Edição 331 - Especial acordo entre Vale e governo

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ESPECIAL

NOVEMBRO 2020

Sem participação, não pode ter acordo _Acordo a portas fechadas entre Vale e governo de Minas é questionado pelos atingidos pág. 4 _Direito à participação, violado em MG, tem reconhecimento internacional pág. 2 _Programa Social de Direito à Renda é alternativa ao fim do auxílio pág. 3 _Problemas com água, saúde e produção estão entre os principais na bacia do Paraopeba pág. 3 e 4 Nívea Magno /Mídia Ninja


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ESPECIAL

Belo Horizonte, novembro de 2020

Na Bacia do Paraopeba, decisões são tomadas sem participação popular, afirmam atingidos Famílias reivindicam o direito de participação em todos os momentos de discussão sobre reparação do crime da Vale Reprodução MAB

Wallace Oliveira

Q

uase 700 dias já se passaram desde que a barragem da mineradora Vale rompeu em Brumadinho, matando 272 pessoas e destruindo a Bacia do Paraopeba. Até hoje, os atingidos cobram a devida reparação pelos danos sofridos. Para garantir a reparação, precisam participar diretamente das decisões suas próprias vidas. Porém, segundo eles, esse direito mais elementar, a participação, está sendo negado. “A comunidade, que ainda vive o luto coletivo de 272 vítimas assassinadas, que a cada dia desperta com mais um caso de auto-extermínio ou infarto ou falta de atendimento médico, em função do crime, vai perdendo a crença no que é a prática da Justiça. É muito doloroso”, relata Fernanda Perdigão, moradora do distrito de Piedade do Paraopeba, em Brumadinho. Ela administrava um projeto de agricultura familiar, um restaurante e uma pousada e perdeu tudo.

bém precisa ter acesso a todas as informações importantes, de maneira ágil e transparente. Tal reconhecimento está expresso em acordos internacionais e na própria legislação brasileira. Em fevereiro de 2019, logo após o rompimento da barragem, os atingidos conquistaram, por meio de decisão judicial, o direito às assessorias técnicas, um corpo de profissionais independentes, com estrutura e capacitação, para garantir que pessoas e comuParticipação informada, nidades nas mais variadas sisofrimento da vítima Nos âmbitos do Direito Internacional e dos Direitos Humanos, já se reconhece que Nossos direitos é direito da vítima participar estão sendo leicomo protagonista do processo de reparação e ocupar o loados pelo governador Romeu centro desse processo. Quem foi prejudicado por Zema”, afirma um crime como o que ocor- atingida reu no Rio Paraopeba tam-

Atingidos não têm acesso aos documentos nem aos espaços de negociação”, afirma advogada tuações tenham sua participação assegurada. Porém, isso não tem sido suficiente. Há cerca de um mês, a sociedade ficou sabendo, por meio da mídia comercial, que a Vale, o governo de Minas e instituições de justiça estavam construindo um acordo, sem a presença dos atingidos e das assessorias. No dia 12 de novembro, o vice-presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, desembargador Newton Teixeira Carvalho, suspendeu o sigi-

lo da proposta apresentada pela Vale, mas estabeleceu uma cláusula de confidencialidade. “Atingidos não têm acesso aos documentos da negociação nem assessorias técnicas podem discutir esses documentos com eles e também não têm acesso aos espaços de negociação. Então, não conseguimos garantir o direito à participação informada e também não observamos o respeito ao princípio da centralidade do sofrimento da vítima”, critica a advogada Ísis Táboas, da Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas). Fernanda Perdigão critica a postura do governo e do Poder Judiciário, de impedir que as vítimas discutam as decisões que afetam sua própria vida. “Os nossos direitos estão sendo leiloados. O nosso governador Romeu Zema, que deveria promover a lisura do processo decisório e adotar mecanismos de consulta, não está fazendo isso”, acrescenta. Outro lado O governo de Minas afirma que tem recebido associação de familiares de vítimas e atingidos. O governo também afirma que o acordo está sendo discutido abertamente e cita como exemplos três audiências públicas sobre o tema, sendo duas na Assembleia Le-

EXPEDIENTE O Brasil de Fato circula semanalmente com edições regionais, em sete estados. Queremos contribuir no debate de ideias e na análise dos fatos do ponto de vista da necessidade de mudanças sociais em nosso país e no nosso estado. Este especial é uma parceria do Brasil de Fato MG com a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas). www.brasildefatomg.com.br

Aedas - Coordenação Estadual - Cauê Melo, Heiza Maria Dias, Jéssica Barbosa e Luis Shikasho Aedas - Assessoria Técnica Independente Paraopeba. Este material foi elaborado com contribuições da equipe técnica multidisciplinar nas Regiões 01 e 02 de atuação da Aedas. CNPJ 03.597.850/0001-07 / www.aedasmg.org/paraopeba / (31) 9 9840 1487

gislativa de forma on-line. Segundo o governo de Minas, a proposta feita pela mineradora Vale é “insuficiente em razão do volume dos danos socioeconômicos causados pelo rompimento da barragem”.

Consulta sem direito de decidir Um mês após o rompimento da barragem, o governador Romeu Zema (Novo) assinou um decreto criando o Comitê Gestor Pró-Brumadinho, composto por diferentes órgãos do poder público. O objetivo seria coordenar, de maneira articulada, as ações estaduais de recuperação, mitigação e compensação dos danos causados à população dos municípios atingidos. Foram criadas também comissões, com representantes das diferentes comunidades. Um ano e meio depois, Fernanda Perdigão avalia que decisões importantes são tomadas no Comitê, mas não nos espaços onde os atingidos participam de fato. “A comissão não tem uma função deliberativa, é uma função consultiva, porque já foi tudo costurado pelo Comitê. Então, é ridículo pensar que o Estado queira a participação dos atingidos. O discurso é lindo, mas a prática é outra. Isso é ludibriar e limitar, pois vão dar um voto baseado em que, se já está tudo decidido?”, questiona.


Belo Horizonte, novembro de 2020

Atingidos da bacia do Paraopeba reivindicam programa de direito à renda MAB elabora, em diálogo com pessoas atingidas, proposta que garanta condições de luta por processo de reparação integral

ESPECIAL

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Programa Direito à Renda na bacia do rio Paraopeba

Reprodução / MAB

OBJETIVOS Melhorar as condições de vida de toda a população atingida pelo crime da Vale ao longo da bacia do rio Paraopeba (pessoas que moravam e moram próximas ao rio ou dependiam dele de alguma forma para viver e trabalhar) Ser um instrumento para retomar o desenvolvimento econômico das regiões afetadas

O QUE PROPÕE Raíssa Lopes tado na próxima audiência que discutirá o acordo, omo parte da luta por no dia 9 de dezembro. Além reparação pelo cri- da Vale e do Estado de Mime da mineradora na cida- nas Gerais, participam da de de Brumadinho, em ja- reunião o Ministério Púneiro de 2019, os atingidos blico Estadual (MPE) e Fee atingidas, e o Movimen- deral (MPF), a Defensoria to dos Atingidos por Barra- Pública Estadual (DPE) e a gens (MAB) propõem a implementação do Programa Social de Direito à Renda. Programa será A iniciativa daria contiapresentado na nuidade ao auxílio emergencial, que começou a ser próxima pago pela Vale aos atingi- audiência dia 9 dos em fevereiro de 2019, de dezembro por determinação da Justiça, e corre risco de suspen- Defensoria Pública Federal são desde outubro de 2020, (DPF). quando a empresa anun“É um processo que gaciou a diminuição e o fim rante que as famílias possam ter condições de vida, de trabalho. E também atuar como um potencializador do desenvolvimento 30 mil pessoas econômico das regiões”, exatingidas não plica o integrante do MAB são consideraSantiago Matos.

C

das pela Vale

O que querem os atingidos e atingidas dos repasses. O Programa Social de DiO Programa Social de Direito à Renda sugere que reito à Renda será apresen-

cada pessoa atingida pelo rompimento da barragem de Córrego de Feijão obtenha uma quantia em dinheiro durante cinco anos, para o início de uma reconstrução da vida. Veja as informações no infográfico ao lado. De acordo com cálculo da assessoria e do MAB, existem cerca de 30 mil pessoas que devem ser reparadas, mas ainda não foram consideradas atingidas pela Vale. O programa exige que aconteça uma abrangência territorial maior para o atendimento. Atualmente, só consegue o auxílio emergencial quem mora na faixa de até 1 quilômetro da margem do rio Paraopeba. A gestão do projeto deve ficar a cargo do governo de Minas, com fiscalização da Justiça e participação dos atingidos. “O auxílio emergencial a Vale controla. Ela beneficia quem é mais próximo da empresa, e quem faz o enfrentamento por direitos tem o pagamento atrasado”, conta Santiago.

Duração de cinco anos Um salário mínimo por adulto, meio salário mínimo por adolescente e um quarto de salário mínimo por criança. Cada membro adulto da família deve ter uma conta individual para repasse da verba. As quantias destinadas às crianças e adolescentes serão depositadas na conta da mãe Incluir as cerca de 30 mil pessoas atingidas que ainda não tiveram seus direitos de indenização ou auxílio emergencial reconhecidos Abrangência territorial. Ampliar o atendimento - que hoje, no auxílio emergencial, é para quem vive a 1 quilômetro de distância das margens do rio Paraopeba - para bairros e comunidades atingidas em sua totalidade Inclusão direta de atingidos e atingidas de baixa e média renda. Atingidos de alta renda deverão receber caso comprovem estar dentro do critério da abrangência territorial Os valores do programa de renda não devem ser descontados das indenizações individuais O programa deverá ser gerido pelo governo de Minas e não pela Vale - como atualmente gere o auxílio emergencial -, com devidos mecanismos de controle que incluam a participação dos atingidos e atingidas, Assessorias Técnicas e Instituições de Justiça


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ESPECIAL

Belo Horizonte, novembro de 2020

Atingidos e parlamentares criticam proposta de acordo

DEPOIMENTOS

A PORTAS FECHADAS Atingidos pelo rompimento cobram direito à informação e participação nas discussões entre Vale e governo de Minas Reprodução /MAB

Maria dos Anjos rua Amianto, Brumadinho

Redação

CPI e Comissão Externa

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uas audiências judiciais aconteceram, no dia 22 de outubro e no dia 17 de novembro, no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em Belo Horizonte, para tratar do possível acordo entre o governo de Minas Gerais e a mineradora Vale. O acordo, que não foi fechado, trata da reparação dos prejuízos econômicos sofridos pelo estado e dos danos morais e sociais coletivos às vítimas do rompimento da barragem de Córrego do Feijão, em janeiro de 2019. Tanto os atingidos quanto as Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) foram impedidos de participar das discussões (veja informações na página 2). Centenas de moradores das cidades afetadas realizaram um ato em frente ao Tribunal para reivindicar participação na discussão. Joelisia Feitosa, moradora de Juatuba e integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), frisou que o acordo “prevê a perda de direitos dos atingidos em favor do Estado” e alertou para o desconhecimento dos atingidos das cláusulas e valores que estão em negociação.

Já solicitei a minuta da negociação e não tive acesso. A situação é gravíssima”, diz deputada

Termos do acordo Na primeira audiência, em 22 de outubro, no TJMG, foi apresentada uma proposta de acordo, por parte do governo de Minas, junto com as defensorias e ministérios públicos, além da Advocacia Geral da União. Depois de pressão, o Comitê Pró-Brumadinho, que reúne diversos órgãos e secretarias do governo, socializou que a proposta previa o pedido de indenização de R$ 54 bilhões. Desse total, R$ 26 bilhões é o montante que a Fundação João Pinheiro estima em perdas econômicas. E o valor dos outros R$ 28 bilhões foi o valor calculado pelas instituições de

Vale e BHP lucraram, de 2016 a 2019, R$ 162 bilhões Justiça para o pagamento de indenizações às famílias dos mortos e demais atingidos por danos morais e sociais. O valor leva em conta a capacidade econômica do poluidor pagador (Vale), com base em seu lucro em 2019. A contraproposta da mineradora não teve seu conteúdo apresentado ao público.

Lucro acima da vida Apenas no segundo trimestre de 2020 a Vale registrou um lucro líquido de R$ 5,3 bilhões. Segundo o Observatório da Mineração, a Vale e BHP, que controlam a Samarco – responsável pelo rompimento da barragem em Mariana, em 2015 – lucraram, de 2016 a 2019, aproximadamente R$ 162 bilhões. As duas são as

maiores mineradoras do mundo. A Vale ocupa a segunda posição na lista de maiores devedores da União, totalizando R$ 39,7 bilhões de impostos sonegados. Em 2019, quando ocorreu o crime, a Vale premiou a sua direção com R$ 19,1 milhões pelo desempenho no ano.

A deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT) assina a proposta de abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar os termos do acordo entre a Vale e o governo do estado. Para Beatriz, a situação é grave. “Já solicitei cópia da minuta da negociação entre a Vale e o governo de Minas Gerais e não tive acesso. A situação é gravíssima. É pela ausência de transparência que propomos essa investigação”. Já assinaram a proposta 20 deputados e são necessárias mais seis assinaturas para que o pedido seja protocolado e enviado para a Mesa Diretora que decide se a CPI será, ou não, instaurada. Na Câmara Federal, o deputado Rogério Correia (PT) solicitou a abertura de uma Comissão Externa para acompanhar e fiscalizar a negociação, que foi instalada pelo presidente da Casa, Rodrigo Maia. “Dia 9 de dezembro tem uma nova audiência marcada pelo TJMG e temos pressa. Vamos marcar reuniões e requisitar documentos”, afirmou o deputado.

“Nossas casas ficam a trinta metros do rio, que ficou cheio de rejeito, restos mortais e minério, enchendo de urubus e cachorros. Com a enchente de janeiro desse ano os rejeitos vieram para os quintais, atingiram o campinho das crianças e contaminaram as plantações”.

Adilson Ramos - Reta do Jacaré, Mário Campos “Recebemos caminhões de água potável, imprópria e insuficiente para produção e para qualidade e desenvolvimento da horta. Tivemos que reduzir as plantações por falta de água. A piscicultura aqui na região é grande, mas a água com cloro mata os peixes”.

Miriam Papp, de Betim “Não temos mais renda, nem animais, como recomeçar?Eu era produtora de queijo e perdemos o negócio após o rompimento. Hoje eu tomo medicamentos para parkinson, para o estômago e para dormir”.


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