O emboaba

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Bruno dos Anjos



I – O Além-mar Início de noite em Coimbra. As ruas estão praticamente desertas. O pior do inverno já se foi, mas as pessoas ainda preferem o conforto dos seus cobertores ou lareiras a se aventurarem pelas vielas estreitas da cidade. Cai uma fina chuva e as águas do Mondego contribuem para acentuar a sensação de frio. Estamos em fevereiro de 1705. O silêncio é quebrado pelos sons dos cavalos e das rodas de madeira a chiar no calçamento da velha cidade. A comitiva rompe as ruas, veloz, tendo à frente um cavaleiro a galope e o coche vindo logo atrás - não é dos maiores, pois as ruas de Coimbra exigem que não sejam largos, mas pode-se ver que é um transporte de ricos, feito em pau Brasil, de cabine fechada e puxado por dois cavalos. Dois outros cavaleiros vêm à retaguarda. Chegam à pequena Igreja, no inicio da cidade alta. Encontram o templo fechado. O primeiro cavaleiro salta de sua montaria e vai chamar à porta. Frei Álvaro já se encontrava recolhido quando ouviu baterem. Vestiu depressa a batina e foi ver do que se tratava. Julgou ser algo importante, dado o horário e o frenesi com que batiam. De dentro da igreja, perguntou: “Quem é e o que queres?”. “A Viscondessa de Viegas deseja confessar-se”. “Mas a essa hora?”. “É urgente, padre”. “E ela não pode esperar até amanhã?”. “Eu disse urgente, padre”. “Vou preparar o confessionário”. Quando as portas da Igreja se abriram, a Viscondessa desceu do coche, auxiliada pelo condutor. Vestia-se à moda francesa; um belo vestido azul marinho, a realçar suas formas roliças; saia balão armada com merinaque,


meio aberta expondo as rendas das anáguas; e salto alto. Deu com Frei Álvaro no interior do templo. “Onde está o Vigário?”. “Frei Miguel já se recolheu”. “Pois vá chamá-lo”. “Não se preocupe Viscondessa, pode confessar-se a mim”. “Eu exijo que traga-me Frei Miguel. Sou a Viscondessa de Viegas e meu marido, o Visconde de Viegas, como bem o senhor sabe, é o maior benfeitor desta paróquia e também conselheiro da corte do rei Dom Pedro II, portanto não me venha com senões, padre. Vá chamar o vigário titular, imediatamente!” A Viscondessa mostrou ao frade que sabia ser rude para realizar suas vontades, apesar de fidalga. Sentindo-se bastante desprestigiado, frei Álvaro foi chamar o vigário. Considerado por seus pares ainda muito jovem (acabara de completar trinta anos), frei Miguel, há seis emitira os votos para sempre e há quase dois era o titular daquela pequena, porém importante paróquia. Importante, pois seu rebanho era, em sua maioria, formado por aristocratas, estudantes da universidade e outros estratos privilegiados da população de Coimbra, o que significava dízimos certos e doações portentosas. Frei Álvaro, alguns anos mais velho, era o primeiro auxiliar, condição com a qual não se conformava apesar de aparentemente diligente. Atribuía o prestigio de frei Miguel à proteção que o mesmo tinha do Cônego Oscar, líder da congregação na província de Coimbra. Também não concordava com a forma como o pároco gerenciava a renda do vicariato, pois julgava-se merecedor de valores maiores do que lhe era reservado. Secretamente, mas sem pudores de qualquer ordem, deseja e ambiciona o cargo maior. A cada vez que um membro da nobreza o trata como serviçal e ao vigário reserva deferência, sente um misto de cólera e indignação que lhe faz arder o peito e embrulhar-lhe as vísceras. Frei Miguel dormia profundamente quando foi despertado. “Mas o que houve Álvaro? Não disse que não queria ser chamado?”. “A Viscondessa de Viegas está na igreja e exige ter a confissão assistida pelo senhor”. “Mas não é possível!” Após a exclamação, pensou, “o que essa maluca quer a essa hora?”. “Diga a ela que estarei pronto em poucos minutos”.


O confessionário, feito de madeira nobre, consistia de duas bancadas separadas por uma grade, cujos acessos se davam em direções contrárias, o que evitava o contato visual entre confessor e penitente até que se sentassem. E ao fazê-lo, viam-se apenas pelos orifícios da armação. A viscondessa já se encontrava acomodada quando chegou o vigário. “Boa noite senhora Viscondessa. O que vos angustia o coração a essa hora da noite?”. “Não gosto que me chames assim. Chame-me de Antonia”. - Após pequena pausa, continuou - “E a minha angústia, o senhor sabe exatamente qual é”. “Por favor, senhora Viscondessa...”. “Não me chames de Viscondessa!” - Gritou. Frei Álvaro já se retirando para a residência paroquial, ouviu o grito. Intrigou-se. Conscientemente em pecado, retornou e acomodou-se onde pudesse ouvir a calorosa confissão. Para seu lamento, após duas exclamações mais sonoras porém não entendíveis da Viscondessa, a conversa tornou-se inaudível. No confessionário, a Viscondessa, aos sussurros: “Chame-me de Antonia.” “Escute-me Antonia, já é tarde, o Visconde deve estar em sua busca.” “Ele sabe que eu estou aqui”. “Santo Deus...” “E há quatro de seus lacaios lá fora a me esperarem...”. “A senhora os deixou lá fora neste frio?”. “Não estou aqui para falar dos lacaios de meu marido”. “A senhora não deveria ter vindo aqui a esta hora, tudo que o povo daqui mais quer é um nobre ou um padre de quem possam falar. Tem que ter cuidado viscondessa...”. Após um breve silêncio, frei Miguel olhou por entre as grades do confessionário e viu que o assento estava vazio. Antes que pudesse pensar qualquer coisa, surpreendeu-se com a Viscondessa invadindo seu reservado. “Chame-me de devassa.” Atracaram-se. Beijos voluptuosos. Lutaram para acomodarem-se naquele minúsculo espaço. Após vencer com dificuldade a batina, a saia, o merinaque, as anáguas, o espartilho e as calçolas, o frei tapou a boca da madame e ali mesmo consumaram o ato.


A face de Frei Álvaro transpirava puro ódio. Sujo, devasso, pecador, repetiam seus pensamentos. Como um sacerdote pode ser tão infame?! Algo deve ser feito imediatamente, pensou. Retirou-se a tempo de não ser notado pelo audacioso casal de amantes. Pouco mais de uma hora após ter entrado, com um amplo sorriso de satisfação estampado na face, a viscondessa de Viegas saía da igreja, para o alívio dos seus acompanhantes, que àquela altura já tinham as pontas dos dedos congeladas. O cocheiro apressou-se a lhe abrir a porta e auxiliá-la a subir à condução. Então a fidalga disse, “agora estou leve novamente”. O lacaio respondeu com um sorriso contido e embaraçado - admirado que estava, pois ela jamais lhe dirigira uma palavra, antes. “É mesmo uma senhora mui religiosa”, concluiu. Pouco depois da meia-noite, frei Álvaro acordou um serviçal da paróquia e mandou que lhe preparasse um coche. Disse-lhe que precisava realizar uma extrema-unção. Quando, curioso, o servo quis saber quem era o enfermo, o frade desconversou, deu a ordem para que fosse rápido e que tudo fizesse com atenção e em silêncio para não acordar o pároco. Apesar de que aquele lá – pensou – de certo está a roncar um sono profundo, pois nestes tempos sombrios, os injustos dormem tranqüilamente. Saiu como queria, sem ser notado. Horas depois, outra pessoa foi dar às portas da igreja. Alguém com uma missão urgente. Estava ali por ser discreto, capaz e obediente. Entrou na casa paroquial sem dificuldade e conduziu-se na calada como se conhecedor do caminho fosse. Em poucos minutos chegou às portas dos aposentos de frei Miguel. Com cuidado, manuseou uma ferramenta pontiaguda para destrancar a pesada fechadura tão discretamente como se a chave tivesse. Fechou logo a porta. Deu dois passos em direção à cama. Miguel realmente já dormia um sono profundo, mas mesmo se assim não fosse, se estivesse levemente adormecido, não notaria aquele sorrateiro invasor, useiro e vezeiro de andar sob as sombras e nas pontas dos pés. Quando lhe ocorreu de despertar, não teve sequer tempo para dizer uma palavra.


Golpeado contra a fronte, desmaiou.


Ao abrir os olhos, percebeu que estava em um cômodo escuro, atirado ao chão frio. A luz do sol entrava pela grade, formando feixes que pouco iluminavam e nada aqueciam. A cabeça lhe doía aos píncaros. Não sem esforço, levantou-se e conseguiu cambalear ate a grade por onde entravam os raios. A visão familiar o tranqüiliza. Reconheceu o pátio do Convento do Carmo. Concluiu estar em uma de suas clausuras. Perguntou-se por que. Encontrou a cama e de súbito adormeceu novamente. Horas depois foi acordado por um noviço que não conhecia. Observou que era um jovem de braços fortes e fisionomia sisuda, imaginou que fosse ele quem o golpeara. “Acompanhe-me”, disse-lhe o moço sem rodeios. Frei Miguel tentou conversar, mas não obteve atenção. Insistiu tanto que o rapaz lhe disse, entre dentes, “Cônego Oscar quer lhe falar”. Cônego Oscar era o vigário prior da congregação em Coimbra, conhecia frei Miguel desde quando este era noviço. Havia sido seu professor no Colégio do Carmo e responsável por sua ida a Roma e à terra santa e pelos seus estudos na Universidade de Coimbra. Desta vez estava furioso com o pupilo. “Mas o que aconteceu Cônego Oscar?”. “Ora, eu esperava que vossa senhoria pudesse me explicar”. “Em verdade de nada me lembro, apenas de um soco”. “Conheces o Visconde de Viegas?”. “Claro”. “Melhor a esposa dele, imagino. Saiba que o Visconde colocou dezenas de homens ao seu encalço. Quer-te vivo ou morto. Inteiro ou em partes”. Um calafrio lhe desceu a espinha. Frei Miguel sabia bem que o visconde era um dos homens mais ricos e influentes de Coimbra, fidalgo de primeiro grau, possuía em sua cota de indicações vários dos melhores cargos públicos da cidade, era amigo de pessoas influentes na corte e tinha sob seu comando um destacamento inteiro das forças de segurança da cidade. “A tua sorte é que sou muito bem informado, antes que todos os soldados e mercenários da cidade saltassem de suas camas eu já havia recebido a informação”. “Aposto minha salvação que foi frei Álvaro que me intrigou com o visconde. Não me admiro se vier a tomar meu lugar na paróquia”.


“Realmente, não se admire. O visconde é um dos maiores benfeitores da Ordem. Não podemos nos indispor com ele. Quando acontecia com esposas de mercadores, eu tinha como contornar, até naquela ocasião quando o senhor se envolveu com a esposa de um sargento da guarda Real eu pude salvar-lhe, agora fornicar com a esposa de um fidalgo poderoso como o visconde de Viegas é de uma estupidez bárbara! E sem falar no pecado mortal que é violar os sagrados votos de castidade e ainda consumar o adultério de uma mulher que foi casada pela Santa Igreja! Especialmente quando o pecador não demonstra nenhum traço de arrependimento cristão!”. Miguel teve vontade de dizer que um dia esteve apaixonado pela Viscondessa de Viegas e que se sentir assim não é tão mal como pensas, mas claro não diria isso, não seria inteligente fazer o cônego ainda mais irado. Em verdade, há muito tempo deixara de amar a viscondessa, desde que ela, como uma louca, passou a procurá-lo em lugares e momentos inoportunos e por vezes perigosos. Se dissesse ao cônego que a amou, na certa ele diria que tinha gosto por mulheres bizarras. Já devia ter posto um fim naquele caso, mas para ele a castidade há muito deixara de ser um voto fácil de ser cumprido e no final das contas, aquela loucura proibida ainda mexia com ele. Bem que o cônego Oscar poderia dizer-lhe, não te alertei que as fraquezas da carne ainda seriam a tua perdição? Mas um religioso como ele jamais quebraria o segredo da confissão, nem mesmo ao próprio confessor. “Vejo que não me adiantará em nada fazer minha defesa. Vossa reverendíssima já me condenara. Então, o que pensas fazer? Vais me entregar ao visconde, para que me esfole vivo? Denunciar-me ao Santo Ofício? Mandarme para o Brasil? Ou ainda, matar-me-ia o senhor mesmo, para que a Ordem não sofresse as conseqüências dos meus pecados?”. “Exatamente!” “Matar-me-ia?” “Mandar-te-ei ao Brasil.” Cônego Oscar mandou que lhe trouxessem trajes civis. Disse-lhe que não levasse sequer uma batina para não levantar suspeitas, afinal o visconde possuía contatos importantes em Lisboa, especialmente no porto, de onde partiam as frotas para o Brasil. O clérigo intuíra que o fidalgo não se satisfaria apenas com o degredo, levaria frei Miguel ao Tribunal da Inquisição, para que fosse torturado e morto. Deu-lhe algum dinheiro e o abençoou. Entregou-lhe uma carta de recomendação destinada ao comissário geral do vicariato


carmelita da Bahia e providenciou para que toda a operação de fuga fosse feita secretamente. Não deveriam chamar atenção, já que todas as saídas de Coimbra àquela altura certamente estavam sendo vigiadas pelos homens do visconde. Chamou o frei ao pátio e lhe mostrou o meio que usaria na fuga. “Um coche funerário? Eu não vou viajar dentro de um caixão!”. “Escuta bem, Miguel. Não demorará e o Visconde virá a minha procura, ele não é nenhum ingênuo, logo irá deduzir que podes estar aqui. Apressa-te e deita-te neste caixão ou poderás ter que usá-lo realmente como a definitiva morada de seu corpo”. Após os irrefutáveis argumentos de seu protetor, Frei Miguel deitou-se e viu a porta do caixão ser fechada. Dois furos na madeira lhe garantiriam o ar necessário para a viagem. O coche funerário partiu assim que a escuridão da noite tomou por completo a cidade. Na condução, o mesmo noviço que o buscara na clausura. Na saída da cidade, foram interpelados por guardas. De dentro do caixão, Miguel tudo ouvia, atento e muito tenso. Um dos guardas logo quis saber. “Aonde vai a essa hora, frade? Não achas um tanto tarde para iniciar uma viagem?” O jovem noviço respondeu que levava o corpo de um velho padre para ser enterrado em sua vila natal, nos arredores da cidade do Porto. Desconfiado, o soldado ameaçou abrir o caixão, mas foi repreendido por seu superior. “Não é necessário blasfemar!” Pediu benção e os deixou partir. Seguiram viagem margeando o rio Mondego, por entre as casas dos humildes e dos comerciantes. Quando a última casa já estava ao longe, o noviço bateu no caixão e frei Miguel pôde se levantar. O frade olhou pela janela traseira do carro e pôde ver as luzes das tochas na Torre de Almedina sumirem no horizonte da noite. Despediu-se da cidade onde havia sido feliz e partiu rumo ao desconhecido. Chegariam a Lisboa em quatro dias.


2. O Mar dos Homens A náusea o fazia suar frio e lhe turvava a visão. Sentia-se totalmente vazio, pois vomitara desde que a caravela deixou o porto de Lisboa, há cinco horas. Ainda assim, Frei Miguel parecia ter em si sempre mais alguma coisa para ser colocada para fora. Bílis, medo, merda. Havia vômito em suas roupas e ao seu redor. Encontrava-se em um dos compartimentos do porão da embarcação, encostado em um barril de azeite, pedindo a Deus que o mundo balançasse um pouco menos. Transparecia pavor. Olhava ao redor e o que via era homens rudes, sujos, criminosos, condenados e degredados de toda a sorte. Jamais imaginara-se em um covil como aquele. Inevitável lembrar de seu pai e irmãos. Miguel nasceu em Aveiro, em uma família de marujos. Seu pai foi o primeiro deles que se aventurou em travessias oceânicas, participou de carreiras para as Índias e chegou a ganhar bom dinheiro. Morreu durante uma destas travessias depois que a sua nau fora atacada por corsários. Como navegava a serviço de sua Majestade e descendia de uma linhagem limpa, sem mouros, cristãos novos ou processados pelo Tribunal da Inquisição, a generosidade real providenciou que o caçula dos quatro irmãos fosse entregue aos Carmelitas Calçados de Coimbra, para que fosse educado nas letras e preparado para o sacerdócio. Os demais seguiram a carreira do pai e se tornaram homens do mar. Desde que se graduara na Universidade não via a mãe ou seus irmãos. Planejara fazer-lhes uma visita por algumas vezes, mas foi sempre adiada por motivos diversos, grandes ou pequenos, verdadeiros ou desculpas. Agora temia jamais vê-los novamente. Desde que chegou ao Colégio do Carmo, ainda infante, despertou a atenção de seus professores por sua perspicácia e pelo claro entendimento que demonstrava acerca dos números e das operações aritméticas. Mostrou-se ser um estudante aplicado e noviço dedicado aos deveres para com a Ordem e a Igreja. O então Frade Oscar, diretor do convento, foi o responsável pelo período que Frei Miguel passou em Roma no Colégio Pio Português, por sua viagem à Terra Santa e por sua formação em Direito Canônico pela Universidade de Coimbra.


Foi durante o período universitário que o jovem pôde refinar seu gosto pelas artes e pelas letras. Seus contemporâneos e amigos na universidade eram músicos, pintores e poetas que se reuniam em sarais e festas que se tornaram célebres nas noites da cidade. Interessou-se também ainda por astronomia, pela história de Portugal e chegou a ser iniciado nas filosofias humanistas. Secretamente, leu escritos proibidos. Tornara-se, por assim dizer, um intelectual e passara a questionar sua vocação. Conheceu mulheres, poemas e pecados com os quais não sonhara. Passara a ver seus irmãos de sangue como inferiores, bárbaros tão incultos quanto incapazes de serem donos de seus destinos. Acabou por desenvolver crescente desprezo até mesmo pela sua própria mãe. Era mesmo do vicariato, na parte alta de Coimbra, que ele gostava. Sempre às voltas com gente sofisticada, viajada, apreciadora das artes. E havia também as mulheres e seus desejos secretos que somente um confessor poderia conhecer tão bem. Agora tudo parecia tão longe e sem sentido ou serventia. Humanismo, vinhos finos, livros, sonhos, não havia nada além do forte cheiro de azeite misturado ao odor de seu próprio vômito e do maldito balançar do mar. A noite demorou a chegar e passou como um sofrimento. A nau enfrentou chuvas e ondas tempestuosas. Mal dormiu uma hora, contados todos os momentos que julgou tê-lo feito. Mas a manhã trouxe certa calmaria. Aventurou-se pela primeira vez ao convés. O céu estava nublado. Caia uma garoa fina e fria. Pelo menos as roupas que Cônego Oscar conseguira eram boas, o casaco de pele grossa o protegia do frio e da umidade. Viajava na menor embarcação da frota, uma caravela redonda de quatro mastros, 50 toneladas de capacidade e pouco mais que trinta metros de comprimento; foi o único lugar que conseguira. As pessoas fugiam para o Brasil e de si mesmas aos montes, pensou. Outras seis embarcações compunham a frota, duas naus de 300 toneladas, dois galeões de guerra e mais outras duas caravelas menores. O frade podia avistá-las bem pequenas no horizonte, um galeão podia ser visto a estibordo. Observando a caravela em que viajava, percebeu que os passageiros mais potentados viajavam no castelo da popa, enquanto o comando da tripulação ocupava o da proa. Os pobres, grumetes e condenados viajavam no porão do navio, assim como os ratos e o azeite. Frei Miguel, como cada um dos passageiros dos porões, tinha direito a um litro e meio de água e outro de vinho por dia. Tanto a comida quanto o


vinho que lhe serviam era uma droga, segundo seu paladar. Conhecia as mais finas iguarias das culinárias portuguesa e européia, e ali a única coisa que comia era uma espécie de ração preparada com arroz de péssima qualidade e pedaços de carne salgada, ambos tão duros quanto pedras. Diariamente também ganhava três biscoitos. E como sentia saudade de um vinho do Porto!. Para dormir cada um se arranjava como possível. Deitados lado a lado no chão do segundo pavimento, privacidade era palavra desconhecida e não raro se misturavam ao balanço das ondas. Nos primeiros dias chegou a pensar seriamente em comprar um lugar nos castelos dos privilegiados com o dinheiro que lhe restava - pouco mais de dois mil réis, em moedas de quatro cruzados1 e algumas patacas2: havia gastado quase o mesmo valor para conseguir embarcar às pressas quando a caravela já iniciara os primeiros movimentos. Porém ao avaliar que não sabia que tipo de situação lhe aguardava no Brasil, decidiu-se por poupar aquela miséria, que era como via os valores que lhe haviam sido dados por Cônego Oscar. Evitava os assuntos religiosos; receoso de ter descoberta sua condição de presbítero. Ainda que respeitasse as horas canônicas, procurava sempre orar em silêncio e de maneira breve. Na mocidade, quando noviço, eram estes os momentos mais importantes de seu dia, perseguia com fervor o contato iluminado com Deus e acreditava que um dia elevar-se-ia em espírito a ponto de ouvir a voz do Pai. Adulto, seu coração perdeu parte desta esperança e com o passar dos anos, diante do Deus silente, passou a rezar e celebrar missas de modo como que corriqueiro, sem absorver-se, por obrigação e sem resquícios da vocação que um dia creu ser a sua. Quando deu por si já cometia pecados ditos graves sem se corar. Havia muitos grumetes a bordo, mas não faltava trabalho a ninguém. Não demorou para que Miguel passasse a ser requisitado para serviços diversos, como carregar cabos das velas, limpar convés e distribuir comida. Logo os marujos perceberam que o frei não era homem para trabalhos brutos era fraco e desatento para a lida no mar. Ainda assim, em geral, os homens gostavam dele. Talvez pela conversa diferente - falava de coisas distantes e engraçadas. Fez certa amizade com um grumete franzino, alojado no mesmo compartimento, nascido e criado em Lisboa, filho de um casal de lacaios de gente muito fina. Seu nome o frei ignorava, e assim como todos os outros que 1 2

Moeda de ouro; cada cruzado equivale 400 réis. Moeda de prata de aproximadamente 320 réis.


conheciam o rapaz, pois o faziam apenas pelo apelido pejorativo, Pocabosta. Era um sujeito ansioso, de tiques em excesso que vivia falando de lendas sobre montanhas de ouro em um tal sertão das minas dos cataguá. “Por acaso achas mesmo que exista nesse lugar uma montanha inteira de ouro?” “Uma não, senhor Miguel, várias.” O Frei tomava o rapaz por um ingênuo, ainda mais com um apelido daqueles. O pior – pensava – era que bastava colocar os olhos na criatura para entender exatamente o porquê da zombeteira. Fraco, ingênuo, submisso e feio, vive olhando para o chão e aparenta incessante pressa, mas solidário, uma virtude cara naquele porão. Os outros marujos, mais fortes ou de maior patente, abusavam da fragilidade do coitado: berros, intimidações, ameaças, pontapés, um cardápio variado para atender à sede de violência e ao gosto pela subjugação daqueles brutos. O frei, apesar de aparentemente frágil, possuía um traço que intrigava aqueles homens - falava bem como um fidalgo, sabia ler igualmente bem e já demonstrara ser mestre em contas. Que tipo de degredado era aquele afinal? Podia ser tudo, um nobre amaldiçoado ou excomungado, um oficial desertor, um padre ou feiticeiro. Era melhor ser amigo que se indispor com ele, calculavam. Nos porões do navio, o frei estimava que viajassem cerca de sessenta pessoas e nos castelos da proa e popa, acreditava que estariam umas vinte, entre tripulantes, militares, fidalgos e mulheres. Bom, as mulheres eram um problema naquela caravela, ou melhor, a falta delas. Nos porões não havia mais que dez. A desigual proporção era um tormento para os homens e principalmente para elas. Só deixavam de ser estupradas se passassem a ser protegidas por um homem ou quando passavam a cobrar dinheiro, fumo ou vinho pelos coitos sucessivos. Não raro uma mulher se amancebava com dois ou mais marujos, por proteção. Nos castelos, imaginava o frei, devia haver várias fidalgas de pele alva, rechonchudas, cheirando a perfume de Paris. A viagem estava programada para durar cinco semanas ou talvez seis se tudo corresse bem. Muitos praticavam sodomia. Jovens garotos eram abusados sexualmente na madrugada. Homens se deitavam com outros homens abertamente, a despeito da rígida disciplina militar e religiosa das viagens marítimas. O capelão nunca pisava nos porões, mas nos convés, fazia sermões ameaçadores e duros. Muitos daqueles homens eram atormentados pela culpa


e apesar de toda brutalidade às vezes pareciam frágeis pelo medo de se verem condenados outra vez, agora não ao degredo ou a prisão, mas ao Inferno. Os assassinatos, os furtos e as tentativas de motins eram reprimidos duramente, mas os pecados e os crimes da carne eram tolerados ou, em certa medida, ignorados. Casos de homossexualismo ou sodomia, quando ocorriam em terra e principalmente quando se tornavam escandalosos, eram sempre punidos exemplarmente, sendo previstas inclusive a tortura e a morte na fogueira. Entretanto, no mar as coisas eram diferentes. A bordo daquele porão, em poucos dias mais nada escandalizava. Na segunda semana passaram a navegar em águas calmas, mas a tranqüilidade era só aparente. Com o tempo corrido no mar e com as situações de higiene cada vez mais deploráveis, logo começaram a aparecer as doenças. Escorbuto, mal de Holanda, febres hemorrágicas, gripe. Improvisaram uma enfermaria fortificada pelos galões de vinho. O cirurgião-barbeiro era um prático do Açores, chamado Figueiredo. Devia ter uns sessenta anos e quase nenhum cabelo, a não ser o da barba branca. Nos primeiros dias, quase não aparecia nos porões. Agora, sua presença era constante, realizando seguidas sangrias ou ministrando seus estranhos remédios. Além dos enfermos, havia os feridos. Não raro, algum acidente no convés resultava em amputação ou morte. Estava sempre com o avental imundo por sangue e até mesmo sua barba adquirira coloração avermelhada. Os doentes sempre ofereciam vinho em gratidão ao velho médico, que por essa razão, estava sempre bêbado. A sorte dele e de seus pacientes é que encontrou um assistente muito eficiente e inteligente, frei Miguel. Este trabalhava como um verdadeiro faz tudo, fazia às vezes de enfermeiro e até mesmo de médico, quando o titular encontrava-se apagado em algum canto. Nos últimos dias, Miguel havia percebido que a porção de comida que todos recebiam diariamente vinha sofrendo sistemática redução, executada aos poucos, é verdade, mas àquela altura muitos já reclamavam. Não era difícil para qualquer um perceber que com a tripulação insatisfeita as coisas naquele porão tendiam a ficar ainda piores. No vigésimo dia da viagem, os marujos trouxeram Pocabosta, esvaindose em sangue, à improvisada enfermaria. Uma espécie de gancho de ferro atravessara sua tíbia. O coitado estava aos gritos e o pontiagudo ainda encravado em sua carne.


“Há quanto tempo isso aconteceu?” – Quis saber Figueiredo, bêbado. “Não sabemos bem. Ele ficou gritando por muito tempo até que déssemos atenção. Você sabe, essa bosta grita à toa... quando o vi, a poça de sangue já era grande”. “O que podemos fazer?” – Quis saber um preocupado Miguel. “Precisamos de um machado”. - Respondeu Figueiredo. “Não dá para arrancar o gancho, ele já perdeu muito sangue. Já fiz o garrote, mas ainda assim se demorarmos a agir toda sua carne vai apodrecer e ele não dura mais que algumas horas”. Disse isso sem cerimônia, bem na frente do ferido em desespero e dor. Alguém trouxe o machado. Pocabosta quando viu o instrumento na mão de Figueiredo, quase desmaiou. O médico-barbeiro mandou que providenciassem aguardente de uva para o agonizante e para si próprio. Miguel tapou a boca do infeliz com uma bola de couro e, pôde ver o desespero nos seus olhos. Olhou para o velho cirurgião a tentar equilibrar o machado com as duas mãos trêmulas pelo álcool e temeu pela vida do pobre grumete. Tomou dele a arma. Curiosos aglomeraram-se em volta da mesa. Miguel com o machado suspenso em frente ao rosto, por um segundo descrê do que está para fazer. Então olha ao seu redor. Todos parecem ansiosos. Figueiredo toma um gole da aguardente. Pocabosta não cessa de tentar gritar, ainda que tenha os gritos abafados pelo couro em sua boca. Dois homens fortes penam para deixá-lo imóvel. Em silêncio, Miguel ora. Pede a Deus que esteja certo. Respira fundo.



Miguel ergue o machado sobre sua cabeça. Desfere o golpe. Pocabosta urra em silêncio. Chora. Imediatamente, Figueiredo lhe mete um lenço molhado no nariz. O grumete perde a consciência. Então lhe retiram o couro da boca e o procedimento da sutura é iniciado pelo cirurgião bêbado. Minutos depois, o médico e Miguel dividiam uma garrafa de vinho. “Você foi muito bem, rapaz. Salvou o infeliz. Como eu poderia imaginar que ia me surgir um caso como esse? Justo hoje!” “O que era no lenço?” “Láudano de Sydenham, coisa de ópio. Conheci por um médico inglês. Santo remédio”. Parecia mesmo ser, pois naquele momento, Pocabosta não mais gritava. Dormia um sono um tanto agitado, às vezes se debatia, ás vezes grunhia sons estranhos, mas diante do que vivera encontrava-se em relativa paz. Aos olhos de Miguel, Figueiredo era um homem interessante e sagaz. Ocorreu-lhe então questionar o que o fizera abraçar aquela vida errante por mares distantes e porões infectos. “E o senhor Figueiredo? O que faz aqui?” “Sou sócio do açúcar que vamos trazer no regresso”. “Tens família?”. “Claro, o que pensas que sou? Não me diga que um sujeito que fala tão bem quanto o senhor me tem como feiticeiro!” Soltou estrondosa gargalhada. “Somente queria entender porque o senhor, nessa idade, deixou o Açores para se meter nesta merda”. “No inicio foi o dinheiro. O açúcar já enriqueceu muito homem no Brasil e em Portugal. Mas depois de quatro ou cinco viagens, nunca mais consegui fixar-me em terra outra vez. Já vivi muito, mais do que mereço, foi tempo suficiente para conhecer todo tipo de vício; dinheiro, sexo, jogo. O meu acho que é esse balançar do mar, misturado ao cheiro de sangue e ao gosto de vinho”.


3. Calmaria podre A cada seis horas aproximadamente, Pocabosta volta a gritar. É o tempo que dura a ação da droga. Então Miguel traz o lenço e o entorpece. Imediatamente cessam-se os gritos e têm início os delírios. Não fala coisa com coisa. Mas sempre as montanhas de ouro. Em uma oportunidade agarrou o braço do frei e balbuciou: “Eu sei que você me salvou. Quando eu tiver minha montanha de ouro lhe darei uma pepita de 20 oitavas. Pode me cobrar”. Miguel riu e não deu muita bola para o assunto. Porém a maneira insistente com que o grumete repetia aquela história desde que o conhecera acabou por atiçar sua curiosidade. Quis saber do médico. “É verdade, meu caro. Eu mesmo já presenciei caravelas repletas de ouro chegando a Lisboa. Mas é tudo feito com discrição, El Rey não quer que todo o reino se mude para o Brasil”. “Mas será mesmo tão abundante quando dizem estes incultos?”. “Acredito que sim. Do contrário não seria tratado pelo governo real como boatos sem sentido”. Miguel já havia percebido que o velho não se referia com muita deferência quando se tratava do Rei. Sentia no discurso de Figueiredo sempre uma pitada de ironia que beirava a insolência. Resolveu perguntar. “O senhor está a fugir de alguma condenação?”. “Todo mundo aqui de certa forma, está condenado ou em fuga, ou ambos!” – Depois de soltar suas costumeiras gargalhadas, indagou: “Você não, jovem Miguel?”. O frade sorriu assentindo. Figueiredo continuou: “Mas de minha condenação, não posso fugir. Sou condenado onde quer que eu esteja”. “Qual é o seu crime?” “Sou um descrente”.– Fez uma pausa, como se refletisse. “Certa vez, em um domingo, eu estava em minha casa, havia acabado de voltar das Índias há poucos dias. Tinha sido uma travessia assustadora. A pior de toda a minha vida. Os cálculos das provisões foram feitos em erro, faltou alimento e todo o tipo de víveres para a tripulação. Vi homens comer ratos, mordê-los ainda


vivos, com ira e satisfação. Os mais fracos morreram de fome e os mais insanos alimentaram-se deles. De volta à minha terra, queriam que eu fosse à missa... que rezasse... pedisse por perdão, entregasse meu dízimo. Às favas com o criador. Às favas com o Rei. Porque só há a febre e mais nada.” Com o passar dos dias, a redução de comida não se estabilizara, havia um clima de insatisfação latente no porão. Até a temida palavra motim era ouvida. Homens acusados de sedição foram chicoteados para que todos tomassem a punição como exemplo. O capelão se mostrava cada vez mais irado nos sermões do convés e comandava ele próprio os açoites corretivos. Sua figura por si só já inspirava medo. Carrancudo, desdentado e um tanto corcunda. Um animal, segundo Miguel. Certa vez, ele chegou a tomar o chicote das mãos do militar que castigava ao seu mando um suspeito de furto de rapé e desferiu duas chibatadas ele mesmo para exemplificar como queria a intensidade da pena. Ainda assim, sempre que um doente ou ferido sentia o frio da ante-sala da morte logo pedia a presença do capelão, que apesar dos pedidos desesperados, nunca se dignava a descer aos porões. Nas cerimônias fúnebres, abençoava aos mortos, encomendava lhes a alma e ao seu sinal, os cadáveres eram despejados ao mar. Em quarenta e cinco dias de viagem, já havia acontecido seis destes rituais, Miguel achava muito, Figueiredo pouco; somente marujos da ralé ou passageiros dos porões, nenhum tripulante do comando ou gente dos castelos. Miguel havia notado que nos últimos dias o cirurgião-barbeiro vinha gradativamente reduzindo a dose de ópio que ministrava ao Pocabosta, o que o deixava insano. Gritos primais ecoavam pelos porões quando lhe era negada a droga. Miguel quis saber de Figueiredo se a razão do racionamento era material. “Não se preocupe meu jovem, há bastante ópio para todos nessa caravela”. “Então porque não alivias a dor deste infeliz?”. “Se não cortarmos agora, ele não larga nunca mais esta merda. Vai por mim, sei do que falo”. Figueiredo não esperou que Miguel se virasse e sacou o frasco que continha o láudano, molhou o lenço e inalou com vontade. Dobrou os joelhos e tombou para frente, apagado.


Uma hora depois suava litros. O frade, preocupado, aproximou-se para lhe secar a careca. O velho balbuciava alguma coisa, mas Miguel não podia entender. Pocabosta estava mais calmo, e ainda que reclamasse da dor, os gritos foram interrompidos; ou porque ela diminuíra ou porque perdera a voz. Naquele momento, a principal preocupação de Miguel era o médico, achava que se lhe acontecesse alguma coisa, a vida daqueles pobres infelizes e a sua própria correriam ainda mais riscos, afinal, bem ou mal, aquele velho conhecia as técnicas rudimentares que aprendera sabe-se lá onde. As sangrias, os sanguessugas, as suturas, fazia tudo razoavelmente, especialmente quando estava sóbrio. Desta vez, quando o frei se agachou para enxugar o suor do velho médico, ainda delirante e estendido no chão, teve o braço agarrado. Bruscamente, Figueiredo trouxe o rosto de Miguel para perto de sua boca. “O capitão deste navio é um imbecil. Vai faltar comida. Não há o suficiente para todos”. “O senhor sabe bem o que está dizendo?”. “E o pior eu ainda nem disse”. E logo desmaiou. Agora foi Miguel quem o agarrou pelo braço e lhe sacudiu o corpo, tentando despertá-lo novamente. Desistiu. Largou-o desmaiado no chão e se levantou intrigado. Estaria o velho delirando e achando que está naquela viagem para as Índias onde este fato realmente aconteceu ou estava mesmo receoso que isso se repetisse naquela travessia? Não era a primeira vez que chamava o capitão de imbecil. Depois de horas, Figueiredo pôs-se de pé outra vez. “Acho que errei na preparação do láudano... ópio demais. Minha cabeça vai explodir. Quanto tempo estive fora?”. “Umas quatro horas, eu calculo”. Quando foi indagado sobre o que dissera enquanto estava drogado, tentou pestanejar, mas diante da insistência de Miguel, Figueiredo o chamou a um canto e quase murmurando se abriu. “O estúpido do capitão encheu o navio de gente e azeite a ponto de ultrapassar a tonelagem racional para uma embarcação deste porte. Por isso estamos tão vagarosos. O senhor não notou que há tempos não vemos as outras naus ou os galeões da frota? Se demorarmos mais que uma semana para chegarmos às ilhas estaremos perdidos”.


“Santo Deus. E o que ainda falta contar-me?”. “Se achas que isso não é o bastante, espere até ver esta gente faminta”. “Mas o senhor disse que ainda havia algo pior por contar”. “Maldita droga que some com minha consciência, mas não cala minha boca!”. Fez uma pausa, sorveu um bom gole de vinho. Abaixou mais ainda o tom de voz. “O capelão está morto. Estava fazendo sua refeição noturna quando não mais que de repente tombou a cara sobre o prato. O capitão mandou que enchesse o cadáver de óleos essenciais3 para que ele tivesse tempo de pensar em uma solução. Tenho eu certeza que a única coisa que ele consegue pensar é em esconder o ocorrido de todos até que cheguemos às ilhas. Lá, ele acredita que poderá negociar alguns barris de azeite, deixar os doentes e ainda encontrar um novo capelão. Acontece que pelo que me dizem os pilotos, com tanto peso, vamos demorar mais de uma semana, talvez duas, para chegarmos às ilhas. E como a estupidez do capitão não o deixa enxergar um palmo à frente daquele seu nariz de filho da puta, ele ainda hesita em começar a despejar parte do azeite ao mar... aposto todo o meu ópio, que em sua conta, era melhor despejar parte das pessoas, pois elas já pagaram no embarque ou com seu trabalho e o azeite ele só recebe pelo que entrega.” Miguel tomou a garrafa de vinho da mão do médico e serviu-se de um belo trago. “Os doentes não melhoram, de nada valem aqueles seus chás, elixires ou suas drogas, esse ambiente infecto e úmido é o que vai nos matar. Caga-se e mija-se em qualquer canto, nem se dão ao trabalho de subir ao convés e despejar seus excrementos. E o sol? Há quanto tempo não se vê o sol! Tem sempre uma nuvem negra em cima desta maldita barca!”. “É preciso que se tome uma atitude. O capitão Nunes Almeida vai nos levar à destruição”. “Estás a me sugerir um motim?”. “O Capitão Arrais Belmonte é um homem inteligente e sensato, pode tranqüilamente assumir o comando. E tu és um homem popular por aqui, atendes aos doentes, ajudas os feridos, todos lhe estimam, até os mais odiosos. Podes liderá-los”. 3

Óleos vegetais usados para retardar o processo de decomposição dos cadáveres; pratica conhecida por embalsamar.


“O senhor não sabe o que está dizendo”. “Imagine quando as pessoas souberem que navegam sem capelão. Primeiro, será um impacto, provavelmente a maioria tomará conhecimento quando assistirem a uma cerimônia fúnebre sem que um padre encomende a alma. Oh! Posso imaginar o pandemônio. Depois virá a sensação de desproteção, condenados a morrer sem poderem se confessar e sem direito a um funeral cristão. Aí então é que chega a pior parte da história. Eles percebem que nada mais têm a perder e que não há mais lei que os sacie ou os amedronte. Bem vindo ao inferno, meu caro”. “Existe outra saída”. “Uma merda, Miguel! Uma maldita merda! Eu não quero morrer num naufrágio!”. Concomitantemente olharam ao redor e percebem que a discussão já despertava certa atenção. Voltaram aos cochichos. “Não sou homem de contendas, não me encantam as guerras, mas lhe digo que tenho a solução, ou melhor, eu sou a solução”. Então Miguel contou-lhe toda a sua história e o motivo que o fazia viajar escondido entre os desafortunados. Após rir sem reservas por minutos, a ponto de chamar a atenção de todos, Figueiredo murmurou aos ouvidos do Frei: “Então o tal altruísta Miguel, enfermeiro dos condenados, cristão exemplar, capaz de doar suas energias pelo restabelecimento do próximo sem nada cobrar, não passa de um padre fornicador. A vida é mesmo muito irônica, não acha?”. Figueiredo contou a história de Miguel ao Capitão Nunes Almeida, porém não sem antes assuntar se o marinheiro possuía algum vinculo com o visconde de Viegas ou se sabia se o mesmo havia colocado recompensa pelo frei. Em verdade, o capitão conhecia o fidalgo, mas nutria por ele grande antipatia, o que soava puro ressentimento ao médico. Saberia depois que certa vez o visconde financiara uma de suas travessias e ficara com boa parte dos lucros, amparado nas arbitragens de seções do tribunal ultramarino, presidida por fiéis amigos. Ofereceu ao médico um legitimo vinho do porto de célebre safra e propôs um brinde. “Àquele que fez do nobre visconde de Viegas, o maior corno do reino”. E caíram na gargalhada.


Horas depois, quando o capitão surgiu no porão, de imediato houve um silêncio quase completo. A autoridade estava ladeada por uma comitiva de marinheiros armados. Trazia nas mãos o crucifixo e a batina do capelão morto.


O capitão dirigiu-se a Miguel, lhe passou às mãos a imagem e a túnica e respeitosamente pediu por benção. A cena comoveu a muitos, particularmente aos enfermos, que ao perceberem a simbologia do gesto encheram o ambiente de gritos de “viva” e “santo”. Pocabosta até mesmo se esqueceu da dor e foi aos saltos tocar o frei antes que este subisse ao convés. Se entre os passageiros havia dúvidas a respeito da legitimidade do novo capelão, estas logo se dissiparam diante da missa em perfeito latim que frei Miguel ministrou pela graça da alma de seu antecessor. Em seguida à cerimônia de despejo do cadáver, todos voltaram ao trabalho. Mais próximo à tripulação e ao seu comando, não demorou muitas horas para que o frade percebesse que todos navegavam sob nítida tensão, principalmente os pilotos e o capitão arrais, que sempre nervosos discutiam por qualquer tolice. Consultavam os instrumentos a todo instante e cambavam as velas na esperança de roubar o vento pelo outro bordo, o que obrigava os marujos a um balé perigoso para escapar do brusco retorno da verga que compõe a base do mastro. Mas a caravela continuava, nas palavras de Figueiredo, à velocidade de uma velha doente. Enquanto o capitão Almeida praguejava contra a ausência dos ventos, o restante da tripulação praguejava contra ele, pelas costas. Miguel instalou-se no castelo da popa, na cabine privativa que antes era ocupada pelo velho capelão. Suas novas acomodações de dois metros de comprimento, com direito a uma arca para pertences e um catre poderiam ser qualificadas de luxuosas, comparando-as às anteriores. Havia mais três câmaras duplas no castelo da popa, em cada uma delas viajava um casal e uma dupla de mucamas. Na proa, o Capitão se acomodava na câmara oficial, e outros oito marinheiros, inclusive o arrais e o barbeiro, ocupavam outras duas maiores. À noite, Frei Miguel foi convidado a se juntar ao comando da tripulação e participar da ceia na cabine do Capitão. Estavam presentes, além do anfitrião, o Capitão arrais, o barbeiro-cirurgião e os dois funcionários da burocracia real, que viajavam com as mulheres recentemente desposadas para assumirem ambos, importantes cargos na administração colonial do Brasil. Havia na câmara oficial, além de uma confortável cama, uma mesa para refeições e uma estante com escrivaninha repleta de livros, praticamente consumidos pela maresia e pela umidade, há muito não folheados ou abertos. Sobre a mesa,


além do lampadário a óleo, uma porção de pasteis, um belo bacalhau assado, vinhos, grão de bico, frutas secas e outras iguarias em farturas inimagináveis nos porões. No cardápio das conversas, um assunto era o destaque, a tal calmaria podre que os havia deixado ora inertes, ora desorientados. “Costumam dizer por ai que navegar é preciso, mas quem o diz é porque, em verdade, nunca navegou”. – Comentou o Capitão. Frei Miguel leu no rosto do arrais seu total desacordo com a opinião do superior. O sujeito enche a barca de peso, comete diversas infrações de navegação e ainda culpa os instrumentos e os pilotos? Era o que se podia perceber na reação silenciosa do piloto ao comentário. O capitão gostava de muito falar e de pouco ouvir. Acreditava na possibilidade de se chegar às Ilhas do Cabo Verde nos próximos três dias. Somente os funcionários reais, tidos pelos outros como otimistas demais e com conhecimentos de navegação de menos, confiavam na expectativa do Capitão Almeida. Quando, duas horas depois, estava já de volta aos seus aposentos, frei Miguel já tinha, ele próprio, um conceito formado a respeito do capitão. “Este é mesmo um imbecil”. Um novo dia começou com o sol brilhando imponente, sem nuvens no céu, o que dava ao mar uma tonalidade de azul que eles antes ainda não haviam visto na viagem. No horizonte, não se podia ver onde terminava o mar e onde começava o céu. As mulheres e suas mucamas tomavam sol à varanda; os marujos, sem a chuva, pareciam mais animados e dispostos; até o arrais ameaçou sorrir quando conseguiu pegar uma boa corrente de vento. No final da tarde, o capitão era o grande vitorioso, pois se os próximos dias fossem tão bons quanto estava sendo o corrente, chegariam às ilhas conforme ele havia previsto. E assim se deu. Chegou a comentar com Miguel: “Parece que aquele maldito capelão era o peso que nos travava”. Quarenta e oito horas depois aportavam em Santiago. A estadia na ilha durou três dias. O capitão conseguiu negociar a bom preço parte de seu azeite, reabastecer a embarcação de víveres de toda qualidade e ainda deixar por lá todos os enfermos e passageiros que em sua opinião eram estorvos. Pocabosta acabou por ser deixado para trás, fora considerado sem serventia agora que estava amputado. Muito chorou e implorou para que lhe deixassem seguir viagem. O frei viu quando o infeliz foi arrancado à força da barca e despejado feito coisa no cais do porto. Inconformado, o pobre grumete ficou a gritar enquanto ainda podia avistar a


caravela. “Preciso seguir!” “Maldito capitão filho da puta!” “Meu ouro!” “Preciso ver a montanha!” De nada adiantou o primeiro arroubo de ira de sua vida, ficou mesmo sozinho com seus impropérios e seu desespero. A partir da estratégica parada em Santiago, o clima na caravela melhorou e mudou radicalmente o panorama. A proliferação das doenças fora estancada e até os acidentes de trabalho diminuíram drasticamente. O humor mudou entre os pilotos e os demais marujos, o que fez com que as brigas tornassemse raras. De vento em popa e bem mais leve, o navio agora cruzava o atlântico com velocidade mais que satisfatória. Correram mais duas semanas até que, em uma manhã quente, o frei percebeu uma mancha negra no horizonte azul. Ele ainda não sabia, mas era a primeira vez que avistava a baía de todos os santos.


4. O Salvador e a BaĂ­a


Assim que adentraram à baía, a tripulação e os passageiros, dos mais pobres aos mais ricos, expressaram algum tipo de excitação. Muitos gritaram vivas, outros brindaram seus copos de vinho e os mais religiosos louvaram a graça rezando de joelhos. Frei Miguel ficou deslumbrado desde o primeiro instante que colocou os olhos naquelas paragens, lembravam-lhe o Tejo, mas ainda mais colorido e vibrante. Impressionou-lhe profundamente a beleza da ilha de Itaparica. A cidade, bem guarnecida pelos os fortes que cobrem toda a área construída, desponta à beira mar e sobre a colina. À medida que se aproximam do porto, mais intenso torna-se o tráfego de barcas de todo o tipo e tamanho. Souberam ao aportar que o restante da frota chegara uma semana antes e que, desde então, os demais capitães se divertiam, caçoando do Nunes de Almeida, o mais lento dos homens do mar. Vestido com a batina que herdara de seu antecessor e tendo às mãos mínima bagagem, acrescida por alguns livros religiosos, presentes do desastroso capitão, Miguel despediu-se da tripulação, destituiu-se do posto de capelão e partiu por entre a multidão que circulava pelo cais. Seus passos indecisos e olhar vacilante denunciavam desorientação. Muitas pessoas o interpelavam, oferecendo todo o tipo de serviço ou mercadoria. “A bença, padre. Precisa que leve suas coisa?” Era um negrinho descalço e sem camisa com um tampão de tecido no olho esquerdo. Curioso, o frei levantou o pano e notou que o garoto não tinha o olho. “Nasci estragado por praga de inimigo”. O frei achou graça. “Se me der um tostão4, levo suas coisa”. “Não é preciso. Quase não me pesa”. “Levo por meio tostão...”. “Ora pois, o que me interessa mesmo é uma informação”. “Se me der dois tostão lhe consigo uma mula pra não ter que andar. Quer ir a alguma igreja?”. “Sabe onde fica o Convento de Santa Tereza de Ávilla?”. 4

Moeda de níquel; equivalente a 100 réis.


“Sei sim. Nem é longe”. O negrinho era conhecido ali nas imediações do porto por esse apelido mesmo, Negrinho, ou melhor, neguinho. Ainda que gostasse de sempre dizer que tinha nome, José, como o pai de Cristo, nada adiantava, pois todos insistiam em chamá-lo pela alcunha. Acabou se acostumando, mas gostaria mesmo é de ser chamado pelo nome, que é a única lembrança que tem ou que acha que tem desde que passou a viver na rua. Nasceu sem um dos olhos, o que foi considerado pelos africanos uma maldição, já para os brancos era imprestável para o trabalho escravo, e acabou abandonado na rua com pouco mais de dois anos de idade. Aprendeu a viver de restos das mercadorias que eram negociadas no porto e das esmolas que às vezes recebia. Tinha uma protetora a quem chamava de tia, uma escrava forra que lhe contou seu nome cristão e que por piedade às vezes o alimentava, mas já havia muito tempo que o garoto não a via. Ele vivia pelo cais, sempre em busca de algum dinheiro ou comida, que recebia em troca de seus serviços de carregador, como esmola, ou conseguindo passageiros para as mulas do Antunes, um próspero mercador da área. Foi assim que conseguiu ganhar a promessa de dois tostões de Miguel. O movimento nas imediações do porto era frenético, comprava-se e vendia-se de tudo. Especiarias importadas das Índias, manufaturas européias de toda ordem, plantas aromáticas nativas, produtos dos engenhos baianos, em especial açúcar, e claro, os escravos vindos da África. Estes últimos surgiam a todo o momento, às dezenas, acorrentados pelos pés e pelas mãos, em fila indiana, com seus ferimentos adquiridos na travessia e seus olhos assustados. Miguel se deslocava por entre os transeuntes sobre uma mula puxada pelo neguinho, girava os olhos em todas as direções tentando absorver tudo que a paisagem local lhe permitia; os fortes ao longo da costa, a natureza exuberante, o mercado de escravos e os tantos navios sendo abastecidos de caixas de açúcar, tabaco e madeira. As negras de tabuleiro eram muitas, ficavam nas esquinas a vender quitandas, confeitos ou ervas. Pôde observar meia dúzia de mascates chegarem a disputar a tapa a preferência sobre um lote de produtos ingleses. Uma particularidade daquela massa humana logo chamou-lhe a atenção: as vestes das negras, índias e mestiças, eram extremamente indecentes aos olhos de um morador de Coimbra. Imaginou o que pensariam as beatas


lusitanas se vissem ou tomassem conhecimento que ali mulheres circulavam livremente tendo sobre a pele uns trapos que quase lhes deixavam as coxas às mostras. Pena que tão magras, pensou. Após cruzarem boa parte da rua da praia, tomaram o rumo da chamada ladeira da preguiça, cujo nome o frei entendeu logo que chegou. Íngreme e acidentada, era um dos principais caminhos das pessoas e dos produtos importados para a cidade alta. Em todo o percurso da subida, tiveram a companhia dos escravos que labutavam a carregar todo tipo de mercadoria que se comprava dos mercadores da praia. Quando chegou às portas da igreja de Santa Tereza de Ávila, frei Miguel sentiu-se transportado à infância. A fachada do templo era igual, nos mínimos detalhes, à igreja de Aveiro, onde seu pai, quando estava em terra, levava a família à missa aos domingos. Sentiu o peito apertar e um nó lhe subiu pela garganta ao se lembrar daquelas manhãs. “Garoto José, peço que me aguardes por um instante. Hei de precisar de ti novamente. Toma isso.” O Neguinho ficou feliz duplamente. Nunca havia tido uma pataca e há muito tempo ninguém o chamava pelo nome. Intencionalmente ou não, o frei acabara de ganhar a fidelidade do garoto. “Muito bem, senhor reverendo frei Miguel...” Começou a dizer, pausadamente, frei Inácio, capelão do convento e comissário geral da Ordem Carmelita na Bahia. Acabara de ler a carta do Cônego Oscar. “Pelo que aqui me diz meu amigo de Coimbra, o senhor é uma pessoa muito talentosa, com relevantes serviços prestados à Ordem em Portugal. Porém, pela maneira que o senhor teve que deixar a cidade, de certo o fez porque cometera um pecado muito grave”. “Senhor frei Inácio, eu realmente...”. “Por favor, se quiseres posso tomar-te a confissão, mas antes temos que terminar esta conversa. Aqui, como em Coimbra, a ordem exerce um papel muito importante na vida da cidade. A Ordem dos Calçados está aqui há mais de um século. Este convento abriga os irmãos Descalços desde 1665, quando foi erguido, graças a doações da população, nas terras que nos foram presenteadas pela Majestade Dom Afonso VI, o vitorioso...”. Que de vitorioso não tinha nada – pensou Miguel. Continua o frei mestre Inácio:


“Há poucos anos, leigos de grandes virtudes cristãs e que orientam sua fé pelo Carmelo, fundaram, na cidade, uma Ordem Terceira, da qual todos nós fazemos muito gosto. Aqui na Bahia, preservamos nossa independência, mas nos damos muito bem com o arcebispo D. Sebastião assim como com o governador geral, D. Rodrigo". “Vossa reverendíssima não carece de se preocupar com minha pessoa, não me interesso por política e entendo bem o sentido da palavra independência quando a diz”. Não parecia se importar com o que Miguel pudesse ter a dizer, pois assim que terminara de ler a carta de cônego Oscar, havia sobre ele formado conceito e já tinha certa sua decisão: “Por suas qualidades intelectuais e de formação, poderias ocupar um posto importante no seio da ordem, mas o exercício de sua vocação foi comprometido e pode acontecer outra vez. Não queremos problemas por aqui. Em consideração ao Cônego Oscar e somente a ele, permitiremos que se hospede no convento do Carmo, na cidade alta e que auxilie ao frei Baltazar no pastoreio dos leigos da Ordem Terceira. Mas isso é temporário, pois poderão haver outros planos para vossa senhoria. Por ora, será apenas um discreto colaborador, não celebrará missa ou tomará confissão alguma, também não realizará casamentos ou quaisquer dos sagrados sacramentos. E tenho dito. Agora, se quiser mesmo se confessar, peço que me espere por alguns minutos, na capela, caso contrário, pode se retirar e vá com Deus. José estava exatamente no mesmo lugar onde frei Miguel o deixara quando este retornou da audiência com Frei Inácio. “Pra onde vamo, padre? Pra alguma igreja?”. “Conheces uma boa taberna?”. “Taberna?”. “Sim, onde haja vinho, pessoas, boa conversa...”. “Eu conheço uns secos e molhados por aqui que talvez o senhor goste.” “Eu preferiria mesmo uma taberna, garoto”. Voltaram à cidade baixa, onde Frei Miguel pôde comprar roupas civis ao seu gosto. Nada de perucas ou gibão. Calções, camisa e meias de bom tecido e tamancos novos. Encontrou uma estalagem onde pôde se banhar, cortar os cabelos e barbear-se. Ao cair da noite, na hora em que haviam marcado, reencontrou José.


“É importante que preste atenção. Não quero que saibam que sou padre, desejo conhecer a cidade e a batina pode deixar as pessoas receosas, creio eu”. A taberna ficava a poucos metros do cais. O frei combinou com o garoto que pela manhã se encontrassem na estalagem, deu-lhe mais um tostão e adentrou. Homens bebiam ou jogavam cartas em mesas dispostas caoticamente e bem próximas umas das outras. As negras andavam por entre as mesas em trajes sumários, bolinadas por um homem diferente a cada passo. Por um bom gole de vinho, sentavam-se no colo do sujeito e remexiam os quadris de forma escandalosa para o delírio do agraciado. Não era mesmo um ambiente para um religioso, pensou o frei. Na Europa também havia tabernas próprias ao pecado, mas ali nem ao menos fechavam-se as portas, quem passasse pela rua, fosse uma senhora ou donzela, poderia ver o carnaval de luxurias e excessos. É bem verdade que os transeuntes não aparentavam também se importar com aquilo. Frei Miguel pediu vinho. Não era barato, e não era bom. Por ali somente se pedia cachaça, miúdos e fumo. Com o passar das horas, as mulheres sumiram da taberna e com elas boa parte dos homens. Ficaram somente o frei e outros dois portugueses recém chegados à colônia. “Espero conseguir chegar às Minas. Dizem que o caminho partindo aqui da Bahia é repleto de perigos. Animais e gentios ferozes povoam todo o trajeto”.– disse um deles. “Ouvi dizer também de bandos armados que roubam até a roupa do corpo!” – Disse o outro. Miguel, até então calado, resolveu tomar parte da conversa: “Se é assim tão perigoso, porque vocês desejam tanto ir?”. “Ora meu amigo... são as montanhas”. - Disse um deles já rindo, enquanto o outro completou: “De ouro, meu caro. Montanhas de ouro”. Frei Miguel apenas sorriu, e, finalmente, atendeu aos apelos do taberneiro e experimentou a tal cachaça. Bebida rude e forte, pensou. Tomou mais uma dose e depois outra e assim foi até não mais se lembrar. Fato é que acordou na manhã seguinte na estalagem com a cabeça a explodir de dor e sem imaginar como encontrara o caminho correto.


O convento do Carmo era situado em um largo de mesmo nome, próximo ao palácio do governo e ao pelourinho - onde se dava publicidade aos atos da justiça e se puniam escravos ou criminosos. Os casarões e os templos da área eram suntuosos e o ordenamento das ruas decerto gracioso. Assim como em Coimbra, era na cidade alta que residiam os mais ricos. Nas dependências do Convento, almoçou na companhia do vigário provincial Frei Baltazar. “Encantam-me os pratos feitos pelas negras. Elas colocam dendê em tudo que preparam, na galinha, no pescado e onde for. No inicio me parecia um tanto pesado, mas hoje acho essa combinação um primor”, disse frei Baltazar, com o um pequeno sorriso apertado entre suas rosadas e rechonchudas bochechas. Era, notavelmente, afeito ao conforto e à boa mesa, estilo de vida bem distinto daquele abraçado pelos monges e freiras enclausurados da Ordem. Os dois frades se deram bem logo de inicio. O vigário pareceu ao frei Miguel ser um pastor obreiro e justo. Logo nos primeiros dias, pôde presenciar a luta dele contra a simonia que era praticada por alguns membros da Ordem e do cabido diocesano. Frei Baltazar se dedicava com igual afinco à organização da Ordem Terceira do Carmo, composta por leigos oriundos das mais altas camadas da sociedade baiana. Frei Miguel procurou colaborar em tudo o que fosse necessário. Tentava ser discreto e polido no trato com os fieis, principalmente com as damas baianas. Entretanto, durante a noite, assumia outra personalidade. Instalou-se em quarto simples nas dependências do Convento, cujo portão principal era fechado após o por do sol para ser aberto apenas na manhã seguinte ou eventualmente em ocasiões extraordinárias. Curioso acerca da vida da cidade, logo o frei descobriu um jeito de sair do prédio perto das sete da noite e voltar quando quisesse, mesmo que procurasse sempre fazê-lo antes da dez para que pudesse participar das orações da madrugada e evitar que suas ausências fossem percebidas. Utilizava-se de discretas passagens, existentes em cada uma das laterais da igreja, por onde podia ter acesso ao convento e às ruas. Nas noites em que estivessem combinados, o garoto José levava para ele uma mula selada e um candeeiro na esquina da ladeira do Carmo. Miguel dava um tostão ao garoto e, vestido em roupas seculares, rumava anônimo para as tabernas da cidade baixa.


Aquela que o frei gostava de freqüentar pertencia ao Peixoto que se vangloriava de ser o único taberneiro da rua da praia que vendia a cachaça do engenho de Tomás de Freitas, a melhor cachaça do mundo, segundo a opinião de muitos dos freqüentadores daquele botequim. Ali, como em muitos outros, o dono do estabelecimento também atuava como alcoviteiro, colocando suas escravas na prostituição ou agenciando mulheres livres pobres para a atividade. Um dos motivos que traziam Miguel àquele lugar, além da notória boa cachaça, era que ali procuravam fazer com que os encontros ocorressem de modo discreto. Exatamente por essa particularidade, foi lá nos fundos da cozinha e ao ar livre que pela primeira vez frei Miguel pagou por um banho dado por duas jovens negras faceiras. Conversava-se sobre tudo naquele ambiente; mulheres, navegações, minas e até política. Em Salvador podia-se dizer que o poder estava dividido entre os burocratas da administração real e os senhores de engenho das cercanias da cidade. Entretanto, no restante da capitania da Bahia, o poder da classe dos segundos era praticamente absoluto. Senhor de engenho era um titulo que muitos gostariam de ostentar, mas pertencia somente aos empreendedores, donos de imensas sesmarias e numerosos escravos, em cuja propriedade se produzia açúcar, farinha ou tabaco em grandes quantidades, além de possuírem todas as ferramentas necessárias ao trabalho, algumas bastante engenhosas como os famosos moinhos de água do recôncavo. A maioria dos freqüentadores daquelas tabernas era formada por marujos, pequenos comerciantes, escravos forros e lavradores livres que trabalhavam nos engenhos e retornavam à cidade após a colheita. Ali se tratava de política de um modo genérico, discutia-se qual senhor de engenho era mais poderoso ou mais cruel, qual burocrata era mais esnobe ou corrupto, mas não havia, ao menos não parecia haver, impulsos revoltosos ou questionadores, apesar de o governador geral não ser muito popular por aquelas bandas e El Rey raramente ser mencionado. Outro ponto da cidade freqüentado por Miguel, aqui sem o disfarce civil, era um armazém de secos e molhados bem próximo ao largo do Carmo. Neste estabelecimento, a clientela era formada por reinóis abastados, altos funcionários da Administração e da Justiça Real ou advogados, e até por alguns senhores de engenho e seus feitores. Frei Miguel gostava de beber uma taça de vinho após a última missa do dia, repetindo o hábito de alguns dos fiéis daquela paróquia. Às vezes, quando convidado, tomava parte da conversa. A


se comparar com as tabernas da cidade baixa, a política ali era discutida em outros termos. Os reinóis reclamavam que os cargos na Câmara estavam todos nas mãos dos senhores de engenho, já estes e seus asseclas se queixavam que o governador geral enchera a administração de patrícios incompetentes e que por essa razão nada funcionava direito na cidade. Também era muito comum ouvir, por ali, os portugueses criticarem seus iguais e seus descendentes do Rio de Janeiro, principalmente porque era senso comum em Salvador a idéia de que a politicagem dos reinóis daquela capitania fizera com que a região das minas ficasse, eclesiástica e administrativamente, na jurisdição fluminense. Por vezes diziam: “Daqui a pouco vão querer transferir a capital da Colônia para o Rio de janeiro!”. Um assunto também recorrente naquele armazém era a iniciativa da Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos homens pretos, formada por alforriados, de construírem perto dali uma igreja, cuja obra, àquela altura, inicio de julho de 1705, já se encontrava adiantada. Estavam à mesa, além de frei Miguel, o dono do armazém, Augusto Brito, o Irmão Domingos Assis, importante funcionário do governo e um dos principais membros da Ordem Terceira do Carmo, e Sebastião, advogado, também membro da ordem e fiel amigo deste último. “Se por aqui todos fossem realmente comprometidos com a fé e com a nossa Ordem, nossa igreja seria erguida antes que a dos pretos” - reclamou Domingos. À exceção de Miguel, todos pareceram concordar, mesmo que nenhum deles fosse realmente um importante doador da obra. Sebastião então disse: “Se ao menos algum senhor de engenho se comovesse com a causa da Ordem, com muitos escravos e dinheiro, poderíamos começar já a construção da nossa igreja e ainda terminaríamos antes dos pretos”. “Ora, senhores, não sejamos ingênuos – exprimiu-se Irmão Domingos Senhores de engenho gostam de rezar em suas próprias igrejas, somente se dignam a vir à cidade quando têm algo importante a ser decidido pelos vereadores na câmara, onde eles invariavelmente possuem a maioria. Muitos deles até mesmo permitem que seus escravos ajudem na construção da igreja dos pretos, isso sem falar, naturalmente, daquilo que é sabido sem segredo em toda cidade da Bahia e no recôncavo, de que muitos geram filhos de suas escravas”.


“Imaginem os senhores que é intenção dos pretos fazer a Igreja mais bonita da cidade alta, para rivalizar até mesmo com a Sé!” - disse Brito, com ares de indignado. Voltou se para o frei e disse: “O senhor, que é conhecedor de Direito Canônico, esclareça-nos... não seria esse intuito uma blasfêmia?” Antes que Miguel pudesse responder, o Irmão Domingos disse: “Mas é claro que se trata de um sacrilégio, uma igreja de escravos não pode ser mais importante que a Sé!”. “Penso que igreja dos pretos não será mais importante que nenhuma outra. A Sé, por si só já carrega toda sua santidade, o templo da Irmandade dos pretos será mais uma casa de oração na cidade, o que é muito importante para a vida das pessoas. Creio que os senhores devam ver a questão por esse lado”. “Não me admiras que tenhas esta opinião, frei Miguel” - disse-lhe Irmão Domingos, já irritado. “O senhor não conhece os pretos, eles não são cristãos, apenas fingem para enganar a lei. São pagãos adeptos a rituais diabólicos, onde dançam e batem tambores. Se continuar a defender os forros, encontrará problemas por aqui” – terminou de beber sua taça de vinho e levantou-se, retirando-se do armazém, no que foi acompanhando por Sebastião. Miguel virou se para Brito e disse, justificando-se: “Os senhores me pediram uma opinião...”. “Se continuar a expressares sua opinião deste modo, ficarei sem minha freguesia”. Não era a primeira vez que o Irmão Domingos e frei Miguel discordavam a respeito dos negros. Ainda na primeira semana na cidade, o frade despertou a revolta de boa parte dos membros da Ordem Terceira do Carmo e de toda a paróquia, especialmente daquele destacado Irmão, ao permitir que o garoto José entrasse na igreja e contemplasse o altar e seus santos, quando no interior do templo estavam alguns brancos. Por conta desta ousadia, várias reclamações e queixas chegaram aos ouvidos do frade mestre Inácio, no Convento de Santa Tereza. A esposa de Domingos chegou a solicitar audiência com o bispo para denunciar o que acreditava ser a maior imoralidade da colônia, permitir que um negrinho pagão pisasse no chão sagrado de um templo cristão. Mas é claro que o bispo, sendo o homem ocupado que era, deixava querelas deste tipo a seus auxiliares, que eram, em sua maioria, muitos bons de conversa, mas de ação nula. Um perfil oposto ao da senhora


Maria Angelina Assis, que era voluntariosa e dada ao mando, rígida com escravos, criados e crianças, qualidades não comuns, porém também não raríssimas entre as senhoras portuguesas. Corriam na cidade, à boca pequena, comentários, maldosos ou não, que davam conta que na verdade, era ela própria e não o marido que governava a casa e a família. Obesa, muito mais que o desejável, segundo o juízo de Miguel, dona de um buço tão cabeludo como de um rapazola, não raro arvorava para si o direito de reprimir moralmente paroquianos como se fosse um homem da Ordem ou mesmo um frei. Em reuniões sociais com outras damas da sociedade baiana, costumava denunciar a existência de pessoas e de famílias, na cidade alta, envolvidas em rituais africanos e com feiticeiros. Dada a posição de seu marido no governo e o seu rigoroso modelo moral, era uma das mulheres mais respeitadas da cidade, apesar de não muito estimada, pois notória era sua atuação como delatora, junto aos familiares do Santo Oficio. Frei Miguel se divertia sozinho ao imaginar o que ela pensaria se soubesse a idéia que tinha em mente.


5. Senhores e Escravos O convento era a mais imponente das edificações do largo do Carmo, não por ser suntuoso. Em verdade, as linhas e adornos sóbrios de sua fachada revelam o categórico ascetismo da Ordem: brilho somente no interior das capelas e da sacristia. Fortificadas pelas robustas muralhas, suas amplas dependências já haviam servido de quartel general para a defesa da cidade durante as invasões holandesas. Internamente, suas galerias de arcadas abertas são separadas por dois pátios dotados de belos jardins e palmeiras reais. Nos corredores impera o silêncio e a pouca luz, o que dá ao lugar, mesmo durante dia, um certo sabor noturno. Nas clausuras, a despeito do radiante sol de Salvador, mesmo em suas sombreadas áreas externas, o clima é frio como em suas similares no velho mundo. Lá residiam muitos clérigos e noviços, mas Miguel, desde o início, tinha aquele lugar como uma fortaleza de solidão. Pouco se conversa às claras por ali, muito em latim, variadas orações e ladainhas. Os dias de silêncio, próprios aos momentos de jejum, são regulares. Qualquer colóquio reservado tem um ar de confidência que todos parecem querer evitar, o que não quer dizer que os assuntos polêmicos não transitem por aqueles corredores, mesmo que em sussurros e com desfaçatez. Apesar de ter crescido em igual ambiente, Miguel era de colocar as cartas à mesa, cultivara certo prazer por assuntos vistos como delicados e o gosto pelo conflito intelectual. Tinha em mente que seria difícil convencer frei Baltazar do que intentava, mas não lhe parecia impossível. Considerava que pouco o conhecia, às vezes ele lhe parecia muito conservador, mas outras vezes revelava nuances de inquietação. Uma vez havia lhe dito que conhecera pessoalmente padre Antonio Vieira, um famoso jesuíta, conhecido por defender publicamente os negros, os índios e os judeus e ainda criticar de forma contundente a Inquisição portuguesa. No reino, seu nome era evitado pelos clérigos, inclusive pelos seus irmãos de Ordem. Acusado de heresia e infidelidade chegou a ser encarcerado e por diversas vezes tolhido em suas funções eclesiásticas. Com exceção de um breve período, quando foi confessor da regente D. Luisa de Gusmão, da Igreja portuguesa, só colheu perseguição e desconfiança. Um padre progressista demais para a igreja de então. Mas ainda assim classificado por frei Baltazar, como a pessoa mais impressionante e admirável que conhecera


em toda sua vida, o orador mais brilhante. Conta-se que devido às suas insistentes pregações em defesa dos escravos, era também muito mal visto na Bahia, onde terminou sua maior obra literária e viveu os seus últimos dias. A eventual influência que os sermões de Vieira pudessem ter sobre o vigário era o que dava mais esperança a Miguel. Aproveitou-se de quando frei Baltazar caminhava pelo jardim para lhe surpreender com seu intento. “Eu não posso permitir uma coisa dessas na minha igreja, frei Miguel. O senhor sabe que os escravos não podem participar das celebrações junto aos livres”. “Ora, mas se o garoto foi abandonado e já passou dos dez anos de idade, não sendo por ninguém batizado, significa que não possui senhor, portanto não é mais um escravo”. “Mas ainda é preto”. “Então o problema é a cor do garoto”. “Se os pretos livres possuem suas próprias capelas, porque ele não pode ser batizado nelas?”. “Porque lá também não o aceitam, devido à deficiência”. “Claro, se dizem cristãos, mas ainda guardam superstições bárbaras. Frei, não adianta! Aquele pretinho não será batizado em minha igreja!”. “De verdade que eu não imaginava que vossa reverencia pudesse ser tão intransigente”. “Achas que muitas vezes não me comovo com o sofrimento dessa gente preta? Ora, eu sou um religioso cristão. Em muitas oportunidades repreendi publica e nominalmente pessoas que abusaram da violência ao castigar uma de suas peças, já dei de comer a muitos velhos escravos que foram abandonados à própria sorte por não mais servir para a lida nos canaviais, mas o que me pedes, convenhamos, é uma temeridade. Achas mesmo que um mundo onde escravos e livres tenham os mesmos direitos seria um lugar seguro para se viver e para difundir a palavra de Cristo? Creio que não, e quero crer que vossa senhoria creia o mesmo, ou passarei a questionar vossa inteligência”. O desejo de batizar o garoto José havia surgido quando o negrinho lhe contou que era este seu maior sonho. Ficara realmente comovido, não somente pela aspiração do garoto, mas também pela condição do povo africano na cidade. Davam sangue e suor para construir aqueles suntuosos templos e nem mesmo lhes era permitido neles entrar. Julgava ser um


paradoxo a lei exigir dos senhores que batizassem seus escravos, mas ao mesmo tempo negar a estes os plenos direitos cristãos e mesmo a existência de seus espíritos. Apesar deste explicito desprezo, era comum ver durante as horas canônicas, ao badalar dos sinos, muitos deles ajoelharem-se em comovente penitencia e humildade. Com a cabeça a fervilhar e apesar da negação do pároco, Miguel tencionava seguir em frente. São Salvador da Baía de Todos os Santos - havia sido assim batizada há então cento e cinqüenta anos- , na verdade era mesmo conhecida por cidade da Bahia. Sob vários aspectos, ela em muito impressionava ao frei Miguel. Certamente, era a cidade mais importante do reino, depois de Lisboa. Ali havia conhecido um estaleiro de proporções tão impressionantes que não se lembrava ter visto algo igual nem mesmo na capital da metrópole. O tamanho da população escrava também era assustador. É verdade que desde os primeiros tempos, em Portugal convive-se com a escravidão, seja dos mouros subjugados na era da reconquista ou dos negros africanos. Houve época em que foi bastante comum em Lisboa e nas maiores cidades do reino, a presença de pelo menos um escravo doméstico nas casas das famílias. Já no inicio do século XVIII, a presença dos escravos concentrava-se nas grandes propriedades rurais e nas colônias, especialmente no Brasil, onde entre os reinóis privilegiados, repetindo o costume de suas bisavós, usava-se a escravaria para todo tipo de serviço, até mesmo os mais elementares. No final das contas, aquela gente branca e preconceituosa é que parecia ser dependente de suas peças. Talvez fosse por essa característica que nas igrejas de Salvador e em boa parte da colônia imperava uma norma eclesiástica com poder de lei, no mínimo curiosa: os escravos que por acaso tivessem que adentrar alguma igreja para executar algum serviço, ou carregar coisas ou pessoas, só poderiam caminhar até as torres, ou seja, até poucos metros da porta de entrada, ou pelos fundos, sem permissão de que se contemple o altar. Foi nessa brecha que Miguel vislumbrou a maneira de batizar o garoto na igreja do Carmo. Tradicionalmente, as proeminentes famílias soteropolitanas batizavam seus novos rebentos nos domingos, pela manhã. Os membros da Ordem Terceira, ainda que a sonhar com a construção de um templo próprio, faziam questão de realizar a cerimônia dos seus na igreja do Carmo. Naquele domingo, entre as crianças que seriam batizadas, havia um menino,


primogênito de prestigioso advogado, que teria como padrinhos Nossa Senhora do Carmo e o Irmão Domingos. A igreja encontrava-se cheia, com todos seus lugares tomados e gente de pé. Estava repleta de pessoas influentes, entre funcionários da maquina governamental, poderosos comerciantes e senhores de Engenho. Frei Baltazar se encontrava junto ao batistério a tentar organizar os casais e seus convidados para que se começasse logo a cerimônia. Após cessarem as conversas entre comadres e compadres e cada um tomar sua devida posição para a celebração, deu-se o inesperado. Frei Miguel surpreendeu todos ao entrar na igreja com o garoto negro. Uma hora antes havia sido procurado pelos homens da irmandade do Rosário. “Soube que queres batizar o garoto cego na Igreja dos brancos”. “Aquele menino não sabe mesmo ficar calado...”. “Não queremos problemas com os brancos, frei. Traga o garoto a nossa capela, é humilde, mas é abençoada. Um dia os negros terão a mais bela igreja desta cidade”. “Agradeço sua boa vontade para com aquela pobre criança. Mas eu já tomei minha decisão. Avise a quem quiser... vou fazer disso um grito... aguarde...”. Entrou de mãos dadas com o garoto. Todos na Igreja tomaram um susto. Pareceu a eles uma invasão. “O que significa isso, frei Baltazar?”. “Estou tão surpreso quanto o senhor, irmão Domingos”. Quando chegou ao limite das torres, deixou o garoto parado, e seguiu rumo ao altar. Foi interceptado por frei Baltazar e levado ao canto, onde poderiam conversar reservadamente. “O que queres com isso, frei Miguel?” “Não há afronta à lei, frei Baltazar. O garoto está postado no limite das torres”. Então surgiu a Sra. Assis com ares de indignação e já se exaltando: “Não pense o senhor que meu marido, funcionário do gabinete do governador geral, Irmão de fé da Terceira Ordem do Carmo, descendente de importante tronco português, irá batizar um afilhado em uma mesma cerimônia que um negrinho pagão!” Veio Domingos lhe socorrer. “Acalme-se, querida, não se exalte”.


“Ora Domingos, por favor... me poupe de seus panos quentes. É por isso que todos são promovidos e você continua fazendo despachos menores”. “Maria Angelina, tu estais passando das medidas”. A mulher então cerrou os olhos a meio pau, e disse ao marido, no limite da fúria e arrogância: “Diga a este frei que não haverá batismo de nenhum negro nesta igreja!”. Frei Miguel adiantou-se ao constrangido e teceu seus argumentos, em voz alta e impostação imponente para ser ouvido em todos os cantos da igreja. “Senhoras e senhores, o que me proponho aqui fazer não é nada mais que cumprir a própria lei do reino, conhecida por Ordenações Filipinas. Em seu livro V, artigo XCIX, encontra-se expressa a determinação para que qualquer pessoa, de qualquer estado e condição, que possuir escravos de Guiné, os faça batizar e fazer cristãos, do dia que a seu poder vierem até seis meses, sob pena de os perder para quem os demandar. O que há de fundamental nesta lei é a ordem de que todos os negros sejam batizados e convertidos à fé cristã. Ora, pois, se esta é a vontade da Igreja e de El Rey, não é essa a vontade de Deus? E se ao mesmo tempo este garoto não inflige quaisquer leis do bispado, já que encontra-se para além dos limites da torre, não há a menor razão para que não seja batizado aqui e agora. E lhes digo mais, a partir do momento em que for batizado, tendo-me por padrinho e a Nossa Senhora do Rosário como madrinha, será um cristão, como cada uma de vossas senhorias e será também livre, igualmente a vós, porque ao batizá-lo, adquiro direito à sua posse, da qual abdico, libertando-o da sina de seus antepassados“. Assombrados pelas palavras de Miguel, Irmão Domingos e esposa viraram-se se para frei Baltazar como se cobrassem um contra argumento, mas ele se calou. Os outros na igreja se entreolhavam sem acreditar naquilo que julgavam por heresia, mas sem coragem de contestar aquele jovem frei de palavras firmes e olhar de mesmo modo assente. Frei Miguel voltou então à pia batismal, coligiu de água benta uma cuia e se dirigiu a José, que, àquela altura, encontrava-se de joelhos e de olho fechado. “Eu te batizo José do Carmo, em nome da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, segundo as leis da Santa Igreja Católica e do Rei de Portugal”.– Então, derramou a água sobre a cabeça do garoto e disse-lhe em bom português e a plenos pulmões: “Quando orardes, não façais como os hipócritas, que gostam de orar em pé nas igrejas e nas esquinas das ruas, para


serem vistos pelos homens. Quando orardes, entra em teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo”. Ofendida e quase aos gritos, a Sra. Assis volta-se para Frei Baltazar: “Como este frei ousa nos atacar com palavras tão infames?”. “Estas palavras são do Senhor, minha filha”. E tendo o pároco dito isso, abateu-se sobre os presentes, um silencio monumental: até os menores cessaram o choro, como se a eles fosse possível perceber o embaraço dos pais. Frei Miguel tomou novamente o garoto José pela mão e saiu da igreja. No paço, os membros da irmandade do Rosário dos homens pretos os aguardavam. Ouviram-se vivas e aleluias. Trouxeram os atabaques e tambores, os homens dançavam e as mulheres sorriam. Logo a festa transformou-se em escândalo para boa parte da elite branca que pôde presenciá-la. Não demorou e surgiu a guarda paga para que, aos socos e pontapés, seus soldados fizessem o serviço sujo de dispersar a negrada. Àquela altura, Miguel não andava mais por ali, encontrava-se a beber cachaça em alguma taberna imunda perto do cais. Três dias se passaram sem que Miguel voltasse ao Convento ou passasse pela igreja do Carmo. Sabia por intuição que Frei Inácio gostaria de vê-lo no Santa Tereza, mas não tinha em seu espírito a menor intenção de passar por lá. Um homem como frei Inácio jamais entenderia suas razões. Primeiro porque não reconhece razão alguma, apenas El Rey e a Igreja. Despreza a experiência e a observação como fonte de conhecimento, assim também o faz em relação à liberdade e aos direitos do individuo, idéias que frei Miguel, assim como outros de sua geração, haviam tomado ciência através de ingleses anglicanos como John Locke ou malditos como Spinoza, cujas obras, eram por si só blasfêmias intoleráveis para a imensa maioria do alto clero português. Por aqueles dias, Miguel ficou instalado em uma modesta hospedaria próxima ao cais do porto e ao mercado de escravos. À noite, gostava de passar pela taberna do Peixoto. Foi na noite de quarta feira que tudo aconteceu. Frei Miguel encontrava-se sentado ao balcão, próximo à porta de entrada. Pediu cachaça e uma porção de miúdos suínos. A taberna não estava cheia, apenas alguns mestiços discutiam assuntos sem importância na mesa do canto. Chamou o taberneiro. “Por favor, Peixoto, hoje eu gostaria de estar com uma mulata”.


“Muito bem senhor Miguel, acabaram de me chegar duas peças que talvez o agradem. Podemos fazer uma combinação para o senhor se deitar com as duas. Garanto que ainda não fizeram quinze anos”. “Agradeço a oferta, Peixoto, mas eu preferiria alguma mulher mais velha, de partes mais avantajadas”. “Entendo-te bem. Sei o que procura”.- Sorriu maliciosamente, pediu para que Miguel se aproximasse e disse em tom de confidencia: “Daqui a pouco vou receber uma visita importante. Terei que fechar a taberna. Mas como o senhor é de confiança, vou deixar que fique em um dos quartos, mas peço-te que de lá não saia até que eu o diga, pois essa minha visita detesta ser vista”. “Isso não será problema. Não tenho a menor pressa de ir embora”. A cabana era pequena e imunda. Não havia cama ou catre, apenas uma rede e um urinol sujo. Em compensação, a mulata era tudo o que Miguel desejava para aquela noite. Possuía um par de coxas grossas e nádegas generosas, é bem verdade que ele gostaria que ela tivesse mais busto, mas o perfume carnal que emanava de sua pele bastava para atiçar-lhe todas as vontades. De tão atiçado ficou ansioso. Tão ansioso que em poucos segundos tudo estava feito. Permitiu que a mulata dividisse com ele a rede e deixou que ela recostasse a cabeça sobre seu peito. Poucas vezes em sua vida havia dormido realmente acompanhando. Seus casos sempre foram furtivos e urgentes, carregados de culpa e desespero. Agradava-lhe a maré entrando pela janela da construção de taipa. Naquela cidade, o mar não lhe causava repulsa como em Aveiro, não era a entidade onipresente de onde vinha o alimento e o dinheiro e para onde eram levados os homens, para terem por ele seu destino governado, pelo contrário, ali as águas lhe pareciam o portal da liberdade. O sol que brilha na maior parte do dia dava ao mar e às demais cores da natureza, a grandeza e a beleza que nunca notara em outro lugar. E aqueles dias lhe foram mesmo especiais. Desde que pusera em questão sua vocação religiosa, ao tomar conhecimento das ciências, do estudo dos astros e ao ousar questionar o inquestionável, jamais havia se sentido tão completo quanto logo após batizar o garoto José. De certo não saberia explicar bem a razão de seu júbilo, mas era real e a sensação lhe era muito agradável. Adormeceu. Não foi um sono fácil, pois logo após fechar de vez os olhos começaram os ruídos. Pareciam vir da outra cabana que ficava também nos fundos da taberna. A coisa parecia estar animada por lá. O tal visitante misterioso deve


ter aceitado a oferta das duas meninas, pensou. Delas ouvia-se um pouco de tudo: risadas, gritos, urros, gemidos. Do homem, Miguel podia perceber que falava muito e alto, como se sempre desse ordens. Ás vezes, ele gargalhava. Por um momento, teve a certeza de ouvir chibatadas como em um açoite. Mais gritos femininos. Então o silêncio. Adormeceu novamente. Bateram à porta violentamente. Miguel deu um salto. A mulata, sem acordar, apenas virou-se de lado. Quem bate, grita: “Sou eu, Sr. Miguel, o Peixoto”. Entrou na cabana e parecia aflito, tinha um porrete nas mãos, com o qual cutucou a mulata para acordá-la. ”Some daqui negra!” Virou-se para Miguel. “O senhor pode ir agora”. “Vejo que está um tanto nervoso. Aconteceu alguma coisa por aqui?”. “Ora, pois que nem te conto. Sabes aquela visita que lhe contei? É uma pessoa importante da cidade alta. Gente de posses e posição, compreende?”. “Claro. Ele já se foi?”. “Está na outra cabana, duro feito pedra”. “O senhor que dizer...”. “Isso mesmo, mortinho”. Apesar do pedido do taberneiro para que não olhasse para dentro da cabana, frei Miguel não resistiu e virou um pouco o pescoço quando passou por ela. Para sua surpresa, bem conhecia aquele cadáver nu estirado ao chão. Era o irmão Domingos de Assis. Chamou Peixoto num canto e lhe disse. “Eu acho que o senhor está com sérios problemas. Esse homem é um destacado membro da poderosa Ordem Terceira do Carmo e um dos secretários do governador geral”. “Sei muito bem o infortúnio que se abateu sobre mim”. “Acho que posso te ajudar”. “Ajudar-me como, se o senhor mesmo acabou de enumerar a importância do infeliz”. “Eu sou padre”. Peixoto jamais poderia imaginar que aquele simpático e costumeiro freguês era na verdade um frade carmelita. Num primeiro momento, ameaçou indignar-se, mas depois percebeu que ele poderia ser a sua única chance de sair-se bem daquele problema. Afinal sabia que se aquela morte se tornasse


um escândalo e colocasse exposta a sua condição de alcoviteiro, a Câmara lhe cassaria a licença da taberna e a Igreja o excomungaria, atirando o nome de sua família ao lixo e condenando toda a sua descendência. Não havia outra saída, teria mesmo que confiar naquele padre tão infame, segundo suas convicções. No interior da choça, a cena com a qual Miguel se deparou foi a seguinte: Duas jovens negras nuas e acorrentadas num canto - choravam gemidos contidos e constantes. A pele de ambas sangrava pelos vergões, aparentemente causados pela chibata que estava no chão, bem ao lado do corpo do irmão Domingos, com seus olhos esbugalhados e o pau duro. “Veja bem, frei, a merda que me aconteceu” - disse o taberneiro, inconformado. De súbito avançou para cima das garotas e lhes agrediu com o porrete. ”Tudo culpa dessas putas!”. E bateu novamente, com mais raiva e mais força. Acertou com o golpe, parte da cabeça de uma e o rosto da outra, fazendo-as sangrarem ainda mais. “Poupe estas infelizes, Peixoto. Está claro que ele foi acometido de um mal súbito e ao que me parece, elas já estão bem castigadas”. “A tara desse filho da puta era açoitar as negras antes de possuí-las”. Miguel achou por bem tomar para si o comando da situação. O taberneiro estava muito aflito para qualquer decisão. Então pediu a ele que levasse dali as negrinhas e que mandasse um de seus escravos encontrar o garoto José e o trouxesse com urgência. Vestiram o defunto e colocaram-no sobre um catre. Quando o garoto chegou, o frade mandou que encontrasse com algum mercador da praia um tapete oriental, do tipo que chega aos montes pelas embarcações provenientes das Índias. Uma hora depois, embrulharam o corpo do irmão Domingos em um tapete e o amarraram sobre a mula. O taberneiro achou melhor não acompanhar o frade naquela mórbida entrega. Muito constrangido agradeceu ao frei, pois sabia que ele estava lhe prestando um favor inestimável. Apesar da clara demonstração de covardia de Peixoto, Miguel teve piedade dele. Recusou toda oferta de valores, mulatas e fazendas que lhe foram feitas em agradecimento. “Apenas mantenha o ocorrido em segredo... Será melhor para todos”. Trocaram apertos de mão e fez selado o pacto.


“É melhor apressar-se frei. É quase meia noite e a esta hora, transitar pelas ladeiras pode ser muito perigoso. Há muitos ladrões e assassinos nesta cidade!”. Seguiram caminho. O garoto, candeeiro na mão, puxava a mula com o cadáver, o frei vinha logo atrás em outro animal. As ruas estavam totalmente escuras e desertas. Ouvia–se ao longe o som dos atabaques de algum ritual pagão, dos muitos que eram comuns por aquelas bandas e àquela hora - longe dos olhares repressores. Quem os atendeu foi uma jovem mulata. Devia ser cozinheira, mucama ou coisa parecida, pensou Miguel. “Mas sinhá já tá recolhida e o Irmão Domingos ainda não chegou da novena, acho melhor o sinhô voltar amanhã”. “Sei que não aparento, pela ausência da batina, mas sou frei carmelita e a Sra. Assis me conhece das celebrações na Igreja do Carmo. Diga a senhora sua ama, que é frei Miguel que a aguarda e que se trata de assunto urgente e importante”. Levou mais algum tempo e mais argumentos para que convencesse a mucama a chamar sua senhora. Enquanto aguardava na ante-sala, Miguel ficou pensando o quanto era irônico aquelas pessoas desprezarem os negros, mas confiar a eles sua comida e sua porta. Com dificuldade e com a ajuda de José, havia colocado o cadáver envolto pelo tapete vermelho, no chão. Após mandar que o menino se fosse, sentou-se em uma namoradeira. A espera durou quase uma hora. Quando finalmente a Sra. Assis veio recebê-lo, Miguel havia adormecido sentado. Despertou um tanto constrangido quando ela adentrou à sala. Preferiu ir direto ao assunto. “Mas que absurdo é esse que está me dizendo?” – respondeu, estupefata. Levantou-se, já aos gritos. - “Quem o senhor pensa que é, para vir a minha casa, a essa hora da noite e difamar meu marido, um cristão exemplar, de família portuguesa importante e de sangue puro, temente a Deus e fiel ao Rei? Não passas de um religioso amigo de negros!”. Então ela atinou para o volume sobre o assoalho. Perdeu o chão. Apoiou se em um móvel. No segundo seguinte, o ódio: “Seu assassino! Vou mandar chamar o Capitão da guarda, o juiz de fora, o governador geral e a até o bispo. Irá para a forca seu sujo!”.


“Tente se acalmar senhora. Decidi por lhe dizer a verdade, justamente para que não ficasse sem respostas. Compreendo que estejas tomada pelo ressentimento e tristeza, mas há testemunhas do ocorrido. Não vamos manchar a historia de seu marido ou o nome de sua família, com um processo escandaloso que não seria bom para ninguém. Eu realmente sinto muito”. Então, a mulher deixa cair a máscara e aos prantos chuta o corpo do marido: “Desgraçado! Maldito!”. O virtuoso Irmão Domingo de Assis, membro fundador da Terceira Ordem do Carmo de Salvador, para todos os efeitos, vítima de um mal súbito enquanto dormia, foi velado na igreja com honras, tendo o ritual sido celebrado pelo Frei Inácio e acompanhado por boa parte da alta sociedade baiana, inclusive pelo governador e por um representante do bispo. A viúva permaneceu em silêncio, com o rosto coberto pelo véu e traje preto; levava um terço às mãos, mas não rezava. Por uma única vez, talvez por descuido, deixou-se mostrar os olhos; não havia lágrimas, apenas rancor, endereçado ao morto e a Miguel. Àquele por enganá-la por tanto tempo e a este por ter lhe dado ciência de tudo e por ser sabedor daquilo que tanto a envergonhava. Após o enterro, frei Miguel teve com Frei Inácio uma conversa reservada. “Não é preciso que me digas nada. Sei muito bem o que ocorreu na noite passada”. “O alto clero sempre muito bem informado”. – respondeu Miguel, sem muita surpresa. “Deus está ao nosso lado, frei, quando afinal se dará conta disso? Vossa senhoria tem me causado muitos problemas. Batizastes um negro em uma cerimônia de cristãos velhos, disse trechos sagrados em português, tem freqüentado lugares impróprios, mas sou obrigado a admitir que sua atuação neste episódio foi deveras acertada, seria péssimo para nossa Ordem uma desmoralização desse grau.” “Fiz como achava que seria certo. Para quê condenar quem já está condenado?”. “Apesar disso, a sua permanência nesta cidade tornou-se insustentável. A Ordem lhe proverá um bom dinheiro, em moeda real, para que parta”. “Partir? Como assim? Para onde? Por quê?”. “Suas desventuras pela cidade baixa já causam ruidosos comentários em todas as igrejas. Os padres daqui o querem longe”.


“Então sou uma vergonha para a Ordem? Será mesmo que toda a ordem e o cabido da Sé são incólumes de pecados?”. “O senhor é somente aquilo que escolheu ser e agradeça por minha complacência, pois a Lei de Deus e do Rei me obriga a ser muito mais rígido do que estou sendo. Investido pela compaixão divina lhe darei uma nova chance de recomeçar. Irás para as minas, onde temos um pequeno núcleo carmelita num lugar chamado de arraial do Ribeirão do Carmo5. Sua missão será ajudar a edificar ali a Igreja do Senhor e a fidelidade ao Rei. Proceda desta maneira e serás recompensado com o perdão de seus pecados e a gratidão Real”. Nos dias que se seguiram, frei Miguel retornou ao seu exílio voluntário, na cidade baixa. A idéia de ir para a região da minas em nada o agradava. Tudo o que havia ouvido sobre o lugar eram lendas sobre montanhas de ouro, relatos de viagens duríssimas em meio a índios selvagens e à natureza hostil. Considerava a possibilidade de ficar ali contra a vontade da Ordem, sem hábito ou função eclesiástica; sendo civil poderia trabalhar como escriba ou guarda livros para algum dos muitos e prósperos comerciantes cristãos novos da cidade. Teria como se estabelecer perto do porto, onde ficaria geograficamente distante das intrigas do baixo clero, da vigilância de Frei Inácio e da soberba dos reinóis da cidade alta. E seria mesmo desta maneira, se em uma outra taberna da cidade baixa, não houvesse presenciado um fato que mudaria novamente o rumo de sua vida. Dois homens entraram e foram logo oferecendo uma rodada de cachaça a todos os presentes. Pareciam estar bastante eufóricos. Beberam e comeram animadamente. Ao avançar das horas, quando a agência já se encontrava vazia, revelaram a razão da alegria e da bonança. Uma pepita de ouro do tamanho de um limão. O brilho da pedra parecia hipnotizar quem a via e com o frade não foi diferente. No segundo seguinte já se viu retornando a Coimbra, cheio de ouro e ainda mais rico que o Visconde, perdoado pelo rei e pronto para voltar à sua antiga vida européia de saraus, vinhos do porto e mulheres brancas.

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Atual cidade de Mariana MG.



6. A Caminho das Minas – O recôncavo Um clérigo pragmático, Frei Inácio bem poderia ser descrito como tal. Diferente de boa parte dos seus pares, não era recluso ou reservado, ao contrário, era íntimo do poder e dado à politicagem. Havia alguns vereadores, na câmara da cidade, que não dariam um passo sem antes ouvi-lo. Àquela altura, soubera de noticias confiáveis das minas que davam conta que os arraiais e pequenos povoados surgiam e cresciam em ritmo vertiginoso - eram tantos os escravos levados para lá e os livres que para lá partiam, que os senhores de engenho do recôncavo temiam ter problemas na colheita por falta de mão de obra. O afluxo de brutos e pecadores de todas as partes do mundo fazia da área das minas uma terra de ninguém, sem controle ou autoridade. Sendo assim, sabia bem o mestre carmelita que se a Coroa quisesse mesmo levar seu aparelho para aquela região, incluindo ai a Justiça Real e a máquina arrecadadora, mesmo a contragosto teria que instituir paróquias e conventos. De Lisboa chegavam rumores de que o rei, temendo acontecer o que aconteceu com os Jesuítas ao sul da Colônia e açodado por conselheiros antiRoma, poderia proibir em breve o estabelecimento de quaisquer Ordens religiosas na área das minas, que então se encontrava infestada de capelães vindos de São Paulo e de padres seculares de diversas origens. Frei Inácio não tinha Miguel como exemplo de virtude, mas via com bons olhos a ida dele para as minas. Ficara bem impressionado com sua capacidade intelectual e surpreendente coragem. Apesar de suspeitar de sua fidelidade para com a Igreja, intuiu que seria o homem indicado para plantar os pés da Ordem na região, mas em seus planos, a missão de Miguel era de abrir a picada, depois os carmelitas de Salvador assumiriam o controle. Era importante que fizessem isso antes dos seus pares do Rio de Janeiro. Miguel deveria rumar para o arraial do Carmo e operar com os demais carmelitas que lá já estavam para que logo erguessem uma igreja e criassem as condições para a futura criação de uma paróquia. Providenciou boas cavalgaduras e um mapa do caminho do gado, que começava no recôncavo e descia até o rio São Francisco, que, segundo as rotas dos pioneiros exploradores, teria sua nascente no sertão dos cataguases. Frei Inácio instruiu Miguel para que seguisse até os arredores de Cachoeira, e pedisse pouso no


engenho do Capitão Nogueira, um velho amigo que poderia dar-lhe apoio e suporte para o restante da viagem. Para a realização da travessia, Miguel recebeu cerca de dois mil réis, e somado ao que ainda possuía, era dinheiro suficiente para comprar bons escravos e contratar um homem de armas para sua segurança. No mercado de escravos, a oferta era variada, tanto quanto à origem havia os nagôs6 , os jejês7 , os bantos8, os crioulos9; - quanto à serventia, podiam ser agricultores, domésticos, carpinteiros e etc. Também quanto à faixa etária, os jovens entre 17 e 25 anos eram os mais valorizados - os homens quando fortes ou dotados de mais habilidades e as mulheres quando belas, cozinheiras ou leiteiras. Apesar de tão diversa oferta, o tipo de escravo pelo qual Miguel procurava era um artigo raríssimo e improvável. “Um escravo que saiba ler? O senhor só pode estar brincando. Sabe quantos cristãos brancos sabem ler aqui na Bahia? Não está em Coimbra, padre”. Nem mesmo frei Miguel saberia explicar a razão que o fazia buscar um escravo que soubesse as letras, talvez porque não ficava à vontade na relação de escravidão, afinal, como ele, que tanto prezava a liberdade, poderia ser dono de uma pessoa? Esperava que um escravo alfabetizado fosse mais próximo das convenções de civilidade, mas logo viu que seu intento era um disparate. Enquanto apreciava as peças que lhe eram apresentadas pelo mercador, um jovem militar aproximou-se dele. “Com licença, padre. Pude ouvir seu diálogo e devo lhe dizer que acho que sei onde pode conseguir o que deseja”. O jovem era um dos carcereiros da cadeia da cidade, trabalhava diretamente com o alcaide, de quem parecia querer esconder a proposta que fizera a Miguel. Contou-lhe que, há meses, estava detido na cidade um mulato de cerca de quarenta anos que, segundo o rapaz, escrevia e lia bem, tanto quanto um branco estudado.

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Povo Yorubá, originário da Nigéria. Povo Fon, originário do Daomé, Togo e Benin. 8 Provenientes do Congo, Angola e Moçambique. 9 Nascidos no Brasil. 7


“Está ai há tempos, foi acusado de roubo, mas até hoje não há quem o defenda ou quem o julgue. Não parece violento ou rebelde e como não poderia deixar de fazer, tem jurado inocência”. Ao contrario da maioria dos escravos da Bahia, este não era forte nem tinha nas mãos as marcas do trabalho pesado. Parecia ser mais jovem do que era e pela barriga que ostentava, estava bem nutrido, apesar das privações evidentes. Miguel o olhou por alguns minutos. Ele preferiu evitar os olhos do frei e abaixou a cabeça. “E achas que poderias vendê-lo?” – quis saber Miguel. “Bom, padre, poder eu não posso, mas nesse caso o senhor também não poderia comprar, entende?...” – disse sem pudor, pensando assim fazer de Miguel seu cúmplice. “Não temes ser descoberto?”. “Os negros quando são escravos têm seu valor, mas esse ai? Sem carta de alforria ou registro de propriedade? Com esses, não há quem se importe...”. Fizeram a negociata. “Meu nome é Miguel, sou frei carmelita e estou de partida para as minas. Acabo de gastar boa parte de meu dinheiro com sua liberdade, mas a sua situação me impede de registrá-lo como escravo. Já que a sua estada aqui nesta cidade é insustentável, proponho que me acompanhe. Chegando lá, podemos minerar em busca de ouro, do qual lhe darei uma parte, mas não sou homem de usar ferros ou chibata, portanto acompanha-me se quiseres”. “A benção, frei. Terá minha lealdade por todo tempo em que eu viver”. Chamava se Cosme. Havia nascido nas imediações da cidade, em um engenho de açúcar rico e próspero. Desde a primeira infância, conviveu com os brancos da casa grande e foi, a olhos vistos, protegido pela senhora da família. Por conta desta proteção, aprendeu as primeiras letras e números com um jesuíta, o mesmo que havia educado todos os filhos do senhor do engenho. Durante anos, foi uma espécie de secretário particular, misto de amanuense e mordomo de sua benfeitora. Uma senhora conhecida por sua distinção e admirada por toda a Bahia, tida por bondosa, extremamente dedicada ao marido e às coisas da casa, um exemplo de mãe e esposa, e católica, na avaliação de muitos. Após a viuvez, tornou se a administradora de toda a empresa. Em razão de tamanha ousadia, os demais senhores de engenho e os mais importantes reinóis de Salvador, membros da burocracia real e expoentes da burguesia


local, passaram deliberadamente a dificultar–lhe os negócios. Agiram para negar a ela crédito para aquisição de escravos e sufocá-la com todo tipo de boicote. Afinal, quem ela pensava ser para agir feito homem por aquelas bandas? Além de extrapolar suas funções sociais de mulher, causando constrangimento aos comerciantes com quem negociava e às demais senhoras da capitania, segundo Cosme, ela atraia a atenção também por outro motivo. Todos os seus vizinhos estariam interessados naquela generosa porção de terra preta, do tipo que torna a cana naturalmente mais doce e o açúcar consideravelmente mais caro. As contas da propriedade, como não poderia deixar de ser, desandaram. Os camponeses livres abandonaram as lavouras, foram-se os feitores, os oficiais, e logo aqueles escravos que não haviam sido vendidos fugiram para as minas. Foi um período triste; Cosme chorou com sua ama todas as vezes que presenciara sua dor e decepção. Sonhara aquela senhora em manter o nome do marido e poder morrer deixando os filhos educados e ricos. Faleceu antes mesmo que seu primogênito voltasse advogado de Lisboa. Em meio ao declínio e à bancarrota dos negócios, os herdeiros acusaram a Cosme de roubo, coisa que o escravo jamais admitira ou confessara. Sem direito a defesa ou a julgamento, foi jogado naquela cela. Ocorreu a Miguel que muito provavelmente aquele mulato pudesse ser um filho bastardo do senhor com uma de suas escravas, o que talvez explicasse o ressentimento dos herdeiros legítimos. “Sabes quem é teu pai?”. “Ora frei, escravo não tem pai”. Os dias que se seguiram foram de preparação para a jornada. Miguel ocupou-se de estudar o mapa, encontrar uma bússola e planejar a viagem em seus detalhes. Deu a Cosme a tarefa de comprar um escravo - jovem e forte o suficiente para minerar com pouco descanso e rareada comida; apenas um, pois boa parte do dinheiro havia sido gasta com o suborno do carcereiro e outra deveria ser usada para comprar as cavalgaduras e as armas. A jornada seria realizada em três etapas. Na primeira, teriam que atravessar o recôncavo, percorrendo doze léguas até a vila da Cachoeira, onde, não mais distante que uma légua, ficava o engenho Nogueira. Na segunda etapa, seguiriam vinte e cinco léguas até chegarem à aldeia de João Amaro, daí mais quarenta até a Tranqueira e então mais cinqüenta e poucas léguas até a região dos currais do rio São Francisco, a partir de onde


cumpririam a terceira etapa da viagem, margeando este caudaloso rio até seu afluente chamado rio das Velhas, de onde, em poucos dias, alcançariam o ribeiro do Carmo. Percorreriam no total pouco mais de cento e oitenta léguas e, segundo o planejamento, deveriam cumprir toda a rota entre cinqüenta e sessenta dias. De acordo com informações colhidas entre mercadores, a rota não era de relevo difícil, sendo até mais própria às travessias que o caminho dos bandeirantes, por onde chegavam às minas os paulistas e os fluminenses. Com interesse de limitar o acesso aos descobertos auríferos e tendo por inspiração o temor de que o controle sobre as riquezas fosse perdido, a Coroa manteve o caminho da Bahia proibido, por anos, ainda que a lei fosse notoriamente desrespeitada em função da fiscalização falha. Havia bem pouco tempo que nova determinação real passara a permitir a circulação de pessoas, mas não de outra mercadoria que não fosse gado. Comboios levando escravos ou quaisquer fazendas ou gêneros deveriam ter suas mercadorias confiscadas e seus condutores presos pelo contrabando. Apesar desta rigidez, a proibição era frequentemente desrespeitada, já que não havia aparato o suficiente para fiscalizar todo o caminho, principalmente a partir das águas do São Francisco, onde o governador geral da Bahia tinha pouco interesse. Partiram de Salvador às vésperas da primavera tropical, em meados de setembro. Miguel, montado na melhor mula, iniciou a viagem vestindo o hábito carmelita e calçando sandálias de couro. Em uma pequena bolsa a tiracolo carregava a bússola, o mapa e a munição. A carta de recomendação escrita por frei Inácio, seus documentos e o restante do dinheiro levava em um bolso costurado por dentro de suas roupas de baixo. O garoto José, que fora aceito na comitiva depois de muito insistir com o frei, seguia à sua frente, pés descalços e dorso nu, a pastorear a besta carregada de víveres, roupas e uma cravina. Cosme, vestido como livre, inclusive de botas e pistola na cinta ambos artigos vetados por lei aos escravos - vinha na retaguarda a passos firmes e olhos fixos no negro que comprara no dia anterior. Não tinha mais que vinte e cinco anos. Era alto e forte, porém não muito pesado. Cabeça raspada. Seguia com mãos e pés acorrentados e gargalheira a lhe pesar os ombros. Era um guerreiro do povo Nagô, etnia então bastante valorizada, por ser um povo que na África já praticava desenvolvida agricultura, trabalhava o ferro e conhecia da lida nas minas. Em razão disso, custara elevada soma de dinheiro, deixando Miguel com pouco menos de mil réis para o restante da travessia e impossibilitado de contratar um capataz. Ainda assim,


foi convencido por Cosme do acerto da escolha. Batizou-o por Emanuel e por influência do mulato, recorreu aos ferros. “Esse povo não é de Cristo. Chegam aqui confusos, mal conhecem o português, a não ser umas poucas palavras que aprendem com os brancos, a quem vendem os inimigos, mas são fortes e bons para o trabalho. Convém que o deixemos a ferros até que se domestique e aceite os comandos”. Ninguém melhor para conhecer um escravo que um ex-escravo, pensou Miguel. Desde os arredores da cidade e por todo o recôncavo, a vista se dividia de um lado pelas águas da baía e por outro ora pelos extensos canaviais dos engenhos, ora pela exuberante mata atlântica. Percorriam, em média, cerca de três léguas do amanhecer até o meio dia, quando então levantavam acampamento, almoçavam e descansavam. Quando foi providente, Miguel pôde passar as noites em capelanias ou casas de hóspedes de algum engenho, onde podia alojar os negros nas senzalas, dar descanso e alimentar os animais. Nas cercanias dos engenhos, formavam-se os núcleos urbanos. A dimensão e prosperidade destes povoados eram dadas pela importância e pujança dos engenhos que o circundavam. Os povoados mais pobres e precários localizavam-se sob a influência daqueles conhecidos por engenhocas, em razão de produzirem menos e serem menores em extensão de terra. Já aqueles chamados de engenhos reais por seu porte magnífico, davam condições para o florescimento de vilas prósperas. Um bom exemplo era a vila de Cachoeira, cercada de grandes engenhos, dotada de comercio, paróquia e importante população urbana; lugar em que Miguel e sua comitiva chegaram após sete dias de viagem. Por decisão de Miguel, já há dois dias Emanuel caminhava sem o cruel incômodo da gargalheira. O negro não havia dito sequer uma palavra durante todo o caminho, nem tampouco esboçado qualquer reação. Seguia quieto e resoluto, o que ao frei soava estranho, talvez porque esperasse que um escravo guerreiro não sucumbisse à servidão sem luta. O garoto José ainda mantinha o entusiasmo do inicio da viagem - para quem nunca havia saído dos arredores do porto de Salvador, o recôncavo era como um novo mundo. Já Cosme seguia atento e vigilante, cioso de suas funções de segurança e orgulhoso do frei ter lhe confiado uma arma.


Caminhando por poucas horas a partir do núcleo urbano de Cachoeira, chegaram ao engenho do capitão Nogueira que recebeu muito bem o frei Miguel, após ler a carta de apresentação escrita pelo velho amigo frei Inácio. “Será uma honra hospedá-lo em minha casa, frei”. Chamavam-na de casa grande. Não sem razão. Miguel contara mais de vinte quartos, cinco salas para refeição, acomodações como aquelas da mais alta fidalguia portuguesa. Estava deveras impressionado. Foi acomodado naquele que lhe parecia ser o maior quarto que já dormira. Os lençóis eram alvos e cheirosos como jamais foram nas camas dos conventos. Cosme ficou alojado com os escravos domésticos, em sua maioria mulatos como ele, enquanto Emanuel e José ficaram na senzala. O senhor Carlos Nogueira pareceu a Miguel ser um homem impressionante, do tipo que tem sempre no rosto um olhar atento, como se estivesse permanentemente na eminência de uma ação importante. Durante toda a tarde recebeu em seu escritório feitores, mestres de açúcar e caixeiros. Comentou com o frei que cada uma daquelas audiências era um problema diferente a resolver. Diante da família e dos empregados era taciturno, mas era um excelente anfitrião. Naqueles dias, um jovem advogado de Salvador, acompanhado de bela e igualmente jovem esposa, também estava gozando da hospitalidade do capitão. Já a senhora Nogueira não tinha nada de interessante que atraísse o olhar de Miguel. Na primeira noite, o frei jubilou-se por participar do excelente banquete. Havia carne de caça, pescado, cereais, doces e sucos de fruta; porcelana oriental, vinho do reino e talheres de prata; tudo disposto sobre a grande mesa de mais de vinte lugares, sendo que treze estavam ocupados. Foi então que Miguel pôde observar de perto os familiares e os agregados de Nogueira. Duas de suas filhas são casadas com homens letrados e continuam morando por ali porque os maridos exercem alguma função na empresa. Solteiras são quatro, que não deram o ar da graça durante o dia inteiro e somente apareceram na hora do jantar. Na certa, passam seus dias metidas em algum daqueles muitos quartos à espera que o pai finalmente lhes consiga um marido. O filho homem é jovem, come rápido e sempre belisca as nádegas das negras que lhe servem, não diante dos olhos do pai, naturalmente. A senhora Nogueira postara-se durante todo o jantar, como sempre: calada, gorda e resoluta. Já o casal de Salvador pareceu a Miguel ser de refinada educação. Logo percebeu que se encontravam hospedados por razões profissionais. Dr. Freitas, o


advogado, parecia prestar serviços ao engenho. Sua jovem esposa, Maria Carmem, era alva, mas corada, e naquela noite trajava um belo vestido bastante ousado no colo. Assim que colocou nela olhos atentos, Miguel desejou que ela lhe solicitasse uma confissão. Após o jantar, as mulheres se recolheram enquanto Nogueira reuniu-se na varanda com Miguel e Dr. Freitas para a apreciação de um vinho do porto. Muito foi discutido a respeito das demandas jurídicas. Miguel, apesar de achar um tanto enfadonha aquela conversa sobre juros, sesmarias e credores, fingiu algum interesse, já que em muito lhe agradava a bebida. Depois de tudo acertado entre cliente e advogado, o último se retirou, ficando somente o frei e o capitão Nogueira. “Muitos gostam de dizer que vida boa é vida de senhor de engenho. Dizem isso porque apenas enxergam as benesses, olham para as minhas propriedades como se tudo fosse obra do acaso e eu apenas um homem de boa sorte e descendência”. Se de fato havia algo que diferenciava os senhores de engenho do Brasil dos fidalgos de Portugal, já que ambos eram detentores de invejável poder em suas respectivas sociedades, era que se para os segundos esta condição se dava apenas pelo nascimento, aos primeiros eram necessárias virtudes caras, como capacidade de liderança, espírito empreendedor, coragem e crédito. A história do engenho Nogueira começara meio século antes com seu pai, um português arruinado que deixara para trás as dívidas para receber título de fidalguia e de sesmaria para conquistar a colônia por meio da cana, que nos bons tempos do monopólio, pagou boa parte das contas da metrópole e enriqueceu muita gente. “Meu pai costumava dizer que quando era jovem em Portugal, dizia-se por lá que aqui no Brasil tudo que se planta dá. E de fato constatou que era verdade, porém uma meia verdade. Porque nada se falava da natureza hostil, das malditas pragas, e do clima imprevisível, enfim, do enorme trabalho que é manter as roças por aqui”. “Posso dizer-te que muitos ainda acreditam neste ditado”. “Ultimamente, tenho visto muitos perderem tudo que têm na aventura do açúcar. Quantos engenhos não tenho visto nascerem e morrerem antes mesmo da primeira colheita? Antes de tentar enveredar por este negocio é preciso que se tenha em mente que hoje o mundo não é como há cinqüenta anos, quando bastava produzir grandes quantidades que tudo seria consumido


na Europa. Desde que os holandeses desistiram do Brasil e passaram a investir em canaviais nas Antilhas, o preço do produto tem oscilado bastante. Eles conseguem em um espaço reduzido de terra e a um custo bem mais baixo, produzir açúcar tão bom quanto na Bahia ou em Pernambuco”. “Mas seu engenho é uma das maiores empresas que vi na Bahia. Qual é então o seu segredo?”. “Mantenho a excelência porque não parei no tempo. Diversifiquei. Investi no tabaco, que tem sido muito rentável, e sou sócio de currais de gado no sertão. No ano passado, enviei meus genros a um engenho holandês para que pudessem aprender os segredos do açúcar barato. Tenho adaptado, com precisão, tudo que eles descobriram nas Antilhas. Este ano, farei uma colheita recorde mesmo tendo gastado menos com o plantio. Dirão os invejosos que meu sucesso acontece porque recebo ajuda do governo, mas não sabem que cumpro religiosamente meus deveres para com o erário real e que muito trabalho me custa fazê-lo? E os escravos? O preço das peças está pela hora da morte, principalmente agora que todos querem levar os negros para as minas. Viraram mercadorias frágeis. Tive até mesmo que proibir açoites sem justificativa, pois o excesso de zelo dos feitores às vezes os feria de tal forma que os tirava do trabalho. Além do quê, esses arroubos corretivos muito pouco ajudam para mantê-los mansos, para isso, existe a diamba”. “Diamba?”. “Uma planta que nasce feito mato, cujas sementes esses negros trazem da África enfiadas na bunda. É muito semelhante ao cânhamo, este mesmo que se usa na Europa para se fazer cordas de embarcações - os pretos gostam de fumar feito tabaco. No início, achei que a erva poderia desviá-los da lida, mas quando percebi que fumá-la os deixava mais mansos, resolvi fazer vista grossa. Não sei se é veneno ou remédio, mas a verdade é que passaram a ocorrer menos fugas e as brigas violentas que antes eram comuns nas noites na senzala, já praticamente não acontecem... É preciso ser bom de governo para lidar com tantos negros. Há duas centenas deles aqui. Não é exagero quando dizem por ai que são as mãos e os pés de um engenho, mas é preciso que a cabeça saiba trabalhá-los bem. Comem muito. Se ficam doentes ou de banzo não prestam para nada. Às vezes, quando algum deles me faz ter algum tipo de prejuízo, tenho vontade de juntar todos na senzala, fechá-la e tocar fogo. Mas tenho que fazer justamente o contrário, tenho é que cuidar deles para que não me dêem ainda mais prejuízo...



Entende-me?” – Sem esperar resposta, continuou: “É preciso que os feitores sejam rígidos, mas nunca cruéis. Não convém despertar o ódio dos pretos, nem tampouco lhes dar ainda mais motivação para fugirem, o que é razão de grandes tormentos para um engenho. Procuro ser um senhor justo. Aos domingos e dias santos, permito que trabalhem em suas próprias roças e desde o inicio do ano tenho aceitado que se casem. Àqueles que me são muito úteis, dou até liberdade, desde que fiquem trabalhando por aqui. Se dou-lhes certa perspectiva, a vida de quilombola10 deixa de ser tão sedutora... Vejo que viajas com um mulato e dois escravos. Mulatos são úteis dentro de casa e podem ser bons soldados, mas cuidado, são espertos e dissimulados”. “Cosme me pareceu ser de confiança desde o inicio”. “Não estou dizendo que não seja, mas conheço muitas histórias de herdeiros e viúvas de engenhos que foram ludibriados por mulatos de confiança”. Aquele comentário o fez lembrar a própria historia de Cosme. Teria sido muito generoso ou talvez ingênuo diante da história do mulato? A conversa ainda se estendeu pela noite chegando quase à madrugada. Entre outros assuntos, Nogueira quis saber os planos de Miguel. “Pretendo estabelecer-me no arraial do ribeirão do Carmo, na região das minas gerais, onde há uma forte presença de carmelitas”. “Há quase dez anos vejo pessoas partirem para as minas. Digo-lhe que é uma viagem sem volta. Mesmo aqueles que por ventura regressam, em verdade é lá que ficam, em mente e em espírito, vidrados no ouro. Há quem diga que o Brasil inteiro ainda vai se mudar para lá. Quando pretendes partir?”. “Se não for abusar de sua hospitalidade, irei em dois dias”. “Não seria prudente que fizesses esta travessia apenas com três escravos, é melhor que o faças junto a uma comitiva. Escreverei agora mesmo uma carta para um amigo que tenho no arraial de Tranqueira. Somos sócios em negócios de gado e a cada vinte dias sai de seu curral uma boiada para a região das minas, geralmente levada por tropa numerosa. Será mais seguro que os acompanhe. Darei ao senhor novas cavalgaduras e lhe cederei um homem de minha confiança para acompanhar-lhe e lidar com seus escravos até que cheguem à Tranqueira”. 10

Escravo refugiado em quilombo.


“Muito agradecido”. “Mas gostaria também de lhe pedir um favor. Um caso familiar que vem me tirando o sono. Quero que fale com meu filho e tente convencê-lo a estudar em Coimbra, o que ele muito reluta. Aqui, só o que ele faz é viver metido com negras, andando com más companhias e em bebedeiras. Preciso dar um rumo à vida daquele inútil. Penso que talvez o senhor, com sua experiência européia, consiga fazer despertar nele a vontade de saber. Eu mesmo achava tolice ir para a Europa, mas meu pai não me deu chance, ou era Coimbra ou era rua. Bem que eu poderia fazer isso com aquele vagabundo... mas é o meu único varão, o nome Nogueira tem valor. Vai que o traste me morre sem filhos? Além do mais, é na Europa que estão as mulheres casáveis. Também temo que seja engolido pelos cunhados tão logo eu vá acertar minhas contas com Deus.” Miguel assegurou que faria o que lhe fosse possível. Recolheram-se. Na tarde do dia seguinte, Miguel pôde falar a sós com o filho de Nogueira. Na verdade achava aquela conversa desnecessária. Aquilo era para ele a pior parte do sacerdócio, aconselhar, apontar o caminho da verdade, como se ele realmente soubesse, ainda que fossem apenas os assuntos espirituais, mas não, achavam que um padre devia saber de tudo, ter sempre a resposta pronta. Jovens como aquele costumam não dar ouvidos aos padres. Tanto melhor, pensou. Ele estava na sala, tinha as malas prontas no chão e demonstrava certa impaciência, girava pelo espaço a estalar, sem parar, os dedos. Há meia hora havia mandado que um negro lhe preparasse um cavalo para a viagem e até então o serviço não estava pronto, nem mesmo os negros carregadores ainda haviam vindo buscar-lhe a bagagem. “Malditos pretos. Assim levarei quatro dias para chegar à cidade da Bahia”. Tinha pressa, pois um dileto amigo, de viagem marcada para a Europa, o convidara para uma festa que marcaria a sua despedida da colônia. Esperava participar da animada celebração cercado de mulatas e garrafas. Miguel aproximou-se e introduziu o assunto: “Então é isso, frei? Meu pai pediu que viesse falar com o filho imprestável e o convencesse a ir estudar em Portugal? Não perca seu tempo, não há nada para mim na metrópole”. “Em Coimbra, teria muito a aprender sobre matemática, artes, direito, astros. Poderia ser muito importante para o seu futuro”.


“Futuro, frei? Estás brincando? Acompanha-me” - pegou Miguel pelo braço e o levou até uma das janelas. “Dê uma olhada lá fora. Veja todos os moinhos d’água, as roças e os pastos, as senzalas e os negros. Agora tente esticar um pouco o olhar e imaginar para além deles. Consegue? Tudo de material e toda esta terra que seus olhos podem avistar e mais ainda o que se perde no horizonte é do meu pai e será meu um dia. Achas mesmo que tenho de ir à Europa? Agora mesmo um grande companheiro meu está de partida. Digo-lhe com sinceridade: Para que ir a um lugar onde não será mais que um ordinário vassalo? Por que acha que tanta gente vem para o Brasil? Por que lá em Portugal há o Rei dono de tudo e aqui, frei, este rei posso ser eu. Aqui sou senhor de meus escravos, aqui sou senhor da vida e da morte desses camponeses infelizes, não vou para corte alguma me ajoelhar para o monarca se aqui a corte é minha. Diga ao senhor Nogueira que não sou tão burro como ele pensa e que saberei cuidar bem de todo esse imenso cabedal”. Para não desagradar tanto o espírito do pai, permitiu que o frei dissesse a ele que prometera pensar melhor no assunto, o que não animou muito a Nogueira. “É só o que diz há dois anos, que vai pensar”. Tendo resolvido partir no dia seguinte logo que o sol raiasse, Miguel se recolheu assim que terminou o jantar. Já estava na cama, quando alguém bateu à porta do quarto. “Quem é?” – perguntou em um sussurro, que mal poderia ser ouvido no corredor. “Perdão padre, mas estou com um pequeno problema”. Era o advogado. Miguel o fez entrar e sentou-se para ouvi-lo. “Na verdade, é um problema de minha esposa, melhor dizendo, um infortúnio de nós dois. Há um mês, ela teve complicações com uma gravidez e acabou por perder aquele que seria o nosso amado primogênito. Ela ficou muito abalada, sabe como são as mulheres, acho que pensa que foi culpa dela. Agora mesmo está aos prantos e eu realmente não sei o que fazer”. “E vossa senhoria quer que eu converse com ela?”. “Na verdade, ela diz que necessita de uma confissão agora”. “Agora? Mas que bom!”. “Como?”. “Digo, estarei pronto em poucos minutos”.


Quando ela entrou, tinha o rosto ainda vermelho e um pouco inchado, podia-se notar facilmente que havia chorado. Miguel puxou para ela a cadeira e sentou-se na cama. Havia cuidadosamente estendido o lençol, para causar boa impressão. Lavou as mãos e o rosto, penteou os cabelos. A jovem lhe pareceu ainda mais bela que antes, a pele, à medida que voltava a cor normal, descortinava a maciez que ele podia perceber, ainda que não a tocasse. Não era gorda como gostava, mas lhe pareceu doce ao dobrar os joelhos e pedir por benção. “Padre, eu sou uma pecadora!” – disse, girando a cabeça como quem lamenta. “O Senhor ouvirá seu arrependimento, minha filha” - disse e a fitou nos olhos. Ela evitou o contato e desviou seu olhar para o chão. Embaraçada. “Deus castigou-me por meus pecados. Tirou-me meu anjinho porque não fui digna dele”. “Nem eu nem a senhora podemos entender como são os desígnios divinos. Arrependa-te e o senhor ouvir-te-á, suplique e terás sua misericórdia”. “Pequei contra a honra de meu marido. Blasfemei. Estou suja padre”. “O que fizeste?” – perguntou interessado. “Por muitas vezes, padre, quando estou só, quase sempre à noite e na cama, certos pensamentos terríveis me dominam”. “Pensamentos?”. “Libidinosos, sujos... que vergonha, padre... Sou uma devassa”. “Diga tudo minha filha, liberte-se disso logo...”. “Tudo?”. “Claro”... “Tudo mesmo?”. “Claro, minha filha, estamos em uma confissão e eu sou um padre, digo... e também sou um homem... mas agora eu sou padre, a senhora entende não é? Esquece, conte me os seus pensamentos afinal”. “Vejo-me nua em uma cama enorme, em lençóis vermelhos, quando surge o Rei, vestido somente em uma pele de leão que lhe cai sobre as costas, uma coroa feita de ouro e brilhantes sobre os cabelos compridos, o dorso másculo e nu... gosto de imaginar que ele me toma nos braços e me beija com paixão... e é quase como me sentir beijada de um jeito que meu marido somente me beijou uma vez, na noite de nossas núpcias. O beijo do Rei faz


minha pele arrepiar e se fecho os olhos, quase o sinto me tocar... Então deixo que os pensamentos controlem meu corpo, minhas mãos, meus dedos...”. Então a jovem joga-se ao chão e de joelhos agarra a mão de seu confessor. Fecha os olhos e sinceramente suplica por perdão. Miguel, sem palavras, no segundo seguinte imagina-se a levantá-la pela mão, calar seu choro com um beijo e sobre ela cair na cama, para fazerem amor como loucos. Tenta controlar-se, fecha os olhos como se pedisse por lucidez e depois pergunta: “E a senhora já teve outros desses pensamentos?”. “Outros?”. “Sim, talvez desejos proibidos por outras pessoas que não o Rei”. “Uma vez sonhei com um cavaleiro, destes de espada e armadura como nos poemas de aventuras”. Miguel, sem conseguir segurar a própria língua, insistiu: “Alguma vez já teve este tipo de pensamento com sacerdotes?”. “O que é isso padre? O que pensa que sou?” – Disse indignada já soltando a mão do frei. Rapidamente se levanta e se recompõe. “Escute minha filha, vossa senhoria é jovem, poderá ter outros filhos. Deixe de se crucificar, é normal que se perca a primeira gestação. Quanto aos seus pecados, reze por nove dias, uma carreira de ave-marias e o ato de contrição. Jejue no nono dia, reflita sobre seus pecados e tenha fé na absolvição do Senhor”. Beijou agradecia a mão do frei e se retirou. Depois o frei ficou se divertindo sozinho a pensar se ela ao menos imagina que o rei hoje é um velho doente, se alguma vez o viu foi em algum retrato generoso de sua juventude, quando era caçador e cavaleiro audaz, do tempo que tomou do irmão a mulher e a coroa. Talvez fique mesmo conhecido para a história como aquele que assinou o tratado com os ingleses11, tão polêmico no reino, por ser desastroso para os tecelões plebeus e benéfico para os vinicultores nobres, é bem verdade que diziam, não sabe se de galhofa, que os ingleses continuariam preferindo os vinhos da França, ainda que mais caros ou mesmo em tempos de guerra. No dia seguinte, assim que o raiou o dia, Miguel e sua comitiva voltaram para a estrada. 11

Tratado comercial conhecido como tratado de Meuthen, em que os ingleses se comprometiam a comprar os vinhos de Portugal, enquanto estes comprariam os tecidos da Inglaterra.


7. A Caminho das Minas – De João Amaro ao rio das Contas Chamava-se Álvito. Poderia ser definido como um capanga de ofício. Trabalhava para Nogueira havia muitos anos e tinha orgulho da confiança do patrão. Não havia completado trinta anos, apesar das muitas marcas de seu rosto o fazerem aparentar um pouco mais. Sujeito rude, porém religioso. Desde que juntou-se à comitiva, não houve um só dia que não pediu ao frade por benção, que não rezou nas horas canônicas, assim como antes e depois das refeições. Demonstrava todo o tempo ter muito respeito por Miguel e por seu hábito. Cavalga à retaguarda, espingarda na mão, pistola na cintura e embornal ao ombro. Recebeu ordens de Nogueira para garantir que o frei chegasse a salvo ao seu destino. É duro ao tratar com os demais e quando o faz age como acredita que se deve agir com escravos. Tem o tom de pele mais claro, mas é mulato como Cosme, e mesmo assim não vê diferença entre este, Emanuel ou José, ainda que mantenha somente o segundo com as mãos acorrentadas. Sua presença causou sensíveis mudanças nas relações entre os viajantes. Cosme fora o mais afetado. Se durante a primeira fase da viagem sentiase importante e orgulhoso portando uma arma e tendo um escravo sob sua responsabilidade, agora se sentia desprestigiado e diminuído. Álvito lhe tomara a arma e o colocara para pastorear a mula de carga. Certa vez, o capanga chegou mesmo a ameaçá-lo com a chibata por julgar que caminhava desatento e lentamente. Algo que nem em seus tempos de escravo doméstico havia lhe acontecido. Por sadismo ou conveniência, o capataz ignorava as botas que ele calçava e sua condição de livre, atestada por Miguel. Este por sua vez, tentava reprimir os maus tratos, mas não o fazia muito incisivamente por estar sempre às voltas com a bússola, o mapa e as estrelas. A alteração de comportamento de Cosme não passou despercebida a Miguel, fazendo-lhe lembrar de Nogueira quando este falava sobre a dissimulação dos mulatos. Começaram a ser assim chamados os descendentes da miscigenação entre negros e brancos, em referência às mulas. Por um tempo dizia-se no Brasil que eram igualmente estéreis, visão, obviamente, que não poderia sobreviver por muito tempo. Se antes Cosme tratava José com desprezo e Emanuel com soberba, agora mostrava mais simpatia por ambos. Em verdade, Cosme não cometera qualquer ato que comprometesse sua lealdade para com o frei que, sabendo disso, tentava não se deixar contaminar


pelo julgamento negativo de Nogueira, mas era inegável que a presença de Álvito mostrara-se confortável, pois ao delegar o comando de seus serviçais pôde manter-se mais distante deles e de suas eventuais querelas. Na maioria do tempo Emanuel continuava calado, mas já começava a tentar se comunicar, ainda que com receio e dificuldade. José permanecia todo o tempo falante e deslumbrado. Apontava os macacos, as raposas e as flores. Estas pareciam lhe impressionar muito, gostava de catar uma ou outra e levar na mão até que achasse alguma que lhe parecesse mais bonita ou estranha. Gostava também de caçar insetos, que mantinha vivos em uma cumbuca de sapucaia. No fim do dia tostava alguns e os comia. Às vezes dividia-os com Emanuel, mas falava tanto e eram tantos os gestos, que deixava o jovem nagô confuso. Com Cosme, o escravo ainda se mostrava desconfiado, mas era o mulato quem tentava lhe ensinar palavras em português. Tinha os tornozelos e punhos em carne viva, mas já estava bem melhor, pois não mais caminhava, por ordem do frei, com as pernas acorrentadas. Por vezes, parecia que nem lhe incomodava mais as correntes nas mãos, mas vez por outra ficava olhandoas com ares de desolado. Doze dias após terem deixado o engenho Nogueira, seguindo o curso do rio Paraguaçu, chegaram à aldeia de Santo Antonio de João Amaro, um povoado de gente pobre e mestiça, conhecido por este nome em alusão óbvia ao santo, mas também ao seu fundador, conhecido apresador de índios, que passando por ali, em sua irrefreável guerra contra os bárbaros gentios, quis fazer do lugar um entreposto estratégico - plantou roças, ergueu cabanas, estabeleceu uma guarda paga, cativos, e um capelão, ainda que sem uma capela erigida. Depois, retomando à jornada de sua vida, partiu para o norte, a escravizar quando possível e exterminar quando necessário. Agora surgiam por ali as grandes sesmarias dedicadas ao gado e as casas feitas de barro e pedra. Ergueu-se uma capela e já existiam pequenas agências de comércio em um largo que chamam de praça, onde a poeira, que levantam os cavalos e o vento, torna a visão turva e a garganta seca. Álvito os guiou até a fazenda do mestre de campo Antonio Messias, dono de um curral de gado, em sociedade com Nogueira. A idéia era que o frei e sua comitiva seguissem viagem dali acompanhando uma boiada, porém a tal havia partido dois dias antes e o próximo comboio partiria somente dali a vinte dias. A ordem para o capataz era que voltasse daquele ponto, pois acreditava o


capitão Nogueira que junto ao comboio, Miguel estaria seguro. Diante da situação encontrada, o capataz não sabia o que fazer. “Eu não posso esperar vinte dias” – disse Miguel – “segundo meu mapa, ainda me faltam quarenta e três léguas para chegar até a Tranqueira e daí até o ribeirão do Carmo serão outras cem léguas. Pelo ritmo em que temos viajado, ainda levaremos dois meses para chegar ao meu destino final” – haviam percorrido 37 léguas em dezenove dias, fora as duas noites que estiveram no engenho Nogueira. Àquela altura, de acordo com o planejamento prévio da viagem, deviam estar a poucos dias da metade do caminho. Informou-se sobre o ritmo de deslocamento de uma boiada e descobriu que levavam quarenta dias para chegar até a Tranqueira. Pensou por um tempo e chamou Álvito para comunicar-lhe a decisão. “Se tu achares que és o correto pode voltar, esteja à vontade. Soube que o caminho até a Tranqueira não oferece muitos perigos, se passarmos a prosseguir até os fins de tarde, ao invés de até as três horas, acredito possamos alcançar a comitiva em três ou quatro dias”. O capataz resolveu seguir até que alcançassem a boiada, afinal a recomendação era que nada acontecesse ao frei, imaginava que se o planejamento de Miguel estivesse correto poderia estar de volta ao engenho Nogueira em uma semana ou um pouco mais. Antes de partirem, ouviram do fazendeiro que deviam evitar caminhar muito rente às margens dos rios, pois poderiam dar de cara com uma horda de aimorés e nesse caso: “Atire sem piedade, Álvito! E o senhor, - virando-se para Miguel, - use de toda sua fé e reze com fervor”. De volta à estrada passaram a fazer menos pausas para descanso, a trocar o almoço por uma refeição rápida e a jantarem já ao anoitecer; percorrendo assim cerca de mil e cem metros a mais do que normalmente faziam. À medida que adentravam o sertão, pela face oriental da cordilheira do espinhaço, a paisagem tornava se um tanto mais árida e o solo mais pedregoso, fenômenos próprios daquele lugar onde o cerrado e o agreste se fundem. Em pouco mais de uma semana, alcançaram o Rio das Contas que estava a meio caminho da Tranqueira. Já devíamos ter alcançado a comitiva, pensou Miguel. Assentindo no aconselhamento que tiveram, seguiam por uma trilha no meio da mata, distante mais que dez metros das águas do rio, mas onde ainda podiam bem ouvir o som do seu percorrer correnteza abaixo. No caminho,


ligeiramente em declive, cercado por pequenas árvores de galhos retorcidos e floridos pela primavera, havia vários pontos consideravelmente escorregadios, principalmente porque durante todo o dia caiu uma fina chuva que ainda persistia. É verdade que não havia sido tão fina em alguns momentos, mas até então não os fizera parar e buscar abrigo. Foram em frente. A trilha, por ser estreita àquela altura, os obrigava a se deslocarem em fila indiana. A mula de víveres seguia à dianteira com andar trôpego, às vezes José tinha que lhe fustigar com a chibata para que apressasse sua forçosa cavalgada. Logo depois do garoto, vinha Miguel sobre outra mula, não menos trôpega. Cosme, que caminhava próximo, se encarregava de chibateá-la quando dava para empacar. Emanuel vinha a seguir e por ultimo Álvito sobre seu cavalo andador. Ia pelo meio da tarde quando o céu pintou-se de negro, os pássaros voaram baixo à procura de abrigo e o ar encheu-se de umidade. Cogitaram montar acampamento. O frei achou que se seguissem em frente poderiam encontrar a comitiva acampada à espera de que findasse a chuva. Trovões. Ocorreu a Miguel que aquela trilha, pela pouca largura, lhe parecia imprópria ao trânsito de uma boiada, talvez houvesse se equivocado e escolhido o caminho errado. À medida que se intensifica a chuva, as mulas aparentam mais hesitação para locomoverem-se. Desabam as águas. As mulas empacam. Nada se vê. O dilúvio cega a todos. “Chibata nesta merda, neguinho! – gritou Álvito. Temos que sair daqui!”. Álvito temia que se formasse uma caudalosa enxurrada por aquele estreito, e aí mesmo é que as bestas não andariam e ainda corria o risco de perder seu cavalo, caso escorregasse e fraturasse algum osso; andadores não são como asnos que conseguem se locomover por quebradas como aquela sem cair. Sorte que estava de chapéu, podia assim enxergar um pouco mais que os outros. Espichou o olhar para ver à frente. A mula de carga permanecia empacada e não havia chibatada que a movesse. Se estava difícil para verem um palmo à frente dos olhos, imagine perceber o perigo que havia no chão. A mula não se movia porque instintivamente percebera a presença da cascavel. Imóvel, se não fosse pelo chocalho. Enrolada, abaixo das folhas, a um passo da besta. Só queria manterse seca. Devido à movimentação, agora estava com as defesas prontas; bote armado.


Álvito cavalga até a frente da comitiva, o cavalo passa ao lado das folhas onde se esconde a serpente. Ela dá o bote. O cavalo se esquiva e desfere um coice que quase acerta a José. Por muito pouco o capataz não cai da montaria. Usa de todas as suas forças para segurar firme as rédeas e controlar o animal. A cascavel errou o golpe, mas não fugiu. Em três segundos já tinha energia para outro ataque. A cobra salta novamente e morde a perna da mula de víveres, que num salto põe-se a galopar como que desesperada e desaparece na mata. “Porcaria! Deve haver uma cobra por aqui!” – Álvito gritou, puxando a pistola, já armada. O cavalo está agitado. O capataz tenta enxergar o perigo, mas cai muita água e mesmo o chapéu não lhe ajuda o bastante agora. Tudo o que vê além de água é lama, mato e pedra. “O que houve com a mula afinal?” – pergunta Miguel, preocupado. “Talvez uma cobra ou outro bicho, vamos sair daqui devagar e em silencio” – disse Álvito não muito seguro. Cosme estava apavorado, Emanuel tentava ficar atento”. Então a mula de Miguel dá um passo à frente. Muito perto de uma de suas patas dianteiras está a cascavel. Outro passo da mula. O bote. O salto. Miguel somente tem tempo para se agarrar às rédeas quando o animal se desembesta para dentro da mata. O veneno faz efeito rápido. A dor intensa faz o animal imprimir um galope frenético por entre a mata e os galhos, quase fazendo o frei cair. Miguel, de olhos fechados, não arrefece a força com que se segura à corda. Se cair pode morrer, lhe diz o desespero. Atravessam outra trilha. Rompem mais uma porção de mata. Quando se deixa abrir os olhos, vê surgir à sua frente o rio. Imediatamente, ao ver a mula do frei avançar pela mata, Álvito se pôs a galopar atrás. Os outros correram na mesma direção. Chegaram à margem do rio e avistaram a mula parada. Nada do frei. Olharam-se assustados e depois para o rio. “Ali!” – Gritou Cosme. O frei se debatia contra a correnteza. “Pule no rio escravo!” – grita Álvito para Cosme, lhe apontando a pistola. “Eu não sei nadar! Pule você! Pode atirar! Se eu pular vão morrer dois”. O capataz também não sabia nadar, sem nada dizer saltou do cavalo, avançou para Emanuel e lhe tirou os ferros. O escravo então correu e saltou. Emanuel mergulhou como uma flecha.



O que ocorrera é que a mula corria sem controle quando, na margem do rio, parou bruscamente. O frei foi arremessado para a frente. Seu corpo mergulhou fundo nas águas barrentas. A batina encharcada fez o movimento de voltar à superfície exigir-lhe grande esforço. Quando enfim alcançou o ar, as águas agitadas tragaram-lhe novamente. Então engoliu água. Submergiu novamente. Buscou ar a plenos pulmões e começou a debater-se contra a correnteza. A batina pesada o puxa para baixo, seus braços e pernas começam a doer. Neste momento pede por Deus. Suplica misericórdia e o perdão dos pecados. Sente esvaírem-se suas forças e se entrega às águas que o levam e o afogam. Perde a consciência. Surge-lhe o anjo negro. Mostrou-se exímio nadador, talhado pelos rios de sua distante África. Seu corpanzil esguio, porem forte, permite-lhe braçadas rápidas. Nadando a favor da correnteza logo alcança o frei. Agarra-lhe a batina e consegue fazê-lo emergir, ainda que inconsciente. Ambos são levados pelas águas até bem próximo da margem, onde Emanuel consegue agarrar-se a uma raiz formada saliente ao barranco que margeia o rio. Desprende toda sua força para conseguir segurá-la com uma das mãos e ao frei, pela batina, com a outra. José, Cosme e Álvito, com o auxilio de um galho comprido içam os dois para fora do rio. Emanuel está exausto e o frei permanece inconsciente, mas respirando. A chuva enfim cessara. Quando acordou, na manhã seguinte, Miguel de pouco lembrava. Tudo havia se apagado desde as mulas empacadas na trilha em meio ao temporal. Contaram-lhe sobre a mula de víveres – desde que se desembestara pela mata, não mais a viram. A outra mula estava morta. Lembrou-se de seus pertences. Despiu-se da batina e levou a mão por entre as roupas de baixo e puxou um punhado de papéis encharcados. Colocou o dinheiro para secar ao sol e constatou que perdera, além de duas notas, os documentos que provavam que era um carmelita, seu passaporte, a carta de apresentação do frei Inácio e o mapa do caminho. Praguejou. Gritou impropérios tão alto que divertiu José e constrangeram a Álvito e Cosme. Emanuel há quase uma hora também sumira. “Será que o infeliz fugiu?” – Perguntou Miguel com visível mau humor. Deixou-se cair na grama e pôs os olhos no céu não mais nublado. Cosme aproximou-se de frei Miguel e contou-lhe o ocorrido da véspera. Como que num abalo, tudo lhe voltou à memória. A visão do terror sobre a mula, o vôo por sua cabeça, as águas revoltas. Lembrou ter pedido por Deus.


Primeiro pela absolvição de seus pecados e pela salvação de sua alma. Lembra-se de ter visto a luz e antes que ela se apagasse, implorou por sua vida. Foi quando surgiu o anjo, Emanuel. Levantou-se do gramado e foi à beira rio. Olhou para si e lembrou-se que apenas vestia suas roupas de baixo. Olhou para trás e viu a batina suja de lama jogada ao chão, trouxe de volta os olhos para si nos pés descalços, repletos de feridas. Passou os dedos sobre a face que ardia e sentiu os cortes e arranhões feitos pelas galhas. O pensamento o levou ao passado, primeiro até aquele garoto que tinha medo de ser dominado pelo mar ou tragado por ele, chegando ao convento cheio de esperança. Ficou tão feliz por estar longe de Aveiro, que abraçou a vocação com fervor. Se for a fé a sua liberdade, ter fé era seu destino. Reza e estuda. Como lhe disseram, fez. Foi a Roma, Jerusalém. Chorou ao ver por onde o Divino Mestre andou e a gruta onde a virgem surgiu para os fundadores carmelitas. Num arroubo de vaidade, quis ser santo. Padre formado em Roma foi estudar na Universidade de Coimbra. Deveria ser mestre em Direito Canônico, queria Cônego Oscar. E de fato formou-se, mas seu espírito rompera outras barreiras. Lá também conheceu a boa música profana, a filosofia pagã, os vinhos, a amizade e as mulheres. Estas logo tornariam se capítulos especiais em sua vida. Tinha vinte e dois anos e era virgem. Os amigos da Universidade, entre eles outro padre, garantiram-lhe que a filha de um conhecido e rico mercador da cidade era uma pecadora que se deitava com os homens, uma deliciosa devassa que todos eles já conheciam. Bastava que tarde da noite, ao passar por sua casa, se jogasse pedrinhas em sua janela. Minutos depois ela a abriria e o galanteador poderia trepar na figueira em frente ao sobrado e alcançar o quarto da donzela. Ficou com aquilo na cabeça. Dias. Noites. Missas. Aulas. Não pensava em outra coisa. Imaginava a moça deitada no quarto, às vezes gorda às vezes menos. Às vezes suada, às vezes limpa. Passava pelo sobrado toda noite e depois corria para se penitenciar de joelhos sobre o milho e rezava até o amanhecer. Um dia bebeu vinho. Uma garrafa. Partiu decidido. Uma pedrinha, nada. Duas pedrinhas, nada. A janela se abre. Então surge, com uma lamparina na mão, o gordo mais feio que ele já havia visto. “Quem é o filho da puta?!!!” Então olha para baixo. “Padre?” Meio segundo para pensar. “O senhor anda faltando muito as missas!” Esperou que o mercador engolisse. “Perdão padre, neste domingo, sem falta...” Saiu logo dali, mas o desejo do pecado continuava com ele.


Bebeu menos vinho da outra vez e foi sem a batina. Desta feita foi ao quarto correto. Deu-se como os amigos haviam falado. As pedrinhas. A janela se abrindo. A figueira dando pé até o quarto. A pouca luz da vela iluminando somente as pernas, por sinal grossas, como em seus sonhos. Ela lhe estendeu os braços como quem chama o abraço e ele se apaixonou. Passou a visitá-la diariamente. Faziam amor. Riam. Às vezes ele levava um vinho. Uma noite contou a ela que era padre. No domingo seguinte foi chamado até sua casa. O pai dela pedira sigilo. Era para encomendar-lhe a alma. Havia suicidado. O gordo pôs-se a lamuriar o destino, contou que a filha estava grávida e que havia passado toda a noite pressionando-a para que dissesse o nome do maldito. Pela primeira vez em sua vida, Miguel misturou as pagãs filosofias e a religião. Racionalizou a questão para que não pudesse em consciência condenar nem a ela, nem ao pai, nem a si mesmo. Ninguém queria ferir ninguém, apenas valer seu ponto de vista. Jovens amantes e um trágico destino, tão antigo quanto a experiência humana, disse ao pai. Prometeu que guardaria segredo e que ela seria sepultada como cristã. Deixou aquela casa e nunca mais foi o mesmo. Chorou por um longo ano e ainda sente apertar o coração quando se lembra. Apaixonou-se por outras vezes, sempre fugazes. Por muitas vezes vestiu aquela batina com fé, pelo menos era o que achava, por muitas ocasiões a negou por disfarce. Um dia perguntou-se: será mesmo que escolhi a batina por vocação? Ou será que o fiz por fuga? Ou porque não se nega quando a Igreja e o Rei lhe batem à porta? As mesmas perguntas sem respostas, pensou - ou melhor, as mesmas perguntas cujas respostas sempre mudam. Eu poderia estar morto agora e nada disso teria mais importância. Olha ao seu redor, não tem mais mula, comida, mapa ou bússola. Cosme lhe parece assustado, talvez estivesse pensando que o melhor fosse ter ficado naquela cela imunda, José parece mais fraco do que quando o conheceu no inicio do ano – a jornada não estava sendo fácil, ainda mais para quem a cumpria a pé - e Álvito não escondia a raiva, talvez por ser conhecedor da travessia e ter se deixado guiar por um padre e uma bússola estúpida. Se houvessem se orientado apenas pelos montes e rios como faziam os boiadeiros não teriam se perdido; disso estava convicto. Miguel também perdera o escravo que comprara para minerar. É, realmente as coisas não andaram como havia planejado, aliás, em toda sua vida, nada aconteceu como planejara. Talvez apenas quando, contra tudo e contra todos, batizou o garoto José na Igreja do Carmo. Quantas vezes mais teria que brigar com sua Igreja?


Por mais que aspirasse ser livre, sente que foi sempre levado a algum lugar por alguma coisa. Não sabe exatamente se isso de querer ter governo sobre o seu destino é coisa com a qual nasceu no coração ou se adquiriu depois com Descartes, cuja obra o ensinara a questionar racionalmente o que lhe era determinado por outrem. Recorda-se de como ele e seus amigos arriscavam-se traficando livros proibidos. Quando acontecia de chegar um novo volume tinha que ser invariavelmente tarde da noite e quase sempre vinha acompanhado da exclamação: “Este novo tratado irá mudar radicalmente o seu entendimento da vida!”. Quando era mais moço chegou a imaginar que tudo que precisava saber, além das sagradas escrituras, lhe poderia ser dado por Aristóteles e São Tomás de Aquino, mas subversivos como Locke e Spinoza abalaram suas convicções, a cada nova obra, conseguida por meio de mercadores árabes, que as vendiam sem ler. Aprendeu inglês e neerlandês para entendê-los já que a tradução daqueles livros em português era proibida expressamente e duramente condenada pelo Tribunal do Santo Oficio de Lisboa. Também sua circulação, em qualquer língua, era um pecado grave contra a fé. Instigantes, aqueles filósofos contribuíram para constituir um novo homem. Se Descartes o fez sujeito consciente e pleno de possibilidades, de Spinoza, serviu-se da idéia de que ser livre é compreender a necessidade que o determina e com John Locke descobriu a dimensão política do indivíduo, seu direito à liberdade de escolha. Este filósofo inglês lhe abrira a mente para um conceito novo, de que todo homem tinha o direito natural à sua liberdade, manifesto na idéia de que se o indivíduo tem propriedade sobre seu corpo, logo o tem sobre sua existência. Se natural, serve a todos os homens. Daí à idéia de igualdade. Mas igualdade? Como pensar nisso em um mundo de escravos e senhores, nobres e plebeus, católicos e protestantes? Talvez seja essa a chave para a liberdade: sermos todos iguais, porque assim não é preciso ter um titulo para ser alguém. Naquele momento, ali naquele pedaço de mundo ou fim de mundo, Miguel decidira ir além. John Locke excluiu os negros do seu conceito liberal, mas o frei entendia que isso não seria possível, não podia o homem querer ser livre e ao mesmo tempo possuir o outro como coisa. Talvez fosse o filósofo um grande proprietário de escravos, pensou. É tão contraditório quanto a igreja condenar a escravidão de indígenas e apoiar a dos negros. Não teria mais escravos. Não mais seria padre. Agora, mais que nunca, a idéia seria experimentar para aprender. Tentar, e se errar, tentar de novo. Não quer


mais ser tutelado, nem pela igreja, nem mesmo pelos filósofos. Será agora somente Miguel, sem disfarces. Chega de divagações. Caminhou até sua batina, a recolheu e votou à beira rio. Cosme, José e Álvito observavam curiosos. Para surpresa dos outros, Miguel arremessou às águas sua vestimenta religiosa. Voltou se para eles e disse em bom tom: “De hoje em diante renuncio aos votos sagrados”. “Danou-se, agora o homem endoidou de vez” – Disse Álvito a si mesmo. “Calma meu senhor, talvez bateste a cabeça e estejas confuso...” sugeriu Cosme. “Pelo menos agora não terá que se disfarçar para ir até as bodegas...” disse José com galhardia. “É isso mesmo, José. Não quero mais disfarces. Eu estava confuso quando abracei uma vocação que não era minha. Não renuncio a Cristo, mas participo da visão que para chegar a ele, basta que o tenha ao coração. Assim como vossa mercê José, negro, analfabeto, mas cristão porque escolheu, porque é livre para que o faça. Não é preciso ler latim, ou saber de cor todas as rezas. O que faço aqui, tendo-os por testemunhas é tão somente me livrar da samarra, pois frade, em verdade, nunca fui”. “E agora andará pelos caminhos de ceroulas?” – perguntou, Álvito, nas raias da indignação. “Não andam por aí os escravos e os indígenas seminus? Que seja”. “Maldita hora em que me meti nessa roubada!” – pensou o capataz. Depois disse, sem esconder a irritação: “E o que o senhor pretende para o almoço hoje? Não comemos há um dia e dizendo por mim, estamos famintos”. “Podemos caçar”. Álvito sorriu, desembainhou a pistola e disse: “Pois saiba o senhor, que temos agora carga apenas para dois tiros, pois o resto da munição se foi com a mula de carga, assim como a carne seca, a cachaça, o tabaco e a espingarda. Acho que precisaremos de outra sugestão”. Havia lhes restado apenas a pistola, a espada, o cavalo de Álvito, uma botija para colocar água e uma faca. Todos os demais víveres e utensílios estavam na mula que se perdeu. Além de tudo isso, Miguel tinha ciência que se encontravam perdidos e desorientados. Já havia mais de dez dias que tinham deixado João Amaro, e pelo que se lembrava do mapa, já deviam ter passado por pelo menos um outro arraial e chegado ao da Tranqueira, onde pretendia


ter encontrado a boiada e os vaqueiros do capitão Messias. Não viram nem sinal de povoamento desde que voltaram à estrada. Miguel praguejou novamente. Olhou para o céu como se esperasse pela luz. Por um segundo quase se desesperou. Olhou para os outros e por pouco não lamentou tê-los jogado naquela malfadada expedição. Então olhou para a frente e viu Emanuel. O negro trazia em umas das mãos uma lança feita de pau silvestre e com ponta mortal, com a qual havia matado o bicho que trazia arrastando. A Miguel pareceu um esquilo gigante. O escravo caminhou até o meio dos homens e pôs a caça no chão. Então Miguel o abraçou. “Que merda é essa agora?” – perguntou Álvito. Estupefatos também estavam José e Cosme. “Tu, agora, és um homem livre. Nada de correntes, açoites. És de hoje em diante dono de seu destino”. Emanuel não entendeu o abraço, tampouco as palavras. Mas notou a excitação de Miguel e o sorriso franco. Sorriu de volta. Apertaram as mãos. O português se viu no sorriso do negro. Um gesto tão simples e poderoso, um momento explícito de humanidade. Cosme se aproximou e disse em dialeto Iourubá, aquilo que falara Miguel. Emanuel, então, cerrou o sorriso. Fitou, sério, os olhos de Miguel. Segurou a lança com as duas mãos e a bateu contra o peito, depois fez o mesmo contra o peito de Miguel. Cosme traduziu o gesto: “Ele agora disse que serão amigos para sempre”. “És livre” – disse Miguel. “Livre até mesmo para voltar para a mata de onde tirou esse... Afinal, que bicho é esse?“. “Os tapuia12 chamam de capivara”. – Respondeu Álvito. “Deve ser ruim de comer...” Mas não era. Assaram na brasa e foi como um banquete. Sobrou para o jantar e para o almoço do dia seguinte. Durante a noite, Miguel observou as estrelas, particularmente o cruzeiro do sul. Imaginava que orientando-se por tal

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Originalmente era como os índios tupi-guarani chamavam seus inimigos ou indígenas de diferente etnia. Posteriormente, incorporado ao português falado no Brasil, passou a ser denominação genérica aos índios selvagens.


constelação, fatalmente chegaria a algum arraial, onde com o dinheiro que lhe restara poderia comprar suprimentos e uma nova cavalgadura. Pouco antes do nascer do sol retomaram a caminhada na direção indicada por Miguel. Álvito lhe cedera o cavalo, mas ele recusou. Tanto melhor, não é nem mais padre, pensou o capataz. O percurso para o sul tornou-se um aclive cada vez mais íngreme. Dois dias depois e nada de povoados ou aldeias. Nem um parco sinal de civilização ou rastro de uma boiada. Àquela altura caminhavam sob sol escaldante. Álvito não mais confiava na diretriz de Miguel. Sentia-se ultrajado por aquele padre de ceroulas que nem mais padre se dizia ser. Talvez nunca houvesse sido. Era-lhe patético vê-lo ali acreditar que sabe como chegar a algum lugar observando as estrelas. Maldita hora que o Nogueira lhe dera este serviço, pensou; “um calor dos infernos e eu aqui no meio do nada, com fome, sede e cansado”. “Basta!” - gritou. “Não vou seguir este perdido que abraça negros e renuncia à Igreja. Não quero morrer na companhia de um padre imbecil e de três pretos nojentos!” – Cuspiu no chão. Esporou o cavalo e sumiu num galope morro acima. Miguel, assim como os demais, não disse qualquer coisa. Retomaram a caminhada. Pelo menos não levou a botija, pensou.


8. A Caminho das Minas – Do sertão ao Santa Bárbara Quando atingiram a um descampado entre o riacho e a mata, Miguel notou que se encontravam agora à esquerda da cordilheira do espinhaço, e concluiu que haviam trespassado a formação e talvez estivessem próximos ao São Francisco, que seria o rio mais caudaloso que poderiam encontrar no caminho. Uma hora teremos que achar uma povoação, pensou com otimismo. Era como se depois de ter largado a batina houvesse reencontrado sua fé. Têla era então uma urgente necessidade, pois entregar os pontos agora era o mesmo que renunciar à vida. Somente com fé poderia encontrar força para dar mais um passo, ainda que arrastado e doloroso. Era preciso seguir. O sol brilha tão intenso como um castigo. Miguel tem sua pele vermelha e a arder. tem dificuldade até para coordenar seus pensamentos. A botija está vazia e é visível, que como ele, todos padecem de sede. Imagina ouvir um curso de água, mas não sabe se delira. Há duas horas estava deitado em uma pedra a tentar sugar sem muito sucesso um parco filete de água que escorria do alto da montanha. E pensar que há dois dias quase morreu afogado. A vista escureceu e por um milionésimo de segundo sentiu-se sucumbir. A gota de suor lhe correndo a face, o coração a pulsar frenético, o corpo querendo tombar. Não. Não, depois de tudo. É preciso dar outro passo. Doíam-lhes os ossos, os músculos, a cabeça. Foi assim, convivendo com as dores e as dificuldades, que atravessaram mais ou menos três dias, segundo imaginava Miguel. Não tinha certa a conta dos dias, quanto mais o rumo que seguiam, guiava os demais segundo a direção do nariz. Se não fosse pela energia de Emanuel, que a despeito de todas as dificuldades se metia na mata em busca de pequenos animais e frutos silvestres, já estariam mortos. Avistaram o corpo de longe. Na verdade, primeiro viram o cavalo, morto. Entreolharam-se e então viram Álvito estirado no meio da trilha. “Ainda respira”, disse Miguel. Usaram bambus, cipós e folhas para improvisar uma maca. O capataz estava inconsciente, com os lábios sem cor e feridos de tão secos. Talvez estivesse caído ali há muitas horas, pensou Miguel. Era preciso encontrar água e comida logo, pois a vida de Álvito dependia agora de cada minuto. Nesse meio tempo, alimentaram-se dos insetos que José trazia e mesmo esgotados, retomaram a caminhada, sem descanso. Cosme e Emanuel ainda tiveram que encontrar forças para arrastar a maca com Álvito.


Andaram por mais duas horas até enfim ouvir o som do que parecia ser uma cachoeira. Embrenharam na mata e seguiram o barulho. Deram num oásis. A queda d’água formava um poço onde havia muita sombra e frutos silvestres, pequeninos, de cor laranja, um tanto ácidos, mas muito refrescantes e saborosos. Comeram dos frutos, banharam-se, e beberam a água límpida e cristalina. Miguel disse a eles que colhessem o máximo de frutos para o restante da viagem. No momento estava muito preocupado com Álvito que permanecia inconsciente e agora apresentava febre. Não conseguiu fazer com que ele bebesse água. Tirou-lhe as botas e a camisa. Rasgou a barra da calça e começou a examinar o corpo do capataz em busca de algum ferimento. Nas pernas e dorso não achou nada. Suspendeu-lhe os braços. Lá estava, na parte de dentro do antebraço direito. Parecia uma ferroada de peçonhento; inseto ou aranha. Temeu pela vida do infeliz. Ao redor da picada, a pele transmutara em roxo. Molhou um pano e colocou sobre a testa do capataz, depois nos pulsos. Mais uma vez. E outra e outra. A temperatura não arrefece. Miguel fecha os olhos. Reza: “Senhor, em nome da Santíssima Trindade, venho pedir misericórdia para essa pobre alma, receba-a...” – Interrompeu-se a si mesmo. “Mas ele ainda não morreu!” Lembrou-se do cirurgião barbeiro Figueiredo. “Acho que precisas de uma sangria, meu caro” – disse, olhando para o desfalecido. “Se aquele maluco conseguia fazer isso bêbado e drogado, porque não conseguirei? È certo que é a prática que leva à expertise, quantos não haveriam de ter morrido em suas mãos, apara que se aperfeiçoasse? Bom, é melhor não pensar nisso agora”, resolveu. Apertou, com força, uma tira de tecido logo acima da ferroada e da mancha roxa. Os outros observavam a cena com atenção. Miguel pegou a faca. Fez um corte profundo. Enrolou outra tira de pano abaixo da marca e também apertou. O sangue esvaiu, formando logo uma poça no chão. Quando achou ter saído o bastante, tirou as tiras e as enrolou sobre o corte, bem forte. Com outros trapos, fez uma tipóia. “Agora é só esperar”. Quando acordou, cerca de três horas depois, Álvito se viu sendo levado na maca por Cosme e Emanuel. Lembrava-se da dor no braço e de quando o cavalo tombou exausto. Concluiu que apagara e que havia sido resgatado


pelos outros. Viu o curativo e a tipóia. Agradeceu a Deus e desmaiou novamente. Estava fraco, mas a febre sumira e também a rouxidão. O único problema que Miguel via é que o sangue continuava a escorrer e mesmo que o curativo de pano arrefecesse a hemorragia, imaginava que ele poderia morrer se não chegassem logo a um lugar onde o ferimento pudesse ser devidamente limpo e suturado. Mas agora estava mais animado, haviam seguido o leito do riacho e transitavam por uma via larga, onde havia rastros de rodas e animais, que seriam recentes, segundo Emanuel. “Devia ser caçador na África” - disse Cosme a Miguel. Este ficou feliz, pois se não tinha mais uma bússola, por outro lado ganhara um rastreador. Continuava tentando ver as coisas com bons olhos. Álvito despertou-se de vez ao final da tarde. Soube das expectativas e animou-se logo. “Padre... quer dizer... como quer que eu o chame?”. “Chama-me de Miguel. Basta”. “Muito bem senhor Miguel... Obrigado por não ter me deixado morrer na estrada”. “Creio que o senhor faria o mesmo”. Álvito calou-se. Perguntava-se: faria mesmo? Acho que teria deixado o senhor morrer por lá, pensou. Então Miguel lhe diz: “Não se preocupe. Faça daqui para frente”. “E esse sangue que não pára? Vou viver?”. “Tenha fé, Álvito”. Passaram a noite em uma cabana improvisada de paus e folhas. Todos acordaram assim que surgiram os primeiros raios de sol, com exceção de Miguel, que permaneceu profundamente adormecido, apesar de todos terem despertado falantes, à exceção do capataz, que estava calado e arredio. Tinha ciência de que eles o haviam ajudado, mas parecia sentir vergonha e ser orgulhoso demais para reconhecer isso e agradecê-los. Preferiu manter-se à parte e cabisbaixo. Emanuel vinha aprendendo rápido a falar português e já era capaz de formar pequenas frases como: “pegar bicho” “beber água” “descansar”. Havia se transformado. O olhar desconfiado ficara para trás e para a surpresa dos outros, mostrou-se ser, na verdade, um sujeito até expansivo. Era comovente, em particular para Miguel, ver seu esforço para se ver entendido - misturava Iorubá com as novas palavras que aprendia e com gestos de mímica. Quase sempre não tinha sucesso, mas fazia os demais


rirem das suas tentativas. O fato é que os dias suplicantes que haviam passado juntos os aproximaram. Confiavam uns nos os outros e àquela altura acreditavam sinceramente na liderança de Miguel. O deslocamento em relação ao grupo com o qual teria de conviver dali em diante ficou patente para Álvito naquele princípio de manhã. Decidiram que Cosme buscaria frutos na mata, se deles por ali houvesse, Emanuel tentaria caçar um animal com sua lança, enquanto José deveria ir ao riacho encher a botija com água. “Eu também posso ajudar” – ofereceu-se Álvito um tanto encabulado. “Fique aqui com Miguel” – disse-lhe Cosme, com um tom que ao capataz pareceu insolente. “Escravo nenhum me dá ordens, pensou”. Inclinou-se a afrontá-lo, mas olhou para seu braço com aqueles trapos encharcados de sangue e nada fez. Depois que os demais partiram para cumprirem as suas tarefas, lembrou-se de sua arma. Procurou por seu embornal e o avistou junto a Miguel, como que um travesseiro. José, por toda a sua vida, quase nunca saiu dos arredores do porto de Salvador. Mesmo à cidade alta, subia poucas vezes. Tudo o que conhecia da vida e do mundo, havia vindo daquelas ruas que circundavam o cais. Conhecia os vendilhões, as prostitutas, os punguistas e todo o tipo de gente, seja vadia, escrava ou trabalhadora. Logo aprendera do que gostavam os estrangeiros que chegavam por ali, assim descobriu como ganhar deles tostões, comida ou qualquer coisa que lhe fosse útil. Carregava bagagens para eles, lhes apresentava prostitutas forras, contrabandistas e agiotas. A despeito de todas as dificuldades que enfrentava no dia a dia, tornou-se um garoto vivo em dois sentidos. Esperto, porque convivendo com espertalhões tinha que se virar também, e sobrevivente, pois se existe uma palavra que o pudesse definir é esta. Sobreviveu ao abandono, à fome, ao preconceito dos negros e à indiferença severa dos brancos. E agora poder-se-ia dizer que chegara onde nem mesmo sonhara. Em poucos meses fora batizado católico como sempre desejou, possuía documentos que atestavam sua liberdade e seu nome cristão. Se antes seus sonhos tinham limites, seu horizonte agora era amplo. Também estava embevecido pela perspectiva do ouro, Miguel prometera que todos teriam seu quinhão nas minas. Jamais imaginara que pudesse estar tão feliz. Os pássaros, as cachoeiras, as flores, tudo lhe contentava, tudo era descoberta. Caminhava sem pressa, parando a cada flor, cada bicho. Encantou-se com a orquídea que brotara na pedra. Colheu-a. Observou-a por


instantes. Talvez não houvesse visto antes algo tão belo. Seguiu até a beira do riacho com ela na mão Quando acordou, Miguel entregou a Álvito seus pertences. “Achei melhor tirar a munição, não sou bom com armas”. O capataz agradeceu. Como se testasse, empunhou a arma com a mão esquerda, e percebeu que teria sérias dificuldades sem poder usar o braço direito. Percebendo a situação, Miguel tenta animá-lo: “Não se preocupe, logo fará tudo bem com a mão esquerda”. “Acha que perderei meu braço?”. “Pode acontecer sim. Mas ainda assim estará vivo”. “O que pode fazer um capataz sem um dos braços?”. “Acompanha-me até às minas, lá haverá nova vida para todos nós. Além do mais se chegarmos logo a alguma povoação, poderemos salvar seu braço”. Com dor e ainda sangue a escorrer, não era fácil para Álvito deixar-se levar pelo otimismo de Miguel. Não sabe ao certo há quantos dias está perdido, teme não estar vivo no próximo amanhecer e sabe que àquela altura, Nogueira já o substituiu no engenho. Mas dadas as circunstâncias, considerou ser melhor confiar na fé de um ex-frade. Enquanto Cosme voltou com alguns frutos vermelhos, Emanuel nada conseguiu caçar, ainda que tenha avistado um cervo, porém veloz e muito forte para ser morto por sua lança. Contou ao mulato que próximo a um córrego percebeu os rastros de um grande felino. “Um gato grande”? – perguntou Miguel a Cosme. “Foi o que o Emanuel disse”. Miguel preocupou-se. Vira-se para Álvito: “Existem leões por aqui?” “Já ouvi falar que onças ferocíssimas, do tamanho de um cavalo, andam por estes sertões”. “Onde está o garoto José?”. – perguntou Miguel. “O neguinho foi buscar água e até agora não voltou”. – respondeu Cosme. “Há quanto tempo ele saiu?”. “Há mais de uma hora, imagino” – disse Álvito. “Mas se não estamos tão distantes do riacho, não era para ele já ter regressado?”.


“Certamente. Talvez devêssemos procurar por ele” – sugeriu Álvito. “E desde quando se preocupa com os pretos, capataz?” – disse Cosme, com desprezo. Odiara Álvito desde o primeiro contato, quando ele lhe tomou a pistola e na prática passou a ocupar o posto, que antes a ele pertencia, de principal auxiliar de Miguel. Por diversas vezes, se sentira humilhado pela forma ríspida com que era tratado por ele. Agora que o via fragilizado, imaginava ir à forra de alguma maneira. Álvito nada disse. Entretanto, retirou a arma do embornal, deixando-a a vista. Cosme, por sua vez, não gostou nada de saber que ele estava novamente de posse da arma. Trocaram olhares nada amistosos. Miguel percebeu o clima hostil entre os dois mestiços, mas naquele momento sua preocupação era outra. Afinal, onde José havia se metido? Deram busca ao redor de onde haviam acampado e nada. Nenhum sinal do garoto. Seguiram procurando. Gritaram pelo nome, pelo apelido. Uma, duas, várias vezes. Sem resposta. Rumaram para o riacho. Já próximos à margem, Emanuel apontou para o chão. As marcas pareciam terem sido feitas há pouquíssimo tempo pelas patas de um grande felino. A tensão toma a todos. Poucos metros à frente, encontraram a botija no chão. Mais alguns passos e vêem o sangue. “Pode ter sido a onça” – disse Cosme, visivelmente assustado. “Ou coisa pior” – completou Álvito, pensando nos aimorés. Sacou a arma. Sem um dos braços não teria como municiá-la e mesmo se tivesse, com a mão esquerda não seria capaz de atirar bem. Dirigiu-se a Cosme. “Toma. Pegue a munição no embornal. Vamos precisar de você” – disselhe e entregou a pistola. Agora trocaram olhares cúmplices. Mais um pouco à frente, avistaram o garoto no chão. Aproximaram-se. Havia muito sangue. O ventre estava rasgado, as vísceras expostas e os olhos esbugalhados. Ouviram ruídos que vinham da mata e não eram poucos. O perigo parecia eminente. “Vamos sair daqui agora” – disse Miguel. “Precisamos levar o cadáver para dar-lhe sepultamento cristão. Venham. Ajudem-me com isso”. Estavam a carregar o corpo quando surgiu o primeiro. Um ameríndio nu, com o corpo quase todo tomado pela lama. O rosto estava pintado de negro e o cabelo escorrido pela face mantinha ocultas as suas feições. Na boca, possuía um adorno nos lábios que lhe dava um aspecto repugnante. No


primeiro momento, permaneceu distante uns dez metros, im贸vel. Olhos no grupo.


Soltaram o corpo. “É um índio” – disse Miguel, assustado. “Tapuia ” – completou Cosme. “Enìní13” – disse Emanuel. “Pode ser um aimoré” – disse Álvito. O índio pôs-se a caminhar em direção a eles. Tem um dos braços suspenso, com a lança em riste. “Carrega logo essa merda, Cosme!” – disse Álvito aos berros. Miguel parecia petrificado. Emanuel preparado para usar sua lança. Cosme colocou o chumbo. São dois tiros. Tudo o que possuem. Soca a pólvora e põe a espoleta. O selvagem pára. Grita sons bárbaros. Está agora a pouco mais de quatro metros do grupo. O olhar fixo. De mais perto, pode-se ver que por baixo da lama preta há um rosto jovem. Notam que há sangue em suas mãos e ao redor da boca. Concluem imediatamente de quem é. Então do mesmo ponto da mata em que havia surgido o índio, aparece outro e depois mais um e depois mais outro. De repente já são muitos. Uns vinte, segundo a contagem de Miguel. Havia homens e mulheres, além daqueles cujo sexo não se pode identificar no primeiro olhar. Alguns tinham à mão uma espécie de machadinha, outros portavam lanças e ainda havia arcos e flechas. Não eram altos, nem muito fortes. Todos, incluindo as mulheres, possuíam adornos labiais. Grunhiam sons bárbaros em aparente excitação. Pareciam ter intenções assustadoras. Cosme empunhou a arma. Dedo no gatilho. Suas mãos tremem. O primeiro dos índios levantou uma das mãos. A algazarra selvagem findou-se. Houve silêncio em ambos os grupos. O líder dos selvagens caminha na direção de Miguel sob os olhares atentos de sua horda. Miguel tenta manter-se calmo e imóvel. Ficam cara a cara. O indígena põe-se a cheirá-lo. Abaixo do pescoço e dos braços. Sussurra palavras em língua bárbara. O português sua frio o seu medo. O selvagem vira-se para os seus e grita como bicho. Eles ficam em polvorosa agitação. Agora o índio berra

13

Inimigo em dialeto Iorubá.


para Miguel. Cosme atira. O chumbo entra pela face e então o índio tomba. Morto. Os outros selvagens assustam-se com o estampido e a fumaça. Quando esta se dissipa por completo eles podem ver seu líder caído. Berram e saltam sobre os seus pés. Miguel dá um passo para trás. É seguido pelos companheiros. Outro passo para trás. Disparam uma flecha. Certeira no olho de Álvito. “Meu olho! Malditos!”. Cosme atira novamente e a ninguém acerta. Álvito cai de joelhos em desespero. “Levanta-se Álvito, precisamos correr!” – gritou Miguel. Quando olha para a frente, vê os selvagens se aproximando. Vira-se e dispara a correr. Cosme e Emanuel fazem o mesmo. Os indígenas seguem caminhando, passos curtos e ligeiros, não correm. Formam três fileiras, os arqueiros nos flancos, machadinhas na frente e lanceiros atrás. Mas não estão para guerra, o negócio deles é caça. A horda dos tapuias alcança Álvito que ainda grita desesperado. Um índio atinge seu rosto com a machadinha. Miguel olha para trás e vê que parte dos selvagens parou sobre Álvito, mas que outra numerosa continua a persegui-lo. Busca força para aumentar a velocidade. Tropeça em algo no chão. Cai. Tenta se levantar, mas tomba novamente. Os índios agora estão muito próximos. Questão de segundos. Olha outra vez para trás e vê Álvito ser devorado ainda vivo. Arrancam-lhe as tripas com fulgor. Levam órgãos e sangue à boca e regozijam com gritos e dança. Emanuel vira-se e vê Miguel em apuros, volta para ajudar. Um jovem índio salta sobre ele. O negro se defende com um pontapé e depois lhe crava a lança no peito. Paralisado, Miguel vê os índios o alcançarem. Gritam como bichos. Olham como demônios. Estão excitados. Pegam-no pelas pernas e o arrastam pela relva. Ouve-se um tiro. Um selvagem cai. Outro tiro. Mais um morto. Então Miguel vê os quatro cavaleiros surgirem na colina. Os indígenas se dispersam e fogem em direção à mata. Um a um, os selvagens são alvejados. Apenas um consegue fugir, mas não por muito tempo. Clemente e seus homens haviam acabado de montar acampamento na virada daquele morro quando ouviram os disparos. Assim que dobraram a


colina avistaram a cena. Sem pestanejar, esporaram os animais. Bons de tiro, usaram cravinas e pistolas de dois tiros. Então o vaqueiro vê um índio em fuga e galopa em seu encalço. Não tinha mais tiros. Segura a cravina pelo cano. Solta uma das rédeas com confiança. Conhece bem seu cavalo. Arma golpe. Alcança o indígena. A pancada. Quebrou-lhe o crânio. Contém o galope e volta. Vê a moça índia. O tiro havia lhe pegado nas pernas. Ela se arrastava na ilusão de que fugiria. Clemente apeou. Foi em sua direção, cravina na mão. Bateu-lhe até que morresse. Os índios eram nômades, não por opção, já que haviam sido expulsos de suas terras e desde então vagavam pelo sertão em busca de lugares próprios à vida silvícola. Usualmente procuravam ficarem próximos aos leitos dos riachos, onde poderiam pescar e se banharem, algo que, diferentemente dos brancos, faziam constantemente. É também próximo às águas que costumam circular os mamíferos caçáveis. Aquele riacho, naquele ponto, estava infestado de piranhas e aquelas matas não lhe davam madeira propícia à feitura de canoas, talvez jangadas, mas essas não seriam boas para a correnteza daquela época do ano. Sendo assim, além das dificuldades para a pesca, tinham que disputar as caças com as onças e os lobos. Por tudo isso é que quando avistaram o garoto José, em verdade o que viram foi o jantar. Não se alimentavam de parentes, apenas dos inimigos, como eram os brancos, os negros e outras etnias ameríndias. Seus antepassados, depois que foram expulsos do litoral, há mais de um século, espalharam-se pelos sertões, entre os vales do Jequitinhonha e do rio Doce. Naquele tempo, em virtude do contínuo avanço dos brancos pelo interior da colônia, a grande aldeia aimoré encontrava-se reduzida a grupos familiares dispersos, errantes, ferozes e confusos. Quando o tapuia avistou José, fez silêncio. Curvou-se como uma fera e rastejou entre o mato. O garoto estava de costas, absorto em seus sonhos de ouro e em belezas silvestres. Os movimentos do índio eram cuidadosos, mas lépidos. Agarrou as pernas do negrinho e jogou-o ao chão, matou-lhe com uma pancada na testa. Abriu-lhe o ventre com a machadinha e gritou pelos irmãos. Não demorou para surgirem todos da mata. Rodearam o cadáver, bastante emocionados. Começaram a limpar a presa, arrancando-lhe as tripas e os órgãos. O caçador que o abatera teve o privilégio de lhe beber o sangue. Consumia assim as virtudes da vida que tirara. Foi quando ouviram os gritos.


Deixaram a refeição e embrenharam-se na mata. Assim que viram Miguel e os outros, os selvagens ficaram ouriçados. A garota índia estava grávida, não tinha como saber quem era o pai ou mesmo ter ciência da gravidez. Entre os nômades, as jovens deveriam ser defloradas assim que sangrassem pela primeira vez. A partir de então, se entregavam aos ciclos anuais de gravidez e acasalamento. Seria seu quarto filho. Os demais rebentos, ainda crianças, encontravam-se nas cavernas com os idosos. Não sabia quem eram os pais, porque fazia sexo com todos do grupo. Nunca havia comido carne humana antes. Conhecia as lendas dos grandes banquetes, referências de um outro tempo, das grandes aldeias e guerras eternas. Histórias de um passado de glória por demais distante. Foi com avidez que se atirou às carnes de Álvito. Quando surgiram os vaqueiros, levou um tiro na coxa. Tentou fugir. Sentia arder o corpo e garganta queimar seca. Como qualquer uma, encheu-se de pavor ao ver Clemente se aproximar, golpe armado. Como uma mãe qualquer, antes de morrer, lembrou-se das crias. “Esses filhos da puta não comem mais ninguém” - disse Clemente, ajudando Miguel a se levantar, que mal conseguia manter-se em pé, trêmulo e estupefato pelo horror que vivera. Os índios como ratos, avançando sobre seu corpo, famintos e incontroláveis. Pobre Álvito... Morrera como mais temia, lamentou. Sempre que ouvia historia sobre os antropófagos selvagens, imaginava grandes fogueiras, rituais, mas daquela forma era ainda mais chocante. Vomitou. Refeito, agradeceu sua vida aos vaqueiros e se apresentou como Miguel Aveiro. Usou o nome de sua cidade natal para formar a sua nova identidade. Disse ser um guarda-livros português arruinado, que tencionava tentar a sorte nas minas. “E os escravos, são seus?”. – Perguntou Clemente. “Não são escravos”. “Como assim?”. “Quer dizer... Eram, mas não são mais. Os recebi de herança e os libertei, como cumprimento de uma promessa”.– novas mentiras, para uma nova vida, pensou o ex-frade. “Vossa mercê sabe que nas minas, um branco sem escravos é um homem sem poder de ação? Como pretende minerar sem negros?”.


“Tenho um acordo com Cosme e Emanuel. Trabalharão nas minas em troca de soldo...”. O vaqueiro sorriu como se lamentasse por tanta ingenuidade ou tolice. Miguel providenciou que José e Álvito tivessem enterros cristãos, com direito a orações por misericórdia, à encomenda de suas almas e a cruzes de pau em suas sepulturas. Deixou os mortos índios onde tombaram, fosse para que seus eventuais parentes o buscassem e lhe dessem o fim conveniente, fosse para que os urubus, que já os rodeavam, se saciassem. Clemente contou que vinham à frente de um grande comboio. Trabalhavam como batedores, com a missão de garantir que o trajeto estivesse livre de gentios ferozes ou da fiscalização. Encontravam–se na porção ocidental do vale do rio Jequitinhonha - onde este curso de água se encontra com os afluentes dos rios Verde Grande e Verde Pequeno - e próximos ao arraial de Morrinhos do São Francisco, também conhecido por arraial do Matias Cardoso14, em referência ao sertanista fundador, um paulista, ex-componente da bandeira de Fernão Dias e companheiro de João Amaro na guerra contra os selvagens. A cerca de uma légua de onde se depararam com os aimorés, em um trecho onde a via era plana e larga, encontraram a grande comitiva. Miguel impressionou-se com suas proporções. Perguntou-se como era possível deslocar-se por aqueles inóspitos caminhos em tão grande número. Calculou cerca de quarenta escravos - entre homens, mulheres e crianças - que carregavam baús, cestas e trouxas de pano. Havia também umas poucas mulas de carga e uma dezena de cavaleiros armados. A carga era variada, desde manufaturas inglesas de toda ordem – armas, ferramentas, roupas, utensílios de ferro, etc. – a peixe seco, santos de pau, tabaco, pólvora, cachaça e cavalos andadores. “Se os mineiros não vão ao mar, o porto vem até os mineiros, meu caro”. – disse Clemente a Miguel. “E não é perigoso andar por estas vias com tantos artigos proibidos?”. “Não há caminho que não se possa abrir com cravinas” – respondeu o vaqueiro sorrindo. “Imagine o senhor que um negro nas minas pode ser vendido por seis vezes seu preço no mercado de Salvador. Um desses fortes como o que te acompanha pode valer mais de trezentas oitavas de ouro”. 14

Atual cidade de mesmo nome MG.


Com o dinheiro que lhe restava, Miguel conseguiu que Clemente lhe vendesse três cavalos, além de uma cravina de dois tiros, munição, três chapéus de couro e novas roupas - uma casaca de baeta inglesa para ele próprio, calças e camisas de pano ordinário para si e os outros. Comprou também dois pares de botas de couro. Calçou um deles e presenteou Emanuel com o outro, lhe dando assim, além da condição, o status de livre. Puderam também comer farinha de mandioca e carne seca. Alimentados e refeitos subiram às novas cavalgaduras e retomaram o caminho. Aqueles três seres tão díspares, em origem e status social, haviam passado juntos por diversos momentos de estresse e intempéries agudas. Formara-se entre eles confiança e cumplicidade próprias dos sobreviventes. A desesperança ficara para trás e o otimismo de Miguel não era mais uma muleta, sentia-se mesmo recompensado pela fé, como talvez nunca houvesse sentido em plenitude. Considerava que qualquer coisa que viesse a viver nas minas não poderia ser tão terrível quanto o que havia visto naquele sertão. Depois de dois dias de viagem, chegaram a Matias Cardoso, onde duas dezenas de cabeça de gado foram agregadas ao comboio. Estavam, enfim, às margens do Rio São Francisco: tão caudaloso quanto Miguel imaginava pelos mapas. Cosme e Emanuel logo se entrosaram com os demais vaqueiros da tropa, que eram também, em sua maioria, mulatos ou pretos forros. Deles, apenas Clemente tinha clara ascendência européia e não por acaso, agia como o chefe. Era ao seu lado que Miguel cavalgava quase que durante todo o tempo. Aproveitava a oportunidade para colher mais informações sobre o território das minas. Já sabia que toda a área encontrava-se dividida em três regiões ou distritos. A chamada região das Minas Gerais era a que se encontrava mais densamente povoada àquela altura, e ainda que os limites não fossem tão claros, sabia-se que se estendia das margens do rio Piranga às nascentes do rio das Velhas, englobando ainda afluentes do Paraopeba e do Piracicaba. Diversos povoados pipocaram por lá nos últimos anos, os centrais eram o do Ouro Preto15 e do Ribeirão do Carmo. A região do rio das Mortes era a primeira do antigo caminho dos bandeirantes, localizada às fraldas da serra da Mantiqueira. Os seus dois

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Atual cidade de mesmo nome MG.


arraiais mais importantes eram o da Ponta do Morro16 e o de Nossa Senhora do Pilar17. Já a região do rio das velhas, que era por onde eles chegariam às minas propriamente ditas, situava-se entre o rio Paraopeba e a cordilheira do Espinhaço e abrangia toda a bacia do rio que lhe dava o nome. Seus povoados maiores eram o de Sabará18, Caeté19 e Roças Novas20. Seguiram para o sul, margeando o grande rio. Por todo o caminho havia extensas fazendas de gado e currais a perder de vista. Clemente disse que algumas das maiores pertenciam ao seu patrão, um português chamado Manuel Nunes Viana. Contou a Miguel sobre os anos em que o acompanhou em inúmeras travessias pelo sertão. Anos venturosos, definiu. Segundo ele, Nunes Viana era um homem predestinado. De humilde mascate, que foi como chegou às minas, a senhor de muitas sesmarias e gado. Usou do caminho proibido entre as minas e a Bahia para enriquecer-se com o contrabando. Mas mais que pela própria capacidade de acumular riquezas, o vaqueiro lhe tinha admiração, principalmente, pelo que pode ser chamado de capacidade de liderança. Lembrava-se que uma vez quando atravessavam um grande lote de escravos, uma febre estranha dizimou quase todas as peças e cavaleiros. Foram os seus gritos e sua força de comando que mantiveram vivos a ele próprio e ao restante da comitiva. Recordava-se, especialmente, de como de cima do cavalo o patrão era capaz de motivar os moribundos e dar esperanças aos desenganados. Nunes Viana radicou-se nas minas em um lugar chamado Caeté, onde, então, possuía ricas datas de ouro e, segundo seu fiel empregado, uma centena de escravos; mas não abandonou por completo o negócio do contrabando. A maioria daquelas mercadorias lhe pertencia. Percorreram cinqüenta e quatro léguas em duas semanas e chegaram à barra do rio das Velhas em fins de outubro. Do alto do penhasco, Miguel avistou o leito das águas e o mar de montanhas. “Agora precisamos redobrar a atenção” -disse-lhe Clemente. “Estamos entrando na jurisdição do tenente-general Manoel de Borba Gato”. “Borba Gato?” – perguntou Miguel com atiçada curiosidade. 16

Atual cidade de Tiradentes MG. Atual cidade de São João Del Rey. 18 Atual cidade de mesmo nome MG. 19 Idem. 20 Atual distrito de mesmo nome de Caeté MG. 17


“É a maior autoridade do lugar, senhor de todos os mandos e superintende geral das minas. Tem a atribuição, dada pelo rei, de fazer cumprir as leis do reino. É sua gente que cobra os quintos do ouro, patrulha os caminhos e tem a obrigação de combater o contrabando”. “E esse Borba Gato tem aparato para executar, a contento, tantas tarefas?”. “O Borba é um homem rico, talvez um dos mais ricos das minas. Possui uma enorme turba indígena escrava, um sem-número de capatazes bem armados e, segundo ouvi dizer, é um sujeito de ambições extremas. Pertence à estirpe dos velhos bandeirantes, genro do afamado governador das esmeraldas, Fernão Dias. É, sem embargo, homem de governo e de guerra. Porém te posso dizer que se o trabalho dele é nos encontrar, o meu é exatamente fugir desta contenda”. Miguel achou graça da autoconfiança do vaqueiro, mas o compreendeu como o tipo próprio para viver naquelas plagas, onde os desafios lhe pareciam que seriam diários e o medo era um conselheiro que não devia ser muito ouvido. Para escapar aos olhos do Borba, a comitiva percorreu uma sinuosa trilha desenhada entre penhascos, onde perderam um cavalo e um escravo de carga, ambos por despencarem de formidável altura. “Estamos há tantos dias juntos que me dou o direito de lhe dar uma dica sobre as minas” – falou Clemente, dirigindo-se a Miguel. “Ao atravessar aquela montanha estarás nas Minas Gerais. Então, bastará que sigas a sudeste e alcançará o arraial de ribeirão do Carmo, em pouco mais de uma semana. Mas não creio que este seja o seu melhor destino”. “E porque vossa mercê diz isso?”. “Porque pelo que pude saber, tu não tens muitas experiências com minas e também não possuis um bom número de escravos. Se quiserdes embrenharse pela aventura do ouro, seria bom que evitasse o Carmo ou Ouro Preto, onde as melhores datas já possuem donos e todos eles são senhores de muitos escravos. Existem outros arraiais, que se formaram em descobertos recentes, onde, com dois homens apenas, tu poderias conseguir uma data que lhe dê importante rendimento. Acho que no ribeirão do Carmo as possibilidades estão um tanto saturadas”. “E por acaso conheces um desses lugares que ainda não esteja?”.


“Há um povoado para onde irá parte de nossa carga. Ali as jazidas foram recentemente descobertas e correm boatos de que ainda há por lá muitas datas a serem repartidas”. “E onde fica este lugar?”. “A meio caminho do Ribeirão do Carmo. Tem sido chamado de arraial do Ribeirão do Santa Bárbara21. Conheço por lá um francês, que encomendou parte desta carga e que acredito que poderia te arrumar um lugar para se instalar num primeiro momento”. Os argumentos do vaqueiro pareceram a Miguel suficientemente pertinentes e lógicos. Considerou também que se evitasse o Carmo, talvez mais improvável tornasse a possibilidade de ser encontrado pela Ordem, sendo assim aquela mudança de rumos só poderia lhe ser benéfica. Não que acreditasse que o frei Inácio colocaria empenho para encontrá-lo, mas se o objetivo era mesmo iniciar uma nova vida, nada melhor que se manter ainda mais distante da pregressa. Decidiu-se. Tomaria o rumo do Santa Bárbara. Quando estavam próximos ao Caeté, a comitiva dividiu-se. Uma parte dirigir-se-ia àquele arraial, mais precisamente à fazenda de Manuel Nunes Viana e teria de fazê-lo com a máxima discrição para que não despertasse a atenção dos homens do Borba. A outra parte da comitiva seguiria para o ribeirão do Santa Bárbara e depois para o arraial do Catas Altas, onde as mercadorias já tinham compradores certos. Clemente providenciou uma carta de apresentação para que Miguel fosse recebido por Jacques, o francês. “Desejo-lhe sorte, português” – despediu-se Clemente. “Desejo-te o mesmo, meu caro, e mais uma vez agradeço por ter me salvo a vida” – disse Miguel. Apertaram as mãos e partiram. Cada qual para o seu destino. Chegaram ao sitio do francês quatro dias depois. Era fim de tarde, fazia frio e chovia. Estavam em cinco cavaleiros; Miguel, Cosme, Emanuel e dois vaqueiros. Conduziam seis cabeças de gado, oito escravos, cada qual levando um pesado baú repleto de mercadorias. Deslocavam-se lentamente pela trilha no meio da mata, já que estavam todos exaustos, tanto os livres quanto os cativos. De repente ouvem o grito. Era uma voz masculina e parecia jovem. “Quem vem? É melhor pararem, estão na minha alça de mira!”.

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Atual cidade de mesmo nome MG.


“Calma rapaz... trazemos as encomendas para o teu pai. Somos da parte do Nunes Viana” – disse o vaqueiro. Então do meio do mato, saiu o garoto. Cravina na mão, aparentava não ter ainda quinze anos. “Onde está o francês?” – quis saber o vaqueiro. O garoto os guiou até a chácara. Num clarão no meio na mata, o francês fizera sua morada e sua empresa. A casa de pau a pique tinha um pouco mais de sessenta metros quadrados. Tinha como cobertura um telhado de sapé, bem armado e vistoso, por onde a chaminé de barro deixava escapar a fumaça de um cozido que cheirava bem. Nos fundos do terreno podia-se avistar o chiqueiro com alguns porcos, um pequeno curral com uma vaca velha e um estábulo acanhado. À frente, roça de milho, de feijão, e uma bela horta. O francês está sentado em um toco à porta da casa, cigarro aceso na mão e pés descalços. Parecia alegre. Ao seu lado está uma menina de aparentes doze anos, Miguel teve a impressão de que eram pai e filha, ele contando anedotas, e ela se divertindo com as tais. Quando viu a comitiva chegar, Jacques, com um aceno de cabeça, mandou a garota entrar. Calçou as botas e pôs-se de pé. Devia ter por volta de quarenta anos, era magro, de pele alva, porém bronzeada, e cabelos loiros, porém crespos. Fez sinal para que os homens apeassem. Logo chegaram dois outros jovens armados, aparentemente seus filhos, e dois negros fortes. Ladearam o francês. O vaqueiro a quem Clemente havia confiado a chefia da missão se aproximou. “Aqui estão suas encomendas, Jacques francês. Não é esse o seu nome?”. “Oui... ils disent que je suis, mais dans la verité22 meu nome é Jacques Baptist” – Num aceno, cumprimentou também a Miguel. – “O que tenho a dizerr a vossas merrcês não serrão boas novas. Compris?23 ”. Mandou que instalassem os cavalos no estábulo, os bois no curral e que mantivessem os escravos sob correntes. Chamou Miguel e o vaqueiro chefe para falar-lhes. Contou-lhes o imprevisto. 22 23

“Sim... eles dizem que sou, mas na verdade...”. (trad. do Francês) “Entende?”. (trad. do Francês)


“Lamento muito que o negrrinho do correio não os tenha alcançado a tempo de cancelarr a encomenda. Mas eu não posso mais ficarr com isso tudo. Entende? Por favorr, explique isso ao Nunes Viana”. Havia feito a encomenda, há cerca de cinqüenta dias, por confiar que no inicio de dezembro haveria, no arraial, festividades pelo dia de Santa Bárbara. “Mas foi tudo cancelado pelo velho bandeirrante e eu não tenho mais como honrrarr o pagamento que havia acertado antes” – disse, balançando a cabeça, deveras encabulado. O sotaque francês não era acentuado, mas facilmente notável sempre que pronunciava palavras com erre. “E o que faremos? Não podemos levar tudo de volta” – disse-lhe o vaqueiro. “Posso ficarr com a metade do que eu havia encomendado. Uma vaca, dois bois, dez varas24 de tabaco, cinco barris de cachaça e cinco de vinho e dez caixotes de pólvora, já quanto à bugiaria25 francesa, eu preciso avaliar melhor o que trouxeste, para ver o que terá saída por aqui. Infelizmente, apesar de muito precisar de peças, só poderei pagar por um escravo, de preferência que já seja ladino26, um bom cavalo andador também me interessa”. Não tendo como resolver a questão de outra forma, o vaqueiro concordou em levar de volta parte das mercadorias e os escravos enjeitados. Resolveram que montariam acampamento no sitio do francês para pernoite e partiriam logo cedo, pois tinham pressa de chegar a Catas Altas e quem sabe por lá conseguir vender os artigos que o francês se negara a ficar. Problema contornado, Miguel se apresentou. “Acabo de chegar às minas e o Clemente achou que vossa mercê poderia ajudar-me a me instalar e aos meus parceiros neste arraial”. O francês olhou Miguel de cima a baixo , como se o analisasse. “E chegou quando ao país?”. “Aportei nesta colônia há pouco mais de seis meses, e parece que aqui já vivi mais que em toda a minha vida pregressa. Compris?”. O francês solta um meio sorriso e responde: “Há tempos venho negociando com Nunes Viana por intermédio do Clemente, aqui na carta ele diz que vossa mercê é um bom homem. Não tenho motivos para duvidar da palavra dele. Poderá ocupar a cabana velha, mas os 24

Cinco palmos ou 1,10m. (UN. de medida) Artigos de luxo ou de secundaria utilidade; bugigangas; quinquilharia. 26 Escravo negro fluente em português 25


negrros, sejam livres ou não, só poderão ficar na senzala, na companhia dos meus escravos”. “Que assim seja” – concordou Miguel. Então Jacques mandou que um de seus escravos dê água e ração para os negros acorrentados e convidou Miguel e o chefe dos vaqueiros para entrar. No interior da casa a mesa está posta. Vê se claramente que o jantar foi preparado e servido por mãos femininas, mas não se vê sinal de mulher para além da disposição cuidadosa dos utensílios da cozinha e o cheiro agradável do cozido. Miguel não vê uma refeição decente há mais de quarenta dias, desde que deixara o engenho Nogueira. Jacques mandou que o outro dos seus escravos servisse o jantar e cachaça para os demais homens, na área externa da chácara. À mesa, foi religioso e hospitaleiro, fez uma prece em silêncio e abriu a garrafa de vinho. Havia porco cozido com mandioca, pão de milho e verduras verdes. Excelente, segundo o paladar e a fome de Miguel.


09. As Minas ditas gerais Durante toda a noite fez frio e choveu. O que o francês chamava de cabana velha era uma tosca e pequena construção de quatro esteios e barro, coberta por capim. O chão era de terra batida, onde havia um monte de palha que a Miguel serviu de cama. Quando acordou o sol já estava a pino. Há tempos, desde Coimbra, não dormia por tanto tempo. Levantou-se com fome e animado. A cabana ficava a uns vinte minutos de caminhada da chácara. No caminho, ficou deslumbrado com a exuberância da mata, salpicada de flores silvestres em tons amarelo, roxo e vermelho. A sudoeste, a imponente serra apontava no horizonte, com formas que lhe lembravam um gigante adormecido. Viu que havia um córrego, encoberto pela mata, que cortava toda a extensão do sitio, imaginou que talvez fosse desaguar no tal ribeiro de Santa Bárbara. Na chácara, o trabalho começara cedo e em célere ritmo. Logo ao alvorecer, pelos dentes e pelos músculos, Jacques escolheu o escravo com o qual ficaria. A bugiaria, escolheu pelo senso de demanda que tinha: alguns vestidos, chapéus e leques femininos - os mineiros gostavam de presentear suas mulatas com artigos caros – calções, botas e meias masculinas, picaretas e outras coisas de notória utilidade por ali. No total, desembolsou cerca de um conto de réis, pagos em ouro em pó que, logo Miguel saberia, era a única moeda que circulava por ali. Quando Miguel chegou à chácara, haviam acabado de matar um dos bois que o francês comprara. A vaca velha já havia sido morta, limpa e cortada. Àquela altura começava a ser salgada por um dos escravos. Outro cativo, em companhia de Emanuel, colhia o milho. O filho mais moço alimentava as galinhas e os porcos, enquanto o próprio francês junto a outro filho se encarregava de abater os animais e iniciar o corte. Miguel achou curioso vê-lo sem camisa e sujo de sangue, já que havia percebido que, no Brasil, poucos europeus se prestam a trabalhos manuais ou braçais. Por comodidade ou arrogância, usavam sempre os escravos, mesmo naqueles serviços mais leves. Cosme estava por perto, mas Miguel, à primeira vista, não soube se ajudando no trabalho ou se estava ali somente a observar e palpitar. A fumaça do fogão já ia a toda. Quando viu Miguel, o francês largou o que fazia e foi lhe falar.


Cumprimentaram-se. Jacques entrou em casa e pediu que Miguel esperasse por um momento à porta. Deixou-a entreaberta. Foi até a cozinha e mandou que as mulheres se retirassem. Voltou e convidou Miguel para entrar. Ofereceu-lhe uma cadeira à mesa, onde estava colocado o seu desjejum. Queijo, leite, ovos, pães e mel silvestre. “Experimente o mel destes campos, garanto que em nenhum lugar, nem mesmo na Europa, provou algo tão doce e delicioso”. A doçura daquele mel realmente o impressionou. Terminado seu desjejum, ouviu uma proposta do francês. Inicialmente, Jacques justificou que havia tomado a liberdade de usar Emanuel e Cosme na lida, pois imaginara que Miguel gostaria de abater, com o trabalho deles, a quantia que lhe passara a dever pela hospedagem e pela alimentação. Apesar de não serem mais seus escravos, ainda permaneciam ligados ao português, já que além de não possuírem, em mãos, a carta de alforria, que comprovaria a legitimidade de suas liberdades, não pretendiam abandoná-lo, ao contrário, demonstraram estar dispostos a servi-lo e serem-lhe fiéis, ao aceitarem, sem pestanejo, as ordens do francês. Sabiam que indiretamente trabalhavam por Miguel. A resolução do francês foi sem duvida providencial a Miguel, já que àquela altura, ele contava com apenas um último cruzado e sabia que necessitaria fazer dinheiro, e não dele dispor, se pretendia mesmo minerar. “Desse modo, vossa mercê pode ficar instalado por aqui o tempo necessário para encontrar seu próprio caminho nas minas”. Miguel depois de ouvir a proposta do francês, apresentou a sua. Argumentou que o trabalho de Cosme e Emanuel renderia mais à chácara que o valor de suas despesas diárias e propôs que ao final da semana, aferidos os lucros do período, lhe coubesse a décima parte como pagamento pela utilização daqueles que teoricamente eram seus empregados. Depois de inicialmente relutar, Jacques acabou por concordar em remunerar a Miguel, mas acordaram que o soldo corresponderia à décima quinta parte dos ganhos semanais. Selaram o pacto como cavaleiros, com o empenho da palavra. No dia seguinte, o francês preparou o carro. Não era fácil se locomover por aquelas paragens em veículos de roda, mas como, até há dois dias, ele possuía apenas dois escravos, foi obrigado a desenvolver presteza para usar a carroça, que, segundo explicou a Miguel, deve ser curta e de rodas grandes e o cavalo tem que ser bom marchador e de preferência jovem. Contou que ele


próprio construíra a carroça com o auxilio dos três filhos homens. Carregou o veículo com a carne salgada, o milho, alguns barrilotes de vinho e cachaça. Armou sua pistola e instruiu Miguel que fizesse o mesmo. “Não é seguro andar por aqui sem uma arma, seja pistola, cravina ou espada”. - Tomaram o caminho do arraial antes das seis da manhã. Dois escravos os acompanharam, cada qual levando uma carga de cerca de trinta quilos, entre bugiarias, tabaco e munição. O povoado não ficava mais que uma légua distante da chácara, mas o caminho era de tal forma precário que gastaram quase seis horas para chegarem. O dito arraial era, na verdade, uma via única, aberta entre o morro e a mata ciliar, salpicada de pelo menos duas dezenas de casebres de barro, cobertos por telhados de caniçada27, feitos das folhas de coqueiros muito comuns por ali. Algumas, apesar de precárias, eram amplas, sugerindo a Miguel que fossem moradas coletivas. Em outras, funcionavam modestíssimas agências ou oficinas de uma porta, onde de tudo um pouco se vendia ou fazia, nas palavras do francês. Segundo ele, a rua terminava em um barranco que dava acesso à orla do ribeiro. Nas encostas do morro vêem-se algumas poucas construções mais bem apanhadas, erguidas sobre toras de madeira. No sopé, Miguel percebeu o início da construção do que parecia vir a ser uma capela. “Chamamos ali de outeiro dos paulistas”, disse o francês. “É onde vivem os aristocratas de pé no chão”, continuou, sem disfarçar o despeito. Miguel esboçou um sorriso, ainda que sem entender a anedota. Por onde passaram, viram poucas pessoas, todas aquelas casas pareciam abandonadas e aquele um lugarejo fantasma. “Não se deixe enganar, por aqui tudo acontece rápido, da noite para o dia surgem duas, três novas cabanas, isso sem falar das pessoas que acampam nas matas, mais próximas ao trabalho”. No final da rua, o caminho torna-se uma trilha barranco abaixo e há um largo, onde o francês parou o veículo e expôs suas mercadorias.

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Armação feita de cana, usada para telhados, cercas e paredes.



“Se é mesmo tão movimentado quanto diz, onde estão todos?” – perguntou Miguel. “No rio, trabalhando. Logo aparecem por aqui. Quem me viu chegar, levará a noticia. Aqui nas minas, as notícias correm como água morro abaixo e fogo morro acima”. E realmente não demorou a surgirem as pessoas. Brancos, mestiços, escravos, quase nenhuma mulher - apenas umas poucas negras e mulatas, algumas delas vestidas com certo luxo. Cachaça, tabaco, pólvora e chumbo eram os artigos mais procurados. Tudo negociado com ouro em pó. Uma mulata chegou a pagar cem oitavas por um vestido francês, um português comprou todo o carregamento de carne e um outro ofereceu 200 oitavas pela carroça, que Jacques polidamente recusou, mas disse que por mais cem poderia começar a pensar. Depois de tudo vendido, muitos ainda fizeram encomendas ao francês, que tudo anotou em seu livro: azeite, farinha de trigo, mais cachaça, mais tabaco... pareciam precisar ou querer de tudo por ali. Multidão dispersa, logo tudo estava deserto novamente. “Venha, quero que vossa mercê veja algo” – disse o francês a Miguel. Desceram a encosta do barranco e chegaram à praia do ribeirão, onde se encontrava uma verdadeira multidão. Por onde olhava, o que Miguel via era gente aglomerada. Os negros metidos no leito, onde a água lhes dava nos joelhos, encurvados para frente a batear freneticamente. Os feitores, quase todos mulatos, armados de suas pistolas e chicotes, fiscalizam os escravos, enquanto dos brancos, que ficam à sombra, vêm as ordens e as decisões. Além do som das inúmeras picaretas a cavacar o cascalho, ouvia-se dos feitores gritos do tipo: “Bateia nego desgraçado!” “Se eu pegar um ladrão, tá morto!”. “Essas são as ditas minas, Miguel. As ditas gerais”. À noite, na cabana, à luz da lamparina, Miguel se pôs a fazer cálculos. Estava deveras impressionado com a quantidade de ouro que havia visto circular durante somente em um dia. Como se apresentara como guarda-livros, talvez o francês se abrisse a respeito das contas e pudesse ter uma dimensão exata de quanto o serviço de Cosme e Emanuel poderia render-lhe. Entretanto, Jacques procurava se mostrar pouco. Conversava muito, contava piadas, mas quase nada dizia de si ou de seus lucros, Miguel nem sabia ao certo quantas mulheres viviam na chácara, havia visto a garota quando chegara, que só poderia ser filha, mas de fato há uma esposa, isso tinha certeza, a ela já havia


se referido o francês mais de uma vez. Tem três filhos homens, todos trabalhadores e de pouca conversa, andam sempre armados, assim como o pai. Agora Miguel também não se separava de sua arma de fogo, esperava nunca ter que usá-la pois acreditava não ser capaz de manuseá-la com presteza. “Bom, mas o francês deu-me sua palavra, pensou Miguel”. A décima quinta parte não deverá ser pouca coisa”, disse a si mesmo. Apagou a lamparina e adormeceu sobre a palha. Na senzala, as noites são de escuridão total. O francês não permite que façam fogo, nem que bebam cachaça, exceto aos domingos. Mas não é um senhor cruel, seus escravos são cativos, nascidos sob a marca da escravidão, conhecem o mecanismo social de que são peças e reconhecem a relativa benevolência de Jacques: ali nunca ninguém fora açoitado, ainda que não faltassem as ameaças. Na hora do descanso, assim que o sol se põe e lhes é servida a ração noturna, eles se dividiam. Emanuel e Cosme de um lado e os outros no extremo oposto. O clima por ali não era nada amistoso. Os demais viam a Cosme e Emanuel com desconfiança. Àquele por ser claramente um cativo doméstico, gente vista por eles como esnobe e traiçoeira, Emanuel, por sua vez, se não bastasse vestir botas, algo raro a negros, especialmente aos recém apresados, tinha com eles diferenças de natureza ancestral. Vinha do povo nagô, habitante da África Ocidental que eram inimigos mortais dos Jejes, com quem disputavam a hegemonia no Sudão. Era exatamente desta etnia que descendiam aqueles cativos. O próprio Emanuel já havia trocado muitos deles por fumo com os mercadores europeus, ironicamente pelo mesmo artigo havia sido trocado. Não era incomum esta velha inimizade sobreviver no cativeiro, mesmo porque jejes e nagôs se consideram tão estrangeiros quanto os brancos ou os bantos, etnia dos negros trazidos do Congo, da qual Cosme tinha ascendência. Para os brancos, todos os pretos eram iguais, apesar de normalmente dividi-los por oficio - preferindo bantos para boiadeiros e domésticos, nagôs para minas e jejes para agricultura – e procuravam não reunir parentes ou indivíduos de mesma tribo para evitar um possível senso de grupo ou identidade. Durante uma noite, Cosme tentava ensinar mais um pouco de português a Emanuel, quando notou uma movimentação na senzala. A porta foi aberta.


Arrastou-se no chão até onde havia uma fresta na taipa28. A luz da lua lhe iluminou a cena. Era um dos filhos do francês, portava uma picareta e um candeeiro, às suas costas pendia a cravina. Viera buscar um dos escravos. Sumiram na escuridão. “O q’ haveu?”. “Não diga haveu diga houve... O que houve...”. Disse a Emanuel. “Não houve nada... durma”. Naquela manhã, pouco antes do almoço, Cosme e Emanuel, em conversa com Miguel, acertaram as bases de um acordo. Receberiam o equivalente a um terço daquilo que Miguel recebesse pelo trabalho deles na chácara. O mulato, conhecedor das relações usuais entre brancos e negros, sabia que aquele acordo era mais uma demonstração do caráter singular do português, mas sabia também que como amanuense experiente que era, poderia exercer funções mais rentáveis que aquela. “Pelo que observei no arraial, poderás encontrar serviços mais próprios às suas habilidades, mas confesso que no momento preciso de ti. Preciso de ambos”. – disse Miguel. Cosme reafirmou sua fidelidade a Miguel e Emanuel fez o mesmo, ainda que em parcas palavras. O mulato aproveitou para contar-lhe sobre o que havia visto na noite anterior. Então, o português comentou sobre seu receio a respeito das contas. “Em verdade, não tenho como me certificar dos rendimentos da chácara se o francês não os me revelar por própria vontade, mas não quero dizer com isso que estou colocando em duvida sua justeza, mas seria bom que eu soubesse exatamente o que se produz aqui e quanto se ganha”. “Devem minerar aqui em algum lugar”. – especulou Cosme. No decorrer do dia, vendo todos, inclusive o próprio francês, se entregarem ao trabalho, Miguel sentiu-se no dever de também fazer alguma coisa, então Jacques disse-lhe para cortar lenha para o jantar. Pela primeira vez, desde que amputara a perna de Pocabosta, empunhou um machado, com pouquíssimo jeito, é verdade, mas cumpriu sua tarefa, ainda que no triplo de tempo que alguém com prática cumpriria. “Sabe, monsieur... vossa mercê desdisse um ditado que meu pai sempre repetia... se queres ver um português desaparecer, basta que lhe mostre enxada ou picareta”. Sorriu jocosamente e continuou: “Os portugueses que aqui chegam, mesmo que fossem camponeses ou qualquer outro braçal em 28

Parede de barro e madeira; pau-a-pique.


sua terra, na maioria das vezes, acham coisa humilhante trabalhar com as mãos e o pior é que os brasileiros, basta que tenham um pouquinho de condição para que os imitem neste orgulho...”. Riu novamente. Miguel também achou graça, mas logo viu a fisionomia do francês mudar subitamente. O ar bem humorado deu lugar à expressão dura. Levou a mão à pistola. Então, Miguel vira-se e vê que quatro cavaleiros se aproximavam. Os filhos do francês logo surgiram com suas cravinas à mão. Os escravos apenas observavam tudo de longe. Miguel sentiu a tensão no ambiente. Para seu próprio espanto, levou a mão à pistola que portava na cinta, repetindo o gesto de Jacques. Este deu dois passos à frente. Apertava a ponta direita do bigode com os dedos. Os cavaleiros chegaram. O primeiro saltou de sua montaria e veio ao encontro do francês. Era um mestiço de índio e branco, vestia calção de lã e gibão barato. Tinha os pés descalços, uma fita de couro amarrada à testa, para que seus cabelos lisos, pretos e brilhantes não lhe escorressem sobre os olhos. Pareceu a Miguel ter uns vinte anos. Facão de um lado da cinta e pistola do outro. “Auê29 , Jacques Mair30” . “Auê, Geraldo Cauã”. “Soube que um grande carregamento chegou para vossa mercê, nos últimos dias”. “Coisa pouca, uns bois e couro, apenas”. “Não é o que andam dizendo por aí. Soube de coisas francesas, pólvora... Será que se a gente der uma busca na tua casa, a gente não vai encontrar nada?”. “Aonde quer chegar, Cauã?”. “Vossa mercê sabe. É crime portar ou vender esse tipo de mercadoria sem as guias dos caminhos livres, penso que não quer problemas deste tipo”. Então o francês chamou por dois escravos, virou-se e foi até a dispensa da chácara. Enquanto isso, Cauã não tirou os olhos de Miguel. Jacques voltou com um caixote de pólvora, um dos escravos trouxe um barrilote de cachaça e um tanto de fumo e o outro trouxe couro e chumbo. Cauã mandou que os homens que o acompanhavam pegassem as mercadorias e em seguida montou o cavalo. Antes de partir, pergunta: “E o emboaba, quem é?”. 29 30

Saudação Tupi. Como eram chamados os franceses em Tupi.


“Meu novo sócio, Miguel Aveiro. Acabou de chegar do reino”. “Então é outro comerciante?”. “Dans la verité, é um guarda livros, mas poderia ser professor, foi letrado nas melhores escolas de Portugal”. Geraldo Cauã cuspiu no chão e saiu num galope. “O que significa emboaba?”. “Somos todos nós, Miguel, aqueles que não são paulistas, sejam portugueses, baianos, cariocas ou franceses. Nos consideram invasores, usurpadores da riqueza alheia. Este mestiço é o filho bugre do descobridor destas minas”. Era comum entre os mamelucos serem batizados com nomes cristãos mesclados a sobrenomes tupis. Cauã significa gavião, a maior ave de rapina daquelas plagas. Figura apropriada para falar daquele jovem. Um dos principais colaboradores de Antonio da Silva Bueno, o bandeirante que descobrira as minas do Brumado e do Santa Bárbara e nelas tinha investida a condição de autoridade. O mestiço é tido por todos como seu filho bastardo e assim se comporta e se diz, mas o capitão Bueno não lhe dera o sobrenome e jamais o tratara como tal. No entanto, o jovem mestiço lhe é fiel, age como um meirinho31 informal e sargento de milícia sem patente. Na verdade, segundo disse o francês, “o que faz é achacar comerciantes e tropeiros, por quem tem desprezo”. E acrescentou: “Mas quando quiseram fazer uma festa, foi a mim que procuraram. Fizeram-me empenhar minha palavra com Clemente, depois cancelaram tudo e me deixaram em total constrangimento”. “E cancelaram porquê?”. A festa seria em quatro de dezembro, dia de Santa Bárbara, para marcar um ano da descoberta das minas deste ribeiro e o velho bandeirante pretendia aproveitar a ocasião para assumir a patente oficial de guarda menor32 das minas de Santa Bárbara. Mandou vir a família de Taubaté, a esposa e os filhos solteiros. Construiu nova morada, de assoalho de madeira, plantou um pomar e mandou subir a capela. Encomendou bois, bebidas e todo tipo de mercadoria. Seria o primeiro acontecimento social do arraial.

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Antiga designação correspondente a oficial de justiça. Responsável pelo cumprimento da lei e pela arrecadação real nos arraiais distantes dos distritos centrais. Autoridade ao mesmo tempo civil e militar, correspondente aos guarda maiores dos distritos, podiam, por deferência, serem também assim chamados. 32


“Eu esperava arrecadar uma pequena fortuna vendendo de tudo neste dia” - lamentou Jacques. “Mas aconteceu uma tragédia. Uma febre assaltou sua senhora e ela teve que ser sepultada no caminho. Desde então o homem está de luto, fechou se em casa e permaneceu em silêncio, não foi visto nem emitiu qualquer bando33. E enquanto isso seu filho bastardo faz por aqui o que bem quer”. Era a quarta noite de Miguel por ali. Durante todas as antecedentes jantara na companhia do francês e de seus filhos homens, já que as mulheres da casa se sentavam à mesa apenas depois que ele saía. Os franceses eram tidos em Portugal como mais liberais com as mulheres da casa, mas Jacques, a Miguel, parecia ter absorvido integralmente o modo lusitano de tratar as esposas e filhas de família: segregando-as, mantendo-as longe dos olhos das pessoas, mas também da vida. É preciso dar liberdade também às mulheres, andava pensando. Certamente, faltava conhecer um filósofo que se desse conta disso. Mas o fato é que naquela noite foi diferente. O francês permitiu que a esposa e a filha se sentassem com os homens à mesa, inclusive Miguel. A garota, de nome Ângela, vivia então o entardecer da infância. Cabelos loiros presos por um laço de fita, um sorriso encabulado e os olhos sempre vidrados no pai; olhos de admiração inconteste. A Miguel parecia ser de uma doçura comovente. Há quanto tempo não via a inocência, pensou. A esposa do francês, Dalva, era sem dúvida, uma portuguesa ou descendente, pelo menos tinha todas as características de uma típica matrona lusa. Gorda, de poucas palavras, mas ao contrário da imensa maioria, não era de submissão acentuada, parecia ter própria personalidade. Mostrou, durante a refeição, que se esmerava para ensinar aos filhos como se comportarem de forma minimamente civilizada à mesa e com o olhar chegou mesmo a repreender os modos do esposo. Religiosa, liderou as orações sem errar um verso. Também não se envergonhou por tratar com carinho à prole, mesmo na presença de Miguel. Este se sentiu verdadeiramente bem por compartilhar aqueles singelos momentos de vida familiar, que lhe traziam, de certa forma, de volta à civilidade da qual andava distante há tempos. Teve vontade de elogiar a harmonia da família, mas teve receio de fazer um comentário e o francês sentir-se ofendido, afinal ainda que naquela noite tenha tido um comportamento diferente, ele 33

Como eram chamados os comunicados ou encaminhamentos por parte das autoridades. Geralmente eram afixados nas portas das capelas e igrejas.


sempre prezou pela reserva e discrição familiar. Comeram um frango ensopado que Miguel achou uma delicia, assim como o vinho português e o doce de goiaba. Ao final da refeição, a mulher e a garota retiraram a mesa. Os filhos buscaram as cravinas, os candeeiros de azeite e saíram. Miguel lembrou-se do que Cosme havia lhe dito sobre o que acontecia à noite. Ficou ainda mais curioso, mas achou melhor se retirar. Ainda que quisesse e precisasse discutir negócios com o francês, sentia que devia abordar a situação com certo cuidado, temia que se o melindrasse pudesse perder sua confiança, o que seria desastroso naquele momento, já que não tinha muito dinheiro ou qualquer plano alternativo. Enfim, seu futuro, por ora, dependia diretamente da forma como se desenvolveria aquela relação. “Monsieur, fique mais um pouco. Appréciez-vous lê34 cachaça?” – disse o francês abrindo a garrafa e despejando o liquido incolor na pequena cumbuca. Tomou num trago. Serviu outra. Ofereceu a Miguel, que aceitou, e sentou-se novamente. “Monsiuer Miguel, sou comerciante desde os nove anos de idade, conheci milhares de guarda-livros, homens inteligentes, muitos deles com mais tino para o comércio ou fazenda que os patrões, mas vossa senhoria é diferente”. “Diferente como?”. “Não sei dizer, mas acho que é mais que um mero guarda-livros. Esconde alguma coisa, Miguel?”. “Acho que todo mundo esconde alguma coisa, não acha?”. “Isso não há como negar. Porta documentos?”. “Pensei já haver te dito sobre o incidente no meu caminho para as minas. Pretendo providenciar novos assim que me for possível dirigir-me a um ouvidor real”. “Isso não custará muito tempo. No inicio do mês, um ouvidor virá ao arraial. Mas veja bem, monsiuer, não me tenha por mal, aqui nas minas todos nós precisamos ser desconfiados. Todo dia tem gente nova chegando aqui, alguns cristãos, porém outros muitos facinorosos... cedo ou tarde, vossa senhoria vai entender o que estou dizendo. Por aqui, há pouco de lei e de justiça, precisamos saber nos comportar. Boa conduta nas minas é ser 34

Aprecias...?


reservado, trabalhar em silêncio e evitar as perguntas que possam comprometer demais”. “Então porque o senhor resolveu confiar em mim?”. “Não é uma questão apenas de confiança, mas também de providência...” - Serviu se de outra dose. Tragou. Continua: “Creio que poderemos nos ajudar mutuamente”. Serviu mais uma. Estendeu a Miguel. “Tome outro trago, tenho muito que te falar esta noite”. Além da promulgação oficial de Antonio Bueno como guarda-menor das minas do Santa Bárbara, estava marcada para o dia quatro de dezembro daquele ano, data que marcaria oficialmente um ano da chegada dos paulistas àquelas paragens, o leilão das datas restantes do ribeirão. Para se ter direito a uma data rentável, do tipo que desse pelo menos duas oitavas por bateada e tivesse cerca de quinze braças, era preciso que se possuísse no mínimo oito escravos, número a que o francês somente poderia chegar se incluísse na força de trabalho seus três filhos homens, o que a lei lhe facultava direito, e mais Cosme e Emanuel. “Nos tornaríamos então sócios, com os rendimentos, descontados os quintos, divididos proporcionalmente tal qual nosso anterior acerto”. Segundo suas expectativas, Miguel não poderia ter ouvido proposta melhor. Acabara de encontrar a maneira ideal para começar a nova vida. Celebraram o trato com mais cachaça. “Mas não acaba ai a nossa sociedade”. Levantou-se da cadeira, pegou um candeeiro, o embornal e a pistola. “Pegue a garrafa, a cumbuquinha e me acompanhe”. Saíram. Andaram, por alguns minutos, por uma trilha que corta a mata até chegarem a um córrego. Em suas margens está um dos filhos do francês, armado e segurando com um candeeiro aceso. Dentro das águas um escravo minera. “Tudo que consegui aqui, devo a esse córrego” – disse o francês. Chegara às minas, sozinho, em idos de 1701. Primeiramente instalou-se no Tripuí, perto de onde se formava o arraial do Ouro Preto. Nesta época, o surto ocupacional, que já havia sido contundente, estava arrefecido. Vivia-se então a ressaca de tempos sombrios, os anos da grande fome. Preocupados somente em minerar, poucos se deram a plantar ou criar animais, o alimento rareou e com muito ouro não se comprava sequer uma galinha. Houve dispersão em massa. Jacques chegou exatamente quando essas


precariedades começavam a ser vencidas. Como não tinha recursos suficientes, tampouco qualquer escravo, não poderia sequer candidatar-se a qualquer data. Andou minerando em riachos do Ouro Preto, mas nunca amealhou muita coisa, mesmo porque a mineração clandestina sempre foi perseguida pelas autoridades constituídas, que assim agiam principalmente para tentar garantir a arrecadação real e disciplinar a divisão das jazidas. Astuto, vislumbrou a oportunidade e plantou roças de milho, criou galinhas, adquirindo recursos para montar uma venda no arraial de Ouro Preto. Como havia sido mercador de peixes no Rio de Janeiro, sabia da lida com tropeiros e clientes, e logo que prosperou, mandou buscar a família naquela cidade. Com a chegada da mulher e dos filhos, sentiu a necessidade de ampliar seus rendimentos. Com esse propósito comprou um escravo e resolveu partir para um lugar que chamavam de Catas Altas, logo que soube da sua descoberta. Ouvira que à medida que se sobe a serra pelo córrego, mais rico e abundante era o ouro, o que ativara seu senso de oportunidade outra vez, nem mesmo as advertências de que quanto mais ao alto da serra, mais altas ou profundas precisam ser as catas35, o que tornava o trabalho certamente mais rentável, mas também mais engenhoso e perigoso, o demoveu de tal intento. Partiu esperançoso, ainda que com apenas um negro, uma cravina e uma picareta. Isso em idos de 1703. Levou consigo também o filho mais velho, deixando os demais com a esposa em Ouro Preto, para que cuidassem das roças, das vendas e das mulheres. Em Catas Altas, descobrira em um ponto alto da serra, as fraldas da qual se erguera o tal povoado, a nascente daquele córrego e pôs-se a segui-lo até o descampado onde erguera a primeira cabana. Chegara quase que simultaneamente ao anúncio por parte de Antonio Bueno da descoberta das minas do Santa Bárbara. O cascalho daquele córrego mostrou-se senão repleto, pelo menos razoavelmente rentável em matéria de ouro. Cerca de uma oitava e meia por bateada. Além do mais, era ouro de aluvião36, que não exigia catas em barrancos, mais próprio a suas possibilidades. Em poucos meses ergueu nova morada, comprou outro escravo e mandou vir sua família. “É mesmo uma historia admirável, Jacques”. – disse Miguel. O francês, orgulhoso de sua própria trajetória, agradeceu o elogio e contou uma de suas 35 36

Escavações, em forma de funil, nos barrancos e encostas. Ouro retirado da argila e do cascalho depositados ao longo dos rios.


maiores preocupações atuais. Há dois dias, um dos seus filhos avistara um par de ciganos a rodear a chácara. ”Talvez tenham percebido alguma coisa e andam de olho nesta jazida, os ciganos costumam andar em hordas numerosas e temo por um ataque a qualquer momento. Meus outros dois filhos têm passado suas noites trepados nestas árvores a vigiar as trilhas, mas preciso de mais homens para me proteger e à minha família. E como se trata de uma jazida clandestina, não posso contar com mais ninguém, muito menos com qualquer tipo de autoridade. Se aceitares mais esta minha proposta, usaremos seus homens na defesa desta jazida e dividiremos também os rendimentos deste córrego abençoado”. – Sorriu e tomou outro trago. Estavam sentados no chão à beira do córrego, a poucos metros de onde o escravo bateava. A garrafa de cachaça já ia pela metade e por isso mesmo, estavam bem altos. Celebraram, ambos satisfeitos, mais um acordo. Bem à vontade com a companhia do francês, Miguel passou a falar de si e de sua vida. Acabou por lhe contar quase tudo, inclusive seus anos de sacerdócio e sua deserção. Jacques pareceu não fazer mau julgamento da escolhas dele e comentou que a qualidade dos sacerdotes e missionários das minas era de se assustar. “Muitos não são menos que criminosos”. – acrescentou e depois disse: “Não se preocupe, seu segredo está guardado comigo”. A cachaça já estava no fim. Motivado por Miguel ter lhe dito que viajara pela Europa na juventude, o francês quis saber: “Já estiveste em Paris, monsieur?”. “Não. Passei pela costa de Marselha, no caminho para Roma, mas não conheço Paris. Nasceste em Paris?” “Nunca estive em Paris, monsieur... sou um francês nascido e criado entre o morro da Conceição e o morro de São Bento, mais precisamente nos arredores do mercado de peixe na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro!” Caiu na gargalhada. Miguel ficou meio sem entender, achando que estava entendendo, enxergando turvo e ouvindo com eco - ébrio feito uma mula, como diziam os mineiros. E riu também. Gargalhou. Deitou-se na relva e disse: “Um padre desertor e um francês gaiato, formamos mesmo uma bela sociedade”. E riu novamente.


“Veja bem, meu pai era francês, corsário de Luiz XIV, fez a vida assaltando e saqueando as embarcações da Companhia Geral de Comércio do Brasil, a bordo de uma nau repleta de gente como ele... Em um embate com os portugueses, a derrota os fez náufragos. Os sobreviventes foram dar em Parati, inclusive meu pai. De lá foi para o Rio de Janeiro, onde se estabeleceu como pescador de baleias. E vossa mercê não imagina como os habitantes de lá gostam desta carne, especialmente agora, depois das descobertas das minas, que o preço da arroba do boi está que é um enforcamento!”. No Rio de Janeiro, o já velho corsário encantou-se por uma jovem mulata, propriedade dos frades beneditinos. Tomado pela paixão, juntou todas as suas patacas, amealhadas ao longo de dez anos como pescador e a comprou. A fez sua esposa e tiveram quatro filhos. O caçula, Jacques, nasceu em meados dos anos 1660, e foi o único varão. “O que explica minha tez morena”. Aos doze, quando o pai morreu, já era dono de uma banca no mercado de peixe da cidade e tinha adquirido dele todos os trejeitos e o sotaque. Aos dezoito, conseguiu juntar dinheiro o suficiente para casar-se com uma branca, filha de um português, funcionário do escritório da alfândega. Quando chegou ás Minas, diante da crescente animosidade entre paulistas e emboabas, logo percebeu que era mais cômodo para ele ser francês que qualquer outra coisa. “Lembro-me de meu pai, já bem velhinho, falando meio em francês, meio português... Se um dia, vierem te buscar, relute. Não há nada que preste em Paris. O lugar é feio, sujo e fede. Fique aqui onde há sol o ano inteiro e mulheres semi-nuas”. Riu novamente. Serviu mais um trago. “E então?” - perguntou Miguel. “Algum dia quiseram vir te buscar?”. “Sabe que sempre achei que fosse apenas mais uma anedota de papa, mas não é que em uma noite, dois agentes do serviço secreto de Luiz XIV invadem minha casa? Disseram me que o Rei precisava de mim. Que planejavam em breve tomar a cidade e que eu a partir daquela noite eu seria um espião da majestade. Falaram desta forma e sumiram novamente na escuridão na noite”. “E vossa mercê, o que fez?”. “No outro dia cedo, parti para as minas!” – gargalhou agora mais bêbado. “E acha que os franceses vão mesmo invadir o Rio de Janeiro?”.


“Uma coisa eu aprendi como o papa sobre os franceses. Por mais que aparentem certo jeito blasé, como dizem, eles sabem sempre o que querem. Que se cuide o Rio de Janeiro”. Ofereceu o derradeiro trago a Miguel. “Não consigo mais beber. Basta-me”. “Não fica bem recusar o último trago, monsieur”. Miguel tomou a cumbuca da mão do francês e sorveu a cachaça. Pela manhã a cabana estava que era somente vômito. Miguel tivera uma noite bastante difícil. Toda aquela cachaça não casara bem com o vinho do jantar. A cabeça lhe doía e sentia o estômago revirado. O calor era aterrador, devia ser meio dia ou mais, pensou. Somente se dispôs a se levantar quando a fome o arrebatou. Na chácara tudo estava como dantes, como sempre. Trabalho a toda. O francês sem o menor sinal do mal-estar que abatera Miguel. “Levantando quase na hora do almoço, parece mais português que nunca” - disse o francês, já à vontade para o deboche, como normalmente se fica entre bons amigos. Depois disse sério: “O Cauã voltou aqui esta manhã”. “Para outro achaque?”. “Não. Desta vez trouxe apenas um recado... para vossa mercê”. “Para mim? Como assim? Recado de quem?”. “Do bandeirante Antonio Bueno”. “O manda-chuva do arraial?” – Diante da assertiva do francês, Miguel continuou: “E o mestiço adiantou alguma coisa?”. “Rien37. Disse apenas que o velho deseja ver-te e que tu fosses lhe fazer uma visita o quanto antes”. Miguel pegou um pouco de água e jogou por sob a cabeça. A água fria amainou um pouco a dor das têmporas e o calor abafado. “Pelo que conheço deste lugar, logo estará chovendo” – comentou Jacques, levando o olhar ao céu. Depois perguntou: “E então pretende ir vê-lo?”. “Não é ele a maior autoridade do lugar? Não é de bom tom recusar o convite de uma autoridade. Irei assim que recobrar minhas forças, o que espero que aconteça ainda este ano...”. Vomitou no próprio pé.

37

Nada em Francês.


“Mulher!” – gritou o francês. “Prepara aquele chá de boldo que o português vai precisar!”. CONTINUA...


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