Nelson F. Fontoura
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O O b s e r va d or
Meu nome é Marek e esta é a minha história. Estou a 800 mil quilômetros de distância da Terra, muito além da órbita da Lua. Nossos sensores captam todas as formas de radiação emitida, incluindo sinais de telefonia móvel, transmissão de dados, programação de tevê e de rádio. Câmaras de alta precisão fazem continuamente uma varredura da superfície da Terra. Somos capazes de identificar qualquer objeto maior que 10 cm. Sou responsável, em minha nave, pela coordenação dos sistemas de monitoramento de dados. Nosso computador é muito rápido e, em sistema de amostragem, avalia todo o
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conjunto de informações recebidas, gerando relatórios de tendências climáticas, ocupação do solo, degradação ambiental, tendências políticas, econômicas, culturais, tecnológicas e demográficas. Posso dizer que conheço razoavelmente a Terra: sua evolução geológica e biológica, incluindo a história da humanidade. Afinal, esse é o meu trabalho. Nossos relatórios são enviados continuamente para Kao, meu planeta natal, onde servem de base para uma série de trabalhos desenvolvidos na Universidade de Utt, a principal instituição de pesquisa envolvida no monitoramento de vida extra-kaônica. Tem sido assim pelos últimos 20 mil anos. É claro que trabalho neste projeto há bem menos tempo. Vim para esta nave faz 12 anos terrestres, logo após ter concluído minha formação em astrobiologia. Entretanto, embora o trabalho seja interessante, é extremamente organizado através de manuais operacionais e protocolos de ação. De fato, a maior parte do trabalho é feita automaticamente pelos vários sistemas, de forma que me sobra bastante tempo para divagar e escrever. Nem sempre foi assim. No início as coisas eram bem mais emocionantes. Tínhamos uma rede de sensores distribuídos pela superfície da Terra. Equipes de campo coletavam amostras geológicas e espécimes. Todo esse
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material encontra-se depositado na ala K74WKZF do Museu Astronômico de Utt. K74WKZF é a nossa designação técnica para o planeta Terra. Nossas observações de campo, em contato direto com humanos, perduraram até cerca de seis mil anos atrás. Mas, com a evolução da cultura humana e o surgimento de sistemas de escrita, nosso código de ética de não intervenção nos obrigou a um afastamento gradativo. Durante o início do século XX, ainda mantínhamos naves em órbitas relativamente baixas e incursões de amostragem ocorriam com alguma frequência, mas sempre com muito cuidado. Infelizmente, com a evolução da tecnologia militar ocorrida na Segunda Grande Guerra, especialmente com o desenvolvimento do radar, o programa de incursões terrestres foi praticamente paralisado. Por outro lado, o lançamento de satélites, assim como a instalação de telescópios e radiotelescópios de alta resolução, fez com que tivéssemos que aumentar gradativamente a nossa distância de observação, assim como exigiram pesados investimentos em sistemas de não detecção. Cresci vendo filmes de exploradores kaônicos em diversos planetas do universo conhecido, embrenhados em selvas, desertos, oceanos profundos e geleiras eternas. De certa forma, esses filmes moldaram a minha escolha de carreira. Queria viajar para mundos distantes, observar
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pessoalmente as diversas formas de vida e, principalmente, incorporar um pouco de aventura a uma vida demasiadamente tranquila e planejada. Agora estou aqui, sentado diante de um monitor, com o universo por testemunha, mas nada acontece. Os sistemas de monitoramento automático funcionam perfeitamente, não há aventura ou emoção e poucas tarefas exigem o meu empenho pessoal. — Marek, venha aqui um minuto, estou tendo problemas para calibrar o sensor i. Quem me chamava era Mabel, uma engenheira recém-graduada, chegada há alguns dias para a instalação de um novo sensor. Estávamos iniciando uma nova fase de nosso experimento: avaliar o balanço energético total da Terra e de outros sete planetas sob observação. O momento era particularmente interessante, a Terra experimentava um processo de aquecimento gradativo, atingindo níveis similares ao que já havíamos estimado para alguns máximos climáticos dos últimos milhões de anos. Nós estávamos em situação privilegiada; tínhamos registros completos de toda a radiação incidente na Terra e podíamos mensurar toda a radiação emitida com grande precisão. Por outro lado, o monitoramento do tráfego de informações digitais nos permitia medir o consumo de combustíveis fósseis e as diversas formas
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de produção de energia. Sensores espectrais permitiam avaliar a extensão da degradação ambiental, assim como a concentração atmosférica de metano e dióxidos de carbono, enxofre e nitrogênio. Um sistema perfeito, ou quase. Nos vários planetas monitorados, com formas de vida simples ou complexa, houve sempre um déficit no balanço energético mensurado: todos os planetas absorviam mais energia do que emitiam depois de computado o processo natural de resfriamento da massa ígnea. A diferença era mínima, mas consistente. Nossos cientistas passaram a denominá-la de Fator i. Entre a tripulação, brincávamos que o “i” seria de imbecil, mas o fato era que isso atormentava a nossa tão orgulhosa comunidade científica. Era realmente frustrante... Como uma civilização com uma cultura tecnológica já tão antiga poderia ser incapaz de resolver um problema aparentemente banal? Alguns físicos kaônicos sustentavam que a única possibilidade seria que houvesse perda de energia em forma não detectável pelos nossos instrumentos. Entretanto, a nossa Teoria Energética Universal, que vinha sendo testada por quase 30 mil anos, nunca tinha se deparado com qualquer resultado anômalo. Um grande prêmio foi oferecido para quem desvendasse o Fator i.
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— Marek, por favor, estou precisando da sua ajuda. — Desculpe Mabel, é tanto tempo divagando que acabo me desligando de tudo... Mas em que posso ajudar? — Eu fiz todas as instalações e checagens segundo o manual de instalação do sensor i... Fiz tudo cinco vezes, mas os resultados anômalos continuam. Preciso que me ajude um minuto. Vou entrar embaixo do painel para checar os sistemas de interface. Por favor, verifique pelo monitor se há alguma alteração na relação sinal/ruído das radiações gama. — Pode deixar, Mabel, será um prazer. Pelo menos consigo me sentir um pouco mais útil! Na verdade, existiam dois prazeres... Trabalhar um pouco numa atividade diferente era sempre estimulante. Observar Mabel enfiada por baixo do painel de instrumentos também me permitia algum deleite.
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Sim, nós kaônicos também apresentamos dois gêneros, ou sexos, se preferirem. Podem considerar-me do tipo masculino, ou homem, para simplificar, aquele que não incuba os filhotes. Mabel poderia ser considerada um exemplo perfeito de fêmea ou mulher kaônica: longilínea, sinuosa e provocante.