Especial sobre a Reforma Administrativa - Brasil de Fato MG, agosto de 2021

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ESPECIAL

MG

Minas Gerais Belo Horizonte, agosto de 2021 • brasildefatomg.com.br • distribuição gratuita Rovena Rosa /Agência Brasil

Você sabe as consequências da Reforma Administrativa na sua vida?

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PRINCIPAIS AFETADOS SERÃO USUÁRIOS DO SUS E DA EDUCAÇÃO PÚBLICA MANTÉM PRIVILÉGIOS E PENALIZA OS QUE RECEBEM MENOS FIM DA ESTABILIDADE AUMENTARÁ CORRUPÇÃO E ILEGALIDADES VAI SUBSTITUIR TRABALHADORES CONCURSADOS POR INDICADOS POLÍTICOS VAI FACILITAR A PRIVATIZAÇÃO DE EMPRESAS PÚBLICAS, PIORANDO OS SERVIÇOS SERVIÇOS QUE SÃO OBRIGAÇÃO DO ESTADO DEVERÃO IR PARA A INICIATIVA PRIVADA TRARÁ EFEITOS NEGATIVOS AO COMÉRCIO, EMPREGO E SERVIÇOS DOS MUNICÍPIOS SERVIDOR PÚBLICO PERDE DIREITOS E A POPULAÇÃO O SERVIÇO PÚBLICO


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Belo Horizonte, agosto de 2021

Quatro mitos sobre a Reforma Administrativa federal IDEOLOGIA Governo propaga a ideia de que servidores são privilegiados e pouco eficientes Arquivo Brasil de Fato / RS

Wallace Oliveira O Congresso Nacional está prestes a votar, em setembro, uma das mudanças mais agressivas no Estado brasileiro, apelidada pelo governo de Reforma Administrativa. Trata-se da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020. Se aprovada, ela significará o fim da estabilidade no emprego, a extinção de concursos públicos, a substituição de concursados por apadrinhados políticos, o arrocho salarial, a retirada de direitos e obstáculos para a progressão na carreira. Como a proposta é muito impopular, o governo Bolsonaro, a mídia comercial e alguns parlamentares propagam a ideia de que o objetivo é tornar o Estado brasileiro mais moderno. Para especialistas entrevistados pelo Brasil de Fato, essas afirmações, na verdade, são mitos que ocultam o verdadeiro caráter da PEC 32.

Altos salários não são atingidos pela reforma de Guedes

Mito 1: “vai combater privilégios” Em palestra à Fundação Getúlio Vargas (FGV), o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que os servidores públicos são “parasitas” e “privilegiados” e prometeu combater privilégios. Porém, chama a atenção que os grupos realmente privilegiados no Estado brasileiro, com altos salários, não são atingidos pela reforma de Guedes.

“Não se mexe nos magistrados, nos militares, na carreira parlamentar. Pegando o exemplo das Forças Armadas, todo o desenho das reformas tem sido para poupar essa categoria. Ela ficou fora da Reforma da Previdência e toda a canalização de recursos do orçamento privilegia a corporação”, afirma Maria de Fátima Lage Guerra, doutora em demografia e economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

Aumentam as rachadinhas. Servidor com estabilidade não divide salário

Mito 2: “vai cortar gastos” O governo Bolsonaro promete reduzir gastos, mediante o congelamento de salários, a não reposição de trabalhadores que se aposentarem e a criação de obstáculos para a progressão na carreira. Mas, se quer cortar do bolso do servidor, por outro lado, o governo deve aumentar o gasto em outra direção. O número de cargos ocupados por pessoas sem vínculo com o serviço público tende a crescer 29%, de acordo com a nota técnica “Aspectos Fiscais da PEC 32/2020”, produzida pela Consultoria de Orçamentos do Senado. Cargos em comissão e funções de confiança, que só podem ser preenchidos por servidores de car-

reira, serão substituídos pelos ditos “cargos de liderança e assessoramento”, ocupados por qualquer pessoa. As livres nomeações podem gerar mais gasto público. No lugar de profissionais capacitados e aprovados em concurso, o velho apadrinhamento político, que cria ainda mais espaço para a corrupção. “Aumentarão os indicados políticos. Isso abrirá margens para aumentar as rachadinhas. Servidor com estabilidade não divide salário”, observa Eduardo Couto, vice-presidente do Sindicato dos Servidores da Justiça do Estado de Minas Gerais (Serjusmig). Mito 3: “vai aumentar a eficiência” O governo defende que seja adotada no serviço público uma dinâmica semelhante à do setor privado, facilitando demissões. Isso, segundo ele, proporcionaria mais eficiência. Ignora-se, nesse caso, que o setor público não tem a mesma finalidade do setor privado. O empresário privado quer, acima de tudo, lucrar. Já o setor público tem como

missão servir à população, garantindo direitos. Sob efeito da reforma, a cada mudança de governo, quadros inteiros poderiam ser substituídos, ao sabor do novo governante, provocando, inclusive, a perda de eficiência. “Com a demissão, vai embora a história da política pública, quem tem a expertise, o servidor que está ali o tempo todo. Ele é a garantia de continuidade e até mesmo da qualidade da mudança”, pontua a economista Maria de Fátima Lage. Mito 4: “não afeta atuais servidores” Outro mito é que a PEC 32 só atingirá os “futuros servidores”, os que vão ingressar depois da vigência do texto aprovado. De fato, a PEC veda aos servidores futuros vários direitos, como a estabilidade após três anos de efetivo exercício e aprovação em estágio probatório. Contudo, o texto também diz que, se a lei que institui esses direitos for revogada ou alterada, os trabalhadores que já estão no serviço público serão afetados pelas mudanças. Todos os demais dispositivos da PEC se aplicam aos servidores atuais. O ponto central da reforma é a questão da estabilidade, que fica ameaçada por uma avaliação de desempenho, que será definida em lei ordinária. Essa avaliação poderá ser usada como instrumento de demissão e, consequentemente, de perseguição e assédio contra servidores atuais e futuros.

EXPEDIENTE // EDIÇÃO ESPECIAL REFORMA ADMINISTRATIVA O Brasil de Fato circula em Minas Gerais semanalmente com distribuição gratuita. Queremos contribuir no debate de ideias e na análise dos fatos do ponto de vista da necessidade de mudanças sociais em nosso país e no nosso estado. Este especial é uma parceria do Brasil de Fato MG com Andes, APUBH, ATENS, CUT, CTB, Fetrafi, Frente Mineira em Defesa do Serviço Público, Fórum de Mineiros contra a Reforma Administrativa, Serjusmig, Sindicato dos Bancários, Sindicato dos Economistas, Sindagua, Sindcefet, Sindibel, Sindieletro, Sindifes, Sindipetro, SindRede, Sindsep, Snind-UTE, Sinjus, Sinpro e Sintect. Redação: Amélia Gomes, Ana Carolina Vasconcelos, Clayton Zarattini, Elis Almeida, Joana Tavares, Laura Zschaber, Maria Beatriz de Castro, Mariana Arêas, Patrícia Brum, Rafaella Dotta e Wallace Oliveira. Diagramação Tiago de Macedo Rodrigues Revisão Luciana Gonçalves Distribuição: Derik Rosa, Jonathan Hassen, Paulo Antonio e Vinicius Moreno. Tiragem: 250 mil exemplares. Cidades: Araçuaí, Belo Horizonte, Betim, Contagem, Governador Valadares, Juiz de Fora, Montes Claros, Ribeirão das Neves, São João del Rey, Teófilo Otoni, Uberlândia e Viçosa


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PEC 32 abre portas para o fim do SUS SAÚDE Se reforma for aprovada, sisitema perderá financiamento e autonomia e saúde pode ser privatizada Camila Batista / Semsa

Mariana Arêas Voltar o Brasil aos tempos de pré-Constituição, como pretende a chamada Reforma Administrativa proposta pelo governo Bolsonaro, atinge em cheio uma das maiores conquistas do país: o Sistema Único de Saúde. Se aprovada, o SUS tal como o conhecemos hoje, será um dos grandes alvos das mudanças estruturais da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32. Além de perder financiamento, as políticas públicas de saúde poderão ser repassadas à iniciativa privada até mesmo sem contrapartida financeira.

SUS seguirá sendo essencial após pandemia, mas PEC limitará seu funcionamento

O ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e atual conselheiro, Francisco Batista Júnior, avalia que

se não for barrada, a PEC 32 “será a mais dura derrota, porque significará, na prática, a extinção da política pú-

blica mais democrática e inclusiva de que dispomos. É um golpe mortal no Sistema Único de Saúde, naquilo que diz respeito aos seus princípios fundamentais, a universalidade, a integralidade e a equidade”. O médico de família e comunidade do SUS-BH, Bruno Pedralva, também teme que a aprovação do texto

Projeto vai tutelar profissional ao gestor de plantão

inviabilize a existência do SUS. “A PEC 32 sucateia e desmonta o Sistema Único de Saúde. Primeiro porque enfraquece todas as políticas públicas e, particularmente, a saúde. Profissionais da saúde do SUS vão ficar tutelados pelo gestor de plantão, pelo prefeito, governador. Os vínculos vão ficar muito frágeis. A estabilidade, que é um direito constitucional para que os servidores terem compromisso com o povo e não com gestor de plantão, vai cair se essa PEC for aprovada. E segundo, ela abre brechas para a privatização completa dos serviços de saúde”.

Conselho denuncia favorecimento do setor privado Foto Joel Rodrigues /Agência Brasília

tando para a sociedade setores sucateados e longa espera em atendimento”, diz trecho da nota técnica do CNS. Na avaliação do ex-presidente do CNS, a redução de servidores de carreira pro-

posta pela PEC também dará lugar ao fisiologismo e ao cabide de empregos como regra no serviço público. Ainda segundo ele, o concurso público, as carreiras e a estabilidade do servidor são “a ga-

rantia de acesso ao Sistema dos mais preparados profissionais e da sua imunidade à nociva ingerência político partidária na administração pública, com todos os graves problemas que essa ingerência causa”.

SUS, pandemia e PEC 32

A possibilidade de entregar a estrutura do SUS ao setor privado preocupa o Conselho Nacional de Saúde (CNS), que pediu o arquivamento imediato da PEC 32. O documento com as considerações e recomendações foi enviado à Câmara dos Deputados, ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Tribunal de Contas da União (TCU). “A PEC nº 32/2020 entrega grande parte do serviço público ao setor priva-

do, repassando-lhe, recursos financeiros sem retorno aos cofres públicos, res-

Redução de servidores de carreira dará lugar ao fisiologismo e ao cabide de empregos

A lição que muitos têm tiraram da pandemia de covid-19 foi que a estrutura pública, em especial na área da saúde, é um forte aliado para se superar essa que foi a mais grave crise desde a Segunda Guerra Mundial. Mais de 150 milhões de brasileiros dependem do SUS exclusivamente, segundo dados do IBGE de 2019. Essa necessidade da saúde pública foi ainda mais evidente com o enfrentamento da pandemia. No Brasil, a produção

de vacina, por exemplo, teve o aporte de duas autarquias ligadas ao SUS, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Butantã. “O SUS se mostrou essencial, salvou vidas, tanto na assistência direta às pessoas, quanto na prevenção da infecção do coronavírus, cada vacina no braço do povo brasileiro é fruto do SUS”, defende Bruno Pedralva. Para Francisco Batista Júnior, o SUS terá ainda que acompanhar as consequências e seque-

las da covid-19 nos próximos anos. “Suas consequências a médio e longo prazos já são bastante conhecidas pessoas vitimadas necessitando de longos tratamentos de problemas clínicos, físicos e psicológicos que permanecem após a fase aguda e de tratamento. As alterações propostas pela PEC 32 eliminam qualquer possibilidade de disponibilizar para a população um sistema com plena capacidade de dar a resposta necessária à população”.


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PEC 32: famílias de BH gastariam em média R$ 770 por mês pela educação de cada filho ESCOLA Reforma prevê mudanças nas leis sobre educação, e ensino ficaria sob responsabilidade dos pais e escolas particulares Omar Freire /Imprensa MG

Rafaella Dotta A educação é um dos temas que mais preocupam a população neste momento, porque o fornecimento da educação gratuita em creches, escolas e universidades pode ser gravemente afetado. “Como professora posso dizer com certeza que a educação deixará de ser um direito”, afirma Denise Romano, coordenadora do

Pesquisador que contrariar, poderá ser demitido e a pesquisa descontinuada

Uma família gastaria no mínimo R$ 140 mil por ano com educação de cada filho

Sindicato Únicos dos Trabalhadores em Educação (Sind-UTE/MG). A Proposta de Emenda à Constituição 32 modifica o

artigo 37, colocando o Estado como subsidiário do serviço público. Aqui, entende-se “Estado” como todo o poder dos governos municipais,

estaduais e nacional. Caso aprovada a PEC, o Estado deixará de ser o principal fornecedor da educação, e será obrigado a fornecer educação somente em locais em que as empresas se recusarem. “Estamos falando do serviço de creche, ensino básico, fundamental, médio e até das universidades”, explica Denise. “Durante a pandemia a escola pública retomou o seu lugar de importância, assim como as universidades, que estão produzindo vacinas”. PEC faz uma “mutação genética” A ciência brasileira também pode ser defini-

tivamente lesada. A professora Maria Rosaria Barbato, presidenta do Sindicato dos Professores de Universidades Federais de Belo Horizonte, Montes Claros e Ouro Branco (APUBHUFMG+), opina que no caso do ensino superior, a reforma atinge em cheio as pesquisas em andamento. “Se um professor ou grupo iniciar uma pesquisa que contrarie órgãos governamentais, por exemplo, o servidor poderá ser demitido e a pesquisa descontinuada”, explica Maria Rosaria. “A PEC 32 propõe uma mutação genética do Estado brasileiro para aproximá-lo ao livre mercado”, completa.

Preços de escolas particulares variam de R$ 450 para berçário a R$ 2.102,72 para ensino médio A privatização do ensino deve ter efeito arrasador para a maioria das famílias brasileiras. Hoje, com a educação sendo fornecida prioritariamente pelo Estado, os governos gastam em torno de R$ 300 por aluno a cada mês, afirmou Hugo René de Souza, presidente do Sindicato dos Servidores da Tributação, Fiscalização e Arrecadação do Estado de Minas Gerais. Na sua opinião, este “milagre” só consegue ser feito pelo serviço público gratuito. O portal Mercado Mineiro mostra os valores de agosto de 2021 para matrícula e mensalidade no 1º ano do ensino fundamen-

Reprodução / Colegio Helena Bicalho

Privatização do ensino terá efeito arrasador para a maioria das famílias brasileiras

tal, para crianças de seis anos, em escolas particulares de Belo Horizonte: o menor preço é de R$ 836, no Colégio Helena Bicalho, e o maior no Colégio Edna Roriz, de R$ 2.102,72. O valor aumenta conforme o ano, chegando a R$ 1.019 por mês para estu-

dantes do 9º ano no Helena Bicalho, ainda o mais barato na categoria. Para o ensino médio, também em agosto de 2021, o colégio com a matrícula mais barata encontrada foi o Colégio Salesiano, que cobra R$ 1.157,00. Os demais ficam na média de R$ 1.500.

R$140 mil por ano para cada filho E para as mães e pais de crianças pequenas, o valor também deve doer no bolso. O berçário mais barato em Belo Horizonte é o Sementinhas Encantadas Escola Infantil, no valor de R$ 450 meio período, e R$ 640 período integral. Preços de janeiro de 2021.

Contabilizando as menores mensalidades, uma família gastaria cerca de R$ 140 mil na educação de cada filho ao longo da vida, sem contar materiais escolares, transporte, uniforme, cursos auxiliares e universidade. Hoje, a educação é um serviço público, pago com o dinheiro dos impostos e organizado pelo Estado, sem render lucros. A redução do orçamento e a aprovação da PEC 32 pode modificar essa questão, delegando às famílias a responsabilidade pela educação dos filhos, de forma paga.


Belo Horizonte, 13 a 19 de agosto de 2021

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Reforma Administrativa ampliará ilegalidades em estatais e serviços públicos CEMIG Autonomia dos profissionais e qualidade de serviços prestados à população estarão em xeque Sarah Torres / ALMG

no de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes. Mas os prejuízos serão de toda a população. Além da perda de conquistas históricas, como os adicionais por tempo de serviço e algumas licenças, há outros prejuízos no subtexto dessa proposta. É o caso da autonomia e liberdade das quais funcionários gozam ao ter es-

Maria Beatriz de Castro A PEC 32, que prevê a Reforma Administrativa, traz vários malefícios aos trabalhadores do setor público. Servidores de diversos segmentos da classe trabalhadora serão atingidos por uma cruel retirada de direitos orquestrada pelo gover-

Estabilidade possibilitou denúncias na Cemig No centro do debate público atual, a CPI da Cemig, que investiga possíveis ilegalidades na gestão do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (NOVO), nasceu de denúncias vindas dos trabalhadores da estatal. Processos supostamente ilícitos foram observados e relatados por empregados que, pelo caráter estável de seus cargos, possuem tal prerrogativa. Se a PEC 32 for aprovada, provocará precarização das relações trabalhistas, o que dificulta o direito de um trabalhador questionar e se posicionar sobre a empresa. A estabilidade não é um privilégio, mas uma ferramenta para que cargos técnicos não fiquem à mercê de mandatos políticos e indicações, comprometendo a qualidade dos serviços prestados à população. A PEC 32, se aprovada, permitirá que trabalhadores concursados sejam substituídos por indicados por políticos e partidos que assumem a gestão de órgãos públicos. Os problemas já existentes na Cemig provêm da prática privatista impregnada à empresa, que corrói relações trabalhistas e direitos conquistados pela categoria, além de arranhar a imagem da entidade perante aos mineiros.

tabilidade no emprego. A ameaça de demissão inibe denúncias e reivindicações que são preciosas em empresas do setor público. Um exemplo é a recém instaurada Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Cemig, instalada em junho na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).

Consequências dos interesses privados na gestão

CPI da Cemig revela organograma da privatização

São muitas as consequências da adoção da lógica da iniciativa privada na gestão pública: a inclusão de trabalhadores inaptos e sem arcabouço suficiente para integrar o corpo de funcionários; a terceirização predatória, que vitima profissionais e frustra os clientes; os desligamentos sucessivos sem a realização de concurso público posterior, sucateando setores da empresa. A lógica de mercado dentro da Cemig esvazia cargos, expõe trabalhadores e esfacela processos de trabalho. É o que a Reforma Administrativa fará no conjunto dos serviços públicos. Na Cemig, agravará a situação. As ilegalidades na Cemig são resultado da sanha privatista do governo, que abandona a função social da empresa pública, para assumir o projeto de mercado. A aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 32 abrirá brecha para a privatização de empresas públicas a consequente piora e encarecimento dos serviços. No caso da Cemig, será a autorização necessária para que regalias, excessos e ilegalidades se ampliem na estatal.

As ilegalidades investigadas atualmente na CPI da Cemig são fruto de uma gestão que maneja a estatal com interesses privatistas. Entre os muitos desmandos de Romeu Zema, se destaca a alienação de ativos e ações da Cemig. A empresa se desfez das participações que detinha nas energéticas Light e Renova e anunciou leilão para negociar sua parte na Taesa, controlada em parceria com a colombiana ISA – empresa na qual o presidente da Cemig, Reynaldo Passanezi, já trabalhou. Outros pontos de investigação são os contratos firmados sem a prévia realização de licitação, a contratação de diretores paulistas e a transferência das atividades administrativas para São Paulo. O call center que atende a clientes com problemas no serviço, por exemplo, foi levado para Hortolândia. No entanto, não apenas de transações profissionais vivem os gestores indicados por Zema. Mimos são direcionados ao alto escalão da empresa frequentemente. Um escandaloso exemplo é a contratação de um restaurante de elite para atender a um pequeno grupo de diretores. As cifras chegam ao 1 milhão. Por um ano de atendimento, mais de R$100 mil são destinados à alimentação do grupo mensalmente. Do outro lado da empresa, o ticket para almoço, lanche e jantar dos trabalhadores de campo da Cemig fica em R$62 por dia.


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Reforma trará efeitos negativos no comércio, no emprego e nos serviços dos municípios ECONOMIA A cada 10 servidores públicos, 6 trabalham no nível municipal e a maioria ganha mal Rovena Rosa /Agência Brasil

rão das Neves, 19%; em Governador Valadares, 17%; em Montes Claros, 14%; em Betim, 13%. Em 2018, na soma dos 853 municípios mineiros, o setor público representava 17% do Valor Adicionado Bruto [uma medida da riqueza gerada], o triplo da agropecuária. Considerando os que têm menos de 20 mil habitantes – 78% dos municípios

Wallace Oliveira e Clayton Zarattini A Reforma Administrativa discutida no Congresso terá impactos diretos nos municípios. Se aprovadas, as mudanças causarão o achatamento dos salários e a perda de estabilidade no emprego. Isto, por sua vez, vai afetar o atendimento à população, a rede de comércio e serviços e a arrecadação das prefeituras.

A riqueza dos municípios Da população brasileira total, apenas 5,6% são servidores, enquanto a média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômi-

co (OCDE) é de 10%. Considerando a população empregada, o Brasil tem 12,5% dos trabalhadores no serviço público, ao passo que a média da OCDE é de 17,88%. Em que pese essa baixa proporção, o servidor público é parte importante da força de trabalho, do mercado consumidor e do conjunto dos que pagam impostos no Brasil.

De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 11% dos vínculos empregatícios em Minas Gerais são do serviço público, no nível federal, estadual ou municipal. Em algumas cidades, porém, essa proporção é ainda maior. Em Belo Horizonte, por exemplo, são públicos 29% dos empregos; em Ribei-

Administração pública é a principal atividade econômica de mais da metade dos municípios mineiros

mineiros, a administração pública responde, na média, por 26% do Valor Adicionado Bruto. Além disso, a administração pública é a principal atividade econômica de mais da metade dos municípios do estado. Os servidores são uma parcela expressiva do mercado consumidor e, em algumas cidades, quem mais movimenta a rede de comércio e serviços, contribuindo com a geração de trabalho e renda nesse setor. Mesmo com baixos salários, o servidor é o responsável pelo sustento das famílias, visto que tem estabilidade no emprego e recebe direitos que são negados a outros trabalhadores, como o 13º e as férias remuneradas.

Impactos no comércio e arrecadação Divulgação Iges /DF

A Reforma Administrativa causará a redução da jornada e dos salários desses trabalhadores, facilitará demissões e permitirá que os cargos de aposentados não sejam repostos, prejudicando a economia. “Na grande maioria, os serviços públicos são a principal fonte de renda. O achatamento dos salários causará um impacto nas condições básicas das famílias, com efeitos drásticos nas economias municipais e regionais”, prevê o economista Weslley Cantelmo, do Instituto Economias e Planejamento. Com menos salário e consumo, também tende a cair a arrecadação das prefeituras, que dependem de tributos como o

Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS/ISSQN). “Os prefeitos vão ter uma margem de manobra menor, sendo obrigados a adotar medidas para a redução de gastos. Então, novamente, vão tirar do servidor”, acrescenta Weslley Cantelmo. Nos mu-

nicípios menores o efeito pode ser catastrófico. “Em alguns deles, o setor público é praticamente a única atividade geradora de renda e emprego”.

População vai sentir

O conjunto da população sentirá esses impactos diretamente, já que serviços de saúde, educação, seguran-

ça e assistência social, entre outros, dependem de servidores com estabilidade, bem remunerados e motivados. “Essa multiplicidade de contratos flexíveis, temporários, sem estabilidade, com redução de salários, sem garantias de progressão na carreira, vai prejudicar o servidor e a prestação dos serviços sociais”, pontua Maria de Fátima Lage Guerra, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos So-

Servidores são uma parcela expressiva do mercado consumidor

cioeconômicos (DIEESE). A cada dez empregados públicos no Brasil, seis estão concentrados no nível municipal. Nesse nível, a média salarial é menor que no nível federal. Do total: 25% dos servidores municipais ganham até R$ 1.330, metade recebe até R$ 2.032, enquanto 75% não ganham mais do que R$ 3.381. Os dados são do último Atlas do Estado Brasileiro, produzido pelo IPEA. “Na medida em que proíbe, para os próximos servidores, quinquênios e os reajustes de três em três anos, isso significaria o rebaixamento salarial de quem estiver no serviço público”, avalia Israel Arimar, presidente do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Belo Horizonte (Sindibel).


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Com a PEC 32, servidor perde direitos e a população o serviço público DESMONTE Emenda extingue estabilidade, licença-prêmio, promoção por tempo de serviço, dentre outros direitos Governo do Estado de São Paulo

lou também que as maiores remunerações estão na esfera federal e representam apenas 8,5%. “O que o governo federal chama de privilégios são, na verdade, direitos conquistados pelos servidores por vias democráticas e que permitem a eles exercer o seu papel sem ceder a pressões políticas que visam interesses personalistas”, explica o especialista.

Laura Zschaber e Patrícia Brum Enxugar a máquina pública tem sido o argumento do governo federal para “passar a boiada” no projeto de sucateamento dos serviços públicos por meio da Reforma Administrativa - Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32. A equipe econômica culpa os servidores pela crise enfrentada pelo País, induzindo a população a acreditar que o caminho para a prosperidade está em acabar com as garantias que oferecem transparência e com os “supersalários”, restritos a uma minoria do funcionalismo. “Falácia!”, alerta o especialista em Poder Ju-

“Cortes de direitos vão desestruturar as políticas públicas”

diciário, Wagner Ferreira. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) sobre a realidade salarial das servidoras e dos servidores públicos das três esferas apontou que dos 11,5 mi-

lhões vínculos de trabalho no funcionalismo em 2018, um quarto recebia até R$ 1.566 – menos de dois salários-mínimos daquele ano (R$ 954). Além disso, metade ganhava até R$ 2.727. A pesquisa reve-

Fim da estabilidade acaba com proteção à sociedade e ao interesse público

A PEC 32 extingue garantias como a estabilidade; a licença-prêmio; a progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço; a incorporação ao salário de valores referentes ao exercício de cargos e funções; os adicionais por tempo de serviço; e os pagamentos retroativos, ou seja, a quitação das dívidas do patrão com os trabalhadores. “Nada disso pode ser considerado privilégio ou penduricalhos. Qualquer trabalhador tem direito de crescer na carreira. Estão olhando para o lado errado”, defende Wagner Ferreira, que também representa os servidores do Tribunal de Justiça de Minas Gerais na diretoria do SINJUS-MG.

Melhora para quem?

Defesa da sociedade

Risco para todos

O argumento do governo é de que tudo isso custa caro. Que o serviço público é ruim, ineficiente. “Outra falácia!”, volta a alertar Wagner. “A proposta dá a entender que os cortes de direitos representam uma economia aos cofres públicos e que vão trazer mais eficiência quando, na realidade, vão fragilizar as condições de trabalho dos servidores e desestruturar as políticas públicas. De que maneira sucatear o serviço público traz celeridade para a máquina pública?”, questiona o sindicalista.

Um dos pontos mais preocupantes da Reforma Administrativa é o fim da estabilidade. Diferente do que tem sido dito, esse não é um privilégio do servidor público, é um mecanismo que protege a própria sociedade É ela que garante ao servidor público tomar decisões corretas, fazer denúncias sem temer retaliações, proteger o bem e o interesse público acima de tudo. Sem a estabilidade, o serviço público abre a porteira para o apadrinhamento, para o atendimento a interesses politiqueiros e para o desvio de recursos públicos.

“Outra falácia é que a Reforma Administrativa trará impactos apenas para os futuros servidores públicos. Todos serão atingidos, inclusive os servidores aposentados”, acrescenta Wagner Ferreira. As regras de transição da PEC não são suficientes para proteger quem já está no funcionalismo. Um dos dispositivos previsto no texto facilita o desligamento do servidor e outro prevê que todos deixarão de ter exclusividade no exercício de atribuições técnicas de chefia, pois as funções de confiança, hoje ocupadas somente pelos servidores efetivos, serão transformadas em cargos com critérios de nomeação definidos pelo chefe do Executivo. “Dizer que a PEC 32 não atinge os atuais servidores é mais uma inverdade com o único objetivo de tratorar o serviço público. Uma das estratégias desse governo é justamente desmantelar o funcionalismo pela raiz. Mais do que nunca, se torna crucial a conscientização da sociedade”, conclui Wagner Ferreira.


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E você, o que acha da PEC 32? DEPOIMENTOS Confira opinião de especialistas e lideranças sobre a reforma e se posicione também

Batalha das batalhas “A luta contra a PEC 32 é a batalha das batalhas. É a reestruturação de tudo que foi conseguido com a redemocratização no país. A PEC inverte a lógica da escola pública e da unidade de saúde, que atendem a todos, da energia, da água e do petróleo, que beneficiam a todos e adota a lógica do direito como mercadoria. Quem nos assistiu - os setores e grupos mais vulneráveis - na pandemia? Quem produziu vacinas? Quem fez e faz isso é o serviço público. É isso que a PEC 32 vai destruir e entregar para o setor privado”. Beatriz Cerqueira (PT), deputada estadual e ex-presidenta da CUT Minas foto: Nadia Nicolau Midia NINJA

SAIBA MAIS

A vida vai ficar mais cara e mais difícil “A PEC 32 praticamente enterra a realização de concursos públicos e estabelece a precarização como regra. O sucateamento dos serviços públicos representará, lá na ponta, a piora do atendimento e até a privatização de serviços essenciais para a população, como a saúde e a educação. Ou seja, a vida vai ficar ainda mais cara e difícil para o povo”. Valéria Morato, presidenta da CTB MG e do Sinpro Minas foto: Sinpro Minas

Desmonte do serviço público

Mais uma falsa promessa

“A PEC 32, que o governo chama de reforma administrativa, na prática é o desmonte do serviço público. Com a PEC, teremos o fim da obrigação de gratuidade da prestação de serviços, inclusive de saúde, educação, assistência social, que poderão passar a ser cobrados. Além disso teremos uma piora da prestação desses serviços, principalmente para a população mais pobre. O papel do Estado será diminuído, prejudicando a União, mas também estados e municípios”.

“A reforma trabalhista prometia que novos empregos seriam gerados, a reforma da Previdência prometia corrigir privilégios. Na prática, a reforma trabalhista não gerou empregos e sim precarizou os que já existiam, e a da Previdência aumentou o tempo para aposentar da maioria dos trabalhadores, além de reduzir o valor da aposentadoria. E agora, o governo promete modernizar o serviço público, mas vai precarizar e privatizar, para gerar lucro para poucos empresários”.

Rogério Correia, deputado federal e coordenador da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público

Alexandre Finamori, coordenador do Sindipetro MG

Brasil na contramão do mundo

Desproteger quem mais precisa

“Ao pretender abrir mão do controle público de setores estratégicos, o Brasil atua em descompasso com o processo de reestatização pelo qual passam os países mais desenvolvidos, de acordo com estudos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Pode-se afirmar, à luz dos dados colocados, que o Brasil está na contramão do mundo”.

“A PEC 32 vem para desmantelar o serviço público. Ela propõe mudanças que trarão profundos impactos para toda a população, especialmente a mais vulnerável. Ela vai desproteger quem mais precisa dos serviços públicos gratuitos. Se ela for aprovada, vamos ver um aumento da grande desigualdade no Brasil. Veremos a volta do coronelismo e do apadrinhamento político, pois a PEC facilita o uso político da máquina pública”.

Rita Serrano, representante dos trabalhadores no Conselho de Administração da Caixa foto: FENAE

foto: Nadia Nicolau Midia NINJA

Quando a gente mais precisa “A reforma administrativa é nefasta ao serviço público e a população. O povo não terá o SUS e nem a escola pública. Os cortes no orçamento do serviço público retiraram bilhões da saúde e da educação, valores que vêm caindo ano a ano, no auge da pandemia, quando a gente mais precisa do serviço público”. Cristina Del Papa do Sindicato dos Trabalhadores nas Instituições Federais de Ensino (Sindifes) foto: Sarah Torres ALMG

Ilva Franca, coordenadora da Frente Mineira em Defesa do Serviço Público, em audiência na Câmara de BH foto: ANFIP

foto: Gustavo Bezerra Liderança PT na Câmara

Pressione os deputados - Diga não à reforma administrativa I napressao.org.br/campanha/diga-nao-a-reforma-administrativa Não deixem vender o que é nosso I cut.org.br/acao/campanha-nao-deixem-vender-o-brasil-e062 Comitê nacional em Defesa das Empresas Públicas I comiteempresaspublicas.com.br/ Campanha É Público, é para todos! I epublico.com.br/ Brasil de Fato | brasildefato.com.br


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