de sair de casa, talvez pudesse ter ajudado tia Glen a fugir das chamas que provavelmente lhe avia proporcionado dores extensas, se meus pesadelos estivessem certos ela deveria de estar sofrendo queimações terríveis por todo o seu corpo. 179
- Você é bonita... – Repentinamente Ester estava de prontidão ao meu lado, seus olhos não chegaram a entrar em contato com os meus, mas eu pude ver que ela sorria quase invisível por baixo da cortina escura que eram seus belos e negros cabelos lisos. – Agora entendo você Danov! – Ela não disse isso para mim e sim para o rapaz que nos conduzia por um corredor mínimo subindo uma escada em espiral. Danov a encarou quase desejando fuzilá-la ou pelo menos esganá-la, eu podia sentir os seus desejos percorrendo minha pele como se me arranhasse em busca de saciedade e prazer. Estremeci e dei graças por não terem percebido, Ester deu uma risadinha curta e breve, risada de menina. Fui pega a pensar se ela era tão infantil quando ameaçada, procurei nem mais pensar nisso. Quase tive o vislumbre vago de uma besta mirim atacando um animal e essa besta tinha a forma e características de Ester, isso me respondeu tudo... Novamente estremeci. - Se desejas tomar um banho antes do jantar fique a vontade, Ester irá lhe fornecer roupas limpas e secas e também lhe mostrara qual quarto irás habitar. - Eu agradeço muita a gentileza de vocês, mas eu não vou ficar! Não posso, tenho que ver minha tia no hospital. - Dimitri já se encarregou de levá-la até o hospital quando for realmente conveniente. Por enquanto ficaras aqui até que a tempestade passe e que você possa 180
descansar, você não dormiu tão bem quanto esperava, ou achou que mesmo tendo pesadelos encontrando-se deitada no banco de trás da picape era o suficiente? Ele estava parado diante de nós no longo corredor iluminado por lâmpadas de 60 volts, só agora podia realmente vislumbrar seu delicado modo de vestir, uma calça jeans azul escuro tinha as pernas desta encolhidas para dentro de suas botas grossas de couro estilo soldado, uma camisa azul escura acho que azul marinho, se as fracas luzes não estiverem me enganando, por baixo de uma jaqueta de couro combinando com suas botas, eu não sei por que, mas eu não tinha notado hoje suas vestes, ele não estava vestido assim até a noite de ontem... Seus olhos se fizeram meus e estes me afogavam como uma sufocante maré alta de um oceano revolto, um sorriso faceiro e quase imperceptível se fez presente em seus lábios induzindo-me a fazer o mesmo, porém rapidamente o desfiz pigarreando e retomando o rumo corredor adentro. Resolvi que não deveria encará-lo, eu não estava com animo para fazê-lo e muito menos depois dele praticamente induzir-me a ficar naquele lugar. Ester apressadamente passou por Danov olhei brevemente para ambos, num gesto infantil ela projetou sua língua cor-de-rosa para fora fazendo uma careta para ele que permaneceu impassível a não ser por um breve olhar recriminatório para ela. Minhas sobrancelhas somente foram erguer-se após vê-lo demonstrar certo apresso pela menina, ele bagunçou-lhe os cabelos numa gracinha típica entre irmãos, eu sinceramente ficaria sem entender.
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Ele novamente me encarou percebendo minha falta de mobilidade sorriu agora ardentemente enquanto deixava o corredor e eu reparei que ele guardava uns óculos na gola de sua camisa. - Venha Madde. Eu lhe mostrarei onde vais passar a noite. Um bom banho era tudo o que eu esperava e ansiava uma vez que minhas mãos, unhas e vestes estavam completamente sujas de fuligem. Meus poros estavam completamente obstruídos por gordura, suor e poeira que se condensavam em todo o rosto, oh como isso é nojento, sim eu sei... Ester havia sido gentil ao encher a simplória banheira com água morna quase quente, agora ela devia de estar preparando as novas vestes que eu viria a usar aquela noite, bem, se fosse pensar pelo lado lógico ainda era cedo para um jantar, mas a considerar que todo o lugar era fechado duvido que o tempo para eles não fosse próprio. Por um momento fui golpeada com a menção de jantar, vampiros não comem! Não que eu saiba... Engoli em seco, não era de minha conta se eles comiam ou não algo, eu sim precisava de algo pra comer e distrair minha mente e estômago depois de tanta coisa. Meus olhos repousavam mirados para o teto, pisquei em agradecimento pela pintura não ser de um branco agressivo, acho que iria gostar de ficar ali por algum tempo, pelo menos eu estaria entre aqueles que se assemelhavam a mim, eu poderia assim classificá-los em “amigos” ou talvez não. 182
Quase tudo ali naquele lugar tinha o peculiar tom escuro em contradição com o teto claro, muitas das vezes de um tom bege pastel ou simples branco empoeirado, longas cortinas cor de vinho serpeavam até o chão e nelas residiam belos entalhes dourados feitos com fios de ouro e estes mínimos detalhes lhe subiam a extensão das grandes peças que ao todo naquele aposento se apresentavam em três. Cada um tinha uma história diferente, cada figura mostrava uma cena, talvez uma realidade há muito tempo perdida, contos, fabulas, quem iria saber realmente do que se tratavam? Aproximei-me mais destas percebendo depois de uma minuciosa pesquisa onde meus dedos tocaram sua superfície áspera do tecido que aquilo ali não eram cortinas e sim tapeçarias talvez datadas do início do século XV eu não sei, apenas posso dizer que eram perfeitas. Parecendo captar no ar a minha duvida Ester respondeu-me o que tanto martelava em meu cérebro. - Espero que tenhas gostado das tapeçarias... Elas nos são de extremo valor! Historicamente falando claro. - Sim, sim... – Por um momento voltei-me para encará-la, porém logo em seguida voltei meus olhos para os desenhos. – São realmente muito bonitas todas elas. - Esta que estás vendo pertence à família Sílex, vem resistindo desde o século XVI mesmo passando por tantos momentos particularmente desastrosos na história. - Hmm... Então...
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- É... Jensen Sílex é o sétimo da família Sílex. Todo o restante foi disperso por outros cantos do mundo todo e grande parte foi dizimada. Quando Dimitri o encontrou ele não tinha mais ninguém em quem confiar... Jensen perdeu os pais muito jovem, talvez por isso tenha essa grave característica de ser um mal caráter e cafajeste! – Eu entendi isso como uma piada ao identificar um sorriso no canto dos lábios da jovem Ester. – Aquela ali pertenceu aos meus antepassados... Meus olhos ainda examinavam a tapeçaria pertencente a Jensen, ela contava uma história que lembrava a era de reis e rainhas em seus principados, magnífico. A próxima tapeçaria não contava nada sobre reis ou rainhas muito menos príncipes ou princesas, muito pelo contrário, havia uma batalha retratada talvez na maior de todas as outras tapeçarias, ela mostrava aos meus olhos uma guerra entre humanos e monstros licantropos, pelo menos era o que se mostrava aos meus olhos naquele momento... - Eu sou a quinta geração depois do Rei Pricket, diríamos melhor, eu sou uma mistura entre varias famílias, meu sangue guarda poucos vestígios de minha família real... – Ela não parecia muito feliz com aquilo, mas esboçava um sorriso contentado pelas imagens. – Embora toda a minha família possa ter sido exterminada eu guardo isso como sendo minha única recordação. – Seu sorriso esmoreceu por frações de segundos até voltar com toda a carga de docilidade de sua parte. – Bem... Podemos dizer agora que eu sou a primeira e única viva de minha geração. Novamente entendi como uma piada. 184
Mas eu ainda não tinha visto a outra tapeçaria, meus olhos abandonaram a imagem da brilhante guerra retratada em fios dourados e voltou-se para a última tapeçaria do quarto, uma bela retratação de um anjo vindo dos céus sobre uma humanidade perdida em meio à maligna escuridão, juro que se não fosse por ser agnóstica eu teria acreditado que aquilo retratava o fim dos tempos... - Esta ai simboliza a volta do poderoso príncipe Anic Kaine o maior de todos os vampiros de séculos. Não sei o que Danov acha dessa tapeçaria, mas eu tenho medo, é apavorante pensar que o maior dos maiores poderia voltar... – Ela se abraçou como se com frio, sua pele visivelmente arrepiada oscilou aos meus olhos atentos. Eu só podia olhar da tapeçaria para a pobre menina que estremecia parecendo imaginar um apocalipse mundial e de volta para a vibrante tapeçaria que aparentava ter o tom mais vermelho que os outros, era semelhante ao vermelho carmesim do sangue humano, sinistro realmente. - Está na família há quanto tempo? – Perguntei de certa forma curiosa e receosa. - Hmm... Pra dizer a verdade nem eu sei, Danov e Dimitri são os únicos que podem responder essa pergunta... Apenas posso lhe dizer que está com Danov a muito, muito tempo! Com os olhos estreitos sobre a tapeçaria afastei-me desta indo de encontro com as vestes postas sobre uma 185
cadeira, ali ainda não chegava a ser um quarto, a cama estava visível mais ao fundo escondida por uma parede cuja porta encontrava-se entreaberta e aquele recinto funcionava como uma pequena saleta, convenhamos que uma saleta bem sinistra... Uma elegante música clássica afundava todo o andar térreo numa mistura de suspense e melancolia de dar nos nervos, meus passos ecoavam no silencioso corredor com suaves batidas dos saltos muito baixos de minhas botas, todos estavam descansando ou simplesmente absortos em suas leituras de livros de época. A lareira ao fundo na sala de estar crepitava muito suavemente enquanto Dimitri bebericava algo em sua taça peculiarmente tingida de preto, meio incomum claro, mas era melhor que eu não viesse, a saber, o que tinha ali. - O jantar está servido cara visitante! – Alguém mais ao fundo falou com uma profunda e suave voz, senti um arrepio gelado me descer pela espinha quando olhos dourados brilharam na escuridão mais distante da sala onde se encontrava a lareira e Dimitri. O mesmo me encarou com uma sutileza amistosa, porém o outro ao tinha o mesmo modo de me espiar. - Não se assuste Madde, Simon gosta de pregar peças nos visitantes. Quando ele se acostumar a você vai parar... Eu tentei, bem que tentei sorrir para Dimitri, mas meu corpo inteiro estava retesado como se em agonia continua, aqueles olhos verdes cintilando a dourada chama da lareira eram apavorantes o suficiente para me 186
fazer duvidar das intenções do tal Simon. Seria medo o que eu sentia? Ou estaria eu enlouquecendo achando que tudo e todos são desconfiáveis? Afastei-me da sala e continuei caminhando, o relógio marcava sete em ponto o silêncio só não era maior por causa da forte tempestade que açoitava o telhado e as janelas do lado de fora com ventos uivantes que mais pareciam tentar arrancar os vidros e as portas do lugar. Ester encontrava-se a beira da pia, seu corpo esguio encoberto por um longo suéter azul marinho, aquilo era sinistro em contra partida aos belos olhos claros e cabelos negros cintilantes a luz da lâmpada. - Hei... Desculpe-me, mas ainda não terminei com os preparativos do jantar. Eu acho que não tenho nem um pouco de jeito para essa coisa de cozinha... Nunca fiz comida para um humano, nem mesmo para um meio humano... – Ela tagarelou numa voz infantil doce e gentil, eu gostava dela, era simples e divertida, melhor do que o misterioso Simon com suas manias de me assustar psicologicamente. - Precisa de alguma ajuda? Eu sei lidar com isso um pouco melhor... Sem querer desmerecer claro. – Sorri para ela enquanto me aproximava da bancada, uma confusão pronunciava-se diante dela, acho que estava tentando organizar uma travessa de salada e carne. - Oh... Hã... Claro, pode sim! – Sua voz foi hesitante, porém logo se tornou leve e suave como antes. Um sorriso aliviado surgiu em seus lábios finos de menina.
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Peguei-me a pensar em sua história lembrando-me de que mais cedo ela havia me dito que seus pais haviam sido exterminados, dor perpassou meu peito diante de tal situação, medo se fez presente diante de um pensamento avassalador, tia Glen estava internada no hospital, Mirage distante só Deus sabe lá onde anda se metendo enquanto eu estou aqui a quilômetros de distância escondida como se estivesse sendo perseguida, a única família que eu tenho de verdade está lá fora talvez sendo vigiados de perto eu não sei, mas acredito que sei por que tenham ateado fogo em minha casa. Parei abruptamente ao perceber que Ester se afastara, seus olhos estreitos para mim como se esta tentasse controlar algum monstro interior, até então não havia entendido o por que disso tudo até que senti algo arder com grande profundidade em minha mão. - Oh droga... – Cuspi, nem havia percebido que aprofundara demais a faca na mão. Sangue vermelho e grosso da cor do carmesim pingava da palma de minha mão direto para o chão, a faca pendeu da outra mão atingindo o piso com um estalo metálico respingando gotículas de sangue para todos os pontos possíveis, Ester parecia ter prendido a respiração, afinal não estava eu em um lugar confiável, não mais! - Mas o que... – Danov apareceu do nada como se fisgado pelo adocicado odor de meu sangue, confesso que até mesmo para mim o cheiro era agradável. – Madde!
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- Eu vou cuidar disso com licença... D-desculpeme Ester. – Balbuciei, aqueles olhos desesperados pareciam não ver a sangue humano a muito, muito tempo. Ela moveu positivamente a cabeça indicando-me que aceitava as desculpas, mas seus lábios não se moverão e eu engoli em seco ao passar por Simon, Sílex, Danov e Faris que mostravam o mesmo ar absorto que a menina, tirando claro Dimitri que rapidamente levantou a faca no ar e atirou-adentro da pia enchendo-a de água. - Venha comigo senhorita Kaio, vamos cuidar desse corte! Ele tomou em suas mãos a minha lesada envolvendo-a com um lenço muito fino talvez de seda eu não sei, dor começava a fustigar minha mão que mal podia se mover por causa da grosseira abertura em linha reta ali gerada. Espantava-me ver a coragem de querer manter-se próximo de mim mesmo quando todos os outros queriam a distancia, eu me senti um monstro, uma coisa que ninguém quer por perto. Dimitri empurrou-me para dentro de seu escritório cujas paredes eram revestidas de madeira escura e quadros muito antigos retratando paisagens ou na maioria das vezes convenções, eu não sei bem dizer, mas parecia ser algo realizado por vampiros e podia dizer por auto que eram muitos. - Sente-se Madde e comprima essa ferida o máximo que puder. - Ta... – Disse tremula, minha garganta parecia querer fechar. 189
Dimitri sumiu diante de meus olhos, não sei se a escuridão nada habitual fazia parte ou se estava começando a ter os primeiros sintomas de desmaio iminente, meu coração saltava rapidamente dentro do peito, meus dentes cravaram-se nos lábios obrigando-me a piscar e a claridade subjugou-me, cegando-me como a um louco que tenta enxergar o sol em seu mais alto grau cegante. Fechei os olhos. - Dê-me sua mão. – Uma voz pediu-me, meus olhos não se abriam e eu não podia dizer o por que. Senti um peso sobre o braço, sangue eu sentia fluir do corte e o tilintar das gotas dentro de um vasilhame ensurdecia-me aos poucos, um reboliço formava-se dentro de meu estômago enjoando-me, nauseando-me até que a bile subisse como num elevador louco pelo meu esôfago. Quase vomitei, mas eu consegui controlar antes que expusesse esse pelo belo carpete cinza-grafite que se estendia desde a porta até atrás da mesinha de escrivaninha pertencente aquele recinto, não seria um bom ponto para mim com eles... Algo cáustico caiu sobre a palma da mão aberta, a ferida borbulhou dolorosamente como se o que me jogara fosse ácido, uma forte dor sobreveio-me até que nada mais senti e digo isso sobre a dor na minha mão que se esvaiu tão rápido quanto uma vida se esvai de seu corpo lesado.
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CAPÍTULO 11 “Tic, tac, tic, tac...”. Fazia o relógio na parede. Meu cérebro parecia reiniciar como um computador desligado depois de uma pane. A breve claridade fornecida pela luminária sobre a escrivaninha mostrava-me que ainda me encontrava no escritório de Dimitri, não havia sinal de vasilhame nem de tecidos sujos de sangue, ele trabalhara muito rápido realmente para tirar tudo do meu alcance. Sustentei a mão no ar examinando-a minuciosamente, não havia lesão mais, nem mesmo cicatriz ou pontos, minha mão estava livre e limpa como se nada tivesse acontecido, igual a um pesadelo pessoal, tudo parecia tão absurdo que me fez rir e confesso que o fazia por preocupação. Eram quase nove da noite, eu não sei dizer como fui parar naquele escritório, minha mente estava uma bagunça assim como meus sentimentos e emoções, tudo a minha volta oscilava entre tensão e calmaria, a chuva estava diminuindo graciosamente assim como o vento cortante que ainda sacolejava as árvores ao redor do lugar. Sentei-me com um pouco de custo, minha coluna parecia em chamas, ou talvez estivessem dormentes eu não sei dizer bem, o sofá não era tão grande para uma garota de quase 1,77m de altura.
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Ouvi passos rápidos e largos como se alguém estivesse a correr do lado de fora do escritório, meu coração em disparada obrigou todo o meu corpo a erguer-se e movimentar-se, fui me esconder atrás da porta, tensão se misturando a adrenalina de me encontrar encurralada por quatro paredes sem janelas. Aos poucos pude perceber que os passos na realidade ainda se aproximavam lentamente da porta, o que estava acelerado era meu coração que batia em meus ouvidos com uma pulsação irritante, engoli em seco esperando por ver quem era o intruso. A porta se abriu liberando um facho de luz que iluminou um pouco mais além do que aquela breve luz amarela sobre a mesinha de escrivaninha, o som do vento sendo empurrado pela força da porta que se abrira com um ranger baixo soou em meus ouvidos alertas como unhas arranhando um quadro-negro, meus olhos puderam assim vislumbrar uma sombra alta e esguia de homem, eu apenas não conseguia reconhecer de quem se tratava, com medo fui levada a agarrar o que me veio à mão. A passos curtos e calmos demais o ser adentrou a saleta despreocupada como se esperasse encontrar-me desfalecida sobre o sofá, pois se dera mal. Sem fazer barulho alteei o artigo metálico até acima de minha cabeça e acertei o personagem com força este se afastou com um guincho caindo do outro lado da porta, justamente do outro lado em que não me era mais visível. A porta aos poucos foi fechando-se como se com um dispositivo para fechá-la, meu coração agora era audível, minha pulsação vinha à garganta e olhos, suor escorria das têmporas até a linha angular de meu queixo.
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- Oh droga... Droga, droga, droga! – Disse o personagem, a voz me soando muito reconhecível a esse ponto. – Madde por que fez isso? – Danov apoiava a mão sobre um corte feio acima da orelha direita, o objeto que carregava caiu de minhas mãos manchado com o fino sangue carmesim do pobre rapaz. - Oh... Merda! O que foi que eu fiz... – Minhas mãos elevaram-se aos lábios, tremores fizeram-me fraquejar enquanto um cheiro peculiar invadia-me as narinas. Era o cheiro do sangue de Danov escorrendo por entre seus dedos. - O que você acha que tinha na cabeça para me ferir dessa maneira garota? Ficou louca foi? - Desculpe Danov, eu, eu não tive a intenção! Perdoe-me, por favor! - Pois pra mim pareceu ter muita intenção sim... Droga! – Praguejou ele novamente enquanto checava o ferimento com a ponta dos dedos, sangue vermelho vivo escorria por entre seus dedos, a claridade tornou-se diminuída a ponto de só a lâmpada sobre a mesa ser o foco de toda uma sala escura. Agachei-me ainda mantendo certa distância dele, medo e culpa me consumindo pela besteira que acabara de fazer, minha respiração entrecortada fazia meu peito oscilar estranhamente, rezei para que tudo se resolvesse, se não estaria mais do que perdida quanto à estadia naquele lugar. Meu estômago revirou. - Também não fique me olhando assim como um cão que acaba de morder o dono e se arrepende, até 193
parece que eu vou lhe dar algum castigo por me arrancar sangue! – Sua voz saiu um pouco menos irritada, mas eu não era tão digna assim de sua docilidade e graça, nem mesmo suas brincadeiras nada luxuriosas me fariam ter a calma de antes. - O que veio fazer aqui? Por que tinhas de chegar tão silencioso como se pronto a me pegar desprevenida? - “Pegar desprevenida... Hum”. – Repetiu ele rindo ironicamente. – Eu acho que consegui te assustar não é? - E isso lá importa agora? – Meu queixo caiu, ele estava rindo? Ria de minha inconformação? Isso não poderia estar acontecendo, não comigo, não aqui e não agora. - Sabia que fica dez vezes mais atraente quando faz essa carinha de assustada? – Seus olhos estreitos observavam-me, invadia-me a alma como se lobos ferozes a esquadrinhar cada centímetro antes de atacar. - Oh... Vai pro inferno Dan! – Meu medo transformou-se em indignação e raiva, eu tinha mais vontade ainda de socá-lo agora. Ele riu copiosamente. Seus dedos deixaram onde antes existira uma ferida aberta agora quase totalmente cicatrizada. Ponto pra ele, isso meu corpo meio humano não fazia com facilidade! - Hmm... Irritadiça! – Mais risos e eu enlouqueceria, estava com as mãos coçando pedindo para tocar aquela pele e não seria pelo modo gentil e sim pelo modo agressivo para deixar marcas. Revirei os 194
olhos tornando a sentar-me no sofá, ele se pôs de pé, os dedos envoltos num lenço branco agora manchado com seu próprio sangue. - Pode me dizer, por favor, o que queria aqui? Se for por causa do que aconteceu mais cedo eu peço desculpas e me retiro, agora se não for incomodar eu gostaria de respostas! – Ele ficou ali parado terminando de limpar os dedos enquanto dobrava o lenço e o colocava de volta no bolso da calça jeans um pouco desbotada, havia um rasgo na altura do joelho e fios desgrenhados de tecido descendo da parte inferior deste o que tornava seu joelho visível e parte de sua perna pálida como o bege do teto do banheiro. Olhei novamente em seus olhos, uma estranha chama parecia arder viva em seu interior de vidro cristalino como o céu de uma manhã como todas as outras, a camisa pólo azul marinho realçava-lhe o tórax cujo pouco volume era-me o suficiente para fazer varias atrás de eu arfarem, confesso que eu o fiz quase que automaticamente. Fechei a boca que se abrira sem que eu o percebesse, meus olhos voltaram a encará-lo nos olhos. - Dimitri me pediu para que viesse lhe ver e saber como estavas. Ele teme que você possa fugir daqui achando que fez algo de errado! Revirei os olhos. - E eu não o fiz? Eu vi está bem? Eu vi a cara que todos vocês fizeram quando me machuquei, isso pra mim já é tudo... 195
- Não, não e não Madde. Entenda! Você não teve culpa alguma do que aconteceu, você se distraiu por um instante e se cortou, isso é totalmente normal, não foi culpa sua. Aliás, nós é que temos de lhe pedir perdão pelo jeito com que tratamos o assunto naquele exato momento, não queríamos que você achasse que era uma aberração ou pior, a nossa refeição... – Ele puxou uma cadeira para perto e sentou-se diante de mim. – Você é como nós, pelo menos metade de você é. Nunca faríamos mal a alguém, pode confiar... O dia que alguém fizer algum mal a um ser humano pode arrancar a cabeça fora e trespassar o coração, pois com certeza esse ficou louco. Duvida encheu-me o peito, perguntas vagas queriam se formar mais uma nuvem de despreocupação varria-as para longe demonstrando para mim que ele falava a verdade mais sincera. Oh porcaria, aqueles olhos estavam me hipnotizando, será que ele estaria plantando toda aquela sensação em minha mente? Será que estaria eu me rendendo outra vez? Porcaria, mil vezes porcaria! - Você precisa comer alguma coisa, perder sangue não é uma boa para ninguém, nem mesmo para um meio vampiro. – A minha frente ele erguia-se sobre os pés, um sorriso faceiro cuidadosamente moldado naqueles lábios finos e rosado emanava conforto e confiança. Como ele consegue ser tão seguro de suas palavras tantas vezes questionáveis? Céus eu ainda quero decifrá-lo, mas não consigo nem começar. Assim como a algum tempo mais cedo tudo por ali era calmaria por sobre calmaria, de certo todo aquele silêncio me trazia a sensação desconfortável de estar 196
sendo vigiada não só com os olhos como também pelos muitos ouvidos presentes na casa. Um vento sibilante roçava no telhado lá fora, a chuva resolvera dar uma trégua finalmente assim como o frio que se atenuara com a alimentação da lareira a lenha. Não havia sinais de Dimitri ou mesmo de Jensen, Faris ou Simon, até a pequenina Ester parecia ter sido retirada dos arredores, eu não conseguia sentir a presença de nenhum deles a não ser a minha própria e a de Danov que cá para nós era bem mais marcante que qualquer outro. Na cozinha uma mesa não muito farta, porém também não muito minguada se encontrava organizada entre garfos e facas sobrepostos a guardanapos, pratos e taças, a luz do recinto era baixa, talvez por se tratar de uma só encontrar-se acessa sendo quase substituída pela luz de velas bem ao meio da mesa. - Mas... O que isso significa? Cadê todo mundo? - Dimitri resolveu que era hora de sair um pouco para... – Ele demorou-se a responder gerando em mim uma curiosidade que logo se extinguiu quando percebi do que ele falava. – Você sabe bem o que. - Hmm... Oh... Claro, claro. – Minha respiração oscilou de maneira breve, tensão misturando-se a tranqüilidade de minha alma. - Sente-se, irei servi-la está noite. - Hei eu não preciso que me sirvam sabia? É para isto que existem as mãos...
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- Sem discussões mocinha, lhe servirei esta noite e ponto final. Minhas sobrancelhas ergueram-se surpresas por tal ousadia, também não briguei, se ele queria me poupar tudo bem, seria bom pelo menos uma vez obrigá-lo a se redimir de todos os sustos que ele me impunha sobre. Ele afastou a cadeira para que eu pudesse vir a me sentar, depois de feito ele empurrou um pouco a mesma para que me encaixasse perfeitamente no espaço tendo os braços livres para movimentarem-se. Serviram-me de um prato de torta salgada e salada, uma taça com água enquanto a outra ele se preparava para servir vinho. Levantei a mão antes que ele repousasse o gargalo da garrafa sobre a taça. - Eu... Hmm... Eu não bebo, desculpe! Ele pareceu confuso, cheiro de vinho tinto rose invadiume as narinas provocando náuseas profundas em meu estômago. - Tudo bem... – Ele nem sequer virou a garrafa um centímetro a mais. A mesma veio a repousar sobre a mesa intacta. Um jarro de suco me fora servido no lugar do vinho. Ele sentouse, após tudo feito, com uma elegância típica, só suas vestes que não condiziam muito com o seu modo galante de agir. Seus olhos eram profundamente azuis quando me encararam, sua expressão fria e indulgente causavame estranheza de fato. Aos poucos comecei a dar pequenas garfadas e assim fui até terminar com o que me tinha sido servido. Ele não piscara nem um instante,
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isso era realmente irritante, ou seria de certo modo encantador? Não quis falar nada, meus olhos baixaram até a taça aonde minha mão viera a se envolver trazendo-o até os lábios bebericando um pouco do conteúdo, suco de laranja, bem típico. Meus lábios comprimiram-se, o suco desceu cítrico e doce pela garganta causando espasmos em meu estômago. Seus olhos pareceram estreitar-se com o movimentar do liquido pela garganta, ele estava reparando tudo o que eu fazia, desconfortável eu me sentei reta enquanto meus olhos o encaravam da mesma forma, um pouco irritada claro em comparação ao vazio olhar devastador de Danov para mim. Cruzei os braços sobre o peito, eu queria entendê-lo, queria saber o que se passava dentro de sua cabecinha. Aqueles olhos cristalinos pareciam reluzir a chama da vela, lábios retos parecendo sorrir misteriosamente para mim nos momentos certos, horas certas, tudo para me fazer descer do meu salto, perder os pontos, ter a atenção capturada por um truque barato, estava quase dando certo não fosse pela minha alma guerreira estar resistindo. - Para... – Sussurrei, mas minha voz não baixou tanto de tom. - Parar com o que? – Fez-se ele de desentendido. - Apenas para, por favor... – Minha voz minguada como a de uma garotinha quase não saiu desta vez. Seus cabelos jogados para frente e talvez bagunçados demais para parecerem alinhados brilharam com o 199
reflexo dourado das chamas das velas. Eu pude entender o por que de todo o silêncio e os motivos daquele jantar a luz de velas, mesmo que ele não partilhasse do mesmo. - Você armou... - Não... - Não me venha com mentiras e desculpas Danov... - Eu não minto! Todos saíram para caçar e só irão voltar quando estiver completamente saciado, eu já o havia feito há muito tempo antes então não corres o risco comigo estando aqui se é o que podes estar pensando em segundo plano. E primeiro eu quis sim você aqui agora comigo, mesmo que eu não partilhe do mesmo que você eu ainda posso ter sua presença comigo. Não o negues, você também esperava por isso. - Não ponha palavras na minha boca! – Inconformação começava a ser substituída por uma breve confusão, meu coração começou a acelerar-se de imediato, sentia calor e frio ao mesmo tempo, minha pele arrepiou-se. - Eu estou pondo? Não mintas pra si mesma, não precisas disso. - Seu... Seu... Não tenho por que ficar aqui, com licença! - Não vai a lugar algum senhorita Kaio! Sua voz firme lembrava-me correntes frias e atordoantes, suas mãos mornas pressionaram meus pulsos com certa sutileza enquanto sua força de tração 200
lutava com a minha de repulsão. Queria ficar longe dele, queria fugir, subir para o quarto respectivamente dado a mim, mas estava enlaçada por seus dedos que começavam a se tornar quentes sobre minha pele. Novamente tentei me soltar, mas suas duas mãos agora agarravam meus pulsos que nada gentilmente eram trazidos para trás de suas costas, um abraço único e sua força não me permitiria escapar, meu coração deu um brado alto contra meu esterno, a respiração saiu ligeiramente arfante, meu rosto queria distância do dele, mas ele lutava comigo tentando alcançar-me. Seus lábios roçaram com a pele de meu rosto, mas não por que ele queria se aproveitar. Sua voz saiu morna e completamente afável em comparação com o seu corpo que me aprisionava. - Eu não quero brigar com você e nem muito menos me aproveitar de sua inocência. Quer ter, por favor, calma! – O rosnado gerado lá no fundo de sua garganta não condizia com a beleza de sua voz, arrepios não muito perceptíveis fizeram minha pele tremular, se ele percebeu ou não eu é que não iria querer saber, apenas queria me ver solta. Por um instante antes de ele me soltar eu desejei, eu sinceramente desejei que ele continuasse a me abraçar. Desejei que seus lábios não me tocassem só a face e sim meus lábios, queria outra vez sentir o gosto de seus lábios sobrepostos aos meus. Não queria perder aquele “calor” quase tão natural quanto o meu próprio. Suas mãos perderam a força que tivera antes e eu sentime livre para respirar, livre para fugir, mas ao invés de fazê-lo logo de uma vez eu evitei, eu fiquei, na realidade 201
quis ficar mesmo sabendo que ele poderia mostrar-se agressivo. Isso não importava, nada na realidade me importava... - Poderia sentar-se, por favor? – Ele pediu, notei que sua respiração – se é que vampiros podem ainda respirar – estava entrecortada e brevemente superficial. Sua face resplandecente estava tensa e dura como o restante dos músculos corporais. Eu o fiz por pura e simples obediência, na realidade se fosse outro eu não o teria obedecido assim tão mole, eu bem que queria afrontá-lo, mas não estava nada a fim de levar broncas de alguém que poderia muito bem ter a mesma idade que eu. - Poderia me dizer o por que de tudo isso? Eu realmente não consigo lhe entender. Ele me olhou, olhou como nenhum outro ousaria me olhar, era doce e meigo ao mesmo tempo em que era agressivo e amargo, eu poderia muito bem chorar, mas isso não era de minha alçada agora. Sentia-me como uma menina que era repreendida pelo pai, claro a comparação nem chega a tanto, mas a repreensão até se assemelhava em algumas pequenas coisas. - Você ainda não entendeu não é? - E o que eu teria de entender? – Fingi-me de sonsa, eu estava percebendo um pouco tarde demais os reais interesses de Danov tantas vezes gritante aos meus olhos e ouvidos.
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- Não acho possível que você não saiba. Você mente muito mal e isso se reflete em seus olhos! – Ele parecia realmente chateado quando falou. - Você não pode afirmar que eu minto! - Mas eu posso sentir isso vindo de você e é repulsivo. Ninguém age como você, isso magoa a mais pura e simples alma vivente em todo esse mundo... – Ele aspirou profundamente o ar ambiente e levantou-se. Meus olhos o seguiram aflitos, meu peito inflamava assim como meus olhos ardiam irritantemente. – Espero que tenhas uma boa noite! Amanhã de manhã Dimitri irá levá-la ao hospital para ver sua tia. Com licença. Ele saiu da cozinha me deixando para trás sentada sozinha. Uma explosão de sensações conflitantes, amor x ódio, raiva x razão, confusão x entendimento, tudo vinha como numa sucessão de golpes extremamente dolorosos a boca de meu estômago, minha cabeça girava sobre o eixo enquanto minhas mãos aparavam os olhos que despendiam lágrimas furiosas e frustradas. Eu sentia, eu sabia que não deveria brigar com Danov, mas sabe quando você não consegue manter-se totalmente integra? Então... Eu estou me sentindo muito, muito mal, completamente despedaçada por dentro. Sinto-me como uma boneca sem matéria para preenchêla, algo tão inútil quanto se pode comparar... Levanteime e deixei a cozinha, tentei acompanhar os passos que cada vez mais ficavam distantes, mas assim que subi o único lance de escadas daquele andar nada mais se podia ouvir, era como ter sido abandonada no meio de uma 203
estrada e na loucura corresse sozinha na escuridão da noite atrás de sombras inexistentes. Minhas costas atingiram a parede oposta e lentamente vim a escorregar até cair ao chão sobre uma das pernas tendo a outra esticada. O tempo estava demorando a passar, eu não sei bem onde ou quando Dimitri e os outros voltariam, apenas sei que se retiraram para caçar e se alimentarem até fartarem-se. Pelo menos eu sabia que não seria com humanos que eles iriam abastecer seus corpos de matéria quase inanimada. Sentada sobre a cama eu podia refletir sobre toda à noite, sobre o que acontecera, eu podia ver o quão infantil e idiota tinha sido ao agir daquela maneira com Dan, mas o que eu poderia fazer agora uma vez que ele próprio me abandonara ali isolada naquele lugar de aparência tão fúnebre ao anoitecer? Levantei-me novamente, eu é que não iria ficar ali esperando feito uma palhaça, não mesmo, eu sei que às vezes me comportava como uma garotinha de colegial, mas na maioria das vezes eu aprendia pelo modo mais difícil do que pelo modo “fique de castigo num quarto escuro” isso nunca iria funcionar assim como o desprezo. São coisas com as quais eu aprendi muito bem a viver desde que Garmond era vivo e infernizava as vidas de Glen e eu, Mirage parecia seguir seus passos inconseqüente, eu é que não iria fazer muito para livrá-la de cada perigo em que ela mesma se mete. A mim me basta apenas os meus problemas, não quero de mais ninguém... Deixei-me cair sobre a cama de novo, para onde eu iria? Aonde iria me abrigar àquela noite a fim de que de dia pudesse sair e procurar de hospital em hospital por minha tia? Onde iria encontrar e como iria encontrar Mirage uma vez que nossa casa se esvaiu por 204
completo em chamas? Perguntas e mais perguntas vinham apenas para me aumentar o pesadelo, eu não queria dormir, não queria ser perseguida até em sonhos por alguém que me despreza sejam eles Danov, Mirage ou qualquer outro. Não nasci para isso. Minha cabeça pendeu sobre o fofo travesseiro, a porta do quarto oscilara por um breve instante, uma brisa fina percorreu toda a fresta de madeira da porta escura, se alguém chegara eu não saberia dizer no momento, minha mente assim como sentimentos e emoções estavam perversamente corroídos e desfragmentados. Meus olhos começavam a se fechar, estaria eu entrando em estado de sonhos? Não, era apenas o som vago do meu coração a martelar tranqüilamente dentro do peito e minha própria respiração lenta sobre minha pele.
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CAPÍTULO 12 Um alto som de música eletrônica invadiu meus ouvidos, eu não sabia dizer onde me encontrava e que horas deveriam ser, apenas sei que o barulho me ensurdecia sem no mínimo se esforçar para tanto. Dor de cabeça pronunciava-se latejante e flamejante, náuseas queriam me por no chão, mas não sucumbi à ânsia de por o pouco que tinha dentro do estômago para fora. Aquele lugar me parecia conhecido, gente bêbada, drogada, prostitutas e tudo quanto é sorte de gente ruim apinhavam-se sobre as bancadas onde lhes eram servidos bebidas alcoólicas, cigarros e drogas ilícitas, cocei a vista, eu ainda não conseguia entender. Pus-me sentada a fim de enxergar melhor ao meu redor, ninguém conhecido, nem mesmo o barman que agitava uma garrafa de Gim Tônica nas mãos. O ar pesado estava carregado pelo funesto odor de fumaça de nicotina, mais uma vez uma forte náusea quase evoluindo para um enjôo antecedente ao vômito quase me derruba, mas eu suportei como sempre hei de fazer. Levantei-me e comecei a caminhar por entre a multidão dançante e pirada que se amontoava no meio do salão de dança, a música alta não me permitia pedir com gentileza para que saíssem da frente, nem mesmo meus gritos estavam se fazendo presentes. Era como viver num mundo paralelo onde ninguém consegue te ver, sentir ou mesmo ouvir. Lentamente abri caminho até a bancada e chamei por um garçom, mas este não veio, outra vez e nada, ao 206
todo chamei por cinco ou seis vezes até perdi a conta, o som deveria de estar muito alto realmente. Ou... Ele não podia mesmo me ver ou ouvir! Voltei-me para trás, as costas apoiadas na bancada enquanto vários motoqueiros me empurravam para longe com seus bafos de cachaça pura e barbas esfumaçadas pelo pó do cigarro queimado que lhes caiam aos montes sobre esta, a julgar por esta característica esses homens deveriam ter no máximo uns quarenta e cinco anos ou menos dependendo, sacudi a cabeça, todos estava em processo de autodestruição e não acreditaria se me dissessem que eles não sabiam disto. Continuei caminhando vendo que não adiantava lutar com aqueles brutamontes que achavam que eu era invisível, atravessei o publico na sua maioria de jovens, parte ali presente pertenciam ao subúrbio e outra metade eram filhos de pai e mãe com condições para pagar-lhes uma diversão mais decente num lugar melhor, todos dançavam ao som de Britney Spears, franzi o cenho, cada um tinha a sua maneira, claro, de se expressar e dançar, mas pelo amor de tudo que é mais sagrado, sem exibições de baixo escalão e falta de moral, metade ali poderia ser um irmão ou irmã mais novo meu! Continuei caminhando quase atropelando, esmagando pés sob minhas botas de couro e cadarço preto, a blusa de gola alta começava a me funcionar como um sufocador natural, o calor era intermitente e tendia a aumentar. Aqueles humanos eram como marionetes, manipuladas por uma força diabólica duas vezes mais poderosa que o próprio “dito cujo” ao qual não cito o nome, marionetes do próprio destino, controladas por 207
uma força talvez nunca imaginada, os vampiros... Tudo de repente pareceu mergulhar num silêncio profundo a música insinuante parou no mesmo instante em que os jovens pararam, algo tenebroso estava percorrendo aqueles corpos completamente ocos, vazios de alma e de toda a sorte de percepção, olhos vazios miravam o espaço ao seu redor sem nem mesmo estarem fitando uma direção, seus olhos antes vivos cheios de um brilho humano estavam pálidos, opacos diante de uma luz néon misturada a holofotes coloridos. O chão começou a oscilar como se afundando, ou seria eu que estava começando a cair? Não sei, apenas corri para longe do salão quando uma estrutura grande desabou, mas por milagre ninguém fora afetado por ela, um buraco se fez no chão, mas logo fora substituído por um altar, tudo a minha volta pareceu mudar de forma, as pessoas agora trajavam túnicas negras, eram humanos controlados, seres obedientes a um único ser, um vampiro tão poderoso quanto as histórias diziam que Eliza podia ser, nem seu pai o maior dos maiores Antuane Salazar tinha tal força ou autoridade. O céu sobre aquelas cabeças começou a se tornar denso e avermelhado, a lua propriamente dita estava manchada de sangue, lágrimas vermelhas escorriam pelas faces pálidas-rosadas dos jovens que erguiam as mãos para o ar diante de seus corpos inertes, pingos grossos lhes manchava a palma alva, seus pés tocavam o chão puro e pareciam ter viajado quilômetros, pois bolhas enormes estouravam quase se destituindo de pele já. Mais ao longe eu pude vislumbrar um altar de pedra mármore, este se encontrava encoberto por um manto cor de vinho de um tecido brilhante e sombrio, acho que veludo não sei.
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Ao redor fios de ouro desenhavam flores ou o que se assemelhavam a estas, desenhos rústicos do que parecia ser uma tapeçaria igual as pertencentes a Sílex, Ester e Danov, mas ela em si trazia o desenho agora mais tangível as minhas vistas míopes de um sacrifício. Sacrifício humano, sacrifício de uma alma por outra. “Anic Kaine!”. – Pensei quase sussurrando e quase me arrependi do mesmo quando vi alguém ascender adiante do altar. O homem de cabelos longos e castanhos brilhosos, porém mortos tinha um ar cadavérico, olhos fundos e perdidos no vasto ambiente ao seu redor, fedor de carne pútrida viajara até minhas narinas enquanto permanecia eu inerte atrás do grande grupo de seguidores. Outros vampiros ascenderam ao altar e dispuseram-se um de cada lado do homem aparentemente velho, ao todo eram sete, sete vampiros, sete cavalheiros das sombras, sete o número da sorte de mais da metade dos que eu conheci e conheço. Ao redor pude ver sete cavalos e todos eles tinham uma marca negra no lombo do lado direito, os olhos diabólicos não escondiam a quem estes serviam de corpo e alma. Um belo tordilho era o mais próximo de mim e seu hálito era gelado, morto, hálito da morte certa de quem ousasse atravessar-lhe o caminho num reboliço. A marca tinha a forma de serpentes e cada uma tinha um tom em particular, uma marca brilhosa que nunca iria deixar de existir, nem mesmo diante da liberdade concedida. O tordilho mais próximo de mim relinchou alto, seus olhos pareciam me ver, mas na realidade era como se um fantasma o encarasse, voltei meus olhos 209
para frente, olhos haviam se voltado para mim, medo me congelou as veias, um doloroso bolo formou-se em minha garganta e forçosamente desceu pela goela após tentativas frustradas de engolir em seco. Os olhos opacos dos jovens a minha frente me fitavam e ao mesmo tempo não fitavam, eu sacudi uma mão diante do loiro cujos olhos antes azuis agora lembravam mais ostras cruas, argh que nojento. Ele não me viu, simplesmente ignorou o fato de minha existência ali e foi quando berros femininos adentraram a multidão. Voltei-me para trás a tempo de desviar-me de dois colossos de homens, duvido que fossem vampiros com todos aqueles músculos a vista aprisionados por camisas tão coladas que pareciam querer rasgar-se de tão esticadas. - Não, não, não... Vocês não podem fazer isso comigo, não! Por favor, eu imploro poupem-me, poupem-me! – Balbuciava a garota que eu vim a reconhecer imediatamente. Ela quase estava chorando não fosse por seus olhos castanhos estarem praticamente secos. – Eu juro, nunca mais minto para minha mãe, nunca mais fujo de casa, mas isso não... Por favor, por favor! – Seus pés fincavam-se ao chão com força arrancando pedaços grandes de terra e pedra, a beleza mística de Mirage não condizia nem um pouco com o espanto que agora lhe preenchia a imagem pálida. “Mirage!”. – Sussurrei. Meu coração disparou enquanto ela passava sem ao menos me notar ali diante dela. - Por favor, não... – Choramingou. – Linda... LINDA pelo amor de nossa amizade diga a eles, diga a
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eles que não quero, eu não quero... PAREM, PAREEEM... Mirage começou a debater-se, seus braços pareciam geléia a ser sacolejada dentro do recipiente, seus pulsos estavam sendo bem presos pelas mãos monstruosas daqueles dois brutos gigantes. Ela olhava insistentemente para uma garota alta, magra e loira, os longos cabelos lhe caia sobre os ombros largos, tão lisos quanto seda, os olhos eram de um cinza brilhante, sem vida, sem brilho... Ela apenas olhou para Mirage e voltou os olhos para longe fingindo não conhecê-la, bons amigos esses que ela tinha então! - Hei... HEI... PAREM! PAREM POR FAVOR,... – Gritei, mas de nada adiantou, apenas serviu para me arranhar a garganta a ponto de quase expelir fogo. Corri na direção dos brutamontes e soquei-os, chutei suas canelas, bati em suas faces com força, mas de nada serviu, de nada adiantou, eles não podiam me ver... - HEEEEEEEIIIIIIIII... Pelo amor de Deus parem... – Deixei minha voz morrer quando aqueles olhos encontraram os meus... Ela parecia ser a única a me ver e eu parecia estar numa realidade alternativa, totalmente diferente da realidade que conheço. - Mirage... - Madde... Madde por favor, me ajuda... Tira-me dessa eu lhe peço, juro que nunca mais lhe faço uma injuria, por favor, por favor, por favor. – Mais uma vez 211
ela choramingou, seu pescoço quase torcendo num ângulo monstruoso. Ninguém lhe dava ouvidos, ninguém podia me ver então nada eu poderia fazer e isso me desesperava. A quem mais eu pediria ajuda? A quem poderia confiar de salvar minha prima das garras dos vampiros que aparentemente trariam a vida outro ser muito mais poderoso que qualquer outro que conheço? Anic Kaine o cadáver ressequido acabava de ser trazido e colocado diante do altar porém não fora tirado de sobre a maca, Mirage olhou para este aturdida, horror se fez em suas vistas e um som lamurioso de choro afundou todo o ambiente em misturas de agonia e um estranho prazer oculto dentro dos jarros espirituais que eram os humanos cobertos pelas capas negras. Deitaram Mirage no altar, pensei em correr para evitar que o pior fosse feito, mas percebi que não conseguia me mover, minhas pernas estavam duras, pesavam toneladas, estavam fincadas a terra até o tornozelo. Em instantes tudo o que ouvi foram os berros de Mirage ecoando dentro de minha cabeça, meus olhos a fitaram desesperada querendo se soltar das mãos dos canalhas hipócritas que a seguravam, mas ela não podia, esse direito lhe fora negado até o último instante. O ancião recitou um texto lamurioso em latim e ergueu no ar um punhal, a ponta deste assumiu a posição que eu esperava assumir e desceu lentamente até que a mesma cortasse a pele do pescoço de Mirage que gemeu em meio aos soluços. O filete recolhido de seu sangue foi parar nos lábios do vampiro ressequido e como no filme “A
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Múmia” com Brandon Fraser e Rachel Weisz o ser levantou-se produzindo sons guturais fortes. Tontura me sobreveio e derrubou-me não me permitindo ver mais nada, um enjôo forte fez-me colocar para fora a bile que me queimou a garganta, suor frio condensava-se em minha testa onde os cabelos desgrenhados vieram a colar, uma escuridão longa enevoou minhas vistas, um rosto conhecido apareceu flutuando diante de meus olhos, uma fina luz ia e vinha e eu despertei enfim após ver a monstruosidade me encarar. - Calma... Calma Madde, foi só um pesadelo! - Não... Onde ele está? Onde ele está? – Fechei os olhos apertando-os, mas nada eu conseguia ver a não ser a sombra luminosa da lâmpada acesa acima de minha cama. - Aqui está Ester. Coloque essa toalha embebida em água morna sobre a testa dela e varie deste para a nuca sucessivamente. Acho que vai melhorar a situação dela. Minha pele estava fria e pegajosa, meu corpo tremia involuntariamente, sem perceber havia puxado as cobertas até a altura do pescoço onde sentia uma ardência maior do que quando uma gota de suor me caiu as vistas. - Mirage... Eu preciso ver Mirage... Eu quero saber... Quero muito... – Tentei desvencilhar-me das mãos de Ester e de Jensen, mas eles me prendiam a
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cama, uma toalha foi posta sobre minha testa e estava tão fresca que resisti menos à força que me era imposta. - Quem é essa tal de Mirage? – Perguntou Jensen. - Acho que é a prima dela segundo ouvi Dimitri falar. Vá até ele e pergunte sobre ela, talvez ele saiba de alguma coisa. - Mas e você? - Eu sou forte o suficiente para sustentá-la aqui está bem? Pare de achar que não sou capaz... - Mirage... Mirage... Oh... Minha cabeça estalava como se os ossos do crânio estivessem se partindo, dor me afundou numa náusea profunda e todo o líquido viscoso retornou obrigandome a rolar na cama e a expor todo o conteúdo no chão de tacos. - Oh porcaria... MADDE! Meus olhos tornaram a se fechar, não queria eu olhar mais para o conteúdo expelido, era nojento demais para que eu pudesse aturar. Abrindo-os novamente fitei o teto de cor bege mais escurecido, o ar passava por minhas narinas cortando tudo como fios invisíveis de uma navalha afiada, uma tosse irritante pronunciou-se, meu esôfago estava queimado. - Madde? 214
Voltei minha cabeça para o lado a fim de encontrar com os olhos de Ester, ela pouco sorria pra mim enquanto tirava a toalha e embebia a mesma novamente na bacia com água, desta vez esta me veio a localizar-se debaixo da nuca. Leves estalos agora vinham de minhas juntas, parecia mais que os ossos estavam voltando ao lugar de respectiva origem. - Minha tia... Eu quero ver minha tia! - Acalme-se, você está doente, nem tão cedo vais levantar desta cama. Aliás, o sol ainda não nasceu parar querer tanto sair. - Que horas... – Engoli forçosamente me arrependendo depois. – Que horas são? - Ainda são quatro da manhã. Tente descansar mais um pouco, você teve um acesso febril e precisa de energia extra a ser guardada para mais tarde. Tome, coloque isso debaixo de sua língua, é bom que tenhas açúcar na corrente sanguínea. Peguei uma pastilha da mão de Ester e a repousei debaixo de minha língua, doce se fez presente o enjôo oscilou um pouco, mas eu contive-me. - E Danov? Onde ele está? Eu juro que não perguntei por interesse, eu só queria saber se estava tudo bem com ele. - Por que me perguntas sobre o Danov? – Ela pareceu curiosa. – Você está perguntando demais sabia? 215
- Eu só perguntei... – Respondi, os olhos voltados para baixo. – Desculpe! Ela me olhou curiosa como sempre, parecia estudar uma maneira de mexer comigo com suas palavras quase angelicais. - Talvez se você me disser algo que eu não saiba... – Ela fez bico. – Eu posso te responder! Ai é com você! Revirei os olhos. Ela não poderia me fazer uma pergunta a essas horas quando mais preciso dela calada. - Desculpe-me Madde, eu não queria lhe forçar. Ele não está, e particularmente não sei dizer quando volta ou sequer pra onde foi. Eu era mesmo uma estúpida, parva e ignorante garota de subúrbio. Como pude eu ir tão longe numa discussão não fundamentada como aquela? Ele não me ferira, não me ofendera, apenas estava tentando abrir meus olhos para algo que vai mais além de minha própria compreensão, pelo menos era essa idéia que seus olhos inconformados teimavam em mostrar a mim nas lembranças. Ele fora tão Cortez, tão gentil e inofensivo e eu o magoei, juro que eu tinha a impressão na pele de ter uma faca no meio de meu peito... Posso até estar enganada quanto a minha colocação de que Danov seja inofensivo, mas sei que ele é um bom rapaz, seus olhos não mentiriam sequer uma vez dentre tantas em que já nos encaramos.
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Droga... Por que eu não consigo raciocinar direito? Será efeito do pesadelo ou apenas a minha sensação de culpa me flechando certeiramente no meio do coração? Grrr... Eu me odeio por ser tão burra às vezes. - Droga... – Murmurei, mas cometi um grave erro ao murmurar... Eu o fiz em voz alta. - Há alguma coisa de errado Madde? – Ester torcia a toalha dentro da bacia e tornava a trazê-la a minha testa a fim de baixar-me a temperatura um pouco mais. Quer saber? Estava dando realmente certo, o mal estar estava diminuindo, mas meus pensamentos não foram completamente dispersos, isso por que ela insistia em me perguntar sobre o que estava havendo. - Esquece está bem... Eu tive um pesadelo mais que terrível e minha cabeça está a ponto de explodir... Preciso ficar só... Apenas... Isso! Eu não sei o que havia de errado comigo, minha língua travou na metade do caminho quase me impossibilitando de falar, meus olhos tornaram-se janelas negras fechadas para tudo ao meu redor e eu basicamente ainda não consigo entender o que há. Ao meu ver, o tal mal estar que se abatera sobre mim estava voltando e me sentia particularmente como sendo abraçada por algo muito pior do que sombras, eu vi aqueles olhos cor de vinho tinto mirando os meus profundamente e eu quase não conseguia conter-me, mas os laços com a realidade estava arraigados de tal maneira que Ester transitava diante de mim como se pertencesse a dois mundos.
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- Madde... Madde, oh céus, o que está havendo com você? Diga-me, diga-me! Meu corpo não reagia, minha garganta estava fechada de tal maneira que o som nem sequer de um gemido me saltava os lábios. Um estranho tremor fez-me sucumbir a nada dócil sombra, a escuridão me engoliria e eu rezava mentalmente para que tudo pudesse ser rápido e que eu não sentisse absolutamente nada. - Coloque-a aqui rápido! – Disse uma voz alta e firme típica de um homem. Como eu queria poder ver de quem se tratava diante da minha única lembrança masculina ser a de Danov. Meus músculos retesaram-se quando uma onda gelada banhou-me o corpo quase por inteiro, meus dentes trincaram enquanto minhas mãos fechavam-se em punhos prontas para socar o idiota que tivera aquela maldita idéia. Tudo isso após um forte susto claro... Raiva me subiu quente pela garganta, mas tratou-se de esfriar após meu corpo escorregar no que parecia ser gelo. Droga será que eles ficaram loucos? Pois eu acredito fielmente que fora por esse motivo uma vez que estava quase inteiramente submersa em uma banheira repleta de gelo. Meus olhos tornaram a abrir diante de toda aquela situação nada plausível, dor de cabeça fininha pronunciou-se enquanto minhas mãos tentaram agarrar as bordas estranhamente escorregadias da banheira, ou seria algo de errado com minhas mãos?
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- Por que diabos fizeram isso? – Disse por entre os dentes. - Era necessário uma vez que a febre lhe consumia. Era isso ou esperar que seu cérebro cozinhasse como ovos em água quente! - Mas por que gelo? – Bufei tremula, ardência deslizava por meus olhos. - Na sua condição Dampira, metade humana e metade vampira, seu corpo aquece até um limiar de 50 ºC, para um ser humano comum 40/42ºC já é o suficiente para cozinhar o cérebro e matá-lo se não isso o tornaria de certa forma demente, mas no seu caso, sendo você o que é, seu corpo apenas pode suportar a temperatura antes referida. - Ele quer dizer que gelo auxilia muito mais rápido no processo de conter a sua febre.Em pontos estratégicos obriga a circulação a esfriar e com isso gradativamente baixar a sua temperatura até a normalidade. Não queira matar nem ao Sílex e nem, a senhorita Deveraux por terem feito o certo, era a sua vida ou então morrer de maneira estúpida! – Ele foi um tanto seco, ríspido, porém tranqüilo, demonstrava um certo medo por minha condição, acredito que se aproximaria e muito das atitudes de um pai, só que sem serem, claro, manifestadas. Até conseguir fazer-me entender cada palavra dita por Dimitri e Jensen, meu corpo esfriava com uma rapidez constante, não pude mais discutir, apenas pude calar-me 219
e esperar que tudo passasse o mais rápido que podia imaginar. Mais uma vez meus questionamentos foram postos a fio de navalha e mais uma vez destroçados, sendo que da primeira vez quem se saiu mais magoado foi Danov que, aliás, eu nem sabia por onde andava, a segunda vez Dimitri tratara de ser rude na sua melhor maneira paterna de ser para se fazer entender perante uma mente limitada como a minha, ainda mais se tratando de esta se encontrar completamente debilitada. O gelo abaixo de meu corpo começava a derreter enquanto a dormência me acompanhava a cada centímetro cúbico de pele. Dimitri e Jensen retiraram-se do banheiro a fim de não me estressarem mais, bem, eles não me estressavam e sim o seu silêncio mortal como num jogo de detetive e ladrão onde, dentro de um vasto ambiente, milhares se encontrariam. Quem seria o ladrão, quem seria o detetive? Pois é, era essa a minha intrigante questão diante de um silêncio de morte. Não posso me esquecer de maneira alguma, Dimitri tinha aqueles olhos paternos sobre mim e isso me soava muito, muito incomum. Não que eu não quisesse de fato conhecer meu pai real, mas isso fazia a coisa parecer um pouco menos formal, era de gelar a espinha. Jensen sequer olhou para trás, apenas esticou o braço para fechar a porta e deixar-me a sós com Ester que sentada num banquinho mantinha-se com os olhos distantes evitando ser praticamente fuzilada com meus olhos que tanto lhe questionaram há alguns segundos atrás. Suspirei, o frio desacelerava o ritmo das batidas de meu coração a ponto de eu quase não senti-las mais, mas eu ainda podia ouvir... Eu ainda conseguia escutar meus próprios batimentos além de minha respiração espaçada 220
diminuindo para um ritmo “normal” por assim dizer em palavras.
Não conseguia de maneira alguma depois do banho de gelo dormir, talvez à volta do calor em minhas veias me despertasse o mais profundo sentimento nada ameno de agitação, talvez pelo fato de estar amanhecendo e tantas coisas ainda não terem sido concretizadas como me era de real desejo. Eu ainda não sabia direito se contava ou não sobre o pesadelo com Anic Kaine o maior dos maiores dentre aqueles que me circundavam, talvez não fosse tão relevante no momento, talvez me fosse desnecessário lembrar uma vez que isso me trouxera conseqüências nada interessantes, não queria eu passar por tudo aquilo novamente... Pra falar a verdade acho que não conseguia dormir por medo de ver aquela criatura repugnante levantando de um sono de décadas. Por outro lado, revirando-me na cama no meio de uma escuridão fantasmagórica, porém acolhedora, eu pensei novamente em Danov. Eu sei, vampiros não tem corações batendo, mas ele ainda tinha algo para ser ferido, seu orgulho. E me parece que consegui realmente destruí-lo ou quase praticamente reduzi-lo ao pó com minhas desconfianças. Acho que ele gosta – de alguma maneira – de minha pessoa, mas seria bobagem minha acreditar em tal coisa. Afinal eu sou quem sou agora, uma desconfiada por natureza meio humana meio vampira.
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De novo as lembranças da fria chuva a tocar ambas as peles me sobreveio à memória, era quase palpável a imagem que tinha em mente de Danov tão perto naquele beco escuro, meu ódio sendo extinto pelo estranho calor de seu beijo nada humano, mas tão semelhante a um me fizeram estremecer e novamente girar sobre a cama. Com os olhos ainda fechados eu conseguia rever, ou melhor, seria dizer, reviver a cena do beijo, eu ainda queria entender o porque de estar lembrando daquilo, mas acho que o simples fato de sentir-me culpada já me explicava o bastante os motivos de fazê-lo. Abri os olhos e demorei-me a achar as coisas dentro daquele quarto. O grande armário encontrava-se aos pés da cama na outra parede, tão imponente que sua sombra quase me saldava com sua imobilidade, olhando melhor pela escuridão localizei uma pequena cômoda cujo abajur apagado adornava-lhe a superfície, a seu lado uma poltrona e repousada sobre ela uma menina, diríamos assim, mesmo sabendo que Ester tinha 17 anos a mais de 100. Ela era como uma criança perdida, acolhida por boas mãos após um turbilhão de acontecimentos bastante confusos, me vejo de certo modo espelhada nela, ainda me lembro de como foi confuso pra eu descobrir que era uma dampira. Aliás, ninguém se sente tão confuso quanto eu num caso desse, impera neste caso a minha insegurança e impaciência. Era ainda muito moça, talvez mais nova que Ester na época quando tia Glen sentou-se comigo após um estranhíssimo incidente abrangendo sua filha, eu e ela.
Era tarde da noite, eu tinha apenas 15 anos quando aquilo tudo aconteceu... 222
- Mirage, por favor, quer largar esse isqueiro, o carro não é um lugar próprio para se brincar com fogo! – Repreendeu tia Glen enquanto Mirage ascendia e apagava o isqueiro na mão que usava para escrever. - Ora... Não enche mãe! Tente prestar atenção na estrada, nada vai acontecer, eu lhe prometo! Garotinha inconseqüente, já demonstrava não ter bom caráter há séculos... - Como posso prestar atenção a minha frente quando brincas ao meu lado com um isqueiro? Seu pai não gostará nada de saber sobre isso! – Ela bufou profundamente irritada, tava na cara que ela não iria conseguir dirigir estando com parte da atenção voltada para a chama que volta e meia se ascendia no aparelho movido a álcool. – Não sei pra que ele foi lhe dar isso... Mirage revirou os olhos, eu vi refletido no espelho lateral do lado de fora. O vento frio balançava meus cabelos assim como a doce chama dourada no isqueiro, apenas afastei meus olhos daquilo e voltei-o para a estrada, não era uma discussão em que eu pudesse estar metida, não dizia respeito a mim de alguma forma... Na radio podia-se ouvir Reach de Gloria Estefan, eu gosto das músicas dela, me fazem sonhar! Sonhar com ideais só meus, com uma vida só minha afinal, eu não viveria pra sempre sob as asas de minha tia, iria me casar, ter filhos possivelmente e ter um emprego estável... Até que...
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- Oh merda... – Sibilou Mirage após a guinada que o carro dera depois que uma estranha figura negra atravessou o seu caminho, a chama do isqueiro atingiu o carpete de borracha que revestia o chão abaixo do banco dela, tia Glen perdeu totalmente o controle do volante ao ver aquilo e atirou-nos para fora da estrada de uma maneira tão abrupta que eu ainda consigo sentir meu espírito levitando até hoje como se mal alojada dentro do corpo. O carro rodopiou, rodopiou, rodopiou até parar chiando no meio do matagal, numa das partes mais desertas pertencentes à Bucareste. Um campo de capim alto e amarelo afundou o carro numa mistura de pequenas chamas e vidro triturado. Mirage conseguiu sair do carro, mas o choque a levou ao desmaio após esta ver o próprio sangue escorrendo-lhe das mãos e face completamente marcados pelos estilhaços de vidro estourados. Tia Glendora foi a segunda a sair do carro com certa dificuldade, seu braço esquerdo estava quase totalmente descoberto de sua grossa camada de lã branca agora adornada por pedaços de pele banhados em sangue... Sangue... Meu corpo paralisou enquanto meu coração mente e alma ansiou por tudo aquilo... Sangue, tão vermelho, tão – aparentemente – apetitoso e doce como o mais doce dos doces atualmente conhecidos... Eu o desejei e isso me trouxe um profundo medo através de um arrepio frio. Minha espinha contorceu-se e dor me fez gritar expulsando cacos de vidro que se alojaram dentro de minha boca. O gosto do meu próprio sangue fizera-me ansiar ainda mais pelo gosto de outros tipos, eu não conseguia enxergar, apenas uma luz vermelha piscava junto com minhas pálpebras ágeis e isso me fez pensar que havia sangue 224
em contato com minhas vistas. Mas não foi a mesma impressão de tia Glen quando seu pé atravessou o vidro e esta me encarou antes de me puxar para longe do carro estranhamente envolvido por medonhas chamas Laranjas-avermelhada. O carro explodiu levando consigo milhares de pedaços retorcidos de ferro, carpete emborrachado e couro de estofamento pelos ares, o ar ficou impuro quase não respirável, mas eu em nada disso me liguei, até porque meu corpo lesionado começava a se fechar milagrosamente. Dias depois disso tia Glendora veio a me contar o que eu era de verdade e isso agora não vem mais ao caso...
Não estava mais a fim de lembrar, só de rever as cenas do acidente que por pouco não nos tira a vida, me arrepio. Por sorte Mirage não estava acordada nem muito menos consciente quando Glendora sua mãe – minha tia – contou-me sobre a minha verdadeira descendência. Se ela soubesse poderia acabar como seu pai anos mais tarde quando tentou se aproveitar de mim e levou uma bela surra. Novamente pude observar Ester e agora de igual para igual, ambas sentadas, ela toda torta por causa do sono cujo qual não conseguira se desvencilhar e eu reta com insônia. Ela com certeza presenciou coisas piores do que eu, e com certeza viveu pouco, mas o suficiente para saber que no mundo há seres que são capazes de tudo só
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pelo seu sangue correndo nas veias tão vivo quanto uma nação inteira.
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CAPÍTULO 13 Ainda não sabia onde minha tia poderia estar, mas sabia que era fora da cidade até por que quem tentou matar-nos iria com certeza atrás caso ela fosse internada no hospital da cidade. A estrada estava tranqüila, o sol guiava-nos por uma estrada de asfalto pintada com linhas douradas e cravejada de pedras Olhode-gato, aqueles tijolinhos amarelos que cintilam no escuro quando os faróis dos veículos costumam estar alto. A brisa fresca entrava pela fresta aberta da janela do carona bagunçando algumas mechas de meu cabelo solto, o vermelho dele vibrando ao contato com alguns dos raios solares. O silêncio imperava dentro do automóvel, Dimitri concentrado em sua posição volta e meia espiava pelas laterais, mas era só para ver se havia alguma movimentação suspeita. Os vampiros são bem previsíveis, sempre a espreita como se alguma coisa fosse sair errado, isso como se eles mesmos já não fossem o perigo constante que ronda uma cidade. Opa... Esqueci-me! Eu também pertenço a essa classificação, quão tola eu pareço ser céus... Sempre julgando, sempre achando que todos estão errados... Depois da longa discussão com Garmond há anos atrás percebi que havia me tornado mais do que desconfiada, acredito que sofria de alguma paranóia até por que eu também estava constantemente com um pé atrás com tudo e todos, até
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tia Glendora não escapava dessa! Quanto mais eu mesma ou Dimitri ali do meu lado. - Você está bem? Aquela voz firme e pétrea sempre me causava arrepios. Voltei minha cabeça para o lado e encontrei com surpresa os olhos pequenos de Dimitri voltados para mim. Logo pela manhã um brilho lhe saltava dos belos olhos azul-acinzentado, a beleza quase humana resplandecia em sua face pálida, ele era encantador, um sedutor de primeira. Tirando o fato, claro, de que ele parecia um pai para mim considerando a sua idade em comparação a minha. - Hmmm... – Pigarreei. – Sim estou. – Sorri gentilmente, digamos de passagem que estava meio que sem graça, não sei ainda o motivo disso. - Certo... – Ele voltou seus olhos para frente fixando-se a estrada sinuosa e silenciosa. Bem digamos que silenciosa até por demais, há essas horas sempre se costumava ter um bom movimento, mas ali não acontecia assim, estava tudo muito parado e meus sentidos estavam confusos. – Você e Danov discutiram ontem a noite não foi? Meus olhos rapidamente largaram a estrada, mas ele não fez o mesmo, sua atenção estava toda centrada na estrada, mas seus lábios pareciam contentes assim como sua expressão ao ver a minha reação. Abri minha boca, mas fui incapaz de responder, meu coração estava martelando dentro do peito como se fosse explodir 228
enquanto minhas lembranças eram forçadas a trabalhar ao máximo em prol daquela imagem na noite anterior. - Não precisa ficar tão surpresa... Nada pode ficar escondido de mim por muito tempo. Uma das habilidades mais poderosas de um vampiro metamorfo é saber o que aflige a alma de alguém e por si só a sua alma me grita como se presa num cubo de vidro. – Seus olhos faiscaram enquanto uma fina luz refletira-se no pára-brisas de um outro veículo que vinha no sentido oposto. O som das rodas girando no quente asfalto me fazia desconcentrar. – É verdade então? Novamente meus olhos voltaram-se para a estrada, meu corpo escorregando no banco macio da picape cabine dupla. Não achava necessário que alguém soubesse de meus problemas e conflitos, já bastava eu mesma ter meus problemas solidificados como rocha dentro do peito para me angustiar. Minha respiração saiu dificultosa assim como muito custosa para ser aspirada, estranheza surgiu em meus olhos enquanto baixava-os até as mãos sobre as pernas. - Madde! – Parecia que minha cabeça estava a ponto de estourar, minha face quente estava tão vermelha quanto um tomate consegue ser, uma lágrima brilhou na borda de um dos olhos, não a derramei, ela que caiu sozinha ao longo de minha face, droga... Por que estava chorando? - Eu juro... Eu, eu... Eu não queria ser assim tão... Tão...
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- Desconfiada? – Ele riu. – Não se preocupe, é bom desconfiar às vezes... - Mas estar sempre desconfiando não é normal! Eu estou aqui agora por teimosia, por mim teria ido a minha moto... – Um minuto de silêncio se fez dentro do carro, tudo o que se escutava além dos pneus rodando no asfalto era o vento sutil assobiando ao pé do ouvido, o calor do sol me aquecia mesmo com os braços cobertos por meu casaco longo. – Você nunca iria imaginar em sua longa estada aqui pelo que eu passei, nunca iria entender os motivos que me sobrevieram para ser tão desconfiada assim... - Madde Kaio, filha de Chrysta Kaio de cujo pai não se tem conhecimento... 23 anos morava com sua tia Glendora McPurcey Kaio até o dia 14 de julho, habita atualmente a casa número 608 rente a estrada principal, prima de Mirage McPurcey Kaio, uma rebelde jovem de 19 anos... Seu tio Garmond, um beberrão nato batia em sua tia todas as noites que chegava bêbado em casa, na noite de 27 de março de 2007 tentou abusar de você no bar onde trabalhava após uma tempestade elétrica desligar a força do estabelecimento, terminou com o corpo repleto de contusões e ossos fraturados... Morreu alguns anos depois devido à cirrose hepática gerada pelo álcool. – Ele parou quando percebeu que meu queixo estava mais que caído, meu rosto estava petrificado numa mascara de surpresa e assombro. Ninguém nunca contou, eu nunca contei nada a ninguém sobre a minha história... Eu ainda não conseguia entender... Não seria nem capaz acho! – Descobristes que era uma dampira após um acidente de carro na estrada, seus ferimentos curaram-se com uma rapidez incomum, sua tia desde 230
então guarda esse segredo assim como você... Eu a conheço melhor do que possas imaginar menina, eu entendo perfeitamente bem os motivos, todos eles, que a levam a ser assim e digo que é sim normal por mais que tentes dizer-me que não é. A picape já havia parado há séculos e estava estacionada numa vaga de estacionamento a uns duzentos metros de distancia da entrada da cidade de Ferentari, o clima por ali estava ameno, o sol quente aquecia o veículo, mas as nuvens acima de nós funcionavam como um pressagio de que o dia não permaneceria assim tão perfeito e intacto. Dimitri estava agora inteiramente absorto com meu espanto, seus olhos curiosos procuravam vasculhar o fundo de minha alma na esperança de me quebrar ainda mais os restos inteiros de espírito, eu não tinha como revidar com uma resposta contraria, bem, eu nem o queria mesmo... No momento eu só queria entender e saber como ele tinha conhecimento disso tudo. - Como? – Eu só consegui dizer isso, o espanto embargara-me a voz tornando-me incapaz de produzir uma frase complexa, perfeita para uma resposta positiva. - Eu sabia que ia me perguntar sobre, mas no momento eu não lhe satisfarei os desejos... O hospital fica no final da rua virando a esquerda, você o reconhecerá, é o maior de todos os prédios da cidade. Sua tia esta registrada como Sra McPurcey uma vez que Kaio é um sobrenome muito mais visado pelo inimigo. Agora vá, eu não posso ir com você. - E por que não?
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- Não tente buscar respostas quando já as tem! Vai logo antes que eu mude de idéia e a leve de volta garota. Atônita eu não tive outra escolha a não ser saltar do carro parado no fim do estacionamento vazio para fora num tempo quente e parcialmente ameno. Retirei o longo casaco a fim de não levantar muitas suspeitas, acredito que já me era de bom tamanho a carranca “sou perigosa, não perturbe” e as roupas escuras. Fechei a porta e esta produziu um som metálico quando bateu, comecei a caminhar para fora da sombra protetora do grande automóvel sempre mantendo um olhar atento para o motorista deste que sorria enigmaticamente como se gostasse de ver a duvida espelhada em meus olhos desconfiados. - Madde! – Ele chamou-me, não demorei duas vezes a responder. - O que? - Tem um celular dentro dessa sua bolsa, qualquer coisa... Já sabes! Muito pratico eu diria, um celular ocupando um vasto espaço que aparentemente daria o ar de tão vazio quanto meu estômago ao acordar. Na realidade não estava tão leve assim, havia algo mais ali que ocupava mais espaço que o comum permitido, eu só fui verificar o que era quando já não conseguia ver a picape preta. Será que ele ficaria ali esse tempo todo a minha espera? Iria derreter num calor como esse isso sim. Ainda atônita 232
pela curta biografia feita de minha vida e personalidade revistei a bolsa encontrando um celular, mais ao fundo havia um papel dobrado, particularmente eu não o abri, pra que o faria ali naquele momento? Continuei caminhando enquanto uma pequena selva de prédios se estendia ao meu redor, lojas de doces, casas de souvenires para viajantes curiosos, sorveteria, restaurante... Tudo isso em um único lugar, mas tão bem distribuídos que o tempo que levaria para alguém almoçar dava para desgastar e comer alguma guloseima, fora isso também havia imóveis vendendo materiais de construção, casas de tecidos e de marcenaria, encantavame um senhor de idade lixando uma velha cadeira de balanço, que belo serviço, pena que seus olhos duros obrigaram-me a afastar os meus de seu belo artifício. Eram quase dez da manhã, o sol estava a pino no alto céu azul encoberto uma vez ou outra por nuvens brancas como algodão. Além do que eu tinha encontrado de comum na bolsa também havia uma faca encapada cuja lâmina cheia de pequenos dentinhos serrilhados era capaz de dilacerar carnes em segundos, o cabo grosso parecia de um metal altamente resistente, a lâmina constituía-se não só de aço como também prata, percebi isto quando li um pequenino bilhete escrito à mão com letras formosas caiu de dentro da capinha de couro. - Muito inteligente... – Sorri mais para mim mesma do que para a inteligência de Faris em colocar aquela arma ali. Após virar numa rua à esquerda como o dito por Dimitri deparei-me com um movimento não tão constante quanto aquele há alguns instantes atrás. Muito pelo 233
contrario, a rua parecia afogada numa melancolia eterna cujos prédios velhos e gastos pelo tempo não perdoavam quando a luz lhes inundava em tons escuros, esverdeados um tanto que sombrios e mortos. Fachadas quase que por completo destruídas, ruínas antigas de uma casinha sobreviviam dentro um antigo cenário que mais lembrava os períodos de guerra, parei... O céu tão calmo ali me permitia um momento só comigo, uma cainha solitária sobrevivendo dentro vários prédios... Era como eu sobrevivendo a cada dia dentre gigantes sem coração... Continuei minha caminhada até que consegui chegar no fim da rua. Dimitri tinha razão, aquela ali era a maior construção de todas naquela cidade, um grande e formoso hospital, nada combinando com o astral daquela rua a sua frente erguia-se diante da luz forte, tão branco quanto as nuvens altaneiras, tão bravias quanto as paredes resistentes daquela casinha abandonada... Quem a construiu deve ter tido muito trabalho principalmente se formos nos ater aos detalhes na fachada longa do prédio. Um casal de gárgulas espreitavam-me com cumplicidade, tão imóveis quanto minha imaginação podia recriá-las elas pareciam esperar por mim, na realidade pareciam me vigiar, queriam saber o que eu queria ali, mas elas não podiam, eram estatuas de pedra, nunca sairiam dali. Senti o canto de meus lábios contraírem-se num sorriso presunçoso, nada mais assustador para uma criancinha de cinco anos do que uma gárgula gigante e horrenda como aquela. A passos rápidos adentrei o hospital e digo que só de subir notava-se a verdadeira feira formada no hall de entrada. Pessoas sentadas à espera de 234
atendimento, enfermeiras abarrotadas de serviços a serem cumpridos, mulheres discutindo com médicos nos corredores mais à frente, a pobre atendente não sabia mais o que fazia com uma mulher que só faltava subir na bancada para lhe agredir. Aproximei-me, eu sabia que aquela mulher não iria se opor, pois desde que me viu entrar tinha no ar o medo expresso, nem seus olhos conseguiam gritar em meus ouvidos e sentidos o medo que seu corpo exalava. Eu gostava disso... Eu gostava do medo que causava nas pessoas só com um olhar. - Com licença... – Pedi gentilmente não quebrando a ligação com os olhos daquela mulher. Ela estremeceu e afastou-se com um bico armado. - Pois não senhorita... O que desejas? - Eu tenho uma pessoa internada aqui, vítima de um incêndio. Está registrada aqui como Sra McPurcey. - Hmm... Espere só um instante, vou checar no sistema! Assenti gentilmente, meus olhos deixaram a mulher que acabava de sentar-se para vasculhar ao meu redor as outras pessoas, eu podia sentir a amargura de algumas mãe com seus filhos doentes na fila de espera, enquanto outras apenas estavam tristes, pois seus pequenos afetos estavam com febre, lembrei-me da noite anterior, eu tive febre, no entanto não tinha uma mãe para cuidar de mim e sim uma garota de 17 anos com alma de mais de 100. Ester lembrava uma daquelas mães presentes ali, ela até poderia saber mais coisas que aquelas mães ali não sabiam, inclusive como ter pulso firme, com certeza. 235
- Senhorita... Senhorita! Minha atenção rapidamente voltou-se para a atendente que sorria timidamente, ela apontava para a tela do monitor de seu pequeno computador e este sinalizava em vermelho o nome de minha tia, só que o nome dela estava como Glen McPurcey não Glendora Kaio, bem como Dimitri disse. “Eles” poderiam persegui-la até mesmo dentro do hospital. - Ela se encontra no quarto de número 207 na parte leste do hospital, segundo andar, setor de CTQ. - Muito obrigado... Hmmm... – Eu estava quase indo, a única coisa que não sabia era onde pegar o elevador. – Desculpe-me, mas... Onde ficam os elevadores? A atendente sorriu e apontou para um corredor logo a minha direita. - A sua direita senhorita... Tenha um bom dia. - Obrigado! Segui reto agora, meus olhos voltaram-se graciosamente para a mulher agora mais sossegada, medo se esvaiu de seu corpo deixando apenas confusão e ressentimento, nada que pudesse vir a gerar problemas. Como dito os elevadores ficavam a direita num corredor curto sem saída, pessoas esperavam para que eles pudessem descer e a qualquer momento pacientes poderiam sair dali numa maca, ou em sacos pretos, vale para qualquer um que queira esperar pra ver. Infelizmente eu não o queria, 236
sentir o que sinto quando encontro algo ou alguém morto é a pior coisa que existe. - Sobe! – Alguém atrás de nós falou. Voltando-me para trás deparei-me com um homem aparentemente alto sentado em seu banquinho, seus olhos eram como o fundo de um lago de um verde denso e tão sombrio que já me valia por cinco cadáveres. Sua compleição magra e pálida era fora do usual. Ninguém mais notara isso, mulheres com suas crianças, pais preocupados e os próprios pacientes encaixavam-se e o último espaço sobrou para mim ao lado do homem, este olhou profundamente para mim, um sorriso curvandolhe os lábios extremamente finos, aquele homem não deveria de ter menos de vinte e quatro anos, isso me estremecia a pele, o que só era possível de se observar se você fosse um morto vivo. - Quarto andar, por favor! – Disse uma mulher ao meu lado. - Terceiro... - Segundo... Não precisei nem me pronunciar, uma mulher fez isso por mim e ela tinha um semblante menos triste do que o dos outros ali presentes. O prédio constituía-se de quatro andares e cada um muito bem dividido entre alas Norte, Sul, Leste e Oeste como os quatro cantos do hemisfério, era bem movimentado, pena que eu fiquei no segundo andar. Uma mulher apressada lançou-se sobre mim empurrando-me mais para dentro quando o segundo 237
andar chegou, raiva quis dominar-me, mas eu sabia que não podia sentir tais coisas afinal de contas, a mulher estava desesperada por outros motivos e eu não poderia culpar-lhe se seu organismo resolve dar pane logo agora. “Boa sorte na sua busca!”. – Ouvi alguém sussurrar e era tão baixo que aposto que mais ninguém escutou. Olhei para trás ainda a tempo de ver aqueles olhos cintilando um vermelho forte como grandes rubis, as portas fecharam-se antes que eu pudesse pensar duas vezes... Aquele sorriso medonho ficaria gravado em minha memória por um tempo desprezível. O que aquele sujeitinho quis dizer com “Boa sorte na busca?” Droga. Senti-me mal, algo no ar pesava mais do que o normal, meus olhos cresceram em descrença, aquilo era cheiro de carne humana. - Oh merda... – Minhas mãos subiram em menos de dois tempos até meus lábios tampando meu nariz, porém era insuficiente esconder ou bloquear o odor as frestas dos dedos ainda deixavam passar o forte odor. - Está tudo bem senhorita? – Perguntou-me uma enfermeira do andar. Sacudi a cabeça tomando fôlego, minha alma parecia querer saltar de dentro do corpo, uma monstruosidade queria aparecer, mas eu lutava com ela ferrenhamente, não queria que alguém saísse machucado. Aliás, eu era meio humana ainda.
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“Agora entendi o por que de não querer vir comigo Dimitri!”. - O que senhorita? Falou algo? - Não, não... – Sorri de maneira forçada sacudindo a mão. – Será que você – pigarreei. – poderia me dizer onde fica o quarto 207? - Sim claro, venha comigo, por favor! Recobrei a postura normal de meu corpo e comecei uma curta caminhada com a enfermeira como minha guia, o odor ainda era forte na ala leste, mas não tanto quanto no hall de entrada dos elevadores, para aquele lado ficavam apenas os pacientes menos graves, talvez até os que estavam em completa recuperação só esperando para receberem alta dos médicos. O quarto 207 estendia-se diante de mim como uma saída faiscante, a enfermeira apenas me mostrou onde era o quarto e logo se desviou para o posto de enfermagem atrás de nós a alguns passos. Assim que ela deixou de ser visível aos meus olhos agarrei a maçaneta, porém a sensação que eu tinha era totalmente diferente de alegria, uma angustia profunda queria me arrancar à pele a unhadas, mordi o lábio enquanto abria a porta por completo. Uma surpresa me esperava, não havia ninguém naquele quarto, raiva, espanto e medo acumularam-se dentro de meu peito, bati a porta lentamente enquanto corria até a cama ainda desarrumada e quente, alguém havia levado minha tia, agora quem? Meus dedos afundaram-se na colcha embrenhada, lágrimas novamente escorreram pelos meus olhos enquanto esmurrava o colchão. Eles a 239
levaram, foram mais rápidos, mas será que foram realmente tão rápidos assim? Um bilhete estendia-se logo mais a frente sobre uma pequena cômoda, um envelope azul com um pequeno cartão de visitas branco escrito à mão com uma caligrafia linda e perceptível.
“Chegou tarde senhorita Kaio”.
O bilhete amassou-se por entre meus dedos, meus dentes trincaram enquanto tremores brandos se seguiam como numa descarga elétrica, o sorriso gentil de minha tia despertava dentro de mim a fúria de mil dragões, eu tinha agora um único objetivo. Descobrir pra onde a levaram e o mais rápido possível. Deixei o quarto, as veias da testa latejando visivelmente enquanto lágrimas irrompiam de meus olhos castanhoesverdeados. Minhas mãos bateram na bancada alta, a enfermeira que me escoltara até antes de abrir a porta do quarto me olhou surpresa, sua pele rosada oscilou por um segundo. - Alguém mais a visitou hoje? Alguém mais esteve aqui mais cedo? Responda-me! - Calma senhorita, do que estás falando? De quem falas? 240
- Eu falo da minha tia Glen McPurcey, onde ela está? Ela me encarou descrente achando tudo aquilo uma brincadeira, até ameaçou rir de mim, mas nem ousou quando viu meus dedos apertando a bancada quase que por destroçá-la, minha força estava saindo de controle. - Isso não pode estar acontecendo! – Disse ela olhando no prontuário e no caderno de visitas. – Não, não, não... Não pode! - Mas o que diabos não pode estar acontecendo? Eu quero minha tia, eu exijo que me digas onde ela está! - Acalme-se senhorita, eu vou acionar os policiais de plantão para ficarem de olho nas saídas... Na raiva eu arranquei o caderno de visitas da mão da enfermeira que até tentou lutar, mas minha força era dez vezes superior que a dela, justamente o último registro referia-se ao quarto 207 onde minha tia estivera, lancei mão do celular e este quase caiu por entre meus dedos trêmulos, disquei o único número que tinha na memória deste e fiquei aguardando com o caderno de visitas em mão. Na realidade eu não precisava dele inteiro... - Senhorita, não podes... NÃO... Isso é registro não podes rasgar... - Eu já o fiz... – Rosnei, ela caiu sobre a cadeira. - Alô? Madde! O que houve pra me ligar tão cedo? 241
- Ela se foi... Minha tia sumiu Dimitri, alguém a levou! - Mas o que? Do que você está falando Madde? - Não me obrigue a repetir Dimitri... – Funguei, o nome da última pessoa que a visitara estava tremulando diante de meus olhos... – Lucinda Cardelin a levou, aquela cadela maldita... - Acalme-se Madde, eu estou indo agora... Hei... Não... Madde fique ai, fique ai... Argh! A linha ficou muda... - Dimitri? Dimitri você está ai? Alô... ALÔ... Merda... Meus olhos queimavam enquanto minha cabeça doía alucinantemente, a pobre enfermeira não entendia nada, apenas ficou ali caída sobre sua cadeira giratória, seus olhos varriam minha expressão facial e corporal com um estranho torpor, acredito que o medo estava a dominando, pois nem meus sentidos foram mais capazes de reconhecer e registrá-las. Os dois papeis foram parar dentro do bolso de minha calça, não me importei se os amassaria ou não, apenas queria deixar aquele lugar o mais rápido o possível. Tentei ligar novamente para Dimitri, mas o telefone estava fora de área, um arrepio seguido de tremores involuntários em minha musculatura fizeram-me de repente parar, um homem alto cujos cabelos castanhos cintilantes curtos até a altura da nuca me observava no 242
inicio do corredor, o sol lhe escondia as feições ácidas, sua magreza era compensada em músculos tão fortes e bem moldados que eu diria ser recém transformado... Era um dos amiguinhos de Mirage... - Aonde vais com tanta pressa Madde? – Disse ele num assobio estridente e atordoante. Meus músculos retesaram de repente. – Não achas que está muito cedo para ir? - Deixe-me em paz... Aqueles passos cada vez mais cambaleantes e graciosos vieram até mim circundando-me até parar de repente atrás de mim, o hálito frio e apavorante do homem atrás de mim era capaz de atordoar até uma pobre e indefesa menininha, duvido que Mirage não tenha já se ludibriado com aquele rapaz. Claro, ele antes como um mero humano! - Achas mesmo que é capaz de ir contra nós? Achas que podes mesmo defender a si e a sua medíocre família com isso que chamas de força? – Ele aproximou o rosto de minha nuca, um doloroso arrepio fez minha coluna estalar. – Você é patética! – Disse ele por entre os dentes, as mãos tocando-me a pele do ombro desnudo, descendo a tornear a tatuagem de cruz no deltóide. - O que fizeram com ela? Para onde a levaram? - Ah, ah, ah... Não tão longe mocinha... – Sua mão saltou para frente tampando meus lábios e era um aperto tão gelado quanto o propriamente dito gelo de 243
uma bebida. – Primeiramente eu acho que vou me divertir um pouco com você, a Lucinda pode dar cabo de sua velha tia Glendora! - Grrr... Mesmo estando praticamente incapaz de me mover consegui alcançar a faca presa a minha cintura debaixo da blusa e assim que quebrei o gelo que me estacava na posição reta tentei atingi-lo, mas ele desviara e com isso todo o seu peso fez-me cambalear quando este me chutou as costas. Meu rosto atingiu a parede. - Tsc, tsc, tsc... Sempre tentando se achar a esperta da turma... – Ele sorria ironicamente enquanto sua cabeça sacudia de um lado a outro negativamente. Ele caminhou até mim e eu revidei com outro golpe, mas ele me segurou o pulso e me atirou de cabeça para baixo do outro lado do corredor, senti o peso do chão acumular-se sobre o meu corpo, era como quebrar um minúsculo osso, dor se espalhou por todo o meu corpo. - Sua vaquinha imprestável. Nem se defender não sabes! Não mereces o sangue que corre em suas veias! - Esse maldito sangue não é meu... – bufei... - Não, não, não... Não renegues e nem amaldiçoes o maior de todos os teus dons... – Ele sibilou, seus olhos de um vermelho incandescente quase me queimavam só de olhar.
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De repente, não sei de onde ele veio, um soco na altura da boca do estômago fez-me atravessar a janela direto para uma forte luz dourada que possivelmente teria me cegado não fosse pela rapidez com que fechei os olhos. Minhas mãos alcançaram a tempo uma gárgula que ficava na lateral do prédio, gritos eu ouvi dentro dos corredores e eram apavorantes a ponto de me congelar ali, a faca havia ficado presa abaixo da janela, ele, o rapaz que me agredira, abaixou e pegou a faca, novamente tão repentinamente que meus olhos não conseguiram acompanhar ele estava me olhando de frente, seu corpo esguio gentilmente acocorado sobre as costas da gárgula, seu pé pisou-me a mão esmagando-me os dedos... Eu gritei... - Isso... Isso mesmo grite! Grite para que todos aqui possam escutá-la frágil e indefesa, grite assim mesmo, isso me excita! - Maldito seja... – Choraminguei sem terminar a frase. - Você não vai nos atrapalhar... Não mais! – Ele sorriu displicente enquanto checava a faca e sua lâmina dentada. – O que será que isso faz mesmo? – Sua mão agarrou a minha outra livre e virando para si a palma livre cravou a lâmina nesta até que a ponta saísse do outro lado, dor rompeu meus tendões, eu não conseguia sentir os dedos da mão esquerda agora lesada... Gritei ainda mais alto, as forças já se esvaindo de meu corpo. – Ótimo... Sangue fresco! Ele arrancou sem piedade alguma a faca da palma de minha mão, ardência encobriu meus olhos numa poça 245
continua de lágrimas extremamente salgadas, eu podia escutar pessoas gritando desesperadas lá embaixo e até cheguei a arriscar uma olhadela para baixo arrependendo-me a partir daquele momento, eu nunca temi tanto a altura quanto agora... Agradeci por ser só o segundo andar! Minha mão baixou, o sangue escorria agora ao longo de meu braço, ele lambeu o dorso ferido que não ousava se curar nem por decreto. - O que isso mais pode fazer hein? – A lâmina foi parar em meu braço cortando-me de uma só vez enquanto sangue espirrava pelo ar riscando o jardim verde logo abaixo, depois o outro braço, o rosto e finalmente o pescoço, mas ele não o cortou, não o fez por que não o quis... Puxou-me de volta até ter-me em seus braços, suas pernas firmes ficaram o máximo próximo da cabeça da gárgula enquanto suas mãos mantinham-me bem próximo dele. - É uma pena você ter se aliado àqueles malditos da Ordem da Orquídea Vermelha, daria uma bela serva de nosso senhor Kaine! - É por isso não é... – Engoli em seco. – É por isso que destruíram minha casa, levaram minha tia... O que vão fazer com ela? Onde ela está? RESPONDAME! – Gritei e ele riu adorando a ceninha.
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- Acho que não vai ser tão mal se a matá-la agora! No final eu vou ser agraciado com o melhor... – Cuspi em sua face, eu sentia nojo, vontade de vomitar. - Eu tenho nojo de você... Tenho asco do que se deixou tornar... – Sua ira se ascendeu e sua mão me veio sobre a face ferida com um soco que bem poderia ter me esfacelado todos os ossos do crânio, não fosse por parcela da minha força tornar os mesmos tão rígidos quanto pedra. - Não ouse nunca mais fazer isso outra vez... Sacudi-me até conseguir me soltar, mas ele agarrou-me a cintura e de repente estávamos muito, muito além do chão, a próxima coisa que senti foi uma coluna de concreto afundar abaixo de mim e ser levada a vários andares inferiores com o peso de meu corpo. Escombros de um prédio encurralaram-me, não consegui respirar, tudo tinha odor de velho, poeirento e mofado. Uma mão agarrou-me o coro cabeludo e arrancou-me de debaixo dos vários blocos de concreto existentes, minha mão socou-o e atingiu algo duro o suficiente, mas meus olhos não puderam enxergar. Outra vez senti-me sendo atirada por aquela mão e desta vez atravessei a parede, meu corpo ainda não estava “moído” mas já estava bastante dolorido, minha mão esquerda não queria se recompor, poeira e cinzas acumulavam-se sobre ele. Tossi, sangue saltou de meus lábios arrebentados. - Garotinhas como você e a tal Elisa nunca deveriam ter nascido! Vocês são a escória de nosso 247
mundo puro, tão inúteis que só nos servem de alimento e mais nada... – Dois golpes me atingiram, não deixei barato cravei minhas unhas e sua face e rasguei o belo rostinho ainda humano. Carne surgiu, mas não tive tempo de ver mais além, meu rosto fora atirado contra o chão, atordoada não consegui raciocinar, apenas pude ver quando um pé tentou me atingir. Eu desviei. Passei-lhe uma rasteira e este se desequilibrou vindo a cair de costas sobre um bocado de pilhas de concreto e vigas, pena, não fora traspassado por nada, mas a faca lhe caiu da cintura. Passei mão sobre esta e escondi-lhe sob meu corpo, ele rapidamente recompôs a postura enquanto eu lutava para fazer o mesmo, meus músculos estavam extremamente doloridos e repuxados, aposto quanto que no dia seguinte estaria mais do que moída. - Se achando a espertinha hein? – Ele riu, nenhuma lesão maior além do estrago feito em seu rosto por minhas unhas. - Diga-me para onde a levaram? – Rosnei e cuspi, sangue manchava o chão abaixo de nossos pés. - Seu corpo meio humano não irá agüentar mais daqui a pouco, uma hora ou outra você vai se deixar vencer pela dor e ai eu vou trespassar essa sua faquinha medíocre em seu coração... Poupe-me de seu sentimentalismo imbecil garota, são só humanos! Parti pra cima do idiota, ele esquivou-se sem esforço algum, mas eu cai por sobre os joelhos. - Tsc, tsc, tsc... Lenta demais! 248
- Grrr... Ele riu... Novamente levantei-me e fazendo ziguezague consegui acertá-lo mesmo que superficialmente o peito. Seus olhos foram do ferimento para mim, a prata queimou-lhe a pele, raiva lhe ascendeu os olhos vermelhos rubi. Desta vez quem riu fui eu. Nos confrontamos varias vezes, mas quem obteve mais sucesso foi ele com sua agilidade meio que enfraquecida. Um corte largo no ombro, outro novamente no peito, mas nada de penetração ávida ou qualquer outra lesão mais profunda, droga, não estava conseguindo atingir meu objetivo e foi quando meu coração saltou mais forte dentro do peito, num momento de distração ele virou-me o braço e a próxima coisa de que me lembro era de ter a lâmina completamente cravada em minha barriga. Cambaleei para trás, minhas forças se esvaíram por completo enquanto meus olhos descrentes o flecharam, sangue escorria pelos meus lábios enquanto sorrisos maledicentes voltavam-se para mim. Por fim cai, as duas mãos protegiam ao redor da barriga evitando haver mais lesões. - Isso foi por tudo isso que me aprontastes! Acho que vou gostar de vê-la sofrer, deve ser bem rápida a sua morte. A prata já está no seu sangue mesmo! Dores alucinantes culminaram da ferida, ele puxou a lâmina por poucos centímetros, aquilo bastou para 249
acabar literalmente comigo. Farpas geladas passaram a circular em minhas veias, tremores afundavam-me numa agonia jamais descrita por um ser humano comum. Porém ele parou de fazer o que estava fazendo, sua mão tremia longe do cabo da faca que praticamente estava fora da ferida, olhei direito, minha vista embaçada não conseguia distinguir o que estava havendo, uma ponta metálica fora cravada em seu peito e o personagem acabava de girar a lâmina em seu peito destruindo o seu coração, sangue respingou sobre mim e minhas profundas lesões, retirei a faca da barriga e a larguei para trás, não queria mais ver aquilo, queria sumir então me rastejando deixei o recinto. Arrepios fortes agora me trincavam a coluna, meus dedos bons, não lesados como os da mão esquerda puxavam-me o máximo que podia para fora do quarto abandonado transformado em ruínas. Consegui sentir com a ponta dos dedos o primeiro degrau, meus olhos embaçados apenas enxergaram formas cinzas decrescentes, puxei-me mais um pouco, mas não consegui ir tão longe, meu corpo não me respondia mais, o ar gelado e impuro fizeram-me tossir e só isso foi o suficiente para meu sangue esguichar. Por breves instantes desejei mesmo que a morte me sobreviesse e me carregasse, melhor seria assim do que suporta tanta dor e sofrimento. Meus olhos fechados permitiram-me ver mais uma vez o belo rosto de tia Glendora, mas eram tão ingratos que expulsaram a única e última lembrança que tinha dela. - Madde... Madde não faça isso, volte... Volte por favor,... Olhe, sou eu, sou eu veja! 250
- Eu... Eu... Argh... Dan! - Sim eu... Por favor, Madde, não faça isso, fique... Fique aqui, comigo... Eu lhe peço, fique! - Tia Glen... Salve-a... Lucinda, Lucinda... Linda... Sem saber eu o havia puxado para um beijo, mas meus lábios dormentes não o sentiram, tudo escureceu e um frio me arrastou para longe... Queria eu estar agora a sonhar, pelo menos noutro dia tudo estaria de fato bem...
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CAPÍTULO 14 Abrir os olhos nunca me pareceu tão custoso... Mas abrir os olhos e encontrar-me na estranha e silenciosa escuridão de minha sala de estar era cinco vezes pior. Primeiramente, eu não me lembro de nada e segundo o que eu me lembro realmente não condiz com essa realidade tão absurda. Senti o acento macio da cadeira principal abaixo de minhas pernas, a mesa diante de meu torso estava coberta com uma bela toalha de renda, eu podia sentir, mesmo não vendo, os detalhes das rendas na ponta dos dedos. A cortina branca de renda voial esvoaçava graciosamente como se mexessem em suas pontas, mas era o vento que o sacudia trazendo uma mistura terrosa de terra úmida e folhas jovens... Esqueci-me de que era primavera, o cheiro das flores no jardim agraciaram-me com belas imagens que só minha mente tinha coragem de soltá-las assim tão acaloradas. Porém, como tudo na vida tem que ter certo momento de distração ou desequilíbrio, outros perfumes arrastavamse no recinto e sombras eu vi circundando a mesa trazendo consigo algo redondo cujo topo trazia um par de velas uma de número 2 e a outra de número 0. Pensei: Que estranho, não é meu aniversário nem nada para me fazerem surpresas!
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Sacudi a cabeça, não podia realmente estar acontecendo. Quando o cheiro de glacê e açúcar tornaram-se mais evidentes percebi tarde demais que era sim meu aniversario de 20 anos que aquelas pessoas ainda desconhecidas visualmente comemoravam. Era tarde pra pedir pra parar, muito tarde, aliás, para evitar que a cantiga se perpetuasse e que tudo se resumisse ao malicioso e mesquinho pedido, eu não conseguiria fugir do meu próprio dèjá vu de certa forma escancarado. - Vamos lá Madde, faça um pedido... – Disse alguém de voz suave e tão gentil que quase podia sentir seu toque leve na pele. - Mas faça de real intenção, um pedido feito por obrigação pode não trazer boas coisas! – Disse outra voz indistinta, era crispada e ranheta, provavelmente de alguém já senil. - Isso vamos, vamos... Queremos um pedaço mocinha! – Disse uma outra voz serelepe e eu também notei ser senhoril como a outra personagem. Só depois de alguns instantes é que pude perceber de quem se tratavam. Garmond não se encontrava na ocasião, pois se bem me lembro morrera ano retrasado de cirrose, Mirage estava viajando a estudos, ainda bem, menos dois para me desejar mal. Glendora me sondava com olhos insondáveis na extrema esquerda, fora ela quem trouxera o bolo até a mesa, na extrema direita se encontravam meus avós e nunca, repito, nunca os vi tão contentes, isso era muito, muito incomum. 253
Sem muitas chances de voltar atrás naquele circo ridículo que eram os “felizes” aniversários, levantei-me lentamente da cadeira desejando algo que pudesse estar ao meu alcance. Vejamos pelo meu lado, não é querer fazer as coisas de má vontade ou ser ranzinza para festinhas surpresa, o negócio é exatamente esse, eu detesto surpresas mesmo que sejam meu aniversario. Mas nem por isso vou deixar de pedir o que sempre quis, claro... Isso é segredo, por favor... Assoprei as velas, elas reacenderam assim como as luzes que novamente voltaram a brilhar no recinto, as paredes brancas repletas de pequenos quadros de moldura marrons lustrosas, fotos saudosas de minha infância, da infância de Mirage, minha tia “aparentemente” feliz com o casamento... Tempos tranqüilos que eu sei que não voltariam tão cedo, eu podia esquecer isso alias, essas coisas são passado agora. Voltei minha atenção para as velas sobre o bolo, estava ficando velha, 20 anos é muita coisa... Bem! De repente nem tanto. Senti um sorriso de criança preencher-me o vazio inexpressivo de minha face, isso era tudo... - Oh... – Fez tia Glen me olhando como uma mãe com suas mãos unidas de dedos entrelaçados na altura do peito, seu jeito e trejeitos eram tão simpáticos como quando costumava lembrar, perguntei-me se minha mãe também fora assim. – Vinte aninhos, isso é lindo! - Ficou mais velha hoje hein! – Vovô Christian disse quase cantarolando. - Que coisa mais indelicada para se dizer Chris... Credo! – Cutucou vovó Blenda, estranhei que ela ficasse 254
do meu lado para qualquer coisa, não conhecia esse lado tão amistoso dela. Não ainda! - Não, não... Sem problemas, estou aprendendo a não me incomodar mais com esses meros detalhes... Uma hora ou outra você tem que envelhecer mesmo, nada me atinge mais agora! – Olhei para Glendora, ela me retribuiu o olhar com uma expressão meio vaga, porém de sorriso justo e sincero. - Boa colocação, gostei disto mocinha... Oh se todas as jovens tivessem esse mesmo jeito de se colocar, a sociedade não estaria tão denegrida! – Disse Blenda minha avó quase aos silvos, a felicidade esfuziante dela estava me incomodando... Baixei meus olhos para o bolo novamente e pensei, tudo aquilo estava tão incomum para ser realidade, meus sentimentos estavam embaralhados, os sentimentos alegres espalhados no ar juntamente com o perfume de suas essências me deixava meio zonza, eu queria que tudo parasse de repente, que o “stop” fosse apertado e que eu pudesse descer do estranho carrossel de fatos nunca realmente ocorridos. Até tentei, juro, fechar os olhos e me beliscar, mas não adiantava, eles continuavam com seus sorrisinhos cúmplices enquanto cortavam fatias grossas de bolo e repousavam-nas sobre a mesa, Christian meu avó foi o primeiro a avançar, eu não o via há quanto tempo? Para falar a verdade, a mais pura, simples e significativa verdade, eu só o virá quando tinha seis anos e mesmo assim a custo de tia Glen, eles não estavam muito a fim de conhecer o desafeto que lhes tirara a querida filha. 255
Revirei os olhos sem que eles percebessem, meus lábios retornando aos traços retos de sempre. - Que foi Madde? Algum problema? Se sentes bem? Três perguntas, nossa que rapidez! - Não é nada... Só estou pensando comigo mesma, coisas pessoais! – Aquilo ali estava parecendo sinistro demais, um dèjá vu que nunca aconteceu, eu sabia que nunca aconteceria, pois eu não tinha vinte anos apenas... Pelo menos era isso que eu achava... – Se não for incomodar vocês, eu vou subir, preciso realmente descansar! Eles se olharam confusos, seus sorrisos se esvaíram assim como a esfuziante sensação de alegria que pairava no ambiente. Meus olhos passearam tristes por cada espaço da casa, a escada, o carpete, os quadros na parede... Tudo tão vivo e real que me doía no fundo do peito. Vertigens me acometeram de súbito, piscando eu tentei desanuviar meus olhos cansados, mas de nada adiantou uma vez que a estranha imagem que via agora era a de uma casa em pedaços, a madeira queimada ainda exalava um odor de fuligem, as escadas para o segundo andar estavam completamente carcomidas pelo incêndio que lambera todos os cantos da casa, olhei para sala em desespero, não havia ninguém, como eu pensei estava mergulhada numa terrível farsa, talvez os meus desejos se voltassem contra mim... Talvez fosse realidade o que via agora e não antes eu estou confusa demais para entender... 256
- Madde... MADDE! – Glendora me sacudia em seus braços, eu estava perdendo o foco, uma forte dor me alfinetava a barriga. Foi quando tudo retornou a plena escuridão de como quando apareci sentada naquele recinto. Um forte rodopiar e a luz voltava a sua estranha normalidade, quatro estranhas paredes cinzas apareciam no lugar daquelas belas paredes brancas repletas de quadros, estava sentada num canto frio, solitária comigo mesma e durei para perceber que havia outros ao meu redor só que não prestavam atenção em mim, estavam entretidos com alguém sobre uma maca revestida com um fino colchão e lençol verde. Estou num hospital? – Pensei comigo mesma. Olhei ao redor de novo, um hospital não teria um ambiente tão escuro, nem ar condicionado parecia existir num lugar que se assemelhava ao centro cirúrgico! Lentamente espalmando as mãos na parede ergui-me daquele chão frio para me encontrar de frente com as costas de um homem, belas costas eu diria, os cabelos presos para trás num rabo de cavalo me fizeram lembrar de Jensen, estremeci, de repente parecia já ter visto aquela cena, parecia que eu sabia quem estava diante dele estirada naquela maca. Desloquei-me só por alguns centímetros sentido o ar sendo cortado pela minha brusca reação, outros se encontravam com Jensen, mas eu não os reconheci, minhas mãos cobriram a boca em espanto. De repente tudo fez sentido e as imagens se reajustaram até a última vez que estive de olhos bem abertos... Um duelo 257
desigual entre forças totalmente opostas e ao mesmo tempo tão semelhantes era como eu podia descrever a estranha cena contra aquele carinha. Minha mão esquerda de repente tremula estava tão fria quanto pude sentir mesmo em espírito, eu olhei para minha própria mão e a movi, os nervos frouxos por causa da lesão, olhei para mim mesma e percebi que meus movimentos eram medidos e escassos, ninguém notara o tremular da ponta dos dedos da mão lesada, nem mesmo quando tentei agitar a mesma sem êxito. Mais acima na altura da cicatriz umbilical, pinças longas entravam e saiam de mim com uma minúcia incrível, não sabia ainda que Jensen era tão bom em cirurgias, mas aquilo me enjoava e dores me afligiam quando ele o fazia, havia algo ainda dentro de mim, alguma ponta maligna que me sondava e perfurava, gemi baixinho, ninguém ouviu, ele puxou algo com a outra pinça livre, uma lasca da lâmina da faca feita por Faris ainda estava alojada lá ao fundo de minhas vísceras, dor profunda me fez apertar a barriga sem nenhuma lesão, eu não pude acompanhar os movimentos que fazia em corpo, isso era frustrante... Estar tão incapaz, tão indefesa diante de pinças, agulhas, gazes e outros artigos invasores, ninguém ali parecia muito cômodo com a situação, mas quem iria estar? Toda a minha platéia era de vampiros ou dampiros, eles tinham a mesma sede que eu, aliás, eu ainda era uma humana mesmo pela metade. - Malditos Dezideratiz... – Resmungou Jensen por trás da máscara suada, sua testa brilhava com as pequenas gotículas de suor que se condensavam, uma 258
jovem lhe fez o favor de secá-las com uma pequena toalha de mão. – Ninguém tem o direito de tirar outra vida por uma causa perdida... Ninguém! Eu não sei o que ele quis dizer, mas de repente seus olhos tão doces antes ardiam em fúria, eu podia sentir mesmo fora de meu corpo seus sentimentos com relação ao ocorrido, o que seriam Dezideratiz? Onde eu estava afinal de contas? Quem eram aquelas outras pessoas? Pelo visto ia me encontrar apagada até segunda ordem, não havia outra escolha a não ser aceitar a condição com paciência e veemência, nem tudo na vida se consegue de mão beijada! - Por favor, o cauterizador! – Pediu ele, os olhos atentos na ferida aberta, os órgão cintilavam lá dentro como se feitos de plástico, num instante eu me senti manipulada, uma boneca viva só que completamente fora de mim. Eu mal sei dizer se quando voltar terei lembranças desses estranhos e sórdidos momentos numa sala de cirurgia! - Aqui está! - Obrigado. Sua expressão era vazia e monótona, seus olhos verdes profundos não se cansavam de admirar silenciosamente a lesão aberta, sangue escorria de algum canto então ele trabalhou rápido com o cauterizador. Senti algo me queimar por dentro, voltei-me para a parede agarrandome a parede lisa sem qualquer ranhura, minha testa
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bateu contra esta enquanto a outra mão segurava a barriga ar quase me faltando. De repente desejei tanto saber o que estava ocorrendo lá fora, desejei poder ver os outros, tocá-los, dizer-lhes que estava bem, mas quando o consegui não obtive sucesso e desisti ao perceber e reconhecer que estava sendo criança demais para com o caso. Dimitri mantinha-se pétreo numa posição única, era doloroso ver o vazio em seus olhos, um sentimento de culpa lhe corroia por dentro o que já não era mais vivo. Ester parecia uma estatua em choque, seus olhos de cristal tão azuis como safiras miravam pálidos o piso verde da sala de espera, eu me senti numa cena de filme clichê, um típico “E se fosse verdade” tirando o fato de que não havia ninguém que pudesse me ver ali. Susto me adornou a mente, olhos me encaravam inexpressivos, tão claros que até imaginei que fossem de um cinza quase evoluindo para o branco, era Danov perdido em algum canto de seu próprio e solitário momento. Seus dedos flexionados apertavam a ponte nasal como se com dor ou nojo de algum odor, ele não me via de verdade eu pude notar quando me aproximei. Sentei-me ao seu lado esperando poder fazê-lo sentir minha presença ali ao seu lado, mas de nada adiantou a não ser para eu mesma me fazer de idiota. Como eu queria que nada daquilo tivesse ocorrido, eu queria ser mais forte, queria ter podido ferrar com aquele idiota que ousou me deixar no estado em que estou agora, dor me sobreveio outra vez e tudo pareceu desvanecer em segundos, luzes tremeluziam diante de minha vista dolorida e borrada, o foco de luz me cegava 260
enquanto sombras tentavam me controlar, uma dor tão forte quanto uma martelada na cabeça rasgou-me de dentro para fora, algo corria por minhas veias enquanto alguém me segurava evitando que eu mesma me ferisse. Eu consegui ver Jensen, consegui encará-lo nos olhos, um tubo bloqueava a movimentação de minha boca, queria falar-lhe, pedir para que parasse de me fazer sofrer tanto, mas não podia, lágrimas escorreram de meus olhos e foi quando tudo pareceu perder novamente o foco, de repente eram só luzes e borrões brancos, meu corpo estava anestesiado, entrando numa tina de água gelada que logo – de súbito – se tornou quente e afável. Minha mão boa tocou algo uma mão me apertou forte a minha, senti-me bem, não me senti sozinha... “Estás num lugar de bem... Não se preocupe, Jensen a trará de volta...” Uma voz melodiosa e doce de menina preencheu o vazio e a escuridão que tornara a me envolver, de repente me senti muito bem assim.
- Quem é você? – Perguntei ao me deparar com uma garota sentada na outra cadeira no meio de um imenso jardim, ela observava dois jovens, uma garota pra lá de seus 17 anos e um rapaz que provavelmente deveria de ter uns 18 anos, os cabelos eram de mesma cor que os dela, um castanho cintilante e vivo, de repente ela era tão quente e viva como eu, seus olhos de um azul cristalino refletiam o púrpura suave à luz do sol. Sua pele branca de seda era lisa e perfeita. Com cautela me recompus e refiz a pergunta com mais educação... 261
- Desculpe a grosseria ou o espanto, tantas coisas acontecendo tão de repente e maioria sem explicação me deixaram confusa. - Sem problemas... É comum que passes por isso, sua mente está tentando reconciliar as memórias, organizar tudo antes de voltar à consciência! Logo vais ver que tudo estará no seu devido lugar. A propósito me chamo Elisa. E é um prazer conhecer alguém que compartilha dos mesmos dons e aptidões que eu. Olhei-a meio que sem ação, seu sorriso tão jovem tiroume do equilíbrio, minha bolha pessoal rompera-se em algum ponto da memória fragilizada, eu não sabia reconhecer o que era ou deixava de ser real. - Perguntasses agora se tudo isso não passa de um sonho certo? – Ela tornou a olhar os dois jovens que pareciam duelar entre si, seus semblantes disciplinados e ainda imaturos para um par de jovens lutadores. – Eu respondo que não, você só está aqui por um curto período, esse é o meu mundo, tudo o que vês faz parte da minha memória, e aqueles... – Ela tornou a encarar os dois jovens que riam agora. – São meus filhos! Elisa Salazar Staps com filhos? Isso é realmente algo de se comentar e que vale de certo modo a pena. Acho que algo em mim deu a aparência de desconcerto, ela sorria parecendo maravilhada com a minha expressão. - Você? Filhos? Uau, nossa... – Perdi as palavras no meio do caminho...
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- Eu ainda sou humana Madde, se não me enganei você também é, por que se espantas? - Bom, er, am... – Olhei-a novamente e depois me voltei para os jovens que não mais duelavam entre si e sim brincavam, era justo que eles deixassem de lutar, eram jovens ainda, não deveriam tão cedo estar brigando mesmo que de brincadeira. – Você tem cara de menina, se me dissesses que eram seus irmãos eu com certeza acreditaria, mas filhos... Fica meio complicado! - Entendo a sua surpresa e confusão. Mesmo tendo se passado vinte e três anos desde quando descobri ser uma dampira minha aparência não mudou. Eu tinha acabado de completar vinte anos quando meus genes vampiros se manifestaram então a partir daí eu mantenho a mesma aparência de quando completei vinte anos... – Ela sorriu e deu a impressão de que fora mais para si do que para mim. Ela parecia lembrar-se de algo. – Dimitri me contou sobre você, contou-me sobre sua prima desaparecida e sua tia. Eu sinto que não tenhas conseguido fazer mais por ela, mas eu tenho a certeza absoluta que ela esta bem. - Obrigado... – Meus olhos desviaram-se dela e voaram sutilmente para o chão. Tinha me esquecido do que havia acontecido, isso me fez lembrar de outras coisas, aliás. - Com certeza você deve de estar se perguntando, ou se não vai passar a pensar em como eu consigo manter tanta calma quando tudo parece de pernas pro ar certo? – Ela me encarou, o semblante de menina reluzindo com uma inevitável alegria e orgulho. – Eu 263
passei por muita coisa Madde, muita coisa mesmo até chegar no estado de agora, perdi pessoas muito chegadas, ganhei muitas outras em recompensa, digamos que sobrevivi às muitas tentativas frustradas dos inimigos de me vencer... Hoje em dia ninguém mais me importuna, mas sempre tem um para fazê-lo não é mesmo? Concordei com um leve balanço de minha cabeça. Ela suspirou. Parecia perdida nos seus próprios devaneios e isso me foi motivo para preocupação. - Acho que chegou novamente o momento em que o inferno começa! Ou se ainda não o começou está prestes... Acredite em mim! De repente ela já não tinha mais na face aquele sorriso e o estranho orgulho que faz a gente bater no peito contente, nem mesmo seus olhos pareciam trazer confiança, o brilho se perdeu em alguma parte da conversa e aquilo me fez tremer. A impressão que se tinha era a de uma luta perdida parecíamos pegas de surpresa bem no meio da disputa, duas fracas mesmo ela sendo quem é hoje. Outro suspiro longo e duvidoso saiu pelos finos lábios, seus olhos tristes fecharam-se por um momento e ela parecia estar sofrendo alguma terrível dor, pois suas pálpebras apertavam-se com força enquanto suas mãos fechavam-se em punhos, mas o que eu senti não era dor, não era medo nem sequer sensações confusas de duvida e tristeza, era algo quente, veemente dilacerante, uma cólera invisível raiva destrutiva, demorei a identificar os meus próprios sentimentos em vista que os dela me enchiam o peito, novamente ela 264
abriu os olhos, o tom púrpura ainda mais fechado dentro do que onde fora um belo olho azul cristal. Elisa parecia lutar com algo mais forte dentro de seus limites, ela fechava e abria os olhos insistentemente esperando que a “coisa” fosse embora, mas ela não ia, de repente ela estava de pé afastando-se a respirar fundo, eu não tive outra escolha a não ser segui-la para ver se podia fazer alguma coisa por ela. - Hei... Elisa espera... Há algum problema? Posso ajudá-la? - Não... – Ela disse de sobressalto. E depois parecendo arrepender-se se voltou para mim com os olhos púrpura suplicantes. – Desculpe-me, cada vez mais fica difícil controlar o meu gênio mal! – Por fim sorriu deixando que toda a sua raiva contida voltasse ao “jarro” invisível dentro dela. Seus olhos logo voltaram ao tom natural azul cristalino. Por metade de um tempo insondável ficamos ali, sentadas a conversar sobre assuntos diversos, o cenário aos poucos mudava, parecia tornar-se noite lentamente como se as sombras da noite se arrastassem por sobre o sol encobrindo-o. Não fazia tanto frio, mas digamos que eu ainda tremulava e me arrepiava quando um sopro de vento balançava meus cabelos enegrecidos pela falta de luz. Elisa me contou sobre tudo até mesmo seu gênio mal com quem tinha de dividir o corpo, falou-me de suas grandes batalhas já vencidas e sobre sua mãe, dor me preencheu quando a ouvi falar sobre a mesma e eu senti uma pontada de inveja, Isadora Staps era uma mãe de grande sorte, dera a luz a uma criança perfeita e não 265
sofreu nem um pouco com isso, de repente a amargurada ali fui eu. Não queria mais falar, nem sequer permanecer naquele universo paralelo em que fora jogada queria voltar a mim e sumir, não importaria mais se Glendora ou Mirage estavam bem, eu precisava ficar só. - Eu irei ensiná-la... – Ela disse de sobressalto, um sorriso branco perfeito adornou-lhe a pele tão branca quanto o alabastro. - O que? – Eu não havia prestado muita atenção em suas palavras. - Irei ensiná-la tudo o que sei, claro tudo isso conjuntamente com Erthur, Eleazar, Nicole e Dimitri, você vai precisar de todo o conhecimento que puder juntar dentro de você, ao final duvido que alguém será capaz de derrotá-la. Você tornara-se a melhor das melhores, não tanto claro quanto os outros aqui da base, mas se tornara tão forte que os inimigos mais fracos tenderam a cair aos seus pés. - Só podes estar de brincadeira... Isso não aconteceria, nem em um milhão de anos! É impossível... - Só é impossível para aqueles fracos que nem tentam... Por algum acaso você não é fraca ou é? Por que se fores tão fraca não posso ajudá-la a trazer sua tia e prima de volta. Ninguém poderá! A encarei, o queixo frouxo quase caiu com aquele banho frio que levei de seu estranho otimismo. A lua acima de nós fazia um trabalho não tão ruim, a pele dela parecia reluzir todo aquele brilho prateado, seus traços quase 266
impecáveis não me sumiam totalmente as vistas, era tão estranho, tão perfeitamente belo... Novamente tornei a abaixar a cabeça, sentia-me entorpecida, cansada e brevemente dolorida, mesmo assim aquele entusiasmo todo em querer me ensinar e me tornar uma guerreira de força inestimável reviravamme o estômago e confusão misturava-se a uma pontada de otimismo que me surgia. - E ai o que me diz? - Não tenho muita certeza de que vou ficar tão bem assim para conseguir tudo isso! - Pensamentos pessimistas não levam a nada a não ser a aumentar a carga negativa dentro de você. Esqueça isso, lembre-se de que tens uma família para zelar, sua tia e prima precisam de sua ajuda, mais do que qualquer outra pessoa neste mundo! Depende mais de você do que de qualquer um aqui envolvido. Não sei o que podia fazer agora, o entusiasmo esfuziante de Elisa me deixava desnorteada, de certa forma pasma por haver ainda tanta determinação em alguém que nem mesmo me conhecer tão bem conhecia. Dimitri realmente deve lhe ter contado muitos bons atributos que nem eu mesma sabia que tinha, ou pelo menos deveria de ter inventado algo, homens são sempre homens mesmo se tratando de vampiros. Acabei perdendo a noção do tempo enquanto Elisa me contava histórias, fatos e “lendas” – acho que se encaixam mais como contos – de sua cultura, nossa 267
cultura, os dampiros eram realmente interessantes e aprender sobre eles era tudo menos chato. Era como ter uma aula de história dinamizada nenhum professor ultrapassaria ou sequer chegaria em pé de igualdade com a pequena e bela Elisa Staps, ela só perdia em maturidade e conhecimento quando se tratava de Dimitri ou Antuane seu pai. Notei uma peculiaridade, algo que talvez só nós duas compartilhássemos, nós conseguíamos nos ver, conversar, etc., mas os outros, ou seja, seus filhos, amigos, pai e Dean seu amor eterno não nos viam exceto por Erthur que conseguia ver-nos e mantinha-se calado, eu me perguntei se aquilo seria mesmo o “espaço” de Elisa ou se ambas estávamos fora de nossos corpos, dormindo, sobrevivendo num espaço completamente surreal onde só nós duas podíamos nos comunicar. Talvez aquilo ali fosse realmente um sonho, mas era tudo tão real que eu nunca conseguia me sentir cansada nem o sono acabava. Elisa parou de repente, seus olhos fitavam com expressão vazia uma árvore frondosa cujo tronco esfumaçado trazia estranhas marcas como se houvesse sido partida ao meio e realinhada, ela baixou os olhos para o chão diante de si e novamente voltou-se para trás parecendo escutar atentamente a alguma voz interior, levantou a cabeça e me encarou fixamente. - O que? Algum problema Lis? - Eu... – Ela prolongou bem o “eu”, isso me deixou a beira de um ataque.
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- Mas o que está havendo, fale-me logo! - Passei muito tempo fora Madde, preciso voltar... Desculpe-me! O que ela quis dizer com passou muito tempo fora? De repente fui tomada de assalto por um súbito desespero, e se tudo ali não passava de uma farsa para me tranqüilizar, se tudo a minha volta era uma projeção da mente dela para que eu não me sentisse mal por ter partido! Céus minha carne parecia estar em chamas de tanto desespero. Ela agarrou-me os ombros e sacudiu-me em alerta, estava eu quase por perder a cabeça. - Madde... MADDE me escuta... Eu tenho que voltar ao meu corpo estão precisando de mim acordada, por favor, entenda... - Oh céus... Eu morri não foi? Eu estou no paraíso não é mesmo? Ou talvez... – Estremeci. – No inferno! Ela caiu na gargalhada enquanto seus dedos leves de menina me apertavam os ombros, eu sinceramente não entendi mais nada a partir daí. - P-por que você está rindo? - Você entendeu tudo errado Madde, você não está morta... Apenas inconsciente... Tsc. Venha comigo. - Espera... Para onde... Espera Lis!
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Sua mão quente agarrou a minha e saiu por me puxar para fora daquele campo extenso, atravessamos o pátio principal alcançando um grande prédio recém construído da instalação militar, o sol a pino sobre nossas cabeças não era tão quente e nem tão poderoso para nos afetar, acredito que em espírito não podíamos sofrer muitos danos. A claridade dera lugar a uma escuridão dosada por lâmpadas fluorescentes, um corredor logo se estendia por metros andados, portas de madeira apareciam a todo o momento e numa delas ela me empurrou para dentro para ver algo impressionante, sua pele alva era quase tão perfeita quanto a que via ali diante de meus olhos, Antuane a chamava assim como Dimitri em voz suave e baixa, ela resistia o quanto podia, sua expressão ficando volta e meia apagada, era estranho, ela estava lutando... - Entendeu? Não estás morta, apenas inconsciente por um espaço de tempo, mas eu vou resolver isso, não se preocupe! Desça até o subsolo, a sala de cirurgia fica a direita numa porta de revestida. Eu estarei próxima de você sem que precise piscar uma vez sequer... Vá! Repentinamente ela desapareceu, meus olhos se fecharam quando luzes coloridas começaram a aparecer, uma náusea estranha me fez encolher até a posição de um feto dentro do útero de sua mãe, tive medo, mas nada aconteceu a não ser o cenário um tanto diferente daquela sala de cirurgia, eu já estava em um quarto, finalmente...
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CAPÍTULO 15 Um grande veículo acabava de passar pelos grandes portões de aço da antiga base militar agora habitada pelos amigos de Elisa pertencentes à ordem. Um rapaz de feições finas e pouco convidativa dirigia o grande jipe sport e ao seu lado uma bela garota de olhos tão azuis quanto o céu observava o movimento ao seu redor com um pouco de desatenção. Ambos pareciam irritados, mas era só impressão, o cansaço da viagem também pode desgastar aos vampiros, ela aparentava não dormir por mais de dias e ele... Bem, não se pode dizer que é um exemplo de rapaz que vive bem as regras comumente aplicada aos humanos normais. Seus olhos eram vermelhos feito pedras rubi, natural para alguém pertencente aos Dryades, vampiros tão antigos quanto qualquer outro residente ali daquela base. A bela garota de olhar meticuloso e sedutor saltou do jipe indo de encontro a Dimitri e Antuane, sua expressão contente remetia a alegria em poder revê-los, Nicole há muito tempo não os via, havia saído em viagem anos atrás para estudar magia, não é pra tanto que sua pele tivesse tantas marcas parecidas com tatuagem, o rosto também trazia marcas semelhantes a tatuagens tribais, Erthur também as tinha embora tivesse permanecido na base por tanto tempo, ele era um verdadeiro senhor das artes da magia. 271
- Há quanto tempo Nick! – Dimitri sorriu ao dirigir-lhe a palavra. - Pensávamos que não fosse nunca voltar! – Antuane também o fez. Sua expressão e modo de se portar dignos de um líder. Nicole sorriu, ela gostava desse tipo de tratamento. Mostrava que era de suma importância a sua aparição por ali. - E eu tive muitas saudades de todos vocês... É bom voltar para casa afinal! – Seus olhos viajaram por todos os prédios agora restaurados, lembranças emolduravam seus belos olhos e um sorriso de satisfação lhe recobria os lábios cheios. – Pelo que vejo muita coisa mudou por aqui, gosto de ver isso, mostra que o tempo não parou enfim! – Ela tornou a olhar para Dimitri e Antuane, um ar de inocência misturado com malicia ajudava-a a formular a próxima pergunta. - Como anda o juízo Dimitri? Alguém o roubou ou continua intacto? – Ela sorriu mais para si mesma do que para os dois homens robustos a sua frente. Erthur largou as malas ao seu lado voltando-se para o jipe para descarregar mais uma. Ele não falou nada, apenas bastou fuzilar-lhe com os olhos. - Rá, rá... Continuas com o mesmo humor de sempre... Ninguém merece você garota! Devias mais respeito aos mais velhos sabia? Ela fez careta, tava na cara que ela amava afrontá-los.
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- E então? Onde ela anda? Queria tanto vê-la e ela nem sequer vem me cumprimentar! – Seus olhos foram para trás dos dois homens, nada, apenas um assobio triste de um vento calmo e solitário a rondar as altas árvores ao redor. Seus olhos então captaram algo que ninguém mais foi capaz, com uma agilidade quase imperceptível ela afastou-se desviando de uma tentativa ilógica de agressão feita por ela, à garota que ela tanto queria ver... - Pelo visto ainda andas em forma Nick! Cada dia melhor, assim me superas! - Você não sabe o quanto mudei garota... E ali ficaram as duas a se encarar em posição de defesa e ataque, os olhos de Elisa ‘flamuravam’ o púrpura perfeito enquanto os de Nicole ardiam um vermelho fogo que ela adquirira com anos de treinamento sólido e rígido. De repente as duas esqueceram-se das formalidades e riram juntas de suas próprias piadas, uma admirando a outra, a beleza de ambas era digna de merecimento, Nicole tinha seus 19 anos bem conservados enquanto Elisa mantinha sua carinha de 20 anos. Ambas abraçaram-se enquanto outros vinha chegando, uma platéia esmagadora com pessoas conhecidas de Nicole que a mesma há tanto tempo não via. Lana, Nathan, Cally, Hugh mais carinhosamente chamado de ‘Draco’ e Demi. Os outros não se encontravam, motivos? Ainda desconhecidos, mas logo todos estariam de volta.
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- Muito bom vê-los novamente... Agora sim me sinto em casa! – Ela disse após cumprimentá-los um a um. Elisa sorriu e endireitou-se, os olhos tornando-se um intenso azul transparente. - O que nos conta de novo da grande Europa? Algum movimento estranho? Nicole estreitou os olhos, havia mais coisas a se contar do que esperava, mas não é de se acreditar logo no inicio que ela vá contar todas as ‘supostas’ novidades a todos, não quando podia sentar-se e matar – literalmente – as saudades. - Será que podemos conversar e botar o papo em dia? Ou eu vou ter que ir logo para a parte objetiva da história? Eu odeio começar pelo fim quando tantas coisas divertidas estão no iniciozinho da trama! – Com um biquinho ela afastou a idéia de problemas existentes, seus olhos suplicantes cintilaram o vermelho rubi característico de Erthur, um sorriso adornou seus lábios, algo totalmente diferente de se ver em anos de carranca impenetrável. E conversaram sobre a vida, sobre as pessoas que ela havia conhecido bem como suas fatídicas histórias provincianas e tudo mais, estudar numa das maiores escolas de Londres não era para lá de tão chato e enfadonho, mas para quem desejava escutar algo de realmente interessante ficava difícil de prestar atenção à alegria tão inquietante de Nick.
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- Pois bem me parece que tudo por aqui andou bem tranqüilo certo? Desde que destruímos Ginger e o... – Ela freou a língua antes de pronunciar o nome, vogal por vogal, consoante por consoante. Sabia exatamente que isso não seria bom para Elisa assim como não foi tão bom para todos os outros... – Não é possível que as coisas possam ter permanecido assim na calmaria quando lá fora o mundo se resvala entre assassinatos cruéis e subestimados pela sociedade... – A incredulidade refletida nos olhos de Nicole era a verdade dita pelos de Elisa. - Você pode não acreditar, mas em vinte e três anos isso aqui ficou bem calmo. A não ser por um ou outro idiota tentar invadir as terras, mas, isso foi em outro momento totalmente diferente. De fato as coisas andam tranqüilas demais aqui... - Até pode ser que aqui esteja assim... Mas eu não diria a mesma coisa da Europa, Ásia e outros continentes! Dimitri fez cara feia enquanto seus olhos tornavam-se dispersos, uma aflição quase gritante mostrava aos outros que Nicole tinha de certa forma completa razão. - Por favor, alguém queira fazer a gentileza de me contar o que realmente está acontecendo? A jovem que vocês trouxeram para cá não se feriu por um motivo bobo, digam, quem o fez e por qual motivo... – Elisa encarou a todos sentada graciosamente em sua poltrona de braços de madeira cedro talvez, quem realmente se importa com isso?
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- Pois bem... – Nicole ajeitou-se em seu lugar, parecia incomodada profundamente com algo. – Fofocas à parte, chegou aos ouvidos dos superiores da instituição de onde vim que um grupo desgarrado de vampiros recém conversos vinha se reunindo desejando encontrar o tumulo de um poderoso vampiro ao norte da Romênia, algo a ver com um tal de Anic Kaine, eu não sei bem dizer o que isso significa, mas eu sinto no ar que algo fede e talvez seja pior do que o que Ginger e, desculpeme ter de pronunciá-lo Lisa, mas é necessário Alex desejavam fazer com o resto do mundo... Acho que todos entendem bem o que eu exponho agora. - Mas é claro Nick e sua informação é de grande importância, muito obrigado pelo esclarecimento! - Há muito mais coisas nisso, estão tão ocultas que os motivos que me levaram a voltar de Bucareste para cá chegam a ser violentos. – Dimitri falou antes que alguém pudesse divagar. – Esse bando desgarrado de vampiros recém conversos como a Nick diz existir perseguiu, destruiu e sumiu com entes queridos de Madde em menos de três semanas... Bem cômodo para eles terem reféns ainda mais se tratando de uma delas estar ferida. - Você diz isso da senhora por quem Madde vem se preocupando tanto não é Dimitri? – Elisa respondeu quase de imediato deixando Nicole desnorteada. Dimitri e Antuane seu pai a olharam, não pareciam surpresos, no entanto também se encontravam confusos. - Espera... Estou por fora pela primeira vez em toda a minha vida! Alguém quer fazer o favor de me 276
dizer o que está havendo? – Nicole prostrou-se sentada em seu canto, os olhos indo de Dimitri para Elisa quase tão rápido quanto um carrossel descontrolado. A porta se abriu repentinamente revelando Erthur, Dean e Jensen, todos os outros estavam alheios aos acontecimentos dentro daquela sala, estes recém chegados cuidavam da paciente especial. - Espero que tenham boas novas sobre a nossa paciente! – Disse Antuane erguendo-se graciosamente. - O quadro dela é o mesmo de sempre Salazar... Temo ter de dizer isso antes do tempo, mas essa garota não vai resistir por muito tempo... A faca era constituída de prata, parte do que ela é rejeita prata como nossas carnes! O veneno está circulando nas veias dela tão rápido quanto possamos revertê-lo. – Disse Erthur pela primeira vez, Dean e Jensen empoleiravam-se num canto rente a parede, as expressões vazias e tomadas por uma súbita agonia. - Eu não acredito... Fizemos tudo o possível e não conseguiremos trazê-la de volta? –Dimitri deixou-se derrotar pela angustia, ele nunca perdera ninguém em toda a sua vida, nem quando precisou cuidar de Elisa jovem desviou-se de seu real encargo. Pela primeira vez se viu impotente diante de um encargo que não soube bem coordenar. - Acalme-se Dimitri, ela é forte, vai sair dessa... Eu sinto isso! – Salazar disse, sua voz não saiu tão animadora, mas confortava de certo modo.
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Elisa de repente pareceu tão absorta quanto todos os outros presentes, seus olhos pequenos tornaram-se ainda mais estreitos por fim se entregando a uma agonia lancinante eles se fecharam, seus dedos apertaram forte a madeira bem lustrada esmigalhando os entalhes em suas pontas, farpas voando para todos os cantos invisíveis aos olhos de um mero mortal, mas completamente perceptível para os que a rodeavam. Dean deixou seu posto e veio aconchegar-se a seu lado suas mãos apoiando-se sobre as dela suavizando seu grosseiro toque sobre a pobre e judiada madeira. - Será que alguém poderia me dizer quem é Madde? – Percebendo que a história inicial não tinha um bom começo Nicole baixou o tom nervoso de sua voz e agora mais tranqüilizada e aplacada por Erthur tornou a questionar aos que se encontravam presentes. Elisa novamente abriu os olhos, sem que ninguém tivesse antes notado ela estava chorando, quase em silêncio mortal, lágrimas tão pálidas que jamais alguém poderia tê-la visto na vida derramar, nem quando sua mãe sofrera atentado de vida ela chorou tanto quanto agora, nem todos os que morreram pareciam fazê-la sofrer tanto quanto agora. Ela levantou-se quase de um ímpeto só carregando consigo Dean que por pouco não se desequilibrou de surpresa, Nicole a encarou com o rosto lívido sabendo que havia cutucado uma ferida que se abrira, Elisa era sentimental demais, tomava para si as dores de outras pessoas e isso quase sempre a matava por dentro, não era de se negar que ela tivesse o sentimentalismo de sua mãe 278
Isadora que, aliás, não se encontrava na base por medidas próprias de segurança de seu amado Antuane e filha. - Venha comigo... – Disse Elisa a Nicole, seus olhos eram vazios e arregalados, parecia voando em pensamentos, discutindo consigo mesma. As paredes frias mantinham o mesmo aspecto de anos antes, tubos finos alongavam-se pelas paredes e dentro destes fios elétricos circulavam carreando eletricidade nas varias lâmpadas dispostas a cada dez metros percorridos, os corredores eram longos em comprimento e de largura suficiente para que dois passassem juntos, portanto assim Elisa e Dean conseguiam caminhar lado a lado sem se esbarrarem, os outros vinham atrás, mas todos iam se deixando ficar para trás permitindo que Nick sozinha seguisse sua amiga. Uma porta tingida de claro destacava-se de todas as outras portas do corredor, um doce perfume digno de quem o possui resvalou nas narinas de Nicole, ela torceu o nariz e franziu o cenho encarando Elisa que continuou parada diante da porta como se esperasse pela coragem para fazê-la abrir a mesma, mas suas mãos assim como mente não trabalhavam em conjunto, sua alma não acompanhava o corpo, seus gritos eram inaudíveis e inalteráveis... Parecendo compadecer-se de sua amada, Dean lançou mão sobre a maçaneta e com um ‘click’esta se abriu revelando uma profunda escuridão iluminada apenas por um foco de luz sobre a mesinha de criado-mudo próxima a cama. Sobre esta, uma garota se encontrava deitada, seus belos cabelos ruivos soltos alinhados atrás de sua cabeça, a pele descorada um dia fora tão viva e rosada 279
quanto a pele de qualquer outro que partilhe de mesmos ideais que a moça, seus lábios bem desenhados como os de uma boneca pareciam pintados a giz, tão pálidos e ao mesmo tempo tão reais... Ela parecia feita de porcelana, frágil e delicada como o mesmo material, quase sob o risco iminente de se destruída ao toque. Havia um suporte de ar afixado a sua face, em sua mão uma punção perfeitamente instalada deixava o conteúdo de um frasco correr, gota após gota, segundo após segundo. Não tinha reação, o quarto estava no mais completo silêncio a não ser pela presença de um jovem... Ele olhou para os que acabavam de entrar com uma estranha sensação como se a jovem ali repousando estivesse pronta para receber sua sentença... “E que se desliguem os suportes!” Ele possivelmente podia ter pensado, medo lhe encheu o peito, inseguro se lançou para frente na tentativa de bloquear qualquer ação contraria... - Acalme-se Danov, não faremos nada demais, não se assuste por pouco! Ele relaxou. - Essa é Madde... A garota da qual tanto falávamos Nick! – Disse Antuane, sua voz era baixa e pouco estridente, ele não entrou no quarto como os outros por que não achou conveniente, não queria ficar num ambiente triste e desolador como aquele por tanto tempo, sabia das circunstancias e pronto, bastava sua filha sentimental para sofrer por todos.
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Nicole olhou para a garota diante de seus olhos, pena surgiu assim como uma sensação extasiante de culpa como se ela também houvesse negligenciado ajuda a pobre garota estendida ali no momento mais crucial, ela compadeceu de sua dor quando lembrou quase imediatamente do ocorrido a Elisa alguns anos atrás... - Mas o que foi... – Ela parou para reformular a própria pergunta. – Quem foi que o fez? – Os dentes serrados de raiva não fitavam a jovem, as presas começavam a despontar, mas ela não as deixou visível. - Eu o destruí... Arranquei seu coração e cabeça... Alguém como ele merecia muito pior, mais... – Rosnou Danov de seu canto, os olhos não se desviavam de Madde um só instante, ele nem sequer derramou uma só lágrima, porém sua voz era tão embargada como se o estivesse fazendo. Nicole o encarou, por um momento partilhando de seu sofrimento calado, Erthur aproximou-se e tocou-lhe o ombro, ela repentinamente sentiu um arrepio que sacudiu todo o corpo desde a raiz do cabelo até a ponta dos pés. Ninguém percebeu além dela mesma e possivelmente de Erthur que fitava o mesmo lugar vazio que ela agora e este se preenchia com a figura de uma garota, tão viva e sã quanto a imagem contraria tentava mostrar, os olhos castanhos enegrecidos pela escuridão encaravam-na nos olhos, era amigável mesmo não sendo, suplicante e ao mesmo tempo forte quase desencorajadora, Nicole precisou de alguns segundos até conseguir quebrar a ligação que seus olhos tinham com a figura, Madde de repente desapareceu...
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O silêncio doloroso chegava a machucar, Elisa assim como Danov encaravam a jovem com uma espécie de dor torturante por trás das máscaras perfeitas de suas faces, raiva lhes corroia por dentro e Nicole sabia disso. - Vamos Danov, você precisa descansar, ela vai ficar bem não se preocupe! – Dimitri parou alguns centímetros atrás de Danov, sua mão pousada no lado direito de seu ombro lhe confortando. - Estou bem Dimitri... Estou bem! – Ele era resistente, Nicole reparou nisso. Ele não trocou um minuto sequer olhares com a bela mulher a sua frente. Seus olhos eram voltados plena e unicamente para Madde. - Não você não está nada bem, queira fazer o favor de ir descansar? - Você não entende não é? Se eu dormir eles irão me perseguir nos pesadelos... – Danov encarou Dimitri quase suplicante, aflição agora lhe ferroava a pele. - Vamos Dan... Precisas tentar, pelo menos uma vez, vá descansar, por favor! De nada adiantara ficar aqui e esperar... Pelo menos não por hora! De repente Nicole viu outra imagem espelhada em Danov, era uma imagem conhecida e estava ali a dois passos de distancia abraçando e apertando Elisa em seus braços, as faces se encontrando e breves murmurares a tranqüilizavam. Danov tinha o mesmo ímpeto de Dean, tantas coisas semelhantes e ao mesmo tempo tão diferentes situações... Danov e Dean eram os únicos fieis 282
aqueles por quem eles despendiam tempo, algo comum entre a sociedade vampirica moderna. Vencido pelo cansaço e pelas palavras de Dimitri, Danov retrocedeu, seus olhos fechados por alguns breves instantes permitiam a Nicole ver manchas escuras, talvez olheiras ela não conseguiu distinguir, o quarto não estava tão bem iluminado como era de real costume estar. Ela se virou para observar o rapaz sair e então teve outro acesso de arrepio enquanto seus olhos novamente encontravam com os da garota atrás dela desacordada. - Por que eu posso vê-la Erthur? Diga-me, por que nós podemos vê-la assim? Erthur observou a garota seguir Danov com os olhos tristes e desconsolados de quem não tem outra opção a não ser contar com a sorte, seus pequeninos olhos quase fechados pairaram sobre a sua própria imagem, ela olhava para suas mãos e de volta para o seu corpo, em instantes Nicole a viu se esgueirar e parar novamente ao lado dela mesma, seu dedo tocou a palma da própria mão em espírito, sua mão carnal reagiu quase instintivamente. - Como usuários de magia nós podemos enxergar muito mais além do que os outros, e também ela necessita que façamos isso, que a vejamos... Assim ela nos diz onde há algo errado. Entende? Nicole tornou a encará-la, a expressão do rosto vazia enquanto ela mesma se tocava parecendo atônita. Era tão
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estranho não sentir nada ali, mas ao tocar o próprio corpo sentir milhares de coisas... Ela recolheu a mão. - Podemos falar com ela? Podemos ouvi-la? - Infelizmente não, essa parte não nos é concedida infelizmente, mas ela pode mostrar com olhares, expressões, gestos... Só tivemos certo hesito na cirurgia de retirada de parte da lâmina de seu abdômen por que ela nos indicou, bem de certa forma ela demonstrou onde sentia mais dor. Por sorte Jensen não perfurou nenhuma veia ou artéria importante... - Do que tanto falam em segredo? Será que podemos saber? – Elisa nos encarava, tinha uma certa curiosidade por cima daquela carinha triste, sem perceber todos havia se retirado do quarto restando apenas Dean e Elisa junto ao outro casal Nicole e Erthur permaneciam inalterados diante da paciente inconsciente. Ambos se encararam por um breve instante, antes de encarar Elisa. - Podemos vê-la Elisa... Sabemos que ela está aqui, está nos observando e eu estava explicando isso a Nick, pois ela não entendia ainda. - Espero que ela esteja bem... Pena não poder falar nada, maldita barreira invisível! – Elisa agarrou-se ao pé da cama, mais diretamente falando na grande desta, os olhos fitando o lençol de cama.
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- Ela está bem... Por enquanto! Não há indícios de que sinta dor, apenas a mesma reação de sempre, ficar parada a nos observar e olhar para si mesma. Todos voltaram seus olhos para Madde, seu espírito fez o mesmo e depois dando a idéia de um suspiro voltou-se para trás e sumiu na escuridão do quarto, sua imagem alva como a lua deixou a todos quase totalmente invisível e alheia. Algumas horas mais tarde quando tudo repousava na mais ininteligível calma, Nicole deixou seu quarto, os corredores até algumas horas mais cedo apinhados de jovens aprendizes e de vampiros que se uniram à ordem agora estava tão vazio e solitário que arrepios assaltavam a pele da bela e formosa Nick, os cabelos soltos caiam-lhe por sobre os ombros amorenados cercados de finos traços das marcas da magia impregnada em seu corpo, sua face de sereia mística de grandes olhos azuis reluzia a própria oleosidade na luz das lâmpadas, traços finos tribais lhe esculpiam e modelavam o belo rosto de anjo, era interessante ver tais detalhes tão bem explícitos aos olhos alheios, como seria andar pela cidade com a face coberta de tatuagens assim como o restante do corpo? As pessoas com certeza deviam de achá-la um mal exemplo para as criancinhas pequenas, quase sempre diziam “Olhe... Não seja teimoso ou marcarão sua pele como a daquela moça” ou “Tão bela e formosa agora de pele manchada... Que pecado”. As pessoas tendiam a ser assim, perfeccionistas demais, fofoqueiras demais, criticas demais... Nada nunca estava em ordem para elas, mas para Nicole estava tudo bem, tudo na mais perfeita 285
ordem, era assim que ela era, uma rebelde natural e não pensem que foi por querer que ela ou Erthur conseguiram as marcas que tem na face hoje, isso tudo advém de vários anos reclusos de treino em grupo ou individualmente, paciência é a maior das companhias, isso ela atesta e assina em baixo. Ao seu lado direito portas e mais portas estendiam-se e ela nitidamente nostálgica procurou sentir o frio nas paredes, como se o mesmo frio de pedra não lhe pertencesse também. Vagas lembranças interessantes devem ter-lhe assaltado a memória, pois a partir do momento em que ela tocou a superfície pétrea que era o muro fechado a sua volta sorrisos abriram-se em seus lábios assim como também a lembrança de momentos difíceis. Ela parou, um entalhe grande e perfeito marcava a parede, seus dedos antes sem movimentos tocaram sutilmente a fenda, primeiro com minúcia e depois com mais e mais atenção até que sua face se tornasse tensa como se com dor... - Nicole? – A voz serena e doce que ela desejava ouvir a chamava logo de algumas portas mais a diante. Os olhos azuis cintilando o púrpura suave fitavam-lhe com certa curiosidade. Nick voltou-se para a sua frente fixando seus olhos na personagem que se projetava a cada instante a passos largos e sutis. Elisa para ela assemelhava-se a uma menina que estava aprendendo balé, seus pés graciosos roçavam no chão quase como se não precisasse deste para se locomover.
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- Algum problema? Por que encaras com estranheza a parede? – Disse prostrando-se ao seu lado infantil e graciosa. - Não... Não é nada! Este lugar inteiro me lembra coisas... Ainda não sei se me recuperei de todas aquelas más lembranças. – Os olhos vagos dela tornaram a encarar a bruta fenda feita pela força da espada de um invasor. - Não sou só eu então a lembrar constantemente do passado! Mas isso já foi, já passou como disse... Eles não vão nos perturbar mais! - Eles não... Mas pode ser que essa nova ameaça, esse tal de Anic Kaine as faça ressurgir! – Seus olhos gentis voltaram-se para Lis, confusão, amargura e tristeza lhe invadiram o peito. – O que faremos se o mundo se colocar a prova novamente? Como ficaram as pessoas? Como nós ficaremos? As varias perguntas em seqüência de Nicole pareceram pegar Elisa de surpresa, seus belos olhos de menina por um instante deixaram-se perder na escuridão sombria de sua mente, um longo silêncio adveio deixando apenas o sopro gelado do vento assobiar pelos corredores. - Sabe... – Recuperando-se do momento inquietante que sua mente lhe estava proporcionando, Elisa quebrou o silêncio presente com um ar de curiosidade e graça. Ela sempre teve esse instinto, e se parte dele ela não tinha, aprendeu a desenvolvê-las com o tempo, esse era o grande trunfo dela. – Devíamos
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sentar e conversar... Sinto que estamos deixando passar “coisas” que para mim serviriam de distração... Nicole espantada com a mudança brusca de assunto não fez outra coisa a não ser concordar com o pensamento de sua amiga, ela mais do que ninguém sabia muito bem o que se passava dentro da cabeça de Lis. Aquele andar já trazia em sua estrutura grandes janelas bem guardadas, belas imitações das janelas das casas de campo com o diferencial das barras de ferro que garantiam segurança, ou pelo menos isso tentava passar aos desavisados. O quarto de Elisa era espaçoso e aconchegante, uma lareira ao fundo aquecia todo o ambiente de maneira sufocante, porém era amenizada com a sutil brisa da noite que adentrava a balançar as cortinas que encobriam a janela. Uma grande cama de casal no canto a direita trazia sobre seu grosso colchão um belo lençol azul adornado com bordados dourados, todos aqueles detalhes eram de sutileza tamanha que fazia parecer que o quarto não pertencia na realidade a ela e sim a seus pais. - Sente-se... Fique a vontade. – Lis disse enquanto sentava-se sobre sua cama cruzando as pernas que ficaram soltas no ar. - Bom gosto com os mínimos detalhes... – Disse Nick com um beicinho enquanto observava a tudo. – É digno de você mesmo isso! - Obrigado... – Ela respondeu sorridente. – Minha mãe me ajudou com tudo isso assim como Dean.
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- Como vão seus filhos, aliás? Esqueci-me de perguntar sobre eles! - Bem... Andam meio rebeldes as ordens alheias, mas estão perfeitamente bem. Reyard se parece demais comigo, impulsivo, temperamental e sensível... É o tipo de rapaz que toda sogra gostaria de ter... – Ela calou-se momentaneamente, a expressão facial séria se desmanchando numa gargalhada graciosa. Nick também achou graça e riu. - E a menina? - A cada dia lembra o pai... – Ela sacudiu a cabeça dando o ar de contrariedade. – Samantha um dia tornar-se-á sucessora dos bens de meu marido e acho graça que ela seja assim tão séria... Era para ser justamente ao contrario, Reyard ser o sério e Samantha a divertida... Er... – Ela suspirou enquanto deixava o peso de seu corpo cair sobre os cotovelos, à cama afundou imperceptivelmente com o peso. – Quando dizem que os filhos homens se parecem mais com as mães e as filhas mulheres mais com os pais não estavam para brincadeira! Nicole riu mais uma vez assim como Elisa... Mas de súbito essa felicidade não durou por muito tempo, os olhos de ambas se encontraram e tornando a ficar reta Elisa agora parecia não ter humor algum para nem mais uma graça. - Não foi para isso que você me convidou para entrar certo? Tem algo mais que querias conversar comigo e não conseguiu mais cedo. 289
- Exatamente! - Então o que seria tão importante para desejares falar comigo a sós? Ela olhou Nicole como se a examinasse, os olhos por um momento estreitos e perturbadores. - Eu preciso que salves a garota... A novata que Dimitri trouxe! Nicole a encarou com um ar petulante e desconfiado. - E por que eu faria isso? Elisa a encarou fria e secamente. - Ela tem motivos suficientes para por os planos dos recém-conversos a baixo... Ela sabe como evitar que Anic Kaine retorne.
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CAPÍTULO 16 A mudança era visível a qualquer um que quisesse se intrometer na conversa particular entre Elisa e Nicole. O rosto tenso da bela garota de cabelos negros e olhos azuis não se assemelhava em nada com a tensão que se via refletida no semblante pálido de Elisa. Seria de imaginar que ambas estivessem entrando em um conflito interno pessoal? Ou aquilo tudo era tão delicado que numa única conversa pudessem existir vários parâmetros a se escolher e depender? Eu não sei, não podia opinar e como Erthur disse, eu só posso indicar as coisas, há algo entre nós, uma barreira invisível como vidro que impede uma melhor comunicação e ninguém sabe o quanto isso me aflige. Se o que a anfitriã dizia ou deixava de dizer era verdade eu não sei responder, mas numa coisa eu tenho que concordar, eu precisava, eu desejava mais do que tudo na minha vida, eu ansiava por uma nova chance, por um momento só meu onde a vingança e a justiça se fariam minhas armas, poderosas e ao mesmo tempo letais para com todos aqueles que ousaram destruir tudo o de mais belo que tinha nas mãos... Eu precisava cumprir com o que eu jurei cumprir anos atrás, eu precisava proteger minha tia e minha prima, elas são a minha única família mortal. Além de tudo precisava também salvar a minha sanidade, eu sentia que esta se encontrava a beira de um 291
precipício sem fundo, tão escuro e sombrio quanto meus pensamentos e meus mais negros sonhos, precisava manter-me viva sobre a fina corda bamba que me mantinha ainda a salvo neste plano, pois se por acaso qualquer coisa acontecesse, poderia com certeza dar adeus a tudo o que já conheci e falhar diante do meu próprio juramento... - Não sei se é tão fácil assim cumprir com o que me pedes Lis! Há muita coisa em jogo, muita coisa a ser envolvida e eu sozinha não posso resolver o caso dessa garota... Seria necessário juntar a minha magia com a de Erthur e Eleazar e mesmo assim algum de nós sairia muito esgotado do processo... - Então vamos... Está resolvido, irás se unir a Eleazar e ao Erthur acho que até o final da noite estará tudo resolvido! - O que... Não... Elisa não, você me escutou? - O que é agora? Qual o problema? - Eu não posso... Não posso ajudar desculpe! - Lá vem você com desculpas... O que é agora? Nicole ficou ali, calada com a boca entreaberta e podiase ver em seus olhos que tentava achar as palavras certas para usar a seu favor. Nunca achei que medir as palavras funcionava, para mim isso era coisa de gente insegura e covarde... Bem... Não sei se posso dizer isso, mas essa garota não me cheira a confiança, pode ser que no passado ela tenha sido digna de tal trunfo, mas hoje... 292
Hoje ela tem um estranho brilho nos olhos, algo mais negro que a alma de um vampiro consegue carregar, algo talvez pior que o instinto assassino em suas veias. - Depois de tudo o que aconteceu a vinte e três anos atrás, depois que fui para a San’t Victor resolvi que esqueceria isso... Por mais que eu seja de ajudar eu não posso, não desta vez... Acho que nunca mais! – Ela nem sequer olhou nos olhos, que covardia... - O que? Por que? – Elisa parecia mais surpresa do que eu, mas isso não me abalou, não tanto quanto abalou a ela. - Desculpe-me Elisa, mas eu não posso... Nem posso também envolver Eleazar ou mesmo Erthur, seria arriscado demais, complicado demais... Aliás, não sabemos realmente se essa garota é quem diz ser, se Dimitri não está enganado sobre as ações dela... Sei lá, pode ser que estejamos em apuros sem saber... - NICOLE? – Berrou Elisa e deu para sentir a infantilidade em sua voz de eterna adolescente. - Por favor, Lis... – Ela engoliu em seco. – Não me peça de novo! Mas que calhorda safada! Por um momento, um estranho e desconhecido momento o silêncio imperou entre as duas. Decepção misturada a uma estranha amargura e desconfiança afundou o semblante esperançoso de Elisa tão drasticamente que era possível de se sentir do outro lado da base, seus 293
olhos focaram-se no vazio, perdidos, desligados enquanto Nicole baixava o seu. Juro que tive vontade, até tentei ir para cima dela e agredi-la, mas não iria dar em nada, minhas mãos não chegariam a causar nem mesmo cócegas na ordinária. - Me desculpe Lis... - Sai do meu quarto... - Elisa! – Sua testa franziu em confusão. - Eu to pedindo... Sai... Do... Meu... Quarto Nick! Agora... – A segunda frase dita pausadamente. Nicole não teve nem sequer tempo para pensar ou responder, acho que sua língua até travou em algum ponto nas desculpas estapafúrdias que quis dar a melhor amiga, Elisa não estava encarando ela, seus olhos fitaram o chão sem vê-lo na realidade, a sombra em seus olhos era de causar estranheza e certa dor. ‘Traição... O dicionário descreve como ato ou efeito de trair, perfídia, deslealdade...’ Não sei se é a melhor palavra, mas soaria como uma boa descrição no caso. Nunca ninguém recusou nada, nunca ninguém sequer desafiou Elisa em todo esse tempo, mas pela primeira vez – como há de ter em todo momento – houve uma oposição, e ela não esperava que viesse logo de sua melhor amiga, a única capaz de salvá-la anos atrás e que poderia salvar a minha vida... Eu aprendi a não confiar nela, não mais como antes!
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Nicole estagnou, suas pernas incapazes de se mover da atual posição, pés tão fincados ao chão que pareciam congelados, fixos como vigas de concreto. Elisa saltou de sua posição firme como uma rocha, os olhos sempre baixos numa atitude que me lembra aquelas personagens de filme de terror em que não se tem a mínima chance de encarar nos olhos, o que dá outra impressão, se o fizesse viraria pó ou talvez qualquer coisa medonha de que se tenha conhecimento. Sua mão agarrou a maçaneta de uma só vez, o ódio crescente fazia fervilhar pequenas ranhuras cintilantes em sua face, sem saber ela estava chorando e aposto que isso era demais para Nick ver. Lágrimas abundantes cercaram seus olhos parecendo solidárias as pequeninas gotas despejadas por Lis, logo uma estava de frente para a outra e a pequena diferença de tamanho era agora extremamente visível e plausível. Nicole Branag era altiva, andava e ficava de pé como uma modelo, era digna de pena por seu maldito porte extravagante se achando a perfeita em tudo. Elisa Salazar Staps era tudo ao contrário, desengonçada, infantil, pequena... Mas de um bondoso coração do qual nunca se terá descrito em toda a história. A porta se fechou atrás de Nicole, mas antes que esta batesse me viu, seus olhos cresceram em espanto contínuo até que a fresta que conduzia sua vista a focarme estreitasse tanto que não fosse mais capaz de enxergar nada, isso me foi de grande valia, não gostava de ver ninguém sofrer por minha causa, era suficiente pra mim... Está pago na mesma moeda agora!
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‘Decepção... Malogro de esperança; desilusão, desengano.’ Acho que não existe nenhuma outra palavra que possa melhor descrever os sentimentos que vejo afluírem pela corrente sanguínea de Elisa agora. Não é fácil pra ninguém suportar tal situação, acho que se fosse eu em seu lugar com certeza teria tido a pior de todas as reações, mas como não sou eu e muito menos estou na minha cidade de origem nem posso opinar. Seria uma falta de consideração fora a falta de educação. Elisa lentamente se deixou cair sobre a cama e após alguns segundos desolada ali sentada a observar a porta tombou de lado sobre a grande e confortável cama e danou a chorar como uma criança amedrontada que acaba de receber uma má, muito má noticia. O ambiente ao meu redor ficou pesado, tanto que não conseguia nem raciocinar, apenas olhar espantada para uma onda sombria que emanava dela. Bem... Digamos que ela sofre de uma espécie de dupla personalidade, aquela linda garotinha no auge dos seus aparentes vinte anos, de belos olhos azuis e sorriso pueril e aquela mesma garota só que vingativa, cujos olhos de um tom cintilante semelhante ao púrpura desejavam a liberdade lutando incondicionalmente por um espaço, era assim que eu a via ali diante de meus olhos. Tão forte e ao mesmo tempo tão fraca, livre ao mesmo tempo em que aprisionada, acorrentada por sombras dominantes e sufocantes, eu não sei o que faria se fosse eu no lugar dela, não dá para comparar! Seu corpo 296
tremia enquanto encolhia-se como um bebê sobre os grossos lençóis, seus cabelos tornando-se um bolo emaranhado de fios. Eu desisto! Realmente desisto... Fechei os olhos o mais forte que pude, uma fina dor acompanhou-me enquanto novamente abria os olhos para me encontrar no meio do pátio central da base, o céu de um azul marinho forte e inamovível não me trazia paz como esperava, as palavras de Nicole ainda estavam ricocheteando dentro de minha mente como chicotes afiados incrustados de espinhos semelhante aos das roseiras, rasgavam-me de dentro para fora dilacerando minha humanidade mais do que já estava comprometida, percebi que vinha de dentro de meu coração, a decepção de Elisa se fez muito maior em mim do que nela, eu jurava que teria encontrado alguém que poderia me trazer de volta, mas esse alguém não era nem 10% digno de minha confiança, pelo menos não mais... Pisquei os olhos e me encontrei em meu quarto, meu corpo intacto sobre a cama aparentava serenidade, a mão enfaixada começava a cicatrizar eu podia ver através das ataduras que as envolvia. Não sentia dor, isso era bom, mas por quanto tempo iria durar? Por quanto tempo iria permanecer assim tão serena? Algo se moveu, pavor me fez reagir, mas rapidamente recuei, não havia com que se preocupar, era Danov que vinha sentar-se ao meu lado seus olhos desajustados meio cansados pairando sobre meu corpo esperando alguma reação, mas eu não podia fazer nada, meu espírito não conseguia voltar para o corpo. Senti-me como naquele filme com Reesee Whiterspoon onde ela sofre um grave acidente e sem saber fica por ai vagando até que encontra o cara que a faz voltar, etc e tal já sei o final da história e não sei 297
exatamente se o meu fim vai ser semelhante! Seus olhos vagavam tão perdidos sobre minha face, tão tristes que eu mal conseguia permanecer ali, a culpa o flechava quase intermitentemente e isso de certa forma foi culpa minha, eu não devia ter me deixado levar pelo cretino que fez isso comigo, pena-o ter morrido, queria eu me vingar eu mesma daquele idiota cafajeste. Deixei novamente o quarto agora para me reencontrar diante da lua, o pátio àquela hora da noite estava vazio e silencioso, a brisa gelada sacudia as copas das árvores causando um lamuriante rumorejar das folhas e galhos que iam um de encontro com o outro, desenhos diversos se formavam no solo a partir de suas sombras. Era fascinante! Era triste e chato. Algo me chamou a atenção dentre os grossos troncos de árvores, um vulto sinistro mais claro que os vultos dos soldados que volta e meia apareciam para sua ronda noturna, uma sombra que assim como eu estava aprisionada naquele estado de alma vagante, mas aqueles olhos, aqueles sinistros olhos vermelho cobre não eram comuns, nem mesmo aqueles longos cabelos grisalhos num rosto tão jovem... Eu reconhecia aquela forma de olhar, aqueles trejeitos, a maneira de se por de pé e de se escorar num tronco relativamente baixo, o sorriso matreiro, as presas... - Anic? – Pensei que seria um sussurro, mas saiu na altura de uma voz normal a chamar por alguém. Ele sorriu e aquilo me assustou, não podia ser quem eu estava pensando, eu só podia estar sonhando é isso, logo iria acordar e me veria em meu quarto lá no número 608 298
em Bucareste, ainda estaria chateada com Danov, mas isso seria bobagem. Eu só poderia estar em um novo pesadelo, só podia ser. - Não você não está num pesadelo! A sombra desapareceu dentro das sombras das altas árvores, eu pisquei algumas vezes até conseguir entender e reconhecer o local olhei para trás e vi que não estava nem um pouco próxima do pátio principal, de alguma forma eu tinha sido puxada para dentro de uma floresta e de repente reconheci o lugar, era a floresta em que eu costumava caçar. Eu nem sequer estava nos Estados Unidos mais... Senti-me repentinamente pesada, meus pés cederam assim como minhas pernas e minhas mãos vieram ao chão sustentando todo o peso restante, lágrimas escorreram de meus olhos manchando minhas mãos com pequenas gotículas transparentes, a luz da lua não era capaz de desanuviar a escuridão que me circundava. A voz se tornou mais próxima. - Não tentes resistir filha... - Não me chame de filha... – Grunhi. Risadas profundas e guturais deixaram sua boca perfeita, meus olhos fracos apenas conseguiam se fixar nos lábios e olhos, medo me fez afundar ainda mais até que meu rosto deixou-se tombar sobre o montante de folhas secas diante de mim. Seus pés vieram de encontro com meu rosto, porém ficaram a uma distancia segura de um metro ou dois, sou péssima com relação à metragem. 299
- O que fizestes comigo? - Eu? – Ele pareceu realmente surpreso. – Nada... Não fiz absolutamente nada! Não tenho a intenção de lhe fazer mal algum minha criança. - Não me chame de criança seu... - Olha... Não penses assim de seu co-criador! - Você não é nada meu... Deixei-me ir... Deixeme em paz! – Choraminguei e me arrependi de como aparentei ser tão fraca. Mais uma vez ele riu de minha fraqueza e mais dor isso me provocou. - Não lute contra os seus instintos minha pequena criança, não lute contra a sua descendência... Não negues o sangue que corre em suas veias. Você verá... Todos os que se opuserem a ti ou a mim serão reduzidos a pó, a começar por aquela intrigante e tão ignorante garota dos olhos felinos. Meus olhos cresceram em descrença, senti meu peito doer e a respiração repentinamente ficando curta, a minha volta o cenário de repente começou a tremular e sacudir, a intensidade dos movimentos fora tão forte que tive uma vontade louca de vomitar, mas contive-me, fechei os olhos e esperei que tudo acabasse quando de repente me encontrei num grande quarto, a luz amarela do abajur próximo de uma cama de casal cujo lençol vermelho carmesim cintilava belos tons dourados também iluminava o espaço ao redor, até agora não 300
habitado. Achei a princípio estranho, porém logo após levantar-me deparei com a sombra de alguém estacando de susto atrás de mim, um caminho camuflado, uma porta num pequeno corredor e de repente percebi que estava no quarto de Nicole e que está havia acabado de tomar banho pelo aspecto úmido de seus cabelos. Ambas nos encaramos por um longo tempo e ambas assustadas, acredito que eu estava ainda mais assustada que ela. Mas ela nunca ia notar, eu acredito que ela podia me ver, mas ao jovem homem atrás de si não... - Não... Deixe-na em paz! – Minha voz saiu tremula e baixa, ela me encarou franzindo o cenho. - Calma... Eu também não posso fazer muita coisa sem o meu corpo... Mas posso te mostrar o que nós vampiros ou meio vampiros podemos fazer! - NÃO... No exato instante seguinte após dar três passos na direção da penteadeira Nicole tombou, seu corpo inteiro retesado bateu contra o chão como um bloco pesado de pedra deslocado, gemidos altos e agonizantes saltaram de seus lábios grossos suas mãos fecharam-se em punhos tremendo como varas verdes. - PARE... PELO AMOR DE DEUS PARE! Anic deixou de olhá-la, porém não deixou de fazê-la sofrer, repentinamente senti algo percorrer a superfície de minha pele de baixo para cima, unhas me cortaram a pele enquanto delineavam um caminho único até o peito, 301
dor se aprofundou dentro de mim quando aquelas sombras adentraram-me a alma corrompendo-me, deixando-me mais indefesa do que eu já estava. Cai por terra, o ar faltando assim como a razão dentro de minha mente, os gritos ficaram ainda mais altos e os olhos estreitos de Nicole abriram-se para ficarem de frente com os olhos ameaçadores de Anic Kaine, um dourado flamejante fulgurando de suas belas íris cor de mel. Eu senti o medo através do corpo dela, cada grama da dor que ela sentia eu era capaz de sentir refletidas em mim. Tentei levantar-me e engatinhar na direção dela, mas seja lá qual força demoníaca Anic tinha posse me puxou de volta para o chão, meus gritos abafados pela primeira vez pareceram ser ouvidos de longe, não, não foram os meus gritos e sim os de Nicole que trazia em seu rosto veias de grosso calibre saltando, vibrando e se esticando como elásticos extremamente tensos, um forte rubor adornou a pele de sua pálida face e lágrimas escaparam de seus olhos. Meu corpo, ou diríamos alma, foi arremessado do outro lado do quarto minhas mãos separadas do corpo pareciam estar sendo cravadas contra a parede, eu podia sentir a mão lesada doer novamente assim como o ferimento em meu abdômen, meus pés pouco afastados um do outro tremiam no ar o mesmo ar ficando cada vez mais sujo com o odor do medo, da dor, do sofrimento, não podia ser igual a ele, ninguém era como ele tão frio assim, tão sagaz... Droga... - Por favor, por favor, por favor... Pare...PARE! – Implorei deixando meus olhos bem fechados, eu revia toda a cena da chegada alegre daquela garota estirada bem abaixo de mim sofrendo horrores por nada. De repente eu vi refletidos em minha mente a imagem da 302
bela mulher que era minha tia, o sorriso de satisfação por me ver novamente, a cara enjoada de Mirage reprimindo um sorriso curioso, ambas minhas únicas parentes de sangue e as únicas por quem ainda tinha certo apresso. Algo vibrou dentro de meu peito e senti a escuridão repentinamente se esvair como lama e sangue na chuva. - Pare... Cenas de meu passado fulguraram diante de meus olhos marejados e de visão borrada, meu coração bateu mais rápido, as feridas sendo curadas de dentro para fora, fúria subindo por cada veia de meu corpo real em algum canto. Todas as forças convergiam para mim e isso chamou a atenção de Anic que a cada segundo trazia mais e mais dor ao – agora – frágil corpo da garota ali diante dele ao chão. - Ora, ora... Mostre-me, ponha para fora essa sua força. Mostre-me o quão forte podes ser! – Deleitava-se ele em me ver irada. - Pela milésima vez... Pare! Ele não o fez, ao contrario, eu podia ouvir o coração da pobre Nicole saltando dentro de seu peito, dor tornando o aspecto de sua face mais rígido que o mármore, mas amedrontador que os demônios em meus pesadelos... Um estranho redemoinho envolveu todo o quarto, a porta abriu-se de repente, Erthur surgiu ali e tentou se aproximar assim como Dimitri, Salazar e outros muitos vieram, mas nada podiam fazer, uma onda quente e pavorosa de força deixou-me as entranhas e atingiram 303
Anic em cheio o arremessando com uma bruta força contra a parede que rachou, todos olharam para os dois cantos onde nos encontrávamos rachaduras em linhas regulares e irregulares desenharam formas indistintas em ambas as direções, Anic não teve chances de revidar, uma nova explosão de poder despejei e tudo de repente desapareceu, tornou-se desfocado para mim, minha alma tombou já sem força alguma, nada de Anic Kaine, nada de sofrimento... Eu nem sequer conseguia escutar a respiração de Nicole... Mas onde diabos fui parar?
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