EXCLU SIVO HEID EGGE R: CA DERN OS NE GROS REV
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ano 17 julho 2014 R$ 13,50
17 ANOS
ELAD OS
www.revistacult.com.br
RACIONAIS MC’s
DOSSIÊ E ENTREVISTAS
A VOZ DE TROVÃO ANTICORDIAL
O GRUPO QUE MARCA UM ACONTECIMENTO POLÍTICO DENTRO DA CULTURA COMPLETA 25 ANOS
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editorial
Milagre cultural Existe a compreensão de que é uma atividade insana editar, no Brasil, uma revista de cultura. Ainda mais sem apoios ou chancelas governamentais e sem contatos em altas esferas políticas – algumas publicações surgem apenas como projetos de captação de recursos estatais, o que deveria ser considerado crime. Em nome da cultura batem a carteira do povo e colocam em circulação projetos grosseiros, incoerentes e desnecessários. Há alguns anos comecei a colecionar esse tipo de publicação, pensando, um dia, escrever uma matéria a respeito. A pilha é enorme e a pauta permanece. Acho que a população, que nunca é consultada, gostaria de saber quais “projetos culturais” ajuda a financiar. Esta revista, por princípio, é independente e não faz acordos conchavados , não tergiversa o conceito de conhecimento. Muitas vezes leio comentários nas redes sociais de que o preço de capa é alto. A verdade é que nossa planilha de custos contempla fornecedores, folha de pagamento, impostos, e nunca fecha no lucro. Confesso que a revista apenas se paga, nada deve, o que é considerada façanha editorial... infelizmente conseguir pagar as contas em dia é sinal de sucesso! A independência é a fortuna. Nesta edição de aniversário o Dossiê é dedicado ao Racionais MC’s, grupo que completa vinte e cinco anos anos e contribuiu para legitimar a voz dos expulsos e dos excluídos. Mano Brown é sábio. O Racionais tem uma importância imensa para a cultura brasileira e os textos publicados aqui sustentam a afirmação. As entrevistas foram concedidas individualmente em quatro dias diferentes e, para as fotos, convidamos Daryan Dornelles, que veio do Rio de Janeiro especialmente para o trabalho num “bate-e-volta” inacreditável. A assessora de imprensa do grupo, Ana Paula Alcântara, profissional correta e dedicada, nos ajudou na realização desse trabalho difícil e imprevisível. Enfim, contrariando as estatísticas, a CULT completa dezessete anos neste mês de julho, o que a torna a revista de cultura mais longeva do país. Para a surpresa de muitos, inclusive minha. Comemoramos com muita alegria esse milagre. Boa leitura, Daysi Bregantini
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dossiê Racionais MC’s entrevistas 28 | Foucault entre 32 nietzsche, marx |eMano brown: “eu walter benjamin questiono porque não basta ser”
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| a estrutura da evolução de ice blue
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| a liberdade criativa de KL JAY
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| o peso da mensagem de edi rock
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| acompanhados pela música
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| dossiê/ a voz e a música do racionais
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| dossiê/ negro drama
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| dossiê/ racionais Mc’s: sublime escravo à beira do caos
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Bandidos do céu
O discurso complexo, a poesia anticordial, a música dura e seca. Receita que comove, fortalece e dá voz ao porão
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ona Ana Soares Pereira batizou seu filho único com o nome de Pedro Paulo, em abril de 1970, no bairro paulistano da Liberdade. Por munição pesada e certeira, astral marginal, talvez por gosto divino, muito amor e muita raiva, ou mesmo por tudo isso e mais um talento extraordinário, Pedro Paulo deu à luz Mano Brown. E, com ele, o Racionais MC’s, integrado também por Ice Blue (Paulo Eduardo Salvador), Edi Rock (Adivaldo Pereira Alves) e KL Jay (Kleber Geraldo Lelis Simões). O dossiê desta edição reflete sobre a trajetória de um grupo musical incomum, formado de insanos revolucionários, que, “seguindo a mística, completa vinte e cinco anos contrariando a estatística”. n°192
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Mano brown: “eu questiono porque não basta ser” n°192
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Entrevista
mano brown
endrigo chiri BRAZ
CULT: Qual sua memória musical mais antiga, o primeiro som que lembra que bateu forte quando era moleque? MANO BROWN: Acho que foi aquele som que eu fiz “Vida Loka − Parte 1” [musica do disco Nada como um dia após o outro dia, de 2002] em cima, do Liverpool Express, “You are my love”. É um som que lembro que gostei há bastante tempo. Que idade você tinha? Tinha uns seis anos, estava no colégio interno, por isso que eu lembrei. E que tipo de som rolava na sua casa? Era uma casa musical? Na minha casa não tinha aparelho de som nessa fase, e eu estava no colégio interno. Quando voltei pra casa, minha mãe tinha um dois em um, era AM e toca-discos, pequenininho. Faz tempo isso aí... nos anos 70 a gente não tinha quase nada. Com quantos anos você voltou pra casa? Com oito e meio, quase nove. E que extrato tira desse período de colégio interno? Eu tenho TOC de arrumação até hoje [risos]. Se o tênis estiver torto, tenho que arrumar. A roupa, a toalha, a roupa de cama, tem que estar tudo dobrado. É herança de lá isso aí. Por que o Pedro Paulo decidiu virar rapper? Não foi bem uma decisão, começou como uma brincadeira. Eu estava sem fazer nada, desempregado e tal, e não tinha nada que chamasse a atenção de ninguém também. Quando começou essa onda de rap, nos bailes, a gente começou a ouvir falar nas rádios, e ouvi falar que estava tendo um concurso, mas não participei. Só fui participar do terceiro concurso, quando fiz minha primeira letra. Era uma grande brincadeira, coisa de festa, de moleque. Uma coisa de você poder subir no palco e chamar a atenção das minas, no máximo; não tinha uma pretensão de “ah, vou fazer a revolução”. Com dezessete pra dezoito anos você não pensa nessas coisas, não naquela época. Quanto tempo depois surgiu o Mano Brown pra valer? Não muito depois... Eu também não tinha muito a perder, e nem tinha pra onde ir, certo? Com a terceira música que fiz ganhei um concurso no salão, e despertou uma certa cobiça a partir daí, de pensar um pouco maior. Ganhar o concurso era pouca coisa mas também não era nada. Depois a gente estava na São Bento [estação do metrô de São Paulo
que foi berço do hip hop brasileiro no final dos anos 1980] e fomos convidado pra entrar no lugar de um cara que tinha faltado na gravação de uma fita demo. Eu cantava sempre no latão da São Bento, comecei a fazer fama ali, aí o cara da demo chegou perguntando: “Quem são os caras do Capão que rimam pra caralho?”. Aí apontaram pra mim e foi assim que aconteceu. A gente foi num apartamento no Edifício Copan e chegando lá estavam o KL Jay, o Edi Rock, Os Gêmeos, que eram uma dupla de rap [famosa dupla de grafiteiros paulistanos], e a gente gravou aquela demo, que não foi pra frente. Na época eu cantava com o Ice Blue, e o Edi Rock e o KL Jay eram uma outra dupla. E sua mãe? No começo ela gostava? Escondi da minha mãe um bom tempo. Aí passou um tempão, apareci em casa com um disco gravado e mostrei pra ela, que nem sabia que eu cantava. Você já tinha parado de estudar nessa época? Já tinha. Fazia tempo. Então não é que você estava trocando uma coisa pela outra... É. Eu podia estar fazendo coisa errada, né? Daí eu fui gravar música. Quando minha mãe viu minha cara no disco, ela não acreditou. Você achava que o Racionais chegaria onde está ou foi muito além? Foi além, mas eu sabia que ia ser foda. Eu sabia como ia cantar cada ideia, tal batida, como ia parecer o som, só não sabia que ia ficar do tamanho que ficou. Eu sabia que quando a gente chegasse com aquela ideia, seríamos os primeiros, e que quando as pessoas parassem pra ouvir, não iam largar mais. E foi assim, mas não que nem é hoje, que realmente às vezes me assusta. Não esperava mesmo... mas lá atrás, em 90, sabia que não tinha ninguém como nós no Brasil. A gente não era nada mas a gente era diferente de todo mundo. Eu sabia que se levasse a sério, se desse continuidade, poderia ser alguma coisa, tinha essa noção. E quanto tempo depois começou a ganhar dinheiro? Eu vi dinheiro mesmo com “Homem na estrada”. Antes disso era couro de rato, trocando moedas. Os carros quebravam pra caralho, tudo o que ganhava, gastava. E o Brasil era difícil também. A gravadora era pequena, a gente vivia com problema financeiro sério, que nem o Santos [Futebol Clube, time do coração de Brown]. Quando lançamos “Homem na estrada” e “Fim de semana no parque” [do disco Raio-X Brasil, de 1993] n°192
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que realmente virou outra coisa. Foi quando a gente mudou os temas, parei de falar só do movimento negro pra falar mais da periferia. Aí já estava perto do que calculei. Não onde está hoje, mas “Homem na estrada” estava perto do que eu calculei naquela época. Eu morava num barraquinho aqui nessa rua, numa casinha de um cômodo e meio. Um dia saí na rua e estava tocando “Fim de semana no parque” em três casas diferentes. Minha música... na minha rua... Alguma coisa estava errada, entendeu, ou estava começando a ficar certa. Ali cresceu. E como vocês estão planejando comemorar os vinte e cinco anos do Racionais? Eu não pensava em comemorar nada, mas também sou obrigado a reconhecer que vinte e cinco anos são vinte e cinco anos; vinte e seis já é outra fita, não é a mesma coisa. Então vamos comemorar, tá bom. O disco novo do Racionais sai este ano ainda? Eu tenho muita música fora do Racionais, e talvez tenha que apelar para esse arquivo para colocar no disco do grupo. Tem bastante música para o meu disco solo, algumas servem para o Racionais, mas vai contrariar muito a lógica. Por quê? Seu disco solo está indo por outra linha? Não quero ficar chato, morou? Tem previsão de lançamento? O Racionais está na frente, tem prioridade no momento. E o Racionais exige um pouco mais, vai precisar dar uma atenção. Os outros integrantes do grupo também têm seus projetos solos. É bom pro Racionais em que sentido? Fortalece o individual, fortalece a pessoa. E grupo é uma parada ótima para você esconder falhas também. Todo mundo é capaz de se sustentar fora do grupo. É bom isso, essa independência dos quatro. E como está o esquema de produção hoje? Está mais fácil trabalhar, produzir, gravar, fazer show desde a abertura da Boogie Naipe Produções [escritório próprio criado em 2009 para cuidar da produção do grupo]?
Está mais organizado. Mais fácil não, a luta é a mesma, mas com mais organização você consegue enfrentar os adversários mais fortes. Os resultados são melhores. Por exemplo, a gente fez duas festas no Rio de Janeiro, na Fundição Progresso, com cinco mil pessoas cada. Mas a gente podia se foder também, podia não ir ninguém, mil pessoas só, fracasso. E fracassar no Rio decreta o fim, porque é dali para frente. Igual a São Paulo. São cidades formadoras de opinião, e só com organização você consegue fazer isso acontecer. O Racionais foi vítima de muita desorganização ao longo dos anos. A ideia de centralizar é justamente pra não passar nervoso na mão dos outros? Para organizar, na verdade. É um trabalho, eu gostaria que fosse aquela liberdade do começo, mas na verdade os tempos mudaram. Tem muita gente que espera por mim e espera de mim. Isso te cansa? Às vezes queria ser só o Pedro Paulo? Queria te responder com sinceridade, deixa eu pensar [pausa]. Às vezes sim, mas o Pedro Paulo talvez não estivesse vivo se não fosse o rap, então também não posso ter essa ingratidão. O Pedro Paulo está vivo até hoje por causa de rap. Quando eu conheci o rap, o Pedro Paulo estava fadado a morrer. E na verdade o Pedro Paulo nunca deixou de existir, mas ele poderia ter morrido em 1988. No sentido de “era o rap ou o crime”? É, exatamente. Não tinha para onde correr. O crime já estava virando uma coisa normal – meus amigos faziam parte daquilo. E, mano, se você vê os amigos em quem confia no barato, você acaba entrando. Se a primeira dá certo, você quer ir na segunda e aí você vai ficando frio, desacreditado, essa é a circunstância. Você está mais confortável na posição de referência pra molecada da periferia... Tem outras referências. Eu posso ser uma, mas tem muitas outras. Mais de cem, mil. Isso te incomodava antes. Está mais tranquilo hoje em dia?
Agora somos acusados de ser “governo”. Eu sabia que isso ia acontecer. 34
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Não é que me incomodava, eu não gosto é da cegueira. Você tem que estar com a visão 3D, entendeu? Todas aquelas ideias do começo dos anos 1990 foram muito importantes, elas são importantes, mas dali pra frente é cada um com seus problemas. Não pode ter esse negócio de grupo de rap ser ONG. A responsabilidade é de todos. Cada um tem que ter responsabilidade sobre si, então se a gente ficar nessa ideia de paternalismo de novo, “ah, vem que eu te ajudo, te dou cesta básica, te dou leite...”, isso aí é o que já se faz. Isso está errado, entendeu? Tira as pessoas da condição de igualdade... A condição de igual, de se sentir igual, é que traz liberdade às pessoas. Mesmo que esteja duro, não posso me sentir menos do que você porque me deu um quilo de açúcar, que merda... Não tinha que estar ninguém dando açúcar pra ninguém. É o mínimo que tinha que ter. Seu processo de composição mudou nesses vinte e cinco anos? Eu componho aqui, com vinte caras fumando maconha e conversando junto. Já compus muita música também na cama da minha casa, sozinho. Componho de qualquer forma. Mesmo com bagunça? Bagunça vira música para mim, vira letra. Você está satisfeito com as coisas que conquistou até agora? Eu não sei o que eu conquistei. Eu sei o que eu fiz, eu estou bem, não me arrependo de nada não. E no profissional? No profissional dava para ter crescido mais, dado um passo além, mas era tudo muito atrasado, muito difícil aqui no Brasil. Era tudo muito turvo. Não tinha uma grande proposta que me confortasse. Tudo o que foi me oferecido ao longo da minha carreira foi perigoso. Não vinha dinheiro de uma fonte boa, tudo de fonte que eu não queria acumular. Agora seria uma boa hora para... Ó parceiro, vou te falar, hoje em dia já não penso nisso. Penso que eu preciso trabalhar, certo? Trabalhando eu
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como, bebo, durmo, visto e já era. Eu não penso na carga, no símbolo, no status de ficar rico. Mas sempre existiu essa possibilidade, e se eu não estou é porque não dei a atenção devida. Houve condições, mas não era aquele dinheiro que me orgulharia de ter ganhado. Eu prefiro vender sapatos, vender calça jeans, vender pão. Trabalhar com coisas mais palpáveis? Coisas que não sejam filosóficas, nem ideológicas. Viver de arte é sofrido? Não deveria ser. Por exemplo, se eu fosse um sambista, viveria de arte sem muita dor de cabeça, arte pela arte, e é muito respeitável por sinal, tá ligado? Como é o Fundo de Quintal, o Zeca [Pagodinho], o Revelação. São muito respeitáveis e não vivem nessa rota de colisão com filosofia. Eles vivem filosofias próprias, não deixaram que ninguém se apoderasse deles. Eles não quiseram ser a luz da humanidade. Houve ali um momento que foi colocado que o rap que tinha que ser a luz da quebrada, a luz da periferia, a luz dos caras. Uma coisa que veio de fora para dentro, que não foi denominada por nós. A mídia falou, a imprensa falou, os fãs falaram. Eu sempre gostei mais de ser o bandido do que ser o líder nas minhas músicas. Mais como um ombro do que como um mentor. Nada de ser mentor, sempre quis ser ombro, braço. Sempre quis ser braço. Você acha que isso podou o rap de certa forma, tirou a liberdade de experimentar outras coisas? Sim, mas politicamente era prioridade na época. O rap foi usado, e o Racionais de certa forma também foram. Com todo o cuidado que vocês tinham? É, fomos usados pela revolução, pela causa, a gente se deixou usar, entende? E os frutos disso nem sempre são bons? O fruto disso é a oposição, hoje aparece uns caras dizendo que a gente é do governo, porque a gente participou daquilo que era uma prioridade na época. Hoje em dia eu não sei se é prioridade. Não sei se é prioridade reeleger o PT. Não
Lógico que não esperava que viesse do Lobão n°192
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é uma coisa que a gente está ali de corpo e alma, mas na época era. Faça ou morra, tá ligado? Era isso, questão de prioridade, de praticidade. Era necessário pôr alguém lá que falasse algumas coisas que a gente pensava, e esse alguém era o Lula. E agora? Agora somos acusados de ser “governo”. Eu já sabia que isso ia acontecer. Lógico que não esperava que viesse do Lobão, que era um cara que estava do mesmo lado naquela época. Eu não sei o que revoltou ele, com certeza não fui eu, não devo nada pra ele. Não faço parte do governo. Eu participei porque era prioridade para o povo negro que o Lula ganhasse. E agora não é mais prioridade o PT ganhar? Não, já não é prioridade. Eu acho que as pessoas têm o direito de questionar mesmo. Eu não vou me deixar cair nessa, de defender antigas filosofias. Eu acho que filosofia existe para ser questionada. O Lula foi bom nos oito anos que ele... Foi muito bom. Por quê? Eu acho que o mundo precisava disso, e o Brasil experimentou isso. O Obama ganhou lá; e o Lula tinha ganhado aqui, certo? Depois uma mulher foi presidente. Mudanças drásticas! Num país machista uma mulher ganhar. Num país racista um negro ganhar. Aí o Lula, que era um cara limitado, semianalfabeto − tinha essa lenda que o Lula era analfabeto − ganhou. Era impossível o Lula ganhar, entendeu? Ele tinha perdido três eleições direto. Eu participei de todas. Era prioridade o Lula ganhar porque em 2002 era outro Brasil. Era prioridade. Tinha que ganhar. Era vital. E qual deveria ser nossa prioridade política agora? Isto é, a do povo que quer mudança. O povo tem que tomar cuidado para não ser manipulado nesse ímpeto político. Querer mudança é muito importante, mas tem que tomar cuidado para não ser manipulado. Porque, realmente, o povo quando quer, muda mesmo. A lição que eu tirei dos protestos do ano passado foi a que existe um povo. Existe um perigo, que pode realmente invadir Brasília. Pode acontecer. Era uma lenda que você imaginava rolar na Argentina, mas no Brasil nunca. E o Brasil mostrou que se quiser, faz. Então é bom todos ficarem bem espertos com isso. Mas tem que tomar cuidado para o povo não ser manipulado, tirar um do cargo pra colocar outro no lugar, 36
virar massa de manobra. Como o Racionais também pode ser, se nos deixarmos ser, entendeu? Cada vez mais esportistas e artistas estão indo pra Brasília, se envolvendo na atuação política direta. Acha que é um caminho possível ou existem outros interesses envolvidos, como dinheiro? Eu não acredito que ninguém faça mais nada só por dinheiro. Não é só o dinheiro que conta hoje. É influência, é fazer parte. As pessoas estão lutando pra fazer parte das coisas, né? Nos dias de hoje as lentes estão viradas para essas pessoas mesmo. Então está todo mundo olhando para elas, e a informação é muito rápida. Ter um dinheiro indevido na mão é muito perigoso para qualquer um: pra rapper, pra sambista, pra jogador... Não é só o dinheiro. É estar perto. Os cara chamam de network. É o caldeirão da bruxa. É o lobby, a antiga panela. Eu tenho um pouco de receio disso. Nunca quis estar perto do governo por isso. Fui chamado para muitas reuniões do governo e nunca fui em nenhuma. Não foi pra não se misturar mesmo... É que meu lugar não é lá, entendeu? Mas eu não escondo: a gente se posicionou a favor da eleição do Lula e ficou marcado por isso. Porque o Lula ganhou, fez a diferença e muita gente não gosta do que ele fez. Esses dias eu vi na internet: “É, o Mano Brown votou na Dilma!”. Eu votei na Dilma mesmo. Eu acho que oitenta e cinco porcento da população na época votou na Dilma, mas tem quarenta porcento que vai dizer agora que não votou... Como assim? E votaria na Dilma de novo? Questionaria. Ouviria os que estão em volta de mim. Eu ia parar para ouvir. Em 2007, no “Roda Viva”, você disse que a maioria já estava a favor do povo, que a periferia é a maioria. Eu queria saber de você o que é que falta ainda? Se envolver em Brasília, criar um partido político? É fazer muito mais fora de Brasília. A sociedade civil, as pessoas, os trabalhadores, os formadores de opinião, os jornalistas, os que fazem, os que escrevem, os que emitem opiniões, que têm contato com o público, eles têm força pra fazer o que o governo não faz. Verdade reta? É isso que tem que ser feito. Todo mundo sabe da sua obrigação. Esperar do governo é ultrapassado. Eu acho que o que tem que fazer é exigir do governo, não esperar. Se a sociedade souber o que quer, dificilmente vai ser enganada. Eu acho que o brasileiro flerta com muita coisa e não sabe exatamente o que quer. O brasileiro acabou de se descobrir, está consumindo
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pra caralho, está vivendo um momento que nunca viveu, entende? Se a sociedade quer mesmo lutar por hospital e escola, por que não se organiza pra pressionar o governo? Por que sobra para alguns caras, alguns estudantes, reclamarem disso? Porque o restante está acomodado. Mas às vezes não é só uma faísca que precisa para fazer o acomodado se mexer? Ah! Mas já tiveram várias faíscas. Está tendo faísca agora. Dever ter alguém que tá com o pé na vitrine agora, em algum lugar da cidade. Mas não gera pressão? É, tá, mas é isso mesmo? É hospital e escola? Ou são outras coisas e os cara querem pressionar o governo pra tumultuar? Qual o setor da sociedade que está preocupado com hospital e escola mesmo? Você sentia que as manifestações batiam aqui? Que a molecada da periferia se ligava? Olha, foi meio confuso... A gente ficava falando sobre isso aqui, se era certo ou não, se ia participar ou não. No começo parecia ser uma coisa bem clara, depois virou de muitos interesses. Muitas insatisfações até. Isso mostrou que o governo não estava tão bem quanto a gente pensava. Mas muitos motins pré-organizados surgiram, esperando pra poder pegar essa carona, e um movimento inocente foi manipulado. A que conclusão vocês chegaram? Que estava sendo manipulado. Que existiu uma pureza no começo, mas tinham manipuladores também. Nunca foi fácil, né? Mas não é melhor isso do que nada? Lógico. Para acordar, né? Acordou os que achavam que estavam protegidos... Se o povo quiser e tiver uma boa causa, ele vai pra rua e toma. Deu para ver isso. Agora, que não seja para agradar um setor, para tirar um do governo e colocar outro que é igual no lugar dele. Você vai continuar sendo peça.
E você gosta de futebol! Gosto para caralho e sofria com a Seleção. Não sei o porquê. É uma hora boa pra isso estar acontecendo aqui, acha que a Copa vai servir pra alguma coisa?
Jefferson D. Modesto
Qual sua expectativa para a Copa do Mundo? Não estou ligando... Engraçado, eu sofria com Copa e com a Seleção Brasileira.
Em Brasília, no Ginásio Nilson Nelson, durante show do grupo em 2012
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Vou te falar uma coisa: depois que chegou o metrô no Capão e depois que o Lula ganhou, nada mais parece ser impossível. [risos] O metrô chegar foi foda... O Lula ganhar também foi foda! Nada mais parece impossível. Tudo é possível. A Copa no Brasil? O que é a Copa, né? A Seleção Brasileira? Mistura muita coisa... O brasileiro gosta do futebol para caralho e vai comemorar. Agora, se o Brasil não ganhar a Copa, pode fazer um bem fodido pro país. Em que sentido? De realmente o país entrar num mergulho de autoanálise profundo que pode ser algo pouco visto no Brasil moderno. E depois tem Eleições na sequência... Com certeza o resultado da Copa vai interferir. O que você está achando do pleito desse ano? Acredita em algum candidato? Eu vou aguardar um pouco... Conversa com seus filhos sobre isso? Meus filhos têm opinião formada. Inclusive, acho que eles são até mais informados do que eu sobre política. Eles estudam, né? Estão sempre em contato com estudantes... E no meio que a gente vive é fácil de se alienar, então ter dois filhos estudantes, traz informações a que você não tem acesso. Como você separa o Pedro Paulo do Mano Brown dentro de casa? Não existe mais separação... Eles são a mesma pessoa. O Pedro Paulo sem o Mano Brown não estaria vivo, já te falei isso. Eles têm que aceitar o Mano Brown de igual. É a mesma coisa. Eu consigo viver bem esse barato aí. É suave. Eu sou um cara comum em qualquer lugar, não só dentro da minha casa. Eu tenho minha opinião formada, e a teria de qualquer forma. Eu não pago de Mano Brown pra cima de ninguém.
Como a ausência da figura paterna influenciou sua vida? Ah, aprendi a me defender bem... e que a vida é uma guerra. Não tive quem me protegesse. Vi que eu não era perfeito mesmo, por causa disso, né? Já tinha defeito na raiz. Então eu teria que me ajeitar na vida para ser alguma coisa, para conseguir alguma coisa. Eu tinha que melhorar muito como pessoa. Sempre soube que eu tinha muito defeito. Você acha que isso te deixou mais arisco? Ou mais ressabiado com as coisas? Não. Nem mais ressabiado nem mais arisco. Eu não sou nem tão arisco. Eu sou destemido. E não posso dizer que sou um cara ressabiado porque já fui traído. Eu sou um cara sem medo. Não tenho medo do futuro. Não tenho nem medo de ser traído. Eu só quero fazer o que eu faço e já era. Não tenho medo de nada. Você já pensou em procurar seu pai? Como é que é isso pra você? O meu pai talvez nem esteja mais vivo, né? Já faz tempo. Acho que meu pai não está vivo há muitos anos. E isso influencia na criação dos seus filhos? Meus filhos já nasceram numa casa com pai e mãe. Pai e mãe vividos, de vida sofrida mesmo. Então a gente soube mostrar pra eles que a vida não era um mar de rosas, que é difícil. Minha casa nunca foi de luxo, de coisas caras. É uma casa comum. Se você entrar na casa de qualquer pessoa aqui, é igual. Tem televisão, geladeira, sofá. Então eles foram criados de forma bem comum mesmo. Não teve esse lance de Brown. Mas você faz questão de deixar o canal da comunicação aberto, especialmente com seu filho? Eu falo com meu filho do mesmo jeito que eu falo com você. De homem pra homem. Minha filha sim, eu já trato com um pouco mais de cuidado, é mulher e tal... Mas ela é bastante inteligente também. É independente. Então tá suave. Você pensa no futuro dos seus filhos?
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Meus filhos têm que fazer as próprias vidas. Não penso no futuro. Eu não projeto as vidas deles. Mas você se preocupa com o mundo que está deixando para eles, ou isso é problema deles também? Problema deles também. Cada um com a sua missão. Não tem essa, eu aprendi que a gente tem que criar o filho para o mundo, e não para a gente. E tem que ser forte, que nem eu sou. Tem que ser guerreiro, saber que as coisas não são fáceis. Aqui é uma guerra. O rap é um meio machista... Mas está melhorando... E muitas vezes quem segura a bronca são as mães, as mulheres, não é uma contradição? O Brasil é machista, e o rap é retrato do Brasil. Feito para o brasileiro, certo? Machista. Ponto. E você acha que tem melhorado por quê? Porque as mulheres estão ocupando espaço. Não é que o homem está cedendo, ele está perdendo. A mulher está avançando. Mas quem cria os caras mimados, fracos, são elas, então as mulheres têm lá sua parcela de culpa dos caras serem assim. Elas estão ocupando espaço porque eles também não estão conseguindo segurar os ímpetos das mulheres. E as mulheres estão chegando. A nova ordem, né? Mulher liberta, né? Mulher moderna. Essa liberdade que estão loucas para ter, estão começando a construir agora. E você acha bom ou ruim? Acho bom. Sou a favor das mulheres! Desde que o mundo é mundo o homem esteve no comando da situação. Quem sabe com as mulheres mude. Mulher é mãe, é mais apegada à vida. Acha que está na hora do rap nacional esquecer os Estados Unidos pra trilhar um caminho mais... Difícil... Quase impossível. Por quê?
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Porque os Estados Unidos são a torre. O mundo está globalizado, então tudo tem influência americana. Não é só o brasileiro que segue, o mundo inteiro segue. E o negro brasileiro deve muito ao negro americano. Porque quando se fala de rap, se fala de negro, e foi baseado na postura do negro americano que o negro brasileiro começou a reivindicar coisas básicas. A música negra americana é rica, mas a música negra brasileira é tão ou... Mais... Mas aí é que está! O poder bélico. O negro americano sempre teve aquela postura combatível, passou a ter dos anos 1960 pra frente. Então isso serviu de inspiração para os negros daqui. Foi um canal pra trazer essa ideia de periferia também, de classe. Aí sai do quesito raça e vai pra classe. É praticamente impossível separar uma coisa da outra. Aí vira uma coisa politizada. Eu nunca abri mão da liberdade da música, de fazer música livre. Nunca gostei de ter que falar disso ou daquilo. Mas que serviu, serviu. Lá atrás, você esperava gravar com o Jorge Ben um dia? Esperava. Era uma meta. Eu quando quero uma coisa é foda. No começo do Racionais vocês sampleavam o Jorge Ben, e muito tempo depois você gravou com ele. Acha que os grupos de hoje estão mais conectados com outros artistas? O Emicida gravou com os sambistas Juçara Marçal e Wilson das Neves recentemente, por exemplo. É, mas o Emicida já vem com a grife de artista que a gente não tinha. O Emicida tem essa grife de artista. O cara é reconhecido pelos outros músicos. Ele foi reconhecido muito mais rapidamente do que a gente na época. Mas por causa de vocês também, não? Não. Por causa dele. Tem músicos da época dele que também ouviram a gente e não deram em nada. Foi inteligência dele. A gente não deu nada pra ele. Ele que aprendeu isso. Ponto dele. Você acha que, com a ajuda da internet, ele conseguiu mudar o jogo do rap? Ele é um bom jogador. É um cara que sobrevive, um cara forte, inteligente.
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Nesse sentido, hoje, a música é mais democrática? Completamente. Você consegue comunicar com as pessoas, com a sua rede. Eu sempre falei que periferia é massa, e essa massa existe, desde que você não negligencie e nem ignore, eles vão estar com você. É simples assim. Eu cantei para aquele povo que não tinha acesso à internet. Ele canta para o povo que já tem acesso à internet. Sou totalmente consciente da minha situação no jogo.
Por quê? Por essa visão profissional que está sendo instaurada agora. De que é um movimento estabelecido, de que tem que ser levado a serio, de que tem que ter compromisso com horário, organização. Não é só um discurso, não é mais aquele bagulho de adolescente. Agora são homens.
E tem uma história a ser respeitada... Qual é o maior compromisso da “revolução”, entre aspas? Gosta do disco do Criolo? Acha que ele é um cara que... É mostrar envolvimento, você pôr sua inteligência dentro Inteligente. dela, sua mão de obra, o conhecimento que você aprendeu naquela causa. Como é que você consegue mostrar isso? Ele ter chegado em outros ouvidos acrescenta o que Quando a sua empresa vai bem, quando você paga as pespara o rap? soas direito, quando você dá emprego para mais pessoas. Ele não tem que acrescentar nada para o rap. Ele tem Aí é trabalho! Não é movimento, onde um faz e fica um que acrescentar para as pessoas. O rap é só uma classe monte de gente sem condições de fazer nada. Tem que dar e eu não sou a favor de defender classes. O rap tem que condições das pessoas fazerem para ganharem seu dinheiro. servir e não ser servido. A gente não pode esperar, por Esse é o momento que a gente está vivendo hoje. Essa é a exemplo, que quando o cara do rap chega lá em cima, que maior evolução. Já não é revolução do discurso, das coisas ele vá olhar para baixo e começar a ajudar. Não tem nada abstratas, morou? É do trabalho. Se fosse no campo, seria a ver! Não pode ser assim, não deve ser isso. Tem que ser enxada e terra. É na cidade. É trabalho. É envolvimento. É forte o bastante pra chegar lá também. Não é chegar lá em vida, sabe? E é ideologia também. cima e olhar para baixo para resgatar. Já está no trabalho, Então a expectativa para os próximos anos é boa? normalmente, o resgate. Boa. Talvez melhor para os caras do que para mim, mas vai ser boa. Só de chegar lá, automaticamente já... Automaticamente já vem um bolão de gente junto com Melhor para o sangue novo que está chegando? você. Você já teve que construir para chegar lá. Você não Com menos cobrança, menos questionamento. Uma vichega lá e vai começar a resgatar um por um. Não dá para são mais ampla, mais livre. chegar lá assim. Como é que você vê a indústria fonográfica no momento? Existe um comércio sim, só que não é só a música, certo? Você tem que ter outras coisas para oferecer às pessoas. É som e imagem. Então já não é mais o fonográfico, já é um monte de coisa, já é uma calda longa. É a musica mais a imagem, mais a roupa, mais a pessoa, mais o posicionamento dela. É um monte de coisa. Já foi a época em que você vendia o CD e bastava. Hoje não basta mais. É muito pouco. Precisa de um monte de coisa. É um trabalho mesmo. E vocês têm pensado nisso? Tenho vivido isso. De 2002 a 2010 passamos uma crise profunda. Deu para aprender um pouco. Teve uma crise fodida, de realmente a moeda bater no fundo da lata. Da época, né? Eu vi o rap subir de novo de 2010 pra frente. Nesses últimos quatro anos foi o grande lance. Cresceu mais do que nos últimos vinte anos que antecederam. 40
Você sempre se questionou muito? Eu questiono porque não basta ser. Mas ultimamente você está mais de boa? De boa mesmo nunca. Eu me questiono porque é fácil você parar no tempo. Então eu tenho que estar sempre procurando ser útil, né? Você tem que conseguir fazer sua parte, saber que muito mais gente vai ser beneficiada com aquela atitude que você tomou. Não uma atitude que vai fazer bem para você, encher seu ego. Então, o “revolucionário” tem que passar a ser útil. Parar de ser mentor dos comuns. Não! Vai crescer junto. É essa revolução interna que você está passando agora? É interna também, mas não é uma coisa que eu mudei. Nunca achei que o movimento tinha que ser uma ONG. Houve um momento em que a ideia da ONG era prioridade, mas na melhor oportunidade, o mais rápido possível,
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tem que deixar de ser ONG. É questão de sobrevivência. É que nem o lance de cotas. É polêmico, mas fundamental agora. Um dia vai deixar de ser. Vai chegar o dia em que o negro não vai precisar de cotas. As pessoas vão disputar a vaga de igual para igual. Naquele momento do rap era necessário ser uma ONG. Em 1992, não em 2014. E a revolução vem de dentro? Vem de dentro e de fora. A revolução está em volta de você. E dentro de você. Está acontecendo. Mas se você não fizer, alguém vai fazer de qualquer forma.
Mumu Silva
Mano Brown durante o show do Racionais MC’s na Virada Cultural de 2013
E serve para semear ideias? Semear ideias eu já faço há muito tempo. Tem muita gente semeando ideias, todas dignas de serem ouvidas. Tem muita gente falando o que pensa e não é só o Brown, né? Senão vira chavão. Eu virei chavão dessas ideias, de ter que falar essas coisas. “É assunto de racismo? Chama o Brown.” De todas as palestras que teve sobre racismo nos últimos anos eu corri.
A postura é a mesma de sempre ou... Eu escolho com quem quero fazer e na época que quero fazer. Quando me é conveniente, eu faço.
Mas mesmo assim o chavão continua? É. Tem alguns encontros que já viraram chavão. Se eu for no movimento negro pra falar dos negros para os negros é fazer o de sempre. É fazer o óbvio. E dá pra viver de óbvio também, fingindo que está fazendo. Eu não quero isso, entendeu? Que evolução tem nisso? “Solta as músicas revolucionárias aí, Brown!” É assim? Oxe! Revolução é assim? Como assim? Tá louco? Não é assim não. Revolução de 2014 é o quê? É Regina Casé, tá ligado? Melhor programa [“Esquenta!”] da televisão brasileira hoje, querendo ou não. O movimento negro vai vomitar quando ler isso. É uma pessoa que vem lutando, vem disputando, vem acompanhando e chega um momento que faz um grande programa de TV, morou? Do jeito que as pessoas são, fazendo o que elas são, vivendo o que elas são. Não tenho vergonha de ninguém ali, tenho orgulho. Eu me vejo em todos eles ali.
Pode ser útil... Considero útil. Mas eu sou imprensa também. Se quiser soltar uma nota agora eu solto, escrita por mim mesmo. Tenho cento e vinte mil seguidores no Instagram. Tem jornal que não tem tantos assinantes.
O disco solo funciona pra isso, pra você se libertar? Eu sou livre! Está fodido quem quiser me aprisionar. Quando falei que vou fazer soul music, vou fazer doa a quem doer. Não estou nem aí. Eu sou rebelado. Se falar de amor é rebelião, eu tô nessa, entendeu?
Esse novo momento do rap tem relação com vocês estarem mais abertos para falar com a imprensa? Mas quem está mais aberto a falar com a imprensa? Nós queremos te entrevistar faz tempo... É uma vontade não só da CULT, mas de toda imprensa... Hoje mesmo eu fui convidado para fazer uma entrevista para o Estadão. E falei não.
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a estrutura da evolução de ice blue “Temos que incluir a periferia no mainstream. Esta é a próxima revolução” n°192
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ice blue
Amanda massuela e patrícia homsi
CULT: Você e o Mano Brown se conheciam desde crianças, mas a aproximação com o Edi Rock e com o KL Jay aconteceu mais tarde. Como foi isso? ICE BLUE: Eu e o Brown já andávamos juntos, porque minha mãe e a mãe dele são amigas de baile. Nós não conhecemos nossos pais. Quando nossas mães se conheceram, foram morar perto desse terreiro que elas frequentavam. O pai que a gente tinha era emprestado, um pai de santo, Seu Isaac – que chamamos de pai até hoje. Crescemos juntos, começamos a frequentar os bailes juntos. Foi quando conhecemos o Miltão [Milton Salles, agitador cultural da época]. Ele nos convidou para gravar uma fita demo junto com o KL Jay, com quem o Brown trabalhava numa empresa no Centro. Foi quando conhecemos o Edi Rock. O louco é que eu e o Brown já convivíamos juntos no Capão, e o Edi Rock e o KL Jay eram da zona norte. Para a gente ir até lá, era uma viagem de três horas. Mas a gente fazia isso todos os dias, com dinheiro, ou sem dinheiro. Eles tinham as coisas, as condições que nós ainda não tínhamos. Com o grupo feito, Miltão nos levava pra lá e pra cá, conversando politicamente com a gente. Ele é um grande braço do movimento hip hop, porque foi um cara que transitou, entendeu, tentou juntar, aproximou, teve visão política na época, dedicou tempo, trouxe os políticos para próximo. Intermediou. Ele enxergou um poder político em vocês... Um poder político, uma fuga. Enxergou que o rap poderia ser um partido político, com todo mundo falando suas ideias, sua visão de rua, sua visão de crime, sua visão de dentro de casa – as coisas que supostamente incomodavam o jovem e ele não queria falar. O preto, favelado. Ele viu que tinha um caminho, compreendeu rápido. Em que momento você percebeu que era a hora de se dedicar exclusivamente ao rap e ao Racionais? Eu não esperei momento nenhum, eu me dediquei cem porcento desde o primeiro instante. Acordei um dia e falei “não vou trabalhar, é isso que eu quero fazer”. Vou fazer música e ponto. Aí eu pedi demissão da empresa que eu trabalhava e minha mãe ficou louca. Com o Brown foi a mesma coisa. Nos dedicamos cem porcento desde o primeiro instante, quando entendemos que éramos um grupo. Tudo bem que passamos os maiores venenos da vida nesse tempo, ficamos sem dinheiro pra cortar o cabelo, a gente juntava cinco caras para comprar um pacote de bolacha. Mas mesmo sem termos condições, mesmo sem fazermos dinheiro, nós acreditávamos naquilo. Nós fazemos parte de uma geração entre o samba e a música black − e isso foi uma das coisas que “deu o molho” do Racionais. A sequência de todo o movimento dos bailes black, que acontecia desde 1970, era o rap. Mas o samba estava estourando
comercialmente e fazendo dinheiro. Não era interessante para as equipes dos bailes gravar rap, então eles apostaram no samba, mas se dessem continuidade ao rap, ele aconteceria organizado. Os bailes são praticamente os responsáveis pelo rap ter um retardamento de alguns anos de profissionalismo. Nos bailes da Chic Show, por exemplo, sabíamos que não podia ir de calça dobrada, tinha que estar com o ingresso na mão e pegar fila. Não tinha conversa. O rap não teve essa organização e, quando cresceu, pensamos “Temos um movimento, e agora?”. Os próprios caras que nunca tinham produzido nada começaram a meter a cara. Para o rap, a estrutura não existiu. O que havia era muito grupo na ativa e nós íamos a shows desses caras para ver como era − e percebemos que o rap estava acontecendo sem precisar do Racionais. Liberto, mas órfão, sem estrutura. Hoje, o movimento andou para frente e há uma geração nova que está fazendo coisas que a nossa geração não fez. Só que nós cantamos para eles serem assim. Vivemos um momento diferente, com a internet principalmente. Ela foi um braço que precisava, porque democratizou a produção e a distribuição, algo que era monopólio de gravadoras. A internet teve um papel importante também no sentido de trazer novos públicos para o rap? Exatamente. Ela desmistificou a ideia de que fulano de tal arranca cabeças ou que outro cara não gosta de brancos. Ela começou a mostrar os seres humanos, tirou os monstros. Mas tem muita conversa desencontrada também. Os caras inventaram trilhões de coisas do Racionais e nós nunca tivemos essa preocupação em desmentir. Se você andar com a gente, vai ver que realmente somos uns caras estressados, principalmente Mano Brown e Ice Blue, mas rimos de tudo. Só que se está trabalhando com a gente e está dando mancada, pode preparar que o bagulho vai ficar louco [risos]. A internet reaproximou as pessoas, além de te mostrar que não é só no Brasil que há esse movimento. O jeito que a gente se veste virou moda mundial. É branco, preto, jogador de futebol, funkeiro. Todo mundo se veste que nem os caras do rap. E por que isso está acontecendo agora, especificamente? Porque nós viramos referência total. Sem contar os bilionários que começaram a aparecer na ponta: Dr. Dre, P. Diddy [rappers e produtores musicais norte-americanos]. No Brasil ainda falta esse intercâmbio dos caras entenderem a comunidade negra e o seu consumo. Falta um Dr. Dre entender que uma faculdade Zumbi dos Palmares pode ser alguma coisa, ou ver a quantidade de pessoas que vão num show de rap e pensar em fazer um canal de TV, uma rádio. Isso falta porque ainda é muito segregado. Não existe uma rádio de hip hop que você pode sintonizar. As pessoas têm a mania de ouvir música no n°192
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pen drive, por bluetooth – e precisamos fazer que elas tenham a mania de sintonizar uma rádio de hip hop. Esse é o próximo passo para o movimento hip hop? O rap buscou primeiro ficar livre: os pretos serem pretos, o preconceito ficar estampado, o favelado ser favelado. Tudo isso o rap cantou e mudou. Acabou. O crime não é mais o mesmo que cantamos nos anos 1990, as pessoas não se matam mais daquela forma. Não adianta fechar os olhos para esse momento. Se conquistamos tudo isso, as próximas conquistas são uma rádio e que as nossas marcas se estabilizem no mercado. É introduzir a periferia no contexto geral, como os caras do funk estão fazendo. Temos que incluir a periferia no mainstream. Esse é o foco hoje. A revolução já foi feita e a próxima revolução é essa. É preciso vir um cara desses e dizer “Tem quantas marcas de preto nos EUA? Vou levar todas para o Brasil”. Do mesmo jeito que lá negão só usa as marcas de negão, precisamos fazer isso aqui. Vamos empregar mais pessoas. E não adianta trazer pessoas do outro lado, tem que ser dos nossos. Temos que trazer as coisas para dentro da periferia. Essa é a evolução que precisamos no momento. O que falta pra essa evolução acontecer? Maior profissionalização, mais estrutura, mais união do movimento? Falta que as pessoas se libertem das ideias antigas. Nós cantamos para elas não terem vergonha de serem faveladas, não terem vergonha de onde moram, do cabelo, do jeito de se vestir, falar ou andar. Foi isso, nós não perpetuamos a favela, não dissemos para as pessoas morrerem na favela. Trabalhe, conquiste e faça uma casa melhor para você, compre um carro melhor − todas as coisas que um ser humano normal quer fazer. Não é porque você é favelado que vai morrer aqui. O que os caras dizem é que agora não somos mais “favela”. O que é ser favela agora? Muitos que estão na internet falando de favela nunca moraram num barraco de pau e nem sabem o que é isso. Eles se sentem ofendidos quando falamos para o cara comprar uma casa com piscina, um grande carro. O funk ostentação ofende por quê? Porque é um favelado com corrente de ouro, num carrão, morando nos condomínios. Estão nos vendo nos elevadores e está incomodando? Nossas bancas estão nos prédios mais nervosos da cidade, tomamos conta. Chegamos de bonde. Essa é a próxima revolução. Invadir os outros espaços. Não é perpetuar favela. A primeira coisa era ensinar o cara a não ter vergonha, agora a segunda e a terceira são dizer que ele precisa de um carro, precisa instruir seu filho. O Racionais conseguiu se manter relevante durante esses vinte e cinco anos justamente porque foi capaz de acompanhar as mudanças do país, do discurso e da sociedade? 44
O Racionais se manteve relevante porque falou muito não. Vai no Rock in Rio? Não. Tim Festival? Não. Globo? Não. A gente não teve medo de dizer não, mesmo eu sendo um moleque favelado. Os caras ofereceram milhões para nós, mas levantamos e fomos embora. E, cinco minutos depois, juntávamos cinco caras para comprar um pacote de bolacha. Eu tinha vinte anos e não tinha casa para morar. Eu podia ter falado sim, mas o “não” foi essencial para nós, porque aquele não era o momento para dizer sim. As pessoas precisavam ter certeza de que havia alguém realmente do lado delas, com um discurso firme. Por isso demoramos muito tempo para tocar no Lollapalooza, por exemplo. Só que, vinte anos depois, não teve mais como segurar, principalmente com a internet. Então pensamos: “vamos fazer empresa e mandar contratar todo mundo”. Tivemos que aceitar o que nunca quisemos aceitar: o tamanho que temos. E como vocês lidaram com isso? Montamos a empresa, sabíamos que iam cobrar disco novo e estamos fazendo. Abrimos um pouco, porque a internet ia fazer isso de forma desordenada, como fez no começo. As pessoas disseram que perdemos muito dinheiro, mas não estávamos preparados para aquilo. Hoje estamos. Todo mundo tem uma marca, então vamos vender umas camisetas do Racionais, montar um site, um Facebook. Pronto. Não podemos mais ficar tocando para setecentas pessoas. Vamos tocar no Credicard Hall, vamos tocar nos festivais. O cara pagou, nós vamos. Há quem diga que, por conta dessa abertura, vocês deixaram de ser “favela”, como você mesmo disse. O que você acha disso? São pessoas que querem perpetuar favela. Eu tenho que andar rasgado para provar que eu sou da periferia? Falam que não representamos a favela, mas eu não quero nem representar mais. Estou passando esse bastão. Para representar, fui sequestrado e quase morri. Não morremos porque Deus não quis. As pessoas não sabem a responsabilidade e as coisas que passamos. O Racionais nunca se colocou nessa posição. Nos colocamos sempre como um braço, um irmão, uma força que estava do lado. Mas nunca quisemos representar − representamos espontaneamente. Essas pessoas que falam, muitas vezes, não têm conhecimento nem do que é o movimento. Críticas existem, claro, eu adoro ser criticado, porque não me deixa acomodar. Alguns, se estivessem na posição do Racionais, iam pintar a unha de rosa e andar de salto. Vários no rap são assim, e são esses caras que ficam no buchicho. Temos que entender que o rap em si é um partido que evolui para frente. Eu tinha dezoito anos e não tinha nada. Hoje eu sou um empresário, tenho trinta funcionários para pagar e o Racionais viaja com vinte pessoas. Tenho outras prioridades. Com dezoito anos você tem uma
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mentalidade e com trinta você tem outra. Nós passamos vinte anos intolerantes. Agora somos mais tranquilos e os caras que estão do lado nem acreditam. Mas tem uma hora que você tem que entender. Mudou. Mas também há vários culpados por essa posição dos próprios fãs. Quem são esses culpados? Eu tenho um programa de domingo na 105 FM chamado “Balanço Rap”. Os caras da rádio continuam perpetuando músicas antigas porque dizem que os ouvintes ligam e pedem. É um público viciado, que não quer renovar − e ao mesmo tempo a rádio está com medo do novo. Foi ela quem fez aquelas pessoas ouvirem aquelas músicas. Tem que tocar outras coisas, porque a maioria dos grupos de quem as pessoas pedem as músicas já nem existe mais. Eu fico louco. Estão com medo dessa geração nova, o que está acontecendo? O público foi educado pelo rádio e a rádio agora segue o público. Fica esse ciclo sem fim, sendo que a rádio tem que inovar e botar os produtos novos. Por que isso não acontece? Porque dentro do próprio movimento existem pessoas que estão travadas. O próprio Racionais abriu. Liberta, mano, porque se a gente segurar, o bagulho vai travar mesmo. Se o mais radical mudou, todo mundo tem que mudar. Mas não, os caras ficam com essa ideia de “deixa eu ser preto, deixa eu ser radical”. O negro tem que entender que precisa apoiar outro negro. Mas nosso movimento negro ainda é pequeno − enquanto a Parada Gay junta três milhões de pessoas na Paulista. Eles reivindicam e são ouvidos. Por que não colocamos nem cem mil pretos na Paulista no dia da Consciência Negra? Porque cada organização do movimento negro está preocupada com seu próprio movimento, cada uma faz sua ação. O movimento negro, então, sou eu mesmo. Vamos parar a Paulista? Talvez aí o Dr. Dre falaria, “caramba quanto negro na Paulista, tem um dinheiro aí, vou investir nisso”. Do mesmo jeito que os gays estão conseguindo várias coisas. É assim que mostramos força. Tem que ter uma evolução mental total. Assim vamos conseguir transcender essas ideias tolas de preto, de favelado. E como você encara essa conexão que vocês têm, além do preto e do favelado, com as pessoas nascidas do outro lado da ponte? Essas pessoas estão atrás de coisas boas. Músicas boas, roupas boas, as melhores praias. Por isso eles são amantes de Chico Buarque, Caetano Veloso, Cazuza. E esses caras do outro lado talvez tenham sido os primeiros entendedores da causa. Hoje todo mundo ouve rap. A maioria desses caras com dezesseis, dezessete anos já estava fora do Brasil e, fora do país, eles podem ser ricos, mas continuam sendo latinos e muitas
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vezes vivem num meio social em que convivem com o negro. O cara que assina o cheque, hoje, mudou e ele tem mais essa linguagem e essa compreensão, porque vê o próximo. Ele sabe quem é Tupac, quem é o Notorious B.I.G. [grandes referências do rap norte-americano]. Todas essas coisas as pessoas têm que perceber. Hoje o problema está batendo na porta de cada um. No rap, houve uma resistência maior pela entrada das pessoas do lado de lá, porque não tinha ninguém preparado para fazer esse intercâmbio entre o favelado e o empresário. O favelado nunca foi até eles com medo de ser enxotado. Vocês são quatro caras que pensam de forma diferente sobre esses assuntos. Como as decisões individuais são debatidas entre vocês? Não existem decisões individuais no Racionais. Se eu tiver vontade de pular, eu tenho que trazer para a banca. Cada um tem uma posição dentro do grupo que funciona muito bem, e todos respeitam essa hierarquia. O Brown é o líder porque, se tiver vinte pessoas do lado de fora da van, ele vai pegar na mão de todos. O Ice Blue não vai fazer isso. O Edi Rock já está no camarim. Por isso ele é o Mano Brown. É natural, não foi nada estabelecido. Se há uma decisão, se eu quero fazer alguma coisa, eu tenho que trazer para conhecimento do grupo, porque quando o cara vai falar meu nome, o nome do Racionais vai junto. Ele está presente na minha pessoa Eu nem consigo ser mais o Paulo. Nesses vinte e cinco anos de Racionais, que mudança você identificou no Brasil e nas periferias? Todas. Vi uma periferia mudar. O cara ter oportunidade de ter RG, comprar um carro, uma moto, uma televisão e não ser descriminado só por ser da periferia. Vimos os moleques não terem vergonha de andar com o cabelo trançado, ou do jeito de se vestir, de falar. Mas principalmente vimos os negros se assumirem. Eu mesmo decidi deixar meu cabelo rastafári. Um dia me peguei sentado almoçando numa mesa com seis caras brancos. Só brancos no restaurante e um negão sentado numa mesa na porta do banheiro. Fui ao banheiro e passei por ele. Nos Estados Unidos, todo preto se comunica, nem que seja no olhar. Aqui, os pretos, quando se veem no lugar dos brancos, têm vergonha. Em vez de o negão olhar pra mim, olhou para o chão. Voltei do banheiro, dei uma olhada para ele, sentei na mesa e pensei: “Caralho, preciso me libertar dessas ideias”. Eu estava muito padrãozinho. Decidi deixar meu cabelo crescer, não vou ficar como aquele cara ali. Não vou ser marionete dos caras, eu quero incomodar. Você não gosta de mim? Legal, mas eu não vim para te deixar à vontade. Não podemos ficar na cultura que lutamos para quebrar. Vai onde você quiser, faz o que você quiser, incomoda mesmo. Somos o que somos. n°192
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a liberdade criativa de KL JAY “Somos homens de quarenta e quatro anos. As ideias de vinte não dão conta mais.” n°192
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Entrevista
CULT: Foi o Milton Salles quem juntou vocês quatro, no fim dos anos 1980. Como foi esse encontro e que referências individuais vocês trouxeram para o grupo? KL JAY: Rolou uma identificação de pensamentos. Nós pensávamos nas mesmas coisas. O Edi Rock foi o primeiro cara que eu encontrei e o Brown tinha dupla com o Ice Blue. Conheci o Brown na São Bento, nos encontros de hip hop, de break. A gente começou a conversar, éramos jovens, tínhamos vinte anos. Queríamos fazer música para protestar e para enfrentar o sistema. Éramos perseguidos, até hoje somos, aliás, pela “Matrix”. Nós olhávamos para o mesmo lado, pensávamos igual. E aí começamos a andar juntos. Eu trabalhava como office boy numa empresa no centro e consegui um emprego para ele no mesmo lugar. Apresentei o Edi Rock para ele e ele me apresentou ao Blue. O Milton Salles ajudou nessa junção. Ele era um agitador cultural da época, que ia na São Bento e era envolvido com o Thaíde. Ele viu em nós uma diferença, um futuro, e ajudou a nos unir. E como era fazer rap no Brasil há vinte e cinco anos? Era novo, embora já tivesse Pepeu e Thaíde [precursores do rap no Brasil]. Nós dividimos as águas do rap por aqui falando de racismo, política e polícia explicitamente, coisa que os outros não faziam. Nós éramos vistos como loucos. Ao mesmo tempo riam, ridicularizavam, desacreditavam. Até hoje existe preconceito, mas há uma estrutura. O Racionais era mal visto e os demais lavavam as mãos caso fossemos presos. Mas havia pessoas que se identificavam com a gente e que também eram perseguidas. Foi crescendo devagar. Qual foi o momento em que você percebeu que o Racionais havia crescido e tinha força? Aconteceu algo uma vez, em Mauá, acredito. Acho que nunca falei isso para ninguém. Estávamos eu, o Brown e o Blue num show. Eu estava no toca discos e o Brown falou, no microfone, alguma coisa sobre a polícia. Em dois minutos, os policiais mandaram parar o show e o Brown e o Blue desceram para o camarim − eu ainda estava no toca discos, de costas, guardando minhas coisas. Os policiais foram falar com eles e toda a multidão que estava no salão os rodeou. O Brown e o Blue debateram com eles e a multidão gritava “Solta os caras!”. Ali eu vi que havia algo diferente. Houve vários episódios, mas essa foi a primeira demonstração em que eu pensei que aquilo não era brincadeira. Vi as pessoas se identificando, defendendo o Brown e o Blue e nos apoiando. O Blue nos disse que o movimento negro no Brasil não tem a força e o poder de organização que poderia
KL JAY
– e deveria – ter. O rap, nascido nos guetos, teria algum poder de influenciar nisso? Eu não vou falar do movimento negro, eles chegaram antes e têm a luta deles. Vou falar do Brasil e do que o Racionais fez. O rap, no mundo, resgatou os pretos de um genocídio espiritual e mental. Deu um levante. Aqui no Brasil, com o Racionais − falando como se eu não fosse parte disso − ele deu a dose de autoestima de que o preto precisava: “eu gosto de mim, tenho orgulho do que sou, da roupa que visto, do meu cabelo, da cor da minha pele”. A mensagem foi convincente e as pessoas começaram a se identificar. O orgulho, a autoestima, o levante que aconteceu na década de 1990 se deu também por conta do Racionais. Depois, outros grupos vieram falando. Mas as meninas com cabelo afro, assumindo isso, começaram a aparecer nas ruas depois do Racionais. E isso foi decorrente do rap mundial. Vocês fizeram um show histórico na Virada Cultural de 2013, depois daquele 2007 na Praça da Sé em que polícia e público entraram em confronto. Neste ano, o rap teve um destaque muito grande na Virada. Qual é a importância de o rap voltar a ocupar os espaços públicos longe desse estigma da violência? É muito importante que isso aconteça. É a cultura. O dinheiro do Estado, destinado à cultura, tem que vir para a gente. Nós fazemos música. Quem faz o confronto não somos nós. Tem vândalos, loucos por aí, mas isso não está ligado à gente. O rap não é violento. Os moleques que estavam fazendo bagunça já estavam atuando. A polícia fez vista grossa e esperou o Racionais entrar no palco para oprimir os caras. Por que não fizeram isso antes? É planejado. Mas não vai haver mais. E como você vê a atuação da polícia, hoje, no Brasil? O buraco é mais embaixo. O que é a polícia? A representação armada do Estado. Por que a polícia é violenta e racista? Porque o Estado é assim. A polícia faz o que o Estado manda. Tem policial violento? Sim, mas a corporação inteira? Claro que não! Eu não tenho vergonha de dizer que levou anos para que essa ficha caísse. O Spike Lee, que esteve no Brasil gravando um documentário, nos perguntou: “Por que a população negra na Bahia é de noventa porcento e o negro não representa nada?”. Eu fiquei de cara no chão. É porque o Estado comanda o país, e ele é racista. Para mim está claro como o sol. Mas toma um enquadro da polícia e trata o policial com dignidade: dá boa noite, mostra os documentos, olha no olho e conversa. Puxa um assunto, começa a trocar ideia. O Brown mesmo é super respeitado por eles. Toma enquadro, mas eles dizem “Se soubesse que era você, nem parava”, porque eles nos ouvem também. É o Estado que passa essa mentalidade e esse comportamento para a polícia. E isso passa batido, ninguém questiona. n°192
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Como se muda isso? Fomentando ideias. Uma coisa puxa a outra, então temos que incentivar isso: “Não vamos votar em ninguém”. Tem que falar, falar, até as pessoas verem o que está certo. É isso que muda, essa é a ação. E o rap tem que fazer isso com mais ênfase, com mais força, potencializar o discurso. Colocar a ideia no ar, ter credibilidade para falar e convencer as pessoas com o seu jeito. Quem faz isso no Brasil, hoje? Ninguém faz isso no Brasil. Talvez nós. Pouquíssimos fazem isso no espaço alternativo, mas não vejo vontade política em nenhum deles. Tem que começar agora para o país melhorar daqui a vinte anos. O discurso é fajuto. Nas manifestações, por exemplo, as pessoas estão questionando, mas não é isso que ajuda. O que vai mudar é falar em política toda hora. É boicotar o governo, não votar, mas passar informações para frente. O Racionais tem grande apelo junto à periferia, mas vocês também conquistaram muitos fãs do outro lado da ponte ao longo desses vinte e cinco anos. Como você vê essa relação? A música é abstrata, está no mundo. Você ouve no rádio, no CD, com seu amigo. Você pode estudar numa escola de gueto, num bairro pobre, e ter um amigo no Jardins. A música se espalha como um vírus. Se a música é boa, não importa quem vai ouvir. O rap é música, ela vai para o mundo. A maioria do pessoal da classe média, para mim, não se importa com as questões sociais do rap. Eles ouvem, gostam, mas não mudam, e não são obrigados a mudar. Mas quando vocês tocam numa casa de shows como a Royal, por exemplo, que tem um público mais elitizado, você não acha que essas pessoas compreendem o que vocês estão dizendo? Sempre vai ter um ou dois que compreendem, mas a mensagem é captada na música, ouvindo sozinho, e não no show. Show é para você curtir, bater palma, tirar foto. Eles se identificaram, foram no show porque gostam. E quanto à polêmica imensa que esse show gerou – se justifica? A gente foi lá buscar o money, é o nosso trabalho. A mentalidade aprisionada, que o nosso próprio rap tem, pobre, rasa, que diz que dinheiro é ruim, faz com que as pessoas nos critiquem dessa maneira. E uma parte é inveja, de quem queria estar lá, mas não consegue, porque não faz música boa. Quem não tem a mente aberta, fica preso na “revolução”. A periferia gasta quanto para ir ao jogo do Corinthians, São Paulo, Santos? Vai ao bar e enche a cara de cerveja, mas não quer ir num show do Racionais e pagar trinta reais? É a mentalidade da pobreza − que não tem nada a ver com dinheiro. Mas você também não pode se corromper. O cara diz “Olha, Racionais, MV Bill, Emicida, Flora Mattos, vocês têm que vir aqui no meu 48
salão, colocar a roupa azul e cantar tal música, mas não pode fumar, falar palavrão e o som vai ser baixinho”. Aí não vale. É diferente se vender e se corromper. Eu vendo meu show! Nós nos vendemos toda hora, é o nosso trabalho. Qual é o limite? Fazer show em puteiro [risos]. Nós vamos lá fazer nosso trabalho. Às vezes os caras não têm dinheiro para me pagar. Eles são honestos, dizem “KL, a entrada aqui é cinco contos, nós não temos duzentos reais para te pagar”. Para a Royal, onde a entrada é cem, duzentos reais, meu cachê é cinco mil. A mentalidade é essa. É ir, mostrar e divulgar sua música, não importa para quem. Nós tínhamos essa mentalidade presa. Há quinze anos, não iríamos, mas também estamos quebrando isso. Graças a Deus, nos libertamos. E hoje vocês podem contar com uma estrutura, montaram uma produtora, a Boogie Naipe. Vocês estão em outro momento. O que ele significa? Todos os moleques novos têm produtora. Emicida, Criolo, os caras revolucionaram isso também. Nós sempre fomos muito desconfiados de tudo e de todos. Quem cuidava das coisas éramos nós quatro. Era mambembe, porque a nossa função é cantar, fazer música, não somos nós que temos que cuidar dos negócios. Claro, nós supervisionamos, mas nossa função é outra. Nós ainda fazemos isso, mas a carga diminuiu. Já sabíamos o tamanho do Racionais e essa estrutura só veio confirmar. E a produtora ajuda muito. Por conta dessa abertura e desse novo momento que o grupo está vivendo, há quem questione se vocês ainda são uma referência para a periferia... Sinceramente, eu não nasci na periferia, não sei o que é passar fome, não sei o que é favela. Nunca fui rico, mas tive pai, mãe e uma estrutura mínima. Morei num bairro de classe média baixa. Essa ideia é uma prisão de valores materiais. O Brasil e a religião ensinam as pessoas a sentirem culpa, a quererem ser pobres e a acusarem quem ganha dinheiro. Isso é planejado! A imagem do rico é de alguém que não presta, que explorou alguém. “É mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no céu”. Eu fiquei sabendo, esses dias, que o buraco da agulha era uma região estreita do Oriente Médio, onde as pessoas passavam e o camelo tinha que abaixar para passar. A vida inteira eu achei que essa frase era literal e dizia: “Os ricos não prestam!”. Há essa mentalidade da culpa, que a religião nos impõe desde pequenos. Pessoas enriquecem roubando, sendo contraventoras, mas noventa porcento dos ricos são honestos, ajudam as pessoas, e por isso o dinheiro volta, porque há uma energia. Eu já tive preconceito com o rico. Graças a Deus, à leitura, à informação, à expansão da minha mente, eu vi que não era nada disso e que era tudo mentira. (A. M. e P. H.)
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o peso da mensagem de edi rock
Daryan Dornelles
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Entrevista edi rock
CULT: O Racionais está completando vinte e cinco anos de estrada neste ano. O que cada um de vocês agrega individualmente para o grupo, tanto musical quanto pessoalmente? EDI ROCK: Cada um é uma figura, um personagem. Cada um tem uma personalidade e um gênio diferente − e a soma dos quatro faz o grupo. O KL Jay vem com a sonoridade, ele é o maestro. O Brown vem com o comando, com a emoção, ele dá a rajada, atira sem pensar. O Ice Blue vem com o pânico na voz, a agonia na interpretação que é natural para ele, que tem uma voz aguda. Eu sou a razão.
oportunidade de fazer essas misturas de ritmos e de influências musicais. Nunca tive uma estrutura para chamar todo mundo. Deve haver experiências no rap, até porque nós somos brasileiros, e a música brasileira é feita de misturas. Se eu fosse americano, misturaria com R&B, funk, soul, jazz. É natural que eu seja influenciado pelas coisas que cresci ouvindo: forró, sertanejo, samba, reggae, mais recentemente, e todas as influências afro-brasileiras, latinas, africanas, fora várias outras – música clássica, até. O rap está entendendo que é música e, a partir daí, ele abre as possibilidades para que a produção possa fluir.
E como era fazer rap no Brasil há vinte cinco anos? Era divertido. Não que hoje não seja. Acho até que hoje é mais, porque hoje você é remunerado − é bem mais divertido ganhar pelo que faz. Mas, na época, era um sonho: de ser famoso, de tirar foto, dar autógrafo... Queríamos ser conhecidos. Quando você está começando, vai aos lugares que dão oportunidade e, geralmente, estes são as “portas estreitas”, as casinhas pequenas. No caso, o Clube do Rap [tradicional festa de rap que acontecia em São Paulo, no final dos anos 1980] juntava só os amigos, conhecidos, umas trinta pessoas. Como não éramos conhecidos, apareciam, no máximo, cem pessoas na festa. Ninguém ia, porque não conheciam o grupo. Cantávamos para cem ou cinquenta pessoas. Já cantei para dez.
Recentemente, você fez um show em São Paulo e, ao terminar de cantar Estilo cachorro, do Racionais [música do grupo considerada machista] você fez um discurso dizendo que respeita as mulheres, que as coisas mudam e que os tempos são outros. Muda mesmo? O rap está deixando de ser machista? Com certeza − demorou para abrir esse espaço no rap, mesmo tendo muito talento feminino por aí. O problema é que os homens que fazem o rap vieram de um mundo machista, onde eles foram criados. O Brasil é machista. Porém, o rap está abrindo essas brechas. A mulher teve que provar que tem o talento para cantar, sabe se impor e mandar uma ideia. Manda o papo reto e a musicalidade, tem um charme sem perder a feminilidade. Antes, as minas queriam ser manos. O segredo não é esse, mas continuar sendo o que você é − e mostrar quem você é mandando o papo reto. Karol Conka, Flora Matos mandam muito.
Nos últimos anos, vocês lançaram algumas músicas soltas, como Mil faces de um homem leal (Marighella), Mente do vilão e Cores e valores, que mantinham a postura de crítica social que vocês trazem desde o começo da carreira. O que podemos esperar do novo disco de vocês? Ainda estamos produzindo, escrevendo. Daqui, estou indo para o estúdio. Estamos trocando timbres, incluindo instrumentos, mexendo nas letras, lapidando. É uma interrogação. O que eu digo é que será um disco pesado. Não sei o que vem por aí, pode ser chumbo ou flores. Ou os dois. Vamos seguir a cartilha do Racionais, mas temos que ser livres, não podemos nos prender. Acho que estamos num momento de luta com isso. É difícil fazer carreira solo e voltar para o grupo, porque na carreira solo você é seu mestre. No grupo, não: você tem que ter um consenso, uma sintonia. Um respeita o trampo do outro e opina no trampo do outro. O Racionais tem uma puta bagagem pesada. É muito peso, então estamos pensando muito e tendo cuidado. Os fãs esperam o que sempre veio: mensagem pesada, incentivo, crítica. Mas, se tratando de música, tem que ser atual. Rap é realidade. Na época do lançamento do seu disco solo, Contra nós ninguém será (2013), você disse que queria transformar o rap em “música de gente grande”. O que é música de gente grande? Antes, o rap era fechado no mundo dele. Eu nunca tive 50
Você foi aos programas “Caldeirão do Huck” e “Esquenta”, da Rede Globo, no ano passado. Você acha que o rap deve ocupar esses espaços? Que balanço você faz dessa experiência? Isso não é uma regra. A mídia está lá. Eu fui porque achei que era o momento de ir e que as pessoas deveriam conhecer o que estava sendo feito. Eu tive a oportunidade e disse que iria se fosse respeitada a minha história, o meu jeito. Tive uma assessoria, não fui lá de alegre, bater palma. E todas as vezes que eu for, será dessa forma. Acho que eles cedem e eu também. Indo lá, estou cedendo, quebrando um mito, uma parada que o Racionais criou, furando esse “bloqueio”, desrespeitando o que o Racionais ditou por vinte anos. Para eu ir lá, eles também devem respeitar essa minha história. Eu acho que eu dei um puta avanço, dei uma puta força para o rap, quebrei um Muro de Berlim. Os rappers já iam, sempre foram, mas comigo foi diferente porque eu sou do grupo que sempre foi contra essas aparições. Oitenta porcento dos fãs entenderam, os vinte porcento conservadores foram contra. O resto sabe quem você é, conhece o seu trampo, sabe que você não vai desandar, que não vai se deslumbrar. Estou indo lá para mostrar meu trampo, que é digno de ser divulgado. É uma nova proposta para que os outros grupos de rap vejam para onde você pode ir. (A. M. e P. H.)
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Mumu Silva
Na Praça Júlio Prestes, durante a Virada Cultural de 2013, o Racionais fez um show histórico para um público de quase 100 mil pessoas
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Acompanhados pela música A investigação acadêmica que me levou ao Racionais. Amante da MPB e da música negra – o samba-reggae dos blocos afro – produzido em Salvador, eu me mantinha quase alheio ao rap. Mas, por me dedicar, na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, a um estudo das representações da violência urbana em “páginas de polícia” de jornais, eu acabei, inevitavelmente e até para estabelecer comparações, acessando outras representações dessa violência; entre elas, aquela feita pelo rap. E, assim, conheci o Racionais. A identificação – mais com as letras que com a música – foi imediata! Havia, ali, uma apropriação dos discursos que criminalizam os pobres (e os negros pobres em especial) e uma rasura desses discursos na forma da denúncia e do enfrentamento aberto. Como já trabalhava em jornal, quando o grupo foi se apresentar em Salvador, num espaço na Baixa de Quintas (se não me falha a memória), eu quis muito entrevistar o Mano Brown, mas desisti porque circulava o boato de que ele não gostava de gays. Esperei o tempo confirmar ou não o boato e continuei acompanhando o Racionais, que, além de produzir identificações de origem e classe (eu também nasci e me criei numa periferia pobre do país), ainda tem devoção por São Jorge, meu santo padroeiro. O tempo não confirmou o boato da homofobia. Se Mano Brown teve restrições a homossexuais em algum momento de sua vida, entendeu que estas restrições não faziam sentido algum em alguém que luta contra o racismo e o preconceito de classe, e tratou de afastá-las de seu discurso público. O Racionais voltou a ter uma importância em minhas investigações acadêmicas durante o mestrado, quando estudei as narrativas da chacina do Carandiru e as literaturas marginais. Quando eu publicar essa dissertação, certamente dedicarei a eles, que são mais que uma expressão musical ou cultural: são uma resistência política à injustiça social histórica!
Ter trabalhado no último disco de estúdio deles foi um grande marco na minha trajetória e é certamente um dos trabalhos mais importantes que já fiz. Acompanhar de perto a seriedade do trabalho do Racionais me foi muito inspirador, em vários aspectos. Considero o Racionais um enorme divisor de águas no cenário musical brasileiro no que diz respeito à postura, política e socialmente falando. Estando diretamente ligado ao trabalho do Criolo, percebo o quanto é difícil para algumas grandes corporações entender o porquê de certos artistas não quererem estar associados a elas, já que a enorme maioria entende isso como uma grande chance. Algumas negativas dadas pelo Racionais foram fundamentais para manter o discurso alinhado à postura, e com certeza são responsáveis pela longevidade do trabalho que eles realizam. É impossível mensurar a importância do Racionais MC’s para a cena musical brasileira, não só para o rap. Muitos fenômenos inéditos no mercado da música foram protagonizados pelo Racionais, como a vendagem superior a um milhão e meio de cópias de um disco independente (Sobrevivendo no inferno, de 1997) e músicas de mais de oito minutos tocando na íntegra em rádios de todo o Brasil – sem o pagamento do famoso “jabá”. O impacto sociocultural que esse disco teve no Brasil foi algo sem precedentes, e com certeza sentimos os ecos desse impacto até hoje.
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Maniaco da Câmera
daniel Ganjaman, produtor musical
Diego Bresani
Jean WyllYs, deputado federal
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Me fiz homem ouvindo os conselhos de meu pai, seu Jair, e os raps dos “quatro pretos mais perigosos do Brasil”. Era fim dos anos 1980 e eu, molecão de tudo, sentia que as rimas de “Pânico na zona sul”, “Heyboy” e “Tempos difíceis”, do álbum Holocausto urbano, eram hinos de salvação, uma convocação à luta – a minha luta por transformação. Alternava a vida na rua entre catar papelão e metal velho para juntar uns trocados, e empreitadas como camelô, além da escola. Tinha consciência de que, se fracassasse com o sonho de jogar futebol profissionalmente (como aconteceu), teria de escolher outra profissão e ela só seria viável com foco nos estudos. Na minha área, a periferia norte de São Paulo, alguns amigos, adolescentes como eu, começavam a trocar os estudos pelo crime ou pela vala do cemitério quando Escolha o seu caminho e Raio-X Brasil ganharam as ruas e me deram ainda mais força para seguir. Na alegria e na tristeza, a fita cassete com a trilha sonora no walkman – comprado depois de andar muito como office boy para economizar nas passagens de ônibus – era feita com os raps do Racionais. Aqueles quatro caras eram meus aliados nos momentos mais difíceis. Quando fraquejava, eram eles quem me enchiam de coragem para lutar. E assim é até hoje: quando estou feliz, ouço Racionais; triste, Racionais; no ódio, Racionais; na pura calma, Racionais.
Tárik de Souza, crítico musical
Paulo Lins, escritor Quando o voto do negro obteve força para decidir eleições no Brasil, os políticos tiveram de negociar os votos das comunidades do povo negro com as mães de santo do Candomblé e da Umbanda; e com os sambistas da época. A cultura é a maior arma política das sociedades. A entrada do Racionais MC’s no cenário artístico renovou, ampliou e modificou a força política das periferias brasileiras. Tanto a música como as artes plásticas, a dança, o teatro, o cinema e a literatura tiveram que dialogar com Mano Brown e seus parceiros, dando um novo horizonte ao debate político-cultural no país.
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Extraído do documentário Do jazz ao samba
Sob influência de Tim Maia (a partir do título do grupo) e Jorge Ben (de quem gravariam “Jorge da Capadócia”), dois mestres da negritude afro-soul brasileira, o grupo Racionais MC’s lançou os fundamentos do rap no país do carnaval. Ao mesmo tempo, mudou a interlocução da luta de classes, expressa desde as primeiras canções de protesto da bossa nova. Algo já registrado na era da malandragem do samba de morro (e depois com Bezerra da Silva e seus fornecedores da periferia): representantes do povo voltavam a falar de seus desejos e reivindicações, sem intermediários de classe média. Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay evitaram eufemismos. Com disparos poéticos certeiros e, muitas vezes, de narrativa cinematográfica, enfiaram os dedos nas chagas abertas desta nação campeã mundial de desigualdades sociais. Alguns temas: “Diário de um detento”, “Fórmula mágica da paz” (Sobrevivendo no inferno), “Pânico na zona sul”, “Periferia é periferia (em qualquer lugar)”, “Racistas otários”, “Beco sem saída”, “Homem na estrada”, “Vida loka”, “Tempos difíceis”, “Capítulo 4, versículo3”, “Artigo 157”, “Voz ativa” (Escolha o seu caminho), “Qual mentira vou acreditar”, “Tô ouvindo alguém me chamar”. E também atestaram a virada do sucesso, nos carrões que adornam a capa de Nada como um dia após o outro dia (2002). Era o prenúncio da vertente funk ostentação, uma espécie de capitulação popular da era patrimonialista que assola o planeta, com seus MC’s viciados em grifes e cacoetes da riqueza propagada nas redes sociais. Mas, antes do desembarque deste novo holocausto urbano, o Racionais já tinha feito sua parte. Com arte.
Imago-Eastnews
ANDRé CARAMANTE, jornalista
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A voz e a música do
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O surgimento do grupo é possivelmente o último grande
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Rodrigo Barreto
francisco bosco
Depois de um show tenso na Praça da Sé, em que houve enfrentamento entre público e polícia, o Racionais MC’s voltou ao palco da Virada Cultural em 2013, seis anos após o episódio
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Racionais
de
dossiê racionais MC’s
acontecimento da cultura brasileira
Rodrigo Barreto
“C
omício do Partido dos Trabalhadores, dia primeiro de maio de 1999. Tem mais gente do que no ano passado, ou retrasado, mas a diferença não é muito significativa. O que chama a atenção é a presença de um outro tipo de gente, um ‘público’ diferente da militância petista que já posso chamar de tradicional, dezoito anos depois. São jovens das periferias de São Paulo. [...] Esta moçada usa boné, bermudas largas, moletons imensos, cabelo raspado e óculos escuros. São escuros também, a grande maioria. [...] Quando o animador do comício anuncia a apresentação de alguns grupos de rap, encerrando com os Racionais MC’s, entendo a presença da moçada: são os ‘manos’.” Maria Rita Kehl flagrou a proximidade entre o rap e o PT logo nos primeiros anos de “sucesso” (é um pouco impertinente usar essa palavra, tanto eles recusaram sua lógica) do Racionais. Mas eles já estavam lá antes, senão de corpo e alma, certamente de alma. Anos depois, em uma declaração de apoio à candidatura de Dilma Roussef à presidência, Mano Brown lembraria: “Sou da geração que acompanhou o começo, o PT se formando como partido forte e tal. [...] A gente acompanhou as três eleições que o Lula perdeu”. O Racionais se formou em 1989, ano portanto da primeira disputa de Lula à presidência do Brasil. Essa convergência é carregada de sentidos e efeitos que se desdobram até hoje. O primeiro Lula, egresso do sindicalismo, foi a voz anticordial na política brasileira, erguendo-se contra as astúcias da modernização conservadora, apoiada por milhões de sujeitos socialmente massacrados, que se galvanizaram por ela. O primeiro Racionais foi, por sua vez, a voz anticordial na cultura brasileira, inspirada pelo racialismo dos negros estadunidenses, veiculada numa forma seca, franca e direta, capaz de internalizar e capturar o sentido da violência brasileira de uma maneira sem precedentes, e cuja força de verdade poética e histórica era tanta que colocou em crise toda a tradição da cultura popular brasileira, que até então se reconhecia em formas intimamente ligadas aos valores do encontro, da mistura, da conciliação de classes.
Com efeito, na entrevista que Chico Buarque deu à Folha de S. Paulo, em 2004, aventando a hipótese de um “fim da canção”, era no rap que ele encontrava um dos indícios principais desse acabamento. Chico Buarque estava certo: aquele rap anunciava mesmo o fim da canção tal como a conhecíamos, esvaziada pela poderosa verdade histórica de uma outra canção, cuja forma revelava, por sua vez, uma outra sociedade, um outro projeto de sociedade, outros desejos e outros métodos – métodos de luta, de enfrentamento. A voz de Lula e a voz do Racionais foram contemporâneas em um sentido muito preciso: vibraram os mesmos sentidos históricos e milhões de pessoas vibraram com elas. Se, como escreveu Tales Ab›Sáber, Lula era a “voz de trovão”, o Racionais era a voz do porão. “Diário de um detento”, ritmada por Brown a partir do texto de Jocenir (então preso no Carandiru), a canção que extrapolou as fronteiras sociais do rap e tornou o grupo conhecido em todo o Brasil, era o relato inaugural de um verdadeiro continente obscuro da sociedade brasileira, a experiência prisional, aonde nunca uma voz da cultura tinha ido com tanta crueza. E então esse Orfeu mestiço de pele – mas negro simbólico – que é Mano Brown emerge do Hades social nacional com uma antilira inescapável. O porão do Brasil, esse lugar sempre recalcado, e sempre retornando no real, agora era formalizado, capturado em seu sentido, quase me recuso a dizer sublimado, tão perto do real está sua forma. E aquela canção formalizava a experiência no Carandiru e se referia ao grande massacre, o recalque do recalque, o real do real e sua “piscina de sangue”. Era impossível não ouvir. O surgimento do Racionais é possivelmente o último grande acontecimento da cultura brasileira. O disco Sobrevivendo no inferno, de 1997, é o marco da propagação desse acontecimento. No ano seguinte, FHC começaria a cumprir o ciclo final do PSDB no governo federal. O movimento de propagação do Racionais seria o movimento de ascensão de Lula e o PT. 2002, o ano em que Lula finalmente vence a eleição para presidente da república, é também o último ano em que o Racionais lança um n°192
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A voz de Mano Brown, voz do Racionais, foi a última grande voz
disco de estúdio (Nada como um dia após o outro dia). Nesses últimos anos, não houve propriamente um silêncio; o grupo, bem como cada um de seus membros, separadamente, tocou projetos, compôs canções e as publicou. Mas é difícil deixar de observar, nessa trajetória espelhada entre Lula e o Racionais, que a ausência de discos coincide com a transformação de Lula. A voz de trovão anticordial se transformou no personagem cordial, cujas incontestáveis conquistas sociais foram possíveis por conta de um pacto de classes, onde os pobres ganharam – e os ricos ganharam mais. Enquanto Lula se transformava, o Racionais se transformava também. A recusa às contradições, manifesta no veto à participação em programas de televisão, nas entrevistas escassas, na lógica binária das exclusões (manos contra playboys), foi dando lugar a outras condutas: em 2008, Ice Blue e Mano Brown aceitaram produzir um disco para a Nike, disponibilizado gratuitamente no site da empresa; em 2009, Mano Brown aceitou posar para a capa da Rolling Stone, usando camisa da Nike nas fotos internas; em 2010, Brown gravou um vídeo de apoio à candidatura de Dilma; em 2012, o Racionais fez o show de encerramento de uma premiação da MTV; no ano passado, Edi Rock foi ao programa de Luciano Huck divulgar seu disco. Seria simples demais manter o espelhamento, falar de uma pactuação do Racionais e compreendê-la no mesmo sentido da transformação de Lula e do PT. Naturalmente, não falta quem os compreenda nesses termos. Pesquisando na internet, é possível verificar uma quebra de identificação entre o Racionais e uma parte de seu público. São muitos os que acusam o Racionais de “vendido”, “entregue” etc. Mano Brown assume as contradições: “Já fui muito mais radical [...] me acostumei com as contradições”. Mas é preciso entender a natureza dessas contradições, se é que são mesmo contradições. Tendo já estabelecido o sentido cultural do que me parece ter sido o acontecimento do Racionais nos anos 1990, tentarei compreender onde eles estão agora e qual o sentido de sua transformação. 56
“O rap é política, certo; conforme a política muda, a sua visão muda. Conforme ela se movimenta, você se movimenta [...] Esse governo é o governo do povo”. A partir dessa e de outras declarações de Mano Brown valorizando feitos do PT é possível pensar que a eleição e consolidação de um governo de esquerda (com todas a suas limitações) no Brasil tenham propiciado que Brown e o Racionais pudessem se liberar de certo fardo do heroísmo. O heroísmo não designa apenas uma liderança, a capacidade e responsabilidade de orientar o coletivo, mas também a disposição para o sacrifício do individual em privilégio daquele. Com efeito, na entrevista para a Rolling Stone, Brown declara: “Eu queria ser mais um. Mais uma roda, não o propor maquinista. Não dá para nascer Bob Marley todo dia, não dá para nascer Tupac ou Lula todo dia”. Essa liberação do heroísmo, do papel de orientador e modelo, bem como das restrições que isso coloca ao desenvolvimento de algumas possibilidades – essa liberação tem na música o seu grande caminho de afirmação. Aqui é preciso destrinchar as coisas, pois é óbvio que desde o início foi a música o veículo, justamente, do que estou chamando de heroísmo do Racionais. Se é assim, o que significa dizer que a transformação do Racionais vai do heroísmo à afirmação da música? Façamos uma diferença entre a música e a voz. O Racionais foi um acontecimento político dentro da cultura. Sem deixar de ser (grande) arte, o horizonte de realização daquelas canções era (também) a transformação social. As canções apelavam diretamente para a consciência dos manos, orientando-os para mudanças em seus comportamentos individuais e coletivos. A voz do Racionais se desdobrava em duas, no fundo inseparáveis: a voz musical, voz na canção, e a voz que continuava para além da canção, nas falas de Brown, nas entrevistas, e pela qual havia e ainda há sempre uma grande demanda. O rap, o gênero do Racionais, é ritmo e poesia, som e política, concreto e abstrato, significante e significado, em suma, música e voz. Parece-me que o sentido da transformação do Racionais nos últimos anos é o de abrir maior espaço para a música
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dossiê racionais MC’s
pensante na canção popular
dentro da voz. “O nosso amor é a música, mais até do que a política. O que me trouxe à política foi a música”, diz Brown. A voz não parou, não perdeu seu gume nem sua negatividade, mas se abriu, por dentro, em seus dois âmbitos – o político e a canção – para que a música pudesse ser mais liberada. Pois liberar a música implica, num plano político e concreto, viabilizá-la financeiramente. A ida de Edi Rock ao programa de Luciano Huck atende a esse desejo, assim com o show para a MTV. Brown diz ainda ter investido na indústria do rap boa parte do dinheiro que ganhou com o projeto para a Nike. As ações do Racionais abrangem um selo (Cosa Nostra) e uma empresa (Boogie Naipe) que gravam e apoiam diversos artistas do rap brasileiro. A horizontalidade política dos manos se desdobra agora no apoio à coletividade dos rappers. Mas a liberação da música se manifesta, sobretudo, nas canções feitas nos últimos anos. Ouça-se, por exemplo, “Mulher elétrica”. Para início de conversa, a letra é afirmativa, descreve uma mulher potente, exuberante, emancipada. Bem diferente daquela representação desconfiada do feminino, das mulheres plutólatras e traidoras (“Mulheres vulgares”). Isso talvez ajude a permitir uma abertura musical para tradições mais relaxadas da música negra. Quanto a isso, confirma-o também a parceria agora constante com William Magalhães e a banda Black Rio, uma das referências da mistura de funk, samba e jazz na música brasileira. Ouçase também “Mente do vilão”. A forma seca cede lugar a um arranjo mais complexo de piano, metais e vocais de fundo. A letra se torna mais enigmática (embora aqui o que considero enigmático possa ser sobretudo a minha ignorância das gírias empregadas, e gírias são os operadores ao rés-da-realidade por excelência). Há mesmo vídeos em que Mano Brown dança de forma diferente. Aquela dança “que não autoriza alegria nenhuma, sensualidade nenhuma” abre espaço para um corpo que flutua na música, permitindo-se a transcendência.
Parece certa essa maior abertura musical nesse momento do Racionais, com tudo o que isso exige e implica. É difícil determinar o que veio primeiro, se uma abertura, no sentido de uma complexificação, nas ideias políticas, que terá propiciado a abertura musical (“Eu ouvia pouco. Falava muito e ouvia pouco. Hoje, eu continuo falando muito, mas eu ouço muito também. Isso interfere nas músicas, não tem como negar.”); ou o contrário, um desejo de abertura musical que obrigou a uma flexibilização (“O Racionais parece ter uma cartilha a seguir e não fomos nós que a escrevemos. Foi a opinião pública. Somos reféns das palavras, mas não posso ser refém de nada, nem do rap. Vamos quebrar.”). Seja como for, o desejo pela música não anula a voz e sua negatividade crítica. Como se sabe, uma das canções dos últimos anos foi “Mil faces de um homem leal”, uma homenagem a Marighella. E Brown aparece em diversos vídeos falando sobre a realidade social brasileira. Talvez se deva dizer que foi se formando uma maior tensão entre a voz e a música, um desejo de conciliar a intransitividade alegre e plena da música com a transitividade crítica e incompleta da voz. A voz de Mano Brown, voz do Racionais MC’s, foi a última grande voz pensante na canção popular brasileira. Não se pode dizer que eles são herdeiros da tradição dos cancionistas pensadores dos anos 1960, já que, ao contrário, seu surgimento representa uma descontinuidade com eles. O Racionais é, antes, o primeiro dos arautos de uma cisão entre a cultura popular tal como a conhecíamos e o pensamento sobre o Brasil. Essa cultura popular, enformada pela mistura e conciliação de classes, soube inventar soluções inspiradoras para os problemas estruturais da sociedade brasileira. Mas essas soluções nunca se efetivaram em transformações sociais. Acredito que isso colocou em questão a forma dessa cultura popular e esvaziou seu papel de referência ou inspiração para novos projetos de sociedade (vigente, por exemplo, na conhecida frase de Caetano Veloso: “O Brasil precisa merecer a bossa nova”). O Racionais foi o primeiro a declarar essa crise. n°192
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Negro drama
A precisão musical e a contundência que traziam era
Jefferson D. Modesto
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“Eu sabia como ia cantar cada ideia, tal batida, como ia parecer o som, só não sabia que ia ficar do tamanho que ficou”, diz Mano Brown, referindo-se ao Racionais
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equivalente a um novo Navio negreiro, de Castro Alves
Jefferson D. Modesto
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s versos pintam um quadro seco e duro como a base rítmica: “No último Natal, Papai Noel escondeu um brinquedo/ prateado, brilhava no meio do mato/ um menininho de dez anos achou o presente/ era de ferro com doze balas no pente/ o fim de ano foi melhor pra muita gente”. Na letra, o tempo todo, a miséria da periferia paulistana aparece contrastada com a alegria tranquila e abastada da classe média, retratada com termos pejorativos – playboys lavando carro, a vaca loura jogando suas armas de sedução atrás de um homem com dinheiro. O título idílico coroa, com ironia, a denúncia da desigualdade: “Fim de semana no parque”. A música foi a primeira do Racionais MC’s a romper a barreira do gueto e chegar a rádios de pop-rock do país, na primeira metade dos anos 1990. Surgido no fim dos anos 1980, o grupo já tinha construído pelo menos mais um clássico no cenário do hip hop, “Homem na estrada”, saga trágica de um ex-presidiário “que se recuperou e quer viver em paz/ não olhar para trás/ dizer ao crime: nunca mais”. O ambiente que o cerca é desenhado em pinceladas certeiras: a lógica implacável da guerra do tráfico; a imprensa sensacionalista alimentada por essa lógica; a dinâmica da economia que torna as drogas um negócio rentável para a “diretoria” (ricos que contam os lucros longe da favela). “Um mano meu tava ganhando um dinheiro,/ tinha comprado um carro,/ até rolex tinha/ foi fuzilado à queima roupa no colégio, abastecendo a playboyzada de farinha/ ficou famoso, virou notícia, rendeu dinheiro aos jornais, cartaz à policia/ vinte anos de idade, alcançou os primeiros lugares.../ superstar do Notícias Populares/ uma semana depois chegou o crack, gente rica por trás, diretoria/ aqui, periferia, miséria de sobra/ um salário por dia garante a mão-de-obra/ a clientela tem grana e compra bem, tudo em casa, costa quente de sócio.” Naquele Brasil pré-Plano Real, o Racionais MC’s trazia em sua música, sem disfarces, o rancor de séculos de opressão racial – rancor personificado na figura sisuda de Mano Brown, sujeito avesso a entrevistas. Apesar de o cotidiano dos morros terem sido temas de inúmeros sambas antes, sempre havia o humor
ou o lirismo para atenuar o desenho – enfim, nunca tanta crueza havia sido exposta na canção popular brasileira. A força da chegada daquele discurso (ponta de lança de uma geração do hip hop que vicejava em periferias de todos os cantos do Brasil) – com a qualidade literária (sim, de uso eficaz, criativo, potente da palavra), a precisão musical e a contundência que Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay traziam – era equivalente a um novo Navio negreiro, de Castro Alves. Se Navio negreiro tivesse sido escrito pelos escravos. A emergência desse discurso já seria, por si só, algo grandioso. Mas há mais sob a aparente lógica sem tons de cinza do Racionais MC’s, que divide o mundo em preto/branco, certo/ errado, mano/playboy. Há uma complexidade insuspeita na dicotomia seca que o grupo expõe – há um Brasil vivo ali, enfim. Há pistas disso já em “Fim de semana no parque”. A faixa tem a participação de Netinho, do grupo de pagode Negritude Jr. (com seu canto-sorriso, seu romantismo açucarado, em tudo oposto ao ideal do Racionais MC’s, de uso da música para conscientização do povo preto). Um dueto que ecoa o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda. A ideologia aparentemente monolítica, pétrea, dos rappers, ganha reentrâncias insuspeitas para que se encaixe um velho amigo – Netinho e Mano Brown se conheceram na adolescência. A lealdade da amizade sobreposta à lógica do discurso – Mano Brown também participa de “Gente da gente”, faixa de álbum homônimo dos pagodeiros – se não suaviza, pelo menos oferece novas camadas de compreensão para o Racionais MC’s. Na mesma faixa, há samples (fragmentos) de Jorge Ben Jor, extraídos das canções “Frases” e “Dumingaz”. A presença sempre solar do autor de “País tropical” – que, em letra e música, sempre escolheu ser contundente pelo caminho da alegria, diferentemente dos rappers do Capão Redondo – não está ali como ironia, deslocamento. Tudo é muito mais. Primeiramente, porque “Frases” traz exatamente como personagem um menino “que não é ninguém”, como o garoto de “Vamos passear no parque”. Em segundo lugar, porque Ben Jor é o ídolo maior de Brown e seus colegas de grupo. O carioca é convidado de honra do DVD 1000 trutas 1000 tretas, primeiro do Racionais MC’s, lançado em 2006. n°192
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Reprodução
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A proximidade de Racionais MC’s e Ben Jor emerge da mesma dinâmica que fez com que o líder do grupo incorporasse o nome de James Brown ao seu – tanto o mestre americano como o brasileiro carregam a afirmação positiva, explosiva, celebratória do poder negro, black power, na forma como dizem que black is beautiful, negro é lindo. Mais que isso, essa proximidade Racionais-Ben-Brown tem raízes históricas, na maneira como se desenhou a formação musical dos jovens de periferia brasileiros dos anos 1970. Os bailes (nas ruas) e as vitrolas (nas casas) eram alimentados pela black music americana de James Brown, Marvin Gaye e George Clinton ou pelo sambalanço de Ben Jor (então Jorge Ben), Bebeto, Luís Vagner. Essa pré-história do hip hop nacional é mostrada pelo própria banda, num documentário dirigido por Mano Brown, extra do DVD 1000 trutas 1000 tretas. O ato de produzir o filme revela que a ambição educativa do grupo vai além de suas letras – há ali o desejo mesmo de desenhar a narrativa na qual o Racionais MC’s se insere na realidade brasileira, por identidade de classe, política, histórica. Dessa forma, indiretamente, eles atacam a famosa teoria de “linha evolutiva” da música brasileira, lançada por Caetano Veloso – linha que vem do samba, passa pelo samba-canção, por João Gilberto, desemboca nos festivais, na Tropicália e segue se desdobrando até hoje. Ou, se não a contradiz, o Racionais pelo menos apresenta uma bifurcação bastante interessante, com um corte de classe. Marcelo D2 costumava dizer que na sua casa (de classe média baixa, suburbana) não se ouvia Chico e Caetano (em outras palavras, a geração dos festivais), e sim Bezerra da Silva e João Nogueira – sambistas então contemporâneos, que falavam da realidade daquele momento. A lógica é essa. As referências que formaram o Racionais ajudam a entender como eles se posicionam frente à tradição musical brasileira – e à americana, matriz do hip hop. É ilustrativo o episódio de 2003, dos bastidores da participação do Racionais MC’s no programa “Ensaio”, de Fernando Faro – que documenta há décadas o caminhar da música brasileira. Como revelado em reportagem de Pedro Alexandre
REFERÊNCIAS: Jorge Ben Jor (à esquerda) é um dos ídolos do Racionais, sampleado em diversas músicas e convidado de honra do primeiro DVD do grupo, 1000 trutas 1000 tretas, de 2006. Abaixo, o guerrilheiro Carlos Marighella, cuja vida se tornou tema da música “Mil faces de um homem leal (Marighella)”, lançada em 2012
Sanches na Folha de S. Paulo, antes da gravação, Faro tentou identificá-los com a tradição dos sambas produzidos por compositores que retratavam a periferia que vivam – no caso, Wilson Baptista, autor de canções como “Mulato calado” (“A polícia procura o matador/ mas em Mangueira não existe delator”) e “Pedreiro Valdemar” (“Fez tanta casa e não tem casa pra morar/ Valdemar, que é mestre no ofício/ constrói um edifício e depois não pode entrar”). Sobre Baptista, eles dizem que não conhecem (“É samba-rock?”). O samba aparece quando Brown lembra que cantava “as músicas conhecidas da época, de Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Leci Brandão, Beth Carvalho”. Ecoa neles aquilo que Caetano (novamente) chama de “vontade fela-da-puta de ser americano”, que identifica como desejo comum a Raul Seixas e aos rappers brasileiros (“Quando eu passei por aqui/ a minha luta foi exibir/ uma vontade fela-da-puta/ de ser americano/ e hoje olha os mano”, canta em “Rock’n’Raul”). Afinal, os códigos do hip hop brasileiro, do qual o Racionais MC’s ajudou a desenhar a cartilha (antes deles, pioneiros como Thaíde e DJ Hum) estão profundamente arraigados nos códigos do hip hop americano de grupos como Public Enemy e Run DMC. Como Tim Maia fizera anos antes ao traçar um soul brasileiro a partir de seu
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fascínio com a cultura americana e a música que os negros de lá produziam – o cantor é outra referência central para o Racionais MC’s, e é da “fase Racional” de Tim Maia que vem o nome do grupo (e talvez parte do caráter quase religioso, evangelístico do discurso dos rappers, anti-álcool, antidrogas, com doses de misoginia). A afirmação positiva do poder negro via Jorge Ben Jor e James Brown, a combatitividade dos rappers americanos (e seus antecedentes, como Malcolm X, referência para Mano Brown), a vontade fela-da-puta de Tim Maia, a realidade crua da periferia de São Paulo – exposta não por quem vê de fora, mas sim na primeira pessoa da voz do presidiário, de quem sofre violência policial, de quem tem o desejo do consumo alimentado pela propaganda e vetado pela falta de dinheiro, de quem sofre preconceito de classe e de cor ao circular pela cidade (nas canções do Racionais MC’s, tanto quanto no funk ostentação, estão reveladas sementes dos chamados rolezinhos que eclodiram há alguns meses). As bases do Racionais MC’s que o país conheceu nos anos 1990 vêm dessa combinação. E aparece resolvida sem arestas, redonda, com sua força máxima, em Sobrevivendo no inferno, álbum de 1997 que, mesmo lançado de forma independente, ultrapassou a marca de um milhão de cópias vendidas (500 mil oficialmente). As bases instrumentais do álbum são aparentemente simples, como se houvesse um cuidado para que elas não roubassem atenção das letras – a música está ali para potencializar as palavras, mais eficiência do que surpresa. A gravação de “Jorge da Capadócia”, música de Ben Jor baseada na oração a São Jorge que abre Sobrevivendo no inferno, é um dos marcos mais bonitos, profundos e significativos da trajetória dosRacionais MC’s, ao apontar com clareza raízes ao mesmo tempo em que anuncia novas possibilidades, em música e letra, para o Racionais MC’s, para além das dicotomias. Somente cinco anos depois eles lançariam o álbum seguinte, o duplo Nada como um dia após o outro dia. Ali, eles cantam de outro lugar. Não mais da periferia, mas do lugar de quem a conhece, mas saiu dela pelo trabalho. “Negro drama” dá mais uma volta no parafuso, quando Brown canta que seu “negro drama” segue mesmo quando ele está num carrão. E analisa, provocador, o fascínio da classe média com ele, sua entrada no circuito de popstar – e da própria adoção do hip hop como a grande música pop dos anos 2000, adorada por playboys de todas as latitudes do mundo. “Inacreditável, mas seu filho me imita/ […] esse não é mais seu,/ subiu/ entrei pelo seu rádio/ tomei/ cê nem viu/ nós é isso, aquilo o que/ cê não dizia/ seu filho quer ser preto/ rá/ que ironia.” De alguma forma, antecipam e documentam a ascensão social de toda uma geração de jovens da periferia – num movimento movido por ações governamentais da gestão lulista (Bolsa Família, ProUni) e pelo controle da inflação implementado por Itamar Franco/ Fernando Henrique uma década antes. A periferia era outra. O próprio amadurecimento fazia com que surgissem raps como “Jesus chorou”, uma ode à lágrima do guerreiro, de um lirismo duro, mas lirismo:
A influência de Malcolm X (1925 - 1965), símbolo da luta do movimento negro, está presente, por exemplo, nas letras de “Jesus Chorou” e “Voz Ativa”
“Clara e salgada/ cabe em um olho e pesa uma tonelada/ tem sabor de mar/ pode ser discreta/ inquilina da dor/ morada predileta/ na calada ela vem/ refém da vingança/ irmã do desespero/ rival da esperança.” A própria lista de samples do disco – que inclui Almir Guineto e Ray Davies Orchestra – aponta o desejo de explorar novas fronteiras. “12 de outubro”, outro exemplo, é uma fala de Brown sobre uma base de um solo de “violão brasileiro”. A complexidade latente em “Fim de semana no parque” começava a se tornar patente. Brown, que por anos se mostrou irredutível por sua posição quanto à Rede Globo, em entrevista no ano passado à Revista Fórum avaliava a conquista de espaço do povo dentro da emissora, via “autores mais jovens”: “Três governos de esquerda eleitos pelo povo, o Brasil pagou a dívida, a classe C tomando espaço e a Globo expondo isso na novela, todo mundo analisando, os autores são mais jovens e começaram a mudar a mente, as ideias começaram a ir pra tela e os movimentos ganhando força a partir das ideias, muita coisa junto”. Ao mesmo tempo, o episódio do quebra-quebra na Virada Cultural de 2007, no confronto entre público e polícia durante um show do Racionais MC’s – e o consequente discurso preconceituoso que nasceu daí para explicar a confusão, responsabilizando o grupo e seu público (“pretos e pobres de periferia” era a mensagem subliminar) – mostrou que tensões das quais eles falavam desde a sua fundação (e que eram filhas daquelas de Navio negreiro) ainda estavam vivas. A última música lançada pelo Racionais MC’s, “Mil faces de um homem leal”, tributo a Carlos Marighella (“Um cara de um valor inestimável, gigante para a história do Brasil e para a raça negra também”, disse Brown na ocasião do lançamento, em 2012), tem a agudeza que consagrou os rappers. Mas agora, ligada a um contexto político até então inédito para o grupo: a ditadura militar – e a dinâmica “direita x esquerda” que advém dela e que renasceu no debate político nacional, turbinado em blogs e redes sociais. Para onde vai o Racionais MC’s? Para onde vai o Brasil e sua periferia, parece a pergunta certa. n°192
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Embora sejam raros, é possível flagrar momentos de lirismo ecio salles
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o escutarmos com atenção uma composição de um grupo de rap como o Racionais MC’s, abrimo-nos à perspectiva renovada de encontrar a beleza, lá onde sempre ela se dispôs a existir – nas produções estéticas. Como a da música, por exemplo. Beleza que, pelo menos sob um certo ponto de vista, dá lugar a um processo a que poderíamos denominar sublime, numa conotação que se desvie um pouco das acepções que o conceito adquiriu de Longino a Lyotard – passando por Kant, Schiller, Schelling... –, e se aproxime daquela apontada por Paul Gilroy, que a nomeou sublime escravo. O sublime como dimensão redentora da dor, a capacidade criativa que as populações negras teriam – no tempo da escravidão e depois – de transformar a experiência do terror, da opressão e da discriminação em formas estéticas que remetem ao prazer, e que constituiriam uma marca especifica dos modos de comunicação implementados pelas culturas dos escravos e seus descendentes na diáspora, ou, para usar um termo também sugerido por Gilroy, nas múltiplas travessias do Atlântico negro. São raros os momentos líricos, delicados, enfim, leves, na poesia do Racionais. Sua performance, embora nos últimos anos isso tenha mudado bastante, quase sempre, é rígida, com pouca dança, quase nenhum sorriso. Embora sejam raros, às vezes é possível flagrar momentos de lirismo e leveza na poesia do Racionais. Mesmo em condições absolutamente adversas. Mesmo que mediante um vocabulário persistentemente hostil, amiúde chulo. Em “Fórmula mágica da paz”, como salientou Maria Rita Kehl num artigo notável, há um dos poucos trechos em que o rap do Racionais deixa entrever algum sentimento de elevação ou de alegria: “Caralho, que calor, que horas são?/ posso ouvir a pivetada gritando lá fora/ hoje acordei cedo pra ver/ sentir a brisa da manhã e o sol nascer/ é época de pipa, o céu tá cheio/ quinze anos atrás eu tava ali no meio/ lembrei de quando era pequeno, eu e os caras/ faz tempo – diz aí! – o tempo não para”. Para Kehl, não há referência possível ao sublime numa arte cuja principal função é a de tentar simbolizar um cotidiano marcado pelo “nó duro do real”, no sentido lacaniano da palavra: “o indizível, o que está além da capacidade de elaboração 62
pela linguagem, o que nos escapa sempre”. O trecho citado, então, seria uma exceção nesse contexto. Ele abre uma brecha por onde entra, ou antes, por onde escapa um gesto em direção ao que, a essa altura, já vou chamando sublime. O sublime, diz J. Pigeaud na introdução ao conhecido livro de Longino, “exige força e mesmo violência, juventude, agilidade”. Creio poder dizer que força (ou violência), juventude e agilidade são palavras que, soltas do contexto, podem ser apropriadas para o pensamento sobre o hip hop, e, portanto, sobre a obra do Racionais MC’s, porque são palavras que dizem muito a seu respeito. Não tanto pelas razões óbvias, que remeteriam à realidade de violência e brutalidade em que os jovens rappers estão inseridos. O que importa é a força e a agilidade com que os rappers inflexionam seu discurso, com que arranjam o texto de suas composições; e a juventude que exala de suas performances, a fé inabalável na ideia de um futuro melhor, na possibilidade – da qual se julgam portadores – de transformar a realidade circundante. O professor Denílson Lopes, ao rediscutir a definição do sublime como “eco da grandeza da alma” (conforme Longino), contesta sua remissão ao absolutamente grande, como para o Iluminismo; ou seu fascínio pelo indefinido, como entre os Românticos. Para ele a presença do sublime está no extremamente pequeno, “no cotidiano, no detalhe, no incidente, no menor que residirá o espaço da resistência, da diferença”. Opto sempre por designar, o que me parece estar implícito também na inflexão do autor, a força específica e o posicionamento não hierarquicamente inferior disso que chamamos, de diferentes maneiras, “menor”. Por isso (por ser dotado de uma força específica) é que o detalhe e o cotidiano podem abrigar a resistência, entendida como re-existência. Uma existência outra, reivindicada para o futuro, mas um futuro alcançável para esta geração. Uma existência, enfim, que se aproxima decisivamente da acepção que o sociólogo Paul Gilroy conferiu ao conceito – a de sublime escravo. A ideia de um poder redentor especial produzido pelo sofrimento, “a capacidade dos negros de redimir e transformar o mundo moderno por meio da
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s: sublime o à beira do caos
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e leveza na poesia do Racionais verdade e da clareza de percepção que emergem de sua dor”. No momento atual, marcado intensamente por modos opressivos de gestão do planeta, o sublime escravo adiciona ao pensamento a respeito da Modernidade um ingrediente muitas vezes negligenciado: o racismo. As relações raciais desiguais e discriminatórias que perduram ainda hoje mostram que os ideais iluministas são incompletos, incongruentes com a realidade cotidiana de milhões de pessoas excluídas dos processos de modernização tecnológica e social, dos princípios da democracia e da justiça. Por isso, não é rara a associação entre a vida nas favelas e a memória dos tempos da escravidão, como aliás fazem diversos rappers. (E já haviam feito os sambistas: “Pergunte ao Criador quem pintou essa aquarela/ livre do açoite na senzala/ preso na miséria da favela” [Hélio Turco, Alvinho e Jurandir da Mangueira], e os roqueiros nacionais: “A favela é a nova senzala” [Lobão]). O terror atribuível à escravidão (à sua época), hoje é atribuído à vida em comunidades pobres da periferia, incluindo as favelas. Numa de suas composições, o Racionais cantaria: “Hey, Senhor de engenho/ eu sei bem quem é você./ Sozinho, cê num guenta” (Grifo meu). Ao mesmo tempo em que, na mesma canção, narra os problemas da comunidade, exemplificados no alcoolismo, no consumismo, no tráfico e na violência armada: “Você disse que era bom/ e a favela ouviu/ lá tambem tem/ whisky, Red Bull, tênis Nike e fuzil” (Racionais: “Negro drama”). Importante salientar que essa memória de um tempo anterior, de dor e sofrimento, a meu ver, não implica um aprisionamento num passado heróico, ou a sua idealização. Tampouco trata-se de uma nostalgia ressentida. Ela significa antes uma fonte, entre outras, para a formação e a consolidação de uma identidade específica no presente: a identidade negra. Esse laço entre o presente na favela e o passado no cativeiro é atado, sob um certo aspecto, pela experiência da perda – da qual a morte é um emblema muito significativo. Não só na obra do Racionais, mas nas composições de muitos rappers, a morte aparece com frequência comparável a daquelas estampadas nos jornais ou
narradas nos programas de rádio e TV, notadamente, aqueles voltados para o segmento popular. O que é sarcasticamente exposto pelo próprio Racionais na letra de “O homem na estrada”, ao comentar sobre um “mano” que estava ganhando dinheiro, mas foi fuzilado no colégio e tornou-se “superstar do Notícias Populares”. Em “Fórmula mágica da paz”, esse sentimento – o da perda – está presente o tempo todo, revelando inclusive que o narrador que o expõe é alguém raro, que escapou ao mesmo destino, aparentemente inevitável: “Agradeço a Deus e aos Orixás/ parei no meio do caminho e olhei pra trás/ meus outros manos todos foram longe demais/ Cemitério São Luís aqui jaz” (Racionais: “Fórmula mágica da paz”). Em outra composição, Mano Brown informava: “Permaneço vivo, eu sigo a mística/ vinte e sete anos contrariando a estatística” (Racionais: “Capítulo 4, versículo 3”). Essa narrativa busca dar conta de uma experiência limite, em que a violência, a tortura, os homicídios e chacinas tornam-se banais. De alguma maneira, como dizia Maria Rita Kehl acima, há uma dificuldade em simbolizar esse cotidiano, que seria da ordem do indizível, “do que nos escapa sempre”. Ainda menos provável, sob esse prisma, seria o advento do sublime. Minha opinião é de que o problema se resolve ao considerarmos a viabilidade do conceito de Sublime escravo, uma vez que este – ao mesmo tempo em que guarda relação com as acepções mais difundidas do conceito na sua acepção clássica – procura fazer a ligação entre as manifestações criativas populares dos negros e a experiência do terror inefável imputável à escravidão e à experiência negra contemporânea nos subúrbios e favelas. Lembro que os primeiros versos de “Fórmula mágica da paz” anunciam essa realidade dura: “Essa porra é um campo minado/ quantas vezes eu pensei em me jogar daqui”. Todavia, como indicou Maria Rita Kehl, alguns poucos momentos de contemplação e lirismo “são contrabandeados pelas brechas de uma vida que não oferece nada de graça”. O sublime surge em meio ao caos, inesperado e raro, contrabandeado, introduzindo esse elemento de forma clandestina, sutil, sub-reptícia. Mas é a partir daí, também, que o rap se opõe ao caos, à miséria e lida com a perda. n°192
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O céu cheio de pipas, que Kehl compara a uma “madeleine dos pobres” (curioso que Denílson Lopes, ao associar o sublime com o extremamente pequeno, considerará possível identificá-lo, posteriormente, “na memória involuntária de Proust”), evoca no trecho citado o tempo de infância, dos sonhos e da inocência perdida. Mas também, conforme percebeu a autora, as pipas criam um outro espaço para a intromissão da beleza no discurso, elas impõem um olhar que se erga além da miséria cotidiana, que vise ao céu, agora dissociado da ideia de morte, de transcendência; é o “céu dos vivos”, que chama à vida, à produtividade da vida: “O céu cheio de pipas da periferia é uma interferência estética sobre a miséria e a recusa da desumanização que ela promove”. As pipas no céu acabam fazendo um paralelo interessante com a agenda do sublime escravo. Afinal, a “ultrapassagem do reino da necessidade” significa também a sublimação do sofrimento pelo viés estético. Por outro lado, uma dimensão que deve ser considerada é a da precariedade com que se realiza esse movimento. O céu é enfeitado, cabe lembrar, a partir de recursos precários (como cola, papel e linha), necessários à confecção das pipas. O que encontra alguma ressonância no que Denílson Lopes explica sobre o sublime, que se constituiria como “a base de uma educação dos sentidos a partir do precário, do fugaz, do contingente, de tudo que evanesce rápido, mas que brilha inesperada e sutilmente. Um tesouro para ser guardado”. A experiência estética do Racionais (como de resto, a de boa parte das manifestações artísticas do hip hop) atua nesse sentido. Entretanto, a sua educação dos sentidos parte do precário para criticar decididamente as razões da precariedade; o brilho inesperado e sutil de suas formas evanesce rapidamente, mas de alguma forma permanece na memória, como um efeito pedagógico que demonstra a potência realizável disso que brilha, e que pode alegorizar uma outra existência, uma reexistência – apesar de as letras no geral irascíveis e as melodias secas e ruidosas parecerem indicar o contrário. Para uma cultura que constituiu um universo de misérias, traições, tiroteios, violências de todo tipo, ausência, penitenciárias, perdas e danos, a recorrência aos mundos mágicos, aos diamantes que vêm da lama ou às pipas no céu revelam uma insistente – e quase improvável – fé na mudança, no tempo de constituição de um outro lugar, onde prevaleça a liberdade e a justiça; revelam a percepção de um outro valor , agora positivo, para os que foram discriminados e criminalizados por fatores raciais e sociais; remetem para um tempo de inocência e solidariedade, talvez menos com nostalgia de um tempo irrecuperável que com esperança (ainda que uma esperança desconfiada) num futuro transformado. Afinal, as pipas no céu exigem o olhar voltado para o alto, para o céu azul dos vivos. 64
Edi Rock acredita que cada integrante do Racionais é um “personagem”: “Eu sou a razão”
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