Respirar em Liberdade

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AGRADECIMENTOS Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – SP Curso de Jornalismo Trabalho de Conclusão de Curso (Res)pirar em liberdade Bruna Campos Orientação Editorial Professor Marcos Cripa Orientação Gráfica Professor Valdir Mengardo Revisão Pedro Borges Projeto Gráfico Lucia Tavares Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – FAFICLA Rua Monte Alegre, 971 – Perdizes São Paulo – SP

Dezembro 2010

Inúmeras pessoas contribuíram de maneira decisiva para que este livro fosse concluído. Durante todo o processo de pesquisa e entendimento do assunto tive a ajuda fundamental de profissionais como a psicóloga e professora Elisa Zaneratto Rosa e o psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita. Além da conversa breve, porém preciosa, com a jornalista Eliane Brum, que me incentivou a seguir adiante quando tive dúvidas sobre a relevância do tema. Agradeço ainda: A Renato Di Renzo, pela disposição e alegria com a qual descreveu o nascimento da Associação Projeto Tam Tam. A Helio Lauar, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria, pela avaliação da saúde mental no Brasil. A Paulo Amarante, que, mesmo com a agenda repleta de compromissos, se dispôs a esclarecer alguns pontos fundamentais sobre a Reforma Psiquiátrica e o novo modelo de assistência. A Eduardo Camargo Bueno, apoiador de saúde mental de Campinas, pela gentileza com que me recebeu e apresentou contatos importantes. A Reginaldo Moreira, por permitir que eu participasse de reuniões do Maluco Beleza e por relatar o processo de criação do programa de rádio. A Julia Catunda, pela entrevista sobre a oficina de moda Dasdoida e pela disposição em tirar dúvidas e esclarecer algumas dinâmicas do CAPS Itapeva. A Sandra Fischetti, pelo testemunho sobre momentos marcantes na criação e ampliação do modelo CAPS.


A Gabriela Moreira, pela visita guiada e por toda atenção que teve antes e depois de minha ida ao Centro de Reabilitação de Casa Branca. Além dos profissionais, também sou grata às seguintes instituições: Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, Instituto Bairral, CAPS Itapeva, Centro de Tratamento Bezerra de Menezes e Centro de Reabilitação de Casa Branca. Registro, sobretudo, minha enorme gratidão para com todos os familiares e usuários dos serviços de saúde mental que revelaram, de forma incondicional, sua privacidade. A Marcelo Reis, pela conversa no Parque Trianon e pelos telefonemas preocupados com a finalização e sucesso deste trabalho. A Antonio Sérgio, pelos ensinamentos sobre serigrafia e pelo depoimento desmedido. A Júlio César, pela fala empolgada e por apresentar algumas de suas composições. A Jacaré Gularstone, pelo ânimo com que defende o movimento antimanicomial e os usuários. A Wellington da Silva, que se desdobrou para nos encontrarmos, por sua sinceridade. A Luciano Lira e Dona Maria do Carmo, pelos relatos e pelo carinho com que me receberam. A Silvana Borges, pelas horas que conversou comigo depois do expediente. A Silvio Burza, que, mesmo sem me conhecer muito bem, falou de sua vida pessoal com desprendimento e simpatia. A Dulce e Geraldo Peixoto, pela abertura e confiança que depositaram em mim ao expor detalhes íntimos de sua relação com os filhos. A Ferreira Gullar, que, depois de muita resistência, aceitou conversar comigo por telefone. A Dona Ignês e Ecio de Oliveira, pela recepção calorosa e pela canjica com amendoim.

ÍNDICE

Apresentação

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Capítulo 1 Percepções sobre a loucura e uma mudança de paradigma........... 11 Capítulo 2 CAPS Itapeva: um marco na assistência extra-hospitalar.............. 32 Capítulo 3 Santos: uma revolução na saúde mental........................................ 52 Capítulo 4 Campinas: uma parceria que deu certo.......................................... 72 Capítulo 5 Casa Branca: da segregação ao exercício da liberdade.................. 92 Capítulo 6 Pais e filhos.................................................................................. 104 Conclusão............................................................................ 127 Bibliografia.................................................................................. 129


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APRESENTAÇÃO

Por que falar sobre o movimento antimanicomial e os portadores de transtorno mental? Tantos assuntos poderiam ser tratados em um trabalho de conclusão de curso, mas minha escolha foi pautada por um norte específico: ouvir pessoas, de preferência anônimos esquecidos pela grande mídia e pela sociedade em geral. Meu objetivo ao escrever este trabalho não é catalogar todas as experiências recentes em saúde mental ou elaborar uma enciclopédia de sintomas psicóticos. As transformações e mudanças institucionais são descritas por quem as viveu na pele, os portadores de transtorno mental e seus familiares. Os capítulos são compostos por uma introdução sobre o local onde são feitos os tratamentos e, em seguida, por meio de depoimentos, o impacto dos serviços e atividades sobre a vida das pessoas fica evidente. Ao todo, foram entrevistados 11 usuários dos serviços de saúde mental e cinco familiares, além de dez profissionais e gestores da área de saúde mental. Em nenhum momento foi dado enfoque ao diagnóstico ou prontuário médico. Os entrevistados tinham liberdade para falar sobre o assunto, mas não foram questionados sobre nomes de transtornos, medicamentos que utilizavam ou algo semelhante. Tal postura foi adotada, sobretudo, para não reforçar rótulos. As cidades selecionadas estão localizadas no estado de São Paulo. São elas: Casa Branca, Campinas, Santos e São Paulo. Cada uma delas passou por processos significativos no que diz respeito à ampliação da rede extra-hospitalar. O grau de organização e consolidação de práticas inclusivas para o portador de sofrimento mental não é uniforme e isso pode ser percebido pela história dos usuários. Os relatos foram reproduzidos com fidelidade, por isso, é comum


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que fantasia e realidade se misturem. A confusão entre os dois planos faz parte dos discursos e é um elemento importante para descobrir como essas pessoas compreendem o mundo e processam as adversidades. Durante muito tempo, as palavras desconexas e os delírios foram calados pelo excesso de medicamentos ou práticas violentas. Mas hoje, graças ao esforço e mobilização de técnicos, familiares e usuários por uma sociedade sem manicômios, a loucura pode falar e ser ouvida. A saúde deixou de ser compreendida como a reparação de um dano e passou a ser orientada pela busca do bem-estar. Os tratamentos atuais têm a intenção de acabar com o sofrimento, sem normatizar condutas ou reprimir um modo de ser específico, como afirma a psicóloga Elisa Zaneratto Rosa: “Esse modo de ser fora dos padrões, às vezes, exige de nós um esforço muito grande para entender essas pessoas e validar o seu jeito de ser. Precisamos nos esforçar para perceber que é possível conviver com pessoas assim, que vivem em outra lógica. Mas devemos lembrar que elas também fazem um esforço para entender a nossa lógica, a lógica dos ‘normais’. Devemos pensar que, para elas, o esforço é muito maior. O jeito do ‘louco’ pode ser saudável se ele conseguir construir relações, vínculos e projetos”. A maioria dos entrevistados já foi internada pelo menos uma vez e sua trajetória mostra a mudança de paradigma na prática. É interessante observar que alguns dados, como a violência doméstica, o alcoolismo e a falta de estrutura familiar, se repetem. A partir disso não é feita nenhuma conclusão científica, nem foi essa minha pretensão, porém é possível perceber a relevância de fatores afetivos e sociais no desenvolvimento de um transtorno mental. A finalidade, portanto, é apresentar pessoas que foram segregadas e ignoradas por décadas. Além disso, lendo os depoimentos, podemos entender um pouco melhor como lidar com o assunto e abordá-lo sem preconceito ou estigmas.

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CAPÍTULO 1

Percepções sobre a loucura e uma mudança de paradigma


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O Movimento da Luta Antimanicomial nasceu do questionamento do saber psiquiátrico. Seu objetivo é a ruptura com o modelo tradicional de tratamento e a transformação do lugar social dado à loucura. O que se contesta não é só um prédio, mas sim o modo de pensar que reduz o sujeito ao papel de doente mental. O resgate da dimensão cidadã, afetiva e social é fundamental para os integrantes desse movimento. Até cerca de 1650, como destaca o filósofo Michel Focault1, “a loucura é experimentada em estado livre, ou seja, ela circula, faz parte do cenário e da linguagem comuns, é para cada um uma experiência cotidiana que se procura mais exaltar do que dominar”. Na Grécia antiga, por exemplo, o delírio era uma manifestação divina. Acreditava-se que os deuses falavam pela boca dos loucos. A necessidade de internação dos doentes mentais em hospitais psiquiátricos foi construída historicamente. No início, o isolamento era uma forma de ordenar o espaço urbano e afastar os miseráveis. Durante o século XVII, as autoridades dos regimes monárquicos tinham poderes para recolher e alojar todos os pobres, independente do sexo, do nascimento ou de suas condições de saúde. Passados cem anos, a internação tornou-se uma medida médica e era destinada, exclusivamente, aos doentes mentais. Em a História da Loucura na Idade Clássica, Focault ressalta que a loucura havia sido ignorada por séculos. A sua compreensão como fator de desorganização da família, de desordem social e perigo para o Estado foi estabelecida aos poucos, pois, até então, ela era reconhecida como mais um mal-estar na sociedade. Apud ROSA, 2005, p. 83

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Focault faz uma longa reflexão sobre a mudança de significação da loucura e sua interdição. Ele afirma que “o sentido do internamento se esgota numa obscura finalidade social que permite ao grupo eliminar os elementos que lhe são heterogêneos ou nocivos (...). O internamento seria assim a eliminação espontânea dos ‘a-sociais’”. O papel do doente mental começou a ser descrito em 1800, quando o francês Philippe Pinel, considerado por muitos o pai da psiquiatria, elaborou a primeira classificação de doenças mentais. Foi nessa época que se consolidou o conceito de alienação mental, que, para Pinel, era “um distúrbio no âmbito das paixões capaz de produzir desarmonia na mente e na possibilidade objetiva do indivíduo perceber a realidade”. No século XIX, a hospitalização deixou de ser uma forma de repressão e se tornou um imperativo terapêutico. Era preciso ver a “alienação em seu estado puro”. A ciência positivista passou a ser lei e a doença era seu objeto. “O olhar médico não encontra o doente, mas a sua doença, em seu corpo não vê uma biografia, mas uma patologia na qual a subjetividade do paciente desaparece”, diz o filósofo italiano Umberto Galimberti2. Dentro dos hospitais psiquiátricos os indivíduos deveriam ser silenciados. “As técnicas empregadas, por exemplo, as duchas de água fria, as máquinas rotatórias e mais adiante a medicalização, apresentam-se como um regime repressivo e moral a serviço da manutenção da ordem”, afirma Elisa Zaneratto Rosa, psicóloga e conselheira do Conselho Federal de Psicologia (CFP). O conceito de saúde que sustentou o “isolamento terapêutico” estava baseado num padrão de normalidade. O modo de ser era ignorado em detrimento de uma norma. E, quando o mundo passou a se organizar em função do trabalho e da produção, as pessoas que não se encaixavam eram simplesmente segregadas. Segundo o sociólogo Robert Castel3: “O psiquiatra fornece, pois, a cobertura ideológica para uma operação cujo mecanismo deve ser buscado menos na economia da doença que nas estruturas de distribuição do poder social e no sistema de normas dominantes que Apud NICÁCIO, 1994, p.106 Apud ROSA, 2005, p.93

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impõem a supremacia do produtivismo e da ordem moral”. O argumento médico, portanto, oculta uma questão maior, que é a estrutura sob a qual a sociedade está organizada. A grande preocupação dos médicos era a cura dos sintomas e não do sofrimento. As manifestações das emoções, da imaginação e dos afetos foram abandonadas em segundo plano e aqueles que as demonstravam eram considerados seres primitivos. Tratados como crianças, os “alienados” tiveram seus direitos invalidados. Um novo status jurídico, social e civil foi aplicado a essas pessoas e as decisões passaram a ser tomadas por um tutor, o médico psiquiatra. As críticas ao alienismo não são recentes. O psiquiatra e pesquisador titular do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Fundação Oswaldo Cruz, Paulo Amarante, relata que muitos contemporâneos de Pinel questionavam o isolamento e o tratamento moral como uma contradição aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa. Apesar da incoerência, aprisionar para libertar, o modelo pineliano foi reproduzido mundo afora.

Rupturas Os hospitais tornam-se grandes depósitos nos quais a contenção e as punições violentas eram as únicas formas de lidar com o paciente. A instituição determinava os horários de banho, alimentação e sol. O sujeito perdia sua autonomia e, até mesmo, a capacidade de construir desejos, pois as regras e os limites eram internalizados. As primeiras experiências que questionavam o isolamento surgiram depois da Segunda Guerra Mundial. A sociedade se deu conta de que as condições de vida oferecidas aos pacientes dos hospícios não diferia em nada dos campos de concentração nazistas. Além disso, em países como a Inglaterra, o pós-guerra trouxe consigo um grande contingente de jovens soldados com danos psicológicos que precisavam de cuidados, mas não havia nem médicos nem recursos adequados. Em vários países da Europa e nos Estados Unidos da América surgiram novas propostas de tratamento. Em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, Paulo Amarante classifica as diferentes práticas:


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– A Comunidade Terapêutica e a Psicoterapia Institucional surgiram, respectivamente, na Inglaterra e na França. As duas experiências acreditavam que seria possível qualificar a psiquiatria tradicional por meio de mudanças na estrutura hospitalar. A primeira propunha reuniões e assembleias nas quais eram discutidos os problemas e as dificuldades dos pacientes. Já a segunda, objetivava a “horizontalidade” das relações: médicos e pacientes estavam em condição de igualdade. – A Psiquiatria de Setor e a Psiquiatria Preventiva compartilhavam a visão de que o hospital precisava ser desmontado aos poucos e que, ao mesmo tempo, deveriam ser criados instrumentos para que os tratamentos continuassem depois de o paciente receber alta. Na França, no fim da década de 50, foram criados os Centros de Saúde Mental, que eram distribuídos nos diferentes “setores” administrativos do país. A concepção preventiva foi desenvolvida nos Estados Unidos e tinha como diretriz a “desospitalização”, ou seja, a redução do tempo de internação, do ingresso de pacientes e a promoção de altas. _ A Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática questionavam o modelo científico que sustentava os manicômios. No caso da Psiquiatria Democrática, experiência italiana que começou nos anos 60, os pensamentos e as ações estavam “voltados para a ideia de superação do aparato manicomial, entendido não apenas como a estrutura física do hospício, mas como conjunto de saberes e práticas, científicas, sociais, legislativas e jurídicas”, como destaca Amarante.

No Brasil No Brasil, o questionamento sobre o tratamento oferecido aos pacientes psiquiátricos foi bastante tardio e coincidiu com os últimos anos da ditadura militar. A redemocratização oferecia um terreno fértil para a mobilização popular. Os primeiros encontros que propunham uma reestruturação do atendimento e a revisão dos manicômios aconteceram no fim da década de 70. Dados da época apontam que, levando em conta a relação popu-

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lacional, o Brasil era o terceiro maior parque manicomial do mundo, perdendo apenas para União Soviética e Japão. Financeiramente, 95% do orçamento anual de saúde mental era dirigido aos hospitais psiquiátricos e menos de 5% dos investimentos eram destinados para ações de atenção básica e serviços extra-hospitalares, como ambulatórios. Em 1978 foi criado o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental. Em maio daquele mesmo ano, foi aprovada na Itália a lei 180, que estabelecia a reforma psiquiátrica naquele país. A vitória alcançada pelo movimento da Psiquiatria Democrática passou a ser observada de perto pelos profissionais da saúde brasileira. O processo italiano começou na pequena cidade de Gorizia quando Franco Basiglia, psiquiatra e grande protagonista do movimento, decidiu reformar o hospital psiquiátrico local. Com o passar do tempo, no entanto, ele percebeu que a modificação do lugar por meio de ações administrativas era ineficaz. Em outra cidade, Trieste, uma nova concepção foi posta em prática: pavilhões foram fechados enquanto novos serviços e dispositivos substitutivos eram criados. “A expressão ‘serviços substitutivos’ passou a ser adotada no sentido de caracterizar o conjunto de estratégias que vislumbrassem, efetivamente, tomar o lugar das instituições psiquiátricas clássicas, e não serem apenas paralelos, simultâneos ou alternativos às mesmas”, lembra Amarante. Basaglia propunha que a doença fosse colocada entre parênteses. Para ele, o sujeito deveria ser o protagonista de sua existência. Entretanto, essa nova conduta não significava a negação da dor e do sofrimento. O que se questionava era o modelo das ciências naturais, que “coisificou” os sujeitos. Hoje em dia, o termo “doente” foi, inclusive, superado. A maioria dos médicos e profissionais da saúde usa as expressões: portador de transtorno mental ou sujeito em sofrimento psíquico. Os trabalhos feitos na Itália tinham como meta a desinstitucionalização, ou seja, era preciso romper com a lógica problema-solução. A relação entre cura e custódia é demolida e em seu lugar surge a possibilidade de diálogo entre o indivíduo que sofre e a sociedade. Basaglia veio ao Brasil algumas vezes e tornou-se uma referência por aqui. Em 1979, visitou o Hospital Psiquiátrico de Barbacena, na


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época um dos mais violentos. A repercussão de sua passagem por aqui foi grande, mas as contestações ao manicômio estavam restritas ao segmento dos profissionais; os familiares e pacientes ainda não estavam articulados e sequer concebiam outras formas de tratamento. Durante décadas, as visões e delírios foram combatidos com choques elétricos. As crises de agressividade eram respondidas com a clausura em celas forte; para punir os gritos era comum restringir visitas e diminuir a quantidade de alimentos. Nos pavilhões, os pacientes andavam nus e os cuidados com a higiene eram precários. A superlotação era comum. Um exemplo é o Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em São Paulo, que chegou a ter 16 mil internos. O ano de 1987 foi um divisor de águas, pois durante o 2° Congresso do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental foram reunidos, pela primeira vez, pais, mães, usuários e profissionais. Durante o encontro, que aconteceu na cidade de Bauru, uma carta de princípios foi redigida e nela os 350 participantes assumiam claramente uma posição. A chamada “Carta de Bauru” ficou conhecida como o marco fundador do movimento antimanicomial brasileiro: “Contra a mercantilização da doença; contra uma reforma sanitária privatizante e autoritária; por uma reforma sanitária democrática e popular; pela reforma agrária e urbana; pela organização livre e independente dos trabalhadores; pelo direito à sindicalização dos serviços públicos; pelo Dia Nacional de Luta Antimanicomial em 1988. Por uma sociedade sem manicômios!”. A consolidação do regime democrático foi essencial para a ampliação das reivindicações do movimento antimanicomial. Dois fatores foram fundamentais para que um novo modelo fosse estabelecido; são eles: a Constituição de 1988 e a criação do Serviço Único de Saúde, o SUS. A descentralização administrativa e a criação dos conselhos municipais, estaduais e federais de saúde reafirmaram a importância de um controle social.

Um novo Paradigma O paradigma brasileiro foi construído na prática. A primeira unidade pública a oferecer tratamento intensivo extra-hospitalar, por exemplo, foi o Centro de Atenção Psicossocial Prof. Luís da Rocha

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Cerqueira, mais conhecido como CAPS Itapeva. O serviço foi implantado do dia 12 de março de 1987. No segundo capítulo o equipamento é apresentado com mais detalhes. O termo psicossocial propunha a integração da dimensão social presente na produção dos sintomas. A psicóloga Sandra Fischetti, que participou da criação do CAPS Itapeva, afirma que “a articulação do tratamento da ‘doença’ com o investimento em projetos de vida é essencial”. Os profissionais deveriam oferecer um cuidado personalizado que levasse em conta as especificidades de cada caso. A nova clínica não estava centrada no olhar, mas sim no escutar. A ideia era abolir os papéis e possibilitar que o usuário do serviço produzisse novos sentidos sobre si e sobre o mundo. Algumas características gerais do modelo de atenção psicossocial são: o tratamento da demanda, e não do sintoma, a horizontalização das relações, a divisão do trabalho interprofissional, a subjetivação da pessoa e a inserção no território4. Aos poucos, em vários lugares do Brasil, foram surgindo propostas substitutivas ao isolamento asilar. Em 1989, na cidade de Santos, por exemplo, foi implantada uma nova forma de gestão da saúde mental. Não se tratava de uma unidade destacada, mas sim de uma política pública para todo o município. A cidade do litoral paulista foi a primeira do Brasil e a quarta do mundo a extinguir os manicômios e propor serviços substitutivos como os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS). A transição e seus desdobramentos são tão importantes que serão tratados em profundidade mais adiante. Também no ano de 1989, foi dada a entrada no Congresso Nacional do projeto de lei do Deputado Paulo Delgado (PT/MG), que propunha a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e extinção progressiva dos manicômios. Vale lembrar que a lei vigente era de 1934 e dispunha sobre “a assistência e proteção à pessoa e aos bens dos psicopatas”. Os artigos abaixo evidenciam a condição de tutela à qual os indivíduos em sofrimento psíquico eram submetidos: – Artigo 5 - são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil, os loucos de todo gênero; Segundo o geógrafo Milton Santos, o território é “a construção da base material sobre a qual a sociedade produz sua própria história”.

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– Artigo 12 - há a possibilidade de interdição dos loucos, surdosmudos e pródigos, desde que haja um registro público; – Artigo 84 - os loucos, de modo geral, serão representados por seus pais e tutores; – Artigo 145 - qualquer ato jurídico que seja praticado por loucos será nulo; – Artigo 177 - os loucos que tiverem comportamento inconveniente poderão ser recolhidos a estabelecimentos especiais. O que o movimento antimanicomial e seus simpatizantes, entre eles o sociólogo Paulo Delgado, desejavam era uma Reforma Psiquiátrica. Não no sentido de modernização dos dispositivos já existentes, mas sim uma nova estrutura que prescindisse dos hospitais psiquiátricos – algumas práticas extra-hospitalares já estavam sendo reproduzias pelo país, mas não recebiam verba e a maior parte do orçamento, 93%, ainda era destinada aos grandes hospitais psiquiátricos. Enquanto alguns familiares e usuários se reuniam para pensar em alternativas, os donos de hospitais embolsavam os repasses do governo. Os lucros eram altíssimos, pois os investimentos na qualidade de vida dos pacientes eram muito baixos. A falta de fiscalização dos serviços abria brechas para que uma “indústria da loucura” fosse criada. No livro Canto dos Malditos, Austregésilo Carrano, escritor já falecido e militante do movimento antimanicomial, conta que, quando o número de pacientes estava abaixo do exigido para repasse de verba pública, moradores de rua eram recolhidos pelo hospital para completar a cota. É importante destacar que o relato de Carrano é resultado de sua própria experiência de vida, já que ele foi internado em um sanatório aos 17 anos. Em 1990, o Brasil assumiu um novo compromisso. Durante conferência promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em prol da reestruturação da atenção psiquiátrica, o país assinou a Declaração de Caracas. No documento, seus signatários assumem o compromisso de que “a capacitação dos recursos humanos em Saúde Mental e Psiquiatria deve ser realizada apontando para um modelo cujo eixo passe pelo serviço de saúde comunitário”. O comprometimento internacional e o aumento da pressão popu-

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lar produziram resultados. Em 1992, foi realizada a II Conferência Nacional de Saúde Mental. No encontro, que foi precedido por 24 conferências estaduais e 150 municipais, as novas formas de tratamento com base comunitária foram consolidadas e a meta de desativação dos leitos manicomiais foi estabelecida em 20% ao ano. Serviços como o CAPS e os NAPS santistas, que até então não eram regulamentados, passaram a ser reconhecidos nacionalmente por meio da Portaria 224/92, que os caracteriza como “unidades de saúde locais/regionalizadas que contam uma população adscrita definida pelo nível local e que oferecem atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar, em um ou dois turnos de quatro horas, por equipes multiprofissionais”. A Portaria foi uma vitória, principalmente do ponto de vista financeiro. “A criação do procedimento CAPS/NAPS foi muito importante, porque se passou a pagar pelo serviço”, destaca a psicóloga Sandra Fischetti. Recebendo verbas, as unidades puderam investir mais em sua estrutura e na capacitação de profissionais. As transformações, entretanto, deveriam ser mais amplas e ir além dos serviços de inclusão e da desconstrução dos conceitos da psiquiatria tradicional. Segundo Paulo Amarante, também era preciso levar em conta os campos: – Jurídico-político: promovendo a revisão das legislações e garantindo o acesso à cidadania: direito ao trabalho, à família, ao cotidiano da vida social e coletiva; – Sociocultural: buscando a transformação do imaginário social relacionado com a loucura. O grande passo para a inclusão dos dois campos descritos acima foi dado no dia 6 de abril de 2001, com aprovação da lei proposta pelo deputado Paulo Delgado.

A lei 10.216 e seus desdobramentos O processo de aprovação da lei federal 10.216, conhecida como Lei Paulo Delgado ou Lei da Reforma Psiquiátrica, foi demorado e conturbado. Durante os 12 anos de tramitação, segmentos que seriam afetados pelas novas diretrizes protestaram e tentaram invia-


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bilizar as discussões sobre o seu conteúdo. Em maio de 1991, por exemplo, a Federação Brasileira de Hospitais apresentou um abaixo-assinado ao Congresso Nacional, que resultou no adiamento de várias votações. A iniciativa de modificar a legislação referente ao tratamento e o direito dos portadores de transtorno mental partiu do próprio Movimento da Luta Antimanicomial. Paulo Delgado recorda que foi procurado pelo movimento no fim da década de 80 e em um discurso na Câmara explicou porque decidiu abraçar a causa: “Sou candidato a paciente e, enlouquecido, quero ser tratado no serviço aberto”. A nova legislação tem como prioridade o atendimento no território; a internação hospitalar não fica proibida, mas passa a ser controlada e considerada como último recurso. O psiquiatra Paulo Amarante ressalta que o controle diminui o risco de internações motivadas por heranças, brigas de casal ou desentendimentos entre familiares. No artigo oitavo da lei é determinado que qualquer internação, voluntária ou involuntária, deverá ser autorizada por um médico registrado no Conselho Regional de Medicina. Além disso, as internações psiquiátricas involuntárias deverão ser comunicadas ao Ministério Público no prazo de 72 horas. O texto sancionado também estabelece que pacientes hospitalizados por um longo período sejam objeto de uma política de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida. Em síntese, os 13 artigos têm como meta: resgatar os sujeitos institucionalizados e evitar que outras pessoas sejam inseridas na lógica asilar. Para viabilizar a realidade proposta pela lei 10.216, foram instituídas novas Portarias Ministeriais que reestruturam e ampliaram a rede de apoio extra-hospitalar. Na Portaria 336/2, por exemplo, são estabelecidas várias modalidades de CAPS. São ao todo cinco tipos diferentes: – CAPS I: municípios com população entre 20 mil e 70 mil habitantes, funcionam das 8h à 18h, de segunda a sexta-feira. – CAPS II: municípios com população entre 70 mil e 200 mil habitantes, funcionam das 8h às 18h, de segunda a sexta-feira. Pode ter um terceiro período, funcionando até às 21h.

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– CAPS III: municípios com população acima de 200 mil habitantes, funcionam 24h, diariamente, também nos feriados e fins de semana. – CAPSi: Atendimento de crianças e adolescentes. Para municípios com mais de 200.000 habitantes, funcionam das 8h às 18h, de segunda a sexta-feira. Pode ter um terceiro período, funcionando até às 21h. – CAPSad: Atendimento para dependência química (álcool e drogas). Para municípios com população superior a 100 mil habitantes, funcionam das 8h às 18h, de segunda a sexta-feira. Pode ter um terceiro período, funcionando até às 21h. Por funcionarem 24 horas, os CAPS III oferecem leitos de atendimento à crise, ou seja, o usuário que precisar de cuidados intensivos será acolhido até que seu quadro se estabilize e ele possa voltar para casa. Além do atendimento medicamentoso e psicoterápico, o paciente participa de oficinas, atividades culturais e artísticas. A regulamentação resultou em uma expansão dos serviços. Segundo dados do Ministério da Saúde, o número de CAPS saltou de 295, em 2001, para 1513 até maio de 2010. Hoje, a cobertura no país é de 62% e o maior número de unidades se concentra nas regiões Sul e Nordeste. Enquanto o número de CAPS aumentou, os leitos em hospitais psiquiátricos diminuíram. Entre 2002 e 2009 foram fechadas, aproximadamente, 16 mil vagas e as verbas que ainda são destinadas às instituições psiquiátricas estão concentradas nos hospitais de pequeno porte, com até 160 leitos. Os únicos leitos hospitalares que o governo incentiva são aqueles em hospitais gerais. O intuito é garantir que os portadores de transtorno mental sejam tratados entre os demais doentes, sem distinção. Desde 2006, os gastos federais com ações extra-hospitalares são maiores do que os gastos hospitalares. No ano de 2009, 67,7 % dos recursos federais para a saúde mental foram gastos com ações comunitárias. Entretanto, o montante total disponibilizado pelo SUS para a saúde mental ainda é baixo, 2,3%. O valor recomendado pela OMS é de, pelo menos, 5%. Os gastos elevados com a saúde mental são justificáveis. Segundo pesquisa realizada pela Coordenação Geral de Saúde Mental, 5


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milhões de brasileiros sofrem algum transtorno mental grave e 15 milhões precisam de atendimentos eventuais. Além disso, também fazem parte do campo da saúde mental a prevenção e o tratamento de dependentes químicos de álcool e outras drogas.

Voltando para casa

Dentro do novo paradigma de assistência, também foram criados os serviços residenciais terapêuticos (SRT´s). A medida foi implantada para viabilizar a alta planejada de pacientes hospitalizados por um longo período. A Portaria 106, que instituiu os SRT´s, tem como objetivo “garantir assistência aos portadores de transtorno mental com grave dependência institucional que não tenham possibilidade de desfrutar de inteira autonomia social e não possuam vínculos familiares e de moradia”. Todo paciente que ficou internado por, no mínimo, dois anos pode usufruir do serviço. As moradias podem ter até oito moradores e devem estar, obrigatoriamente, vinculadas a um CAPS. O dinheiro que era gasto com o leito hospitalar é transferido para o município do paciente e passa a ser usado para garantir moradia e acompanhamento necessário. O processo de alta é delicado, por isso a desospitalização envolve a retomada de algumas rotinas. Os profissionais acompanham e ajudam as pessoas em atividades como: preparar alimentos, pegar um ônibus, ir ao mercado e contar o dinheiro. Nas residências, quem decide sobre a decoração dos ambientes, a divisão dos quartos e as regras são os próprios moradores. Já as questões médicas são acolhidas pelos profissionais do CAPS e por um cuidador, que conhece e lida diariamente com os moradores. Hoje, existem 564 residências terapêuticas em todo país e nelas vivem 3062 moradores. O número é insuficiente, mas o Ministério da Saúde justifica que a cobertura ainda é baixa por causa de resistência local ao processo de reintegração social e também devido à falta de mecanismos para financiamento. Outro instrumento que permite a retomada da vida em sociedade é o auxílio-reabilitação do programa De volta pra casa. A Lei 10.708 de 2003 estabelece que o incentivo seja dado aos pacientes

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que foram submetidos à internação psiquiátrica, comprovada, por dois anos ou mais e que apresentem um quadro clínico favorável à alta hospitalar. O auxílio de R$ 320,00 mensais é uma garantia para que muitos pacientes possam voltar para casa, pois terão condições de dividir as contas e colaborar no orçamento familiar. A distribuição do benefício, no entanto, está aquém do que deveria: apenas 3574 pessoas recebem o auxílio – 1/3 do número estimado de pacientes internados com longa permanência.

Rede de Atenção à Saúde Mental

Fonte: Ministério da Saúde, 2004.

Críticas A Reforma Psiquiátrica brasileira não é vista com bons olhos por todos. Uma das entidades mais críticas às mudanças é Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Helio Lauar, representante da entidade, afirma que o modelo atual tem tratado os problemas mentais apenas como problemas psicossociais e esquecido da dimensão biológica. Para a entidade e seus associados, o maior problema da política


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de saúde atual é a supressão dos hospitais psiquiátricos. Na opinião da ABP, o hospital especializado, desde que funcione dentro dos padrões de qualidade, é uma ferramenta fundamental e insubstituível. Em outubro 2006, o então presidente da ABP, Josimar França, manifestou as suas críticas à desospitalização em artigo publicado no jornal O Globo: Há um grande equívoco no Programa de Saúde Mental do Ministério da Saúde, que impede qualquer avanço nessa área. Por desinformação ou interesses ocultos, os dirigentes do programa desmantelaram esforços de muitos anos, promovidos por pessoas realmente comprometidas com a saúde mental. O planejamento passou a ser desenvolvido a partir de antigos preconceitos e com viés populista. O equívoco começou a se desenhar quando elegeram como prioridade a “desospitalização” de portadores de transtornos mentais. Para justificar essa atitude, obviamente, foram obrigados a adotar o discurso de que a internação psiquiátrica não é um procedimento adequado – o que não é verdade. A psiquiatria precisa de internações e de atendimento em centros especializados, tanto como a ortopedia e a cardiologia. A argumentação oficial, porém, fugiu de critérios clínicos e foi fundamentada na percepção equivocada, construída durante anos, de que todos os internos em unidades psiquiátricas sofrem maus-tratos. Para isso, ressuscitaram o conceito de manicômio e toda a carga pejorativa que acompanha a palavra. A discussão ganhou o aspecto sensacionalista que essa abordagem é capaz de despertar. Animados com a repercussão, os servidores resolveram encenar o roteiro. Para materializar a mensagem de sucateamento da área de saúde mental, passaram a contingenciar recursos e, consequentemente, muitas instituições fecharam as portas, e o atendimento começou a enfrentar dificuldades graves, em razão da asfixia financeira. E foi essa situação que teve destaque na mídia. Em seguida, numa movimentação batizada de “reforma psiquiátrica” [como se a especialidade médica necessitasse de reforma...] fecharam leitos em hospitais públicos, vejam bem, públicos – e posaram de “salvadores da

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pátria” para os flashes. Quem precisa de reforma é o modelo assistencial, não os médicos.

Na época, a declaração gerou um grande debate e o Conselho Federal de Psicologia, que apoiou a Reforma, rebateu os argumentos de Josimar França: Usando e abusando de falácias, o seu artigo na verdade tem como finalidade advogar, na contramão das tendências mundiais, a favor da manutenção dos hospitais psiquiátricos como feudos corporativos e contra o incômodo fim dos privilégios dos empresários da Psiquiatria e de uma certa elite acadêmica – a Psiquiatria de gravata – que se utiliza destes estabelecimentos como campo privilegiado para experimentos locais, teleguiados pela indústria farmacêutica mundial.

Alguns opositores propõem, inclusive, uma contrarreforma. Em maio de 2009, por exemplo, a Reforma Psiquiátrica foi tema de uma audiência pública promovida pela Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado. No encontro, a internação de portadores de transtorno mental foi defendida, assim como novos dispositivos legislativos. Em junho de 2009, o poeta Ferreira Gullar também manifestou a sua insatisfação. Pai de dois esquizofrênicos, um já falecido, Gullar chama a lei 10.216 de “idiota”. Em três artigos publicados na sua coluna do jornal Folha de S. Paulo, ele questiona a redução de leitos e o viés ideológico da Reforma. Recentemente, em entrevista por telefone, Gullar manteve a mesma opinião: “A lei que existe dá a entender que não precisa internar, que basta ter comunidade terapêutica e isso não é o suficiente”. Outros recursos para internação, como os leitos dos CAPS III, entretanto, são desconhecidos por ele. E a opção de internamento em hospitais gerais lhe desagrada, pois seria “fruto de um preconceito, só para dizer que o ‘cara’ não está internado numa clínica psiquiátrica”. As propostas da Psiquiatria Democrática também são alvo de críticas: “Existe uma cardiologia democrática, uma pneumologia democrática?”, pergunta ele. Gullar considera a experiência italiana


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uma “bobagem”. “Aquele comunista [Franco Basaglia] cometeu um grande equívoco ao dizer que a doença não existe e que a burguesia é a culpada [pelo isolamento]”. Para Gullar, os discursos que afirmam a existência de hospícios são mentirosos. Segundo ele, essas instituições não existem mais. “É diferente, os hospitais têm salão de jogos, campo de futebol e piscina”. Aliás, o uso do termo manicômio é interpretado, pelo poeta, como uma “demonização desonesta”. É importante lembrar, no entanto, que entre 2002 e 2010 o Observatório de Saúde Mental e Direitos Humanos da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila) registrou pelo menos 16 mortes em instituições psiquiátricas. Em 2006, inclusive, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil pela morte de Damião Ximenes Lopes. O falecimento aconteceu em 1999. Damião foi espancado por enfermeiros da Casa de Repouso Guararapes, em Sobral, Ceará. O discurso enérgico de Gullar foi entendido por muitos como o desabafo de um pai, mas há quem veja outras motivações para o seu pronunciamento. “Ele não é uma pessoa ingênua e não está ingênuo nisso, ele está defendendo claramente os interesses dos donos de hospitais psiquiátricos privados”, afirma o psiquiatra Paulo Amarante. O poeta justifica: “Eu não sou doente mental, não sou médico, não sou funcionário público e não estou lucrando nada com isso. Eu estou falando simplesmente uma coisa lógica, racional e objetiva”.

Uma marcha, novas demandas No dia 30 de setembro de 2009, uma “Marcha dos Usuários pela Reforma Psiquiátrica Antimanicomial” reuniu 2500 participantes. O evento foi organizado pela Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial e contou com o apoio de outros grupos e associações pró-Reforma. A principal demanda dos manifestantes era a realização da IV Conferência Nacional de Saúde Mental, pois a última edição havia acontecido em 2001. Na opinião de profissionais, familiares e usuários, era imprescindível realizar um encontro no qual a política pública em vigor fosse avaliada. Os participantes da marcha tam-

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bém reivindicavam que os debates para a consolidação do modelo assistencial aberto fossem intersetoriais, ou seja, com a inclusão de outras áreas do governo, como Ministério da Cultura, do Trabalho, da Justiça e Direitos Humanos. A manifestação popular na Esplanada dos Ministérios surtiu efeito e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva determinou que a IV Conferência fosse realizada no ano seguinte. O evento aconteceu em Brasília entre os dias 27 de junho e 1° de julho de 2010. Antes, no entanto, foram realizadas 359 conferências municipais, 204 regionais e 27 estaduais, incluindo o Distrito Federal. O processo envolveu, ao todo, 46.000 pessoas. A etapa paulista foi a única que não contou com respaldo do governo estadual. A plenária que elegeu os representantes e as propostas da região foi realizada com o apoio de membros do Conselho de Saúde Estadual e da Prefeitura de São Bernardo do Campo. Os 1200 delegados que foram até Brasília fizeram um balanço dos últimos nove anos e elaboraram mais de 300 propostas para ampliar e melhorar o atendimento ao portador de sofrimento mental; algumas delas são: • Criar novas estratégias para atender os usuários de álcool e outras drogas, por meio de CAPS AD 24h com inclusão de leitos de desintoxicação. • Ampliação dos serviços residenciais terapêuticos com proposição de novos critérios. • Implantar a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares na rede de saúde mental, com homeopatia, acupuntura e fitoterapia. • Criação de Fórum intersetorial permanente com representantes da educação, segurança pública, justiça e direitos humanos, poder judiciário, Ministério Público, movimentos sociais, instituições de ensino superior, conselhos de políticas públicas e organização de evento anual para troca de experiências de serviços e atualizações científicas. • Garantir a continuidade da implantação, ampliação e fortalecimento da Terapia Comunitária como estratégia integrativa e intersetorial de promoção e cuidado em saúde mental. • Garantir financiamento da gratuidade dos meios de transporte


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público às pessoas com transtornos mentais graves e persistentes e seus acompanhantes, através dos impostos de bebidas alcoólicas e de cigarro, possibilitando acessibilidade ao tratamento. • Capacitação em saúde mental das equipes do SAMU, corpo de bombeiros militar e polícias militar e civil. • Garantir que a União repasse os recursos arrecadados através de leilões de bens e valores provenientes de tráfico de entorpecentes diretamente aos fundos municipais dos conselhos municipais de saúde para a implantação da política sobre álcool e outras drogas do Ministério da Saúde. • Ampliar a oferta de psicotrópicos nas Farmácias Populares. • Garantir acessibilidade à medicação psiquiátrica diversificada e atualizada. • Ampliar o quadro de profissionais da saúde mental na rede de atenção através de concurso público. • Realizar censo epidemiológico de agravos em saúde mental e deficiências mentais. • Garantir notificação compulsória de toda e qualquer situação de violência e óbitos de cidadãos com sofrimento psíquico de forma abrangente.

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CAPÍTULO 2

Marcelo Reis

Júlio César

CAPS Itapeva: um marco na assistência extra-hospitalar Antonio Sérgio


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O modelo CAPS, que foi expandido por todo o Brasil, começou a ser planejado em meados da década de 1980. Durante o governo de Franco Montoro, em São Paulo, foi criado o Programa de Intensidade Máxima (PIM). A iniciativa fazia parte de uma política ainda incipiente de diminuição de internações e tinha como meta o tratamento intensivo de pacientes egressos de hospitais psiquiátricos. “Quando o PIM entrou em vigor, cada ambulatório oferecia dois ou três períodos semanais para cuidar mais intensivamente das pessoas com transtornos severos. Os encontros, no entanto, não davam conta da complexidade que elas traziam”, recorda Sandra Fischetti, psicóloga e uma das fundadoras do CAPS Itapeva. O programa foi importante, mas os profissionais da saúde apontavam a necessidade de um serviço integral e intermediário entre os hospitais e a rede ambulatorial. Em 1986, depois de muitos pedidos, o Diário Oficial do Estado de São Paulo comunicou que uma comissão de técnicos estava autorizada a propor e estruturar um novo modelo de serviço extrahospitalar. O governo comprometeu-se com a contratação de funcionários, a compra de material e a reforma de um imóvel, um casarão de 1920, a uma quadra da Avenida Paulista. Sendo assim, no dia 12 de março de 1987, o CAPS Prof. Luís da Rocha Cerqueira – também conhecido como CAPS Itapeva, já que está instalado em uma rua de mesmo nome – começou a funcionar. A proposta era atender portadores de transtorno mental grave em regime aberto, sem afastá-los da família e da comunidade. O serviço foi construído coletivamente. Todas as semanas, usuários e técnicos se reuniam em uma assembleia para discutir e solucionar os problemas. Segundo Sandra Fischetti, o “modo de funcionar do CAPS” era caracterizado, como acontece até hoje, pelo


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entrelaçamento da clínica com projetos de sociabilidade. São os dois fatores que orientam o modelo de assistência, a organização do trabalho e a relação entre as pessoas na instituição. Foram as demandas dos usuários que determinaram a criação ou supressão de atividades. Em 1989, por exemplo, muitos deles reclamavam que gostariam de trabalhar e as famílias também estavam preocupadas com a vida fora do CAPS. Para atender aos anseios de ambos foi criada a Associação Franco Basaglia. Concebida como uma ONG, a associação pode realizar eventos e captar dinheiro para desenvolver projetos de capacitação profissional e inclusão social. O atendimento do CAPS está dividido em três frentes: o núcleo de assistência, que avalia os sintomas, prescreve a medicação e oferece o atendimento individual/familiar; o núcleo de sociabilidade, que se assemelha a uma cooperativa de trabalho; e o núcleo de ensino e pesquisa, que é resultado de uma parceria com universidades e atende estudantes e pesquisadores. O intercâmbio com as universidades, aliás, já foi mais intenso. Em outubro de 1996, foi assinado um convênio entre a Secretaria de Estado da Saúde e a Universidade de São Paulo. A parceria foi fundamental para a implementação do Programa de Integração Docente Assistencial em Saúde Mental (PIDA), que contava com a Escola de Enfermagem, o Departamento de Medicina Preventiva e o de Terapia Ocupacional. Com o PIDA funcionando, o CAPS passou a receber mais verbas e novos projetos puderam ser desenvolvidos. Um dos mais importantes foi o Projeto Moradia Assistida, que tinha o objetivo de acolher usuários com problemas de moradia. Afinal, os conflitos domésticos e as condições habitacionais precárias prejudicavam o tratamento. A Moradia Assistida começou a funcionar em fevereiro de 1998, dois anos antes de o Governo Federal instituir os serviços residenciais terapêuticos. Um sobrado a poucas quadras do CAPS Itapeva foi alugado com recursos do PIDA. Os móveis e eletrodomésticos foram doados ou adquiridos com o dinheiro arrecadado em eventos da Associação Franco Basaglia. A casa tinha cinco quartos e podia abrigar até oito pessoas. Antes de entrar no projeto, os usuários passavam por uma entrevista e explicavam por que gostariam ou precisavam ter um novo lar. Aprovados, os moradores deveriam continuar frequentando o CAPS

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de segunda a sexta-feira, das 8:30 às 16:30h. No restante do tempo, eles realizavam as tarefas de casa, como fazer o jantar, limpar os quartos, lavar as roupas, e também aproveitavam para ir ao cinema ou a museus próximos. Uma equipe técnica composta por um coordenador, duas psicólogas e uma terapeuta ocupacional foi montada especialmente para o projeto. Diariamente, por pelo menos três horas, um profissional fazia plantão na casa e ajudava os moradores na elaboração da lista de supermercado, no planejamento financeiro e, é claro, nas questões relativas ao tratamento clínico. Durante cinco anos, 25 pessoas passaram pela moradia. O projeto foi encerrado em 2003, uma vez que a Secretaria de Estado da Saúde retirou o financiamento. Alguns usuários conseguiram superar os conflitos e voltar para a casa de familiares. Outros foram morar em pensões.

Dasdoida Uma das propostas mais recentes do núcleo de sociabilidade do CAPS Itapeva é a oficina de moda experimental Dasdoida. A ideia surgiu em 2006, quando alguns usuários participaram da criação e confecção de figurinos para a primeira Parada do Orgulho Louco, evento que acontece em maio, mês da luta antimanicomial, e tem como objetivo divulgar e fortalecer os direitos dos portadores de transtorno mental. O nome da oficina foi inspirado em outras iniciativas pautadas na moda inclusiva, como as grifes Daspu, que foi criada por prostitutas, e a Daspre, que gera renda para presidiárias. A partícula das é uma alusão à luxuosa butique paulistana Daslu. O primeiro contato dos usuários com os tecidos, linhas e tintas foi extremamente promissor, tanto do ponto de vista clínico quanto estético. “À medida que eu fui fazendo os atendimentos, percebi que as pessoas têm muito talento. É o talento delas e, na medida em que fazemos o talento delas trabalhar, isso funciona no sentido da terapia, das trocas e da participação na vida”, afirma Julia Catunda, psiquiatra e coordenadora da Dasdoida. Os encontros acontecem duas vezes por semana, às segundas e quintas-feiras. O efeito terapêutico e a melhora ou estabilização dos


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transtornos acontece por meio de um processo de reconhecimento e prazer. As ações são desenvolvidas de acordo com a vontade e afinidade dos usuários. Alguns gostam de desenhar os modelos, outros preferem customizar roupas ou até desfilar. “A Dasdoida oferece um campo amplo de atividades e cada pessoa se apropria de uma parte, um espaço que concerne a si e ao seu talento. Ela vai desenvolver um trabalho e um sentido de mundo, um sentido de si mesma”, explica a coordenadora. O objetivo principal da oficina não é produzir peças vendáveis, mas sim proporcionar um espaço onde tudo é permitido, independente de se alguém vai comprar os produtos ou não. Vestidos assimétricos e estampas inusitadas, como a versão gótica e tatuada da personagem Hello Kitty, são bem-vindas. Todas as peças são artesanais, portanto únicas, e o ritmo de produção é ditado pelo humor e vontade dos participantes. No dia 23 de julho de 2009, a Dasdoida mostrou sua coleção em rede nacional. Técnicos e estilistas foram convidados para participar de um capítulo da novela Caminho das Índias, da Rede Globo. A trama escrita por Gloria Perez abordava, entre outros assuntos, a descoberta da esquizofrenia e seus desdobramentos na vida do personagem Tarso, interpretado pelo ator Bruno Gagliasso. A participação na novela rendeu várias entrevistas e o projeto ganhou muitos admiradores. “Conseguir essa apresentação foi muito importante para todos nós. As pessoas puderam ver como um projeto de saúde mental pode ter um diferencial. O retorno foi muito legal, as pessoas se emocionam, a loucura é de todo mundo”, diz Julia Catunda, que completa: “Para os usuários foi muito positivo, um deles chegou a comentar que a Globo estava se aproveitando da gente para fazer sucesso”.

Um paradoxo A cidade de São Paulo vive uma contradição, pois, apesar de abrigar o CAPS mais antigo do país, é uma das mais precárias no que diz respeito às condições da rede de serviços extra-hospitalares. Segundo o Coordenador Nacional de Saúde Mental, Pedro Gabriel Delgado, a cobertura do município é classificada entre regular e baixa, pois a recomendação do Ministério da Saúde é de um CAPS para cada 100 mil habitantes. Em 2008, a cidade possuía apenas 51

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CAPS, número inferior ao ideal, já que para atender mais de 10 milhões de paulistanos são necessárias pelo menos 108 unidades. Além disso, o município tem um déficit altíssimo de serviços residenciais terapêuticos (SRT). Até maio de 2008, apenas uma residência estava em funcionamento e mais de 295 pacientes internados em hospitais psiquiátricos aguardavam na lista de espera por uma moradia. Para atender a demanda seria preciso criar pelo menos 37 SRT. A falta de assistência era, e ainda é, tão grave que o Ministério Público Federal (MPF) decidiu intervir e cobrar soluções. Desde 2004, diferentes coordenadores assumiram o compromisso de aumentar a oferta de serviços, mas nenhum cumpriu a promessa. Em 2007, o MPF chegou a propor um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), segundo o qual o município teria de implantar 12 CAPS e nove SRT, mas no dia da assinatura o Secretário Municipal de Saúde, Januario Montone, afirmou que não concordava com as exigências. Levando em conta a falta de compromisso e a morosidade na execução da Lei da Reforma Psiquiátrica, o MPF entrou com uma ação civil pública para que São Paulo fosse obrigada a ampliar a sua rede extra-hospitalar. Depois de um ano de tramitação, em junho de 2009, a cidade foi condenada a implantar 57 novos CAPS e 37 SRT em um prazo de dois anos Até julho de 2010, segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde, somente nove CAPS foram inaugurados. Hoje, a rede de saúde mental conta com 60 CAPS, ou seja, apenas 16% da meta estabelecida pela justiça foi cumprida. A rigor, a prefeitura só tem mais um ano para concluir as implementações, caso contrário, poderá sofrer novas sanções e pagar multas pelo atraso. Outro ponto polêmico na coordenação da saúde paulistana é o padrão adotado de parcerias público-privadas. Em 2005, foi aprovada a lei municipal n° 318, que regulamenta a transferência da administração de hospitais públicos, ambulatórios, laboratórios e, até mesmo, CAPS para Organizações Sociais (OSs). De acordo com a lei, as entidades podem ser contratadas pelo município sem nenhuma licitação. Além disso, elas têm autonomia para empregar funcionários sem concurso público. A legalidade do processo de terceirização dos serviços de saúde está sendo julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas o MPF já se manifestou dizendo que os contratos com as OSs são


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inconstitucionais, uma vez que o SUS pressupõe complementos e não a transferência integral da gestão para terceiros. No caso da saúde mental, a situação é ainda mais complexa, pois muitas das OSs que assumem a gestão dos CAPS desconhecem as suas particularidades e atuam dentro de uma lógica ambulatorial. O que é um equívoco, já que nos CAPS são tratados transtornos crônicos, que pressupõem um acompanhamento permanente e sem alta. O CAPS Itapeva foi um dos terceirizados e, desde 2007, é administrado pela Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), uma organização social mantida pela Unifesp. A mudança de gestor causou alguns impactos na estrutura do serviço, como a presença de seguranças na porta e a consequente diminuição do intercâmbio entre a comunidade e o CAPS. Alguns funcionários, que preferem não se identificar, também afirmam que o atendimento passou a ter um viés medicamentoso, pois está mais centrado nos sintomas do que nas relações ou processos que produzem sofrimento. Funcionária da unidade há mais de 12 anos, Júlia Catunda reclama: “A Secretaria não cobra nada, e as OSs precisam ser cobradas. É preciso cobrar números e, sobretudo, qualidade. Não é só dar o dinheiro, também tem uma parte cívica de cobrar os serviços pagos”. Alguns usuários também protestam: “Agora que estão privatizando os CAPS, eu acho que está havendo um tremendo retrocesso. Para que privatizar? Para colocar dinheiro no bolso de alguns e deixar outros à mingua? Uma coisa que é do Estado, o Estado deveria cuidar”, diz Marcelo Reis. ***

Ninguém merece ficar no manicômio O ponto de encontro era em frente à estátua de Anhanguera, no Parque Trianon, em São Paulo. Marcelo Reis, 39 anos, foi quem fez a primeira pergunta: “Posso fumar um cigarro?”. Respondi que não havia problema nenhum e, com o cigarro entre os dedos, ele começou a contar alguns episódios marcantes de sua vida. Em 1989, Marcelo passou por uma experiência que alterou os rumos da sua vida. Ele estava terminando um curso técnico em administração, mas em setembro “vozes do além” começaram a im-

portuná-lo e, a poucos meses da formatura, foi internado no Hospital Psiquiátrico Prof. Dr. Joy Arruda. “Eu passei o reveillon de 1990 no manicômio. Eu tinha completado 18 anos em dezembro e, no mesmo mês fatídico, fui para o manicômio. Dezoito anos, comecei a minha vida bem... dentro do manicômio”, ironiza. Dentro do hospital, que ficava na zona sul de São Paulo, o atendimento padrão tinha como meta deixar todos os pacientes fora do ar: “A gente acordava às 4h da manhã para tomar medicação, eu ficava muito dopado, mesmo. A gente não fazia nada, só dormia e olhava para a parede. O quarto tinha vinte camas e ninguém conversava com a gente. Ninguém me perguntou nada, eu só vi o médico no dia da alta”, lembra Marcelo. Foram vinte e seis dias de internação. Apesar do excesso de remédios e da falta de atenção, ele agradece por, pelo menos, nunca ter sido agredido pelos enfermeiros. “Eu lembro que ‘os caras’ gostavam de mim, eles me colocaram o apelido de Boy, me tratavam bem, ninguém bateu em mim, tiveram misericórdia de mim lá dentro”. Marcelo só deixou o hospital graças ao esforço da mãe, que se responsabilizou pelos cuidados com o filho. “Minha mãe me tirou do manicômio porque ela ficou com dó de mim”, diz ele. A volta para casa, no entanto, não foi fácil. A interrupção dos estudos e a condição de desempregado eram um fardo para ele, pois sua família não tinha condições de bancá-lo. Sem dinheiro e com fama de louco, ele foi dominado pela tristeza. Na tentativa de se reerguer, fez uma visita ao Hospital-Dia (HD) do Itaim – em 1991, a cidade de São Paulo contava com 14 HDs, um serviço extra-hospitalar que foi criado durante o governo da prefeita Luiza Erundina e posteriormente convertido em CAPS. Marcelo assumiu um compromisso com os médicos, no qual foi estabelecido que ele deveria ir ao serviço todos os dias, exceto nos fins de semana. Tomando a medicação correta e com regularidade, ele conseguiu ficar mais tranquilo. O que o incomodava eram os exercícios e atividades propostas pelas terapeutas. “Eu fazia atividade de préescola: desenhar e jogar jogos. Eles te tratam como uma criança. Eu me sentia acabado, porque não estudei para isso, eu estudei para ser alguém na vida, não para ser doente mental”. A abordagem infantil deixou Marcelo de “saco cheio” e ele de-


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cidiu procurar outro lugar onde pudesse fazer um tratamento aberto, sem internação. Em 1993, passou a frequentar o CAPS Itapeva, onde, além de tomar os remédios, conseguiu um emprego. Durante cinco anos, trabalhou em uma copiadora mantida pela Associação Franco Basaglia. No fim do mês, o dinheiro não era muito, pois a função era dividida com outros usuários, mas, para ele, ter uma ocupação útil já era muito gratificante. Em 2000, Marcelo resolveu sair de casa, no bairro do Capão Redondo, para participar do Projeto Moradia Assistida. Ele foi morar com mais três pacientes a poucas quadras da Avenida Paulista. O projeto, como já dito anteriormente, funcionava como uma residência terapêutica e dava abrigo para egressos de uma internação ou para usuários que tinham conflitos familiares, como era o caso de Marcelo. Em casa, ele enfrentava as crises sozinho, pois seu pai era o típico durão e sua mãe não entendia o transtorno e os seus desdobramentos. “Para o meu pai é cada um por si, já a minha mãe não tem muito estudo e não tem muita percepção da minha situação”. Na residência, todos os moradores eram responsáveis pela arrumação e limpeza da casa e, muitas vezes, a divisão de tarefas era motivo de briga. Durante o dia, os plantonistas do CAPS Itapeva passavam pela casa para mediar os possíveis conflitos e verificar se algum usuário precisava de algum remédio ou cuidado específico. “Era um refúgio para quem estava sufocado. No começo, eu gostava, mas, depois de três anos, entrou muita gente e aí eu resolvi sair fora”, afirma. Depois disso, viveu em abrigos e cortiços. Hoje, Marcelo mora sozinho no Jardim São Bento Velho. Segundo ele, a região é conhecida pela polícia como polígono da morte, pois fica entre Itapecerica da Serra, Jardim Ângela e o Capão Redondo. Os altos índices de violência, no entanto, não o assustam. Pelo contrário, é nessa região que Marcelo se sente bem e seguro. “Eu sou do Capão Redondo e lá a loucura é normal, todo mundo me chama pelo meu nome. Na minha quebrada ninguém tem preconceito de mim. Sinceramente, eu tenho a minha verdade e se a burguesia me vê com maldade no olhar, isso, para mim, não interessa”. Atualmente, o que o deixa mais feliz é poder dormir e acordar sem hora marcada. Depois do café da manhã, Marcelo gosta de tomar sol no quintal de casa, cercado por bananeiras e ouvindo o som

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dos passarinhos. Agora, inclusive, ele tem uma estabilidade financeira maior, pois recebe um auxílio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que avaliou a esquizofrenia paranoide como um fator incapacitante para o trabalho. “As vozes estão cada vez piores, os remédios não dão um fim, mas me ajudam a ficar melhor e tomar as rédeas da minha vida. As vozes do além falam sobre SS, sexo e sangue. É macabro, bizarro e eu tenho ódio. A sociedade banaliza a violência e o sexo. É a cultura babilônica”, desabafa Marcelo. Na tentativa de escutar e resignificar os delírios, a Dra. Julia Catunda, psiquiatra do CAPS Itapeva, propôs que ele contasse o que ouvia em um filme. Marcelo aceitou a proposta e seus delírios foram transformados em um curta-metragem de 13 minutos. No filme Crônica de mente, ele conta que sofreu uma lavagem cerebral aos cinco anos de idade e cineastas e terapeutas lhe ajudam a construir personagens e um roteiro cinematográfico. Em síntese, a sua história descreve uma batalha entre o bem e o mal, algo comum para um homem que perdeu todos seus amigos em brigas de gangues ou tiroteios com a polícia. O filme, dirigido por Clêmie Blaud, foi selecionado para 21° Festival Internacional de Curtas de São Paulo, que aconteceu em agosto de 2010. A produção e as gravações duraram quase um ano e o impacto, segundo Marcelo, foi muito positivo. “O filme tem a ver com o espírito do CAPS, de igualdade, liberdade e direitos humanos. O portador de necessidade especial precisa ser livre, ninguém merece ficar no manicômio”. Antes de se despedir e voltar para a sua “quebrada”, Marcelo respirou fundo e mandou um recado: — Você, cidadão de São Paulo, cidadão paulista, que tem preconceito com o doente mental e se acha normal, você é um grande banal! ***

“Memórias de um aloprado” As chapas de ferro chegavam pela esteira, Antonio Sérgio do Prado tinha que montar várias peças por minuto e estava acostumado com o aperta daqui, afrouxa dali. Todos os dias a rotina se repetia


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e os patrões admiravam a seriedade de Sérgio, que tinha apenas 18 anos. A carreira de metalúrgico ia de vento em popa. Com o salário e bonificações, ajudava nas despesas de casa e até comprou uma geladeira para a mãe. Segundo ele, a primeira da família. Sérgio só tinha motivos para comemorar, mas um dia, sem mais nem menos, ele começou a chorar no meio da fábrica. Sua tristeza era tão grande que não tinha forças para apertar um parafuso sequer. As lágrimas e os soluços chamaram a atenção do guarda daquele turno e Sérgio foi levado para a enfermaria. A médica que estava de plantão percebeu que o caso era grave e Sérgio foi afastado do serviço por alguns dias. No período em que ficou em casa, na cidade de Osasco, ele se negou a tomar os medicamentos que lhe foram prescritos e coisas estranhas começaram a acontecer. “Eu comecei a ver coisas. Via unicórnios e soldados armados com fuzil”, recorda. O afastamento foi prorrogado e, só após um ano e meio, Sérgio voltou ao trabalho. A recepção foi breve e, no mesmo dia, ele foi demitido. A demissão caiu na cabeça de Sérgio como uma bomba. Ele ficou revoltado e, antes de se despedir, xingou todos os seus superiores. Em busca de justiça, foi até o sindicato ao qual era filiado, mas estava tão alterado que a médica da entidade decidiu encaminhá-lo para um hospício. “Fiquei três dias internado, quando cheguei no hospício um senhor bem magrinho, quase cadavérico, estava saindo. Eu falei para o enfermeiro: ‘Ele morreu e está dando o lugar pra mim, né?!’”. Durante a internação, ele ficou chocado ao ver pessoas largadas, sem higiene e totalmente dopadas. “Eu pensava, vendo aquelas pessoas, que eu tinha que tomar o remédio certinho, senão eu ficaria igual”. O psiquiatra responsável lhe receitou vários medicamentos, mas não tinha um diagnóstico fechado. Segundo Sérgio, seu transtorno era identificado como “abobrinha x”. Era tudo e nada ao mesmo tempo. As razões pelas quais ele começou a sofrer e ter alucinações ainda são desconhecidas. Até hoje, nenhum médico ou cientista conseguiu determinar o que provoca um transtorno mental. Já para Sérgio, os motivos são óbvios: “Eu tinha uma família desestruturada. O meu pai era alcoólatra e maltratava a minha mãe, batia nela e na gente. Tinha violência doméstica e violência externa, eu morava num bairro muito violento e a gente era muito pobre”. A desigualdade social marcou muito a vida de Sérgio. “Eu mora-

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va em barraco, não tinha asfalto, a rua era de terra. Só fui conhecer a realidade de asfalto e casa bacana com 13 anos”. Até a adolescência, pensava que todos viviam como ele: dividindo a cama com irmãos, sem água encanada, sem eletrodomésticos e com o dinheiro contado. “Eu não sabia quem eram os ricos. Eu queria descobrir quem era para matar, eu vivi muito na base do ódio”, diz. A sede de vingança era tão grande que ele pensava em se tornar um homem bomba para explodir Brasília. Depois da primeira crise, Sérgio ficou mais agressivo e sua raiva começou a ser notada pela família e vizinhos. Para não fazer nenhuma bobagem, ele criou uma estratégia: “Eu ia para cima da laje, fazia um círculo e me colocava preso. Eu fazia um círculo com giz no chão e dizia: ‘Vou ficar das oito ao meio-dia, saio para comer e depois volto para a cadeia’. Eu mesmo me prendia, porque sabia que ia fazer besteira”. Foram mais de 10 anos subindo na laje e se trancando. Os pais pensavam que ele estava tomando sol e não entendiam nada. Sérgio só saía de casa para ir falar com o psiquiatra. No consultório, ouvia coisas e perguntava: “Doutor, tá ouvindo a campainha lá fora?”. Toda vez que ele falava um apito agudo tocava para lhe calar. O médico respondia que o barulho era uma das manifestações do transtorno bipolar. Naquela altura, Sérgio tomava cinco comprimidos por dia e, mesmo assim, era difícil manter o equilíbrio. O seu humor mudava repentinamente, ele ia das gargalhadas ao choro em poucos minutos. Algumas vezes, o desespero tomava conta e a única vontade de Sérgio era morrer. “Eu tentei o suicídio. Deitei na linha do trem, a vinte metros... o farol, mas aí alguma coisa me levantou e eu fiquei com tanta raiva que comecei a jogar pedra no trem porque ele não tinha passado por cima de mim”. Em 1992, Sérgio teve uma crise grave. Durante uma semana, a rua inteira pôde ouvir os seus gritos e pontapés. No primeiro dia, os vizinhos resolveram chamar o SAMU e ele foi levado ao pronto-socorro. Chegando lá, foi medicado e a enfermeira, que já o conhecia, recomendou: “Calma, Serginho”. Os remédios, no entanto, não foram o suficiente e, no dia seguinte, ele quebrou a casa toda. Prevendo que alguém chamasse o serviço de emergência, Sérgio avisou que “se algum vizinho chamasse a ambulância, no dia seguinte apareceria morto”. Ninguém teve coragem de ligar, mas, por vontade pró-


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pria, ele decidiu procurar ajuda. “Quando foi meia-noite, eu abracei meu pai e minha mãe e falei: ‘Me socorre porque eu não tô muito legal’. Aí, subindo a avenida, vinha passando um carro da polícia, chamei e expliquei as coisas. Eles foram em casa, viram a situação e me levaram para o pronto-socorro de novo”. O pronto-socorro, entretanto, não queria fazer o atendimento. A médica que estava de plantão falou: “Esse aí, eu não quero mais. Estou cheia de problemas”. Sem alternativas, ele foi levado para um hospital psiquiátrico. Dona Hilda, a mãe de Sérgio, aproveitou a ocasião e pediu que internassem seu marido, pois ele bebia demais. O pedido foi aceito e pai e filho ficaram 23 dias internados. Apesar de tudo, Sérgio conseguiu tirar algo de positivo do seu “calvário”, como ele diz. “Teve um lado que foi muito bom. Eu nunca tive um contato afetivo com o meu pai e lá dentro eu abracei ele e falei umas verdades. Nos encontros dos alcoólatras, perguntaram se alguém queria falar alguma coisa e eu disse: ‘Eu quero. Vocês ficam bebendo por aí e por causa da bebida eu estou aqui, vocês acabam com a família por causa disso e seus filhos podem estar no hospício que nem eu, porque o meu pai bebeu’”. Depois da segunda internação, Sérgio iniciou um tratamento no Instituto Paulista de Psicanálise. “Eu comecei a aceitar fazer terapia, o psicólogo me ouvia muito e me ajudava. Eu comecei a gostar do resultado, de conversar e pôr tudo para fora”. Sentindo-se mais leve, ele começou a sair de casa e rompeu o ciclo vicioso de comer e dormir. Sérgio decidiu procurar um emprego na Cidade de Deus, complexo empresarial onde funciona a matriz do banco Bradesco. Depois de muitos testes, foi aprovado para trabalhar como escriturário. Foram só dois anos na função, já que ele largou tudo para realizar o sonho de fazer uma faculdade. Sua primeira escolha era jornalismo, mas acabou se matriculando no curso de serviço social das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), em São Paulo. “Era uma maravilha. As amizades, que coisa bacana, né?! Eu estudava com 100 meninas na sala, era um harém. Você também vê que é um cara com capacidade para aprender, sacar filosofia, sacar economia, foi muito bacana”. Junto com os colegas de faculdade, Sérgio viveu várias experiências fora da sala de aula. Ele afirma que fazia parte do Movimento Re-

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volucionário Oito de Outubro (MR8), organização política de esquerda que combateu a ditadura militar, e das manifestações pelo impeachment do presidente Fernando Collor de Mello. A efervescência acadêmica e política, no entanto, durou pouco, pois o dinheiro para pagar a mensalidade e participar dos encontros estudantis havia acabado. Para ocupar o tempo e a cabeça, passou a frequentar uma oficina de teatro na Estação Especial da Lapa, uma unidade do Fundo Social de Solidariedade do Estado de São Paulo que atende portadores de deficiências físicas e transtornos mentais. As aulas ajudaram Sérgio a perder a timidez e lhe renderam uma figuração na novela Cidadão Brasileiro, da Rede Record. “Eu fui figurante da novela, vi os atores, fiquei lado a lado com a Paloma Duarte, acho até que ela deu uma piscadinha pra mim. Não sei se ela estava carente, mas sei que não foi ilusão minha, eu vi ela piscar!” Realmente, Sérgio estava chamando a atenção das mulheres. Durante um intervalo da oficina, saiu para almoçar e, desta vez, sem dúvidas, conseguiu arrebatar um coração. Enquanto aguardava a sua refeição, uma mulher chamada Joelma observava todos os seus movimentos. “Eu tava na fila e o cupido deu uma flechada. Aí olhei e ela ficou interessada, depois ela sentou perto de mim para almoçar e começamos a conversar”. A princípio Sérgio pensou que o relacionamento não daria certo, já que, na sua opinião, Joelma era a típica patricinha. Mas ele se enganou e os dois estão juntos há mais de nove anos. “Eu não ia muito com a fachada da burguesia, e olha o que Deus colocou na minha vida... a minha esposa morou em apartamento, saía com a galera para tomar cervejinha, fez faculdade e com 18 anos tinha um carro. O outro lado que eu não tive”. Com o apoio da esposa, Sérgio começou a fazer todos os cursos que apareciam na sua frente. As palavras arte, teatro e cinema eram como um imã. Ele chegou a pensar em fazer um filme sobre a sua vida: “Se fosse nos Estados Unidos, a minha história daria um filme bacana e se chamaria Memórias de um Aloprado, porque o meu sobrenome é Prado e em alusão aquela pessoa meio avoada. Porque eu sempre fui meio diferente e as pessoas falavam: ‘Ele é meio aloprado’. Parecia meio louco, eu vivia dando gargalhadas fora do contexto, uma pessoa meio primitiva, uma pessoa livre”.


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Em 2009, folheando a revista OCAS, Sérgio leu uma entrevista com a Dra. Julia Catunda, na qual eram descritas algumas atividades realizadas pelo CAPS Itapeva. Com a revista em mãos, foi direto ao endereço indicado. Mesmo sem fazer o atendimento clínico na unidade e morando em outra cidade, foi recebido pelo serviço e hoje frequenta a oficina de moda Dasdoida duas vezes por semana. Toda segunda e quinta, ele pega ônibus, trem e metrô para participar da oficina. Coloca o avental, pega as tintas e começa a customizar camisetas. Praticamente um especialista em serigrafia, Sérgio explica que, para a estampa ficar bonita, é preciso passar o rodo com bastante tinta sem mexer o molde. Além de silcar as roupas, ele também gosta de desfilar. Joelma, inclusive, já o acompanhou na passarela. “A minha esposa também já desfilou e gostou muito. Ela me apoia pra caramba, me acha o máximo, me valoriza”. Sérgio agradece a Deus pelo equilíbrio que conseguiu alcançar, as crises são raridade. A única coisa que o incomoda são pensamentos negativos na hora errada. “Sempre que eu tenho uma situação de felicidade eu me boicoto, é como se eu não pudesse ser feliz. Um exemplo: ontem fui ao shopping com o meu sobrinho comer uma pizza e assistir um filme. Aí eu fui beber água no bebedouro e senti um gosto de sangue. Parece que sempre tem uma coisa pra me preocupar”. Depois de tantos altos e baixos, aos 43 anos, Sérgio faz um balanço: “A vida é um enigma, um mistério, porque tudo que eu quis eu tive. No fim das contas, tudo que almejei eu tive na vida: a minha esposa, bons empregos. Eu queria aparecer na televisão e apareci na Globo no programa da Ana Maria Braga por causa de uma matéria sobre a Dasdoida, também apareci na tela cheia durante uma manifestação da ONG Educafro no Vale do Anhangabaú”. ***

“Meu problema é álcool e droga” Júlio César chegou falante à oficina. Enquanto os outros usuários separavam as tintas para estampar o logo da Dasdoida nas roupas, ele falava sobre a sua camiseta nova: “Muito da hora essa blusa, né?! Tem este cara meio punk tocando bateria, é muito legal”. A empolgação, no

entanto, foi embora depois que ele percebeu uma pessoa estranha no ambiente. Ressabiado, perguntou: “Você é psicóloga?”. Respondi que era estudante de jornalismo e, logo, ele mudou de postura. Mais solto, Júlio falou que adoraria contar a sua história, mas não na frente de todos. A única coisa que deixou escapar foi: “Meu problema é álcool e droga”. Ansioso, com papel e caneta na mão, ele anotou o meu celular e prometeu que ligaria para marcarmos uma entrevista. No dia seguinte, ele ligou argumentando que tinha muitas músicas de sucesso e, portanto, só daria uma entrevista mediante um pagamento de R$ 300,00. Tentei explicar por que não poderia aceitar a sua proposta, mas ele desligou o telefone. Passados alguns minutos, ele retornou e disse: “Tudo bem, eu achei você legal e vou te contar a minha vida sem cobrar nada”. No dia e horário combinado, nos encontramos. Júlio trouxe uma pasta com todas as suas relíquias: mais de 50 composições. Ele afirma que pode fazer uma música dark em apenas 20 segundos. São folhas e mais folhas escritas à mão e repletas de palavras como sangue, morte e cemitério. Desde que começou o tratamento contra a dependência química no CAPS Itapeva, há dois anos, ele já gravou 10 CDs. Segundo ele, todos já estão esgotados. “Eu ofereço nas ruas e deixo em lojas. Tudo que eu produzo é vendido”. A produção artística é incentivada pelas psicólogas e pelos colegas do CAPS. A música funciona como uma válvula de escape; o seu maior sucesso, Góticos bebem sangue, fala sobre o universo gótico, mas também aborda um assunto muito caro para ele, o álcool. Júlio deu uma palhinha: “Góticos bebem sangue, túmulo cheio de barata muito grande, crânio com cabelos e dentes. Eu dormi num cemitério com um túmulo legal... vinho é muito da hora, tequila com sal, uma bebida muito da hora, sou apaixonado por garotas góticas”. Júlio conta que já foi internado em um hospital psiquiátrico, mas não entra em detalhes. “Eles me internaram só por causa de uma dose de 51 [cachaça]”, diz. A lembrança o deixa revoltado e ele promete que um dia ainda processará o médico que lhe internou. Hoje, aos 29 anos, afirma que está bem: “Por incrível que parece, eu parei, agora, eu só fumo um cigarrinho para substituir. Eu estou me sentido curado”. A família, no entanto, não está tão tranquila e ele reclama: “Eu gostava de beber mesmo, beber bebida boa, só na curtição. Mas ago-


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ra me encurralaram, eu não posso mais beber nem usar droga. Eu acho o seguinte: não existe doença nenhuma, mas eles me deixam sem fazer nada e isso me atrapalha”. Durante quatorze anos, Júlio tomou “as melhores bebidas” sem restrições. Hoje, entretanto, se esforça para ficar longe dos vícios e a música é a sua ocupação favorita: escreve as letras, cria os ritmos e elabora o figurino dos clipes que publica no site de vídeos, YouTube. Para assistir, acesse: www.youtube.com/user/glaubermundo.

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CAPÍTULO 3

Jacaré Gularstone

Santos: uma revolução na saúde mental Wellington da Silva


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No ano de 1989 a cidade de Santos, que fica no litoral paulista, ganhou notoriedade ao se tornar a primeira do país a eliminar os manicômios e estabelecer uma política pública claramente antimanicomial. No dia três de maio daquele ano, a Casa de Saúde Anchieta foi vistoriada pela prefeitura e por representantes da sociedade civil. A imprensa acompanhou a visita de perto, como lembra o psiquiatra Roberto Tykanori: “Quando a gente entrou no hospital, vários jornalistas estavam transmitindo a visita ao vivo. Eles conversavam com os pacientes e descreviam a situação do hospital para os ouvintes”. A curiosidade e o interesse público pela situação do manicômio foram fomentados por uma série de denúncias publicadas no jornal A Tribuna e no Diário Oficial do Município. Os maus-tratos eram tão evidentes, que a população se referia ao local como “Casa dos Horrores”. Alguns meses antes da vistoria foram registradas três mortes dentro da instituição. Em fevereiro, um paciente foi espancado até a morte e, logo depois, dois se suicidaram. Durante a visita, todos puderam confirmar as atrocidades praticadas ali dentro. A Casa de Saúde Anchieta estava superlotada, 531 pessoas dividiam 280 leitos, por isso, muitos pacientes dormiam em colchonetes, que eram chamados de leito-chão. Além disso, existiam 12 celas fortes, também conhecidas como chiqueirinhos, pois não possuíam banheiro nem ventilação. “Tinha muita gente machucada, com infecções e diarreia. Quando você vê as pessoas no meio das suas próprias fezes, você pensa: Isso não é tratamento”, afirma Tykanori. Levando em conta a gravidade da situação, a prefeita Telma de Souza (PT) decretou uma intervenção de 120 dias e nomeou o médico Roberto Tykanori como interventor. Os proprietários do hospital argumentaram que as modificações e a presença de estranhos acar-


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retariam prejuízos para os pacientes, mas a história mostrou exatamente o contrário. Em apenas sete dias de intervenção foram feitos diversos melhoramentos: os leitos-chão foram extintos, grades foram retiradas, o eletrochoque foi proibido, chuveiros com água quente foram instalados, a equipe de funcionários foi quadruplicada e uma comissão de alta foi criada. Porém as mudanças não pararam por aí. Em entrevista à extinta TV Manchete, o então Secretário de Saúde, David Capistrano Filho, declarou que sua administração não faria um manicômio “bonzinho”, mas proporia uma nova forma de atenção em saúde mental. Desde o começo, a intenção da gestão municipal era fechar o manicômio e criar uma rede de serviços substitutivos e regionalizados. Em um vídeo institucional da época, o Secretário de Saúde explica: “Quando nós fizemos, em Santos, essa semana de liberdade [primeira semana de intervenção], também fizemos o ensaio de uma outra tática que é: nos instalarmos na cidadela deste modelo ultrapassado e perverso, e destruí-lo por dentro. E, a partir daí, iniciar a construção de um outro tipo de equipamento”. O modelo italiano foi a grande fonte de inspiração para a experiência santista. O interventor, inclusive, já havia trabalhado como voluntário na cidade de Trieste, onde percebeu que era possível tratar sem trancar. Segundo ele, dentro dos hospitais psiquiátricos o paciente fica excluído da trama social e também perde as suas potencialidades. No dia 10 de maio, no entanto, os planos foram interrompidos por uma liminar e, assim que os proprietários reassumiram a gestão do hospital, as visitas diárias foram proibidas e os métodos violentos voltaram a ser praticados. A prefeitura recorreu da sentença e depois de uma semana, no dia 17, a equipe de intervenção retornou e foi recebida com aplausos pelos internados. A demonstração de alegria e afeto foi muito estimulante para o trabalho da equipe e a melhora dos pacientes. Para Tykanori, a construção de uma afetividade coletiva foi fundamental para que as transformações pudessem acontecer. O trabalho da comissão de alta, por exemplo, só foi possível graças ao diálogo, pois muitos pacientes tinham medo de sair e voltar para casa. Aliás, o hospital estava superlotado porque indivíduos que já po-

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deriam ter tido alta permaneciam, deliberadamente, na instituição só para que o repasse do governo fosse mantido. Naquela época, o Anchieta tinha uma receita de 300 mil cruzados e uma folha de pagamento de 12 mil. Apenas 18 funcionários eram responsáveis por todos os internados, enquanto o Ministério da Saúde exigia pelo menos 120 contratados. “Eles ganhavam muito dinheiro e todo o lucro estava ligado aos maus-tratos. Se você der um tratamento mais decente, a margem de lucro é menor”, revelou o interventor em entrevista recente. Quando a intervenção completou 100 dias, um grande baile foi organizado para comemorar a data. Todos os pacientes, médicos e familiares vestiram máscaras de carnaval e brincaram em frente ao Paço Municipal. A escolha do local foi intencional, pois assim a população poderia desconstruir os mitos sobre a loucura e os pacientes também poderiam retomar a sua relação com a cidade. Depois de limpar o hospital e deixá-lo habitável, o passo seguinte era reabilitar os pacientes e dar condições para que eles pudessem voltar ao convívio social. Para aproximá-los da realidade, as alas foram divididas em cinco áreas diferentes, cada uma delas correspondendo a uma região da cidade. Além disso, atividades como andar de ônibus, conhecer o dinheiro em circulação e encontrar os familiares, tornaram-se parte da rotina dos pacientes. O primeiro setor a deixar o Anchieta foi aquele que correspondia à zona noroeste da cidade. Em setembro de 1989, os pacientes oriundos dessa região passaram a ser tratados no Núcleo de Atenção Psicossocial recém-inaugurado, o NAPS I. A zona noroeste foi eleita como prioridade, por ser a região mais carente e ter uma demanda de internação maior. Diferente do CAPS Itapeva, descrito no capítulo anterior, os NAPS sempre funcionaram 24 horas, sete dias por semana. “O CAPS Itapeva foi uma experiência isolada, uma ilha. Quando um NAPS vai a campo, ele assume uma função pública de responsabilidade sobre determinado território e sua população. Se as pessoas daquele bairro estavam internadas no Anchieta, elas teriam que ser acolhidas de alguma forma no NAPS. Por isso, ele já nasce como 24 horas”, afirma Tykanori. De acordo com a disponibilidade de recursos e com o nível de autonomia dos pacientes, outras alas foram fechadas e transferidas


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para unidades no território. Os indivíduos institucionalizados, ou que não tinham família, permaneceram no hospital até 1993, quando foi inaugurado o lar abrigado “República Manoel da Silva Neto”. O lar abrigado funcionava como moradia e espaço de atenção para até 14 usuários. Atualmente, o serviço é chamado de Seção Lar Abrigo (Selab) e recebe 20 usuários. O desmonte do manicômio prosseguiu no mandato seguinte, quando David Capistrano Filho (PT) foi eleito prefeito. Durante seu governo a rede substitutiva foi ampliada e cada uma das cinco regiões da cidade passou a ter o seu NAPS de referência. “Um sistema que deixa de usar muros de contenção precisa ter pessoas de continência. Não se trata só de minimizar sintomas e calar sintomas, mas sim criar uma rede de sustentação para que, de fato, a pessoa retorne à circulação, produção e ao jogo da sociedade”, ressalta o interventor. Em 1997, no entanto, o projeto antimanicomial perdeu força. O novo prefeito, Beto Mansur (PP), reduziu os investimentos em oficinas profissionais/culturais e a equipe de saúde mental foi totalmente substituída. Ao mesmo tempo, uma Comissão Especial de Vereadores foi criada para investigar o “empreguismo” no Anchieta e o interventor Roberto Tykanori foi um dos acusados. Segundo dados do Diário Oficial, pesavam sobre ele as acusações de conceder gratificações para enfermeiros e auxiliares que tinham desempenho diferenciado e a contratação de psicólogos e psiquiatras para além dos quadros do Anchieta. Em resposta a essas denúncias, uma carta de apoio à Tykanori, com mais de 500 assinaturas, foi publicada no Jornal da Orla do dia 13 de setembro de 1997. “Cidade de Santos, maio de 1989: a intervenção na Casa de Saúde Anchieta rompe com a violência e a segregação das pessoas com transtornos mentais pelo modelo asilar. A data marca o início do projeto de saúde mental da Secretaria de Saúde reconhecido nacional e internacionalmente pelo atendimento público digno, humano e efetivo. A coordenação do Dr. Roberto Tykanori Kinoshita, decisiva nesse processo, foi pautada pela ética, garantia de igualdade de direitos e a recusa de exclusão social das pessoas com sofrimento psíquico”. Posteriormente, as denúncias foram retiradas por falta de pro-

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vas, mas a desqualificação sistemática do trabalho realizado durante a intervenção teve consequências negativas sobre o desempenho dos funcionários da saúde mental e o tratamento dos usuários, que ficaram frustrados e desestimulados.

Tam Tam: de perto ninguém é normal

Após retirar as grades, melhorar a qualidade das refeições e tratar os pacientes individualmente sem excesso de medicamentos ou contenções violentas, o interventor percebeu que as pessoas precisavam ser estimuladas. O grau de cronificação e dependência era muito alto, portanto, era fundamental criar projetos que fomentassem o desejo. No dia 1º de setembro de 1989, o artista plástico Renato Di Renzo entrou no Anchieta pela primeira vez. Ele havia sido convidado pelo interventor e pela equipe de saúde mental para desenvolver atividades culturais com os usuários. “O começo do trabalho foi muito tenso, porque eram muitos buracos. Você podia propor pintura, música, teatro, uma série de coisas”, diz ele. Di Renzo não se baseou em nenhum método específico ou predefiniu quais oficinas seriam oferecidas. Pelo contrário, as demandas partiam dos usuários. No começo, a comunicação entre ele e os pacientes era difícil, quase zero, por isso, o trabalho partiu da escuta. “Quando eu entrei lá pela primeira vez, acharam que a minha fala era engraçada, porque eu falava diferente dos médicos. Eu fazia perguntas só para elas [as pessoas] contarem suas estórias. A forma como elas contavam revelava o corpo, os gestos, o toque e tudo isso era trabalhado”. Durante os encontros, todos sentavam em um grande círculo e cada um se apresentava. Algumas pessoas estavam internadas na mesma ala há mais de 20 anos e sequer se conheciam. Depois de todos dizerem seus nomes ou apelidos, Di Renzo colocava um livro no meio da roda. “Eu sempre punha um livro no centro, de preferência com muitas imagens, pinturas e gravuras. Certa vez, eu apresentei um livro da fase cubista do Picasso e quando um deles abriu, falou assim: ‘Pô, esse aqui está internado em qual hospício? ’. Aí, eu perguntei: ‘Por quê? Você acha que ele é louco? ’. E o cara respondeu que também via a cidade e as pessoas daquele jeito”.


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A identificação com artistas renomados era um estímulo e deixava-os mais leves para assumir um novo papel. Aos poucos, os preconceitos associados à loucura foram sendo superados e isso se tornou nítido quando eles escolheram um nome para o grupo. As primeiras sugestões tinham um viés mais religioso, como “Renascer”, porém, depois de muita discussão, o nome aprovado foi Tam Tam. A princípio, eles achavam que a palavra poderia ter um sentido muito depreciativo, mas ao procurarem seu significado no dicionário descobriram que também se referia a um instrumento de percussão africano. “No dia seguinte, eles paravam todo mundo no hospital e perguntavam: ‘Você sabe o que é Tam Tam?’. As pessoas respondiam que era louco e eles sabiam que não era só isso”, conta Di Renzo. A descoberta do significado de uma única palavra teve um impacto enorme, pois era a primeira vez que os pacientes tinham algo para trocar. “Até então, eles só recebiam. Recebiam remédios, maus-tratos e, de repente, estavam dando alguma coisa para os outros”. Em menos de um mês, o grupo já estava colorindo as paredes do NAPS I, que seria inaugurado em breve. “Era uma coisa muito dinâmica, antes as pessoas ficavam num pátio, babando, dormindo, mijadas. Depois todas elas estavam de pé, pintando, produzindo e querendo mais”. Nessa mesma época, foi lançado o Tam Tam Urgente número zero, um jornal escrito e ilustrado pelos próprios usuários. As manchetes falavam sobre as mudanças na gestão do hospital e explicavam os próximos passos da intervenção. Além disso, os pacientes podiam expor sua produção artística e dúvidas. O espaço nas páginas de papel, no entanto, tornou-se pequeno para tantos depoimentos e manifestações. Graças à doação de um pequeno gravador portátil, todos puderam mandar os seus recados em alto e bom som. Uma sala, dentro do próprio hospital, foi forrada com dezenas de caixas de ovos e várias caixas de som foram espalhadas pelos corredores. A Rádio Tam Tam começou a funcionar de maneira improvisada, mas aos poucos ganhou notoriedade para além dos muros do antigo manicômio. A programação interna era dividida entre a leitura de jornais da região, músicas, recados e entrevistas com vizinhos e visitantes. Com o microfone na mão, os “loucutores” – como se autodenominavam – tinham poder para dialogar e mostrar a qualquer um

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o seu modo de enxergar o mundo. Em 1990, a rádio deixou de ser uma exclusividade dos frequentadores do Anchieta e passou a ser transmitida pela Universal AM. Os “loucutores” adotavam nomes artísticos como Bombástico, Ideubranco, Pinel das Caatingas do Nordeste, Marcelo Bruno, Billy Paul e Kátia Flávia. A tônica do programa era o humor, mas os temas importantes não eram deixados de lado. “Fizemos uma entrevista com o Lula, depois que ele perdeu as eleições para o Collor. Ligamos o gravador da Rádio Tam Tam e um dos loucos perguntou: ‘Qual é o calmante que o senhor está tomando?’. Ele respondeu e, no dia seguinte, todos os jornais deram a notícia”, recorda Di Renzo. As transmissões pela Universal AM duraram dois meses. Em seguida, os membros da Tam Tam foram convidados pela Rádio Clube de Santos para ter um programa diário com uma hora de duração. A proposta foi aceita, inclusive, porque a nova emissora tinha uma potência 10 vezes maior que a anterior. Além das gravações no estúdio, a Rádio Tam Tam fazia apresentações ao vivo, como uma peça de teatro. Foram mais de 300 shows pelo Brasil e, no auge, o projeto chegou a ter 12 patrocinadores e todos os participantes ganhavam salário. O sucesso foi tão grande que a Rádio BBC de Londres foi até Santos para entrevistar os usuários. O projeto também foi notícia nos jornais norte-americanos Washington Post e New York Times. Em 1993, o projeto atingiu uma alta complexidade e, por conta disso, foi criada a Associação Projeto Tam Tam. A prefeitura cedeu um espaço para que as atividades fossem ampliadas. O grupo firmou um novo contrato, agora, com a rádio Cacique AM, na época, uma retransmissora da Jovem Pan de São Paulo. A sociedade acolheu aquelas pessoas que durante décadas viveram trancafiadas e excluídas. A rádio recebia mais de 50 ligações por dia. Os ouvintes queriam participar e mandavam piadas e imitações. O lema “de perto ninguém é normal” estava na boca do povo, mas com a troca da gestão municipal as coisas mudaram bastante. Em 1997, quando o prefeito Beto Mansur assumiu o governo, as oficinas de teatro e arte foram extintas e a Rádio Tam Tam saiu do ar. A Associação Projeto Tam Tam ficou sem sede durante seis anos, os trabalhos só foram retomados no final de 2002. Hoje, a associa-


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ção está instalada no foyer do teatro municipal e sua única fonte de renda e manutenção é o Café Teatro Rolidei, espaço onde bandas se apresentam ao vivo nos finais de semana. As atividades da associação continuam tendo um enfoque inclusivo e atendem crianças, jovens, adultos e idosos, deficientes ou não. O intuito de Di Renzo é de que as pessoas construam sonhos e motivações para viver melhor. “Tive momentos belíssimos dentro do Anchieta, de pessoas que estavam há 18 anos lá dentro e conseguiram voltar para casa”. Entre vários casos, para ele, um dos mais marcantes foi a história de Hercílio dos Santos Trindade. “Quando a gente pensou em levar o Hercílio pra casa, chegamos à conclusão de que tínhamos que levar as riquezas dele. O que são essas riquezas? São os quadros, as pinturas, o macramé, tudo que ele tinha feito lá dentro. A gente já esperava que ele não fosse aceito em casa e foi realmente o que aconteceu. Nós fomos visitar a família, compramos comida, levamos sacolas com coca-cola e batemos na porta. A família botou a cara feia achando que nós estávamos devolvendo ele e no portão já fomos levantando as sacolas e falando: ‘A gente veio comer’. Nós entramos e sentamos na mesa, todo mundo comeu junto e a família continuou ressabiada. Quando terminou, a gente falou: ‘Então, a gente vai embora, até logo’. E a família perguntou: ‘Mas vocês não vieram trazer ele?’. A gente respondeu que só tinha ido fazer uma visita e que o parente ainda morava no hospício. No dia seguinte, a mulher [mãe de Hercílio] foi no Anchieta para ver o filho na oficina de teatro. Depois ela convidou a gente para um almoço especial na casa dela. Hoje, o Hercílio vive com a família e nunca mais foi para hospício nenhum”, lembra Di Renzo. ***

“Não tenho vergonha de ser usuário da saúde mental” Nosso combinado era às 10h da manhã na frente do Orquidário da cidade de Santos. Na noite anterior fui dormir um pouco mais tarde, tranquila, pois teria tempo de sobra para me arrumar e chegar até o ponto de encontro. Dormi e depois de algumas horas de sono imaginei que ouvia

um telefone, era um sonho, pensei. Passados cinco minutos, o telefone tocou novamente e, num esforço descomunal, abri os olhos. O barulho parou e minha avó apareceu dizendo: “Bruna, o Wellington ligou avisando que vai encontrar você mais cedo, ele pediu para você chegar lá às 8h”. No instante em que me dei conta de que teria que correr e deixar as cobertas, confesso, fiquei irritada! Lavando o rosto, me questionei: “Meu Deus, eu estou reproduzindo uma lógica excludente e autoritária”. Talvez eu não tenha dito com essas palavras, mas foi o que senti ao notar que estava assumindo uma postura arrogante perante alguém que eu nem conhecia. Fiquei envergonhada e mudei de comportamento, pensei: “Vamos nessa!”. Saí de casa correndo, pois não queria deixá-lo esperando. Cheguei à frente do parque às 7h55, olhei de um lado para o outro e não vi nenhum homem que batesse com a imagem que eu tinha inventado na minha cabeça. Naquele instante lembrei que tínhamos esquecido um pequeno detalhe: combinar um código. Como ele saberia quem eu era e vice-versa? O tempo foi passando e eu olhava sem pudor para todos que andavam pela calçada, homens altos, baixos, cabeludos, carecas e ninguém respondia ao meu olhar indiscreto. Atravessei a rua e sentei no ponto de ônibus, já eram 9h30, e nada. Já estava começando a imaginar que aquele seria o meu primeiro bolo, mas não foi. Na esquina, bem tímido e com um olhar tão curioso quanto o meu, surgiu o meu entrevistado, Wellington da Silva. Ele vestia uma camiseta do Santos Futebol Clube, trazia uma malinha na mão e um fone de ouvido no pescoço. Nos cumprimentamos e ele pediu desculpas pelo atraso. Conversamos por duas longas horas e, entre uma história e outra, ele confessou que antes de pegar o ônibus ficou dando voltas no quarteirão porque estava muito ansioso pela entrevista. “Hoje, eu acordei cedo, tomei banho e contei para os meus colegas que ia falar com uma pessoa. Eu andei pelo bairro para me acalmar, tomei café, liguei o rádio e a televisão e vim”. Depois de ouvir a sua confissão compreendi o peso do nosso encontro e percebi que as minhas horas de sono perdidas eram insignificantes. Wellington, 37 anos, não esconde nenhum detalhe de sua vida. “Não tenho vergonha de ser usuário da saúde mental, pelo contrá-


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rio, eu faço questão de divulgar”. Falando sobre sua trajetória, ele espera ajudar outras pessoas que estejam enfrentando problemas e preconceitos. Aos 16 anos, ele foi levado pelos irmãos para a Casa de Saúde Anchieta. Assim que colocou os pés no hospital, Wellington foi agarrado pelos enfermeiros, que lhe deram uma injeção e deixaramno amarrado à cama durante 15 dias. A família não sabia o que acontecia lá dentro e esperava que a internação o curasse, pois ele estava muito agressivo. “Eu era terrível! Qualquer pessoa que aparecia eu agredia, eu saía na mão com os meus irmãos dentro de casa e quase agredi a minha mãe”. Foram quase dois meses dentro da “Casa dos Horrores”. O dia começava cedo, às 6h da manhã todos tinham que estar fora da cama para tomar café. Na fila para pegar o pão sempre havia bagunça e quem se exaltava um pouco mais era amarrado. Logo após a refeição, era hora de tomar remédio, um ritual que se repetia pelo menos cinco vezes. “Eu perdi as contas de quantos comprimidos a gente tomava, no fim do dia estava todo mundo dopado”, afirma Wellington. Para conter os internados, além do excesso de medicamentos, os enfermeiros e médicos praticavam vários tipos de chantagem. “O médico falava pra mim: ‘Se você vir alguém fugindo ou fazendo coisa errada me avise’. E eu ia avisar, senão eu não conseguia as coisas ali dentro. No manicômio é tudo em troca. A gente tinha que lavar banheiro e arrumar cama para tomar um café e ficar 15 minutos no pátio”. Certa vez, Wellington dedurou um colega que estava tentando fugir, mas, ao invés de receber um agrado, ele levou três socos no estômago. “O cara que queria fugir me bateu, eu não sabia da regra, quem falava para o médico apanhava”. A relação entre os próprios pacientes não era muito amistosa, qualquer coisa era motivo de briga. No pátio superlotado, todos disputavam para sentar no banco e qualquer ponta de cigarro caída no chão era motivo para um duelo de vida ou morte. “Na hora das brigas, os funcionários desciam porrada e sempre levavam alguém de exemplo para tomar choque na cabeça”. Wellington, inclusive, foi mandado para a cela forte algumas vezes. Segundo ele, os enfermeiros o confundiam com um paciente

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indisciplinado. Dentro da cela não havia banheiro e a única fonte de luz era uma pequena abertura onde a comida era entregue. No período em que ficava trancado, perdia a noção das horas e se encolhia com medo da escuridão. Abatido e angustiado, ele queria sair do hospital de qualquer maneira. “Uma vez a minha madrinha foi me visitar e me levou umas frutas e bolachas. Quando acabou o horário de visita, eu grudei no braço dela e queria ir embora”. A tentativa, no entanto, não deu certo. Wellington teve que esperar mais algumas semanas para, finalmente, voltar para casa. “Eu saí porque não aguentava ficar ali, chegava num ponto que eu ficava muito agoniado. Eu enchi tanto os médicos e a minha família, que me deram alta”. Em 1991, após a intervenção no Anchieta e a reestruturação da rede de saúde mental, ele começou um tratamento no NAPS II. Acompanhado de perto por uma equipe de médicos e psicólogos, Wellington descobriu o que era esquizofrenia e passou a tomar os remédios adequados para controlar os sintomas. Hoje em dia, ele acredita que ficou doente porque sua mãe biológica era muito violenta. “A gente não se dava muito bem, ela batia em mim e eu fiquei com problema depois que ela botou uma panela de pressão na minha cabeça”. A relação era tão conturbada, que ele foi “dado” para uma conhecida, que o criou como filho. Depois de vencer todos os traumas da internação e ficar mais estável, ele decidiu trabalhar e qualquer emprego estava valendo: copeiro, ajudante de pedreiro, faxineiro. Na hora da contratação, respondia todas as perguntas, mas não falava nada sobre o tratamento, pois tinha medo de perder a vaga por causa do preconceito. “Eu cheguei a trabalhar num shopping, mas me demitiram quando descobriram que eu era da saúde mental”, lamenta. Durante os meses em que ficou desempregado, Wellington acabou indo morar na rua. “Eu fiquei na rua porque o meu irmão casou, a gente morava junto, e eu tava sem dinheiro. Eu só saí da praça porque um usuário me viu dormindo num banco e avisou o pessoal do NAPS II, que me deu um banho e comida”. Enquanto não tinha condições de alugar uma casa e se manter financeiramente, ele ficou em um abrigo. Diferente dos outros usuários, ele não conseguia ficar parado. “Eu não queria ficar no NAPS encostado, comendo e bebendo, sem


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trabalhar. Pra mim, ficar assim é estar doido”. Ele só sossegou quando conseguiu uma vaga no Projeto Lixo Limpo, uma iniciativa criada pela prefeitura em 1990, que emprega 60 usuários da saúde mental. Os funcionários são responsáveis pela triagem do lixo reciclado, ou seja, a separação entre plástico, papel, vidro e metal. Com o pagamento garantido no fim do mês, ele conseguiu alugar uma casa junto com dois amigos. O problema é que, às vezes, gastava mais do que recebia e ficava no vermelho. “Eu gastava todo meu salário com mulheres, não dava namoro, era só na cama”, revela Wellington, que cansou de compromissos sérios. “Eu amei e já fui traído. Mas chega de relações, eu não quero mais sofrer e passar por tudo de novo”. Uma de suas grandes paixões foi a terapeuta ocupacional do NAPS II. Wellington chegou a mandar cartas de amor para ela, mas depois percebeu que estava confundindo as coisas. “Eu misturei as estações. Agora, a gente é amigo e ela não gosta que toque no assunto, afinal ela é uma profissional. Mas acontece muito das pessoas se apaixonarem por psicóloga”. Wellington conseguiu superar as decepções amorosas, mas administrar o salário e as “saidinhas noturnas” não era uma tarefa fácil. Por isso, a sua psicóloga passou a ajudá-lo no controle das despesas. “Na mão da Andréa, a minha psicóloga, sobra dinheiro. Com o que eu ganho no Lixo Limpo, eu pago o meu aluguel, a luz, a água e ainda sobra”. Atualmente, ele leva uma vida calma. A sua última crise foi em 2009, quando agrediu um frequentador do NAPS II. “Eu não tava legal naquela época e acabei batendo no rapaz. Ele me ameaçou de morte, mas depois ficou tudo tranquilo. Eu dei muito trabalho, mas eu peço, por favor, não desistam de mim”. Para evitar novos conflitos, a direção do serviço determinou que os dois fossem atendidos em dias diferentes. “Hoje, eu tô legal, tomo o meu medicamento, mas a gente sofre muito preconceito. As pessoas olham torto e, aqui em Santos, ainda tem o problema da discriminação. O meu sonho é que um dia a saúde mental possa melhorar”, desabafa. No ônibus, segundo ele, as pessoas lhe reconhecem como um usuário da saúde mental e o desprezam. Ele também não gosta de ser chamado de paciente, pois considera a palavra muito forte e prefere o termo usuário.

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Uma semana após a entrevista, Wellington ligou querendo saber se estava tudo bem comigo e aproveitou para avisar que adoraria contar mais histórias. ***

Acordando Acordando, acordei Eu estava em plena depressão Olhando para o canto na ilusão Desiludido da vida Acabei com a dormência Retornando à minha casa com medo de ladrão Acordando, acordei Como sou portador de sofrimento mental Que toma remédio devido à situação O médico aprecia o controle assimétrico Para reintegrar o cidadão Acordando, acordei Ninguém é louco porque quer Vive com tanta exploração Mesmo pagando suas dívidas O cidadão vira a lei do cão Acordando, acordei Tava louco Jacaré Gularstone José Gonçalo de Araújo, 55 anos, raramente usa o nome que consta em seu registro de identidade. Há mais de vinte anos, ele se apresenta como Jacaré Gularstone. O apelido inusitado foi criado assim que ele saiu da Casa de Saúde Anchieta. “Me deram esse ape-


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lido porque o jacaré vive cercado de mulheres e pela minha garra. O Gular é um sobrenome bonito e stone é, obviamente, pedra e força”, explica jogando charme para todos os lados. Aos nove anos, Jacaré deixou sua terra natal, o Recife. A mudança aconteceu depois que seus pais decidiram se separar: “A minha mãe se separou por causa da bebida, meu pai bebia muito e sempre foi metido a valentão”. Além disso, a situação financeira da família era muito precária. Em busca do sonho de uma vida melhor, mãe e filho aprontaram as malas rumo à cidade de São Paulo. Na capital paulista, sua mãe conseguiu trabalho como empregada doméstica. Jacaré morava com a mãe na casa dos patrões, que lhe davam vários mimos. “Minha mãe sempre trabalhou em casa de estrangeiros, então, eu fui criado com argentino, americano, francês e italiano, com as quatro raças”, afirma. Segundo ele, foi graças ao contato com estrangeiros que apreendeu a falar outros idiomas. Várias vezes, durante a entrevista, Jacaré conversou em inglês ou em uma língua supostamente universal, que mistura espanhol, francês e italiano em uma única frase. “Welcome to my house, mademoiselle”, diz ele, dando as boas vindas. Um argentino chegou a convidá-lo para viver e estudar na Suíça, mas sua mãe não gostou da ideia. “A minha mãe achou perigoso eu ir até a Suíça. Você sabe, estrangeiro gosta de explorar brasileiro, principalmente se for negro”. Depois de recusarem a proposta, os dois mudaram de casa mais uma vez e foram para Santos junto com novos patrões. Ainda adolescente, após concluir o ensino fundamental, Jacaré começou a trabalhar. Foi estivador, pintor de parede, faxineiro e nas horas vagas cantava nos bares em troca de um copo de cerveja. Ele lembra que puxou o gosto musical do pai: “O negócio do meu pai era tocar forró. Ele sempre gostou muito do Luiz Gonzaga e do Dominguinhos”. Em 1973, eles se reencontraram. Seu pai veio fazer uma visita rápida, mas acabou ficando. “Houve uma perseguição do meu pai com minha mãe. Ele queria, devidamente, que eu ficasse com ele, mas minha mãe não deixou. Ela achava que ele era uma má influência”. Jacaré foi um garoto arteiro, mas nunca tinha feito nada grave, pois sua mãe era linha dura. “Ela vivia falando: ‘Eu não vou lhe criar

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para você se tornar um bandido mais tarde’”. As coisas, no entanto, começaram a desandar quando ele cismou que a mãe estava sendo maltratada. “A patroa da minha mãe, Dona Eliane, era uma pessoa que sempre discriminou os negros, para ela negro era macaco. A minha mãe morou na casa dela um tempo e foi morrendo de desgosto porque era muito humilhada, chamavam a minha mãe de negra imunda, negra suja”. Tomado pela raiva, ele foi até a casa da patroa e atirou uma pedra. Por causa desse episódio, acabou sendo preso e, posteriormente, transferido para o Anchieta. O delegado alegou que Jacaré deveria se tratar, pois a perseguição à Eliane era descabida. “Quando eles me pegaram, o delegado falou: ‘Leva para o Anchieta’. Aí eu comecei a me debater dentro do carro da polícia e me jogaram lá em 1987”, conta Jacaré. As formas bárbaras de contenção ficaram guardadas em sua memória. “O Anchieta era um lugar desumano, eles davam banho de mangueira nos pacientes, chute, pontapé, gravata. Eu fiquei no quarto forte e falavam que, se eu fizesse as necessidades ali dentro, eu ia tomar choque”. Foram dois anos dentro do manicômio e ele só recebeu alta quando a prefeitura deu início ao processo de intervenção. Naquela época, ele começou a participar de todas as atividades e assembleias. “Lá dentro, eu fazia política e abria a mente das pessoas para a luta antimanicomial”, diz ele, estufando o peito. Além de se tornar uma liderança entre os usuários, Jacaré também ficou famoso por suas apresentações musicais nos programas da rádio Tam Tam. A música passou a ter uma função terapêutica em sua vida. O médico do NAPS I, serviço que acabara de ser inaugurado, explicou que Jacaré tinha um transtorno delirante persistente ou paranoia e recomendou uma série de remédios, entre eles, cantar. “O meu tratamento é mais um controle, para eu ter mais tranquilidade, e cantar me ajuda. As minhas letras são politizadas e críticas. Elas falam do humano até o político”, esclarece. Ele não economiza adjetivos para descrever a sua carreira artística e afirma que já participou de vários programas de calouros como o Clube do Bolinha, que era exibido pela Rede Bandeirantes de Televisão, e o Programa Silvio Santos. Cheio de orgulho, abriu uma


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gaveta e exibiu a sua carteirinha da Ordem dos Músicos do Brasil. Quando não está fazendo shows, Jacaré milita. Hoje, é presidente de uma associação de usuários, familiares e profissionais da saúde mental chamada Franco Rotelli. “Eu participo das conferências municipal, estadual e federal de saúde. Estou em todos os encontros da luta antimanicomial e já sou conhecido no Brasil inteiro”. Em 2008, chegou a anunciar sua candidatura a vereador pelo PMDB, mas acabou desistindo devido à burocracia. “Eu estava muito tenso, faltavam uns documentos do imposto de renda e eu terminei desistindo. O próprio partido também não estava me incentivando”, lamenta Jacaré, que promete uma nova tentativa daqui a dois anos. Desde que saiu do Anchieta, ele mora sozinho em uma casinha de alvenaria sem banheiro nem cozinha. O terreno pertencia ao seu pai, que já faleceu, e está repleto de entulho; mesmo assim, Jacaré faz questão de chamá-lo de chácara. Um político local lhe prometeu que ajudaria na construção de um banheiro e algumas paredes. Mas, enquanto isso não acontece, ele conta com o apoio de uma “comadre”, que mora na vizinhança e lhe empresta o chuveiro por alguns minutos. Atualmente, Jacaré recebe uma aposentadoria e o auxílio-reabilitação do programa De volta pra casa. Nos meses em que faz shows sua renda aumenta, segundo ele, o cachê de sua banda é de R$ 4 mil. No último dia 20 de maio, inclusive, ele fez uma apresentação para 350 pessoas no Teatro Guarany, o mais antigo da cidade. Jacaré tocou as canções do seu primeiro CD, Paz e Amor, que foi lançado em 2007. Para o futuro, elegeu duas metas: aprender a mandar e-mails e gravar um novo disco. O dinheiro para a gravação já está garantido, pois Jacaré foi um dos vencedores do Prêmio Cultural Loucos pela Diversidade 2009. O concurso, promovido pelos ministérios da Cultura e da Saúde, selecionou 55 inscritos que terão seus projetos financiados.

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CAPĂ?TULO 4

Luciano Lira

Campinas: uma parceria que deu certo Silvana Borges

Silvio Burza


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A cidade de Campinas é modelo na saúde mental desde 1996, quando seu plano de ação foi premiado pela OMS. O município, que fica a 90 quilômetros da capital do Estado, chamou a atenção do mundo ao consolidar uma ampla rede de serviços substitutivos e reduzir o número de internações hospitalares. A construção do exemplo campineiro foi complexa e envolveu alguns elementos muito particulares, como a distritalização e a cogestão. Atualmente, a administração da saúde mental é resultado de convênio entre poder público e o Serviço de Saúde Dr.Cândido Ferreira. Tal parceria foi regulamentada pela lei municipal n° 6.215 de maio de 1990. Hoje, o município conta com uma grande variedade de equipamentos. São: seis CAPS III, que disponibilizam ao todo 48 leitos, dois CAPS-i e dois CAPSad. Também integram a rede de cuidados, 11 centros de convivência e arte, 38 residências terapêuticas, com aproximadamente 180 ex-moradores de hospitais psiquiátricos, e 13 oficinas de trabalho.

Uma mudança de perspectiva O contexto anterior ao convênio era preocupante. Na época, dentro da lógica manicomial, o Sanatório Dr.Cândido Ferreira enfrentava sérias dificuldades financeiras. “As pessoas andavam nuas pelo pátio, não havia recurso suficiente para garantir comida a todos”, lembra Eduardo Camargo Bueno, psicólogo e atual apoiador5 de saúde mental. 5 O cargo de apoiador é equivalente ao de coordenador. Desde agosto de 2009, a Coordenação de Saúde Mental de Campinas é divida entre dois profissionais: um psicólogo e um psiquiatra.


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O histórico desse hospital, no entanto, era especial. Ele não tinha um dono e a finalidade de seus criadores não era o lucro. A instituição foi fundada depois que o jornal O Estado de S. Paulo publicou, em 1917, uma denúncia sobre maus-tratos contra os doentes mentais que viviam em Campinas. Naquele tempo, as pessoas que vagavam pelas ruas e precisavam de algum cuidado psiquiátrico eram presas nos porões da cadeia pública, até que surgisse uma vaga no único hospital do Estado, o Juqueri. A notícia sensibilizou um grupo de filantropos da região, que decidiram arrecadar fundos para criar um hospital onde os doentes mentais da cidade pudessem ser acolhidos e tratados. Foram mais de seis anos até que, em 1924, o Hospício de Dementes de Campinas fosse inaugurado. Décadas se passaram e a instituição mudou de nome e perfil. Aos poucos, a intenção de fazer o bem foi distorcida por práticas violentas. Em 1990, praticamente falido, o hospital decidiu pedir socorro à Secretaria Municipal de Saúde. As partes chegaram a um acordo, que resultou em um novo modelo de assistência. Na reestruturação, o sanatório passou a ser chamado de Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira e suas atribuições foram alteradas, alas foram fechadas e ao invés de internar, seu enfoque passou a ser a reabilitação dos internos para o convívio social e a desospitalização.

Singularidades Depois que o convênio foi assinado, o Serviço de Saúde Dr.Cândido Ferreira passou a receber verbas da Secretária de Saúde para investir em novos serviços e equipamentos. Em contrapartida, alguns parâmetros deveriam ser cumpridos. O apoiador de saúde mental faz questão de destacar: “O fundamental é que o poder público seja um bom contratante de serviços, tanto na questão financeira quanto no que ele espera do serviço”. Os dez CAPS em funcionamento são da prefeitura, mas quatro são geridos diretamente pelo Cândido Ferreira. O compartilhamento na gestão dos centros, entretanto, origina dois modos diferentes de cuidar.

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O principal indicador das diferenças entre as duas formas de gestão é o fato dos CAPS do Cândido possuírem, como recurso para as situações de crise, um Núcleo de Retaguarda. Já na prefeitura, os casos mais graves são tratados nos próprios CAPS III, que dispõem de oito leitos, cada um, para o cuidado intensivo. Eduardo Camargo Bueno afirma que o Núcleo de Retaguarda é a última unidade psiquiátrica fora de hospital geral na cidade – todos os hospitais psiquiátricos já foram fechados. Para ele, o ideal é que, com o passar do tempo, as internações sejam feitas somente nos CAPS III ou nos hospitais gerais. Enquanto essa transferência não é concluída, os leitos do Núcleo são controlados pela central de regulação de vagas do município. Em 1980, Campinas possuía cerca de 1000 leitos psiquiátricos. Hoje, o número caiu para 72 leitos. Além da redução, a metade dos leitos existentes está localizada no território, ou seja, o usuário não perde o contato com sua família e a internação é de curta permanência. Outro ponto que faz da cidade um caso ímpar é a distritalização da saúde. São cinco distritos: Sul, Leste, Norte, Noroeste e Sudoeste. “A descentralização promove uma maior proximidade da gestão em determinado território”, diz o apoiador, que julga a diversidade fundamental nos projetos de saúde mental. O emaranhado de serviços e gestores causa um estranhamento e confusão para quem olha de fora, mas são as ramificações que permitem uma aproximação maior entre os serviços e as pessoas que dele necessitam. A demanda e a cobrança da população local foram determinantes, por exemplo, para que dois CAPS III fossem construídos no distrito Sudoeste, o mais pobre e vulnerável. O modelo compartilhado funciona bem, o entrosamento entre o Serviço de Saúde Dr.Cândido Ferreira e o município é satisfatório, mas o ideal seria uma gestão autônoma. “O Estado brasileiro é incompetente para oferecer saúde de qualidade, a estrutura é incompetente para fazer compras, contratações e capacitação. É lento demais e por isso tantas cidades procuram alternativas. Aqui, nós temos um espaço de gestão compartilhada. Eu acho que essa não é a saída, mas é a saída possível; já que o Estado não tem conseguido se aprimorar como executor de políticas públicas”, confessa o apoiador.


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O Cândido Depois de trinta minutos de ônibus e cinco de caminhada, foi possível avistar um parque ao longe. As letras feitas de mosaico avisavam: Bem-vindo ao Cândido Ferreira. A sede do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira fica em Sousas, um reduto calmo e arborizado, localizado a 11 quilômetros do centro de Campinas. Para chegar ao edifício, que é tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Artístico e Cultural da cidade, é necessário atravessar uma pequena ponte. No passado, o braço do rio Atibaia representava um fosso entre os doentes e o restante da população. Hoje, não é mais assim, qualquer um pode visitar a instituição. Os portões e grades foram retirados e o acesso é livre. No local funciona o Núcleo de Oficinas de Trabalho (NOT). O projeto tem como objetivo atender portadores de transtorno mental de baixa renda ou desempregados. O NOT oferece 13 oficinas diferentes: gráfica, reciclagem de papel, vitrais/vitral plano, mosaico, vela, marcenaria, serralheria, construção civil, ladrilho hidráulico, culinária, eventos/nutrição e agricultura. A laborterapia proposta pelo Cândido, no entanto, é bem diferente do trabalho forçado ao qual os internos de hospitais psiquiátricos eram submetidos. No passado, os pacientes eram obrigados a cozinhar, lavar banheiros e produzir utensílios a fim de diminuir os gastos com a manutenção e aumentar os lucros. As horas trabalhadas eram recompensadas com um maço de cigarros ou porções de comida. Atualmente, o “labor” deixou de ser uma forma de controle e sujeição. O usuário escolhe o ofício que lhe agrada e o processo de aprendizagem e produção são desenvolvidos individualmente, respeitando as características pessoais de cada um. O projeto atende a 290 pessoas, entre 18 e 65 anos, que têm um quadro psiquiátrico estável e fazem acompanhamento no próprio município. As oficinas funcionam como uma cooperativa e os usuários participam de todas as etapas: produção, venda e divisão dos ganhos. Todos recebem uma bolsa-oficina referente à venda dos produtos. O valor é determinado de acordo com a assiduidade, pontualidade, responsabilidade e relação com o grupo. Os itens produzidos são comercializados no Armazém das Oficinas, uma loja gerenciada pelo

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NOT e pela Associação Cornélia Vlieg, que é formada por pacientes, familiares e trabalhadores da saúde mental. Além das atividades que visam à inclusão social e econômica, o Cândido Ferreira também oferece o serviço de atenção à crise. Os casos mais graves registrados na cidade são encaminhados para o Núcleo de Retaguarda, onde a pessoa permanece até que a situação se estabilize. No fim da tarde, o silêncio foi interrompido pela sirene do SAMU. O motorista e a socorrista tentavam acalmar uma mulher que gritava e chorava ao mesmo tempo. A movimentação chamou a atenção dos usuários que estavam, temporariamente, internados. Um deles chegou perto da ambulância e falou: “Eu vim numa dessas há uma semana”. Os gritos da mulher foram diminuindo conforme ela avançava pelo corredor. A socorrista do SAMU voltou para o veículo e fechou a porta dizendo: “Agora, vamos para a próxima”. O motorista deu a partida e os pacientes que espreitavam deram tchau. Quanto tempo aquela moça ficou internada, não se sabe ao certo, mas as internações duram em média 10 dias.

Maluco Beleza: um programa para quem tem a cabeça no lugar O programa Maluco Beleza é resultado de uma parceria entre o Serviço de Saúde Cândido Ferreira e a Rádio Educativa de Campinas. O projeto foi inspirado na rádio Tam Tam de Santos e entrou no ar pela primeira vez no dia 10 de maio de 2002. O objetivo da empreitada era diminuir o preconceito em relação à loucura e aos portadores de transtorno mental. Segundo o jornalista responsável pelo programa, Reginaldo Moreira, a ideia era fazer uma rádio revista com um viés alegre, sem reforçar o sofrimento e os estereótipos. O começo foi difícil, pois o grupo tinha apenas cinco pessoas e as identidades ainda estavam baseadas no prontuário médico. As apresentações pessoais eram restritas ao diagnóstico: “Meu nome é Luciano e sou esquizofrênico”. Hoje, os 22 participantes se identificam de uma maneira bem diferente, dando ênfase às suas habilidades e aprendizados.


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Nas primeiras gravações, o público não entendia que a proposta era a inclusão social por meio da comunicação. “Os ouvintes da rádio não gostavam muito e alguns ligavam para reclamar: ‘Como vocês contratam esse tipo de locutor, eles não sabem nem falar!’”, recorda Reginaldo. Os quesitos técnicos eram os mais relevantes para os ouvintes e, muitas vezes, a dificuldade de falar ou as opiniões inusitadas eram interpretadas como piada, como observa Reginaldo: “As pessoas achavam que era um programa de humor e não levavam muito a sério. Teve uma época que eles [os loucutores] até brincavam: ‘Aqui é o programa Maluco Beleza, mas aqui tem louco de verdade, viu?!”’. Durante os trinta minutos de programação são abordados temas como: dependência química, qualidade de vida, meio ambiente, violência, preconceito e inclusão social. Os usuários têm espaço para manifestar suas opiniões sobre o assunto do dia. Além disso, existe um quadro fixo chamado Depoimento, no qual são narradas as experiências de vida e os desafios dos pacientes da saúde mental. Atualmente, o programa é gravado e checado pela Rádio Educativa. Antes, no entanto, o filtro era menor. Os debates e as entrevistas entravam no ar sem nenhum controle editorial. Mas a dinâmica mudou após um especial sobre o assassinato do ex-prefeito de Campinas, Antônio da Costa Santos, mais conhecido como Toninho do PT. Na época, o programa era reprisado às 22h, mas devido ao tema polêmico a segunda exibição foi vetada. A censura decepcionou muito o grupo que produziu e gravou o especial. Reginaldo Moreira tentou explicar a situação e chegou a perguntar se eles gostariam de manter a parceria ou não. O desapontamento, no entanto, foi superado e os usuários optaram por manter o convênio, que continua até hoje. Desde 2008, as gravações passaram a ser feitas em um estúdio próprio, pois o Maluco Beleza foi reconhecido como um Ponto de Cultura pelo Ministério da Cultura. Na casa, que fica dentro da sede do Cândido Ferreira, foi instalada uma sala de inclusão digital e, em breve, será inaugurada uma ilha de edição de vídeo. Com recursos próprios, o projeto ampliou suas atividades e criou a rádio Maluco Beleza on-line. Desta vez, a iniciativa inclui qualquer pessoa interessada, que esteja em tratamento ou não. A emis-

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sora foi inaugurada no dia 1° de setembro de 2010 e conta com 15 horas de programação diária. A grade é composta por 23 programas, todos criados individualmente e sem restrições. Durante a última reunião antes da estreia na internet, todos os participantes estavam muito empolgados. Quem ainda não tinha familiaridade com os botões e com o microfone observava atentamente os colegas, que já têm mais de oito anos de experiência. As músicas, os entrevistados e as vinhetas eram motivos de preocupação, pois tudo tinha que estar perfeito. A função terapêutica da comunicação se expressa nos atos cotidianos. Segundo o jornalista e coordenador do projeto, os usuários, que eram muito fechados, passaram a se colocar em público sem medo. A oportunidade de trocar mensagens e a escuta da sociedade deram um novo sentido para a vida dessas pessoas, até então, ignoradas. Para ouvir os programas da rádio on-line, basta entrar no site www.candido.org.br. ***

A vida começa depois dos 60 Dentro do hospital psiquiátrico, a tarefa do dia era transformar uma pilha de colchões velhos em travesseiros. As mãos de Silvio Burza se acostumaram a picar os pedaços de espuma. A reciclagem duvidosa fazia parte do seu tratamento, os médicos argumentavam que a atividade era terapêutica. Hoje, aos 68 anos, Silvio questiona esse tipo de laborterapia, mas, naquela época, ele não tinha condição de fazer muitas críticas. “Eu fui me acomodando, porque a minha situação familiar aqui fora não estava bem, então, para mim era interessante ficar no hospital”. A ex-mulher e os três filhos não sabiam lidar com as atitudes provocadas pela bipolaridade. Os primeiros sinais do transtorno bipolar apareceram aos 39 anos. A vida de Silvio passou a ser dividida em dois polos: depressão e euforia. “Tinha dia em que eu deitava na cama e chorava o dia inteiro, mas quando estava no ‘pico alto’ ficava muito alegre e falava demais, como uma metralhadora” – a OMS estima que 1% da


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população mundial seja acometida pelo problema. Em uma das fases de “pico alto”, ele e a ex-mulher foram até uma policlínica. Chegando lá, enquanto a esposa tentava interná-lo, ele foi ao consultório do dentista plantonista e pediu: — O senhor está desocupado? Eu preciso extrair um dente. Surpreendentemente, o dentista acatou o pedido e, após alguns minutos, Silvio saiu gemendo com uma gaze na boca. “A minha ex-esposa me agarrou pelo braço e falou: ‘Olha aí, tem que internar, ele tirou um dente sem precisar. É melhor arrumar uma vaga para ele e outra para o dentista’”. Até hoje, Silvio não entende por que solicitou a extração, segundo ele, o ato impensado foi uma consequência do transtorno. Foram 14 anos de internações em sete hospitais diferentes. Toda vez que recebia alta, Silvio tinha a esperança de nunca mais voltar, mas a família já deixava o hospital avisado: “Pode deixar a cama arrumada porque na semana que vem ele está aqui”. Ele passava uma semana em casa e depois retornava para a instituição de origem ou era transferido. Silvio classifica todos os lugares por onde passou como manicômios, no pior sentido da palavra. Ele chegou a tomar o eletrochoque ou eletroconvulsoterapia, técnica que consiste em uma estimulação elétrica do cérebro com a finalidade de induzir uma convulsão. Durante muitos anos, essa prática foi usada como castigo dentro dos hospitais e muitos pacientes submetidos à corrente elétrica sem anestesia sofriam fraturas graves. O barulho do choque e as dores de cabeça eram terríveis, Silvio jura que não deseja a experiência nem para os seus inimigos. Além dos maus-tratos físicos, a falta de respeito se manifestava em ações triviais. “O trato de antigamente era assim: vinham me avisar que tinha ligação para mim. Eu pensava: puxa que legal, mas aí respondiam que tinha sido há dois meses e não lembravam mais quem era”, lamenta. Em suas idas e vindas, Silvio conheceu muitas pessoas. Outros pacientes também migravam como ele e era muito comum encontrar velhos companheiros em novas alas. A adaptação era rápida, pois a rotina e o tratamento das instituições eram muito semelhantes. Ele não precisava fazer escolhas, já que tudo estava pré-determinado: a hora do remédio, do banho, de comer, de tomar sol, de receber visitas e de fechar os olhos para dormir. No dia em que o médico do Hospital Tibiriçá, em processo desa-

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tivação, lhe avisou que era preciso se preparar para sair, Silvio se desesperou e disse: “Doutor, mas como eu vou encarar a vida lá fora?”. O psiquiatra propôs a ele que trabalhasse em uma cantina. A ideia, no entanto, lhe pareceu absurda. “Eu, tomando conta de uma cantina? Não tenho condições, eu acho que o senhor está mais louco do que eu”. O desafio estava posto e Silvio concluiu: “Eu preciso sair da minha redoma de vidro”. Depois de fazer a mala e transpor o portão do manicômio, ele deu início a um novo tratamento no Serviço de Saúde Dr.Cândido Ferreira. Além do atendimento clínico com psicólogos e psiquiatras, ele participava das oficinas de culinária e fazia os salgados que eram vendidos aos visitantes. Especialistas e leigos que visitavam as oficinas ficavam admirados ao notar que portadores de transtorno mental estavam usando facas como material de trabalho. Envolvido, Silvio fazia questão de explicar que todos os participantes eram acompanhados por um médico. “A pessoa em crise não entra direto na oficina de culinária, que precisa usar faca para cortar os alimentos, é um processo, um degrau de cada vez, até ela ficar bem preparada”, dizia ele. A medicação correta e a mente ocupada fizeram com que as recaídas diminuíssem. O exercício mecânico de picar espuma velha deu lugar a um trabalho prazeroso. “Quando você chega na oficina é algo maravilhoso e todo mundo está alegre porque faz um trabalho, toma o remédio e não sente tanto”, afirma Silvio. Em 2002, ele começou a trabalhar como atendente no café do Armazém das Oficinas, uma loja do Cândido e da Associação Cornélia Vlieg que fica no centro de Campinas. Silvio tira o cafezinho, serve os salgados e doces feitos por seus colegas e bate um papo com os clientes. Nos finais de semana e feriados, ele sente falta do movimento da loja: “Quando é feriado ou domingo, eu fico em casa e tenho a impressão de que a cama me puxa, por isso ter um trabalho é muito bom”. Recentemente, no dia 12 de junho 2010, Silvio ganhou mais um motivo para comemorar. “Hoje, estou feliz da vida porque eu tenho um segundo casamento. Eu me casei com uma jovem de 42 anos, uma excelente pessoa. Ela me dá muita força. Agora, eu tô começando a viver a minha vida de verdade”, festeja o recém-casado. ***


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Delira

“Faz oito anos que eu não tenho crise, graças a Deus!”, comemora Luciano Marques Lira. Integrante do programa Maluco Beleza desde o começo, ele atribui a boa saúde ao programa de rádio. Além da dicção, a autoestima também melhorou. Luciano, ou Delira, seu nome artístico, ficou tão empolgado que, em 2007, fez um curso de radialista no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) de Campinas. Quem o vê sorridente andando pelo corredor do ponto de cultura não imagina as coisas que ele já viveu. Luciano sempre trabalhou muito, foi engraxate, office boy, segurança. Em 1996, aos 21 anos, era empregado dos Correios. Andava o dia inteiro entregando cartas, era um serviço cansativo, mas ele estava acostumado. A mãe, Dona Maria do Carmo, no entanto, começou a ficar preocupada quando o filho falou que estava sendo perseguido no serviço. Depois de trabalhar o dia inteiro, Luciano chegava em casa e ordenava que a mãe fechasse todas as portas e janelas, nenhuma fresta podia ficar aberta. Vozes diziam que alguém queria lhe matar. A reação dele perante a ameaça era agressiva e qualquer atitude era considerada suspeita. Na hora do jantar, mesa posta, ele se negava a comer; desconfiava que a mãe colocava veneno em sua comida. Dona Maria tentou cozinhar de tudo, comprava marmitas prontas, mas nada funcionava. “Ele não comia nada, ficou magrinho e mal dormia”, lembra a mãe. No trabalho, Luciano não era levado muito a sério. Acreditava que estava sendo monitorado pela NASA. Na verdade, até hoje ele acha isso: “Eu acho que a NASA me filma, mas fazer o quê? Às vezes, eu penso que sou mais conhecido que o Papa, mas sei que é da doença”, diz ele. A mãe não entendia as coisas que ele falava e, para esclarecer as acusações de perseguição, foi até o Correio. A conversa com os demais funcionários comprovou sua suspeita: Luciano estava doente. O contato com os transtornos mentais não era algo novo na família: o avô materno e dois tios de Luciano já tinham sido internados e acabaram falecendo em hospitais psiquiátricos. Depois de muitos pedidos, Luciano decidiu ir ao médico. A mãe insistia para ir junto, mas o filho respondia ao pedido com agressividade.

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O médico receitou alguns remédios e uma semana de repouso. Durante o período de licença, os dias eram arrastados e repletos de choro. Dona Maria, que era auxiliar de limpeza, saía de manhã bem cedo e só voltava no fim do dia. Luciano ficava o dia inteiro sozinho. Os atestados foram se multiplicando, mas os remédios eram jogados no lixo e a crise foi se prolongando. Os sentimentos que já existiam eram potencializados: “Eu sempre fui muito revoltado por não ter pai na carteira registrada, na identidade, por causa disso eu xingava muito a minha mãe. ‘Metia o pau’ nas mães solteiras. Eu era filho de mãe solteira, mas odiava, sabe?” Passados seis meses de altos e baixos, Luciano resolveu ir ao Correio, mas não para trabalhar. Transtornado, depois de rasgar alguns documentos, foi ao serviço para pedir as contas. O patrão aceitou a demissão imediatamente, sem levar em conta as condições de saúde do funcionário. Luciano voltou para casa sem fazer nenhum exame demissional. Luciano acredita que só depois da demissão a família entendeu a gravidade da situação. “No começo eles achavam que era ruindade minha, mas, depois que eu pedi as contas no Correio e ficava só em casa chorando, viram que eu não estava bem. Mas, até então, pensavam que eu era normal e que era ruindade minha, adolescência”, diz ele. Ainda no mesmo dia, depois de voltar do Correio com a rescisão do contrato em mãos, Luciano desmontou a mesa do quarto, juntou uma porção de papéis e tocou fogo em tudo. A mãe, que voltava do trabalho, sentiu o cheiro de queimado da rua. Depois de entrar em casa, ela viu o estrago, mas não se desesperou: “Eu falei numa voz mansa: ‘Meu filho, o que foi?’”. Tranquilo, ele respondeu que, enfim, as coisas estavam bem. Um processo contra a negligência dos Correios corre na justiça até hoje. Mais de 14 anos se passaram e, até agora, Luciano não recebeu nada. Mãe e filho viveram muito tempo à custa de bicos. Dona Maria aproveitava as horas livres do fim de semana para fazer faxina, passar roupas e juntar alguns trocadinhos. Teimoso, Luciano foi sozinho ao médico mais algumas vezes. Quando chegava em casa contava os detalhes da consulta para a mãe e, mais de uma vez, disse que seu diagnóstico era AIDS. A mãe sabia que não era nada disso e, só depois de uma longa conversa, conseguiu


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levar o filho na Santa Casa de São Paulo, cidade em que residiam. No hospital, recomendaram que Luciano fosse a um Hospitaldia, serviço substitutivo extra-hospitalar. O médico chamou Dona Maria do Carmo de canto e foi enfático: “Depressão profunda mata”. A sentença do doutor ficou ecoando na cabeça da mãe durante algum tempo; ela queria que o filho fizesse o tratamento corretamente, mas não sabia como conciliar o lado materno e o trabalho. O caso de Luciano foi avaliado pela equipe do Hospital-dia e seu diagnóstico não era AIDS nem depressão. O choro, a agressividade e as alucinações eram sintomas da esquizofrenia. Para controlar o transtorno e minimizar o sofrimento foi estabelecido que ele deveria ir ao serviço todos os dias da semana, das 7 às 17h. A mãe saía de casa bem cedo para deixar o filho no ambulatório, pois tinha receio de que ele se perdesse e também não confiava em outra pessoa para levá-lo. Os atrasos e as faltas de Dona Maria eram justificados com atestados, mas, mesmo assim, eram malvistos pela gerência. Depois de muitas indiretas, a chefia deu um ultimato: — O que você prefere: ajudar o seu filho ou ter um emprego? Dona Maria respondeu que precisava dos dois, mas, se era para escolher, escolhia o Luciano. Mãe e filho estavam desempregados e com pouquíssimo dinheiro. Os dois chegaram a pensar em voltar para Alagoas, onde Dona Maria nasceu e tinha família. A ideia, entretanto, foi abandonada depois de uma visita à Campinas, cidade onde a irmã de Luciano vivia há alguns anos. A mudança da capital para o interior aconteceu em abril de 1997. Luciano lembra que, depois de se mudar para Campinas, as crises diminuíram. Em dezembro daquele ano, Silvio Santos também deu uma mãozinha no quesito financeiro. Luciano revela, em tom de segredo, que foi contemplado pela Tele Sena. Na época, os R$ 10 mil foram usados para terminar de construir a casa nova. Por alguns meses, Luciano ficou fechado em si mesmo e não saía de casa para nada. Chuva ou sol, ele passava o dia dormindo. A pasmaceira só foi embora depois que ele começou a frequentar o CAPS da sua região. Luciano passava o dia inteiro no serviço, tomava os remédios e participava das atividades terapêuticas. Durante a semana tudo corria bem, mas aos sábados, domingos e feriados era complicado. O CAPS que Luciano frequentava não

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funcionava 24h – o primeiro CAPS III de Campinas foi inaugurado apenas em 2001 – e Dona Maria não sabia onde levar o filho quando os surtos aconteciam no final de semana. Em 1998, a situação se agravou e ele precisou ser internado no Hospital Tibiriçá. A lembrança do dia da internação foi marcante: “A ambulância me levou porque eu tive uma crise e quebrei tudo em casa. A única coisa que não aceitei foi ir na ‘carrocinha’, como se fosse um animal. Eu falei que ia para o hospital, mas no banco da frente. Ninguém é animal e eu não sou animal”, reclama Luciano. Os 30 dias de internamento foram horríveis. O tempo todo, Luciano olhava para os lados e se deparava com situações desumanas. “As pessoas andavam peladas, algumas se lambuzavam com as suas próprias fezes. Era muito triste e eu falava para mim mesmo: eu não sou louco para ficar no meio dessa gente”. O balanço feito por ele depois da estadia no Tibiriçá – que foi desativado em 2001 – foi o seguinte: “Eu entrei ruim e saí pior”. A grande virada na vida de Luciano aconteceu em 2002, por meio do programa de rádio Maluco Beleza. Foi quando descobriu que poderia ter um lugar no mundo, não como doente, mas como um comunicador. Ele se orgulha do modo como fala e da capacidade que adquiriu de questionar e fazer perguntas em eventos importantes como o Fórum Social Mundial, no qual esteve três vezes. No início, Luciano desconfiava do projeto. “Eu achava que ia ser um foguinho que acende e depois apaga, mas não, o fogo não apagou e dura até hoje”, diz ele com um sorriso largo. As ondas da rádio não têm nenhum poder curativo, mas a inclusão e a chance de falar sem censura deram um novo ânimo para o loucutor Delira. Luciano é ansioso e engata uma atividade na outra: na segundafeira vai ao Centro de Convivência Tear das Artes, onde participa da redação do jornal Tudo Acontece; na quarta, vai até o Ponto de Cultura participar das reuniões da rádio on-line; na quinta, grava o programa Maluco Beleza e, além de tudo, faz terapia, frequenta um CAPS III e a igreja das Testemunhas de Jeová. Piadinhas e preconceitos, que antes o deixavam nervoso, agora são levados na esportiva. Ele enche a boca para falar: “Estou muito bem de saúde, graças ao meu tratamento maravilhoso! Eu sei que a doença não tem cura, mas tem controle”.


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O maior lamento de Luciano, talvez o único, é a falta de conhecimento das pessoas sobre a Reforma Psiquiátrica. “A imprensa divulga pouco. A Reforma tem raízes profundas e já é realidade. O manicômio não é bom, CAPS III, sim. Você vai lá fica de repouso, volta para casa, a família pode ir visitar e as portas estão abertas. Não tem sossegaleão, não tem camisa de força nem eletrochoque”, afirma. No final da entrevista, a vaidade de radialista falou mais alto e ele perguntou, apontando para o gravador: — Vê se a minha voz saiu legal? ***

Programa de Peso Silvana Borges é gordinha e, atualmente, encara a sua forma física numa boa. O programa que ela está criando para a rádio Maluco Beleza on-line vai se chamar Programa de Peso. Sil, para os íntimos, já pensou até na vinheta: “Programa de Peso, um programa para você pensar leve”. Durante a programação de 30 minutos, ela pretende dar dicas de moda, nutrição e autoestima para todos aqueles que estão acima do peso. Mineira, Sil tem uma biografia curiosa. Ela não sabe ao certo onde nasceu nem quem são seus pais biológicos. Ainda recém-nascida, foi deixada numa igreja da cidade de Poços de Caldas. “Minha mãe [adotiva] disse que me viram na hora de ajoelhar para rezar. Eu comecei a chorar e o padre parou a missa”, conta Silvana. A notícia sobre o bebê abandonado se espalhou pela região e muitas pessoas ficaram interessadas em adotar a criança. Depois de várias entrevistas, o juiz decidiu encaminhá-la para a família Borges. Silvana cresceu entre quatro irmãos, todos mais velhos. Com cinco anos mudou-se de Poços para Campinas. Em casa, Sil tinha muitas regalias, “minha mãe ficava com medo de pensarem que ela me adotou para ser empregada ou babá, por isso eu nunca precisei ajudar muito nos serviços domésticos”, diz. O tratamento diferenciado, no entanto, causou desconfiança. Silvana começou a suspeitar que era adotada aos 13 anos, mas sempre que tocava no assunto era ignorada. A mãe fazia rodeios, mudava de

assunto e não respondia suas perguntas. A dúvida persistiu até Sil completar 18 anos. “Minha mãe me contou a verdade uma semana após o meu aniversário. Ela não falou antes porque achou que eu poderia virar uma adolescente revoltada”. Diferente do esperado, tudo correu bem, a descoberta não causou tanto espanto. Naquela ocasião, o que tirava o sono de Silvana eram os quilinhos a mais. “Eu sempre me achei fora do padrão e pensava que não arranjava namorado porque eu era gordinha. Eu queria emagrecer de qualquer jeito e tomava vários remédios para perder peso, comecei com o Hipofagin, mas o que me levou para o buraco foi o Moderine”, afirma. A rotina era puxada, aos 21 anos, Silvana cursava o último ano do ensino médio e trabalhava no setor administrativo de uma gráfica. De manhã, logo que acordava, ela tomava um comprimido de Moderine – moderador de apetite tarja preta. Algumas horas mais tarde, ela se reunia com as amigas no barzinho ao lado da escola e tomava seu drinque preferido: licor de menta com soda limonada. A mistura álcool e automedicação foi explosiva e, um dia, Silvana surtou. O descontrole emocional se manifestou pela primeira vez quando ela fez uma viagem ao Paraguai. “Eu fui para lá como ‘cabide’ para ajudar a minha irmã. Ela ia fazer compras e precisava que alguém fosse junto para carregar as mercadorias. Na volta, ela apontou para um ônibus que estava sendo revistado e eu me agachei. Não tinha risco nenhum, mesmo assim, eu fiquei com um medo extremo e isso já era um indício de que eu não estava legal”, lembra Sil. Em outro episódio, no fim do ano, Silvana resolveu ir a uma festa sem ser convidada. Ela havia sido demitida da gráfica onde trabalhava, mas não se intimidou e foi até a confraternização da empresa. Na entrada, todos perceberam que ela não estava bem, o antigo chefe tentou animá-la e disse que ela precisava desabafar. Sil entendeu o conselho de um modo bem peculiar e resolveu desabafar com as araras de uma loja de departamentos. Sem pensar, ela pegou os cartões de crédito e comprou vestidos, camisetas, roupão e maiô. No dia seguinte a maratona de compras continuou: “Eu fui até uma loja perto de casa e comprei oito blusas iguais, só as cores eram diferentes. Um exagero!”. Apesar de renovar o guarda-roupa, Silvana não conseguia vestir


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as peças. Ela tomava banho, colocava o roupão e gritava pelos quatro cantos que estava fedendo. Ninguém a convencia do contrário. Embora tivesse lavado o cabelo, ensaboado o corpo, ela jurava que sentia um cheiro ruim. No dia 24 de dezembro de 1987, a situação já estava insustentável. E, depois de conversar com um psiquiatra, Silvana foi internada no Hospital Américo Bairral. “Foram os meus pais que me levaram. Eu cheguei lá consciente, eles preencheram a ficha, mas eu só fui cair em si, que estava num hospital psiquiátrico, passada uma semana”, diz ela. Silvana foi internada no Bairral duas vezes, ao todo, foram mais de 200 dias na instituição. Segundo ela, era um lugar lindo, com piscina, salão de jogos, quadra, mas era fechado. A angústia de Sil chegou ao ponto máximo quando ela foi submetida à camisa de força: “É difícil explicar, é uma das piores contenções que existe, a pessoa fica amarrada numa posição, com os braços para trás. É privar você da liberdade”. Antes da segunda internação, ela tentou fazer um tratamento no hospital da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas. A tentativa não deu certo, pois a cada consulta lhe davam um novo remédio. Silvana começou a desconfiar que estava sendo feita de cobaia e decidiu interromper o uso da medicação. No mesmo dia, ela voltou para casa e ficou ligando para o Bairral em busca de uma vaga. Se pudesse escolher, ela preferia ir para outro lugar, mas ainda não existiam opções extra-hospitalares naquela época, 1989. Enquanto esteve internada, Sil foi tratada como portadora de esquizofrenia, mas os médicos não tinham certeza e colocaram um ponto de interrogação no seu prontuário. O diagnóstico correto só foi feito dois anos mais tarde, quando já tinha voltado para casa. Um psiquiatra da PUC-Campinas lhe explicou que gastos excessivos, aumento da libido, delírios de grandeza e depressão eram características do Transtorno Afetivo Bipolar (TAB). Segundo o médico, o transtorno se manifestaria entre os 30 e 40 anos, mas o uso combinado de remédios e bebida alcoólica aceleraram o quadro psicótico. Silvana recorda que, quando ouviu a descrição dos seus sintomas, ficou muito feliz, pois, finalmente, alguém havia entendido o que sentia. Ela alternava momentos de tristeza profunda com ideias de grandeza, durante algum tempo, acreditou ser a reencarnação de Jesus Cristo. O diagnóstico e os remédios adequados deixaram Sil mais se-

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gura e ela pôde voltar a trabalhar. A experiência como vendedora de pacotes da televisão à cabo foi boa, mas teve que ser interrompida, pois ela precisava cuidar dos pais, que estavam muito idosos. A família pediu para que voltasse a Minas Gerais, junto com os dois. Em Minas, sua vida virou de ponta-cabeça novamente. A pequena cidade de Passos não possuía os recursos necessários para que Silvana fizesse seu tratamento. “Eu tive uma crise e me deram os remédios errados. Em casa, eu comecei a virar um bicho: cabelo desleixado, unha comprida, sem tomar banho. Eu não tinha prazer na vida, tomava os comprimidos às 8h e já queria dormir de novo”. Sem comer e totalmente deprimida, ela foi trazida de volta para Campinas e passou a morar junto com uma irmã, Beatriz. No início, a convivência foi difícil, pois Bia não entendia o transtorno. “Minha irmã me mandava para a igreja do bispo Macedo, a Universal, achando que isso iria resolver o meu problema, mas não adiantava nada”, recorda Sil, que implorava para a irmã levá-la ao hospital. Em 1999, depois de vários tratamentos e orações frustradas, Sil foi ao Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira. Lá passou por uma triagem e, no dia seguinte, começou a participar das oficinas de trabalho. Aos poucos, ela agarrou todas as oportunidades que apareciam e, além de participar das atividades terapêuticas, conseguiu emprego dentro da instituição. Ela já foi vendedora da loja das oficinas, recepcionista e, atualmente, é secretária e referência do Ponto de Cultura. Silvana faz parte da turma de veteranos do programa de rádio Maluco Beleza. Ela lembra que no início tinha muitas dificuldades: não conseguia falar, tinha vergonha de fazer perguntas. Contudo, o tempo lhe trouxe segurança. Hoje, ela é uma referência e ajuda os demais participantes a elaborar os roteiros e gravar os programas. A responsabilidade é grande, mas ela afirma que gosta de novos desafios. Plena, Sil diz que está no céu. “Antes do primeiro surto, eu tinha feito inscrição na faculdade de publicidade e propaganda, que é na área de comunicação. Hoje, eu falo: ‘A rádio é a realização de um sonho, eu não fiz faculdade e aprendi as coisas na prática’”. Em seu projeto mais recente, o Programa de Peso, quer ajudar outras pessoas dando dicas e mostrando o outro lado da moeda. “Não é preciso ser magro para ser feliz, somos importantes do jeito que a gente é”, diz Silvana, satisfeita consigo mesma e livre da pressão dos rótulos.


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CAPÍTULO 5

Natalina e Donato

Casa Branca: da segregação ao exercício da liberdade


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O município de Casa Branca fica na região noroeste do Estado de São Paulo, a 233 quilômetros da capital. Com pouco mais de 28 mil habitantes, a cidade é famosa pela produção de jabuticaba e por abrigar um antigo leprosário que foi convertido em hospital psiquiátrico na década de 1970. Em 1932, foi erguido em terras doadas por José Feliciano Pinto Coelho da Cunha, o Barão de Cocais, o Asilo Colônia Cocais. A instituição foi construída pelo governo estadual a fim de abrigar hansenianos, também conhecidos como leprosos. Naquela época, acreditava-se que a segregação era o único modo de impedir o contágio e a expansão da lepra. Situado a mais de quatro quilômetros do centro, o Asilo era autossuficiente e funcionava como uma cidade fechada. A área de 283 alqueires foi cercada e ocupada por casas, enfermarias, igrejas, lojas, açougue, salão de baile, cassino, cinema e uma extensa plantação. Os mais de 2 mil enfermos não precisavam e nem deveriam atravessar os portões. O exílio compulsório ao qual os hansenianos eram submetidos só terminou em 1962, quando o decreto do Ministério da Saúde n° 968 foi aprovado e pôs fim ao isolamento no país. Aos poucos, diversas colônias foram fechadas e em Casa Branca não foi diferente. No final de 1969, os pacientes do Asilo Colônia de Cocais foram liberados, mas o lugar não ficaria vazio por muito tempo. Assim como Michel Foucault descreve em A História da Loucura na Idade Clássica, as instalações foram rapidamente ocupadas por pacientes psiquiátricos. “A lepra se retira, deixando sem utilidade esses lugares obscuros e esses ritos que não estavam destinados a suprimi-la, mas sim a mantê-la a uma distância sacramentada, a


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fixá-la numa exaltação inversa. (...) Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Pobres, vagabundos, presidiários e ‘cabeças alienadas’ assumiram o papel abandonado pelo lazarento”, afirma Foucault sobre uma dinâmica que já acontecia no século XVII. Em fevereiro de 1970, os ônibus começaram a trazer os novos moradores. A cada semana, pelo menos 50 homens chegavam ao local, agora, conhecido como Centro de Reabilitação de Casa Branca. Ao final daquele ano, mais de 1500 pacientes haviam sido transferidos do Hospital Psiquiátrico do Juqueri, na época, superlotado com 16 mil internos. Na chegada, os pacientes eram recebidos por uma equipe reduzida e sem experiência em psiquiatria ou saúde mental. O Centro de Reabilitação contava apenas com um médico clínico, uma enfermeira e 15 atendentes. Em depoimento ao Jornal Alô Alô6, Flora Carnelossi, a única enfermeira à frente da equipe, lembra que muitos pacientes se perdiam dentro da cidade, alguns morriam afogados no açude e outros se enforcavam nas árvores. Despreparados e dentro de uma lógica totalmente manicomial, os funcionários continham os pacientes com o eletrochoque e a impregnação de haloperidol, medicamento que provoca contrações involuntárias e rigidez muscular. Na hora do banho, eram esfregados com uma toalha enrolada em uma vassoura piaçava ou com pedaços de espuma de colchões velhos. Passados três anos, em 1973, foram contratados os primeiros médicos psiquiatras e um Núcleo de Terapia Comportamental foi criado. No novo sistema, os comportamentos e atitudes dos pacientes eram observados atentamente e aqueles que tinham um bom desempenho eram recompensados com fichas, que podiam ser acumuladas e trocadas por café ou cigarro. Com o tempo, alguns homens passaram a escovar os dentes, tomar banho, trabalhar na terra capinando, plantando, mas eram totalmente tutelados pela instituição. O desenvolvimento das capacidades estava atrelado às fichas e suas recompensas. Eles não O Jornal Alô Alô é uma publicação do Centro de Reabilitação de Casa Branca e faz parte do projeto de revitalização da gráfica.

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tinham autonomia ou vontade própria. “No modelo manicomial não existiam direitos, os pacientes não tinham uma vida. Eles seguiam a lógica da instituição e não tinham um projeto de vida”, afirma a psicóloga Gabriela Moreira, que atualmente preside a Comissão de Ensino e Pesquisa do Centro de Reabilitação. Dentro dos 30 pavilhões, cada enfermaria possuía mais de 30 camas e o ambiente era extremamente insalubre. Aqueles que viviam em casas dormiam sobre camas de alvenaria e não tinham assistência da equipe para limpar e manter a habitação organizada. A precariedade e o tratamento desumano, no entanto, eram ignorados por quem passava do lado de fora ou morava no centro da cidade. A realidade só veio à tona em 1999, quando a Secretaria de Estado da Saúde decidiu intervir e reestruturar o serviço. O cenário encontrado pelos novos funcionários era desolador, como relata Gabriela: “A condição deles era muito debilitada, em uma avaliação identificamos muitos desnutridos. Eles andavam descalços, tinham problemas com higiene, alguns não se vestiam. Então, era uma realidade muito difícil, precisava de intervenção em todos os campos ao mesmo tempo”. De acordo com a pesquisa feita no início da intervenção, 70% dos pacientes ficavam descalços, 10% juntavam lixo e 80% permaneciam nos corredores sem fazer nada. Nesse período, o hospital abrigava 802 pacientes, a maioria idosos com quase 30 anos de internação. A desorganização era tão grande que alguns prontuários não tinham nome. “Quando chegamos aqui alguns moradores não tinham nome e no prontuário eram nomeados como ‘Ignorado Raul Seixas’, ‘Ignorado Alguma Coisa’. E nós cortamos isso, não é terapêutico chamar um sujeito dessa maneira”, diz Gabriela. O processo de reconstrução das identidades foi trabalhoso e começou com um item básico: a certidão de nascimento. Duzentos e trinta moradores não tinham documento nenhum. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se sensibilizou com a situação e abriu um processo para cada um deles. Hoje, todos têm uma certidão de nascimento tardia e com ela conseguem receber benefícios e a aposentadoria. Os métodos violentos foram abolidos e a “Unidade 16”, conhecida como prisão, foi totalmente desativada. Os grandes pavilhões


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foram reformados, o número de camas por quarto foi reduzido e ao lado de cada cama foi instalado um armário onde o paciente pode guardar seus pertences. As casas foram reformadas e mobiliadas com camas, fogão, geladeira, chuveiro, televisão, já que a intenção era transferir os pacientes para espaços onde pudessem ter mais autonomia e privacidade. A ocupação das casas foi definida a partir do grau de independência dos pacientes. Aqueles que estavam inseguros para morarem sozinhos permaneciam em uma unidade chamada de “convívio”, onde se preparavam para viver na residência terapêutica. “No começo, a gente tinha casas reformadas, preparadas para receber os moradores e eles não queriam mudar. A equipe realizava assembleias, convidava os moradores e apresentava a proposta. Eles poderiam escolher os colegas com quem queriam morar, mas tinham medo de mudar. As mudanças eram muito traumáticas, eles saíram do Juqueri sem saber para onde iam, entraram num ônibus e chegaram em Casa Branca”, lembra Gabriela. O enfoque na reabilitação e na alta fez com que, pouco a pouco, a demanda pelas residências crescesse. Por isso, a direção da instituição determinou que as casas ocupadas por funcionários fossem liberadas. Além disso, a equipe também alugou e reformou casas localizadas no centro da cidade. Hoje em dia, as vagas nas residências terapêuticas são concorridas. São 45 casas dentro do Centro de Reabilitação e 14 do lado de fora, na cidade de Casa Branca. A meta é ampliar o número de casas no território e zerar o número de internações “tradicionais”. Durante a intervenção, inclusive, um imóvel foi adaptado e convertido em CAPS III com capacidade para atender 20 municípios da região. “A gente vem de uma cultura de internação, do hospital psiquiátrico e temos que fazer um trabalho consistente para mostrar para as pessoas que isso não é necessário. A gente pode oferecer tratamento de outro jeito. Eu vejo pessoas que já foram internadas em hospital psiquiátrico sendo tratadas no CAPS e ficando muito mais satisfeitas”, diz Gabriela. Além da preocupação com o “morar”, a intervenção elegeu o trabalho como um eixo fundamental. Aproveitando a estrutura existente, foram criadas oficinas de tecelagem, gráfica, marcenaria, pintura, todas voltadas para dar sentido à vida de pessoas que antes ficavam

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andando a esmo. Todos os itens confeccionados são comercializados e os ganhos são divididos entre os participantes. Com dinheiro no bolso e mais seguros, os pacientes passaram a circular além da portaria. Gabriela conta que, no início, foi complicado, pois a população havia se acostumado com o isolamento e falta de contato com os moradores do Centro de Reabilitação. Hoje, depois da consolidação do novo modelo de assistência, os pacientes são bem recebidos pela comunidade e o comércio local aprecia suas visitas, já que eles são clientes fiéis e bons pagadores. O envolvimento e as exigências dos pacientes aumentaram com o passar dos anos. Em 2001, por exemplo, eles deram uma grande demonstração de autonomia. Sozinhos, eles organizaram uma assembleia e redigiram uma carta para o governador, na qual solicitavam que mulheres fossem transferidas para o Centro de Reabilitação – desde 1970, nenhuma mulher pisava ali, exceto médicas e enfermeiras. Depois de uma longa espera, em dezembro daquele ano, o pedido foi aceito e 22 mulheres foram trazidas de outros hospitais da região. Atualmente, o Centro de Reabilitação atende a 479 pessoas. A maioria, 281 pacientes, ainda permanece internada nos pavilhões, pois não tem vínculos familiares e é muito idosa. O correto seria a reinserção social, mas não é possível apagar o passado de uma hora para a outra e abandonar pessoas que se tornaram completamente dependentes. “Mudar um paradigma nunca é fácil. É um trabalho que vai sendo construído no dia a dia, no caso a caso, mas no plano mais geral os efeitos vão se consolidando. Não acho que seja fácil, ainda há muitas pessoas com esta lógica de ‘quero me livrar do problema’ e eu não culpo essas pessoas por isso. A gente ainda convive com o antigo modelo, ainda temos a condição de internação, mas a gente também tem aquilo que é o ideal: o CAPS 24hs e as residências terapêuticas. São dois modelos convivendo juntos e as pessoas estão recebendo bem o novo modelo, ainda com um pouco de desconfiança, mas estão aderindo e aceitando bem essa proposta”, afirma Gabriela. ***


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Quando casar sara Eram dez horas da manhã e Dona Aparecida Natalina Bueno, 59 anos, já estava à minha procura, mas encontrar alguém na imensidão do Centro de Reabilitação de Casa Branca não é uma tarefa fácil. Depois de indagar algumas pessoas e caminhar um bocado, ela me encontrou no Cine Cocais, onde funciona o cinema, a gráfica e uma rádio. Natalina queria marcar o horário de nossa conversa. Ela já sabia que eu iria visitá-la há mais de uma semana e estava aflita para contar a sua história. Combinamos o bate-papo para às 14h, pois assim daria tempo de terminar a visita e ela poderia almoçar tranquila com o marido, o Seu Antonio Donato. Exatamente às 13h59, ela se posicionou na esquina à minha espera. Caminhamos quase até o fim da rua, a casa dela é uma das últimas e a única que tem portão. Segundo ela, um dos vizinhos insistia em tocar a campainha de madrugada e interrompia o seu sono; para por fim ao aborrecimento, uma cerca foi instalada ao redor da casa. Natalina tirou a chave do bolso e abriu a porta de sua casa. Seu Donato estava dormindo, pela porta entreaberta era possível vê-lo todo encolhido com um boné cobrindo o rosto. Sem pensar duas vezes, ela foi direto acordá-lo: “Donato, a menina chegou para conversar com a gente”. Ainda no quarto, ela aproveitou para pegar uma lembrança preciosa, o seu álbum de casamento. As fotos do dia mais feliz de suas vidas estão guardadas dentro de uma caixa pesada e toda forrada de veludo azul. Seu Donato e Dona Natalina são o casal mais ilustre de Casa Branca. Os dois se conheceram em dezembro de 2001, e depois de nove meses de namoro foram parar no altar. Seu Donato está no Centro de Reabilitação desde 1970, quando foi trazido do Juqueri. Hoje, aos 86 anos, ele tem dificuldades para falar e lembrar daquela época, mas de uma coisa tem certeza: “Eu acho hoje muito melhor. Não me acostumei lá [no Juqueri], era muito feio”, diz ele. Durante os 40 anos em que está em Casa Branca, Seu Donato presenciou diversas mudanças no modo de tratar os pacientes e, sem dúvida, a sua fase preferida é a atual, pois tem a sua casinha e o carinho da esposa todos os dias. O romance começou meio sem querer, como lembra Natalina: “Ele

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queria casar, só que em vez de mexer comigo, ele foi mexer com a minha colega e ela xingou ele. Aí ele foi lá mexer comigo e veio falando: ‘Convém arrumar casamento comigo, tu vem casar comigo?’ Eu respondi que a gente podia namorar. Falei para ele pegar o almoço e depois nós conversava isso, aí ele disse: ‘Não, eu quero acertar isso agora!’”. A urgência era tão grande que, após convencê-la, os dois foram correndo conversar com a diretora Sueli Pereira Pinto. Ela ficou surpresa com a novidade, sobretudo, porque Natalina estava saindo com outro morador. “Ela falou: ‘O que é isso? Ainda outro dia você estava namorando outro morador e agora está namorando o seu Antonio Donato? Que moda é essa?’. Eu respondi que queria casar e ficar noiva com aliança”, explica Natalina. A ansiedade de Donato era justificada, afinal, até 2001, o Centro de Reabilitação só tinha homens. Assim que as mulheres chegaram, ele não perdeu tempo e escolheu o seu par. No dia 21 de setembro de 2002, a igreja da cidade ficou lotada, todos queriam assistir ao casamento. Natalina entrou na igreja acompanhada pelo chofer e no altar os padrinhos, entre eles Sueli, aguardavam enquanto ela desfilava em seu vestido de noiva com uma calda imensa. Depois da festa, os dois passaram a dividir a mesma casa. Diferente de um hospital psiquiátrico, na residência terapêutica eles têm liberdade e privacidade. Natalina gosta de acordar às 5h da manhã e tomar banho; já Seu Donato prefere dar uma “esticadinha” e fica na cama até mais tarde. A limpeza da casa fica por conta de uma faxineira contratada pelo casal. A casa é motivo de orgulho, tudo está arrumado e nenhum detalhe passa despercebido. As fotos do casório e de um passeio à cidade de Holambra estão espalhadas por todos os cantos da casa. Uma entrevista publicada na revista Época7 também foi emoldurada e colocada ao lado da televisão. No texto, Donato afirma que os amigos o chamavam de louco quando decidiu se casar, porque mulher dá muito trabalho. A brincadeira, no entanto, não agradou Natalina que, até hoje, faz cara feia ao lembrar do comentário. Ambos trabalham na gráfica, onde confeccionam agendas e fazem trabalhos manuais. Natalina, inclusive, está se preparando para “Louco é quem me diz” por Alexandre Mansur - publicada no dia 15 de setembro de 2003.

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assumir a função de secretária. Os dois recebem um salário pelas horas trabalhadas, além da aposentadoria e do benefício do De volta pra Casa. Antes de ir para Casa Branca, Natalina estava internada na cidade vizinha, Mococa. Desde os 13 anos, ela passou por três instituições diferentes. “Eu fui pro sanatório a primeira vez depois que a minha mãe morreu. Eu fiquei nervosa demais e o meu tio me levou no médico e ele me mandou lá pro sanatório de Araras. Eu era criança de tudo quando a minha mãe morreu. Eu sonhava e ela até se representava pra mim”. Em Araras, ela trabalhava como uma condenada. “As enfermeiras em vez de cuidar de nós que era moradora, elas davam serviço pra nós. Ajuntava eu e a outra paciente e nós tínhamos que ajudar a dar banho, eu também lavava muita roupa. Eu não gostava de lá de jeito nenhum, ficava só amarrada em camisa de força. Eles amarravam porque naquele tempo eu era meio nervosa, mas eu era nervosa por causa deles. Me deixavam trabalhando demais e aí me atacava os nervos”, conta Natalina. No sanatório, ela reclamava muito de tonturas e da vista escurecida. O incômodo era tão grande que ela chegou a pensar em tomar o eletrochoque. “Eu perguntei pro médico: ‘Será que tomar choque na cabeça não melhora essa tontura?’. E ele falou: ‘Você larga mão de pensar bobeira, você não precisa de choque. Se você arrumar um casamento, sara na sua vida’”. A receita foi certeira e ela afirma que depois de trocar as alianças está totalmente curada. O casal nunca ouviu falar no movimento antimanicomial ou na Reforma Psiquiátrica, sequer conhecem essas palavras. Mas ao serem questionados sobre como preferem viver, eles respondem logo: “Pelo amor de Deus, aqui é muito diferente daqueles lugares, aqui é tudo aberto, não tem nada de trancar e a gente pode ir para o lado que a gente quiser. Quando a gente vai pra cidade receber a aposentadoria, a referência vai junto, a gente faz compras e volta pra nossa casa. Aqui é muito melhor”.

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CAPÍTULO 6

Geraldo Peixoto e Dulce Edie

Ferreira Gullar Dona Ignês e Ecio

Pais e filhos


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Um dos apoios mais importantes para o portador de transtorno mental é a família. Constatar o adoecimento de um filho, no entanto, não é fácil. E, por mais dolorido que seja, é fundamental que pais e irmãos acolham aquele que está sofrendo. Muitas vezes, inclusive, a família deve ser tratada junto com o usuário, pois os conflitos domésticos e a dinâmica familiar têm um grande peso na superação das crises. A seguir, são contadas três histórias diferentes sobre o convívio entre pais e filhos. ***

Uma militância afetiva Dulce e Geraldo são praticamente casados. Não moram juntos, mas há mais de 11 anos dividem uma experiência singular, ambos são pais de esquizofrênicos. A união vai além do afeto e carinho, os dois lutam pela qualidade de vida de seus filhos e de todos aqueles que sofrem algum tipo transtorno mental. Como a maioria dos familiares de portadores de transtorno mental, no início, eles não tinham conhecimento sobre alternativas terapêuticas ao hospital psiquiátrico. E, só depois de muita procura e angústia, perceberam que outra clínica era possível. Dulce Edie Pedro dos Santos e Brás Geraldo Peixoto viveram na pele as mudanças de gestão e concepção da saúde mental. Geraldo teve três filhos com sua primeira esposa: Adriana, Ana Glória e André. No início, antes do filho ter a primeira crise, ele trabalhava como executivo em uma multinacional canadense. Hoje, com a barba branca e 77 anos nas costas, ele fala em tom de piada sobre o tem-


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po em que era um workaholic: “Eu era um executivo alucinado”. Geraldo morava em São Paulo, ganhava bem, tinha motorista particular e podia dar aos filhos uma vida confortável. André sempre estudou nos melhores colégios e com 20 anos prestou vestibular para Educação Física, passou, mas a comemoração teve que ser adiada, pois ele já apresentava alguns comportamentos estranhos que o pai não compreendia. “Ele surfava, ia à praia, e, um belo dia, começou a delirar dizendo que era astronauta e que queria ir para Cabo Canaveral8”, recorda Geraldo. Tantas coisas aconteceram, desde então, que Geraldo tem dificuldade de lembrar a exata cronologia dos fatos. A certa altura da entrevista ele consulta Dulce: — Ele me bateu antes de contar o delírio, né? E ela responde com um sorriso: — Eu não sei, nessa época a gente ainda não se conhecia. As percepções e lembranças do casal são tão misturadas que não é estranho que um complete a frase do outro. Mas, de fato, na época Dulce e Geraldo ainda não se conheciam, pois a primeira crise de André foi há mais de 25 anos. O pai se esforça e lembra que, realmente, o filho havia lhe agredido antes da história sobre Cabo Canaveral. Os sintomas se manifestaram ao mesmo tempo em que a empresa na qual Geraldo trabalhava passava por uma reestruturação. Aflito, o pai decidiu largar tudo para cuidar do filho. Quase no mesmo período, mas na cidade de São Vicente, Dulce – que ainda não conhecia Geraldo – e suas filhas enfrentavam as agressões de Sylvio. A mãe conta, com os olhos cheios d´água, que o primogênito era um bebê lindo, esperto e inteligente. Segundo ela, o bebê mais importante de sua casa. Mais tarde, no entanto, o menino começou a apresentar um comportamento diferente. A mãe lembra que ele era muito problemático e que com sete anos já ia ao psicólogo. Aos 15 anos, Sylvio negou-se a ir à terapia. Ele gostava de cabular aula, pegava dinheiro e as chaves do carro escondido. Dulce já estava separada do marido e tinha que deixar os filhos sozinhos enquanto trabalhava. “Às vezes eu chegava em casa e estava um Região na costa oriental dos Estados Unidos, conhecida como Space Coast, de onde é lançada a maior parte das naves espaciais norte-americanas.

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pandemônio, ele estava agredindo todo mundo e quebrando tudo”, relembra a mãe. Depois de abdicar do terno e gravata, Geraldo resolveu construir uma piscina nos fundos de sua casa no bairro do Ipiranga. Seu objetivo era estar próximo do filho enquanto dava aulas de natação. Os cuidados com André eram redobrados, pois ele já havia sido internado no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo por cerca de 80 dias. Foram dois períodos de internação, no primeiro, ele foi medicado e conseguiu sair da crise. O grande problema é que, depois de receber alta, André foi para a praia de Juqueí surfar e, entre ondas e marolas, deixou os remédios de lado e fumou um baseado. A falta dos remédios e o uso da droga acabaram levando André novamente para o hospital. Geraldo afirma que o filho voltou da praia com um olhar perfurante que o deixou muito impressionado, foram mais 40 dias de internação. Depois de analisar as condições do tratamento e do hospital, Geraldo decidiu tirar o filho de lá e leválo para casa. Ele percebeu que trancar não era sinônimo de tratar. Nos fundos da casa do Ipiranga, o filho ajudava o pai nas aulas de natação. André, assim como todo portador de transtorno mental, não vive 24 horas por dia em crise e podia fazer as suas atividades, sem nenhum problema. Em um domingo, ainda sentindo que seu filho precisava de cuidados mais específicos, Geraldo leu uma matéria no caderno Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo. A notícia divulgava um seminário sobre a obra de Arthur Bispo do Rosário, um gênio esquizofrênico. De pronto, o então professor de natação, ficou interessadíssimo. Geraldo faz piada e diz que na época não sabia nada sobre Bispo do Rosário e que o único nome que conhecia no campo da saúde mental era Freud. Era 1990, o dia do seminário chegara e o auditório do Museu de Arte Contemporânea (MAC) estava lotado, a maior parte da plateia era composta por psiquiatras, psicólogos, críticos de arte. Geraldo era o único representante de um grupo até então desarticulado: os familiares de portadores de sofrimento psíquico. No MAC, na hora do cafezinho, os grupinhos se formaram e cada um começou a discorrer sobre a sua carreira. Em um dado momento, todos olham para Brás Geraldo Peixoto, mas ele não é doutor


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e não tinha nada acrescentar sobre o seu currículo. Naquele instante era, simplesmente, pai de um esquizofrênico. Ao revelar que sua motivação era o filho e não a arte – que o impressionou pela beleza e criatividade – todos o bombardearam com perguntas e conselhos. Entre as várias dicas, uma foi especial, pois apontava uma alternativa para o tratamento de André: era o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da Rua Itapeva. Enquanto Geraldo encontrava caminhos, Dulce estava perdida e não sabia o que fazer com o filho. “Durante muitos anos eu não sabia nada, escondia e morria de vergonha. Eu não sabia se era por causa das drogas ou se era uma doença. Os médicos não davam um diagnóstico e eu levei muitos anos assim”, afirma a mãe. Dulce relata que a família ansiava por uma resposta, qualquer coisa que dissessem seria aceita. Ela confessa que se dessem o diagnóstico de AIDS, por exemplo, já seria um alívio, pois pelo menos teriam uma “tábua para se apoiar”. Depois de muitas consultas, ela tomou uma decisão extrema, até porque na época existiam poucas alternativas. “Foi terrível, você tem que esquecer que tem um coração”, lamenta Dulce ao lembrar do dia em que internou seu filho. Segundo ela, o filho perguntava: “Mãe, por que você está fazendo isso comigo?”. A pergunta era dolorosa e, no seu íntimo, Dulce tinha feito uma escolha: preservar as duas filhas, pois Sylvio estava muito agressivo e quase matou a irmã mais nova. A primeira internação de Sylvio foi na Casa de Saúde Anchieta, na cidade de Santos. Dulce, aos 70 anos, ainda lembra o dia exato: “Foi 16 de outubro de 1982, quase lembro a hora”. O resgate e a polícia levaram-no e ele passou três dias na casa de saúde conhecida como “Casa dos Horrores”, depois foi transferido para o Hospital Eldorado, em Taboão da Serra. Passados alguns meses, Dulce procurou um psiquiatra, que logo prescreveu uma guia de internação. Hoje, a mãe diz com indignação que o médico sequer conversou com seu filho. Com a guia, Sylvio foi internado mais uma vez, agora, no Hospital Américo Bairral, em Itapira. No período em que esteve internado, ele chegou a namorar outra paciente que fazia tratamento para dependência de álcool e drogas. A mãe conta que Sylvio se apaixonou perdidamente pela

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moça. Ela morava em Guarulhos e durante um bom tempo, depois de ter alta, ele continuou visitando-a. Foi a última namorada de que a mãe se recorda. As crises iam e voltavam, e Sylvio foi internado em hospitais psiquiátricos mais sete vezes. A mãe sofria com o isolamento ao qual o filho era submetido. “As pessoas eram presas como se fossem criminosas e eram esquecidas”, reclama. No início, ela pensava que a distância era positiva, pois ninguém aguentava a falação de madrugada, os socos e o temperamento explosivo. Mas seu sentimento mudou: “Você pode até fingir que esqueceu, ele perturba, agride demais, mas é meu filho. Eu não posso esquecer que eu amamentei e criei”. Como ela mesma diz, “se você puder fazer alguma coisa para trazer seu filho de volta para o seu seio, não tem coisa igual”. A grande questão era como trazê-lo para o convívio social, como tratá-lo sem internar. As dúvidas de Dulce foram solucionadas depois de alguns telefonemas. Uma amiga ficou sabendo que Sylvio estava internado e indicou o telefone de Dulce para um vizinho que também tinha um filho esquizofrênico. O tal vizinho ligou para Dulce e insistiu que ela levasse seu filho a um lugar novo, onde o tratamento era muito bom e aberto, sem a necessidade de internação permanente. A indicação era o CAPS Itapeva e quem deu a dica foi um pai, um professor de natação chamado Geraldo Peixoto. A partir desses telefonemas um novo horizonte começou a ser vislumbrado por Dulce para o tratamento de seu filho e, além disso, foi o início de uma parceria afetiva e política que dura até hoje. A amiga que aproximou o casal nadava na escola de natação de Geraldo. Naquela altura, André ia ao CAPS Itapeva com regularidade e não precisava de internação hospitalar. Depois de tomar coragem, Dulce tirou Sylvio do hospital sob sua responsabilidade e começou a levá-lo ao CAPS duas ou três vezes por semana. A sensação de Dulce ao frequentar o CAPS Itapeva era repleta de frescor. A experiência era nova, nos recintos não era possível distinguir médico e paciente. A porta ficava aberta e todos estavam livres para entrar e sair. A vivência era encantadora por permitir a abolição de papéis e estigmas: “Percebi muitas vezes que quando frequentava o espaço eu queria passar por doente e os outros, que eram doentes, queriam parecer profissionais”, lembra Dulce. Foi nessa época que


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ela começou a participar dos grupos de familiares e entender que existiam pessoas com casos muito semelhantes ao do seu filho. Para a mãe, a experiência foi muito rica, já para Sylvio foi diferente, ele não conseguiu criar laços com os médicos e pacientes. Ainda não seria desta vez que ele encontraria o seu porto seguro. A escola de natação de Geraldo fazia sucesso, pois ensinava seus alunos a nadar de uma maneira peculiar. Ele seguia os passos, ou melhor, as braçadas de um conhecido professor japonês chamado Sato. As aulas dadas por Sato renderam ensinamentos para além das piscinas. Certa vez o mestre, como era chamado por alguns, viu Geraldo nadando com velocidade, mas, ao invés de elogiá-lo, brigou e disse que para nadar direito era preciso “virar água” e não brigar com ela. No início Geraldo achou estranho, mas depois entendeu que precisava se integrar com a água e com tudo ao seu redor. Ele levou o ensinamento a sério e decidiu mudar-se para São Vicente, a fim de que o filho vivesse com mais tranquilidade. A cidade escolhida como novo lar para Geraldo não foi eleita ao acaso. Dulce também residia em São Vicente. Os dias não estavam muito fáceis para ela, já que há alguns anos ela e as filhas haviam deixado o apartamento onde viviam e Sylvio passou a morar sozinho. No começo, elas morriam de medo e mudaram sem deixar rastro, contudo o tempo passou e os sentimentos se transformaram. O temor foi embora e, hoje, a mãe visita o filho diariamente: prepara a sua comida, lava suas roupas e cuida para que ele tenha uma vida saudável e estruturada. Sylvio já mora sozinho há 15 anos e não se queixa. Segundo a mãe, ele não gosta de viver com outras pessoas. “Ele não troca, você dá, se doa inteiramente e ele acha que você está fazendo a sua obrigação”, diz. Além disso, Sylvio se apodera das coisas com muita facilidade, de modo que alterar a sua rotina e o seu espaço é quase impossível. No fim de 2009, Sylvio chegou a explicitar o desejo de viver com a mãe, mas o assunto gerou um desconforto para Dulce, principalmente, porque no último Natal ele confundiu o amor materno com outro sentimento. Os dois estavam sentados no sofá e ele começou a beijá-la de maneira exagerada; Geraldo, que já era companheiro de Dulce há 10 anos, teve que intervir. Ela relembra, com certo

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constrangimento, que ficou com nojo e se sentiu suja: “Eu não quero casar com o meu filho, quero ter a minha vida e ele a dele”. O aspecto clínico na vida de Sylvio foi resolvido quando ele passou a frequentar o CAPS III de São Vicente. Já faz sete anos que ele conseguiu encontrar o lugar onde se sente acolhido. O serviço foi impulsionado por meio de portarias do Ministério da Saúde e pela aprovação da lei 10.216, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Na vida de André tudo caminhou bem desde a mudança. Agora, ele morava de frente para um cartão postal: da janela era possível ver o mar que sempre o fascinou. Geraldo não perdeu tempo e logo levou seu filho ao CAPS III de São Vicente, onde faz tratamento até hoje. Dulce diz que no início os serviços não eram muito bons e atribui a melhora de 300% ao esforço e cobrança de Geraldo junto aos gestores do município. Além de ficar atento para que o filho tivesse um bom atendimento clínico, Geraldo também se empenhou para que André pudesse ir e vir em seu bairro. Como se diz na teoria, Geraldo lutou pela reinserção de seu filho no território. Ele não sai falando para qualquer um que o filho é esquizofrênico, que toma remédios e que tem dias em que ele pode estar meio esquisito, mas os funcionários da padaria, da farmácia, da banca onde ele compra cigarros e até os salva-vidas sabem de todos os pormenores e, dessa forma, ajudam a protegê-lo. Certa vez, André estava andando pela praia e torceu o pé. Os salva-vidas que o viram mancando não tiveram dúvidas: botaram-no na ambulância, primeiro o levaram ao CAPS, que é o seu centro de referência, e, em seguida, ao pronto-socorro. Geraldo não esconde o transtorno do filho e o fato de dividir e esclarecer a situação de André gera uma rede de apoio e ajuda. Depois de muitas palestras e discussões, Geraldo deixou de ser um leigo que só conhecia Freud e passou a ser um especialista. Atualmente, ele faz parte da Câmara Técnica de Saúde Mental do Estado de São Paulo e do Conselho de Saúde de São Vicente. Durante um dos congressos da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME), ele participou de um exercício no qual uma pessoa chegava


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bem perto do ouvido da outra e começa a falar insultos enquanto esta conversava. A ideia era reproduzir a sensação de um ouvidor de vozes. Essa experiência fez com que Geraldo tivesse noção da angústia que as vozes provocam em André. Geraldo sabe que alguns medicamentos, como o Haldol Decanoato, podem, como ele diz, “deixar as vozes mais acomodadas, mais reprimidas e menos agressivas, mas não impede que elas se manifestem”. A sua maior intenção como pai era compreender o que acontecia. E, numa tarde comum, como quem não quer nada, Geraldo comprou um livro chamado na Companhia das Vozes, de Marius Romme e Sandra Escher. Sem querer, querendo, o deixou sobre a mesa da sala e, como ele desejava, André começou a folhear livro. Curioso, enquanto almoçavam, Geraldo não hesitou e perguntou ao filho por que ele nunca havia falado que ouvia as vozes antes. André foi rápido e respondeu: — Se eu lhe dissesse que ouvia vozes, você iria pensar que eu era louco e eu não sou louco! A conclusão de Geraldo é de que seu filho também estava analisando o seu comportamento. O pai atesta que os aprendizados são inúmeros e intensos para quem está aberto para ouvir e aceitar o discurso da loucura sem restrições, aproveitando a potência da palavra e da escuta como terapêuticas. Geraldo chegou a postar uma das lições que apreendeu no blog do Fórum de Saúde Mental da Baixada Santista: “Em minha observação das reações de meu filho, percebia que, durante nossas conversas, de repente, ‘dava um branco nele’, mas, quero dizer que, isto se refere a lembranças muito iniciais da nossa relação com a doença. Não tínhamos conhecimentos desses estudos, já em andamento, relativos a ouvidores de vozes. Foi então que comecei a perceber que naquele momento do ‘branco’, eram as vozes interferindo em nossa conversa. Foi pura intuição, mesmo!” Ainda no mesmo artigo, ele descreve um dia marcante: “Durante nossas conversas, num determinado dia, inesperadamente, ele se virou para mim, dizendo: ‘Pai, as vozes estão enchendo meu saco! ’. E aí, companheiros, foi a glória. (...) Assim, hoje, caminhamos juntos, discutindo as vozes, e fizemos até um trato: combinamos que, quando as vozes surgissem, atrapalhando nosso entendimento, ele

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daria uma piscadela para mim, sinalizando a presença delas. Essa, não poderia ser uma piscadela comum, seria uma bem extravagante! Então, começamos a lembrar de piscadelas extravagantes, chegando àquela da cara do Marinheiro Popeye, aquela que ele faz quando está muito bravo. Ele pisca um olho e levanta o canto da boca, quase até a orelha, isso, sem deixar cair o cachimbo, hein? Mesmo na minha ausência, a piscadela do Marinheiro Popeye deverá ser usada, em quaisquer circunstâncias, pois, aonde eu estiver, ficarei sabendo. Este trato, que fizemos às gargalhadas, foi um dos sinais que combinamos. E saibam, foi incrível o efeito positivo que trouxe”. Em uma guerra nuclear todos os habitantes do planeta Terra vão morrer e só restará uma pessoa no meio da destruição: Sylvio. Esse delírio é ouvido com frequência, e nele Sylvio se faz invencível e pode tudo contra todos. Além da força, a virilidade também é recorrente em suas histórias. Ele diz ter mais de 28 mulheres, aliás, ele chama suas companheiras de ratas. A mãe diz que ele só pensa e só fala em sexo. Sylvio gosta de descrever o que fez e o que as ratas faziam com ele. Além disso, vez ou outra, ele pede dinheiro à mãe para sair com uma garota de programa. Dulce pensa que se o diagnóstico fosse feito mais cedo os delírios não seriam tão grandes. “Meu filho construiu um delírio tão sólido que, para ele, aquilo é sacramentado. Ele levou anos solidificando aquilo, muitos anos, até compreender que o problema dele era esse”. Ela conta que um dia o filho começou a ficar irritado porque as ratas estavam discutindo entre si e, para dar fim ao falatório, ele quebrou o box do banheiro. A ligação entre Sylvio e a ratas é tão intensa que ele fez uma mini certidão de casamento para cada uma. O resultado, como diz Geraldo, é um trabalho de artista. São pequenas capas de cartolina de 2 cm x 2,5 cm que guardam a certidão cuidadosamente dobrada e com as devidas imitações de carimbos. Em uma delas pode-se ler: “Hoje, dia 11/12/1993, atesto no livro nº 1, página nº 002, que estão devidamente e legalmente casados o Sr. Sylvio Luiz Rodrigues Jr. com a Sra. Daniela Sousa, e que passará a se chamar Daniela Luiz Rodrigues Sousa, sendo os pais do noivo, Sylvio L. Rodrigues e Dulce E. P. dos Santos, e da noiva Radio F. Modulada e Rede Globo. Foram os padrinhos da cerimônia Apto 12 e Minhas Aulas do 2º


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grau, e Rock´in Roll e a MPB. Eu tabelião Mystério atesto e afirmo a autenticidade deste documento. São Vicente, 8 de setembro de 1996. Ass: Mystério Luiz Ratinho” As certidões foram descobertas no fundo de um armário durante uma faxina, mas ele nem desconfia que a mãe encontrou os vestígios do seu harém imaginário. Um dos médicos de Sylvio pensou em fazer um estudo sobre o material, a mãe recorda orgulhosa: “Ele queria estudar as criações do meu filho e disse que ele é um gênio como Arthur Bispo do Rosário”. No entanto, convencê-lo a exibir as invenções de sua mente é uma tarefa árdua. Para inscrever um de seus quadros – Sylvio também pinta – no concurso de arte do Conselho Regional de Psicologia, a mãe teve que mencionar a premiação em dinheiro, caso contrário, a tela não teria saído de casa. A causa de Dulce e Geraldo era pessoal, no entanto, o contato com as deficiências e transformações na gestão da saúde mental, os motivou e, hoje, o trabalho e o tempo deles é dedicado ao esclarecimento e manutenção da qualidade dos tratamentos. Eles passam boa parte do dia escrevendo e trocando e-mails com familiares e médicos de todo país. Os dois mostram o computador como a sua principal ferramenta de trabalho e usam a internet como um poderoso alicerce na luta antimanicomial. O depoimento da dupla traz em si uma força inexistente na fala dos teóricos da Reforma Psiquiátrica. Geraldo fica irritado ao lembrar dos belos discursos que ignoram o que é tomar um soco na cara durante um surto. Na opinião dele, o discurso acadêmico vai muito bem, mas o que falta são pessoas dispostas a sair do consultório para atender e prestar socorro ao paciente. A politização da saúde não é negativa para ele, pelo contrário; Geraldo acredita que a política é inerente a qualquer indivíduo. O que o incomoda é o discurso em detrimento da ação. O tratamento e a gestão de saúde mental já sofreram uma profunda alteração conceitual – uma mudança de paradigma que passa a tratar o indivíduo e não uma doença – e o que precisa ser feito é a transposição de ideias em fatos. Ainda sobre a questão política, Dulce faz uma ressalva: “O bom é a política apartidária”. O professor de natação aposentado brinca que “não é tudo lagos azuis e peixinhos dourados”, mas avalia que as perspectivas são

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boas. Recentemente, inclusive, eles tiveram uma prova de que podem contar com o apoio e retaguarda do CAPS. No fim do mês de junho, Geraldo e Dulce foram à Brasília para participar da IV Conferência Nacional de Saúde de Mental e durante uma das mesas foram surpreendidos por um telefonema de Sylvio. Sylvio ligou dizendo que espiões tinham instalado um rádio em seu quarto e que em suas ondas eram propagadas ordens para que ele se jogasse pela janela. Há mais de 1.000 quilômetros de distância, Dulce ficou desesperada e um detalhe ecoava em sua cabeça: — Meu Deus! Ele mora no oitavo andar. Dulce ligou para Rita, sua filha mais nova, que foi até o apartamento para tentar convencer o irmão de que tudo estava bem e que o melhor era ele ir ao médico. Por ter 35 anos, treze a menos do que Sylvio, seu apelo foi totalmente ignorado. A voz do rádio continuava a emitir a sua ordem e Dulce insistia para que o filho não obedecesse, pedia que ele ligasse a televisão ou usasse o computador. No dia seguinte Rita foi visitar o irmão novamente, mas dessa vez não estava sozinha. Ela estava acompanha por alguns funcionários do CAPS que convenceram Sylvio e o levaram para uma consulta com o médico. Depois da conversa, o médico achou por bem interná-lo no CAPS III até que a crise cessasse. Também, recentemente, André, que já tem 45 anos, passou por um período difícil. Ele aguardava ansiosamente pelo Dia das Mães e contava que nessa data receberia a visita de Vilma, sua mãe. O dia chegou, mas Vilma não veio e André ficou irritado, pois achou que o pai estava armando dificuldades para a vinda de sua mãe. A desconfiança chegou ao ponto dele expulsar o pai de casa à vassouradas. André chegou a passar alguns dias internado no CAPS III e, depois de sair da crise, continuou o tratamento com visitas diárias. Quando voltou para casa, sua mãe veio fazer uma visita e acabou ficando quase um mês. André ficou tão realizado que não deixava a mãe voltar para sua casa em Boiçucanga, litoral sul de São Paulo. Na época desta entrevista, Geraldo ainda não tinha voltado para casa e estava apreensivo com relação à aceitação do filho. Ele divagou muito sobre como fazer uma reaproximação e pensou em algo amistoso: “Vou levar algum presente ou um agrado como faziam os antropólogos quando visitavam tribos indígenas”. O pai ainda não


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sabia se o filho tinha superado a suposta traição. Geraldo queria rever o filho e retomar sua rotina com ele. Os dois são muito próximos e fazem tudo juntos. O pai chega a amolecer a voz enquanto pronuncia a sua frase preferida: “Eu achava que ele era meu dependente, mas, hoje, tenho certeza absoluta de que sou dependente dele”. Geraldo insiste que não se trata de algo clichê e dá sua palavra de honra: “Eu preciso estar com ele; com todos os riscos possíveis e desacertos na nossa relação, vale a pena. É uma experiência difícil, mas eu apreendi muito com ela, cresci e me transformei como pessoa. Eu não sou mais aquele executivo alucinado”. ***

Internação “Ele entrava em surto E o pai o levava de carro para a clínica ali no Humaitá numa tarde atravessada de brisas e falou (depois de meses trancado no escuro de sua alma): pai, o vento no rosto é sonho, sabia?” Ferreira Gullar José Ribamar Ferreira filou-se ao Partido Comunista Brasileiro no dia 1° de abril de 1964. Um dia antes, o controle do país foi tomado pelos militares por meio de um golpe. A atuação política e cultural de José era intensa e todos o conheciam como Ferreira Gullar. Ele já havia publicado artigos, poesias e manifestos. Gullar era uma figura pública e todos os seus passos à esquerda eram acompanhados de perto pelos militares. Em 1968 foi preso e depois disso passou um longo período vivendo na clandestinidade.

As escolhas políticas e os valores do poeta eram vistos como uma provocação pelo regime e, em 1971, ele partiu para o exílio. Durante o período em que esteve longe de casa, o poeta morou em Moscou, Santiago, Lima e Buenos Aires. Foram seis anos distante da família. O regresso foi motivado pelo adoecimento dos filhos, Paulo e Marcos. Gullar estava sendo perseguido e corria o risco de ser preso assim que descesse do avião. Frente à ameaça, no entanto, seu instinto paterno era superior ao medo da prisão. Thereza Aragão, a primeira esposa do poeta, estava muito fragilizada, pois não entendia qual era o problema dos filhos. Os dois estavam muito agressivos e, só depois de alguns anos, foram diagnosticados como esquizofrênicos. O pai recorda que quando voltou do exílio teve que buscar Paulo em uma delegacia. O garoto, na época com 20 anos, havia tentando roubar um carro depois de ficar sumido por dois meses. A tentativa de roubo era um ato absurdo para o pai, já que seu filho não sabia dirigir. O encontro com Paulo foi marcante, ele estava muito abatido e 30 quilos mais magro. “A minha primeira reação foi protegê-lo e levá-lo para casa”, diz o pai. Depois de acolher o filho, Gullar chamou um médico e decidiu interná-lo. A internação durou pouco, pois Paulo fugiu do hospital no Rio de Janeiro. Dias mais tarde, ele foi achado debaixo de chuva em Taboão da Serra, São Paulo. Os dias de internação eram extremamente dolorosos. O pai lembra de pegar Paulo pela mão e levá-lo enquanto sua mulher chorava. No caminho para o hospital, Gullar caminhava comovido enquanto ouvia as histórias imaginadas pelo filho. “Dói, ninguém interna um filho por prazer, as pessoas fazem isso porque não têm alternativa. Ele ficava incontrolável e, uma vez, quase estrangulou uma empregada”. No seu caso em particular, Gullar crê que as drogas foram o fator desencadeante do transtorno de seus filhos. Os dois abusavam da maconha e da cocaína. Depois de uma viagem ao Peru, inclusive, Paulo também passou a usar LSD. Além disso, o poeta conta que na família de sua esposa, já falecida, pelo menos duas pessoas já haviam apresentado sintomas relacionados à esquizofrenia. A hipótese de que os transtornos sejam hereditários, no entanto, ainda não foi comprovada cientificamente. O quadro de Marcos era mais estável do que o do irmão, por isso


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ele foi internado apenas uma vez. Porém, em 1992, aos 31 anos, ele faleceu de cirrose hepática. Hoje, Paulo não vive mais com o pai, pois, no período em que morava em Copacabana, era muito assediado por traficantes e ficar longe da cocaína era impossível. Gullar deu vários alertas: “Filho, se você continuar cheirando cocaína, você vai morrer”, mas nenhum surtiu efeito. E, diante da gravidade da situação, o pai lhe fez uma proposta: ou você volta a ser internado ou vai para o sítio. O sítio mencionado fica em Pernambuco e pertence a um amigo da família. Paulo não titubeou e escolheu o sítio. O pai ressalta que o filho tem consciência das coisas. “Ele sabe muito bem o que é bom e o que é mal, a droga já estava causando problemas cardíacos”. Vivendo no sítio há mais de seis anos, ele cuida de animais, pinta e praticamente superou o problema. “Ele não está curado, mas graças aos remédios está equilibrado”, afirma o pai. Gullar começou a tornar pública a sua convivência com o transtorno dos filhos em 1999, quando publicou o poema Internação. Mais tarde, em 2009, ele escreveu três artigos em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo nos quais criticava fortemente a política atual de saúde mental. Segundo ele, o que o motivou a escrever sobre o tema foi uma notícia sobre o assassinato de um jovem de 16 anos. Consta que o garoto teve um surto e saiu de casa enquanto os pais trabalhavam. Na rua, começou a falar coisas desconexas e foi morto. Nos artigos, o poeta faz críticas pesadas à Reforma Psiquiátrica e chama a lei que a sustenta – lei 10.216 – de idiota, como já foi citado no primeiro capítulo. Ele fez de tudo para barrar a aprovação do código no Senado: “Liguei para o senador [José] Sarney, que é meu conterrâneo e amigo, para que tentasse impedir a aprovação dessa lei ou que, ao menos, tirasse da lei esse absurdo”. O absurdo ao qual ele se refere é a comunicação a um juiz sobre qualquer internação. Com relação a esse ponto o texto final e sancionado determina que apenas “a internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de 72 horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta”. Tal medida é apoiada pela OMS. Cada uma das palavras que Gullar pronunciou sobre a sua vida

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particular é preciosa. Num primeiro momento, ele se negou a comentar qualquer coisa sobre a sua experiência pessoal e disse: “Não entendo nada de saúde mental, não sou médico nem estudioso do assunto”. Mas a seguir, por telefone, mudou de ideia e deixou escapar alguns episódios marcantes. ***

“Nunca abandonem seus filhos” O corredor estava escuro e, de repente, uma porta se abriu. Agora, a luz do apartamento 104 iluminava o caminho e um homem me esperava na entrada. Ele não disse nada, parecia ser muito tímido, seu gesto mais ousado foi apontar na direção da sala. O apartamento não era grande e logo vi Dona Ignês sentada à minha espera. Ignês da Conceição Oliveira havia sido indicada para uma entrevista, pois participava ativamente do tratamento do filho. Comecei a suspeitar que aquele homem sentado olhando para a parede era o motivo de minha visita. Perguntei a ela, que confirmou: “Esse é o meu filho, o Ecio”. Ele olhou para a mãe ao ouvir seu nome. Em seguida, o convidei para sentar à mesa e participar da conversa. Ele ficou meio acanhado, mas aceitou. Antes mesmo de ouvir as perguntas, Dona Ignês começou a falar de sua vida desde o princípio, quando se casou com Manoel. As lembranças do ex-marido foram marcantes para ela e os quatro filhos. “Ele era um homem trabalhador, pagava as contas, mas tomava conta de tudo que se passava na casa: chegava do serviço e ia até a lata do lixo para saber o que a gente comia quando ele não estava em casa”, diz. Manoel controlava tudo e, além disso, batia na esposa. Qualquer coisa era motivo para agredi-la: o cuidado excessivo com os filhos, o modo como estendia as roupas no varal e as quatro gestações seguidas. “Ele reclamava que eu estava tendo muitos filhos, mas também não podia usar defesa nenhuma, pois ele achava que mulher que se sente prevenida anda com qualquer um”. As agressões eram diárias, “ele me batia e eu vivia com o olho roxo. Ele gostava de bater no meu rosto, não sei como não fiquei


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cega”. Ecio ainda era novinho, tinha três anos, e viu a mãe ser empurrada pelo pai. No dia seguinte, o menino falou para a mãe: — Eu não gosto mais do meu pai porque ele bateu em você. A mãe tentou contornar a situação e falou que tudo não passava de um sonho, o menino não acreditou e na hora do jantar disse ao pai que tinha visto a briga e que não gostava mais dele. O pai negou a discussão. Nessa época, Ignês estava grávida de Luci, a caçula. Depois do nascimento de Luci, Ignês só pensava em uma coisa: fugir de casa. Foram vários planos. Como era costureira, pensou em ir para o Rio de Janeiro achando que lá poderia trabalhar em confecções, mas a ideia não deu certo. Depois uma amiga lhe disse que tinha um apartamento vazio na cidade de Santos e imediatamente ela alugou uma caminhonete para fazer a mudança. Enquanto o marido trabalhava, ela arrumou as malas. Ignês juntou a roupa dos filhos, botou os berços e a máquina de costura na carroceria do caminhão e seguiu para o litoral. Desde então, as crianças nunca mais viram o pai, que também não as procurou. A estadia no apartamento da conhecida durou pouco e Ignês teve que se mudar com os filhos. O novo aluguel era caro e sustentar os quatro filhos, sozinha, não era fácil. A certa altura, ela teve uma complicação decorrente da última cesariana e as economias foram gastas em uma cirurgia. Depois disso, as contas foram se acumulando. Ignês precisou se mudar mais uma vez e alugou um quarto numa pensão, mas o lugar não aceitava crianças. Para solucionar o problema, ela decidiu colocar os meninos, Omar e Ecio, num colégio interno. Os dois passaram por três escolas diferentes e ficaram longe da mãe durante seis anos. A experiência no internato foi muito traumática para Ecio, que passava o dia todo calado e com medo dos meninos mais velhos. Segundo Dona Ignês, seu filho foi “afundado” no lago da escola pelos maiores inúmeras vezes. Ela acredita, inclusive, que foi isso que provocou a “doença dele”. Já Ecio vai além, para ele o problema não era só o lago, mas também a energia negativa que o cercava desde seu nascimento. Em vão, Dona Ignês tenta encontrar justificativas para o transtorno do filho. Ela diz que ele sofre a doença da moda: depressão. A médica que cuida de Ecio discorda e insiste que o quadro dele tem

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outras características. A mãe não se conforma com a impossibilidade de cura e com o aparecimento de novos sintomas. Para se consolar, ela descreve o ótimo desempenho do filho no primário e os elogios da professora. O fato é que, aos 14 anos, depois de sair do colégio interno, Ecio estava muito agressivo. A princípio, a mãe achava que era algo esperado, pois ele estava virando “um homenzinho”. O tempo passou, e a mãe percebeu que tamanha irritação era algo mais grave, o próprio filho lembra: “Ninguém falou que eu tinha uma doença, mas pelo meu comportamento ela [mãe] chegou nessa conclusão. Eu ficava muito nervoso e batia nos meus irmãos”. Uma força negativa o controlava, “como um encosto”, diz Ecio. A mãe descreve o comportamento do filho como diferente: “Ele ficava parado, horas e horas, olhando para a mesma coisa ou andando sem parar. Era um mundo só dele”. Em busca de uma solução, Ignês foi ao Hospital com o filho. Lá, o médico receitou vários remédios, no entanto, Ecio se negava a tomar os comprimidos: “Eu não queria tomar remédio, não sabia o que eu tinha e não queria me tratar”. Ecio nunca precisou ser internado, “as pessoas querem internar para se livrar porque têm vergonha”, lamenta a mãe, que tentava convencer o filho da importância de um tratamento contínuo. Nesse mesmo período, início da década de 90, os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) já existiam e eram o principal recurso para o tratamento de portadores de transtorno mental na cidade de Santos. Dona Ignês ficou sabendo que a quarta unidade do serviço seria inaugurada e foi até lá sem avisar o filho. No NAPS IV, Dona Ignês foi recebida por duas assistentes sociais que ouviram atentamente a história de seu filho. Imediatamente as assistentes pediram que Ignês levasse Ecio até a unidade, mas ela o conhecia muito bem e sabia que ele se negaria a ir até lá. As funcionárias, então, prometeram ir ao encontro de Ecio em sua casa. Passados três dias as assistentes cumpriram a promessa e bateram na porta de Dona Ignês. Ecio ignorou a visita e se manteve calado até que uma das assistes, Lúcia, o convidasse para sair de carro. “Eu lembro desse dia. Eu achava ela bonita e simpática, aí ela me convidou para andar de carro e eu aceitei. Mas não sabia se aceitaria ir ao NAPS ou não”, afirma. O passeio foi proveitoso e


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Lúcia voltou dizendo que ele tinha concordado em visitar o serviço sem compromisso. No dia seguinte, mãe e filho foram ao NAPS IV. Ecio conversou com um psiquiatra, viu outros usuários tomando a medicação e ficou aliviado: “Eu achava que eles tratavam tudo na base do choque [eletrochoque], então, ficava com medo”. Mais tranquilo em relação ao tipo de tratamento, Ecio passou a frequentar o espaço todos os dias. Entre as 8 e 17h, ele almoçava, lanchava, jogava ping-pong e ouvia música. “Eu vi que estava precisando de cuidados e acabei indo, mas não gostava porque me fazia sentir doente”, confessa. Dona Ignês passou a acompanhar o filho nas idas ao NAPS. E enquanto ele fazia o tratamento, ela participava de bazares, festas e assembleias, nas quais trocava experiências com outros pais e expressava sua opinião sobre a clínica. Ela lembra dessa época sorrindo: “O pessoal era maravilhoso, parecia que foi Deus que escolheu aquele grupo para trabalhar com os doentes mentais. Os funcionários se entregavam de corpo e alma”. Atualmente, Ecio vai ao serviço uma vez por semana para pegar remédios e o que era uma obrigação tornou-se prazer. Inclusive, para facilitar o seu tratamento, ele mudou para o NAPS V, que fica mais próximo de sua casa. Dona Ignês, que antes batia cartão na unidade, está mais quietinha. Aos 85 anos, as dores causadas pela osteoporose limitam seus passos, mas ela não tira o olho do filho em nenhum momento. Ao serem questionados sobre a qualidade do atendimento nos últimos 20 anos, os dois disparam e começam a falar ao mesmo tempo. A resposta só se torna audível depois que Ecio corta a mãe. “Quem tem que responder sou eu”, afirma, dono de uma autoridade, até então, contida. Mas na hora de responder ele fica em dúvida, “eu acho que piorou, na verdade, não sei”, e a mãe completa: “O que piorou foi o pessoal, a relação de pessoa para pessoa, mas os médicos e os remédios continuam iguais”. Mãe e filho moram sozinhos, o cômodo principal foi dividido em três: sala de televisão, sala de jantar e quarto. As camas estão dispostas lado a lado e a impressão que se tem é de que um toma conta das fragilidades do outro. O tempo e a intimidade, no entanto, não conseguiram fechar

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uma ferida e um arrependimento pairava sobre as palavras de Dona Ignês. Durante toda a entrevista, ela repetiu: “Eu peço para que os pais cuidem e nunca abandonem seus filhos”. O pedido era feito com tristeza. De algum modo, ela se sentia culpada pelo sofrimento de Ecio. Enquanto descrevia a rotina e as histórias de abusos entre os alunos de colégios internos, ela pedia uma desculpa silenciosa ao filho. Diferente da mãe, Ecio não queria encontrar culpados pelo seu transtorno. Ele tem recordações do tempo em que a família não o aceitava, mas não tem raiva. “Antes eu não dava dinheiro em casa, então, eles [os irmãos] chiavam. A minha sobrinha era bebê e eu tinha vontade de brincar com ela, mas por causa desse problema eles não deixavam eu me aproximar da menina”. A relação com os irmãos melhorou quando ele passou a receber um auxílio financeiro do INSS e, sobretudo, depois que mudou de comportamento. Para exemplificar a sua transformação, Ecio cita um de seus músicos preferidos, John Lennon. “Ele escreveu uma frase assim: ‘Já andei por toda parte e só encontrei dentro de mim’. Então, quer dizer, ele já passou por tudo... Eu já tive uma fase em que eu não respeitava ninguém, agora, eu respeito. Um cachorro e tudo que eu não conheço, mesmo assim, eu respeito”. Com 49 anos, mais maduro e consciente de que pode viver bem, Ecio alcançou uma grande conquista. Depois de receber um folheto na rua, se matriculou em um curso de inglês e internet. Os irmãos ficaram enciumados, mas a mãe comemorou: “Ele está feliz da vida e eu ajudo a pagar com muito gosto. Ele precisa achar uma coisa que dê prazer. Por mais doente, uma parte ainda está sã e pode realizar qualquer coisa”. Os olhos de Ecio brilhavam enquanto ele descrevia as aulas e as palavras que estava apreendendo. “Sempre tem novidade. Falam que quem tem problema mental não aprende, mas a primeira coisa que os professores perguntam é se eu estou entendo e eu estou!”, diz ele vibrando.


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CONCLUSÃO

O mito da neutralidade jornalística já caiu por terra há algum tempo e, como não poderia ser diferente, este trabalho assume uma posição perante as mudanças no modelo de assistência na saúde mental. O recorte que foi feito é bem específico, as perspectivas sobre o tema são muito variadas, mas devido ao tempo reduzido para um trabalho de conclusão de curso algumas escolhas tiveram que ser feitas. A conclusão deste livro não foi baseada em experiências laboratoriais ou cálculos matemáticos. O caráter positivo das mudanças propostas pela lei nº 10.216, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, ficou evidente por meio dos depoimentos. O saldo positivo da nova estrutura de assistência pôde ser depreendido por sorrisos, lágrimas e a conquista da cidadania. As críticas existem e devem ser feitas para que o padrão de atendimento seja cada vez mais elevado, mas ignorar os benefícios visíveis na vida das pessoas envolvidas é um erro. Não há justificativas plausíveis que possam legitimar o modelo manicomial, excludente e totalitário. Hospitais psiquiátricos bonitos e limpos não são necessariamente melhores, pois continuam segregando e excluindo as pessoas do convívio social. As alas, dentro de uma concepção funcionalista, são divididas de acordo com os sintomas apresentados; a convivência é restrita entre iguais e a justificativa para essa prática é técnica e não médica. O peso dessas instituições sobre os indivíduos e suas características particulares teve muitos efeitos negativos. Resgatar a autoestima e retomar relações sociais é algo muito importante, como foi percebido ao longo das histórias aqui contadas. Tomar um ônibus,


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fazer compras e estabelecer contratos, hábitos até então interrompidos por longas internações, é uma conquista imensurável para os portadores de transtorno mental entrevistados. A realidade está em transformação e tanto a rede de saúde quanto a população em geral ainda não estão totalmente preparados para lidar com a proposta antimanicomial. Algumas experiências importantes foram descritas nos capítulos anteriores, mas precisam ser ampliadas de modo a cobrir a totalidade do território nacional. Só no Estado de São Paulo existem 58 hospitais psiquiátricos em funcionamento. Uma das situações mais graves ocorre na cidade de Sorocaba, onde, segundo o Censo Psicossocial de 2008, 2219 pessoas moram em hospitais. Na cidade, os modelos abertos são insignificantes e estão sob gestão de instituições privadas ligadas aos proprietários de sanatórios. Os hospitais e a própria Coordenação Municipal de Saúde Mental de Sorocaba evitam falar sobre o assunto. Um dos maiores hospitais da cidade, o Jardim das Acácias, postergou minha visita duas vezes e por fim negou o pedido, alegando falta de funcionários disponíveis para me receber. No dia 18 de maio deste ano, durante uma audiência pública na Câmara Municipal, a Coordenadora de Saúde Mental, Maria Clara Suarez, deixou o evento antes do previsto e não respondeu a nenhuma pergunta da plateia. Além de ampliar os serviços, é imprescindível que a qualidade do atendimento seja mantida independente das mudanças de governo. Alguns entrevistados reclamaram dessa questão, pois se sentem prejudicados quando um prefeito ou governador é eleito e deixa de destinar verbas ou qualificação para os profissionais da área. Assim como qualquer outra lei, se o estatuto aprovado em abril de 2001 não for abraçado pela sociedade civil dificilmente será aplicado em sua plenitude. A pressão popular que resultou na sua aprovação terá de permanecer até que a rede seja consolidada e todos aqueles que dela necessitam sejam atendidos. O que pude concluir, a partir dos relatos aqui registrados, é que estamos no meio do caminho. O passado das camisas de força, dos maus-tratos e desrespeito foi negado solenemente e o tratamento aberto é uma meta possível, mas para alcançá-la é preciso superar preconceitos e desvincular saúde de lucro.

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Referências cinematográficas – Crônica de Mente. Direção de Clemie Blaud. Brasil: Bachiana Filmes, 2010. – Loki - Arnaldo Baptista. Direção de Paulo Henrique Fontenelle. Brasil: Canal Brasil, 2008. – Omissão de Socorro. Direção Olívio Tavares de Araújo. Brasil: Ver & Ouvir, 2007. – Um Estranho no Ninho. Direção de Milos Forman. Estados Unidos: Fantasy Films/N.V. Zvaluw, 1975. – Vídeo Institucional da Prefeitura Municipal de Santos, 1989.



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