Contos da confraria

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Confraria


s luzes se apagaram. s cortinas se abriram. O público permanecia no escuro, imerso em um silêncio expectante. Um facho amarelado iluminou o palco lentamente, revelando a existência de um pedestal prateado, adornado por figuras retorcidas de demônios e criaturas abissais a se digladiarem para apoiar em seus dorsos um curioso volume de capa escarlate. Um livro. Só isso. Nada mais. Cochichos impacientes percorreram as fileiras de espectadores. Um senhor gordo se remexeu na cadeira e resmungou algo ininteligível, claramente insatisfeito. Onde estava o espetáculo prometido? Onde estava a diversão anunciada? No palco, o silêncio e o misterioso livro vermelho imperavam absolutos. Até a quietude ser quebrada por um barulho distante. A plateia se calou instantaneamente, curiosa com a origem do som, que se repetia a intervalos distintos. Passos. O barulho pareciam passos distantes a descerem de uma altura incomensurável. Mas que se aproximavam pouco a pouco. Cada um mais alto que o anterior. Cada um mais ameaçador.

Boom!!!Boom!!!Boom!!!

Boom!!!Boom!!!Boom!!!

Os passos davam a entender que alguém de tamanho considerável, um verdadeiro gigante, descia por uma escada em forma de caracol com passos pesados e retumbantes, semelhantes às batidas de um tambor. Logo, o dono de tais pegadas se revelaria. A qualquer momento, os sons deixariam os bastidores para alcançarem o palco e a plateia preocupada. Os passos se aproximavam nervosos.

Boom!!!Boom!!!Boom!!!

A revelação estava perto. Até que por fim atingiram o nível do palco e retumbaram pelo lado direito para se encontrarem com o público. Terror - Ficção Científica - Fantasia

11 Calabouços da Imaginação - A Confraria

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Boom!!! Boom!!! Boom!!! 12 Calabouços da Imaginação - A Confraria

O barulho dos passos pesados desapareceu na mesma hora em que um homem saiu do lado esquerdo do palco com um sorriso branco no rosto, pegando os espectadores de surpresa. Ele andava sem fazer barulho nenhum. Do gigante invisível que assombrava a imaginação de todos, não havia sinal. Um truque de sonoplastia, certamente. O sujeito apareceu vestido num elegante smoking negro como a noite, com sapatos italianos brilhantes, luvas brancas de algodão, camisa social branca, gravata borboleta, uma cartola redonda e uma bengala de madeira com a qual se movia graciosamente, igual um felino. O apresentador transpirava a confiança de alguém incapaz de dar um passo em falso. Olhos da cor de jambo fixavam a plateia com um brilho malicioso, acentuado pelos traços aristocráticos do rosto anguloso, marcado por sobrancelhas escuras e enviesadas, além de um cavanhaque bem aparado que adornava lábios grossos e famintos. No mais completo silêncio, ele parou no meio do palco, pés colados um no outro, mãos a descansarem displicentemente sobre a bengala. Deixou o olhar satisfeito percorrer as fileiras de espectadores. Quando os olhos do anfitrião completaram o percurso, retirou a cartola e dobrou o torso num cumprimento educado ao público. Imediatamente, uma revoada de corvos saiu de dentro da cartola e encantou a plateia. As aves se espalharam pelo teatro, em meio a grasnidos e um bater incessante de asas negras. Um dos corvos pousou no ombro do mágico, quando esse voltou a ficar de coluna ereta, e só então percebemos a estranha mudança que se passou durante o pequeno truque com os pássaros. O elegante mágico que nos recebeu desapareceu para dar lugar a uma figura muito mais sinistra. Um homem de pele escura, descalço, de calça jeans, um cinto com fivela de caveira, um terno surrado e aberto desleixadamente, com o peito nu coberto por co-


– Senhoras e senhores – começou solenemente o negro, que mais parecia um praticante de vodu. – É com muito orgulho que os convido para uma noite de prazeres e mistérios nesse local, distante de olhares mundanos, onde não seremos incomodados pelo barulho do mundo lá fora! No entanto, antes que comecemos nossa apresentação, se faz necessário avisar a todos aqui presentes dos perigos que nos espreitam das sombras... Caminhamos por terrenos perigosos, damas e cavalheiros. É preciso ter cuidado para não cair em armadilhas ou nas garras de algum monstro traiçoeiro, de garras afiadas e dentes pontiagudos... Como para dar ênfase às palavras, o negro levantou o braço e bateu a bengala com força no chão.

BOOOOOOOOOMMMM!!!! A explosão pegou a todos de surpresa. Uma luz cegante se manifestou no salão e, por um breve momento, revelou vultos indistintos a se afastarem com expressões assustadoras pelos cantos de nossas visões ofuscadas. É impossível dizer se tais imagens eram reais ou frutos da sugestão oferecida pelo homem no palco. Os sentidos confusos e a cegueira momentânea nos impediam de tirar qualquer conclusão sobre o que ocorria ao redor. Mas devia ser outro truque minuciosamente estudado, com certeza. Foi para isso que pagamos o ingresso. Procurar por explicações lógicas para o que ocorria ao nosso redor fazia parte do espetáculo. Era bom ver que estávamos diante de um mágico experiente e que, pelo jeito, já havia mudado de visual novamente. No lugar do neTerror - Ficção Científica - Fantasia

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lares cheios de ossos de pequenos animais. Ele oferecia um sorriso cheio de ouro e prata no meio de um rosto debochado, de olhos esbranquiçados pela catarata e dreadlocks a caírem pelos ombros. Ajeitou a cartola torta e manchada pela passagem do tempo na cabeça, tossiu uma vez, e apoiou o peso do corpo sobre a bengala. Seria ele o mesmo homem de antes? Como os dois trocaram de lugar? Era impossível dizer.


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gro assustador nos deparamos com um jovem de aparência árabe, sapatilhas amarelas, calças de seda azul e bufantes, uma faixa vermelha amarrada na cintura, jaqueta preta com bordados dourados e sem mangas, anéis de ouro nos dedos e a imutável bengala de madeira na qual continuava a se apoiar. O rosto do rapaz era fino, com um nariz protuberante, lábios finos e olhos castanhos. Cabelos curtos e escuros cuidadosamente penteados completavam o visual estranhamente familiar. Ele riu com gosto do susto que deu nos espectadores, como um ladrão que escapa pela noite escura com o butim e o coração de jovens damas inocentes. – Posso ver que capturei a atenção de vocês, não? – a voz era a mesma do apresentador anterior, embora a entonação fosse completamente diferente. – Fumaça e espelhos – continuou. – Qualquer truque de mágica se resume a um uso engenhoso de fumaça e espelhos. Eu faço um gesto qualquer... – demonstrou o árabe fazendo os dedos dançarem no ar e, não mais que de repente, surgirem com uma bola do tamanho de um punho, saída sabe-se lá de onde, na palma da mão. – ...E a mente de vocês procura por respostas para explicar de onde saiu esse singelo objeto que lhes mostro nesse momento. Vocês se impressionam, mas não ficam aterrorizados com tal proeza – o árabe joga a bola casualmente para cima e a pega com a outra mão, na parte de trás do corpo, sem tirar os olhos do público. - Isso acontece porque não passa de um truque barato, que exige um pouco de destreza e subterfúgios, mas que pode ser perfeitamente explicado e reproduzido por alguém que possua o treinamento adequado. Por esses motivos, vocês se deslumbram, mas também se sentem enganados. Porque a criança dentro de cada um de vocês queria um pouco mais do que isso. Porque o que todos aqui desejam é um pouco da verdadeira e incompreensível Magia. Mas será que ela existe mesmo? Será que podemos alcançá-la? Isso, meus caros amigos, é o que pretendo descobrir com


vocês essa noite...

– A verdadeira magia só pode ser conquistada quando se ultrapassa os limites da imaginação – pronunciou o velho com uma voz rouca, porém cheia de autoridade. – Quando crianças, entendemos isso perfeitamente e brincamos com amigos imaginários, conversamos com animais e procuramos por visitantes alienígenas entre as estrelas do céu. Infelizmente, isso não dura muitos anos. Somos podados o tempo todo pelos nossos pais e pelos adultos que nos cercam para onde quer que olhemos. A sociedade nos impõe limites com todas suas regras de conduta e explicações científicas para os eventos misteriosos que nos cercam. A razão diminui o mundo em fragmentos a serem mastigados e absorvidos pelo bicho-homem, que para crescer e ser bem sucedido precisa deixar as superstições para trás. Isso não seria de todo ruim, se também não fôssemos levados a relegar o conhecimento a um segundo plano. Terror - Ficção Científica - Fantasia

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O árabe sorriu, cheio de malícia, e jogou a bola com força no chão. Ela explodiu sem fazer barulho e largou uma nuvem negra de fumaça, que envolveu o apresentador por inteiro. Foi aí que as coisas começaram a ficar interessantes de verdade. Brilhos azulados se manifestavam dentro da nuvem. Barulhos de trovão reverberaram pela plateia. Raios minúsculos saltaram poucos metros de distância e deixaram marcas negras na madeira do palco, sem nunca deixar seus limites. A nuvem começava a se dissipar para revelar a nova faceta do mágico, que apareceu dessa vez vestido num manto surrado acinzentado, com uma corda amarrada na cintura, mãos esqueléticas cheias de unhas longas e sujas, uma barba branca longa e emaranhada, e olhos frios como o inverno a sobressaírem das sombras de um chapéu sujo e pontudo. A bengala continuava a mesma, a sustentar o peso do mágico como bem lhe cabia. Ele bateu com ela no chão uma vez. Pingos de chuva caíram sobre o público, que procurava o ponto de origem da água. Talvez sprinklers no telhado. Ele bateu a bengala uma segunda vez. A chuva parou tão repentinamente quanto começou.


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No mundo moderno, o importante é sobreviver. Assim, dos campos férteis e repletos de possibilidade do infinito, nos trancamos em calabouços de mediocridade e ganância. Assumimos rotinas tediosas e resumimos nossas vidas a uma série de ações preordenadas, despidas de grandes emoções. Nos transformamos em prisioneiros de nossas próprias histórias. Mas não precisa ser assim... O mago levantou a bengala e a segurou com as palmas das mãos abertas, mostrando-a para o público com uma reverência ímpar. Ele respirou profundamente uma... duas... três vezes. Então abriu os olhos e fitou o objeto com uma concentração sem igual. De repente, não mais que de repente, algo impossível aconteceu. Como podia ser real? Onde estavam os espelhos? Onde estava a fumaça? Aquilo tinha que ter alguma explicação. A bengala começou a diminuir de tamanho a olhos vistos. E essa não era a única mudança em andamento no palco. As unhas do feiticeiro também se retraíam. A barba do homem se recolhia preguiçosamente. O manto sofria uma estranha transformação. O chapéu pontudo ficava invisível para sumir em pleno ar. O homem nos encarou com olhos felinos, de um verde intenso e verdadeiro. O rosto dele rejuvenesceu rapidamente. O cabelo ficou curto e negro. Em poucos segundos, um jovem de aparência arisca, vestido com uma camisa azul sem estampas, calça jeans e tênis discretos, com uma elegante caneta de nanquim entre os dedos da mão direita substituiu o velho mago para a surpresa absoluta da plateia. Tudo às claras sem uso de nenhum mecanismo para esconder a terrível metamorfose. Seria impossível descrever o terror que tomou conta de todos diante de tal espetáculo. – Podemos usar as máscaras que quisermos para construirmos nossas próprias histórias – continuou o rapaz com voz alegre e descontraída como se não tivesse feito nada demais. – As paredes do calabouço que nos cercam são invisíveis e menores do que os nossos sonhos. Podemos ultrapassá-las facilmente para percorrermos os campos infinitos da imaginação sempre que


O jovem abriu caminho no palco, para dar lugar ao livro vermelho que esperava pacientemente em seu pedestal demoníaco a conclusão das demonstrações. A obra parecia brilhar com uma energia própria. A capa nos desafiava. Ela desejava ser aberta. A intenção era clara e impossível de ser ignorada. – Não tenham medo – recomendou nosso jovem anfitrião. – Permitam-se mergulhar nesse mundo de imaginação. Nem que seja por alguns poucos minutos ou por horas prazerosas. Deem-se uma chance de serem envolvidos pelo mistério. Mergulhem nos contos delineados nesse livro, descobertos por uma confraria de ilustres desconhecidos, que também navegam por águas obscuras em busca de segredos insondáveis e sonhos inatingíveis. Sigam com eles por essa aventura de destino incerto, se tiverem coragem. E descubram os magníficos tesouros que vocês também podem encontrar. Não é difícil. Eu ensino a vocês. Basta virar a primeira página. Mas cuidado! Perigos espreitam as sombras! Demônios escondem-se onde menos se espera! E nenhum de nós está a salvo da loucura que se arrasta por essas páginas, saídas das profundezas do subconsciente coletivo! O jovem volta-se com o sorriso mais branco do que nunca, os olhos a brilharem, cheios de desafio e promessas invisíveis. – Vai encarar?

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desejarmos. Claro, dá um pouco de trabalho, exige dedicação e disciplina, mas também oferece muitas recompensas. Prêmios imateriais, que alimentam as almas em vez dos bolsos. Histórias selvagens capturadas por espíritos experientes. Relatos que podemos passar para o papel e, dessa maneira, criar verdadeiros universos completamente independentes de nós mesmos. Essa é a verdadeira Magia, meus caros. Esse é o segredo que vocês vieram procurar. E vale a pena conferir os frutos que essas incursões nos planos etéreos produzem. Venham! Olhem vocês mesmos...


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