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reportagem
Jazz e cachaça
ELEELA resgata a saga de Booker Pittman, o jazzista norte-americano que construiu
Booker: voz de veludo como a do amigo Louis Armstrong
acervo eliana pittman/kinoarte
fama no Brasil regado a muita música, pinga e sexo No ano do centenário de seu nascimento e do 40º aniversário de sua morte, o clarinetista e saxofonista Booker Pittman é lembrado como sinônimo de talento e liberdade. Na música, tocou com grandes nomes do jazz, como Count Basie e Louis Armstrong. Na vida, usou o instrumento para conhecer o mundo e escrever uma história rica e fascinante. “Eu e meu amigo parecíamos uma visão, com nossa cara inchada, daquele matador (sic) de homem [cachaça]. Ninguém nos olhava amigavelmente, mas a algumas milhas fora de São Paulo mudei isso, pois peguei o meu sax. Menino, meus amigos arregalaram os olhos! Certo, lá estava eu viajando novamente: novos lugares, novas caras. Lógico, eu toquei o meu melhor! Estava feliz, viajando. As rodas do trem cantavam melhor do que qualquer baterista. Isso não era nenhuma boate ou cabaré. Isso era eu, fazendo o que mais gostava, novas aventuras”, diz Pittman no livro Por Você, por Mim, por Nós, de Ophélia Pittman (Editora Record, 1984), esposa brasileira do músico. O espírito cigano e a maneira descomprometida e livre de enxergar a vida de Booker Pittman construíram uma trajetória riquíssima e recheada de peculiaridades. “O cara nasceu em Dallas, em 1909, coincidentemente na mesma rua em que o presidente John F. Kennedy seria assassinado. Seu avô, Booker T. Washington, foi o primeiro negro a fundar uma universidade”, conta o cineasta Rodrigo Grota, 29. “Ele já tocava na escola, mas quando decidiu se dedicar à música foi para Kansas City e começou a tocar com o grupo do Count Basie”, acrescenta. Grota dirigiu um curta sobre o instrumentista – que leva o mesmo nome do músico – e vem acumulando prêmios em festivais pelo país (levou o Kikito de melhor curta no Festival de Gramado 2008) e no exterior. “Um dia ele ouviu um senhor que tocava na orquestra de Basie dizer que estava cansado de viajar, que não agüentava mais a estrada e iria se aposentar. Ali percebeu que seu instrumento poderia se tornar um passaporte para o mundo”, diz o diretor. E as viagens de Booker não tardariam a começar.
por
César Lopes
Em 1933, ele foi para a França tocar com a orquestra de seu compatriota Lucky Millender. Gostou tanto que ficou por quatro anos. Durante esse período conheceu o músico brasileiro Romeu Silva, que já havia gravado com a musa Josephine Baker. Romeu convidou Booker para acompanhá-lo numa viagem ao Brasil. O músico veio sem pestanejar e logo que chegou se rendeu ao país. A vida noturna e as belezas naturais da Bahia e do Rio de Janeiro seduziram-no. Como era dono de um frasea do virtuoso e de arpejos precisos, não demorou a conseguir trabalho. E foi tocando no Cassino da Urca que fez amizade com o playboy Jorge Guinle e o músico Pixinguinha, que o apelidou carinhosamente de Buca. Além do Rio e da Bahia, sua inquietude o levou a São Paulo, Pernambuco e Paraná. Rodrigo conta que Booker “também morou na Argentina, onde se viciou em cocaína e fugiu para o Uruguai para tentar se livrar do vício que acabou substituindo por cachaça e maconha”. Ascensão e queda “Nós fomos diretamente para a casa do meu amigo, onde sua mãe e dois irmãos menores nos receberam calorosamente. Tomei logo um banho e tentei ficar sóbrio. Melhorei um pouco, comi uma típica refeição [paranaense] e estava pronto para dormir. Meu amigo disse ‘ainda não’, e me levou para conhecer o meu futuro patrão. O Clube era um lugar de jogo com cartas e dados onde os plantadores de café ficavam algum ou mais tempo. Quando subimos para o 2º andar, fomos examinados rapidamente dos pés à cabeça. Eu olhei para a esquerda daquele quartinho e vi pistolas de todas as marcas penduradas na parede. Era o check room. Eu sorri. Nem no Texas tinha um check room. Aqueles fazendeiros eram todos ricos, cheios de dinheiro. Aquela terra vermelha do Paraná, com personalidades fortes, me fez lembrar de alguma forma Oklahoma.” Assim foi a chegada de Booker a Londrina, no Paraná, contada pelo próprio.
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Mamãe Coragem
Marcas aparentes da cachaça
“Sua derrocada com a cachaça também começou ali”, conta Ranulfo Pedreiro, 39, jornalista responsável por uma grande pesquisa sobre o músico. Pedreiro diz que o material encontrado é muito vago. “É difícil achar dados confiáveis. Seu espírito nômade não o deixava parado por muito tempo no mesmo local. Era um apaixonado pela noite e pela pingam, que passou a preferir ao uísque”, acrescenta. E Booker confirma: “Lá, embaixo, na esquina, tinha um bar, aberto durante a noite. Em todos os intervalos eu ia até lá e tomava a minha dose de cana. Naturalmente, nunca ofendia os fregueses. Sentava, tomava alguns goles de uísque, pedia licença para ir ao banheiro, corria, rapidamente, para o bar na esquina, tomava quatro ou cinco goles de cachaça, e voava de volta pelas escadas para a mesa, pedia desculpas pela ausência e acabava o resto do uísque”. O músico encontrou em Londrina uma cidade com muito dinheiro circulando devido às fazendas cafeeiras. As “casas noturnas” pipocavam. Além das mesas de jogos que odiava, Pittman convivia com moçoilas de todos os tipos que se ofereciam para os endinheirados fazendeiros. “Senti alguma coisa tocando dentro nesta atmosfera nova e diferente. Apesar de ter sido criado no Texas, nunca fui ligado à vida no campo. Dallas, naquela época, era uma cidade em crescimento, sem cavalos ou vacas para ver e muito asfalto. Eu agora estava sendo apresentado a um cenário diferente e mais fascinante do que antes. Naquela noite, toquei com um entusiasmo novo. Praticamente todos os homens usavam botas e chapéus de aba larga. As mocinhas do cabaré, em sua maioria, eram de São Paulo.”
Cozinha de peso: Charles Mingus e Max Roach
A essa altura o saxofonista já tinha se rendido ao vício da cachaça. “O Paraná é muito frio, especialmente à noite. Mas eu tocava à noite, tomava aquela cachaça forte e quase não sentia frio.” Nesse cenário digno dos grandes cabarés de Nova York, o músico construiu fama. Mas a pinga o fez torrar todo o dinheiro que ganhou e logo começou a trabalhar a troco da maldita. Ranulfo diz que Booker chegou ao fundo do poço. “Mendigou trocados pelas ruas e perdeu o saxofone por causa da bebida. E o mais incrível é que mesmo assim não deixou de viajar. Como não tinha dinheiro, começou a circular por cidades da região como Santo Antônio da Platina e Cornélio Procópio. Dormia em qualquer lugar.” Um dia estava pintando as paredes de uma casa de reputação duvidosa em Cornélio quando foi procurado por um amigo que trazia um recorte de jornal que noticiava sua morte. Buca tomou isso como um sinal. Fênix musical Em 1958, além de vencer sua primeira Copa do Mundo, o Brasil recebeu a visita de um ícone da música americana. O trompetista e cantor Louis Armstrong aportou em São Paulo para uma apresentação. Booker passou por lá para rever o amigo e acabou sendo convidado a participar da banda. Durante o espetáculo, uma certa Ophélia não conseguiu desgrudar os olhos do palco. Ao final do show, a moça passou batido pela multidão que cercava Louis e, arrastando sua filha Eliana pela mão, se aproximou de um cara calado que acendia um cigarro. Era Booker Pittman. “Ele era
acervo eliana pittman/kinoarte
Imagem do curta-metragem Booker Pittman
divulgação
O mito Dizzy Gillespie
Dona Ophélia (primeira da esquerda para a direita): mãos de ferro
A cabeleira e costureira Ophélia Leite de Barros vinha de um casamento fracassado e lutava com dificuldades para criar a filha. No Brasil da década de 50, o movimento pela igualdade da raça negra dava seus primeiros passos e dona Ophélia era uma entusiasmada ativista. Quando conheceu Booker Pittman, sua vida mudou drasticamente. “Mamãe virou empresária por causa do Buca. Antes disso, nunca tinha entrado numa boate”, nos conta a filha Eliana. “Ela começou a ficar famosa no meio artístico porque era linha-dura quando o assunto era dinheiro. Pedia aumento e quando tinha que cobrar não tinha papas na língua. Além disso, começou a interferir até nos ensaios”, complementa. A matriarca respeitava muito a opinião da filha e a consultava para tudo. “Quando conheceu o Booker, fez questão de me apresentar e perguntar o que eu achava, se daria um bom marido, essas coisas.” Já carregando o sobrenome Pittman, Ophélia também ganhou fama pela maneira que conduzia os namoros de Eliana. “No começo de minha carreira, ela tomava conta de todos os meus namoros. Naquela época existia o mito da virgindade e mamãe era muito rigorosa. O Adolpho Bloch dizia que, quando eu me casasse, ela ficaria embaixo da cama para ver se a luade-mel se concretizaria. Booker definia muito bem a nossa relação e falava de maneira irônica lembrando a função dela como empresária: Booker, saxofone, Eliana microfone e Ophélia telefone”.
amigo de infância de Louis. Mamãe já conhecia o Buca por causa de uma reportagem publicada na revista O Cruzeiro. Eu devia ter uns 11 anos. A maior preocupação de mamãe era que ele não tocasse à altura de Armstrong naquele dia, mas qual o que. Não estarei exagerando em dizer que foi o músico mais aplaudido. Enquanto todos paparicavam o Louis, mamãe tomou coragem e se apresentou ao Booker”, conta Eliana Pittman, cantora e filha adotiva do músico. Com muito custo, tempo e uma paciência de Jó, Ophélia conseguiu quebrar a aversão que o músico sentia pelo casamento – ele achava que poderia prejudicar seu espírito cigano. Logo, estavam vivendo juntos. Quando Booker resolveu retomar a carreira no Rio de Janeiro, levou a nova esposa e filha a tiracolo. As duas já carregavam o sobrenome Pittman. Na então capital nacional, Buca retomou as rédeas da carreira, que agora eram guiadas pelas mãos fortes de dona Ophélia. “Papai não se apegava a bens materiais e muitas vezes nem cobrava para tocar. Mamãe mudou isso e passou a controlar a carreira dele. Buca começou a dizer que agora tinha uma família para sustentar e começou a encarar a profissão com mais responsabilidade”, completa Eliana. Ele logo passou a fazer parte da cena musical nacional e tocava com freqüência com os grandes nomes da época, como Dick Farney. No badalado hotel Plaza foi contratado como atração principal da casa. Reza a lenda que um jovem Roberto Carlos ficava na espreita à espera de uma vaga para se apresentar no hotel. “Comecei minha carreira em abril de 1961
cantando duas músicas num show de papai. Fui descoberta como cantora por ele, que me incentivou a ingressar na carreira artística”, relembra Eliana. Em 1964, Buca retornou a Nova York e encontrou um cenário totalmente diferente do que tinha deixado. As gravadoras controlavam tudo e o rock e a música pop estavam se consolidando como gênero popular. Eliana conta que “depois de uns tempos nos EUA ele disse para mim que queria voltar para casa. A casa dele era o Brasil. Em 1966, descobriu que tinha um câncer na laringe. Os médicos queriam fazer uma traqueostomia, mas papai não quis e respeitamos sua decisão. Dizia que não gostaria de ser cortado. Minha carreira estava indo muito bem e comprei um apartamento para ele na Bela Vista, em São Paulo. Ele não gostou muito porque ficava em frente ao cemitério e falava brincando que não queria ficar olhando para o local onde iria morar mais cedo ou mais tarde. Nos mudamos dali para uma casa no Itaim. Foi onde ele morreu, em 1969, com toda a dignidade que merecia” (Booker está enterrado no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro). Há poucos registros audiovisuais de Booker Pittman. As poucas imagens se perderam nos famosos incêndios sofridos pela TV Record – só na década de 60 foram cinco. Na sua volta ao Rio, Booker gravou três álbuns: Jam Session (1963), ao lado de Dick Farney, News from Brazil (1963), já com a filha Eliana Pittman como cantora, e Sax Soprano Sucesso (1965). Os três se encontram esgotados e fora de catálogo.
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