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brasil

de 20 a 26 de março de 2014

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O que há na mesa do brasileiro? SAÚDE Guia alimentar mostra que alimentação é mais que levar o garfo à boca Bruno Pavan de São Paulo (SP) FAST-FOODS, grandes corporações alimentícias nacionais e internacionais e o uso cada vez mais desmedido de agrotóxicos nas lavouras são os principais inimigos da mesa do cidadão brasileiro. Foi essa a conclusão que o Núcleo de Pesquisa Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (NUPENS-USP) chegou com a publicação do Guia Alimentar Brasileiro. O trabalho do núcleo em conjunto com o Ministério da Saúde visa atualizar e definir as diretrizes alimentares para serem utilizadas na orientação de escolhas mais saudáveis de alimentos pela população brasileira e é periodicamente atualizado para acompanhar a realidade nutricional do país. Considerando que o ato de comer vai muito além de levar o garfo à boca, o guia discute o conceito de segurança alimentar que se trata do “acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”, aponta a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional de 2006. A integrante do núcleo, Maria Laura Louzada, explica que o Guia Alimentar é importante para analisar o comportamento da sociedade e tem de acompanhar a realidade do momento. “A alimentação de uma população é muito ligada à sua história, cultura, geografia e economia. Por causa disso, é importante que os guias sejam específicos e que vão ao encontro dos recursos e hábitos da população local. A primeira versão foi publicada em 2006, mas a alimentação e o perfil de saúde dos brasileiros passaram por uma rápida transição nos últimos anos, o que levou à necessidade de atualização das orientações”, explicou. Essas mudanças foram em sua maioria para pior, na opinião de Maria Laura. Com o brasileiro trabalhando cada dia mais e sem tempo para se alimentar corretamente, nos últimos anos foi identificada uma mudança nos hábitos alimentares dos cidadãos que passaram a consumir mais alimentos congelados e de rápida preparação.

Joan M./CC

“Várias evidências apontam que a principal causa dessa mudança relaciona-se a aos hábitos alimentares: consumindo muitos produtos industrializados, ingerimos uma maior quantidade de calorias em um volume menor de comida. O nosso cérebro tem dificuldade de entender isso e tende a comer mais do que precisa. Além disso, há o excesso de sal, açúcar, gorduras e substâncias como conservantes, estabilizantes, flavorizantes, corantes, sabores artificiais exagerados e menor quantidade de fibras, vitaminas e minerais. Mesmo produtos com ‘alegações de saúde’, ou seja, aqueles que se dizem light, diet ou que possuem fortificação com vitaminas e fibras são menos saudáveis que os alimentos de verdade. Muitas vezes, is-

“O que vemos é a convergência para um sistema intensamente monopolizado, industrializado, baseado em commodities, com uso intenso de agrotóxicos e produtos padronizados em todas as partes do mundo” “Infelizmente nas últimas décadas os brasileiros estão deixando de preparar alimentos básicos como arroz, feijão, carnes, leites e ovos e aumentando a ingestão de produtos prontos para consumo como carnes processadas, doces industrializados, refrigerantes e comida congelada. Essa mudança certamente trouxe um impacto negativo para a qualidade da nossa alimentação. Além de promover a saúde, portanto, o guia também tem a função de resgatar nossos hábitos alimentares tradicionais”, criticou. Um dos principais problemas hoje no Brasil são as grandes corporações do ramo alimentício que dominam grande parte da produção de alimentos no país. Maria Laura alerta que esse monopólio acaba criando alimentos padronizados para todas as partes do mundo e enfraquece os hábitos mais tradicionais de preparação. “O que vemos é a convergência para um sistema intensamente monopolizado, industrializado, baseado em commodities, com uso intenso de agrotóxicos e produtos padronizados em todas as partes do mundo. Esses produtos são, em sua maioria, baseados em ingredientes baratos e extremamente calóricos como óleos e açúcares e não possuem vínculo com a cultura alimentar das comunidades”, analisou. Epidemia da obesidade Essa também é a responsável pelo que muitos já estão chamando de epidemia da obesidade em todo o mundo. Em 2013, pela primeira vez na história, o índice de pessoas com sobrepeso no Brasil superou a metade da população. O mesmo estudo, feito pelo ministério da Saúde, apontou que 17% da população já está obesa.

“Além de promover a saúde, o guia também tem a função de resgatar nossos hábitos alimentares tradicionais” so provoca o consumo exagerado com aquela sensação de ‘não consigo parar’. A conveniência dos prontos para consumo muitas vezes pode induzir que a gente substitua refeições saudáveis (a clássica dupla arroz e feijão, por exemplo) por lanches prontos e que a gente se alimente na frente da televisão ou enquanto trabalha ou dirige”, disse Louzada. Muitos mitos também rodeiam os há-

bitos alimentares brasileiros. Um dos maiores, na opinião de Maria Laura, é o de que custa caro se alimentar bem nas grandes cidades brasileiras. Pra ela, essa é uma falsa impressão causada pelo marketing dos fast-foods que ressalta preços mais acessíveis. “Alimentos básicos como arroz, feijão, mandioca, batata – que são extremamente saudáveis – e algumas frutas ainda são muito mais acessíveis. Quando combinamos todos esses alimentos, o resultado é uma refeição geralmente mais barata que aquelas prontas para comer. Para aqueles que necessitam comer fora de casa, as melhores alternativas são os lugares que servem ‘comida caseira’, os famosos ‘pratos feitos’ ou os restaurantes de comida por quilo”, declarou.

Brasil é o maior consumidor de agrotóxico do mundo Só em 2010 o país utilizou mais de 800 milhões de litros em suas lavouras de São Paulo (SP) A escolha do governo brasileiro pelo agronegócio, porém, acarreta em riscos até pra quem escolhe se alimentar a base de alimentos naturais. As grandes corporações, para aumentar sua lucratividade e deixar sua safra imune a pragas, estão fazendo com que o país seja invadido por venenos agrícolas e alimentos transgênicos. Desde 2008 o Brasil é o país que mais consome agrotóxico no mundo e, só em 2010, utilizou mais de 800 milhões de litros em suas lavouras. O Mato Grosso, estado que mais consome, sozinho, utilizou 113 milhões de litros. O professor Wanderley Pignati, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), é responsável por um estudo que analisou os impactos do consumo de agrotóxico no interior do estado e aponta que o grande problema hoje é que as grandes corporações transformaram “os alimentos em mercadoria”. Um dos episódios mais emblemáticos aconteceu em 2006 na cidade de Lucas do Rio Verde. Enquanto os fazendeiros dessecavam a soja transgênica para a colheita utilizando o herbicida para-

quat, uma nuvem tóxica se formou dando origem a uma chuva de agrotóxico sobre a cidade que devastou canteiros de plantas medicinais, chácaras de hortaliças e deixou centenas de crianças e idosos com intoxicações agudas.

“Como esses alimentos ainda são relativamente caros para grande parte da sociedade, incentivos fiscais a produção e a vinculação de compras públicas a esse tipo de alimento poderiam ser duas saídas para democratizar os orgânicos” O estudo de Pignati levanta outros dados alarmantes da presença de agrotóxicos em Lucas do Rio Verde: poços de água potáveis, água da chuva e o ar apresentaram altos índices de contaminação, assim como a urina dos professores da cidade. A contaminação também atingiu o leite materno: 100% das 62 mães apresentavam alteração. Em outubro de 2013, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) lançou o resultado do Programa de Análise

de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para). O levantamento mostrou que 36% das amostras de alimentos analisadas em 2011 e 29% das realizadas em 2012 tiveram presença elevada de agrotóxico. Além disso, 30% apresentaram índices abaixo do permitido, mas que também pode ser nocivo à saúde. Os alimentos escolhidos basearam-se em dados de consumo obtidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O campeão de presença de agrotóxico foi o pimentão. Das 213 amostras estudadas, 89% estavam irregulares em 2011. A cenoura teve 67% das amostras contaminadas em 2011 e 33% em 2012 e o pepino, 44% em 2011 e 42% em 2012.

Transgênicos Os transgênicos também estão entrando cada vez mais fortes e com pouca fiscalização no país. De acordo com o Ministério da Agricultura, pecuária e Abastecimento (MAPA), na safra 2012/2013 nada menos que 83% da produção de soja foram de grãos geneticamente modificados. De acordo com, Maria Laura Louzada, o governo brasileiro precisará agir de forma direta para que o acesso da população aos orgânicos aumente nos próximos anos. “Como esses alimentos ainda são relativamente caros para grande parte da sociedade, incentivos fiscais a produção e a vinculação de compras públicas a esse tipo de alimento poderiam ser duas saídas para democratizar os orgânicos”, sugeriu. (BP)

Como fugir do agronegócio? A agricultura familiar é uma das principais atividades geradoras de novas fontes de trabalho. No Brasil, ela já é responsável por 77% dos empregos agrícolas de São Paulo (SP) Afinal de contas, qual é a saída para o brasileiro comer bem? A resposta pode ser mais simples do que se imagina: a agricultura familiar. Sem associações com fábricas de agrotóxicos e com menos compromisso com o lucro capitalista, a proximidade das la-

vouras com o consumidor final pode ser uma saída simples e saudável para o aumento da qualidade e até a queda de preços dos alimentos no Brasil.

“A Safra 2014 prevê R$ 138 bilhões para o agronegócio e R$ 3 bilhões para a Agroecologia. Essa lógica tem que se inverter a médio prazo para termos alimentos saudáveis e não mercadorias ou commodities” De acordo com levantamento da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), entidade liga-

da a ONU, a agricultura familiar é uma das principais atividades geradoras de novas fontes de trabalho. No Brasil, ela já é responsável por 77% dos empregos agrícolas. Para a safra 2013/2014 o governo brasileiro prevê investir R$ 39 bilhões para o fortalecimento da atividade, que foi responsável por 38% do Valor Bruto da Produção Agropecuária. Em 2013, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) disponibilizou a quantia recorde de R$ 18,6 bilhões. Pignati acredita que, para haver uma mudança drástica no modo de produção, o Brasil teria que investir ainda mais em alternativas ao agronegócio. “A Safra 2014 prevê R$ 138 bilhões para o agronegócio e R$ 3 bilhões para a Agroecologia. Essa lógica tem que se inverter a médio prazo para termos alimentos saudáveis e não mercadorias ou commodities”, analisou. (BP)


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