A vila dos Catadores Ciclistas
Fotografia da capa: Rodrigo Cabral
Universidade de Brasília Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Trabalho de Final de Graduação A vila dos catadores-ciclistas Bruna Ruperto Camillo 13/0104060 Orientadora Profª. Drª. Liza Maria Andrade Coorientação Profª Me. Ana Carolina Matias Banca examinadora Profª Drª Vânia Loureiro Prof. Dr. Benny Schvarsberg Brasília Maio 2022
Minha gratidão está voltada à todas e todos que direta ou indiretamente contribuíram no longo percurso da graduação e deste trabalho. Uma parte dela está voltada aos que considero parceiros, àqueles que a rigor estiveram nesta pesquisa junto comigo. Muito obrigada aos professores da banca pela disposição em me acompanhar nesta diplomação. Ao Prof. Benny Schvarsberg pelas impressões e pela lembrança do papel fundamental da poesia na arquitetura. Ao Prof. Paulo Tavares pelo interesse e sugestões formais. E à Profª. Vânia pelos comentários atentos que sempre fez e que voltou a fazer neste projeto. Agradeço de modo especial à minha orientadora Profª. Liza Maria Andrade, que me acompanhou durante toda a graduação, desde o CASAS, passando pelas disciplinas de urbanismo e até aceitar me guiar neste desafio com tanto entusiasmo, lucidez e envolvimento. Para além de ser uma inspiração, eu sabia que pela luta de um espaço de trabalho para os catadores seria fundamental ter a sua participação. À minha coorientadora e parceira Carol Matias, que me deu a oportunidade de conhecer de perto o processo de seu trabalho, incluso (e talvez principalmente) os dilemas. Obrigada pelo companheirismo e pelos próprios resultados de suas investigações que são o que dão substância às considerações feitas aqui sobre as rotinas e rotas dos catadores. Muitos professores me acompanharam de forma mais próxima e devo agradecimento especial à Prof.ª Cristiane Guinancio que me acolheu em seu projeto de extensão e ao Prof. Eduardo Rossetti pelo entusiasmo na orientação do ensaio teórico. Agradeço à secretaria da FAU e especialmente à Josué Capuchinho por todo o cuidado. Devo à receptividade das defensoras Drª. Clélia e Drª Juliana pelo atendimento, pela escuta e pela parceria na atenção voltada aos catadores. O meu maior privilégio foi poder ter o apoio do meu parceiro nos projetos e na vida, Igor Cerqueira. Desde 2018, Igor vem debatendo comigo todas as questões relativas à este trabalho e ainda sobrou pra ele fazer almoço, tirar foto, revisar, recortar muito papel e estar ali nas melhores e piores horas. Obrigada por tudo isso e por todo o gigantesco resto. Este projeto tentou ser para os catadores, e na medida do possível, pelos catadores. Foram pessoas como Dona Caçula, Dadá, Nem e Seu Benedito que viabilizaram as conversas e os encontros de que este trabalho tanto dependia. Dona Caçula, em especial, fez parte de todo o processo com sua energia e receptividade. Devo agradecimento à todos que conversaram comigo, trazendo de maneira franca suas impressões, trajetórias e anseios. Obrigada Bibi, Edvan, Evandro, Ana, Luciano, Dona Francisca, Seu Chiquinho, Juliana, Iaponam, Dayane, Vitória, Jeorge, Fabrício, Márcio, Ciço, Cristiane, Vicente, Bracinho, Nicásio, Muriçoca, Pedro, Cícero, Cristina e Lucas.
Gostaria ser possível agradecer aos muitos colegas e companheiros da FAU, pois desde o princípio havia percebido o quanto nós conseguíamos aprender uns com os outros coisas que sequer sabíamos. Neste sentido, fica a gratidão especial aos colegas que estiveram comigo no CASAS, Samuel, Sofia, Beatriz, Mateus, Luiz, Raul, Giulia, Taís, Eduardo, Isabela e Julia. Carinho enorme tenho pelos amigos da minha turma e de lá saíram minhas irmãs e parceiras de projeto Gabriela, Babi e Muniky. Essas sabem bem o tanto que devo a elas, assim como devo ao Arthur pela nossa amizade insistente. Aos meus sogros e, em um acaso impressionante, colegas de profissão André e Carla, Tânia e César por tudo em que já me ajudaram e passaram forças. Agradeço a confiança da minha chefe e parceira Juanita Noronha, que me ofereceu tantas oportunidades como se já não bastasse a amizade que construímos. Aos meus pais pelas paciências, impaciências e sobretudo pela compreensão durante o que foi uma busca prolongada por uma profissão em que eu me identificasse e visse a possibilidade de uma participação em sentidos técnico, poético e social.
agradecimentos e parcerias
“A cidade de Leónia refaz-se a si própria cada dia que passa: todas as manhãs a população acorda no meio de lençóis frescos, lava-se com sabonetes acabados de tirar da embalagem, veste roupas novinhas em folha, extrai do mais aperfeiçoado frigorífico frascos e latas ainda intactos, ouvindo as últimas canções no último modelo de aparelho de rádio. (…) a opulência de Leónia mede-se pelas coisas que dia a dia se deitam fora para dar lugar às novas. De tal modo que há quem se interrogue se a verdadeira paixão de Leónia é realmente como dizem o gozar as coisas novas e diferentes, ou antes o rejeitar, o afastar de si, o limpar-se de uma constante impureza. (…) É uma fortaleza de resíduos indestrutíveis que rodeia Leónia, que a domina de todos os lados como um maciço de montanhas. (…) O lixo de Leónia pouco a pouco invadiria o mundo, (…) Talvez o mundo inteiro, para além dos limites de Leónia, esteja coberto de crateras de lixo, tendo cada uma ao centro uma metrópole em erupção ininterrupta.” (As cidades invisíveis, Ítalo Calvino)
“Uma nova arquitetura deveria ser ligada ao problema do homem criador dos seus próprios espaços; uma arquitetura de conteúdos puros, conteúdos que criassem as próprias formas. Uma arquitetura na qual os homens livres criassem os próprios espaços. Esse tipo de arquitetura requer uma humildade absoluta da figura do arquiteto, uma omissão do arquiteto como criador de formas de vida, como artista, e a criação de um arquiteto novo, um homem novo ligado a problemas técnicos, a problemas sociais, a problemas políticos, que abandone completamente a enorme herança mesmo do movimento moderno, que acarreta umas amarras enormes, que são as amarras que produzem a atual crise da arquitetura ocidental. Eu digo ocidental porque o Brasil está tomando parte de uma crise geral da arquitetura que não é somente brasileira, que é uma crise de formalismo, de pequenos problemas, de involuções individuais que nada têm a ver com os problemas do homem atual”. (Lina Bo Bardi, em depoimento ao filme “Arquitetura — A Transformação do Espaço” de Walter Lima Jr.)
ÍNDICE 12 APRESENTAÇÃO 14 INTRODUÇÃO 16 MÉTODO 18 20 22 24 26 28
CONTEXTUALIZAÇÃO A reciclagem nas ruas de Brasília A Política Nacional dos Resíduos Sólidos A PNRS e o DF: encerramento do Lixão da Estrutural Os limites do modelo de cooperativas em galpões O modelo convencional de galpão: o caso do Centro de Triagem da Centcoop 30 Os Catadores das Cargueiras e uma tentativa frustrada de inclusão 31 A busca por uma alternativa 32 34 36 38 42 44 46 48 50 52
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OS CATADORES DAS CARGUEIRAS Glossário As famílias O território O trabalho O ciclismo As rotas e caçambas A coleta A venda As bregueces e a feira
58 UMA TECNOLOGIA SOCIOECOLÓGICA 66 A CONSTRUÇÃO DE UMA ASSOCIAÇÃO 68 O TERRENO IDEAL 72 DIRETRIZES DO PROJETO 74 PADRÕES ESPACIAIS 82 OFICINA 86 REFERÊNCIAS EM ARQUITETURA 98 110 116 120 126
A VILA DOS CATADORES CICLISTAS Espaço de Reciclagem Espaços integrados Alojamentos Prédio da Associação
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Apresentação O trabalho de conclusão de curso de graduação aqui exposto faz parte de um processo que se inicia em 2018 durante a realização do filme documentário “No Rastro das Cargueiras”. Na ocasião fui convidada pela cineasta Ana Carolina (Carol) Matias para compor a equipe do projeto e tive também o privilégio de acompanhar de perto a pesquisa realizada pelo roteirista do filme, Igor Zeredo de Cerqueira. Foi através dessa oportunidade que tive, então, contato com os métodos de trabalho deste grupo particular de catadores ciclistas, objeto deste projeto, e conheci pessoalmente alguns dos trabalhadores. Estes catadores e catadoras de resíduos sólidos recicláveis trabalham de forma autônoma fazendo rotas na Asa Norte, usando como ferramenta de trabalho a bicicleta cargueira adaptada para carregar também caixas de feira sobrepostas e grandes sacos plásticos fixados em cabos de vassouras. Tal técnica possibilita aos catadores levar suspensos até 15 sacos plásticos de 100 litros, cheios de material reciclável, de maneira leve se comparada a outras ferramentas de coleta avulsa não motorizada, como carrinhos de peito e carroças. As etapas de trabalho na reciclagem praticada por este grupo incluem a atividade de coleta feita diretamente nas caçambas, que gera, por si só, um material reciclável de aproveitamento total (100%) pelas fábricas. Faz parte também a triagem, feita já juntos aos barracos do acampamento no cerrado do Setor Noroeste, ocupado pelos catadores de maneira a garantir a armazenagem e segurança dos materiais coletados. Tal ocupação garante também um ponto de apoio, descanso e segurança para os próprios catadores. A última atividade, dentro da reciclagem, é
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a venda dos materiais para a indústria, feita através de intermediários e de empresas. Por fim, estes catadores mediam ações de reuso, uma vez que vendem em feira objetos e itens diversos coletados em caçambas. Foi identificando, com os catadores, a necessidade de um espaço adequado e seguro para a realização deste conjunto de técnicas na reciclagem, que surgiu a vontade de se desenhar uma proposta para um espaço de trabalho concreto, sob os termos deles e, principalmente, junto a eles. Um espaço de trabalho é, desde sempre, a demanda mais sentida pelo grupo, tendo como principal motivo a ameaça constante de ação de despejo (“derrubas”) e sua frequente execução. O grau de informações e reflexões apresentados aqui sobre os catadores das cargueiras e sobre a tecnologia desenvolvida por eles deve muito ao envolvimento da Carol Matias, que começa já antes da produção do filme com a pesquisa para sua dissertação de mestrado no Departamento de Antropologia da UnB, sendo este projeto, portanto, um dos desdobramentos das ações iniciadas por ela. O desenvolvimento do projeto começou na segunda metade de 2019 quando foi interrompido pela pandemia da covid-19, recomeçado a partir de janeiro de 2022.
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Introdução O desenvolvimento desta pesquisa tem como principal objetivo a elaboração de um projeto piloto básico de arquitetura que sirva como ponto de partida para a montagem de uma associação de catadores ciclistas alternativa ao modelo convencional de cooperativa. Chamados aqui de Catadores das Cargueiras, o grupo de catadores parceiros aos quais a investigação serve, vem já de experiências pregressas nesse sentido, frustradas em relação tanto às dificuldades de formalização em cooperativas quanto de adaptação e viabilidade dos espaços a eles oferecidos para o trabalho. A pesquisa parte do entendimento de que os meios para a reciclagem exercidos por estes catadores contrastam fortemente com o modelo defendido pelo GDF, em termos de eficiência, de escala, de ecologia, de sustentabilidade de várias ordens e da capacidade de autogestão. O modelo de grandes galpões de triagem feitos por cooperativas, ainda que um avanço na política de inserção dos catadores, levanta uma série de dúvidas acerca de sua capacidade real de inclusão. Os limites do modelo ficam evidentes dentro e fora dos galpões, e desta parte é possível observar o caso dos Catadores das Cargueiras, como de tantos outros catadores autônomos, aos quais o trabalho cooperado em galpões de triagem não é uma opção. Vivendo há quase 20 anos em uma comunidade informal e autogerida que agrupa famílias, onde parentes apoiam outros de várias maneiras e em que a autonomia econômica é fundamental, estes catadores desenvolveram meios de trabalho e de cotidiano compatíveis com as precariedades que enfrentam e que, por isso mesmo, garantem a segurança de seus indivíduos. Tal dinâmica não consegue ser absorvida pelo modelo de galpões de cooperativas, o que gera desencontros entre a política pública e as pessoas que ela se propõe a atender. Tanto o modelo convencional defendido pelo GDF quanto os aspectos do cotidiano dos Catadores das Cargueiras são apresentados neste trabalho. Na primeira parte, há breve contextualização sobre como é hoje feita a reciclagem e as políticas públicas voltadas aos catadores. Na segunda parte, inteiramente dedicada a apresentar os Catadores das Cargueiras, é evidenciada a tecnologia urbana socioecológica desenvolvida por eles. É na última e terceira parte que são expostas as reflexões para os projetos da associação e o lançamento do projeto piloto. Para alcançar o objetivo de lançar um projeto piloto que atenda às condicionantes levantadas, o trabalho possui algumas ações específicas em vista. • Expor o conjunto de necessidades que condiciona o trabalho realizado hoje por esses catadores autônomos. Parte-se do pressuposto de que os catadores escolhem seus locais de trabalho e definem suas rotas com base em racionalidades, que precisam ser levadas em conta pelos técnicos que pretendam desenvolver soluções para os trabalhadores e para o manejo de resíduos recicláveis nas cidades.
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• Lançamento de um modelo associativo nos termos dos catadores, baseados em sua maneira de organização familiar e autonomia de trabalho e planejamento. Tal ação tem recebido apoio do Setor de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Distrito Federal. • Defesa da localização próxima à Asa Norte, dadas todas as condicionantes do projeto, e da tecnologia sustentável desenvolvida pelo grupo, de grande vantagem para a cidade, o meio ambiente e seus habitantes. Um mapa do bairro localiza os terrenos subutilizados e possíveis de abrigar esta associação. Este processo tem como base metodológica as experiências de projetos participativos vividas no Escritório Modelo CASAS (FAU-UnB) e o envolvimento com os trabalhos parceiros do Grupo de Pesquisa e Extensão Periférico (FAU-UnB). Através de visitas de campo, questionários e reuniões, a pesquisa buscará levantar o perfil do grupo e padrões espaciais do acampamento dos catadores, de modo a alimentar o projeto de arquitetura e formar um inventário que possa mediar um processo de projeto em conjunto. A pesquisa etnográfica dos Catadores das Cargueiras, feita por Carol Matias, revela em profundidade o cotidiano desses indivíduos e as dimensões de seu trabalho. As pontes criadas na ocasião da realização do seu documentário No Rastro das Cargueiras e as considerações feitas na dissertação – e as feitas de lá pra cá – estruturam este trabalho. São levadas em conta as reflexões de Viviane Zerlotini da Silva, em sua tese entitulada “Espaços coletivos de trabalho: entre a produção e a reprodução”, onde ela defende a “precedência da esfera de reprodução sobre a esfera da produção” para processos de projeto de espaços para “grupos de trabalho associado”. Tal conceito chama a atenção para equívocos na produção de espaços para coletivos que, mesmo com vistas à inserção social, econômica e cultural, por vezes reforçam as noções do trabalho dentro do capitalismo sem necessariamente potencializar a autonomia política dos indivíduos. Este trabalho teve início na segunda metade de 2019 quando o processo foi interrompido pela pandemia da Covid-19. Tal intervalo afetou o desenvolvimento das relações com o grupo dos catadores e a capacidade de se realizar o projeto junto a eles. Retomado agora, enfrenta algumas dificuldades relativas a mudanças ocorridas no grupo e, especialmente, o retorno da ameaça de despejos a partir de resolução recente da TJDFT, suspendendo a norma de impedimento das remoções.
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Método Para alcançar os objetivos propostos neste trabalho, são realizadas algumas ações de maneira a levantar os dados necessários para a pesquisa e construir a participação coletiva para os projetos. Nas visitas de campo, foram observados aspectos espaciais de escalas diferentes, sendo eles a implantação de toda a ocupação no cerrado, a maneira como os barracos se distribuem e as organização interior e exterior dos barracos. Essas análises seguem as Dimensões da Sustentabilidade (Andrade, 2014), com o propósito de gerar padrões espaciais a serem reafirmados ou requalificados no momento do processo participativo de projeto. Essas avaliações se dividem nas dimensões: sustentabilidade ambiental, sustentabilidade social, sustentabilidade econômica e sustentabilidade cultural e emocional. Visitas à Usina da SLU e ao Complexo da Reciclagem (Galpões de Triagem da Centcoop) foram feitas com o propósito de observar in loco às instalações previstas pelo governo destinadas ao manejo dos resíduos sólidos. Também foram realizadas entrevistas com servidores da SLU. Os questionários direcionados aos catadores foram elaborados tendo em vista dimensões diferentes do cotidiano, sendo para isso divididos em 4 partes. A primeira tem como enfoque a composição das famílias, renda e mobilidade. Na segunda, o foco fica sobre a trajetória dentro da reciclagem, tempo na profissão e como as famílias se organizam e participam das atividades. A penúltima parte, mais quantitativa,
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levanta dados sobre a catação em si, quanto tempo duram as rotas, quantas vezes são feitas, quais materiais recolhidos, qual a frequência de venda etc. Na última, mais propositiva, se levanta perguntas a respeito de perspectivas e sonhos na catação. O questionário teve quatro revisões, feitas conforme se recolhiam mais respostas e nuances revelavam os limites das primeiras aplicações. O momento do questionário possibilita a aproximação interpessoal da pesquisadora com cada membro das famílias e se torna a principal ferramenta de escuta, de trocas pessoais e de reflexões acerca da possibilidade de formação de uma associação. A construção de um grupo de trabalho para a formação da associação dos Catadores das Cargueiras será baseada no Caderno de Modelagem da Oficina de Negócios Comunitários do Conexão Semiárido. A dinâmica, feita em grupo, é semelhante ao método canvas usado pelo Sebrae, porém adaptado especialmente a trabalhadores cooperados ou associados. Resumidamente, a atividade propõe desenhar o negócio começando de componentes específicos e, a partir deles, esquematizar o empreendimento como um todo. Os passos sugeridos pelo caderno serão adaptados para uma dinâmica mais baseada na oralidade e no debate, e por isso mais acessível. Também alguns aspectos serão ajustados de maneira a refletir mais fielmente as características de uma associação de reciclagem que, justo ao contrário do maior parte dos negócios, trabalha na outra ponta: a da logística reversa. A pesquisa foi apresentada ao setor de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Distrito Federal e, desde então, vem sendo oferecido suporte jurídico para a formação da associação. Por fim, os resultados da Oficina de Negócios Comunitários oferecem ao grupo dos catadores insumos para a etapa que se segue, a de processo participativo de projeto de arquitetura.
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contextualização
Fotografia Carol Matias
Acampamento no antigo “Pé de Manga”. Caminhão do Francisco sendo carregado de material.
Para além das ruas, das áreas verdes, das quadras comerciais, dos prédios sobre pilotis, das escolinhas e postos de saúde, a paisagem da Asa Norte tem outro elemento recorrente: as caçambas. Muita gente não vê, mas elas estão em toda parte, nos arredores de cada edificação. Geralmente se dividem em dois grupos, “orgânicos” e “recicláveis”, e são a porta de entrada para uma dimensão inescapável da vida nas cidades: o manejo dos resíduos sólidos.
A reciclagem nas ruas de Brasília
As caçambas recebem muitos visitantes ao longo do dia e da semana. Alguns são pessoas que vêm jogar lá dentro vários sacos, cheios de coisas que não lhes interessam mais. Outros são os caminhões de lixo, representantes das empresas contratadas pelo poder público para buscar e transportar esses resíduos, como parte do sistema de limpeza urbana. Os caminhões engolem o material de dentro das caçambas, compactam tudo e vão embora. Nos dias e lugares da coleta seletiva, eles pegam só o que está nas caçambas que dizem “recicláveis” e levam para galpões de triagem. São vários deles, espelhados pelo DF. Lá a massa de resíduos vai ser separada, manualmente, por catadores membros de cooperativas, que também prestam serviços ao GDF. O que realmente for reciclável é guardado para a cooperativa revender, tirar seu lucro e dividi-lo igualmente entre os catadores. O resto – como comida, vidro, papel higiênico e guardanapos sujos, materiais recicláveis que se estragaram no processo e assim por diante – vai parar na caçamba de outros caminhões e ganha um novo nome:
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Dadá trabalhando nas caçambas. Fotografia Carol Matias
“rejeito”. Seu destino é ser levado até o aterro sanitário do DF, em Samambaia, e enterrado. Quando não couber mais rejeito neste aterro sanitário, será preciso construir outro. O lixo indiferenciado, que não é da coleta seletiva, vai para uma Usina de Triagem e Compostagem do próprio SLU, no P Sul, onde também passa por uma triagem, também manual, também feita por catadores de cooperativas. A diferença é que, neste espaço gigantesco, que funciona 24 horas por dia, um sistema de esteiras, garras, ventoinhas e peneiras tenta direcionar o que for lixo orgânico para um processo de compostagem. Daí, só o que realmente não tiver viabilidade econômica vai ser enterrado lá no aterro sanitário. Em todo caso, nenhum catador em cooperativa ganha salário. Eles vivem do que conseguirem revender. Os compradores são empresas que processam esses materiais e, via de regra, mandam tudo para São Paulo, onde a reciclagem de fato acontece.
Entre o oficial e o informal, o investimento público em grande escala e a precariedade, a organização em cooperativas e o trabalho individual, entre um complexo sistema que abrange todo o DF e o dia a dia de catadoresciclistas em cada RA, assim acontece a reciclagem de resíduos na capital do país.
Fotografia Carol Matias
Enquanto isso, de volta às caçambas... nesse meio tempo, um terceiro tipo de visitante passa por elas mais discretamente. São catadores autônomos, que trabalham por conta própria ou em grupos sem contrato com o GDF. Eles abrem as tampas e fazem a triagem de materiais ali mesmo, na caçamba. Vasculham inclusive a de lixo orgânico, onde também encontram muita coisa de valor que as pessoas descartaram errado. Reúnem tudo o que tem interesse comercial e levam embora, a pé, de bicicleta, com carrinho de peito ou mesmo em carros, para revenderem a alguma empresa interessada.
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A Política Nacional dos Resíduos Sólidos Desde que foi sancionada, em agosto de 2010, a Política Nacional de Resíduos Sólidos tem sido um elemento central para as mais diversas discussões sobre a gestão de resíduos no Brasil. Afinal, dentre muitos outros efeitos, ela acabou dando destaque renovado, na esfera pública, ao tema específico do “gerenciamento ambientalmente adequado dos resíduos sólidos”, que antes estava contido em debates mais amplos de legislação ambiental. Além disso, ela enfatizou a ideia de uma “gestão integrada” dos resíduos e lista, como um dos seus princípios, a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos; deixando claro, portanto, na letra institucional, que lidar com esta questão não é tarefa de um órgão ou ente federativo específico, mas sim algo que atravessa desde os municípios até o governo federal e envolve todos os setores da sociedade. Dois pontos da PNRS merecem destaque especial, pelas consequências que tiveram. Primeiro, ela determinou um prazo de 4 anos para a “disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos”, o que foi interpretado, na prática, como uma data-limite para a eliminação dos lixões em todo o país. Nos anos seguintes o prazo seria prorrogado mais de uma vez, mas a sua existência foi o bastante para gerar muitos debates, projetos e ações concretas que ajudaram a moldar a situação atual da gestão de resíduos no Brasil e no DF em particular. Ao mesmo tempo, a Política estipulava claramente, em numerosos momentos do texto, a valorização da categoria profissional dos catadores. Ela definiu como um de seus objetivos a “integração dos catadores” na dinâmica de gestão de resíduos, reconhecendo o resíduo sólido reutilizável e reciclável “como um bem econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda e promotor de cidadania”. Ainda na mesma linha, a lei fala diversas vezes no “incentivo à criação e ao desenvolvimento de cooperativas ou de outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis” e na necessidade da “inclusão social” e de “emancipação econômica” desses trabalhadores. Apesar de terem sua atividade reconhecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego desde 2002 (CB0 5192), os catadores e catadoras em todo o país historicamente são vítimas de preconceito, vistos como pessoas em situação análoga à de mendicância. De 2010 para cá, em parte pelos debates gerados a partir da PNRS e em parte pela mobilização de coletivos organizados da categoria, eles cada vez mais ganharam espaço no senso comum como o que de fato são: profissionais que contribuem para a sustentabilidade.
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*O fluxo de resíduos comercializado diretamente entre as cooperativas e associações de catadores e a indústria recicladora é pouco representativo.
Diagrama do fluxo logístico da reciclagem. Em destaque, a posição das cooperativas e associações de catadores no ciclo da logística reversa. Fonte: Anuário da Reciclagem 2017-2018, ANCAT, Pragma Soluções.
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A PNRS e o DF: encerramento do Lixão da Estrutural O Distrito Federal é um caso exemplar do novo paradigma para a gestão de resíduos criado como consequência da Política Nacional de Resíduos Sólidos, assim como dos novos dilemas e problemáticas que ele instaurou. A PNRS colocou o governo do DF diante de uma tarefa complexa: encerrar, em poucos anos, o Lixão da Estrutural, chamado oficialmente de Aterro Sanitário do Jóquei. Um lixão a céu aberto que, posicionado a menos de 15km do Congresso Nacional, já havia sido descrito pela ONU como o maior da América Latina e também era parte constituinte da história de Brasília, possivelmente tão antigo quanto a própria Capital. Ao longo de décadas, os resíduos despejados neste local foram fonte de renda para um número tão grande de famílias que a ocupação à sua volta cresceu e se consolidou, tornando-se a atual Vila Estrutural, parte integrante da RA SCIAEstrutural, em processo de regularização ao menos desde 2011. O prazo inicial de 4 anos definido pela Política Nacional foi prorrogado, mas o debate estava posto. Por um lado, havia uma expectativa formada no debate público para que o fechamento do Lixão se concretizasse; por outro, muitos catadores temiam ficar sem trabalho caso isso acontecesse e se mobilizaram, inclusive por meio de coletivos organizados da categoria, para pressionar o GDF. O processo avançou repleto de tensões até que, em 2017, começou a se tornar mais concreto, com a inauguração do Aterro Sanitário de Brasília e a publicação do Plano Distrital de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PDGRIS). Ecoando o texto da PNRS, o GDF fez um esforço no sentido de regularizar o trabalho dos mais de mil catadores que trabalhavam no Lixão e torná-los parte integrante dessa nova logística de manejo dos resíduos sólidos. O ponto central da sua estratégia foi fomentar a organização deles em cooperativas que, uma vez criadas, poderiam firmar contratos de prestação de serviços com o governo, agora trabalhando em galpões. Isso também envolveu a oferta de alguns cursos de capacitação e auxílios financeiros temporários, que serviriam como complemento de renda durante um período de adaptação ao novo regime de trabalho. O Lixão da Estrutural encerrou oficialmente as suas atividades em janeiro de 2018. Os dilemas da nova situação, porém, já estavam dados. Uma reportagem desta época publicada no G1, por exemplo, já inclui o depoimento de uma catadora do Lixão que preferiu não migrar para o trabalho em galpões, alegando que lá se ganhava muito pouco.
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Lixão da Estrutural em 2017. Imagens do programa “EuFiscalizo”.
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Os limites do modelo de cooperativas em galpões Como regra geral, os catadores que foram retirados do Lixão da Estrutural e conseguiram se formalizar foram alocados em galpões e firmaram parcerias com o GDF para trabalharem realizando a triagem dos resíduos. Neste modelo, os caminhões da coleta seletiva levam os resíduos de uma determinada RA até o galpão, onde os catadores cooperativados estão a postos para separar manualmente, dentro daquele volume que foi coletado por outros prestadores de serviço, os materiais recicláveis com valor comercial, que a cooperativa possa revender. Inicialmente, como a construção dos galpões de triagem do SLU demorava a se concluir, as cooperativas de ex-catadores do Lixão foram para galpões provisórios que, por vezes, sequer tinham esteiras, prensas, caminhões próprios ou outros equipamentos, que haviam sido prometidos pelo poder público. Diante desse processo longo e incerto, abundam relatos de catadores que desistiram do modelo ainda nesta etapa, vista pelo GDF como de transição. Com o passar dos anos, cada vez mais galpões no modelo definitivo, equipado com esteiras, foram entregues, e o sistema foi se aproximando de sua configuração imaginada originalmente. Em todo caso, vale ressaltar como, nesse interim, o modelo de cooperativas acabou se tornando condição indispensável para que catadores da capital pudessem participar das políticas de inclusão imaginadas pelo governo. Mesmo no caso de catadores que não trabalhavam no Lixão, quando o GDF busca formalizá-los de alguma maneira, é sempre seguindo essa mesma estratégia. Existem cooperativas que se consolidaram e seguem atuantes. Algumas inclusive são contratadas para, além da triagem, fazerem a coleta do material pela cidade, usando carros ou caminhões próprios, o que é sempre defendido pelos movimentos de catadores. Para cada caso bem-sucedido de cooperativa, porém, existem outros, em que os limites deste sistema de trabalho se tornaram barreiras intransponíveis. A queixa mais recorrente de catadores em relação ao trabalho em galpões é o baixo rendimento. Isso se deve, em parte, a ineficiências da coleta seletiva realizada por caminhões, como bem mapeou uma reportagem recente de Lucas Marchesini ao jornal Metrópolis, o que faz com que pouco material aproveitável chegue aos galpões. Somada a isso existe a exigência de que o rendimento da cooperativa seja dividido igualmente entre todos os seus membros, ao invés de cada catador vender separadamente o material que coleta. Isso termina sendo percebido como uma perda para alguns dos membros e se torna motivo de atritos. Além disso, é fato que o trabalho nos galpões resulta em uma relativa perda de autonomia, em que os catadores passam a sentir a imposição de um expediente com horários definidos
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e de dinâmicas de trabalho que lhes foram impostas. O próprio desenho dos galpões, que remete a uma lógica fordista, de ações repetitivas, sempre nas mesmas posições, é um contraste dramático com a situação de catadores autônomos que trabalham nas ruas das cidades. É importante mencionar também que operacionalizar uma cooperativa requer formação técnica específica, que em muitos casos não parece ter sido corretamente oferecida aos catadores ou assimilada pelos mesmos. Isso pode ser visto como outro motivo para o baixo rendimento de algumas dessas organizações, para desentendimentos internos entre os membros, para a desistência eventual de alguns catadores e mesmo para o encerramento de cooperativas. Por fim, o modelo de integração dos catadores via cooperativas adotado pelo GDF mais uma limitação: conforme catadores autônomos são retirados das ruas para trabalhar nos galpões, nada impede que novos trabalhadores na mesma situação venham a ocupar esses espaços.
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O modelo convencional de galpão: o caso do Centro de Triagem da Centcoop Centro de Triagem em construção, na Cidade do Automóvel, DF.
No fim da esteira de triagem, há um segundo exaustor para redução de odor.
1. Acesso do caminhão da coleta seletiva, entrada dos materiais. 28
2. Encontro entre a esteira de entrada e a esteira de triagem (seleção de materiais).
No final de 2020, foi inaugurado o “Complexo Integrado de Reciclagem do DF (CIR/DF)”, na Cidade do Automóvel. Trata-se de uma aposta no ganho em escala, reunindo em um só terreno mais galpões de triagem (no momento da inauguração já existiam 2 em funcionamento, com espaço para a construção de mais 3) e um centro de comercialização, pensando em unificar as vendas de diferentes cooperativas. Tudo isso sendo gerido pela CENTCOOP (entidade que reúne as cooperativas do DF), que tem a cessão do espaço. Duas visitas foram feitas nos Centros de Triagens, ainda antes de sua inauguração, para compreender como são dispostos máquinas e aparelhos. A arquitetura consiste em um grande vão de estrutura metálica, em que os 3/4 posteriores são dedicados ao “chão de fábrica” circundado pelos mezaninos de seleção em esteiras. O 1/4 anterior, é onde se dá o acesso dos trabalhadores e contém os espaços de banheiros, vestiários, cozinha, despensa, refeitório, recepção e sala administrativa.
Centro de Triagem da Usina da SLU já em operação. Ceilândia, DF.
3. Entrada do material da coleta seletiva.
4. Saída do material selecionado pelo catador para as “bags” e compactação.
5. Saída dos rejeitos para disposição final. 29
Os Catadores das Cargueiras e uma tentativa frustrada de inclusão O grupo dos Catadores das Cargueiras, com quem dialogamos neste projeto, não atuava no Lixão da Estrutural e nem tem envolvimento direto com a comunidade à sua volta. Apesar disso, a história dessas famílias também reflete os limites do modelo de inclusão adotado pelo GDF. Em 2016, aproximadamente no mesmo período em que contemplou uma parcela do grupo com apartamentos no Paranoá Parque, o governo tentou fazer com que o grupo se formalizasse no modelo de cooperativa, com o nome Associação Pop de Rua Abrindo Caminhos, e passasse a trabalhar no bairro do Paranoá, em um pequeno terreno a eles concedido. O esforço, porém, não teve bons resultados. Em primeiro lugar, o volume de material comercializável produzido na RA não se compara ao que é despejado diariamente no Plano Piloto, o que tornou o trabalho de bicicleta na região inviável. Segundo, a cooperativa não recebeu equipamentos, como caminhões ou prensas, que poderiam significar novas formas de gerar rendimento. Por fim, e mais importante, as famílias de catadores simplesmente não se adaptaram às exigências burocráticas e organizacionais de uma cooperativa, como, por exemplo, a ideia de todos dividirem igualmente os rendimentos do coletivo, ao invés de cada um vender separadamente o material que coletou. Carol Matias resume as insuficiências que marcaram essa tentativa: Apesar da Política Nacional de Resíduos Sólidos indicar que é dever dos gestores federais e locais o fortalecimento dos catadores de recicláveis, principalmente no apoio às cooperativas e associações, não houve o acompanhamento necessário para que a Associação Pop de Rua Abrindo Caminhos promovesse a transformação efetiva dos modos de trabalhar dos catadores do Cerrado, da rua para um galpão próprio. Assim, os desgastes internos somados à dificuldade de capitalização e da manutenção da estrutura organizacional levaram ao desmantelamento de uma associação que, pelo menos no sentido da documentação já havia sido iniciada ainda no fim de 2016, momento em que estavam em transição para os apartamentos. Mesmo com a parte burocrática encaminhada e até a possibilidade de apoios estarem em vista, a sede da cooperativa nunca chegou a abrigar mais do que a tenda provisória do dia da inauguração. (MATIAS, 2018, página 84) Assim, além de não efetivar uma integração destes catadores ao sistema de gestão de resíduos do DF, a tentativa deixou o grupo com a memória de uma má experiência de formalização e com a convicção de que o formato de cooperativa não é viável para eles.
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A busca por uma alternativa Tendo em vista que muitos catadores no DF continuam optando por trabalhar na informalidade, em alguns casos chegando a abandonar a possibilidade de se formalizarem e assinarem parcerias com o Governo do Distrito Federal, entendemos que os modelos atuais de inclusão dos catadores não conseguem, de fato, dialogar efetivamente com parcelas relevantes do público que buscam atender. Os Catadores das Cargueiras entram nessa situação. E, tendo em vista que a PNRS fala sempre em “cooperativas ou de outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis”, percebe-se que existe demanda e espaço institucional para propormos abordagens alternativas, que levem em conta as técnicas, procedimentos e necessidades desses profissionais.
Primeira reunião para pensar a formação da associação.
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os Catadores das Cargueiras Os assim chamados neste trabalho Catadores das Cargueiras são um grupo de trabalhadores da reciclagem de resíduos sólidos que realizam a coleta diretamente nas caçambas da Asa Norte, Plano Piloto do Distrito Federal. O diferencial de seu trabalho está no uso e adaptação da bicicleta cargueira como ferramenta de mobilidade e de transporte de materiais. O grupo é composto basicamente por 4 grandes famílias, havendo inclusive relações de parentesco entre elas, com origens que remontam à cidade de Iguatu, no Ceará. Estes trabalhadores ocupam hoje, através da construção de barracos improvisados, o cerrado nativo do Setor Noroeste, próximo ao território indígena Santuário dos Pajés.
Fotografia Rodrigo Cabral
A seguir, diferentes aspectos do cotidiano e do trabalho dessas catadoras e catadores serão apresentados em separado para tornar mais claros não só os detalhes dessa rotina como, também, os seus reflexos no projeto de arquitetura desenvolvido.
glossário bag: grande saco branco feito em ráfia sintética, usado para
reunir, pesar e transportar os recicláveis. Usado, em geral, para descarte de grandes volumes também na indústria e na agricultura.
barraco: construção residencial improvisada, feita de diferentes materiais de reuso, que serve de acampamento para a ocupação do cerrado.
breguece:
itens diversos achados nas caçambas passíveis de serem reutilizados, trocados ou vendidos.
caçamba: local onde é realizada a coleta pelos catadores de
resíduos sólidos. Trata-se de um grande depósito de ferro com tampa, feito para ser içado por caminhões convencionais de limpeza urbana.
cargueira: bicicleta própria para transporte de cargas, com
suportes nas duas extremidades e roda da frente menor que a de trás.
catador/catadora: trabalhador ou trabalhadora que faz
parte da cadeia de reciclagem, seja de maneira avulsa ou cooperada, informal ou formalizada, de caçamba ou galpão, independente se participa de apenas uma atividade dentro da reciclagem ou mais.
cerrado: na paisagem urbana do Distrito Federal, é tanto o
padrão territorial ocupado pelos catadores avulsos quanto o nome que se dá ao espaço em que se está efetivamente acampado, em detrimento dos espaços densamente urbanizados da cidade convencional.
coleta: a primeira atividade realizada dentro do
trabalho da reciclagem, em que os resíduos sólidos são selecionados e recolhidos pelo catador.
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derruba: ação de despejo feito pelos poderes públicos,
em que barracos são demolidos. Tais ações, por vezes, são ilegalmente truculentas e ameaçam os catadores em sentido pessoal (ameaça de prisão, recolhimento de criança) e profissional (ameaça de destruição dos materiais recicláveis).
farda:
qualquer peça de roupa, geralmente camisetas, que sirvam como uniforme e que sejam capazes de distinguir os catadores de demais pessoas em situação de rua.
gaiola:
volume feito em trama metálica, como grades e cercas, que servem para armazenagem e transporte de grandes volumes, muito comuns na reciclagem feita por carroça ou carro.
galpão: espaço de trabalho das cooperativas de catadores
formalizados, onde são realizadas as atividades de triagem e distribuição.
mangaba: recipiente reciclável de material de limpeza,
como os de água sanitária, xampu, multiuso etc.
reciclagem: amplo mercado de trabalho, que inclui desde os catadores avulsos até a indústria, trabalhando desde a coleta até a venda e distribuição de material.
rota: circuito de visita às caçambas para realização
da coleta pelo catador, que inclui o próprio trajeto de ida e volta entre o cerrado e a cidade convencional.
triagem: atividade pertencente ao trabalho da reciclagem,
posterior a coleta, em que os resíduos sólidos são devidamente separados em função do material de que são feitos. Vale ressaltar, como exemplo, que só os plásticos possuem uma grande gama diferente de tipos.
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SA IN
as famílias Perímetro urbano tombado
“O meu esposo trabalhava na reciclagem, né? Aí eu ficava preocupada porque ele saía muito cedo, ele saía duas horas da madrugada pra reciclar. Pra ele vir do Noroeste pro Asa Norte, eu ficava preocupada com a vinda dele e a ida. Porque quando o dia amanhecia ele já tava chegando em casa carregado. Aí eu digo “eu vou é largar o emprego e vou reciclar mais você; eu não vou mais deixar você ir só”. Aí comecei a reciclar mais ele devagarzinho... aí achei bom e até hoje. Não fui mais trabalhar em outro serviço, fui trabalhando reciclando.”
O relato de Dona Caçula sobre como começou a trabalhar com reciclagem é um exemplo, dentre muitos possíveis, de como as relações familiares têm um papel central na organização dos Catadores das Cargueiras. O grupo é composto basicamente por 4 grandes famílias, contendo cada uma núcleos familiares menores, geralmente de casais com filhos, mas não exclusivamente. São as relações entre irmãos, cunhados, tios-sobrinhos, pais-filhos adultos que mantém a teia de laços familiares. Há inclusive relações de parentesco entre as 4 famílias, todas com origens que remontam à cidade de Iguatu, no Ceará. A divisão entre as famílias e seus núcleos é explícita tanto na forma como ocupam o cerrado quanto pela separação da venda dos materiais recicláveis. Pais catadores não vendem o material junto com seus filhos adultos, também catadores. A autonomia exercida por cada chefe de família sobre sua rotina de trabalho e sobre os rendimentos provenientes da venda de recicláveis é um aspecto essencial na estrutura do grupo como um todo. É por esta razão que a ideia de montar uma cooperativa formalizada, nos moldes em que elas são propostas e regidas, é logo rechaçada por todos eles. Grande parte dos Catadores das Cargueiras possui apartamentos no Paranoá Parque, conquistados através do Programa Morar Bem, do GDF. Por este motivo, nem sempre famílias completas ocupam os barracos do cerrado no Setor Noroeste, e nem sempre um catador dorme todos os dias no acampamento. Há catadores que mantêm seus barracos para guardar seus materiais, que são vigiados pelos parentes que pernoitam por ali. Também, nem todos os integrantes das famílias trabalham necessariamente na reciclagem, existindo, inclusive, aqueles que abandonaram esta forma de trabalhar por razões diversas.
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N
o território
“Donde é que a gente é? Não, fala que... mora na invasão lá. Que sempre eles pergunta se a gente mora de invasão, em que invasão que a gente mora. A gente não pode dizer que mora aqui; como é que a gente vai dizer que mora aqui se quando a gente trabalha é lá? Né? Se a gente só tem como juntar material se trabalhar em invasão, que a gente não tem como trabalhar aqui. Eu falo que a gente mora ali, na invasão... é, o endereço que eu dou lá, a invasão é Noroeste, mas setor nove, perto de um depósito do Detran, que é aquele dos carros, né? Pronto, ali é o ponto de referência que a gente dá, né? Invasão. É algum endereço que a gente dá.”
Vale mencionar que Dadá deu explicação acima dentro de seu apartamento no Paranoá Parque, durante as filmagens do documentário No Rastro das Cargueiras. É um detalhe revelador, que sublinha a força da relação entre o catador e seu local de trabalho. Os Catadores das Cargueiras ocupam o cerrado nativo próximo ao Setor Noroeste, no Setor de Áreas Isoladas, destinado à Polícia Militar. Estão lá há mais ou menos 20 anos, portanto, já desde antes da construção do próprio bairro. Próximo ao Santuário dos Pajés, eles constroem seus barracos improvisados de materiais que recolhem e reutilizam. O objetivo principal da ocupação é oferecer um local de armazenagem para os materiais recicláveis, que são acumulados por cada família e vendidos em grande quantidade. Este território vem sendo ocupado por oferecer aos catadores algumas vantagens como acesso à água, energia e refúgio contra os frequentes despejos que locais mais visíveis enfrentam. Ainda assim, durante esta longa trajetória, já tiveram que lidar com remoções e fiscalizações no local e, por isso mesmo, já ocuparam outras partes do mesmo cerrado. Durante a pandemia da Covid-19 a permanência foi mais estável, o que é perceptível pelas condições dos barracos, agora mais estruturado e seguros. Entretanto, a ameaça de despejo retorna novamente no momento em que este texto é escrito, com recente visita conjunta de representantes da Terracap, DF Legal e Ministério Público. Ainda que, por um lado, até recentemente o lugar fosse estratégico para os catadores em muitos sentidos, inclusive em nível afetivo por se tratar de um espaço aberto em meio a vegetação nativa, por outro os conflitos estabelecidos ali tendem a se acirrar quanto mais avançam naquela direção os interesses públicos e privados, que envolvem o governo, os vizinhos da classe alta e as terras indígenas. Este enfrentamento, sem pé de igualdade, agrava a presença de estigmas associados à marginalidade. Em sua etnografia, Carol Matias propõe um entendimento particular para a situação dos catadores no desenho urbano de Brasília, caracterizada tanto pela sua posição social-econômica quanto pela sua posição territorial na escala bucólica: “Na vivência das comunidades de catadores de recicláveis em Brasília, a vegetação “Cerrado”, a savana da região do Planalto Central brasileiro, transcende o sentido de ecossistema e passa a designar, como categoria nativa, um lugar de vivência, de resistência e de memória – uma territorialidade marginal que compõe historicamente o Plano Piloto. O Cerrado, por consequência, designa um lugar e uma situação de informalidade. Se a diversidade e heterogeneidade são consenso nas pesquisas sobre a experiências dos moradores de rua, considero importante apontar para uma situação muito própria do espaço de Brasília: a situação de cerrado.” (MATIAS, 2018, página 37) 38
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o trabalho “Rapaz, logo no começo eu trabalhava de carrinho de peito, né? Logo quando eu cheguei. Tinha um carrinho de peito, comecei a trabalhar de carrinho de peito. Aí eu... digo “rapaz, quer saber de uma coisa? Eu vou trabalhar de bicicleta”. Que eu via os meninos trazendo a mesma, mesma coisa! Eu trazia um “bag” num carro, arrastando um carro, e os menino, meu filho, trazia o mesmo tanto d’eu! De bicicleta! Eu digo “não, tá errado”. Vendi o carrinho de peito e comprei uma bicicleta, uma cargueira. Foi da vez que você viu eu trabalhando. Aí eu gostei! A pessoa não cansa muito, tá entendendo? É que nem você diz: é um jeito mesmo, porque tem dia que você vê esses meninos chegar aí nessas bicicletas, você não vê nem eles, só saco, né? E passa por uns carro, direitinho. Jeitinho, a pessoa vai levando jeito.”
Transporte Coleta nas caçambas
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Armazenagem nas bags
A técnica que Seu Benedito viu, admirou e hoje domina é um dos traços mais distintivos e surpreendentes dos Catadores das Cargueiras. Os membros deste grupo trabalham de forma autônoma, não cooperados, fazendo rotas na Asa Norte, coletando nas caçambas, em geral, diversos tipos de material plástico e latinhas de alumínio. Usam como ferramenta de trabalho a bicicleta cargueira adaptada para carregar também caixas de feira sobrepostas e grandes sacos plásticos, cheios de material, fixados em cabos de vassouras, em uma configuração final bastante específica. As etapas de trabalho na reciclagem praticada por este grupo incluem: - a coleta feita diretamente nas caçambas (aproveitamento 100%); - a triagem, feita já juntos aos barracos; - a venda dos materiais para a indústria, feita através de intermediários e de empresas; - a venda das bregueces em feira, que são objetos e itens diversos coletados em caçambas a fim de reuso.
Venda ao intermediário
Venda dos materiais para empresas de recicláveis
Reciclagem nas usinas
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o ciclismo “Logo quando eu comecei: era só latinha... só latinha, só. E o alumínio e o cobre. Esse material fino. Sobre garrafa e papelão, só os carroceiros trabalhavam, com o papelão. E o plástico e essas garrafa aí ninguém reciclava, não. [...] nessa época não era cargueira, que eu tô falando pra você, não era cargueira, só era as bicicleta normal. Então cada um tinha sua bicicletinha. Quando eu cheguei, que eu me lembro, eu não trouxe nem uma bicicleta, eu vim só pra passear mesmo, através assim de conhecer como era o serviço daqui. Arrumaram uma bicicleta pra mim, minha família e meu cunhado... aí eu comecei a dar umas voltinhas na rua, e eu fui me acostumando e acostumando, e aí foi. Aí depois, com um bom tempo, começou negócio de garrafa, de reciclar garrafa, e começaram a comprar e tal, aí foi que um começou a comprar uma cargueira, outro começou a comprar também, e um foi vendo aquela arrumação e foi evoluindo, evoluindo; até hoje todo mundo trabalha com essa daí, todo mundo, a maioria. A maioria trabalha de cargueira.”
Dadá é testemunha de como, ao longo de sua trajetória, os catadores aprimoraram técnicas de transporte de recicláveis e mobilidade dentro da cidade. Com isso, chegaram à solução da adaptação da bicicleta cargueira que os possibilita carregar o mesmo volume de material reciclável que levam outras ferramentas de reciclagem não-motorizadas (as mais usuais: carrinho de peito, carrinho de supermercado, carroças). Com caixas de feira instaladas à frente e atrás da bicicleta, eles conseguem levar objetos de valor que encontram nas caçambas, para serem reutilizados por eles mesmos ou pelos clientes na Feira do Paranoá, onde vendem estes objetos, chamados de bregueces. Cabos de vassouras amarradas nas caixas, permitem suspender 5 sacos plásticos de 100/ 200 litros e levar até 15 deles na cargueira por rota. Tal técnica, evidentemente, depende também da destreza do catador. Apesar de tanta inovação, é comum os catadores sofrerem com falta de peças de reposição para as cargueiras, ainda que se trate de um equipamento de fácil manutenção e substituição de itens. A maioria deles não consegue manter o sistema de freio nas bicicletas e o rompimento da câmara de ar é muitas vezes a razão de não conseguir sair para trabalhar.
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sacos são pendurados nos cabos de vassoura
Fotografia Rodrigo Cabral
Dona Caçula
caixas de feira suportam os cabos e levam itens de valor (“bregueces”)
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as rotas e caçambas “Levanto 5 horas da manhã, quando é 6 e 10, 6 e 15 eu tô aqui [no cerrado]. Aí fico conversando aqui na beira do fogo mais os menino e quando é 25 pras 7 eu desço. Quando é 11 horas, 10 e 40 eu tô por aqui.”
As bicicletas cargueiras fazem também a mobilidade dos catadores ao local de coleta, a Asa Norte. Mesmo no caso de Seu Benedito, que costuma sair só uma vez ao dia, vemos que são rotas longas, que duram em torno de 3 a 4 horas, com percursos variáveis feitos em função da quantidade de material reciclável encontrado nas caçambas dos prédios residenciais e institucionais do bairro. Os moradores da Asa Norte, com seus hábitos de classe média alta, alimentam as caçambas com grande quantidade e qualidade de resíduos sólidos, para além de objetos e itens próprios para o reuso. É a característica de alto consumo e poder aquisitivo do bairro que viabiliza o trabalho da reciclagem realizada pelos Catadores das Cargueiras e outros catadores autônomos. Tal situação não se repete nos bairros periféricos, que são incapazes de fornecer material para a reciclagem em escala suficiente. O Setor Noroeste sozinho, por ser ainda um bairro menor e com menos habitantes, não sustenta a economia da reciclagem no mesmo porte que faz o bairro da Asa Norte. Há também uma especificidade: os blocos residenciais do Noroeste optaram por um sistema que impede o acesso dos catadores a grande parte das caçambas. O mapa a seguir mostra a rota do catador Bila, acompanhada por Carol Matias em 2018, total de 16km.
Rota do Bila. Fonte: Carol Matias (2018)
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ROTA DO BILA: total 16km
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a coleta A coleta é feita direta e manualmente nas caçambas, o que garante o total aproveitamento dos materiais na etapa de triagem. Em outras palavras, os catadores que fazem a coleta diretamente nas lixeiras, separando logo ali o que é passível ou não de ser reciclado, encaminha à triagem um volume de material que será completamente destinado à venda, sem desperdício, e de boa qualidade. A indústria da reciclagem dita que tipos de materiais são coletados pelos catadores autônomos e cooperados. Também, a capacidade da bicicleta cargueira limita o tipo de resíduos sólidos que podem ser levados. Dessa forma, os materiais coletados pelos Catadores das Cargueiras são basicamente tipos de plásticos e latinhas. A coleta das bregueces serve a outro ciclo, o de reuso, geralmente vendidas na Feira do Paranoá. Tanto uma coleta quanto uma triagem bem-feitas dependem da experiência do catador, que sabe reconhecer os itens recicláveis, suas diferenças, seus valores e destinações. Tal compreensão é fundamental para entender como opera o bom funcionamento da reciclagem como um todo.
tipos plásticos PET
“Mangaba”
Balde e bacias
tipos plásticos Latinha
Cobre
papéis Papel branco
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Papelão
Ferro e outros metais
Dadá fazendo a coleta dos recicláveis nas caçambas da Asa Norte. Fotografia Carol Matias.
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a venda “Antigamente a gente reciclava separando – separava balde e bacia, separava a mangaba verde, a mangaba branca, a pet, a mineral... todos os materiais separados. Latinha prum canto, tudo. Aí a Capital mandava um caminhão, a gente ligava pra lá, eles mandavam um caminhão e levavam o material da gente. Lá eles pesavam e mandavam o dinheiro. Aí apareceu, agora, uns três anos atrás, apareceu Francisco. Aí Francisco disse que comprava o material tudo misturado. Que a gente também tinha um monte de trabalho pra separar, né? Que dá um trabalho que só: pra separar é uns dois dias; sendo muito material leva uns dois dias pra separar, né? Aí Francisco foi e disse que comprava nosso misturado. E comprava um precinho bom, a gente acha que dá, né, pra sair.”
Os resíduos sólidos passam por muitas mãos entre o consumidor e a indústria de reciclagem. Os catadores autônomos costumam vender o material para um intermediário, como o Francisco mencionado por Dona Caçula, que por sua vez também vende para empresas regionais, que dali levam para as indústrias (geralmente em São Paulo). No Distrito Federal, a Capital Recicláveis é a empresa que recebe os materiais dos intermediários. Esses intermediários são também trabalhadores autônomos com experiência na reciclagem que, com caminhões ou carretas, conseguem levar as bags cheias, fornecidas pelos catadores, para as empresas. Lá são negociados os valores das bags, pelos preços tabelados e condições de entrega do material (peso, triagem parcial, triagem total etc.)
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Fotografias Carol Matias
Luciano enche uma bag.
Seu Francisco enche o caminhão.
Luciano ajuda Seu Francisco a pesar a bag.
Seu Fransciso comercializa os resíduos na Capital Recicláveis.
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as bregueces e a feira “Durante a semana sou reciclador e final de semana sou feirante. As coisas que eu recolho da reciclagem eu levo pra feira, e trabalho na feira. [...] Que nem eu mesmo, nesses tempos, já achei uma pulseira – só coisa de relógio, assim – achei mais de 500 reais só de ouro, deu umas 6 gramas de ouro. [...] pra nós que ia passar um mês pra juntar aquele dinheiro, ganhamos dentro de duas horas, de três horas. Que tava na reciclagem e nem... [...] Isso tudo é valorizado pra nós, tudo. Pros que joga não é não, mas pra nós que recicla, é bastante valorizado; é aproveitado tudo”.
Dadá resume com clareza como, além da reciclagem convencional, o trabalho dos Catadores das Cargueiras está inserido em outra prática da sustentabilidade: o reuso. A coleta e venda de bregueces na Feira do Paranoá condiciona objetos e itens encontrados nas caçambas para a reutilização, seja pelos clientes da feira quanto pelos próprios catadores. É o caso de ventiladores, cadeiras, brinquedos, bijuterias, quadros, roupas, eletrônicos, dentre tantas outras coisas. A renda proveniente da venda das bregueces é significativa de tal modo que há uma economia envolvendo esses objetos, em que um catador passa a vender itens a outro. A Feira do Paranoá, próxima portanto as moradias do Paranoá Parque, acontece todos os sábados e domingos pela manhã. Por fim, mesmo as bregueces que não são vendidas acabam sendo doadas. Para alguns catadores é mais interessante repassar esses objetos para quem necessita do que acumulá-los por tempo indeterminado.
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Feira do Paranoá e os objetos coletados e vendidos pelos catadores. Fotografia Carol Matias.
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Reunião com a Defensoria Pública do Distrito Federal.
Foto tirada pelo catador Evandro em dia de questionário.
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Uma tecnologia tecnologia Uma socioecológica socioecológica
Em quase 20 anos de trabalho, o acúmulo de experiências nas diferentes atividades da reciclagem fez com que os Catadores das Cargueiras desenvolvessem uma técnica de alta eficiência. Os meios com os quais estes catadores destinam os resíduos sólidos para a indústria passa por processos de baixo impacto ambiental, reprodução de práticas sustentáveis, inclusão social e comunitária, capacidade de retorno econômico para as famílias associado a autogestão. Neste sentido, Carol Matias apresenta: “Nas escolhas técnicas decorrentes da trajetória de um grupo que se serviu dos aprendizados espontâneos, adaptações decorridas dos usos, nota-se que as bicicletas para a reciclagem apresentam entre si similaridades que a tornam marcante. A cargueira dos cearenses em sua forma atual é resultado de um processo conjunto de aprimoramentos cotidianos, aprendizados e conhecimentos a partir das eficiências e dificuldades vividas a cada trajeto. (...) Consideramos que a técnica de trabalho desses “homens lentos” sugere outros modelos de sustentabilidade espontânea e evidente em suas características. (...) a técnica da reciclagem nas cargueiras demonstra uma produtividade elevada, resultado de uma verdadeira expertise que transcende a adaptação do veículo não motorizado, demonstrando também a relevância dos anos de experiência no fluxo da cidade.” (MATIAS, 2018, página 17) A seguir são retomados os aspectos anteriormente apresentados, como forma de avaliar em detalhes as qualidades técnicas desenvolvidas pelos catadores, bem como potencialidades e condicionantes que elas oferecem aos projetos profissionais dentro da associação quanto ao espaço físico de trabalho.
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Fotografias Carol Matias
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o ciclismo A reciclagem via ciclismo, evidentemente, comunga as vantagens de ambos e estabelece a atividade praticada pelos catadores como uma técnica sustentável. Não-poluente, emissão zero de carbono, sem uso de combustíveis, de alto aproveitamento energético e de baixo impacto à mobilidade urbana e ao meio ambiente. A própria ferramenta, a bicicleta cargueira, é feita de pequenos componentes ajustáveis, cambiáveis e recicláveis. É um veículo que incentiva o reaproveitamento e mesmo o consumo de novas peças não tem impacto comparável ao uso de veículo motorizados como carros e caminhões. Por fim, a bicicleta e sua manutenção são viáveis financeiramente para os catadores, evitando o acúmulo de faturas e custos a serem gerenciados e cobertos por eles.
as rotas e a cidade A bicicleta cargueira permite o desenho de rotas feito pelos catadores, cortando canteiros e vias principais, chegando a inúmeros pontos da cidade acessados por um veículo reduzido. Se hoje, acampados no cerrado do Setor Noroeste, cada catador alcança circuitos médios de 15 a 20km, dos quais só a metade serve para a coleta nas caçambas – portanto, descontados os trechos de ida e vinda para a ocupação, que juntos somam 8 km – é notório que seriam dadas maiores condições de trabalho e produção aos Catadores das Cargueiras caso eles estivessem inseridos no tecido urbano da Asa Norte. Garantir condições dignas para este trabalho, de reciclagem baixo impacto porta a porta, interessa sobretudo à cidade de Brasília.
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a coleta porta a porta Como já dito, a coleta porta a porta condiciona um volume de material capaz de ser totalmente aproveitado na etapa de triagem, para além de possibilitar o recolhimento de outros itens para o reuso, as bregueces. A coleta manual suprime toda uma cadeia de ações feitas na coleta convencional (seletiva ou não) que, para além de depender de combustível, acaba desperdiçando material ao misturar e compactar o volume recolhido das caçambas. Também, ao contrário da coleta seletiva, os catadores visitam as caçambas diariamente. Ainda mais fundamental, a mera presença dos catadores na cidade, lidando diretamente com os diversos agentes de limpeza e habitantes, é capaz de servir à reciclagem como multiplicadores de práticas sustentáveis, incluso o correto descarte de resíduos sólidos. O contato permanente com os catadores é, factualmente, capaz de gerar uma conscientização mais efetiva do que as grandes campanhas de governo.
a venda e a feira A comercialização dos recicláveis está diretamente relacionada à autonomia profissional dos catadores e suas famílias, e a maneira como ela é feita possibilita aos catadores a distribuição dos materiais conforme necessidades diversas, especialmente a financeira. Ou seja, um catador ou catadora pode optar por fazer a venda conforme necessite de dinheiro para suas despesas. Esse fluxo por demanda contribui com o planejamento financeiro familiar. Há autonomia frente aos compradores, uma vez que não há exigências do tipo exclusividade e metas a cumprir. Os Catadores das Cargueiras têm entre suas expertises a organização de feira para comercialização das bregueces, sabendo estabelecer preços à diversos tipos e condições de artigos.
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as famílias e o acampamento A organização das famílias e seu reflexo na ocupação do território guarda algumas semelhanças com a organização da agricultura familiar. Juntos e separados ao mesmo tempo, esta estrutura possibilita tanto a autonomia profissional e financeira dos núcleos familiares quanto condições de segurança (de vários espectros) dadas pela vida comunitária. Os laços são atados por relações mútuas de confiança entre um ente e outro, mesmo quando, em outros casos, também há discordâncias e rusgas. Este lugar, constituídos pelas relações e papéis de cada parente, é o que a professora Viviane Zerlotini define como “espaço de reprodução da vida”, lugares onde os espaços de moradia, de trabalho e político se conjugam, possibilitando aos trabalhadores ditarem os próprios rumos.
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A construção de uma associação O grupo dos Catadores das Cargueiras já tentou formalizar uma cooperativa no passado, tentativa frustrada devida às várias condições impostas a eles. O espaço que ficava no Paranoá, era um lote de 2.000m² vizinho a outro terreno também destinado a cooperativas de catadores. O local possuía estrutura bastante precária, apenas com uma tenda, e foi logo rejeitado pela recém-formada Associação Pop de Rua Abrindo Caminhos, sem ter funcionado sequer um dia. Outro agravante era a própria inviabilidade de trabalhar com catação autônoma porta a porta no bairro do Paranoá, com baixo volume de lixo disponível para o número de participantes da cooperativa. A cooperativa foi desfeita. O modelo econômico de cooperativa, em que todos dividem igualmente o valor da venda em conjunto dos materiais, não é visto pelo grupo como uma solução e é, inclusive, o principal motivo pelo qual a ideia de formar um coletivo é logo rechaçada por quase todos os catadores das cargueiras. Para construir uma alternativa, este trabalho vem apresentado ao grupo a via de formalização por associação de microempreendedores, capaz de manter a autonomia econômica das famílias e garantir direitos, mas que, ao mesmo tempo, possa dar aos catadores condições para o trabalho colaborativo. Nesse sentido, ações foram realizadas junto com a Defensoria Pública do Distrito Federal, tendo em vista também a possibilidade de despejo a partir de abril:
- Num primeiro contato, Carol Matias fez uma exibição do documentário “No Rastro das Cargueiras” na DPDF. - Em reunião feita no setor de Direitos Humanos da DPDF, a pesquisa apresentou a situação atual dos catadores das cargueiras e as perspectivas possíveis para o trabalho de reciclagem que realizam. - Reunião na DPDF junto às representantes dos catadores do cerrado, em que foram ouvidas sobre as condições das famílias, do trabalho e demandas. - Reunião de visita da DPDF na ocupação. - Apresentação pela DPDF da experiência associativa para catadores promovida pela Defensoria Pública de Vitória da Conquista (BA).
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Para iniciar as ações de construção de uma associação para os Catadores das Cargueiras, se realizou uma dinâmica seguindo a cartilha Oficina de Modelagem de Negócios Comunitários do projeto Conexão Semiárido, que propõe um método para desenho de empreendimentos comunitários. A partir dela, os catadores poderiam ressignificar atividades da reciclagem que já fazem e vislumbrar alternativas compatíveis com suas expectativas de trabalho. Os resultados oferecem padrões espaciais e problemas a serem resolvidos pelo espaço arquitetônico, projeto desta pesquisa. O fundamental nos dois processos que andam juntos, a construção da associação e a elaboração do projeto de arquitetura, é que ambos sejam capazes de oferecer aos catadores instrumentos de participação, com o intuito de que os resultados representem concretamente o modo de vida, de trabalho e as ambições dos Catadores das Cargueiras.
Reunião de visita da Defensoria aos catadores moradores no cerrado. Março de 2022.
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O terreno ideal
O maior desafio atual, no sentido da construção de um espaço de trabalho para os Catadores das Cargueiras, é obtenção ou cessão de um terreno compatível com suas necessidades, tendo em vista especialmente a mobilidade e abrangência das rotas que fazem na Asa Norte. A mapa a seguir, mostra o estudo de terrenos vagos e subutilizados do Setor de Grandes Áreas Norte e dá destaque especial aos lotes atualmente ocupados por serviços do GDF. A eleição do terreno deste projeto fez algumas indicações, em ordem de prioridade:
Que viabilize aos catadores rotas mais curtas de acesso às caçambas; Que tenha chances concretas de ser disputado junto às instâncias competentes; Prioritariamente, próximo à W3; Com bom acesso às vias para pedestres, bicicletas, carros e pequenos caminhões; Que seja visível para os transeuntes da cidade; Que possua vegetação nativa ou árvores de maior porte; Que esteja o mais centralizado possível em relação à malha da Asa Norte (próximo às quadras de finais 7 e 8). O projeto buscou ocupar a menor área possível que atendesse as necessidades da associação. Como referência, a clareira aberta pelos catadores no cerrado hoje é de ~8.000m².
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Diretrizes do projeto A seguir são lançadas algumas diretrizes fundamentais ao projeto. Tendo em vista a inexperiência dos Catadores das Cargueiras na construção civil, o desenho do projeto dispensa o mutirão como solução central para o canteiro de obras. Se baseia, a princípio, em espaços independentes entre si, de forma a contribuir com a condição de construção por etapas.
> Baixo custo de manutenção; > Baixo impacto: opção por materiais duráveis de menor impacto ambiental e materiais capazes de serem reformados e reutilizados; > Baixo custo. Dividido em: _ uma parte a ser financiada por editais e emendas e que seja capaz de ser construída por pequenas empresas de construção: estrutura, cobertura, esquadrias, piso, impermeabilizações, instalações e maquinário; _ outra que possa ser autoconstruída pelos catadores: paredes de vedação, pintura, paisagismo, coleta de entulhos a serem reutilizados pela empresa construtora.
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Volume (fachada) que sirva de interface entre a associação e a cidade (empresas, voluntários, parceiros etc.). Este é o espaço coletivo da associação, mais voltado ao espaço de produção.
> Ponto de entrega voluntária; > Oficina para bicicletas (armário de ferramentas e peças); > Estacionamento para poucos veículos; > Depósito de bags por famílias; > Acesso para caminhões e carretas. Dentro do terreno, a via compartilhada recorta todo o espaço, de maneira a alcançar as unidades que servem às famílias, onde ficam os espaços de triagem. Esses volumes servem de área de abrigo da chuva, do sol e de descanso. Nessas unidades, há espaços comuns e espaços privados:
> Espaços comuns: banheiros + área de serviço + cozinha + terreiro > Espaço privado: alojamento
O interstício do terreno é feito de áreas de circulação para cargueiras, carrinhos de carga, catadores, crianças, animais domésticos e visitantes. Este espaço de conexão comunitário reforça a unidade do espaço da associação.
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padrões espaciais Princípios:
PROTEÇÃO ECOLÓGICA E AGRICULTURA URBANA Respeito aos ecossistemas atendimento ao Código Florestal, às Resoluções do CONAMA 302, 303 e369, e as leis ambientais respectivas a cada região, bem como planos de recuperação de nascentes ou florestas. Existência de agricultura urbana na cidade: hortas comunitárias, hortas individualizadas. INFRAESTRUTURA VERDE: GESTÃO D’ÁGUA, DRENAGEM NATURAL E TRATAMENTO DE ESGOTO ALTERNATIVO Observação da bacia hidrográfica, em relação à drenagem e ao esgotamento sanitário. A abordagem sustentável caminha em duas escalas: sistemas de tratamentos de águas residuais com plantas para as casas (zona de raízes) ou para o empreendimento como um todo (wetlands). Os empreendimentos de natureza mais compacta podem utilizar menos água, se preparados tecnicamente, que loteamentos suburbanos com densidades mais baixas. CONFORTO AMBIENTAL Resposta do espaço com relação ao desempenho luminoso, térmico, acústico e de qualidade do ar PROMOÇÃO DOS SISTEMAS ALTERNATIVOS DE ENERGIA E DIMINUIÇÃO DA PEGADA ECOLÓGICA A eficiência energética pode ser colocada sob dois aspectos. Primeiramente, para as moradias, sob a ótica de uso da energia utilizada, vindaxx de fontes renováveis como o sol, o vento e a biomassa. Em segundo lugar, sob o viés da redução de combustíveis fósseis utilizados nas moradias, carros e indústrias. SAÚDE O ambiente não deve apresentar vulnerabilidade ambiental, decorrente de materiais tóxicos e poluição do ar, do solo e das águas. REDUÇÃO, REUTILIZAÇÃO E RECICLAGEM DE RESÍDUOS Para o desenho de empreendimentos sustentáveis, os 3R’s incluem redução do gasto de energia, reuso das edificações e reciclagem de resíduos de construção, e compostagem do lixo orgânico.
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situação existente
solução
A saúde dos catadores fica em risco devida à exposição a animais venenosos e insetos transmissores de doenças.
Para evitar contágios, plantar ao redor dos abrigos espécies que espantam insetos.
Os catadores socializam nos espaços externos, sob as sombras das árvores.
Prever o papel que o sombreamento natural tem a cumprir como conforto térmico e oferecer espaços de estar.
Chuvas fortes podem encharcar o chão por dentro das barracas, de terra batida.
Os novos abrigos devem ter o nivelamento adequado para evitar inundação.
A ocupação atual oferece enorme conforto sonoro.
O novo espaço deverá ter tratamento sonoro de maneira a contribuir com a adaptação das famílias ao local.
Há muito lixo solto na terra e no cerrado nativo.
O espaço da associação deverá se servir grandes lixeiras próximas aos espaços de triagem. O pavimento deve ser de fácil limpeza.
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padrões espaciais
Princípios:
URBANIDADE Desempenho do espaço urbano, considerando a interação social por meio do desenho da malha viária e das macroparcelas com maior integração, conectividade, espaços externos positivos, constitutividade dos espaços, diversidade de uso do solo e acessibilidade. COMUNIDADE COM SENTIDO DE VIZINHANÇA Oportunidades para a sociabilidade, participação no processo, e desenvolvimento pessoal em espaços públicos e instalações comunitárias. MORADIAS ADEQUADAS Diversidade e mistura de classes sociais, estabelecidas com variedade de moradias, custos diferenciados e acessibilidade universal garantida. MOBILIDADE E TRANSPORTES SUSTENTÁVEIS Existência de estruturas adequadas a diferentes modais de mobilidade (pedestres, ciclistas e automobilistas) e inibidoras do uso de combustíveis fósseis, aliada à disponibilidade de transporte público eficiente.
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situação existente
solução
Hoje a maior parte dos barracos fica próximo às margens do cerrado, desenhando a região em que ficam os catadores.
Os barracos são construídos a certa distância uns dos outros, de maneira a delimitar pequenos territórios dentro da ocupação.
A representação arquitetônica dos núcleos familiares deve manter a mesma independência.
As grandes famílias se separam no território que ocupam coletivamente.
O zoneamento da associação deve prever regiões destinadas a cada família.
Em cada área das famílias existe um espaço relativamente central que serve de ponto de reunião da família e de recepção de visitas.
Desenhar pequenas praças por famílias, de maneira a possibilitar a mesma dinâmica.
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padrões espaciais
Princípios:
ADENSAMENTO URBANO A ocupação urbana mais densa em áreas centrais associada ao uso comercial diminui o deslocamento, diminuindo a emissão de dióxido de carbono em viagens locais, e melhora o sentido de comunidade nos espaços públicos. DINÂMICA URBANA Economia de recursos financeiros no processo de construção e manutenção dos espaços urbanos como uso efetivo desses espaços, resultante de condições adequadas de infraestrutura, mobiliário urbano, iluminação e sistema viário. DESENVOLVIMENTO DA ECONÔMICA LOCAL EM CENTROS DE BAIRROS Espaços que favoreçam a existência de centralidades na malha viária e mescla de funções, e atividades localizadas a distâncias caminháveis.
A área das bags ficam próximas aos barracos. Dessa forma cada família cuida de seu material de trabalho.
Definir armazenagem que possibilite a cada família guardar seu material com segurança.
Banheiros são montados do lado externo dos barracos, através de mesas e ligação de água improvisada.
Evitar que novos espaços favoreçam a manutenção de água parada.
Tal arranjo favorece a contaminação por dengue.
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situação existente
solução
Dentro dos limites do território de cada família, um espaço de circulação possibilita o acesso de carros e caminhões. O fluxo intenso de veículos pesados oferece riscos aos que passam.
Vias compartilhadas apropriadas em que os veículos pesados respeitem pedestres, animais e ciclistas.
Há criação de galinha no local. Elas oferecem alimento e fazem o controle de insetos.
Espaços autônomos para criação de pequenos animais.
Os materiais coletados são amontoados em locais próximos aos barracos.
Espaço adequado para o trabalho de triagem e disposição dos materiais que serão triados.
Armazenagem de sacos recém-coletados é feito em espaço aberto, empilhados sobre o solo.
Manter a ventilação abundante. Espaço adequado para acolher as pilhas, próximo ao espaço de triagem.
As grandes bags ficam uma ao lado das outras, próximas aos barracos, perto das margens do cerrado e dos barracos.
As bags prontas para a venda devem ser armazenadas separadamente para cada família e de fácil manejo.
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padrões espaciais
Princípios:
REVITALIZAÇÃO URBANA Recuperação e valorização de infraestrutura existente em áreas urbanas degradadas ou patrimônios culturais abandonados, promovendo o incremento da ocupação dessas áreas. LEGIBILIDADE E ORIENTABILIDADE Os espaços devem responder a necessidade de orientação dos usuários nos lugares, obtidos com a conectividade entre bairros e diferenciação entre bairros e continuidade de caminhos IDENTIFICABILIDADE Reconhecimento de características particulares ao espaço urbano resultantes de diversidade tipológica em pequenos agrupamentos e efeitos visuais que promovam imagens mentais e percepção da paisagem urbana. AFETIVIDADE E SIMBOLOGIA A forma física dos lugares promove satisfação emocional quando laços afetivos se estabelecem pelo reconhecimento de qualidades
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situação existente
solução
Os catadores possuem muitos animais de estimação, tanto na ocupação quanto nos apartamentos.
Incorporar a presença dos animais no espaço da associação.
Os catadores fazem fogueiras durante as noites, mesmo com acesso à energia improvisada. A fogueira é um espaço de socialização.
Incorporar espaço para fogueiras nos espaços de encontro.
Os cultivo de espécies pelos catadores não serve necessariamente à alimentação.
Prever áreas livres para manutenção de jardins e hortas.
Os barracos são identificados com os nomes dos moradores com tinta spray.
Possibilitar alguma caracterização formal dos espaços por cada núcleo familiar.
Redes são dispostas de várias formas: nas árvores, nos barracos, ambos.
Manter as condições necessárias para a instalação das redes.
Os Catadores das Cargueiras são acostumados à presença da vegetação entorno.
Manter áreas verdes dentro do espaço da associação próxima aos espaços de trabalho e abrigos. 81
oficina
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Localizado no México, a arquitetura do centro comunitário conjuga o uso de sistemas pré-fabricados – tais como o aço, placas de policabonato e telhas sanduíche – com sistemas artesanais da alvenaria de tijolo de barro, forros de palha trançada e reforços em concreto armado. A implantação no terreno, ainda que ortogonal, estabelece relações entre espaços fechados, abertos e híbridos.
Centro Comunitário Cuexcomate | México Arqs. Federico Colella, Aleyda Resendiz, Brenda Hernandez e Riccardo Caffarella
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Centro Comunitário Cuexcomate | México Arqs. Federico Colella, Aleyda Resendiz, Brenda Hernandez e Riccardo Caffarella
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referência em arquitetura
O concurso para moradias temporárias trouxe uma série de projetos que trabalharam tábuas de madeira, normalmente usadas na construção de fôrmas para componentes de concreto, como estrutura. Tal solução construtiva, reforço de peças de madeira por emenda ou duplo perfis, são usados também na construção dos barracos dos catadores.
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Concurso Viviendas en México (TECHO e Archstorming) Arqs. Alba Aparicio Cabrero e Carlos-Prisco Carrasco Bara
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referência em arquitetura
Nesta solução aparentemente simples, a cobertura é suportada por pilaretes de perfil de aço circular, usados normalmente como suporte de placas de trânsito, moldura de grades etc.
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Novo Mercado Guabuliga | Gana
Foreign Affairs, Institute of Architecture, University of Applied Arts Vienna 93
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O projeto da Casa do Mel na Amazônia se valeu do descolamento da cobertura da alvenaria e buscou uma solução enxuta, de pequena escala, para o espaço de trabalho.
Casa do Mel | Brasil Estúdio Flume
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O projeto no Vietnã buscou oferecer um espaço apropriado de moradia mínima com o uso inteligente de materiais industriais como o policarbonato como folha de portas.
Casa S | Vietnã
Vo Trong Nghia Architects 97
a vila dos Catadores 98
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O projeto para a vila dos Catadores das Cargueiras partiu do reconhecimento das relações possíveis promovidas pelo espaço improvisado por eles hoje no cerrado do Noroeste. Ou seja, nesta ocupação, os catadores desenvolveram um modelo físico mínimo de organização do núcleo familiar e a partir dele formaram acessos, circulações, áreas sombreadas, ambientes reclusos e de privacidade, espaços de sociabilização de diferentes escalas e, até mesmo, pequenas infraestruturas de acesso a água, energia e alimento. Este lugar mantém os vínculos da comunidade e os vínculos para fora dela. Portanto, para transfigurar o acampamento em um espaço construído de trabalho efetivo para esses catadores-ciclistas, o desenho do projeto observou em especial as seguintes configurações: > O espaço depende de boa circulação do ar, evitando a concentração de odor dos materiais coletados nos espaços de trabalho e permanência; > O espaço precisa oferecer diferentes rotas de circulação para ciclistas, pedestres e animais. Forma por tanto um interstício aberto em que cada membro da comunidade pode se apropriar do território à sua maneira; > As atividades das famílias, da comunidade e do trabalho são indissociáveis. O desenvolvimento de um garante o desenvolvimento dos outros, numa organização de gestão compartilhada e autogerida. Um pai pode trabalhar num espaço em que ele leva e busca seu filho da escola, onde a criança tem um espaço apropriado para ficar. Parentes podem trabalhar de maneiras diferentes mas ajudar uns aos outros. Quando a oferta de material reciclável nas caçambas está baixa, os catadores podem gerenciar outros aspectos da vida. As lideranças conseguem observar e atender as demandas concretas do grupo.
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Uma rua central conecta as unidades das famílias, formando um pavimento único e compartilhado onde transitam bicicletas cargueiras, carros, caminhões dos intermediários e compradores, pedestres e animais domésticos. A não distinção de uma via para veículos motorizados e transeuntes incentiva a redução da velocidade pelos motoristas. Este grande piso mimetiza as clareiras abertas e conectadas do acampamento no cerrado. Este piso também acessa o espaço de trabalho, de maneira contínua, destacando formalmente a dimensão do trabalho.
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Cada família é servida por 1 ou mais unidades de reciclagem. Este espaço é identificado pela distinção do piso e pela presença dos módulos de vizinhança e de serviços. O módulo vizinhança é caracterizado pela presença de um pequeno terreiro, semelhante aqueles construídos pelos catadores no cerrado.
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A associação é envolvida pelo cerrado presente no terreno eleito e os alojamentos são dispostos em suas margens. Tal como a ocupação no Noroeste, esta configuração resulta em muitos efeitos: melhores condições de conforto acústico e térmico; apropriação da vegetação como limites entre as famílias, oferecendo em cada caso o grau de privacidade que se pretende; alternativa a muros como fechamento de fachada; áreas sombreadas; áreas livres e áreas para usos complementares do espaço.
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As famílias foram alocadas no projeto de acordo com os resultados da oficina. As relações de fronteiras entre as famílias, ou seja, quem está mais perto ou longe de quem, foram respeitadas. Esta disposição teve como principal objetivo conservar as relações desenvolvidas por eles no território, e que são a principal base em que se assenta a solidariedade e sentido de comunidade do grupo. Cada unidade de reciclagem foi desenhada para atender até 5 núcleos familiares. Portanto, para famílias mais numerosa como a de Seu Benedito, o projeto prevê 3 unidades.
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Cada unidade de reciclagem foi desenhada para atender, de maneira compartilhada, até 5 núcleos familiares (pequenas famílias). O desenho foi modulado a partir do tijolo-ecológico e definiu como acesso principal uma esquina em L onde fica uma via de acesso à área de trabalho e o módulo vizinhança. Esta esquina em L permite que a unidade seja alocada de várias maneiras no terreno, mas sempre mantendo as esquinas conectadas, ou seja, permitindo que a circulação de veículos e de vizinhos aconteça. Dentro do espaço, estão ambientes a serem compartilhados pelas famílias: depósito, banheiros e cozinha. A área de trabalho é um espaço coberto e flexível, podendo ser usado da maneira mais adequada por cada trabalhador e ser reconfigurado de acordo com as demandas de trabalho.
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espaços integrados: produção do trabalho reprodução da vida
Cada grande família é servida por uma ou mais glebas, de acordo com o número de representantes. Os espaços dessa “unidade de reciclagem” são áreas integradas que permitem aos catadores exercer atividades distintas, de dimensões diferentes da rotina. A região para as atividades da reciclagem tem posição central e organiza em volta de si os espaços íntimos familiares e espaços comunitários. O espaço de trabalho, ainda que destinado ao recolhimento dos materiais recicláveis, não está dissociado dos espaços comunitários e domésticos. Essa integração não é fundamental apenas pelos efeitos práticos sobre o espaço arquitetônico - melhor circulação, melhor conforto térmico - mas principalmente por possibilitar e reforçar a autonomia das famílias. Em outras palavras, a integração permite que um catador vigie seu filho que voltou da escola. Permite que filhos estejam perto dos pais idosos. Que alguém possa tirar uma pequena folga no meio da tarde.
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Os catadores argumentaram em oficina a necessidade da presença de alojamentos no espaço da associação para aqueles que não podem ir e voltar todos os dias da semana para casa, para aqueles cujos filhos estudam na Asa Norte e também os que começam a trabalhar já de madrugada. Entretanto, para os catadores, tais construções deveriam ter características temporárias, sendo auto construídas. Tal solução reforça a relação de autonomia que cada núcleo familiar possui frente aos demais ao mesmo tempo que coloca o grupo todo em pé de igualdade.
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Um sistema para a construção dos novos alojamentos foi definido tendo como partido o uso de materiais acessíveis, baratos e que podem tanto ser reciclados como reutilizados. Construído principalmente pela montagem de peças de madeira, da mesma forma como são hoje feitos os barracos do cerrado, tal técnica viabiliza que as próprias famílias construam seus alojamentos, de acordo com suas demandas de espaços. Em cada parte dormitório cabe 1 colchão de solteiro. Em uma associação de 2 partes, cabe um colchão de casal.
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Bibliografia ANCAT; PRAGMA. Anuário da Reciclagem 2017-2018. Disponível em: <https://www.mncr.org. br/biblioteca/publicacoes/relatorios-e-pesquisas/anuario-da-reciclagem-2018-2018>. Acesso em fevereiro 2022. ANCAT; PRAGMA. Anuário da Reciclagem 2021. Disponível em: https://www.mncr.org.br/ biblioteca/publicacoes/relatorios-e-pesquisas/61cc5e10cd0e3c4593f77725_anuario-dareciclagem-2021.pdf>. Acesso em fevereiro 2022. ANDRADE, Liza Maria Souza de. Conexão dos padrões espaciais dos ecossistemas urbanos: A construção de um método com enfoque transdisciplinar para o processo de desenho urbano sensível à água no nível da comunidade e da paisagem. 2014. 544 f. Tese (Doutorado) – Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília, Brasília, 2014. Disponível em: <http:// repositorio.unb.br/handle/10482/18042>. Acesso em: nov 2019. BRASIL. Política Nacional de Resíduos Sólidos, 2010. Disponível em http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12305.htm . Acesso em: ago. 2019. BRASIL. Política Nacional para inclusão social da População em situação de rua. Disponível em <http://www.recife.pe.gov.br/ noticias/arquivos/2297.pdf>. Acesso em: ago. 2019. BRASIL. Decreto n°7.053 de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/ _Ato2007-2010/2009/Decreto/D7053.htm>. Acesso em: ago. 2019. BRASIL. Decreto n. 12.305, de 2 de ago. de 2010. Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos, Brasília,DF, ago 2010. DISTRITO FEDERAL. Política Distrital de Gestão Ambiental e Resíduos Sólidos. 2017 DISTRITO FEDERAL. Serviço de Limpeza Urbana. Relatório do Diagnóstico de Resíduos Sólidos Distrito Federal (2014). Brasília: Serviço de Limpeza Urbana, 2015. Disponível em: < https://www.slu.df.gov.br/wp-content/uploads/2018/11/relatorio_2014.pdf>. Acesso em set. 2019. EU FISCALIZO: RESÍDUOS SÓLIDOS. [S. l.: s. n.], 2017. 1 vídeo (28 min). Publicado pelo canal Tribunal de Contas da União. Disponível em: https://youtu.be/uENOHV_YCMM. Acesso em: 14 set. 2019.
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