Edição especial 2 Anos da Tragédia de Mariana

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Larissa Helena / A Sirene

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ESPECIAL

TRAGÉDIA DE MARIANA 2 ANOS DEPOIS, O QUE NÃO ACONTECEU? Minas Gerais

Belo Horizonte, novembro de 2017 • brasildefato.com.br • distribuição gratuita

ROMPIMENTO DA BARRAGEM DE FUNDÃO (Samarco/Vale/BHP Billiton) 640 km de cursos d’água e 200 km de litoral contaminado 22 pessoas e 4 empresas denunciadas pelo MPF Nenhum preso ou condenado 40 bilhões de litros de rejeitos 19 mortos, 1 aborto forçado 41 municípios atingidos 14 toneladas de peixes mortos 1 milhão de atingidos Nenhum reassentamento Fonte: MAB


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ESPECIAL

Belo Horizonte, novembro de 2017

Dois anos sendo atingido HISTÓRIAS Depoimentos de quem vive na Bacia demonstram que a tragédia não para de acontecer Larissa Helena / A Sirene

Rafael Drummond/ Jornal A Sirene

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á dois anos, o dia 5 de novembro marcaria a vida de milhares de pessoas que vivem ao longo da Bacia do Rio Doce. No primeiro momento, a avalanche de lama destruiu comunidades de Mariana e Barra Longa, tirou a vida de 19 pessoas e seguiu um curso de contaminação de mais 650 km até o Espírito Santo. Em Mariana, moradores de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e outras comunidades rurais foram obrigados a se Larissa Helena / A Sirene

“Imaginava um futuro bem diferente” Desde o início, não foi fácil. Quando a gente chegou aqui em Mariana, as pessoas foram muito solidárias, mas, com o passar do tempo, alguns começaram a nos criticar falando que a empresa não voltava por culpa dos atingidos. Pessoas já falaram que estamos nadando em dinheiro. Agora, eu me pergunto: que dinheiro? Ser um jovem atingido é perder os sonhos. Antes eu imaginava um futuro bem diferente. A gente na cidade tem que criar responsabilidade muito cedo, tomar bastante cuidado com o que está por vir. Fico muitos dias sem ver meus amigos, antes os via todos os dias. Hoje eu nem sei onde alguns moram. Júlio César Salgado, atingido de Bento Rodrigues

deslocar para a sede da cidade – onde vivem, desde então, em moradias provisórias. Lá, viram a dor aguda dos primeiros dias pós-rompimento ser substituída por um sofrimento crônico, uma angústia constante e uma saudade que não para de crescer. Hoje, os atingidos de Mariana seguem sem indenização definitiva, lutando pelo reconhecimento de direitos emergenciais. Vivem, continuamente, o rompimento da barragem. Na prática, estão aprendendo a ser atingidos – um saber indesejado e neces-

Larissa Helena / A Sirene

“Atingido é aquele cuja vida a lama sujou”

sário. Brigam na Justiça para que sejam indenizados dentro de diretrizes determinadas por seus modos de vida, compatível ao sofrimento e às perdas que somente eles sabem medir. Em meio à dor, lutam para que a lama de Fundão não arraste no tempo a vida secular de suas comu-

Dor aguda dos primeiros dias virou sofrimento crônico Wandeir Campos / A Sirene

“Vale a pena pensar alguma coisa pro futuro?”

Um dia, o engenheiro da Samarco me ligou pra ir lá em casa ver o que tinha acontecido onde eu morava. Chegou lá, ele começou a menosprezar, dizendo que era pouca lama, que tinha sujado pouco. Eu saí de lá com o astral baixo, aborrecido, porque se você olhasse, sim, era pouca lama, mas o estrago que ela tinha feito na minha vida, era imenso. A Samarco tá medindo o tanto que a pessoa é atingida de acordo com o quanto a lama sujou o que ele tem. Só que não é assim. Atingido é aquele que a lama sujou a vida. E, nesse sentido, eu tô afogado na lama.

A minha vida está totalmente parada. Sonhos, projetos, expectativas de um amanhã… Agora, que eu tô vendo que já não estou tão jovem, me pergunto: o que eu quero, de verdade, pra minha vida? O que eu quero fazer agora? Vale a pena pensar alguma coisa pro futuro? Quando isso tudo aconteceu, eu já tinha minha vida engatilhada. Eu já tinha meus projetos todos programados. Isso veio e bagunçou minha cabeça todinha. Hoje eu não posso sonhar, não posso programar… Eu fico correndo atrás de tudo, procuro me informar para não errar. Eu tô tipo um trânsito, onde alguém tenta atravessar, eu fico cercando um monte de carro. Já vivi até conflitos familiares. Parei para escutar, pois as coisas acontecem rápido e não sei qual consequência virá.

Marino D’Angelo, Paracatu de Cima

Luzia Queiroz, atingida de Paracatu de Baixo


Belo Horizonte, 27 de fevereiro a 05 novembro de março de 2015 Belo Horizonte, 2017

OPINIÃO ESPECIAL

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Atingidos de Mariana dizem “não” a cadastro da Samarco PREJUÍZO Questionário aplicado a 23 mil pessoas tinha equívocos e famílias conquistaram na Justiça o direito de reformulá-lo Lucas Bois

Rafaella Dotta

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empresa Samarco divulga, em suas peças publicitárias, o cadastramento de 23 mil famílias e indivíduos ao longo da Bacia do Rio Doce. O cadastro tem a função de mapear os bens materiais e imateriais perdidos com o rompimento da barragem de Fundão, há dois anos, pelos quais a mineradora terá que pagar. Mas o método não está resolvendo. Ao contrário, pode se transformar no motor de mais injustiças, segundo atingidos. A mineradora começou a realizar cadastros logo após o rompimento da barragem, através de empresas terceirizadas. Em março de 2016, a Samarco criou a Fundação Renova, controlada por ela, Vale e BHP Billiton, que assumiu os trabalhos referentes à reparação e indenização dos atingidos, inclusive o Cadastro Integrado. Perguntas que excluem O Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA) da UFMG estudou o cadastro e elaborou um parecer com os principais problemas. Um deles seria que perguntas e opções de resposta se voltam a uma lógica urbana, impossibilitando que um trabalhador rural descreva corretamente suas perdas. Outro seria a orientação “patrimonialista”, ou seja, que mede as propriedades perdidas, mas não as perdas sentimentais, culturais e sociais. Maloca ou barraco? As famílias da cidade de Mariana passaram a

colas, etc.), perdas imateriais e danos morais, e metodologia de aplicação e quem poderá responder o cadastro. O último ponto pode ser um dos balizadores para um acesso justo à indenização, segundo Ana Paula Alves, assessora técnica da Cáritas Brasileira regional Minas Gerais. “O primeiro direito a ser garantido é de a pessoa poder fazer o cadastro, porque só poderá receber indenização quem

está cadastrado”, explica Ana Paula. Em todo o restante da Bacia, a decisão de quem poderia responder ao questionário ficou com a própria Samarco. Essa situação pode ter enxugado o número de pessoas que poderiam requerer a reparação. Em Mariana, os atingidos conquistaram o direito ao cadastro amplo em 5 de outubro, no âmbito de uma ação civil pública.

Daqui em diante ser a principal resistência ao questionário aplicado pela Samarco e empresas contratadas por ela. Luzia Nazaré é uma das atingidas da comissão composta por 8 comunidades da região e lembra que no ca-

Samarco decide quem pode responder ao questionário no restante da Bacia dastro original existiam absurdos como o mapeamento de pés de açaí, que não é próprio da região, e a indução ao erro na questão sobre moradia. A Fundação Renova responde que “o fundamento das críticas [ao cadastro] assenta-se em uma premissa equivocada, pois o cadastro não é a única ferramenta de levantamento de informações utilizada”. Afirma ainda que 90% das demandas dos atin-

gidos foram incorporadas. Atingidos não confirmam a informação, que ainda está sob análise. Vitórias Os atingidos conseguiram na Justiça, em outubro de 2016, o direito de suspender a aplicação do cadastro em Mariana. A partir de então, a Comissão passou por seis meses de trabalhos e reuniões intensas para reformular o cadastro, bem como elaborar novos instrumentos para levantar dados, com metodologias participativas. O objetivo foi garantir o direito do atingido falar sobre suas perdas. “Foi uma guerra. Várias vezes os atingidos passavam mal porque víamos que a Samarco tratava nossa propriedade como lixo”, comenta Luzia, lembrando de quando ela própria passou por isso. O cadastro passará a ser feito em cinco eixos: perdas materiais, atividades econômicas, bens coletivos perdidos (igreja, es-

Os atingidos conquistaram também, em audiência judicial de 18 de outubro, o direito de que o cadastro seja aplicado por quem faz sua assessoria técnica, a Cáritas, acompanhada de um técnico operacional da Renova, que não poderá interferir na aplicação. A expectativa é que os trabalhos comecem no início de 2018. Segundo a Cáritas, em Mariana há aproximadamente 900 famílias a serem cadastradas.

Famílias organizadas podem garantir melhores indenizações A militante do Movimento de Atingidos por Barragem Letícia Oliveira explica que a organização das famílias é uma das poucas garantias que os atingidos podem ter. “Há muitos acordos já conquistados, mas a empresa continuará abordando as famílias com propostas diferentes, mais rebaixadas. Se a família não está organizada, não tem a informação dos acordos e pode ficar prejudicada”, alerta.

EXPEDIENTE Esta edição especial é uma produção do Brasil de Fato MG CoNTAToS: (31) 3309 3314 / 3213 3983 / redacaomg@brasildefato.com.br


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Fundação da Samarco fala de “impactados”, mas atingidos criticam o termo CRIME Conceito foi adotado a partir de acordo entre empresa e governos, sem participação dos atingidos Nilmar Lage

Wallace Oliveira

N

o ano passado, as empresas responsáveis pela barragem de Fundão assinaram um acordo com o poder público, sem a participação dos atingidos, prevendo medidas para reparar ou compensar os danos. Para definir o foco das ações, adotaram o conceito de “impactados”. Segundo os atingidos, tal medida é uma forma de tentar diminuir a gravidade do que ocorreu e nega uma reivindicação histórica das vítimas da mineração. Atingidos ou impactados? No início de 2016, as empresas responsáveis pelo rompimento da barragem assinaram um Termo de Transação de Ajustamento de Conduta (TTAC) com os governos federal, de Minas e Espírito Santo, além de institutos e agências de regulação ambiental. À época, o acordo foi muito criticado por movimentos, que o consideraram uma negociação entre as empresas e governos, com metodologia própria da Samarco, feita pelo interesse da mineradora (documento disponível em: goo.gl/Q7YbzK). Do TTAC surgiu a Fundação Renova, entidade vinculada à Samarco, cuja finalidade seria restabelecer as comunidades ou compensar as perdas. O documento também definiu como foco das ações os “impactados”, isto é, “pessoas físicas ou jurídicas e respectivas comunidades, que tenham sido diretamente afetadas pelo evento”. E listou, na sequência, um conjunto de situações como a perda de familiares, bens, capacidade pro-

Termo ‘atingido’ indica que são vítimas de grandes projetos”

João Banana mora em Paracatu de Baixo e é um dos milhares de atingidos pela lama da Samarco

dutiva, assim como danos à saúde e outros. Também foram definidos os “indiretamente impactados”, ou seja, aquelas pessoas que “residam ou venham a residir na área de abrangência e que sofram limitação no exercício dos seus direitos fundamentais”. Consultada pela reporta-

Querem que acreditemos que foi acidente, mas foi crime” gem no último mês, a Renova defendeu “que não se faz necessário o cadastramento, por meio do Cadastro Integrado, de todos os grupos especificados no conceito de atingidos, especialmente aqueles cuja reparação deve ser feita por meio de ações coletivas” e que “o cadastro não é a única ferramenta de levantamento de informações utilizada pela Fundação”. Críticas A definição de “impac-

tados”, por outro lado, recebeu muitas críticas de movimentos e moradores. “O termo ‘atingido’ indica que são vítimas de grandes projetos que têm suas vidas transformadas de forma negativa. Ao se chamarem de atingidos, elas se tornam sujeitos políticos”, afirma Thiago Alves. Ele acrescenta que, se aceitasse esse termo, a empresa reconheceria seu conteúdo e, portanto, a opção por outro conceito tem uma intenção política clara. “Além disso, não existe impactado direto ou indireto. Há diferentes impactos. Seja o impacto da lama que destruiu a casa, da lama que matou um atingido, da lama no mar que atrapalha a pesca, o surf. Para cada impacto, uma resposta. Mas esses diferentes impactos atuam no sujeito, na pessoa. Não existe pessoa direta ou indireta. O impacto é múltiplo, mas o sujeito é o que nos interessa. E o sujeito é o atingido”, conclui. Não foi acidente Para atingidos, tratá-los como “impactados” é uma forma de minorar o que aconteceu. “Eles [as empre-

sas] não aceitam como crime. Querem que a gente acredite que é um acidente, mas não é. É crime”, comenta Odete Cassiano, aposentada, moradora de Barra Longa. A lama da barragem

chegou a seu quintal, subiu sete metros no primeiro andar da casa, arrastou o pomar, objetos que estavam no porão e a horta. Agora, o principal efeito se dá na saúde dos pais idosos. “Eles sofrem muito com a poeira da lama, sempre vamos para a UPA, com tosse, alergia na pele, nos olhos. A lama ficou, está estacionada aqui perto, e a gente sofre”, conta.

Mineradoras não pagam ICMS Em 1996, o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) aprovou a Lei Complementar 87/1996. Conhecida como Lei Kandir, a norma isentou empresas que exportam bens primários e industriais semielaborados de pagarem o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Recursos do imposto, que seriam repassados a estados e municípios, tornaramse créditos concedidos a essas empresas. Entre as principais beneficiárias da Lei Kandir, as mineradoras respondem por cerca de 4% do PIB brasileiro e 8% do PIB de Minas Gerais, que é o principal estado produtor mineral do país. Segundo dados do governo estadual, durante a vigência da lei, Minas Gerais deixou de arrecadar ao menos R$ 135 bilhões com ICMS, sendo que 25% desse valor (R$ 33,61 bilhões) poderiam ter ido para os municípios mineiros. “Mineradoras só pagam a CFEM, que tem uma alíquota muito baixa sobre receita líquida [3% para alumínio, manganês, sal-gema e potássio e 2% para ferro, fertilizante, carvão e outras substâncias]. Ora, na receita líquida, as mineradoras usam preços de transferência. Então, imposto de renda e outros valores não chegam”, comenta a economista Eulália Alvarenga, integrante da Justiça Fiscal na América Latina e Caribe.


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