especial
MG janeiro de 2022
ROMPIMENTO DA BARRAGEM DA VALE EM BRUMADINHO
Um crime que continua marcando vidas
Neste 25 de janeiro, os familiares e as pessoas atingidas pelo rompimento da barragem em Córrego do Feijão completam três anos em busca das suas jóias e de justiça. Ainda faltam seis pessoas para serem encontradas. Enquanto isso, o crime segue marcando a ferro a vida de quem mora na Bacia do Paraopeba e no Lago de Três Marias: seja com a enchente contaminada que inundou suas ruas e casas, seja transformando a indignação em luta coletiva
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Belo Horizonte, janeiro de 2022
Água e lama do Rio Paraopeba contaminadas fazem famílias relembrarem rompimento da barragem CRIME CONTINUADO Estudo da “SOS Mata Atlântica” encontrou 44 vezes mais cobre que o permitido no Paraopeba Marina Oliveira
Ana Carolina Vasconcelos Marcela Rodrigues estava voltando de uma viagem em família quando recebeu a notícia de que o município onde mora era um dos mais dos 380 municípios em estado de emergência, devido às fortes chuvas. Mas para ela e tantos outros moradores da bacia do rio Paraopeba o choque foi ainda maior. “Tive a mesma sensação do momento que soube do rompimento da barragem no dia 25 de janeiro de 2019”, declarou. Aos 28 anos, Marcela é uma das milhares de pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de rejeitos da Vale, em Córrego do Feijão, no ano de 2019. Seu pai, Denilson Rodrigues, é uma das 272 vítimas fatais do rompimento. Com as fortes chuvas e o consequente aumento do nível do rio, famílias das comunidades próximas enfrentaram enchentes de água e lama tóxicas. Os rejeitos, presentes nas margens do rio, chegaram a regiões que ainda não haviam sido contaminadas. Um estudo realizado em 2020 pela ONG “SOS Mata Atlântica” demonstrou a presença de metais pesados em alta quantidade nas águas do rio Paraopeba. Foi encontrada uma quantidade de cobre 44 vezes mais alta que o permitido, de manganês 14 vezes acima e de ferro 15 vezes acima. Moradores relatam que algumas pessoas já apresentaram manchas na pele, após o contato com a água e a lama contaminadas. “A gente sente dor de cabeça, vontade de vomitar, a pele fica irritada, com coceira. Quando não era contaminado, a gente não enfrentava esse problema”, ex-
menos 700 famílias desabrigadas nas cidades de São Joaquim de Bicas, Juatuba, Betim, Citrolândia, Mário Campos, Brumadinho e Congonhas, que estão na bacia do rio Paraopeba.
Barragens em risco Cidade de Brumadinho foi uma das mais atingidas pelas enchentes
plica Márcia de Medeiros Faria, ribeirinha e moradora de Brumadinho. Perdas são incontáveis
“Perdemos todos os móveis da cozinha, roupas, plantas”, explica Rita Andréia Oliveira Rodrigues, moradora de Brumadinho. Ela relata que além de móveis, a lama tóxica levou fotografias, objetos de recordação, parte da história de sua família. Nicolle Virgínia Flores Soares Silva, e moradores de Bru-
Aldeias No município de São Joaquim de Bicas, a aldeia Naô Xohã, de indígenas das etnias Pataxó e Pataxó Hã-hã-hãe, e em Pompéu, a comunidade Kaxixó, ambas atingidas pelo rompimento da barragem de Brumadinho, foram alagadas pela cheia do rio. Famílias ficaram ilhadas e desalojadas. “Ainda não é oficial se temos condições de voltar a morar naquele local. Mas a gente sabe que não, o território já era contaminado e agora está pior. Estou muito preocupado com as famílias”, desabafa Sucupira, vice cacique da aldeia Naô Xohã.
madinho, relatam que a água do rio subiu tanto e tão rápido que perderam pertences. “Muita coisa não dá tempo de tirar e dessa vez a água subiu muito rápido, tiramos as coisas às pressas e muita coisa estragou. É muita lama, sujeira, entulho que fica após as águas baixarem”, explica. Levantamento do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) identificou que há pelo
Em enchentes anteriores era água e areia. Agora é lama fedorenta
A culpa é das chuvas? Nascida em 1970, Natalina já presenciou outras enchentes no município de Brumadinho. Porém, nunca tinha visto situação como a de agora. “Principalmente por esse barro, essa lama. No pós enchente, a gente não convivia com isso antes”, explica. Márcia Faria, confirma. “Antes era água e areia. Agora é lama fedorenta, que dá alergia, coceira”.
Segundo o governo de Minas, 31 barragens de rejeito estão em situação de emergência. Segundo a União, pode chegar a 36. Dessas, 3 estão classificadas como nível 3, as barragens B3/B4, em Nova Lima, Forquilha III, em Ouro Preto, e Sul Superior, em Barão de Cocais. Todas as estruturas pertencem à Vale. As barragens classificadas nesse nível têm risco iminente de rompimento, tornando necessária a evacuação das comunidades ao redor.
Responsabilidade da Vale Na terça-feira, dia 18, o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) e a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) notificaram a Vale. O ofício encaminhado à mineradora atribui à empresa a responsabilidade da limpeza imediata de propriedades particulares e vias públicas dos municípios da bacia do Paraopeba atingidos pelas chuvas, dentre outras medidas. Porém, moradores afirmam que a empresa não está prestando a assistência necessária.
Linha do tempo dos principais rompimentos 2001 Barragem de contenção de minério da mineradora Rio Verde, em Macacos, distrito de Nova Lima, rompeu em junho de 2001
2003 Em Cataguases, na Zona da Mata, a barragem de um dos reservatórios da Indústria Cataguases de Papel Ltda rompeu em 29 de março
2007 Miraí, na Zona da Mata, foi vítima de rompimento da barragem da mineradora Rio Pomba Cataguases
2014 Barragem da mineradora Herculano, em Itabirito, rompeu em 10 de setembro de 2014
2015 Barragem da Vale e da BHP/Vale/Samarco rompeu em Mariana, no dia 5 de novembro de 2015
2019 Barragem da Vale rompe em Brumadinho no dia 25 de janeiro de 2019
Belo Horizonte, janeiro de 2022
Lentidão da Justiça gera sentimento de impunidade no caso Brumadinho “DECEPCIONANTE” Processo, que corria em âmbito estadual, está parado e aguarda que Justiça Federal decida seu destino Isis Medeiros
Rafaella Dotta Ainda não há nenhuma pessoa formalmente acusada pela morte das 272 pessoas no rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, em 2019. Um impasse entre a Justiça Estadual de Minas Gerais e a Justiça Federal paralisa o andamento do processo, diminuindo, a cada dia, a confiança dos familiares na punição do crime. De um lado, o Ministério Público (MP) de Minas luta para manter o julgamento no âmbito estadual, em ação que já estava correndo na Comarca de Brumadinho. Por outro lado, o Supremo Tribunal de Justiça manteve, há um mês, sua decisão de que o caso deve ser julgado a nível federal. O MP de Minas, em denúncia entregue à Justiça Estadual em janeiro de 2020, indiciou 16 pessoas por 270 homicídios dolosos e crimes ambientais. Processo que já estava correndo. Em nível federal também há uma investigação concluída, da Polícia Federal, que indiciou a empresa Vale, a empresa Tüv Süd e 19 pessoas. Essa foi entregue ao Ministério Público Federal, que ainda não abriu a denúncia. Há poucos dias, em 14 de janeiro, o MP mineiro recorreu ao Supremo Tribunal Federal e tenta
cancelar a federalização do caso. “Na tragédia da Vale em Brumadinho as vítimas fatais eram colaboradores da própria compa-
Para advogado, o impasse sobre o processo criminal é uma manobra para ganhar tempo nhia, moradores e pessoas que passavam pela região”, argumenta nota do MP. O órgão defende que o julgamento aconteça em um Tribunal do Júri estadual a ser instalado em Brumadinho. Demora e impunidade de mãos dadas O advogado Danilo Chammas, membro da Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário (Renser) e que acompanha o caso, avalia que o impasse, no mínimo, atrasa o processo em um ano. “A manobra de alegar incompetência do juízo é muito conhecida, acontece muito para atrapalhar o processo, ganhar tempo”, analisa. Para ele, a Justiça teve uma atuação enérgica logo após o rompimento, mas desde que a denúncia virou uma ação, há dois anos, pouco evoluiu.
“Decepcionante”, indigna-se Maria Regina, mãe da Priscila Elen Silva, uma das vítimas fatais do rompimento. “Você vê a morosidade, vê que não tem pessoas atuando para fazer justiça. Pelo contrário, olha a quantidade de liberação para mexer em minério que o Zema deu neste ano. Que justiça vai ser feita se eles, que fazem justiça, estão ganhando?”, questiona dona Regina. Andressa Rodrigues, mãe do Bruno Rocha Rodrigues, também vítima do crime, reforça a importância da punição aos responsáveis. “A Justiça tem se mostrado muito morosa, é um processo que não avança. E essa impunidade é um combustível perfeito para que crimes, como os de Mariana e Brumadinho, tornem a se repetir”, lastima. Melhorar acesso às informações Os termos e trâmites judiciais também têm se mostrado um empecilho aos familiares das vítimas da Vale. Por intermédio dos advogados da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo rompimento da barragem Mina Córrego do Feijão (Avabrum) e da Renser, é possível ter acesso aos autos. Porém, é burocrático. As entidades organizam um Observatório Criminal para coletar dados das instituições de Justiça e repassá-las aos atingidos, com o objetivo de que os familiares fiquem melhor informados. A presidenta da Avabrum, Alexandra Andrade, destaca ainda a demanda pela informatização do processo judicial. “Um processo físico para o número de réus [16] vai atrasar ainda mais. O ideal seria passá-lo ao meio eletrônico, para que vários advogados tenham acesso ao mesmo tempo”, explica.
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Depoimentos Será que a Vale vai devolver para a dona Joaquina a casinha dela que ela gostava de morar na beira do rio? Qual tipo de justiça que essa instituição pode promover, uma vez que ela errou com a população? Uma vez que ela acabou com o sonho, a qualidade de vida de muitas pessoas de forma criminosa. E ela fez sabendo. Antônio Cambão, do Quilombo de Marinhos
Justiça é a pessoa pagar pelo o que ela fez. Se fez algo de errado, é preciso assumir. Não pode ficar se escondendo. No caso da Vale, ela matou 272 joias e ainda está solta por aí. É preciso colocar os responsáveis na cadeia para trazer um pouco de alento para as famílias. Nós merecemos justiça. Vale, assassina! Tüv Süd, assassina também! Alice Jolie Rocha de Almeida, de Mário Campos
Justiça é ter o direito de sonhar um futuro melhor para as pessoas no território que elas escolheram para viver o resto de suas vidas. Isso é justiça!
Valéria Antônia Silva Carneiro, do Assentamento Pastorinhas
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Belo Horizonte, janeiro de 2022
“Eu não luto só por reparação, luto por justiça, e ela só será alcançada com a luta coletiva” UNIÃO Para atingidos, a vitória sobre a impunidade e sobre os ataques da Vale só será possível com a organização popular Isis Medeiros
Amélia Gomes Fonte de renda, moradia, saúde, amigos, família. A lama tóxica de rejeitos da Vale devastou de diferentes formas a vida dos atingidos da Bacia do Paraopeba e do Lago de Três Marias. Soterrou sonhos e projetos. Mas, no cenário catastrófico enfrentado após o crime, o denominador comum entre os atingidos é a busca incessante por justiça. Para Cláudia Márcia Gomes, que perdeu o cunhado e também a propriedade no rompimento, essa conquista só virá da união dos atingidos. “Eu não luto só por reparação, luto principalmente por justiça, e ela só será alcançada com a luta coletiva”, afirma. Ela, que hoje integra três coletivos, entre eles a Comissão de Ponte das Almorreimas, relembra que em 2015 chorou por três dias seguidos por causa do rompimento da barragem da Samarco/Vale/BHP Billiton, em Mariana. “Se eu tivesse lutado por Mariana, Brumadinho não teria acontecido”, lamenta. “Eu espero que eles sejam punidos, porque a nossa punição está sendo doída demais” completa. Para Fernanda Perdigão, coordenadora do Fórum de Atingidas e
DEPOIMENTOS Resolvemos nos unir e lutar na coletividade para sermos, pelo menos, um pouco ouvidos. Pedimos união de todas as pessoas atingidas, para que juntos façamos ecoar a nossa voz, para que haja uma reparação justa, uma reparação humana. Porque crimes estão sendo cometidos um atrás do outro, não só pela empresa criminosa, mas por todos aqueles que deveriam nos defender. Patrícia Passarela, da comunidade Taquaras, Esmeraldas
Atingidos pelo Crime da Vale, além de ser um ponto de apoio para os momentos mais difíceis, a organização coletiva é a única possibilidade para os atingidos conseguirem enfrentar o sistema minerário. “Coletivamente é possível fazer diferença e impor à Vale que cumpra não só os acordos, mas que respeite os direitos
A organização coletiva é a única possibilidade para enfrentar o sistema minerário fundamentais das pessoas”, aponta. “Se passar apenas pela luta individual, a gente vai estar sempre com o sentimento de injustiça, é junto que a gente fica mais forte”, completa Fernanda, que também integra o coletivo
Paraopeba Participa e o Comitê Popular da Zona Rural de Brumadinho. Além do convívio cotidiano com as sequelas do crime, desde 2019 as comunidades atingidas denunciam que são perseguidas e ameaçadas pela mineradora, sobretudo aqueles que integram e organizam coletivos de luta por justiça. Na avaliação de Dom Vicente Ferreira, da Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário (Renser), a perseguição contra as organizações é um sinal de que a luta está surtindo efeito. “Se deixarmos os agredidos sozinhos, a gente perde para o sistema. Precisamos estar sempre em rede”, pontua. “Se o poder que está nos matando é global, a força para combater esse projeto tem que ser a coletividade. Precisamos globalizar a nossa luta e solidariedade. Por isso, a estratégia da Vale é justamente nos fragmentar”, ressalta o bispo.
Precisamos caminhar juntos em comunhão, em missão. Povo unido jamais será vencido. Em oração, união, somando forças, apoiando uns nos outros, construiremos pontes que nos agregam, ao invés de muros que separam e dividem. Que a mãe de Deus e nossa querida Virgem Maria nos dê forças para enfrentarmos, resistirmos juntos essa realidade tão dura que é o crime da Vale. Padre José Evair, da comunidade Aranha, Brumadinho A gente não deve lutar sozinho porque a Vale é uma potência. E a gente sozinho se sente muito pequeno. O ditado mesmo já diz: uma andorinha sozinha não faz verão. Juntos, nós somos mais fortes. É tipo vareta de bambu, se pegar uma só, você quebra ela num instante. Mas se você juntar mais de uma, você não consegue quebrar. Ela enverga, mas não quebra. Nair de Fátima Santana Silva, da comunidade quilombola Marinhos, Brumadinho
OPINIÃO
Dez coisas que a Vale não deveria fazer Por Coletivo de Atingidos
1. Não atrapalhar as in-
vestigações sobre o crime cometido e reconhecer sua responsabilidade com pedido formal de desculpas.
2. Não perseguir os atingidos, os defensores de direitos humanos, as assessorias técnicas, os movimentos sociais e organizações populares que estão lutando por justiça e reparação integral. 3.
Não enrolar para reparar as famílias.
4. Não retomar nem expandir as explorações nos locais das tragédias. 5. Não gerar mais impac-
tos socioambientais com o processo de reparação.
6. Não provocar conflitos entre as comunidades atingidas. 7. Não desqualificar as dores e os impactos nos nossos territórios. 8. Não participar das decisões sobre os processos de reparação e não excluir a participação dos atingidos. 9. Não definir os critérios sobre quem são as pessoas atingidas.
EXPEDIENTE O Brasil de Fato circula semanalmente com edições regionais, em sete estados. Queremos contribuir no debate de ideias e na análise dos fatos do ponto de vista da necessidade de mudanças sociais em nosso país e em nosso estado. Este especial é uma parceria do Brasil de Fato MG com a Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário da Arquidiocese de Belo Horizonte (Renser) e o Coletivo de Atingidos de Brumadinho. Tiragem: 65 mil exemplares. www.brasildefatomg.com.br / (31) 9 8468-4731
10. Não fazer propagandas mentirosas sobre a reparação.