Minas Gerais
Rupestre
ESPECIAL
MG Belo Horizonte, julho de 2019 • brasildefatomg.com.br • distribuição gratuita
RIQUEZA DO VALE
Você conhece o Festivale? História de exploração e resistência Entrevista com Rubinho do Vale Com a palavra, o povo
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ESPECIAL
Belo Horizonte, julho de 2019
Vale do Jequitinhonha, História de exploração e uma terra em resistência desenvolvimento
Duarth Fernandes / Arquivo CAV
PRIORIDADES Pesquisadores afirmam que indicadores oficiais demonstram desigualdade, mas não captam a riqueza produzida na região Maurício Gomes /Idene
Maíra Gomes
C
ultura tradicional e de reconhecimento internacional, terras ricas e férteis, e um povo forte, criativo e trabalhador. Esse é o Vale do Jequitinhonha, uma região de desenvolvimento crescente. A afirmação pode parecer controversa, já que muito se fala da desigualdade da região – é pejorativamente chamada de “Vale da pobreza” – mas diversos estudiosos apontam o contrário. Davidson Afonso de Ramos, professor da Universidade Federal do Vale do Je-
quitinhonha e Mucuri (UFVJM) e pesquisador do Projeto Veredas Sol e Lares, explica que a ideia de desenvolvimento está ligada, de forma geral, ao crescimento, que pode ser apontado por indicadores como PIB, IDH e outros.
Grande parte da população do Vale produz seu próprio alimento”, diz antropóloga
O projeto Veredas Sol e Lares, em andamento na região há mais de um ano, prevê a construção de uma usina fotovoltaica em Grão Mogol que deve ser gerida pela população Esta edição especial é uma produção do Brasil de Fato MG em parceria do Vale do Jequitinhonha. com a Frente Brasil Popular Médio Paraopeba. Mais informações em O Veredas chega à região www.brasildefatomg.com.br ou facebook.com/brasildefatomg
Veredas Sol e Lares
O Vale do Jequitinhonha é tido como região empobrecida se olhado por esses indicadores oficias. O PIB da região, por exemplo, representa apenas 1,4% do estado de Minas Gerais, segundo dados do IBGE de 2014. Mas a antropóloga e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Flávia Maria Galizoni afirma que há valores não monetários produzidos no Vale do Jequitinhonha que não são computados no PIB e em outros indicadores. Um estudo realizado por Flávia em parceria com o também professor da UFMG Eduardo Magalhães Ribeiro, aponta que, entre as famílias de produtores rurais, de 45% a 81% se alimentam do que plantam. Se fosse definido o preço desses alimentos, corresponderia a valores entre 26% e 40% de um salário mínimo mensal. “Quando em 2002 se falava em garantir o direito a todo brasileiro de ter no mínimo três refeições por dia, a população do Jequitinhonha já comia quatro vezes ao dia, porque produz seu próprio alimento. Isso mostra a riqueza do Vale”, conta a antropóloga. com a proposta de construir um plano de desenvolvimento, mas desta vez em conjunto com a população, buscando a potencialidade do Vale e suas múltiplas formas de realização. Conheça mais em: www.solelares.com.br
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ateus de Moraes Servilha, educador e escritor, explica que a ideia de desenvolvimento regional tem origem no fim da década de 1950, com a criação da Sudam, Sudene, IBGE e outros órgãos. Nasce aí a “vocação do Vale do Jequitinhonha”, como justificativa para empreendimentos de exploração da terra implantados desde então. A monocultura de eucalipto foi o primeiro grande projeto de desenvolvimento do Jequitinhonha, apenas o início dos muitos que estão no Vale atualmente, como a exploração de minérios diversos, criação de bovinos e pequenas e grandes hidrelétricas. Só é possível com o povo “Aqui ninguém foi consultado se queria eucalipto, veio de cima pra baixo. Se estamos tendo problemas hoje com as águas e outras questões é por causa desse tal desenvolvimento. Devia era ter mais envolvimento, o povo poder dizer a sua palavra”, indigna-se Geralda Chaves Soares, conhecida como Gera, ativista da causa indígena que atua na região há mais de 20 anos. Ela e outros entrevistados reforçam que a construção do plano de desenvolvimento do Vale do Je-
quitinhonha deve ser elaborada pelos próprios moradores do local, buscando-se compreender suas potencialidades e as melhores formas de realizá-las. “Existem cadeias produtivas e outras alternativas possíveis que não esses megaprojetos, que empregam pouco e ainda trazem impactos negativos do ponto de vista ambiental e social. O projeto Veredas Sol e Lares, por exemplo, não se baseia nos planos clássicos de desenvolvimento, pois busca uma construção de baixo pra cima, com participação popular em todos os pontos”, exemplifica Davidson. A antropóloga Flávia Maria concorda. “Dentro da diversidade do Jequitinhonha, vemos um conjunto de comunidades que constroem iniciativas muito ricas”, completa.
Aqui ninguém foi consultado se queria eucalipto, veio de cima pra baixo. Devia era ter mais envolvimento do povo”, diz ativista
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“Altar da superstição e riquezas de pedras”: o Vale cantado por Rubinho Nilmar Lage
vamos na ditadura militar, o presidente [João Figueiredo] estava lá e eu ganhei com duas músicas: “Voz do Jequitinhonha” que está no meu primeiro disco e “Despertar”, uma parceria com Tadeu Franco que depois entrou para outro projeto. Isso fortaleceu a minha identidade. Foi um processo de experiência, de perceber que era importante cantar a minha terra.
Nilmar Lage
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ara esta edição especial do Brasil de Fato, conversamos com o músico Rubinho do Vale, com mais de 20 discos gravados e inúmeras canções sobre o Jequitinhonha, seus valores, seu folclore e seu povo. Brasil de Fato - No início de sua carreira, você teve alguns momentos especiais com músicas que abordavam o Vale do Jequitinhonha. Em especial uma que lhe rendeu sua primeira premiação em festivais. Conta um pouco pra gente? Rubinho do Vale - Rapaz, você fez uma pergunta que pouca gente sabe. Antes de eu me assumir como músico, eu ainda estava na faculdade em Ouro Preto e participei do “Festival da Canção Brasileira”. Havia músicos de outros estados e eu, um desconhecido, que compôs uma música que falava da seca que havia
castigado o Vale naquela época e que tocou as pessoas. A letra emocionava, mas a melodia era ruim, duas ou três notas. Imagina, eu sou autodidata e estava começando. Você disse que passou um tempo sem conseguir premiação em festivais, mas quando voltou a falar do Vale, deu certo. Eu não tinha música. Queria ir pra estrada, mas não sabia o que cantar. Entre 1976 até 1980 foi um período de aprendizado, de ouvir e ver muitas coisas. Foi quando comecei a enviar músicas para os festivais, como foi o “Festival da Canção de Minas Novas”, em 1980. Ainda está-
Foi um processo de experiência perceber que era importante cantar a minha terra”
Quando você percebeu que cantar a riqueza do Vale era necessário? O “Procurados” já sinalizava pra isso? Alguns momentos foram marcantes, mas quando aconteceu em Itaobim o “Encontro de Compositores do Vale do Jequitinhonha – Procurados”, foi fundamental. “Despertar” é dessa época, “Viva meu povo”, “Folia de Reis”, “ABC do amor”, que é de domínio público. Tem umas canções desse período que eu ainda canto e outras que tenho vontade de revisitar. Já percebi ali uma canção de protesto, uma proposta de mensagem social e falar de nossa terra.
PROCURADOS Nas origens do Festivale, em 1979, vários músicos da região percorreram cidades mineiras apresentando um show, cujo cartaz trazia as fotos em 3x4 dos artistas, com o título de “Procurados”. Era assim que a ditadura militar, então vigente, tratava os revolucionários perseguidos pelo regime.
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Qual a riqueza do Vale? Francisca Maria Souza, TRABALHADORA RURAL - INDAIABIRA
“Riqueza é tudo aquilo que o ser humano tem para poder viver feliz e em paz, sem faltar à sua alimentação, nem ao seu vestuário, nem à sua saúde. Muitas de nossas riquezas foram retiradas por outras pessoas, os estrangeiros. O povo estrangeiro destruiu todo o cerrado e colocou a monocultura do eucalipto. Mas nossa cultura não acabou” Adair Pereira de Almeida, GERAIZEIRO DO TERRITÓRIO TRADICIONAL DE VALE DAS CANCELAS – GRÃO MOGOL
“A classe política, a classe dominante fala que aqui é pobre, mas daqui eles tiram a riqueza: o diamante, o ouro, as pedras ornamentais. Tudo isso é cobiçado pelo mundo inteiro, mas a cultura e o modo de vida tradicional do povo geraizeiro é que é mais rica do que tudo isso” Lizian Martins, ASSISTENTE SOCIAL - ARAÇUAÍ
“A identidade cultural é nosso cartão postal. Mas claro que a gente tem outras riquezas, né? São vários rios, riquezas minerais, a agricultura familiar, as produções agroecológicas e as sementes preservadas. Mas a principal riqueza é a cultura, que perpassa várias dimensões, como artesanato, corais, grupos de folias de reis, feiras de economia solidária. A cultura nos faz ter amor e sentimento de pertencimento à região” Ana Lúcia ESTUDANTE - VIRGEM DA LAPA
“As pessoas aqui têm grandes tradições, como a festa de Nossa Senhora do Rosário, cultura indígena, comidas típicas, artesanato. Esses saberes são passados de geração em geração. Outro ponto de destaque é o carinho. A maneira como as pessoas se tratam, uma maneira familiar, em que todo mundo cuida de todo mundo” Francisco Moreira de Meireles, PESCADOR - VIRGEM DA LAPA
“O rio Araçuaí é uma grande riqueza, o mais incrível da região, onde eu pesco o peixe que eu vendo e sustento toda minha família. Mas também já foi retirado muito ouro do rio, aqui na região teve período que havia umas 60 pessoas por dia retirando ouro nele”
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Festivale surgiu para promover a organização política do povo do Vale ORIGENS Idealizador do evento conta que viu na cultura uma poderosa arma política para lutar contra a ditadura Itala Medina
Wallace Oliveira
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bril de 1977. Quatro jovens filhos do Jequitinhonha começaram a percorrer a região para conhecer melhor sua própria terra. Eles não aceitavam que ela fosse vista como “vale da fome e da pobreza”. Ao mesmo tempo, esses caminhantes inquietos também queriam lutar contra a dita-
Jornal Geraes, criado em 1978, dava voz a associações de trabalhadores e casas de cultura
dura e acabaram descobrindo na cultura do Vale uma arma poderosa. Em março de 1978, eles criaram um jornal independente para chegar a toda a região, falando e dando voz a associações de pedreiros, lavadeiras, artesãos, sindicatos, casas de
cultura. Surgia, assim,, o Jornal Geraes, que durou sete anos. Do seio do Geraes, em novembro de 1979, os estudantes Aurélio Silby, Carlos Figueiredo, George Abner e Tadeu Martins gestaram o 1º Encontro de Composito-
Para além da música
O
passo seguinte foi um novo evento, congregando também o folclore, a dança, o artesanato. “A ideia era reunir o que o Vale produz na cultura. Além de uma mostra de tudo, teríamos um momento para confraternização, mas também para aumentar a organização política e discutir avanços sociais”, relata o produtor cultural Tadeu Martins, idealizador do evento. Nascia, assim, o Festivale Festival da Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha. Tadeu pensou o slogan “a vida do Vale em verso e vio-
la”, que acabou virando “vida, Vale, verso e viola”. A primeira edição aconteceu em Itaobim, em 1980. A iniciativa frutificou. Desde o início, já foram 35 edições (só
O Brasil de Fato circula semanalmente com edições regionais, em quatro estados. Queremos contribuir no debate de ideias e na análise dos fatos do ponto de vista da necessidade de mudanças sociais em nosso país e no nosso estado. Este especial é uma parceria do Brasil de Fato MG com o Projeto Veredas Sol e Lares.
Maria Ramalho
não ocorreu em 1997, 2001, 2005 e 2012). Inspirou outros eventos culturais na região e fora dela. Acolheu e projetou centenas de artistas para o Brasil e o mundo, como Ru-
REDE SOCIAL: CORREIO: PARA ANUNCIAR: TELEFONES:
FESTIVALE 2019
res do Vale do Jequitinhonha, em Itaobim. “Descobrimos ali que a música era um caminho a trilhar na organização política do Vale do Jequitinhonha. Foi um sucesso”, recorda Tadeu. O encontro reuniu 22 compositores de 15 cidades da região.
A 36ª edição do Festivale acontece dos dias 21 a 27 de julho, em Belmonte, na Bahia, com mostras de cultura popular, de fotografia, shows, oficinas, feira de artesanato, festival da canção e muito mais. Confira a programação completa em: tinyurl.com/yy6l2pld
binho do Vale, Paulinho Pedra Azul, Titane e Célia Mara, os poetas Gonzaga Medeiros e Cláudio Bento, os artistas plásticos Gildásio Jardim e Marcelo Brant, as artesãs Lira Marques e Dona Isabel, para citar alguns dos mais conhecidos.
cruze as fronteiras de Minas, junto com o rio, para celebrar a 36º edição junto à foz, em Belmonte (BA). Para Tadeu Martins, a intenção inicial dos criadores também está viva no papel político que o Festivale pode cumprir. “Durante um tempo, o Festivale saiu um pouco da linha, virou a festa pela festa. A partir de 2006, tentou-se uma retomada, aos poucos. Posso dizer que os dois últimos foram um retorno total ao que era nas origens: muito debate, palestra, as outras coisas todas acontecendo”, acrescenta.
Vale da riqueza Graças a um imenso trabalho coletivo do qual o Festivale é parte, a cultura do Jequitinhonha, com o tempo, passa a ser reconhecida como um dos grandes afluentes da cultura popular nacional. É natural, portanto, que o evento
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