40 anos de Hair no Brasil

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40 ANOS DE HAIR ELEELA resgata a história da montagem brasileira de um dos espetáculos mais importantes da dramaturgia nacional, com Aracy Balabanian,

kioshi araki/ agência estado/Ae

Ney Latorraca, Sônia Braga, Neusa Borges, entre outros

por

Cesar Lopes

Atores divulgam a peça no Centro de São Paulo


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Nesta página e na próxima: no palco com Armando Bógus no comando

1969 foi literalmente um ano cabeludo. Lá fora, o americano Neil Armstrong pisava pela primeira vez na Lua dando o famoso “grande passo para a humanidade”. Um bando de malucos se reunia em Woodstock, num festival gigantesco, e a música pop nunca mais foi a mesma. O projeto de Santos Dumont atingia seu apogeu com a criação dos aviões Boing e Concorde. Por aqui, o AI-5 estava em vigor desde dezembro de 1968 e a barra tinha pesado geral. A turma de Fernando Gabeira – Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8) e Ação Libertadora Nacional (ALN) – sequestrou o embaixador americano Charles Burke Elbrick para trocá-lo por presos políticos, e o Cid Moreira deu seu primeiro boa-noite no Jornal Nacional. Culturalmente o país fervilhava, mesmo com toda a repressão imposta. No ano em que nascia a ELEELA, a Tropicália dava seus primeiros passos, enquanto Caetano Veloso queria ver Irene dar risada, e um grupo de jovens atores estreava a montagem brasileira de um dos grandes libelos pacifistas da década de 1960: a peça teatral Hair. “Quando costumo brincar com as pessoas dizendo que também já fui jovem, conto que eu fiz Hair”, conta a atriz Aracy Balabanian, 57 anos. “Participei da primeira montagem, com direção do meu saudoso Ademar Guerra.” O diretor da peça, Ademar Guerra, e o produtor Altair Lima tinham um sonho e tiveram que enfrentar alguns desafios antes de conseguirem realizar o espetáculo. Num primeiro momento, a desconfiança de investidores era o principal empecilho. Poucos acreditavam que um musical do porte de Hair – que já era sucesso com encenações espalhadas pelo mundo afora – pudesse dar certo num Brasil de realidade tão diferente dos EUA, onde a montagem original

fora sucesso em 1968. A atriz Neusa Borges, 67, que participou da primeira montagem nacional, se recorda que devido à linha dura do governo militar o clima era bem pesado. “Nunca me esquecerei de que o ano da estreia foi 69. O Armando Bógus vivia dizendo que não via a hora de acabar o ano de 68, porque queria fazer muito 69”, conta ela, com humor. As mensagens de liberdade da peça afastavam eventuais patrocinadores, cientes de que o regime ditatorial brasuca certamente não veria com bons olhos um monte de hippies cabeludos cantando a paz, o amor e a liberdade. Com muito custo, Ademar e Altair resolveram o primeiro impasse e conseguiram financiamento, mas ainda restava o pior inimigo: encarar os censores do regime autoritário brasileiro. “Acho que a montagem no Brasil tem uma importância tremenda: a ditadura era o nosso Vietnã. Tivemos inúmeros problemas com a censura. Além de mandar o texto [com antecedência para os censores], fizemos uma sessão antes da estreia para eles”, lembra Aracy. Cabelos e corpos Originalmente, a montagem brasileira era repleta de nudez e a censura não gostou nada, reprovando muita coisa. As negociações para a liberação das polêmicas cenas foram arrastadas e, por fim, decidiu-se que seria permitido aos atores aparecerem nus, desde que todos ao mesmo tempo, totalmente imóveis e por apenas um minuto. Balabanian fala que a estreia não foi fácil. “A famosa cena de nudez obviamente foi o alvo principal [dos censores]. Após muita discussão, optou-se por baixar a luz durante a cena. No dia tínhamos vindo do enterro do pai do Ademar, imagine o clima!”

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Originalmente, a montagem brasileira era repleta de nudez e a censura não gostou nada, reprovando muita coisa Mesmo com todas as restrições sofridas, o diretor conseguiu dar tamanho requinte à cena que até hoje ela é lembrada como um dos grandes momentos do teatro nacional. “Antes [do nu], parte do elenco distribuía margaridas para a plateia. Enquanto – durante a entoação do mantra de Krishna – os personagens iam se despindo, o Ademar apagou completamente as luzes como protesto. A plateia começou a cantar junto e lançar as flores no palco; foi um dos momentos mais bonitos da minha carreira”, relembra Balabanian. “Eu não ficava nua na cena. Foi uma opção do Ademar que aqueles como eu, Bógus, Helena Ignez e outros que já eram conhecidos, não se despissem para não esvaziar o sentido da cena individualizando o nu”, explica. Neusa se recorda principalmente da incoerência dos censores. “Foi muito, mas muito difícil a negociação. Eles queriam que usássemos tapasexo e a liberação só veio no dia da estreia. Os censores tinham uma coisa engraçada, você podia falar ‘tomar no ânus’, mas não podia falar ’tomar no cu’.“ O musical conta a história de um grupo de hippies da Era de Aquário que se intitula A Tribo e luta contra o alistamento militar para a Guerra do Vietnã. A trupe é liderada por Berger, um jovem rebelde que contesta todos os padrões vigentes na sociedade da época e, claro, é dono de uma vasta cabeleira. O herói compra a briga do jovem Claude, que espera o dia para se apresentar ao exército. Berger acaba tomando o lugar do amigo na convocação. As longas cabeleiras que os personagens possuíam eram a representação da rebeldia contra o sistema. “A nossa montagem era enlouquecedora. Na cena do nu, as pessoas se emocionavam. Não era pelo show, era emoção pelo momento vivido pelo país. Apesar de ser rápida, era carregada de emoção. Aquilo de o resto do elenco distribuir flores, incensos...”, diz, emocionado, o ator Ney Latorraca, “65 anos de idade, 45 de carreira e 35 de Globo”. “Eu estava na escola de teatro e o Ademar fazia os laboratórios ali. Entrei no elenco logo no início, em janeiro de 70, e no começo me revezava entre os personagens Claude e Berger. Fiz uma temporada inteira no Rio e quando voltamos para São Paulo, no teatro Aquarius, no Bixiga, eu já representava somente o Berger. Assim como na peça, éramos uma verdadeira tribo. Vendíamos de tudo na porta do teatro. A gente se vestia daquele jeito mesmo. Se usássemos a roupa com que chegávamos da rua como figurino, ninguém notaria. A peça era a síntese do que acontecia naquele momento.”

Geração de ouro O espetáculo ficou marcado como a estreia de uma geração de atores que viria a se consagrar por atuações em outras praias como o cinema e a televisão. Entre eles estava uma Sônia Braga quase adolescente, que já desfilava sua beleza. E era tanta que ela mereceu até uma música de um embasbacado Caetano. A canção “Tigresa”, célebre na voz de Gal Costa, foi feita em homenagem à eterna Gabriela. “Me lembro de que o Ademar teve que esperar a Sônia completar 18 anos para poder atuar no musical”, diz Latorraca. “Mas muita gente boa passou pela peça, como o Denis Carvalho e o Nuno Leal Maia. E, mesmo o país vivendo o auge da ditadura, a cena da nudez foi relaxando e o tempo foi aumentando cada vez mais”, confessa ele. Neusa entrou no espetáculo por ser cantora, profissão que já exercia antes de ir para os palcos de teatro. “Foi essa experiência que me levou a fazer os testes. Estavam precisando de uma cantora negra e uma amiga foi comigo para as audições. Fui aprovada, mas no começo não queria fazer [a peça], pois estava de saída para uma turnê na Europa. Hoje, vejo que foi uma das decisões mais acertadas que tive”, atesta ela. “Hair, para mim, foi um grande aprendizado. Funcionou como uma verdadeira faculdade, já que não possuo uma formação mais acadêmica. Hoje, quando fazemos um trabalho na TV, no teatro ou no cinema, falam muito que a equipe é uma família, mas depois que a produção termina as pessoas que acabaram de trabalhar com você mal te cumprimentam. Os amigos que fiz no Hair duram até hoje. Naquele ano ganhei o prêmio de atriz revelação e a peça se tornou um dos grandes sucessos de bilheteria do teatro nacional. Não vencíamos contar o dinheiro que ganhávamos com a venda de ingressos. Tive o privilégio de participar de todo o tempo que durou a primeira montagem”, desabafa Neusa. Ney Latorraca diz orgulhoso que participou de um grande momento não só na dramaturgia brasileira mas do teatro mundial. “Dentre todas as montagens que existiram pelo mundo na época – e não foram poucas –, a nossa foi reconhecida pelo pessoal da Broadway como a mais inovadora.” Já Aracy Balabanian analisa o período com saudade. “Quarenta anos depois posso dizer que Hair foi único, porque era a história perfeita a ser contada naquele momento com aquelas pessoas. Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare.”


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