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3.2.1 As práticas espaciais militares do cangaceiro
Foi defendido até aqui que o personagem estudado produziu uma multiterritorialidade. As urdiduras de territórios em redes proporcionaram o estabelecimento de zonas de atuação, isto é, uma maior frequentação em dadas áreas, construindo um território zonal, que por sua vez estava articulado através do território em redes de apoio. A territorialidade em rede não se contrapõe à territorialidade em zona, ao contrário, suas existências são relacionais e, portanto, indissociáveis. As zonas se constituem pelo adensamento e duração no tempo de dadas redes de relações e proteção. Para o cangaceiro, as redes de maior durabilidade proporcionaram a espacialização do bando em uma dada zona, como o sertão do Pajeú pernambucano ou o Cariri cearense. Tanto as redes como as zonas devem ser concebidas como estando sempre em transformação, pois suas tessituras receberam diversos deslocamentos ao longo dos anos e, consequentemente, o valor atribuído a uma dada zona variou com o tempo, tal como explicado na mudança espacial emergencial empreendida pelo dominador do cangaço. Agora interessa compreender a relação do cangaceiro com o substrato material dos espaços. Souza (2009) define o substrato espacial material como formas espaciais, os objetos geográficos tangíveis (serrotes, matas, feições “naturais” etc.), ou seja, a matéria que serve de suporte e referência para as práticas sociais e para a configuração de espaços territoriais. O autor lança mão desse termo como um esforço de separação do que ele chama de espaço concreto (matéria, objeto), do espaço social (constituindo pelas relações humanas). Pensamos ser interessante usar esse termo como distinção conceitual, uma vez que o substrato material não pode ser confundido com o espaço, já que o último é sempre social, sendo resultado da junção e interação da prática humana com os substratos materiais. Como Lampião se antecipava e selecionava o substrato espacial material como instrumento estratégico e tático de combate criando emboscadas para as forças volantes? Como as práticas de intervenção espacial podem explicar aspectos militares no cangaço? Para tentar responder a essas questões, trago o exemplo de uma das maiores batalhas enfrentadas pelo bando de Lampião: a batalha de Serra Grande, em 1926. Em novembro de 1926 a plataforma política de combate ao banditismo lampiônico já havia sido anunciada pelo futuro presidente pernambucano Estácio Coimbra, e o comandante das volantes no interior do estado, Major Theóphanes Ferraz Torres (conhecido na história do cangaço pela captura do cangaceiro Antônio Silvino, em novembro de 1914), objetivava mostrar serviço ao novo chefe, dando maior liberdade e incentivo para as forças volantes