Camila FloraMoraes Passos
especial
MG novembro de 2021
6 anos depois: sem reparação, punição ou reassentamento O rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, controlada pela Vale e BHP Billiton, completa seis anos na sexta (5). Foram 19 mortos, um aborto forçado e centenas de milhares de pessoas atingidas em 50 cidades de Minas Gerais e Espírito Santo, que perderam a renda e o trabalho devido à contaminação do Rio Doce. Ainda hoje, 300 famílias aguardam suas novas casas. Processo penal está atrasado e há risco de que crimes sejam prescritos. Atingidos seguem na luta por seus direitos violados
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ESPECIAL
Belo Horizonte, novembro de 2021
Seis anos depois, nenhum responsável foi punido pelo crime na Bacia do Rio Doce MARIANA Processo penal está atrasado e há risco de que crimes sejam prescritos Danilo Candonga
Wallace Oliveira O rompimento da barragem de Fundão, pertencente à mineradora Samarco (Vale e BHP Billiton), completa seis anos. Foram 19 mortos pelo rejeito, passando pelas famílias que perderam entes queridos, propriedades e comunidades, até as centenas de milhares de pessoas, em 50 cidades de Minas e Espírito Santo, que perderam o Rio Doce, fonte de sustento, convivência e lazer. Rejeição de denúncias, penas mais brandas Após quase um ano de investigações, a Força-Tarefa Rio Doce do Ministério Público Federal (MPF) acusou 21 pessoas de homicídio doloso, outros três crimes pre-
micídio tem uma pena máxima maior. Em termos práticos, a decisão do Tribunal implica uma redução da pena”, explica o procurador da República Thales Coelho, integrante da Força-Tarefa Rio Doce.
MPF acusou 21 pessoas de homivistos no Código Penal e qua- nos, mas os acusados seguiram cídio doloso, juiz tro crimes previstos na legis- com as práticas, a fim de obte- revisou e abranlação ambiental. Essas mes- rem vantagens econômicas. dou crimes mas pessoas, ao lado das mineradoras Samarco, Vale e BHP, a consultora VOGBR e um de seus engenheiros, também foram acusadas de emissão de laudo enganoso, que atestava a segurança da barragem de Fundão. As investigações apontam que havia ciência dos riscos e da-
Há dois anos, o juiz federal Jacques de Queiroz, de Ponte Nova, fez uma revisão das denúncias contra cinco executivos da Vale e três da BHP, todos integrantes da alta cúpula da Samarco, retirando a acusação de homicídio, com desclassificação para crime de inundação seguida de morte. “O ho-
A decisão também permitiu que o processo saísse do rito do tribunal do júri e passasse para o rito ordinário. Além disso, 13 pessoas foram excluídas da ação penal por decisões judiciais.
Prescrição dos crimes A demora pode fazer com que, por questão de prazo legal, alguns crimes sejam prescritos e fiquem sem punição. Seria o caso da destruição de floresta nativa e do crime de morte de animais. Pela lei, pessoas jurídicas, como a Vale, BHP e Samarco, podem receber penas pecuniárias (como indenizações), prestação de serviços à comunidade ou restrição de direitos. Também é possível punir as mineradoras com a retirada de autorizações para operar na região onde o crime foi cometido.
Repactuação se prolonga e decisão fragiliza Assessorias Técnicas na Bacia do Rio Doce JUDICIÁRIO Acusado de suspeição, juiz Mário de Paula Franco Junior restringe organização dos atingidos Yuri Barichivich /Greenpeace
Pedro Stropasolas Seis anos após o maior crime ambiental da história do Brasil, não houve reparação às vítimas do crime. “O problema maior do atingido hoje é a Justiça. A Justiça tem atuado como jagunço das mineradoras”, aponta Simone Silva, moradora de Barra Longa (MG). A mais recente das decisões judiciais trata da atuação das Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) eleitas pelas comunidades em 2018. Vale e BHP Billiton não aceitaram o processo e até hoje, as as ATIs
atuaram em apenas 4 dos 43 municípios afetados pelo crime. As entidades têm o objetivo de mensurar os danos causados sem a influência da Fundação Renova, que
representa as mineradoras. No entanto, de acordo com o despacho do juiz Mário de Paula Franco Junior, as ATIs não podem desenvolver estudos primários de contaminação e nem revisar nenhum
tipo de cadastro para o recebimento de indenizações. A formulação de matrizes de danos também é colocada em cheque, assim como é imposto que as entidades se comuniquem com os atingidos apenas de forma virtual. “Se vai pegar estudos secundários, que estudos? São os estudos vindos da Fundação Renova ou de contratadas diretas da Vale e da BHP. Não faz sentido nenhum”, comenta Heider Boza, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
Indenizações e empobrecimento na Bacia do Rio Doce
A decisão recente da 12a Vara Federal, na visão dos movimentos e entidades, é um instrumento para forçar a adesão dos atingidos ao chamado “Sistema Indenizatório Simplificado”, defendido pela Renova. Em março, vídeos vazados de algumas reuniões, divulgados pelo Observatório da Mineração, mostram o juiz orientando advogados e membros de supostas comissões de atingidos sobre como atuar no processo. A prática viola o artigo 145 do Código de Processo Civil.
Belo Horizonte, novembro de 2021
ESPECIAL
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Demora de reassentamentos é vista como estratégia de separação de comunidades de Mariana À ESPERA DE UM MILAGRE Seis anos após rompimento da barragem, 300 famílias atingidas aguardam suas novas casa Wan Campos/ Cáritas
Rafaella Dotta Em 15 de setembro de 2021 foi colocado o primeiro tijolo no reassentamento coletivo de Paracatu de Baixo, em Mariana (MG). A Fundação Renova utilizou a ocasião para fazer propaganda, mas, para atingidos, a data não foi de comemoração. Seis anos se passaram até que a primeira casa começasse a ser construída. A realidade se repete nas outras comunidades atingidas pela lama da barragem de Fundão, propriedade da Samarco/Vale/BHP Billiton, que se rompeu em 2015 no distrito de Bento Rodrigues. Segundo informações da Renova, a nova comunidade de Bento Rodrigues abrigará 203 famílias. Mas, até o momento, dez casas foram construídas e nenhuma entregue. Em Gesteira, 37 famílias deveriam ser reassentadas, mas apenas a sondagem do terreno foi feita. Em Paracatu de Baixo, 81 famílias devem ser abrigadas, mas também nenhuma casa está pronta. Tempo pressiona pela negociação Maria das Graças Lima Bento, integrante da Comissão de Atingidos, é moradora de Gesteira e uma das pessoas que serão reassentadas pelo projeto de reparação. Depois de muita luta, os atingidos conseguiram que a Fundação Renova adquirisse um terreno no tamanho correto para as residências e as construções que possuíam na antiga comunidade, como a escola, o salão comunitário, a igreja e o campo de futebol. Mas nada ainda foi construído.
Segundo a Renova, o reassentamento individual já foi negociado com 136 famílias, seja porque elas foram atingidas, mas não moravam nas comunidades, seja porque desistiram de morar no reassentamento coletivo. Maria das Graças relata que, hoje, mais da metade das famílias de Gesteira optaram por essa modalidade. Em nota ao Brasil de Fato MG, a Renova afirma que 69 imóveis foram adquiridos para famílias que optaram
Quase seis anos desde o rompimento da barragem de Fundão, o primeiro tijolo é colocado no reassentamento coletivo de Paracatu de Baixo
A demora faz com que os atingidos prefiram aceitar o “reassentamento familiar”, que é uma espécie de indenização individual para a compra de uma casa em outro local. Maria das Graças foi uma das pessoas que decidiu negociar.
Até o momento, dez casas foram construídas em Bento Rodrigues e nenhuma foi entregue “Muita gente fez isso por causa da demora. Já lutamos há seis anos. A idade vem chegando, outros não estão com a saúde muito boa, alguns já até morreram sem ter o seu direito garantido”, conta Maria das Graças. “Mas agora vai ficar todo mundo distante”, lamenta.
Na comunidade de Gesteira, apenas a sondagem do terreno foi feita Medo da mobilização popular Para o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), chama a atenção que a Fundação Renova já tenha comprado o terreno e, mesmo assim, tenha feito um grande esforço durante a pandemia para que os atingidos de Gesteira façam o acordo individual. Para a integrante do movimento Letícia Oliveira, a Fundação Renova tem agido para evitar a reconstrução das comunidades. “Eles têm medo de que as pessoas se encontrem, se unam e continuem a cobrar seus direitos juntas”, avalia.
Em Paracatu de Baixo, 81 famílias devem ser abrigadas, mas nenhuma casa está pronta
MAB, o atraso é uma estratégia, mas também uma “enrolação”, já que a Justiça não tem atuado para garantir o cumprimento dos prazos ou das multas. “As empresas sabem que não vai acontecer nada com elas. No caso de Brumadinho, ninguém foi preso, no caso de Mariana também não”, diz, indignada. Para tentar resolver o problema da moradia, Letícia relata que os atingidos estão construindo eles próprios suas novas casas. Eles temem que o processo se arraste por muitos mais anos e que o auxílio moradia pago pela Renova seja cortado sem aviso prévio. “É uma injustiça, porque essas pessoas estão morando em condições piores do que antes, por culpa das empresas. Mas ao mesmo Wan Campos/ Cáritas
pelo reassentamento individual e já foram entregues seis casas dessa modalidade. Enrolação não é punida pela Justiça Na análise de Letícia, do
tempo mostra como o nosso povo consegue construir de fato a solução dos problemas, coisa que empresas tão gigantes como a Samarco, a Vale e a BHP Billiton não fizeram”, aponta Letícia.
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ESPECIAL
Belo Horizonte, novembro de 2021
Atingidos da Bacia do Rio Doce sofrem com aumento do custo de vida CRISE Crime da Samarco/Vale/BHPBilliton causou perda de renda e de trabalho, problema que piorou com aumento do gás, da energia e da cesta básica Izabella Bontempo / MAB MG
“Tenho uma filha autista e na época ela já apresentava uns problemas dermatológicos. Fui orientada pelo dermatologista para não dar banho nela com a água do rio. Então eu tive que comprar água para beber, fazer comida e também para dar banho na minha filha. Isso causou um grande impacto no meu orçamento. Com o dinheiro escasso e o aumento da cesta básica, tivemos que começar a priorizar nossas compras. Alessandra Silva Gobbi Colatina (ES) - dona de casa
Izabella Bontempo Nos seis anos do crime da Samarco, mineradora controlada pela Vale e BHP Billiton, na bacia do Rio Doce, atingidos enfrentam mais uma batalha econômica: o aumento do custo de vida provocado pelo governo Bolsonaro. Antes disso, a maioria da população atingida já vivia a perda de renda e de trabalho causada pela contaminação do rio. Alessandra Silva, atingida pelo crime em Colatina, no Espírito Santo, relata que a sua situação financeira piorou muito e que, antes da pandemia, tinha condições de comprar água para o consumo. “Hoje eu só consigo comprar água pra beber e, infelizmente, eu tenho que fazer a comida com a água da torneira, sabendo que a água oferecida aqui, do Rio Doce, é imprópria para o consumo”, lamenta. A atual crise econômica tem causado empobrecimento e desemprego em todo o país, e o preço da cesta básica de alimentos aumentou consideravelmente em todas as capitais. De acordo com estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em setembro, o valor da cesta básica era
de R$ 582,61 em Belo Horizonte e, em Vitória, chegava a R$ 633,03. Além disso, o preço do gás ultrapassou R$ 100 e, recentemente, o governo federal permitiu o aumento de 50% nas Bandeiras Tarifárias de Energia Elétrica, obrigando a população a pagar mensalmente uma taxa de R$14,20 para cada 100 quilowatts-hora consumido. Para Alessandra, essa situação piorou ainda mais a vida dos atingidos pelo crime. “É muito triste, após seis anos, ver o poder público, o Estado e o governo federal de braços cruzados para os atingidos”, aponta. “As pessoas vão ter que morrer para que esses poderes olhem para nós e façam alguma coisa? Na verdade, já estamos morrendo”, indigna-se. De acordo com o estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), de dezembro de 2019, de 25 mil propriedades analisadas dos cadastros da Fundação Renova, quase 24 mil declararam perda e/ou interrupção na pesca, na criação de peixes no rio ou de atividades de lavadeira. E 24,7 mil afirmaram afetação na ocupação, trabalho e/ou renda da pessoa física. Ainda segundo o documento, a impossibilidade de exercer atividade autônoma foi declarada em mais de 80% dos casos, tanto entre os homens como entre as mulheres.
EXPEDIENTE O Brasil de Fato circula semanalmente com edições regionais, em sete estados. Queremos contribuir com o debate de ideias e na análise dos fatos do ponto de vista da necessidade de mudanças sociais em nosso país e em nosso estado. Este especial é uma parceria do Brasil de fato MG com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Tiragem: 45 mil exemplares. www.brasildefatomg.com.br / (31) 9 8468-4731
Depois do rompimento, fiquei um bom tempo sem bordar, porque as vendas diminuíram muito. Fiquei mais pobre também e, para piorar, veio a pandemia. Agora está tudo caro, gás, luz, água, comida, tudo subindo, a única coisa que não sobe é o salário. Antes do rompimento, eu tinha o sonho de estudar, fazer pedagogia. Hoje é impossível, tenho que trabalhar muito para conseguir sustentar minha casa. Andreia Mendes Barra Longa/MG - bordadeira e diarista
Vários sonhos foram interrompidos. Tinha recursos que eu guardava, mas tive que usar tudo pra ir atrás de água limpa. Até hoje a gente sofre com isso, o comércio da nossa cidade não é o mesmo. Sem a reparação, a gente não consegue recuperar nossos danos. E em um momento como este que estamos passando, sem renda e com tudo muito caro, com valores abusivos, é mais difícil ainda. Estamos sofrendo. Regiane Fernanda Cordeiro Resplendor/MG - dona de casa
O crime aconteceu na parte financeira, mental e física. Hoje eu vejo muita sentença que tira os direitos dos atingidos e a nossa comunidade sofre muito com isso. Ainda vem o corte do auxílio no meio de uma pandemia. Fica o desespero dos atingidos. Todos os dias eu tinha peixe pra vender. Hoje eu tenho que aguardar o auxílio todo mês. Meu ritmo de vida é outro, sem perspectiva se vamos voltar ao que era antes. Walkimar Rodrigues Linhares/ES - pescador