Edição 211 do Brasil de Fato MG

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Mídia NINJA

ESPECIAL

Minas Gerais

Belo Horizonte, novembro de 2017 • edição 211 • brasildefato.com.br • distribuição gratuita

Minha raiz anda comigo O que é “consciência negra”?

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Quilombolas na luta por território 4 Uma vida de ativismo pelos direitos da população negra

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Entrevista com zambiano Cosmas Musumali

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Uma editora do mundo colorido

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Onde está a diferença?

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Afasta de nós este cálice!

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OPINIÃO

Belo Horizonte, novembro de 2017

Editorial | Brasil

Consciência negra por um Brasil melhor para todos

? PERGUNTA DA SEMANA

O Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, relembra a data em que Zumbi dos Palmares foi assassinado. Frente à história de luta e resistência de negras e negros pelo fim do racismo, que ainda existe no país, o Brasil de Fato MG saiu às ruas e perguntou:

Qual o seu recado no dia da Consciência negra?

“O que eu tenho a dizer sobre esse dia é que a luta continua, porque a gente está apenas começando. Ter esse dia é um avanço na história do Brasil e do mundo também. Porque consciência negra é mundial!”

“O meu recado é para que haja menos preconceito. As pessoas não veem que atrás da cor tem um coração, é um ser humano que está aqui. Então o meu recado é que as pessoas amem mais os negros e nos respeitem”

Ângela Maria dos Santos aposentada

Ilton de Fátima Antônio, vigilante

Escreva para nós: redacaomg@brasildefato.com.br

A cada 23 minutos, um jovem negro é morto no Brasil. Um rapaz negro tem até 12 vezes mais chance de ser assassinado do que um branco. As mortes de mulheres negras aumentaram 22% de 2005 a 2015, enquanto a de mulheres não negras caiu. Esses e muitos outros dados estarrecedores – reunidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) na campanha “Vidas Negras” – servem de alerta para a importância, urgência e atualidade de discutir racismo no Brasil. Já que 20 de novembro é a data em que se celebra a consciência negra, o Brasil de Fato Minas Gerais se soma a esse debate fundamental e produz esta edição especial sobre o assunto. Para além de denunciar os absur-

Único quilombo titulado em Minas foi inundado dos que um racismo estrutural produz no país, esta edição também procura levantar algumas iniciativas e histórias de resistência, liberdade e beleza. Viva Zumbi! Homenagear um dos grandes líderes latino-americanos na luta pela libertação do seu povo é falar também na continuidade dessa história. Por isso, além de apresentar as origens da data da consciência negra – em 20 de novembro de 1695 o líder dos Palmares foi brutalmente assassinado – trazemos uma matéria sobre a realidade da luta quilombola hoje.

O jornal Brasil de Fato circula semanalmente com edições regionais, em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, no Paraná e em Pernambuco. Queremos contribuir no debate de ideias e na análise dos fatos do ponto de vista da necessidade de mudanças sociais em nosso país e no nosso estado.

Porque os quilombos ainda existem, apesar do pouquíssimo reconhecimento do poder público. No Brasil todo, apenas 169 territórios foram titulados, e há mais de 2500 comunidades à espera. Em Minas,

Um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos estima-se que há 500 comunidades quilombolas. Apenas uma teve direito ao título. E este único quilombo foi inundado posteriormente pela barragem de Irapé. Num triste retrato simbólico do Brasil, o suposto progresso literalmente passa por cima de décadas de luta e milhares de pessoas. Retratos E as pessoas são fundamentais na luta. Nesta edição, Makota Kizandembu, Maria Mazarello Rodrigues, Diva Moreira, Cosmas Musumali, Miriam Aprigio, Sandra Maria da Silva Andrade, Markim Cardoso, Íris Amâncio são alguns dos lutadores que partilham sua visão de mundo. Seja na moda, na religião, na ciência política, na teoria, na literatura ou no sonho, partilham o ideal de igualdade e justiça. Muitos outros militantes de movimentos negros colaboram regularmente com o Brasil de Fato MG. Aos presentes nesta edição e a todos os demais, nosso muito obrigado. Como eles, nos colocamos na trincheira da construção de outros valores para a sociedade, que reconheçam – ainda que tardiamente – que a consciência negra é crucial para um Brasil melhor para todos os brasileiros.

REDE SOCIAL: facebook.com/brasildefatomg correio: redacaomg@brasildefato.com.br para anunciar: publicidademg@brasildefato.com.br TELEFONES: (31) 3309 3314 / (31) 3213 3983

conselho editorial minas gerais: Adília Sozzi, Adriano Pereira Santos, Adriano Ventura, Aruanã Leonne, Beatriz Cerqueira, Bernadete Esperança, Bruno Abreu Gomes, Cida Falabella, Ênio Bohnenberger, Frederico Santana Rick, Gilson Reis, Gustavo Bones, Jairo Nogueira Filho, Joana Tavares, João Paulo Cunha, Joceli Andrioli, Jô Moraes, José Guilherme Castro, Juarez Guimarães, Marcelo Oliveira Almeida, Makota Celinha , Maria Júlia Gomes de Andrade, Milton Bicalho, Neila Batista, Nilmário Miranda, Padre Henrique Moura, Padre João, Pereira da Viola, Renan Santos, Rogério Correia, Rosângela Gomes da Costa, Samuel da Silva, Talles Lopes, Temístocles Marcelos, Titane, Valquíria Assis, Wagner Xavier. Editora: Joana Tavares (Mtb 10140/MG). Redação: Amélia Gomes, Larissa Costa, Rafaella Dotta, Raíssa Lopes e Wallace Oliveira. Colaboradores: Alan Tygel, Anna Carolina Azevedo, André Fidusi, Bráulio Siffert, Diego Silveira, Fernanda Costa, João Paulo Cunha, Léo Calixto, Luiz Fellippe Fagaráz, Marcelo Pereira, Nadia Daian, Pedro Rafael Vilela, Rogério Hilário, Sofia Barbosa. Revisão: Luciana Santos Gonçalves. Distribuição: Felipe Marcelino. Diagramação: Tiago de Macedo Rodrigues. Tiragem: 40 mil exemplares.


Belo Horizonte, novembro de 2017

HISTÓRIA

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Você sabe o que é “consciência negra”? IGUALDADE 20 de novembro se fortaleceu como data comemorativa e de luta no país Marcello Casal Jr / Agência Brasil

A estratégia é, segundo a professora, colocar em prática ações que ela chama de “discriminações positivas”, que significa “utilizar os critérios do racismo para combater o próprio racismo”. Como no Brasil dois dos maiores fatores de discrimi-

Rafaella Dotta

O

black power, que quer dizer “poder negro”, turbantes de cores vivas, roupas no estilo africano, o orgulho de pertencer à raça negra. Essa é uma das dimensões da consciência negra, como afirma o filósofo, historiador e militante do movimento negro Marcos Cardoso. São ações e reflexões de pessoas que passaram a se sentir parte da história do seu povo - o povo negro e de descendência africana. Mas o reconhecimento e pertencimento não acontece para todos da mesma forma. Segundo Marcos, existem dois aspectos que podem determinar esse processo: a formação e a informação de cada indivíduo. Enquanto alguns possuem famílias que desde a infância ensinam sobre a negritude, outros adquirem essa consciência por meio da discriminação e preconceito por que passam.

“Ao se perguntar por que está sofrendo, a pessoa começa a tomar consciência de si. A dimensão individual é construída em processos de intenso sofrimento, sobretudo diante da humilhação, da negação da sua humanidade no seu cotidiano. Isso força necessariamente a tomada da consciência negra, da consciência política

A luta por dignidade pessoal é política”, diz historiador diante deste tipo de situação”, explica Markim, como é conhecido. “A luta por dignidade pessoal é política”, completa.

20 de novembro: dia de Zumbi

Pintura por Antônio Parreiras

O dia nacional da consciência negra, 20 de novembro, relembra a morte de Zumbi dos Palmares, último líder do quilombo dos Palmares, assassinado em 1695. Há décadas o mês de novembro tem se tornado referência para atividades que afirmam a negritude. Para Markim Cardoso, significa também a valorização de um dos mais importantes líderes da América Latina, que traz consigo a consciência da luta pelo seu coletivo.

Afirmando a negritude A professora de literaturas africanas Íris Amâncio destaca a consciência negra em outro patamar. Uma vez adquirida, ela precisa ser afirmada por toda a sociedade, brancos e negros, através de atitudes antirracistas. Isso significaria realizar uma reeducação do imaginário da sociedade.

Pessoas negras deveriam ter portas abertas em empregos, escolas e concursos nação racial são a fisionomia e a cor da pele, Íris defende que eles podem ser usados ao contrário: que pessoas com fisionomia afrodescendente e pele escura tenham portas abertas em empregos, escolas, concursos, a exemplo das cotas. Assim como passem a ter uma imagem positiva na mídia.

Curiosidade:

o movimento que não quis homenagear a princesa A consciência negra não foi sempre marcada assim. No livro “Educação e Ações Afirmativas” o historiador Oliveira Silveira conta como os negros e negras mudaram a data de lembrança da libertação. Antes, ela era celebrada oficialmente em 13 de maio, dia da assinatura da abolição da escravatura pela princesa Izabel. “A homenagem a Palmares em 20 de novembro de 1971 foi o primeiro ato evocativo dessa data que, sete anos mais tarde, passaria a ser referida como dia nacional da consciência negra”, escreve Oliveira. O Grupo Palmares, do Rio Grande do Sul, organizou atividades ano a ano até que, em 1978, o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR) escreve um manifesto declarando a data como dia nacional da consciência negra. O governo federal brasileiro somente veio a oficializá-la em 2011, com a lei 12.519.


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MINAS

Belo Horizonte, novembro de 2017

Quilombolas enfrentam dificuldades para garantir seu direito ao território DISCRIMINAÇÃO Governo golpista cortou recursos na área, que já eram escassos Fernanda de Oliveira

Wallace Oliveira

S

er quilombola não é coisa do passado. Uma das questões mais atuais da resistência dessas comunidades é a luta pelo território. No Brasil, o número de quilombos titulados é baixo. Quilombolas enfrentam ameaças do agronegócio, da especulação imobiliária e do próprio poder público. Para piorar, para o orçamento de 2018, governo não eleito propõe corte de recursos na área.

Minas possui 500 comunidades quilombolas, mas só uma teve o título Quem são No dia 20 de Novembro, celebra-se a consciência negra no Brasil. Na mesma data, há 322 anos, foi assassinado Zumbi, líder da resistência no Quilombo dos Palmares. A luta quilombola não acabou nessa época, mas, para muitas pessoas, os quilombos são vistos como coisa do passado. Em termos jurídicos, quilombolas são reconhecidos como grupos com trajetória histórica própria e relação com a ancestralidade negra. “Ser quilombola, hoje, é a gente ter nas nossas comunidades, que são terras herdadas dos antepassados, o pertencimento, o modo de vida, o uso coletivo dos espaços, a coletividade na cultura, educação, saúde, alimentação. O nosso modo de viver é diferenciado das demais po-

pulações”, afirma a quilombola Sandra Maria da Silva Andrade, do quilombo de Carrapato de Tabatinga, em Bom Despacho, e integrante da N’Golo Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais. Território O território é uma das condições mais importantes para a sobrevivência do grupo. “É a base de tudo, o espaço que a gente usa para as práticas religiosas, nossas festas. Temos o cemitério dentro das comunidades, onde estão enterrados nossos ancestrais. Sem a terra, não precisamos viver”, explica Sandra. O direito que os quilombolas têm às suas terras foi reconhecido no artigo 68 da Constituição, Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A identificação, reconhecimento, demarcação e titulação tem como base um decreto assinado pelo ex-presidente Lula em 20 de novembro de 2003. Com a titulação, a

comunidade recebe um documento afirmando que aquela terra não pode ser dividida, vendida, loteada, arrendada ou penhorada. Levantamento da Comissão Pró-Índio de São Paulo aponta que, no Brasil, existem mais de 3 mil comunidades quilombolas e pelo menos 1674 processos de titulação de terras. Até hoje, porém, apenas 169 territórios foram titulados, contemplando 259 comunidades e cerca de 16 mil famílias. Já em Minas Gerais, de acordo com o Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva, existem mais de 500 comunidades quilombolas. Há 229 processos de titulação no estado, mas apenas a comunidade de Porto Coris, no Vale do Jequitinhonha, chegou a receber o título. Contudo, em 2004, o quilombo foi inundado pela barragem hidrelétrica de Irapé. Sandra acredita que, entre os motivos para um rendimento tão baixo na políti-

ca de titulação, estão a lentidão dos processos e a falta de dinheiro no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsável pela execução da política. De fato, na proposta apresentada pelo golpista

Temer (PMDB) para o orçamento de 2018, há um corte de 62,5% nos recursos para reconhecimento e indenização de territórios quilombolas. Já Miriam Aprigio, do Quilombo dos Luízes, em Belo Horizonte, lembra que há um conflito histórico pela terra no Brasil, tanto no meio rural quanto urbano, que interfere, em particular, na luta quilombola. “Território envolve capital. Há uma secular disputa territorial, dos ganhos financeiros dos detentores do agronegócio e, no meio urbano, da especulação imobiliária, que nos afeta diretamente. É desconsiderado o nosso histórico, a nossa tradição nesses lugares da cultura viva, pois o capitalismo fala mais alto. Não há outra questão que interfira tão diretamente quanto esta”, avalia.

Um quilombo ameaçado na capital Um exemplo de perda de território está no próprio quilombo onde Miriam vive, no bairro Grajaú, região oeste da capital. Surgido em 1895, antes mesmo da fundação da cidade, o Quilombo dos Luízes convive há décadas com ameaças de invasores, sobretudo empresários e o próprio poder público municipal. Desde 1966, quando sua terra foi cortada pela abertura de uma grande avenida (a Silva Lobo), a comunidade vê seu território diminuir, passando dos 18 mil metros quadrados iniciais para menos de 6 mil metros quadrados, atualmente. Em julho, parte da área que, segundo o Incra, deveria ser garantida aos Luízes, foi invadida por um grupo armado, a mando de uma pessoa que se diz proprietária do local. Desde então, moradores enfrentam tentativas de criminalização por parte da polícia.


Belo Horizonte, novembro de 2017

PERFIL

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Makota Kizandembu: uma vida de ativismo pelos direitos da população negra João Sales

Larissa Costa

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esde os anos 1980, Makota Kizandembu é militante pelos direitos da população negra. Na época, com seus 20 e poucos anos, começou a atuar como figurinista de teatro e logo encontrou o movimento negro. De lá pra cá, foram diversas organizações pelas quais passou, contribuindo para o surgimento de várias delas. Nascida e criada em Belo Horizonte, fez engenharia elétrica, mas depois se formou em moda. E é nessa área, após os anos 2000, que ela concentra boa parte de sua militância. “Moda afro não é algo exótico, roupa estampa-

da e turbante colorido. Ela é uma afirmação da nossa brasilidade, da nossa africanidade. Não existe uma sem a outra. É uma moda que veste qualquer pessoa, criança, jovem, adulto, pessoas de qualquer tom de pele”, destaca.

Candomblé “Candomblé, para mim, não é uma religião, mas uma tradição de matriz africana. Você aprende a ser, existir, comungar com a natureza, se vestir, comer”, defende. Confirmada em 2007, Tania Cristi-

Não é pelo direito dos outros. É pelo direito de TODOS. O seu também. A Secretaria de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania (Sedpac) foi criada pelo Governo do Estado para garantir e ampliar os direitos de toda a população de Minas Gerais. Uma importante iniciativa para a construção da justiça social, do respeito à diversidade e de uma cultura de paz. Afinal, fazer do mundo um lugar de todos é a melhor forma de fazer dele o lugar de cada um.

direitoshumanos.mg.gov.br

na Silva de Oliveira, como era conhecida, passou a ser Makota Kizandembu. Ela explica que Makota é o cargo do Candomblé de Angola e Kizandembu é o nome de tradição, que ela assumiu após ser confirmada. “Esses espaços chamados Terreiros mantêm vivas parte das tradições que estavam na África, ou que lá estão”.

Somos um povo acostumado a resistir e transformar”

SEDPAC

Feita pra você. E para cada um de nós. direitoshumanos.mg.gov.br (31) 3270-3616

Makota critica o governo golpista de Michel Temer. “A gente vinha avançando, mesmo que timidamente. Se eu não estudei com cotas, os meus filhos poderiam estudar. Se eu não estudei história da África, meus filhos poderiam estudar. Com esse golpe os direitos todos estão indo por água abaixo”, desabafa. “Mas somos um povo acostumado com a resiliência, um povo acostumado a resistir e à transformação”, complementa. Hoje com 54 anos, é empreendedora e atua como Diretora de Políticas para Igualdade Racial, na Prefeitura de BH.

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Secretaria de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania


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ENTREVISTA

Belo Horizonte, novembro de 2017

Não existe revolução sem combate ao racismo, segundo professor pan-africanista ATUALIDADE Pan-africanismo tem como objetivo a emancipação das populações negras e é importante no Brasil e no mundo, diz Musumali Lilian Campelo

Rute Pina, Mariana Pitasse e Gerson de Souza

E

m sua passagem pelo Brasil, o economista Cosmas Musumali, secretário geral do Partido Socialista da Zâmbia, criticou movimentos de esquerda que, ao longo dos anos, pensaram uma revolução sem tratar o tema do racismo: “Não dá para fazer nenhuma luta esperar. Todas as lutas têm que ter espaço para serem feitas aqui e agora. Sabemos que, dentro da luta de classes, as questões sobre raça e gênero têm que ser incorporadas.” O pan-africanismo, tema que ele estuda e ensina, articulou, na segunda metade do século 20, negros das Américas do Norte e Central e do Caribe, em torno dos direitos dos povos negros e da libertação dos territórios colonizados no continente africano. Brasil de Fato - Como podemos definir o pan-africanismo hoje?

A gente não pode ter o luxo de ficar fragmentado” Cosmas Musumali - O pan-africanismo sempre foi sobre a emancipação dos povos africanos e seus descendentes. Isso não mudou. Desde 1760, o espírito do pan-africanismo tem existido nos descendentes dos africanos. Nesse período, seus expoentes acreditavam na religião como forma de emancipação. Em meados de 1890, o movimento se tornou mais próximo das reivindicações dos direitos civis. Mas, desde 1945, o pan-africanismo trata sobre direitos políticos. Em 1960, se assumiu contra o neocolonialismo e a opressão dos povos africanos, onde quer que se encontrem. O conteúdo pode ter mudado, mas o objetivo básico, que é a emancipação, nunca mudou. No futuro,

o pan-africanismo também tratará sobre emancipação, além de outras dimensões mais amplas, como política racial, meio ambiente, gênero e a luta contra as estruturas patriarcais. Qual foi a contribuição do pensamento marxista para o pan-africanismo?

Desde o início, os marxistas se envolveram com o pan-africanismo. A partir daí, foi possível pensar que a luta de classes não nega o racismo, mas o apresenta como parte dela. Ao longo do tempo, marxistas também cometeram erros. Alguns deles negligenciaram o racismo. A ideia de alguns marxistas era fazer a revolução primeiro para depois tratar do racismo, uma argumentação muito simplista e barata.

Não dá para fazer nenhuma luta esperar”

Não dá para fazer nenhuma luta esperar, todas as lutas têm que ter espaço para serem feitas aqui e agora. Sabemos que, dentro da luta de classes, as questões sobre raça e gênero têm que ser incorporadas. É muito difícil separar o marxismo do pan-africanismo. Se forem separados, o marxismo vira mecânico e o pan-africanismo fica reduzido.

Os descendentes de africanos no Brasil estão perdendo mais com o golpe”

Meu entendimento é que as tendências fascistas estão sempre agindo no campo cultural e econômico. Mas não têm hegemonia. Trabalhar juntos contra um governo como esse que vocês têm hoje no Brasil é urgente. A gente não pode ter o luxo de ficar fragmentado. Os pan-africanistas no Brasil devem ter uma posição formulada em conjunto a respeito do que está acontecendo. Os descendentes de africanos no Brasil são as pessoas que mais estão perdendo com as reformas que estão sendo aplicadas, então, é preciso lutar ainda mais e trabalhar ao lado de outras forças da esquerda.

No último ano, após o golpe de Estado no Brasil, partidos políticos e movimentos populares têm procurado criar uma unidade no país. Como o pensamento pan-africanista pode ajudar nesse processo?

Luta de classes não nega o racismo


Belo Horizonte, novembro de 2017

CULTURA

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A história de Maria e da Mazza, uma editora do mundo colorido RESISTÊNCIA Editora especializada em publicações étnico-raciais se pauta pela igualdade Divulgação

Raíssa Lopes

U

ma mulher negra que, vivendo na década de 1980, criou uma editora com uma visão de mundo que valoriza e propaga a igualdade racial e social. Essa é a história de Maria Mazarello Rodrigues e da Mazza, empresa belo-horizontina especializa-

Um de nossos livros conta a história de Rapunzel e suas trancinhas afro, lindíssima

da em publicações étnico-raciais. “Foi difícil, e não quer dizer que hoje é mais fácil”, diz ela, que agora tem 76 anos. Desde os 18 trabalhava com edição. Aos 38, quando fazia seu mes-

trado na França, percebeu o quanto era comum a veiculação do trabalho de autores e poetas negros na Europa. Voltou ao Brasil com um plano nas mãos e um sonho na cabeça. Tudo começou com

uma velha máquina de imprimir, que ganhou de amigos. A Mazza ela define como algo que vai muito além de uma editora. Em suas palavras, é uma casa de cultura. Lá, vender não é o objetivo. A editora trabalha com a criação de livros para professores que ensinam às crianças que o mundo é feito por e para pessoas coloridas. “Temos uma publicação que conta a história da Rapunzel, e ela não tem essas longas tranças loiras que dizem, mas sim tranças afro. Ela é lindíssima, e se apaixona por um príncipe negro”, conta. As dificuldades não mudaram muito. Se era penoso o racismo de antes, hoje o pro-

jeto que obrigava o ensino da diversidade racial nas escolas está suspenso. E a onda conversadora está também nas salas de aula. Em muitas delas, como afirma Maria, não podem entrar livros que falam de Iemanjá, de Oxum, de Nanã. Assim como não podem aqueles que falam do amor entre dois - ou duas iguais. “Não podemos depender de uma mídia que é branca, de um grupo editorial branco. Seguimos em frente por conta da militância, de movimentos negros que nos divulgam”, afirma. Quer conhecer a editora? Acesse: www.mazzaedicoes.com.br

Onde está a diferença? PESQUISAS Negros sofrem racismo em questão salarial e são mais atingidos pela violência Da Redação

pesar da maioria da A população se considerar negra, dados sobre

renda e mortes por homicídios mostram um grande desequilíbrio entre os grupos raciais. Em 2014, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 53,6% dos brasileiros se declaravam negros e 45,5% brancos.

Na questão financeira, dados apontam que brancos ganham em média 82% a mais que pessoas negras. Um trabalhador branco tem rendimento médio de R$ 2.660, enquanto brasileiros negros ganham R$ 1.470, conforme o IBGE. O desemprego também atinge mais pretos e pardos. A taxa de desocupação no Brasil ficou em 12%

Vítimas de homicídios

Média salarial

Não negros 29%

Brancos R$ 2.660 Negros R$ 1.470 Fonte: Pesquisa IBGE 2016

no ano passado, porém, entre as pessoas negras, alcançou 14,4%. Por outro lado, a taxa de desocupação dos brancos foi de 9,5%. O Brasil encerrou 2016 com 12,3 milhões de pessoas desempregadas, sendo que 35,6%

eram brancos e 63,7% eram negros. A diferença também está entre homens e mulheres. Dados de 2014 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) mostram que mulher negra ga-

Negros 71%

Fonte: Atlas da Violência 2017

nhava 32% a menos que um homem negro e 60% a menos que um homem branco. Assassinatos Entre 2005 e 2015 a taxa de homicídios contra ne-

gros cresceu 18,2%, segundo Atlas da Violência 2017, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), enquanto os homicídios contra brancos caiu 12,2%. De cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Estimase que o cidadão negro tenha 23,5% mais chances de sofrer assassinato do que outras raças/cores. Homens jovens e negros são os que mais morrem por homicídio e situação das mulheres negras piorou. Enquanto a mortalidade de mulheres não negras caiu 7,4% no período analisado, entre as negras o índice cresceu 22%. Elas eram 54,8% das mulheres mortas por agressão em 2005. Em 2015, passaram a ser 65,3%.


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ARTIGO

Belo Horizonte, novembro de 2017

Pai! Mãe! Olorum! Afasta de nós este cálice!! Elói Corrêa / GOVBA

Diva Moreira

N

ós, mulheres negras no Brasil, somos o segmento do povo que se encontra na base, nos porões da sociedade. Cansativo ouvir isso? Só vivemos reclamando? Lá vem nós com nosso vitimismo? Essas reações procedem da cultura da indiferença que integra o “caráter” da sociedade brasileira em relação ao povo negro. Essa indiferença se traduz em descaso, falta de aplicação da Lei 10.639, desconhecimento dos processos históricos que pudessem explicar as causas desse problema, falta de solidariedade política e (que feio!) falta de vivência dos ensinamentos de Jesus de Nazaré, em um dos países de maior população cristã do mundo. Nesses tempos de contínuos ataques aos direitos, as consequências são dramáticas. Desmoronamse os padrões mínimos de

Em tempos de ódio, foram jogados por terra os pudores da suposta democracia racial Rovena Rosa/ Agência Brasil

convivência social. Instaura-se a lei do vale tudo, da força bruta, do ressentimento e do ódio, sobretudo contra os de baixo. Nesses tempos de ódio, foram jogados por terra os limites frágeis de pudor que a crença na democracia racial produziu. Mais violência contra mulheres negras Sobre nós, mulheres negras, recai a perda sistemática de nossos filhos, maridos, companheiros, irmãos, sobrinhos, pais, tios. De cada 100 pessoas assassinadas, 71 são negras. Também

somos alvo da fúria assassina do Estado e da sociedade, pois entre nós houve aumento de 22% de homicídios, entre 2005 e 2015. Enquanto isso, entre as mulheres brancas, houve redução de 7,4% da mortalidade, nesse mesmo período, segundo o IPEA. Sobre nós recai a acusação de sermos incapazes de estruturar nossas famílias, de cuidar de nossos filhos e filhas. Enquanto isso, a mídia (uma das causas do incentivo ao Estado penal) não traz à cena o descaso dos governantes em

relação às escolas, à saúde, ao esporte, lazer, à cultura, à habitação e ao transporte. Temos que nos preparar para enfrentar tempos duros, sem democracia e cidadania. Reclamamos que o povo não está nas ruas, mas nós, que estamos nos movimentos de resistência contra um governo antipovo, antinação e antidemocracia, precisamos estar nas vilas, favelas, ocupações e ajudar na organização da luta contra esta quadrilha que tomou de assalto o Brasil. Essa luta política é pela paz, pela vida, pela alegria

que substituirá o luto e a tristeza que continuamente invadem nossas casas, territórios, quilombos, terreiros das religiões de matriz africana e nossa alma. Nós, que sempre lutamos contra a escravização, contra uma república excludente construída por ex-senhores de escravizados, contra a ditadura militar, continuaremos na luta, sem a qual nossa vida perde inteiramente o sentido e a dignidade. *Diva Moreira é cientista política e combatente negra

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