Edição Especial - Brasil de Fato MG - Ecologia Integral

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isis medeiros

especial

MG fevereiro de 2022

Ecologia Integral:

tudo interligado numa Casa Comum

Recentes tragédias atribuídas ao clima têm trazido consequências na vida da maioria da população mundial, sobretudo dos mais pobres. O futuro dos seres humanos só existirá com a proteção da totalidade do planeta, animais, recursos e das pessoas mais vulneráveis. Conheça mais sobre a proposta defendida pelo Papa Francisco, com adeptos em todo o mundo, e que ganhou uma romaria em sua defesa em Brumadinho. Leia também entrevista exclusiva com Leonardo Boff


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ESPECIAL

Belo Horizonte, fevereiro de 2022

Ecologia integral: a consciência de que tudo está conectado CASA COMUM O futuro dos seres humanos só existirá com a proteção da totalidade do planeta, animais, recursos e das pessoas mais vulneráveis Daniela Moura /Midia Ninja

Rafaella Dotta Recentes tragédias atribuídas ao clima têm trazido consequências na vida da maioria da população mundial. Em entrevista recente à Agência Pública, o climatologista peruano José Marengo afirmou que o clima do futuro “não será tanto um clima quente, seco, frio ou chuvoso, mas um clima extremo”. E que é preciso começar a pensar alternativas para salvar as populações mais vulneráveis. Essa é também a preocupação de um conceito chamado “Ecologia Integral”. Nele, a defesa do meio ambiente só é efetiva se for entendida como a defesa de

Laudato Si

a mensagem de Papa Francisco

Economia solidária e alimentos saudáveis são parte dos pilares de uma ecologia integral

todos os seres vivos e de seu bem-estar. A ecologia integral entende, por exemplo, que não adianta ter matas e rios preservados enquanto existe uma extrema desigualdade, com parte da população passando por miséria, fome e doenças evitáveis. “Tudo está interligado numa casa que é comum”,

comenta Dom Vicente, Bispo Auxilar da Arquidiocese de Belo Horizonte, se referindo ao planeta Terra. “Apesar de ser um ator que também cria, o ser humano não pode se esquecer de que ele não ‘está’ na natureza, ele ‘é parte’ da natureza. Não se consegue cortar os processos isolando a vida humana do resto”, explica.

Em Minas Gerais, mineração é um dos principais obstáculos a uma ecologia integral

O líder máximo da Igreja Católica tem sido um dos principais mensageiros da Ecologia Integral. Em 2015, sua primeira carta encíclica – que é um documento para orientar as lideranças católicas e fiéis ao redor do mundo – foi o “Laudato Si” (em português “Louvado sejas”), que tem como mensagem central a Ecologia Integral. “Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão a crescer?”, questiona Papa Francisco. A resposta, segundo ele, está na proteção ao meio ambiente, na ajuda aos países menos desenvolvidos, em reformular hábitos e comportamentos, entre uma série de ações em busca do bem comum

para seres humanos e todo o planeta, que sempre são interligados. O termo não foi cunhado pelo papa, mas foi Francisco quem o divulgou de forma global e o incorporou com o cuidado com a Casa Comum, conta a pesquisadora Janise Bruno Dias, doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento e professora da Universidade Federal de Minas Gerais. “Como pesquisadora acho que é uma utopia, diante da realidade que vivemos. Mas penso que não por isso, não devemos exercitá-la no nosso dia a dia. Rever posições e atitudes sobre a nossa postura em relação ao ambiente e a nossos irmãos, em nossa comunidade e além”, argumenta.

FERIDAS Mais de 750 mil cidadãos mineiros tiveram direitos violados pela atividade mineradora em apenas um ano Midia NINJA

Especificamente nas terras de Minas Gerais, a ecologia integral encontra um enorme obstáculo: a mineração. Uma atividade predatória que “leva tudo”, diz Janise, “o minério, as águas, a biodiversidade e a vida das pessoas. E não deixa nada ou quase nada. Quando deixa, são migalhas e feridas”, lamenta. O impacto é gigantesco. Somente no ano de 2020, mais de 750 mil cidadãos mineiros tiveram seus direitos violados pela atividade minerária, segundo dados do último Mapa dos Conflitos da Mineração no Brasil, produzido pelo Co-

Como lutar pela vida

mitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração. A comparação com uma possível vantagem – a geração de empregos – é bem desequilibrada. Em evento no dia 7 de fevereiro na Cidade Administrativa, com a

presença do governador Romeu Zema (Novo), um dos diretores do Instituto Brasileiro de Mineração relatou que a mineração gera, hoje, 71 mil empregos em Minas Gerais: menos de 10% do número de pessoas que tiveram direitos violados. (RD)

Frei Valter Vieira é franciscano, membro da Ordem dos Frades Menores, em Minas Gerais, e atua em em territórios atingidos pela mineração. “A expansão desse modelo nos deixa em um cenário sombrio, de morte e de sofrimento”, relata. “A mineração destrói laços ecológicos, instala-se como um campo de guerra nos territórios e devasta afetos e a história das comunidades”. Para o frei, trabalhar nesses territórios tendo em mente a Ecologia Integral é um grito de esperança. “Vejo que a luta no sentido do cuidado da Casa Comum encontra muitos adeptos, que fortalecem a construção de resistência, de respeito à vida e aos territórios. No entanto, os poderosos continuam achando que terão o poder imortal”, indigna-se o frei. “Mas, em breve perecerão”, completa.


Belo Horizonte, fevereiro de 2022

ESPECIAL

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“O capitalismo é profundamente anticristão”, afirma teólogo Leonardo Boff defende que é preciso fazer as pazes com a Mãe Terra, caso contrário, haverá ainda mais catástrofes Divulgação

Wallace Oliveira Os seres humanos e a natureza são indissociáveis, mesmo quando, sob o capitalismo neoliberal, a interferência humana em seu ambiente se dá de maneira agressiva, predatória, destrutiva. As consequências, então, são sentidas na própria vida das pessoas, sobretudo as mais pobres. Para Leonardo Boff, essa situação só poderá ser superada reconstituindo a relação entre humanidade e o ambiente, de maneira solidária e respeitosa. Tal visão de mundo influenciou o Papa Francisco, na carta Laudato Si (Louvado sejas) e é desenvolvida, quase diariamente em publicações do blog do teólogo e escritor, em leonardoboff.org. Em entrevista ao Brasil de Fato MG, Leonardo Boff sustenta que essa mudança de paradigma é um dos grandes desafios da humanidade no período atual, a fim de evitar novas catástrofes. Para ele, além disso, a ecologia integral é uma exigência da própria fé cristã. Confira. Brasil de Fato MG - Catástrofes ambientais, destruição de bacias inteiras pela mineração e a pandemia dão a entender que a relação entre a humanidade e o ambiente alcançou o nível mais crítico na história. Por que chegamos a essa situação? Leonardo Boff - Há uma profunda conexão entre a Terra e a humanidade. É a visão que os astronautas nos transmitiram. De suas naves espaciais ou da Lua, Ter-

Superamos o capitalismo vivendo os valores evangélicos do amor incondicional pelas pessoas

Em vez de sermos os cuidadores da natureza, estamos destruindo as bases que sustentam nossa vida ra e humanidade formam uma única entidade. Se a Terra adoece, nós humanos também adoecemos. Se tratamos bem a Terra, seus ecossistemas, nós passamos a ter mais saúde. Ocorre que, nos últimos dois séculos, com a superexploração dos bens e serviços naturais, muitos deles não renováveis, não temos respeitado os limites de suportabilidade da Terra. Não lhe temos dado tempo para se regenerar. Pior ainda: ocupamos 83% de sua superfície, não de

forma amigável, mas destrutiva, desflorestando, poluindo as águas, envenenando os solos. O coronavírus é consequência de nosso avanço sobre as florestas, destruindo sua casinha. Desprotegidos, eles passam a outros animais e, deles, a nós. A Terra é viva, nossa Grande Mãe. Agredida, responde com mais aquecimento global, com mais tufões, com mais enchentes e secas. Por isso, temos que fazer as pazes

com a Mãe Terra: não queimar nada, não poluir os solos com agrotóxicos, preservar as nascentes com o plantio de árvores, economizar água. Caso contrário, vamos ter mais catástrofes como as inundações na Bahia, em Minas Gerais, e secas do Rio Grande do Sul. O futuro da vida no planeta está em nossas mãos. Em vez de sermos os cuidadores da natureza, estamos destruindo as bases que sustentam nossa vida.

A superação do neoliberalismo se faz por uma democracia participativa e uma economia que respeite a natureza

Qual o papel da política neoliberal nessa crise? A política neoliberal é profundamente antiecológica. Na ecologia, o centro é ocupado pela vida. No neoliberalismo, é o lucro. Na ecologia, é a relação entre todos. No neoliberalismo, impera o individualismo. Na ecologia, vigora a cooperação entre todos. No neoliberalismo,

a competição de todos contra todos. Na ecologia, se cuida da natureza. No neoliberalismo, se exploram sem limites seus recursos. Por isso, o neoliberalismo traz muitas desigualdades que são injustiças e pecados contra Deus e seus filhos e filhas. A superação do neoliberalismo se faz por uma democracia participativa e uma bioeconomia ou economia que respeite a natureza e se destine ao bem-estar das pessoas, e não à acumulação. Em 2015, na Bolívia, o Papa Francisco declarou que o sistema capitalista é insuportável. Dá para conciliar a fé cristã com a manutenção da ordem capitalista? O capitalismo é profundamente anticristão. Ele coloca todos os valores nos bens materiais, não é solidário com os que menos têm, comete duas injustiças, uma ecológica, devastando a natureza, e outra social, criando muitos pobres e poucos ricos. Superamos o capitalismo vivendo os valores evangélicos do amor incondicional pelas pessoas e o cuidado com a natureza, a solidariedade entre todos, especialmente com os empobrecidos, e uma abertura confiante a Deus, criador de todas as coisas. Disso nasce uma cultura alternativa mais humana, justa e espiritual.


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ESPECIAL

Belo Horizonte, fevereiro de 2022

Resistência coletiva à mineração marca a Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho

Depoimentos

A atividade é uma caminhada popular para defender uma causa comum e construir a fé compromissada com a vida Guilherme Cavalli

Ana Carolina Vasconcelos Missas, vigília, celebrações e ato com os familiares das vítimas do rompimento da barragem da Vale, em Córrego do Feijão. Essas foram algumas das atividades que marcaram a III Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho, que aconteceu em 25 de janeiro deste ano. Para Andresa Rodrigues, o momento foi de recarregar as energias para seguir em frente. “Todos os dias são difíceis, de muita dor e tristeza. Mas ser acolhida na romaria, me encoraja a seguir a luta”, declara. Integrante da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão (Avabrum), Andresa é mãe de Bruno Rocha Rodrigues, uma das 272 vítimas fatais do crime.

História

Concebidas a partir do conceito da Ecologia Integral, desde a sua primeira edição, em 2020, as romarias em Brumadinho são organizadas pela Arquidiocese de Belo Horizonte, por meio da Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário (Renser). “A Romaria nasce marcada pelo compromisso de fazer memória, de denunciar as forças de morte do modelo econômico predatório da mineração, e de anunciar a esperança que nasce alicerçada na

Para mim, a Romaria é um ato de amor e empatia por uma dor global. É maravilhoso ver que uma fraternidade inteira ainda se reúne por compaixão ao próximo. Bruna Karen, da Guarda de Congado e Moçambique de Mário Campos A Romaria é uma forma de denunciar as violações que nós atingidos sofremos. O governador, por exemplo, só ouve os atingidos que perderam seus entes, ele não ouve os demais. E na Romaria a gente tem voz, pode expor todas as nossas indignações. É uma força a mais para a nossa luta. Cláudia Márcia Gomes, da comissão de Ponte das Almorreimas

fé, na resistência”, explica Leila Regina da Silva, participante das Comunidades Eclesiais de Base (Cebs).

O que é uma romaria?

Com origem no termo ‘romeiro’, que designa pessoas que caminhavam em peregrinação a Roma, na Itália, a romaria é uma peregrinação a algum lugar religioso. “É também uma caminhada popular que se faz para defender uma causa comum”, explica o padre Eduardo Pedro Lopes, Vigário Episcopal da Renser. As romarias são um momento de construção da “fé dialogada”. Leila explica que essa fé é necessariamente uma fé conectada com a vida do povo.

Pelas águas e pela Terra

Em Minas Gerais, aconteceu, em novembro de 2019, a 22ª Romaria das Águas e da Terra, na cidade de Romaria, na região do Alto Paranaíba. O encontro teve momentos de missões em comunidades das cidades de Uberlândia, Monte Carmelo, Indianópolis e Romaria. A carta final do encontro denuncia o agronegócio e seus danos socioambientais, por meio da implantação de monoculturas, da exploração de minérios e a da pecuária extensiva.

EXPEDIENTE O Brasil de Fato circula semanalmente com edições regionais, em sete estados. Queremos contribuir no debate de ideias e na análise dos fatos do ponto de vista da necessidade de mudanças sociais em nosso país e em nosso estado. Este especial é uma parceria do Brasil de Fato MG com a Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário da Arquidiocese de Belo Horizonte (Renser) e o Coletivo de Atingidos de Brumadinho. Tiragem: 45 mil exemplares. www.brasildefatomg.com.br / (31) 9 8468-4731

A Romaria é muito importante para que todos possam gritar juntos por justiça. É dizer de uma dor que pode ser catalisadora da luta e afirmar que o clamor por justiça e a reparação integral é um direito de todos. Ela também cumpre esse papel de memória e de luta. Carla Wstane, diretora de projetos do Instituto Guaicuy Minha filha era uma jovem alegre, determinada, batalhadora e, no primeiro ano depois da perda dela, fiquei imobilizada, não conseguia reagir. Este foi o primeiro ano que participei da romaria e foi uma experiência maravilhosa, ver aquele tanto de gente de vários lugares para reforçar a nossa luta. Maria Regina, da Avabrum


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