brasil
de 2 a 8 de outubro de 2014
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A luta por moradia no centro de SP Zanone Fraissat/Folhapress
SEM-TETO Déficit habitacional da cidade pode chegar a 400 mil moradias; Poder Judiciário não faz valer a função social dos imóveis Bruno Pavan de São Paulo (SP) ALGUMA COISA aconteceu quase cruzando a Ipiranga com a Avenida São João, centro de São Paulo, no último dia 16 de setembro. As pessoas que chegavam à frente do prédio no número 601 da São João nada entendiam debaixo das bombas de gás lacrimogêneo lançadas pela tropa de choque da Polícia Militar. Não era poesia o que ocorria, mas, sim, uma reintegração de posse. O prédio, construído há dez anos para funcionar como um hotel, nunca chegou a funcionar. Em março deste ano, a Frente de Luta Por Moradia (FLM) resolveu dar um uso ao prédio vazio quase no coração da capital. Agora, distantes dali, na ocupação Vila Nova Palestina no extremo sul da cidade, mais de 30 famílias ainda não sabem o que o futuro lhes reserva. As perguntas que ficam são várias: a ocupação das propriedades pelos movimentos é um direito? O proprietário pode deixá-lo vazio por anos sem que cumpra nenhuma função para a cidade? Todos possuem o mesmo direito à cidade? Os movimentos por moradia são peças centrais nesse debate. Desde a década de 1990, diversos deles partem para a estratégia da ocupação desses edifícios não utilizados para alertar o poder público para a necessidade de uma mudança na política de habitação, denunciando os edifícios que não cumprem a função social. “Tomamos muito cuidado de não invadir os prédios que cumprem essa função. Geralmente, as ocupações ocorrem em edifícios com dívidas altíssimas e abandonados de uma forma extrema. Depois da ocupação, começamos as negociações com o poder público e o próprio dono do prédio. Ninguém vive tranquilo dentro de uma ocupação porque a gente sabe que a qualquer momento pode ir pra rua”, disse Antonia Medeiros, coordenadora da Frente de Luta por Moradia.
Mariana Topfstedt/Folhapress
Com a reintegração de posse do prédio na Avenida São João, 315 famílias ficaram desabrigadas
“Queremos fazer parte da sociedade e ter um endereço. É uma luta importante pelos nossos direitos, nesse caso, a habitação”
Marco Ambrosio/Folhapress
Antonia ainda reforça que os membros dos movimentos sem-teto não querem casa de graça, mas pagar uma prestação que caiba no bolso do trabalhador de baixa renda. “Queremos fazer parte da sociedade e ter um endereço. É uma luta importante pelos nossos direitos, nesse caso, a habitação”. A ocupação de prédios no centro também segue uma lógica. Para o advogado da Central dos Movimentos Populares Benedito Barbosa, o Dito, uma política habitacional que valorizasse a moradia no centro seria mais vantajosa até mesmo para o poder público, que não precisaria fazer obras de infraestrutura na região. “Temos que fazer pressão para viabilizar moradias na área central para as famílias de baixa renda. De acordo com o último censo do IBGE existem mais de 40 mil imóveis vazios ou semiabandonados na região. Há uma quantidade enorme de locais que poderiam ter sua função social aplicada em função do abandono que é a região e também porque está perto do trabalho, possuem uma boa infraestrutura, equipamentos públicos próximos. Nós invadimos por dois motivos: o custo dos aluguéis e pra pressionar o poder público para que viabilize habitações na área central da cidade porque é viável viabilizar”, afirmou. O déficit habitacional na capital paulista também é um grande problema a ser resolvido. De acordo com a Secretaria Municipal da Habitação, precisariam ser construídas 230 mil casas para suprir a demanda da capital. Em 2013, foram viabilizados terrenos para a construção de 101.800 novas casas e investidos R$ 80 milhões em compra de imóveis. Neste ano, R$ 220 milhões serão gastos. A secretaria acredita que, até 2016, 55 mil unidades habitacionais serão construídas para combater o problema. Além disso, 890 mil famílias estão em assentamentos precários ou de posse ilegal de seus imóveis.
Para Alckmin, “decisão da justiça não se questiona, se cumpre”
e até da lei, é que um prédio fique abandonado sem nenhum uso durante anos e que seja guardado apenas como especulativo. Isso vai contra o Estatuto da cidade”, explicou.
Aliados dos proprietários Em nota de repúdio lançada após a reintegração do Hotel Aquarius, movimentos alertam para o que eles chamam de guerra contra os pobres no centro da cidade e acusam o Poder Judiciário de se aliar com a especulação imobiliária na criminalização dos movimentos populares. Em outra carta, publicada em agosto, eles já haviam criticado a postura do Judiciário em situações de conflitos de reintegração de posse, acusando os juízes de serem “aliados de primeira hora do proprietário”. A visão da sociedade capitalista sobre o direito à propriedade e a pouca importância dada à questão da moradia fortalecem ainda mais a visão conservadora da Justiça brasileira nesses casos, acredita Júlia. “Na ideia liberal e capitalista, a propriedade privada individual tem um valor muito grande, então a Justiça tradicionalmente tem expressado essa visão. A importância do direito à moradia precisa ser valorizada e a atuação dos movimentos ainda é muito estigmatizada. Logo, na hora que casos como esse batem na Justiça, eu tenho um sistema todo que privilegia a propriedade privada”, explicou.
“O que não é admissível, em nome da cidade sustentável, de todas as diretrizes e até da Lei, é que um prédio fique abandonado sem nenhum uso durante anos e que seja guardado apenas como especulativo. Isso vai contra o Estatuto da cidade” Policial persegue manifestante no centro de São Paulo
1,2 milhão sem moradia Benedito afirma que cerce de 1 milhão e 200 mil pessoas não têm moradia, mas que se formos somar nesse números o déficit qualitativo, ou seja, pessoas que moram em situação irregular ou precária, esse número pode chegar a 3 milhões. Sobre o número de ocupações na cidade, a estimativa da secretaria é de que existam 90 – entre prédios e terrenos, sendo que dessas 45% estão na região central e concentram cerca de 4 mil famílias. Essa informação não conta com as ocupações em áreas particulares. O número total, porém, é muito maior. De acordo com Guilherme Boulos, coordenador do MTST, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em maio deste ano, só o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) reuniu 15 mil famílias em suas ocupações.
Para Dito, existe inclusive um descumprimento da lei quando não se leva em conta o uso social do espaço. “A propriedade não é um direito absoluto, ela tem que levar em conta a aplicação da sua função social. É sobre esse aspecto que nós dizemos que não há o cumprimento da lei”, explicou.
Função social Antes do direito privado, a propriedade deve obedecer e cumprir o uso social que está previsto na própria Constituição. Em resumo, um imóvel não pode ficar abandonado por muitos anos. Esse entendimento já está em vários acordos internacionais e no Estatuto da cidade.
A gerente jurídica do Escritório Modelo Dom Paulo Evaristo Arns, Júlia Moretti, concorda e explica que as decisões judiciais deveriam dar mais valor à posse que cumpre a função social do que à propriedade que não cumpre. “O que não é admissível, em nome da cidade sustentável, de todas as diretrizes
“Temos que fazer pressão para viabilizar moradia na área central para as famílias de baixa renda. De acordo com o último censo do IBGE, existem mais de 40 mil imóveis vazios ou semiabandonados na região
Problema social, não de polícia O entendimento da proteção ao proprietário da terra não é de hoje. Em janeiro de 2012, a Polícia Militar foi chamada para cumprir uma reintegração de posse no que ficou conhecido como “o massacre do Pinheirinho”, em São José dos Campos, interior de São Paulo. Cerca de 6 mil pessoas moravam, desde 2004, no terreno de cerca de 1,3 milhão de metros quadrados, que pertencia ao especulador Naji Nahas. À época, o governador Geraldo Alckmin defendeu a ação violenta da PM com o argumento de que “decisão da Justiça não se questiona, se cumpre”. “Essa frase mostra uma falência da forma como a sociedade lida com os conflitos fundiários urbanos. Se as políticas públicas funcionassem, se tivéssemos canais de conciliação e mediação que fizessem com que as cidades não tivessem essas áreas vazias para a especulação, o Poder Judiciário não precisaria ser acionado”. Por fim, Júlia questiona se as decisões da Justiça nesse aspecto “têm servido para diminuir ou aumentar os conflitos e as desigualdades na sociedade”. (Com informações de Daniele Silveira)