Revista 8 e 1/2

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CADERNOS DE CINEMA

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CRONENBERG

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“A ARTE SEMPRE ENVOLVEU SEXO E VIOLÊNCIA”

CADERNO DE CRÍTICAS

MAIO 2011 R$ 8,00

ALLEN • MALICK OLIVEIRA • VON TRIER JEFERSON DE

cópia fiel GRÁTIS UM PÔSTER DE CIDADE DE DEUS

Binoche se reinventa em novo filme de Kiarostami


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A revista “8 e 1/2 - Cadernos do Cinema” tem como objetivo ser um caderno de resenhas e artigos sobre cinema. A publicação pretende se aprofundar nas análises e biografias de filmes, diretores e atores, contando com inúmeros colaboradores de renome com o intuito de ampliar o debate da produção audiovisual além das classificações habituais dos cadernos de cultura dos principais jornais e revistas culturais no Brasil. Outra preocupação é a de resgatar a memória do cinema, tanto a partir de debates como por encarte de cartazes célebres, valorizando também a memória gráfica. A revista prima pela qualidade de seus textos e fotos, sempre com um layout que explicita a opinião do colaborador e o caráter opinativo da revista. A mescla de textos densos e imagens impactantes cria o ritmo de navegação da revista. Do ponto de vista de seu projeto gráfico, a “8 e 1/2” procura uma liguagem sóbria, limpa e direta. Com influências da escola da Bauhaus e de publicações célebres como a Cahiers do Cinema, a publicação mescla formas geométricas, sobretudo triângulos e diagonais, como base de seu grid. Os elementos de informação da revista (olhos de texto, chamadas e números de página) buscam uma referência nos antigos cadernos de resenhas culturais, cada vez mais escassos, com influências de revistas de moda como a Vogue, até revistas de cultura como a Bravo. No tocante às cores, o projeto gráfico pretende trabalhar sempre os alto contrastes e o efeito de cores comlementares, essa também como forma de identificar as seções e o ritmo de leitura da revista. Além dos extensos ensaios, a “8 e 1/2” procura trazer fotos de alta qualidade que tragam o ambiente do cinema para as páginas da revista, com a intenção de queo leitor tenha contato com o universo do cinema. Espero que aproveitem a experiência. Boa Leitura.

Bruno Pucci DIRETOR BRUNO PUCCI | EDITOR EXECUTIVO BRUNO PUCCI | REDAÇÃO BRUNO PUCCI, THOM ERNEST, NEUSA BARBOSA E INÁCIO ARAÚJO | PRODUTORA ANA MARIA BAHIANA EDITOR EXECUTIVO BRUNO PUCCI | COLABORADORES GONÇALO TRINDADE, THOM ERNEST, NEUSA BARBOSA, INÁCIO ARAÚJO, MARCELO MACEDO E ANA MARIA BAHIANA PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO BRUNO PUCCI SUPERVISÃO DO PROJETO REGINA WILKE E MARIA HELENA WERNECK

20TH CENTURY FOX

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CADERNOS DE CINEMA

MAIO 2011 | NO 01


PARAMOUNT PICTURES

Cronenberg, durante as gravações de Marcas da Violência SONY PICTURES

Cena de Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami

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CÂMARA ESCURA Entrevista com o diretor canadense David Cronenberg

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PREMIÉRE Cópia Fiel de Abbas Kiarostami, por Neusa Barbosa e Luiz Carlos Merten

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CADERNOS DE CRÍTICA Woody Allen, Terrence Malick, Manoel de Oliveira, Lars Von Trier e Jeferson De

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ARTE EM CARTAZ Análise semiótica do cartaz de Cidade de Deus, por Marcelo Macedo

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Cena de Meia-Noite em Paris, de Woody Allen

AMARCORD Anita Ekberg em cena do filme A Doce Vida, de Federico Fellini


20TH CENTURY FOX

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E S CU R A

Por Thom Ernst

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R D O A N VI EN D B ER G

CÂ MARA

O rei do horror venéreo. Ou se preferir, o mestre do horror físico. Segundo o crítico J. Hoberman, “o mais audacioso e narrativamente desafiador diretor em atividade do cinema anglófono”. O diretor canadense David Cronenberg, nascido em 1943 em Toronto, foi, ao longo de mais de 40 anos de carreira, um dos cineastas mais originais e, conseqüentemente, anticonvencionais de seu tempo. Infiltrado no cinema de gênero, conseguiu tornar-se verdadeira referência nas últimas décadas, ao igualar sem igual mente e corpo, carne e intelecto para erigir um cinema forte, visceral e impactante. Cronenberg se refinou como ninguém na arte de filmar mirando nossas entranhas – e sempre acertar. Nesta entrevista ele fala de medo, violência e cinema.


O medo é um elemento frequentemente usado nos seus filmes. Há algo no medo que possa nos levar a ter mais controle sobre nós mesmos? Bom, você diz que eu uso o medo em meus filmes, mas realmente eu não o uso, é ele que me usa. Nunca senti que eu fizesse parte daquele tipo de mitologia sobre Hitchcock, que diz que ele como diretor manipularia a sua platéia como se fossem marionetes: ele puxaria suas cordas e os faria pular, contorcer-se, rir, chorar e gritar a seu bel-prazer. Mas, no meu caso, nunca foi assim. Eu fazia essas coisas comigo mesmo, durante a

rodagem do filme eu fazia um tipo de pequena viagem através da metafísica, da filosofia, da psicologia e tudo o mais. Então eu mesmo me assustava, convidando depois a platéia para se juntar a mim e ver quais seriam as reações de cada um. Essa é uma abordagem bastante diferente daquela que se refere a uma espécie de controlmeister, um mestre do controle ou um manipulador. Pois essa realmente nunca foi a minha abordagem com relação a fazer filmes.

Hitchcock prestou um desserviço a si mesmo quando ele fez aquele comentário, não acha? Sim, porque ele era um cineasta bem mais interessante do que poderíamos imaginar a partir dessa maneira de ele se apresentar. Mas eu penso que era alguém que gostava de ter tudo sob seu controle, e queria que pensassem que não havia outras contribuições no seu cinema. É claro que, agora, muito de quem era Hitchcock como pessoa se evidência em seus filmes, e isso os torna bem mais interessantes do que seriam caso ele fosse o manipulador de platéias que dizia ser.

Existe uma lógica subjacente à exposição de platéias à violência ou a momentos de grande desconforto? A arte sempre envolveu sexo e violência. Eu até gostaria de poder dizer que fui o primeiro a colocar os dois juntos num filme, mas nós temos quatro mil anos de criações artísticas que envolvem sexo e violência. Porque somente nos revelamos quando somos levados aos extremos do que somos e do que fazemos. Então baixamos a nossa guarda e o interior vem à tona, tanto de maneira literal como figurada, e começamos a ver o que realmente somos. Na verdade, é uma exploração da condição humana. Obviamente que esse não é o único caminho através do qual isso pode ser feito; como sabemos,

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O medo. Uma das razões pelas quais dirigi uma ópera, e um dos motivos pelos quais quis ser curador de uma exposição sobre Andy Warhol na Galeria de Arte de Ontário, foi a vontade de me assustar. Eu não queria me tornar acomodado demais, queria fazer coisas que nunca tinha feito antes. Acredito que, em certo ponto de sua carreira, você decide se vai se acomodar ou se ainda não está pronto para isso. Você não quer a versão artística dos “chinelos e cachimbo”. Eu acho que é por aí. A empreitada artística ainda me estimula, ainda é extremamente desafiadora, e parte disso está naquele medo: o medo de fazer algo no qual você sabe que pode fracassar, e talvez até se tornar motivo de piada. Por exemplo, o ambiente artístico é muito coeso, bem definido, com sua própria cultura, seus heróis, seus antagonismos e suas hostilidades, além de uma base crítica bem desenvolvida. E, para mim, entrar nesse mundo e dizer “bom, eu tenho algo a oferecer com essa exposição sobre Andy Warhol”, na verdade, é constrangedor. E foi somente porque o pessoal da Galeria de Arte de Ontário pensou que eu podia fazê-lo, que eu encontrei a coragem. Algo semelhante aconteceu com a ópera, pois esse mundo também é assim. Eu nunca dirigi teatro, muito menos ópera, e por isso a dificuldade foi duas ou três vezes maior. Você tem o espetáculo, tem a música, tem o canto e o diálogo. É muito difícil. Mas também penso que foi perfeito que A mosca, a ópera que eu dirigi baseada no meu próprio filme, com música de Howard Shore, tenha estreado em Paris e que depois tenha ido para Los Angeles, pois é uma dicotomia ótima para mim.

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Muitos cineastas que, como você, conseguiram superar as expectativas das pessoas apresentando idéias novas e desafiadoras às suas platéias, na medida em que se tornam mais aceitos podem descobrir que seu talento perdeu intensidade. Mas você parece capaz de continuar a desafiar seu público. O que ainda o inspira?

A ARTE SEMPRE ENVOLVEU SEXO E VIOLÊNCIA. EU ATÉ GOSTARIA DE PODER DIZER QUE FUI O PRIMEIRO A COLOCAR OS DOIS JUNTOS NUM FILME


A RELAÇÃO DA ARTE COM A SOCIEDADE É MUITO INSTÁVEL, E É ASSIM COMO DEVE SER. NÃO EXISTE ARTE SEM CONFLITO

de insensibilizar a sua platéia até atingir um ponto de completa indiferença. E isso, com certeza, para o artista é a pior coisa que pode acontecer.

A batalha entre censores e o cineasta é uma luta que nunca vai acabar?

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existem peças e filmes que são somente verbais, não físicos, e mesmo assim pode haver uma incrível violência mental que é revelada. É o que acontece nas peças de Harold Pinter, para mencionar apenas um exemplo recente de um artista maravilhoso que perdemos. Existe violência de muitos tipos, não só física. Mas quando pensamos em cinema, a violência física se ajusta muito bem, às vezes até bem demais. Talvez seja pela própria natureza dos filmes, da edição e da montagem, além do sofisticado trabalho de câmeras e do uso do corpo humano. Quando você é um cineasta, a maior parte do que você fotografa é o corpo humano, e isso permite explorar a violência de uma maneira que a pintura ou o romance não podem fazê-lo. O lado ruim desse ajuste tão confortável entre sexo, violência e cinema, é que isso pode e tornar um clichê. Reduzido a algo corriqueiro e banal, pode deixar as pessoas insensíveis pela sua própria freqüência ou pelo excesso, deixando de conferir esse poder instantâneo ao cineasta. Portanto, é preciso ser bom nisso, ser inteligente. Você deve ser um bom cineasta para saber usar esse artifício de uma maneira verdadeiramente artística e criativa. E, ainda, o uso de gráficos e imagens gerados por computador tem tornado a violência quase monumental cada vez mais acessível, na medida em que é cada vez mais barato fazer isso. No entanto, há certos filmes — não falarei quais são esses filmes, mas me refiro a grandes produções de Hollywood do tipo “campeão de bilheteria”— que têm somente cenas intermináveis de carnificina de diversas variedades. Agora não só é possível destruir seres humanos, mas também prédios e cidades e até planetas inteiros com grande facilidade. Mas se não existir nada além desse movimento, se for só energia cinética, isso pode se tornar chato. Eu não diria que isso pode se transformar numa ameaça social, porque não acredito nisso, mas sim acho que pode ser uma ameaça para o cinema, porque você se torna capaz

Sim, é inevitável porque a relação da arte com a sociedade é muito instável, e é assim como deve ser. Se você é um freudiano, esse seria um bom tipo de paradigma: que a arte apela para o inconsciente, para aquilo que é suprimido e reprimido. Mas a civilização toda é uma forma de repressão no paradigma freudiano, o que faz com que as duas estejam sempre em conflito. Contudo, ao mesmo tempo existe uma necessidade de arte que parte da sociedade, seja como catarse ou como uma válvula de escape, ou somente como uma necessidade humana de entender aquilo que não é permitido pela sociedade e, mesmo assim, é expresso. Também é claro que depende do tipo de sociedade, pois cada uma é diferente e tem seus próprios tipos de repressão. Mas existe uma aliança bastante instável entre a arte e a sociedade e, portanto, entre o artista e as fontes que podem vir a censurá-lo.

Então você não faz idéia de quem é que está sentando no escuro assistindo a seus filmes? Não. Ou seja, eu encontro fãs que conversam comigo, e você esperaria que fossem talvez um monte de maníacos e psicóticos por causa dos meus filmes, mas na verdade eles são os fãs mais doces do mundo. Eu adoro meus fãs, mas é claro que eles não são a minha única platéia. Aliás, eu não quero só isso, quero uma platéia mais ampla focaliza somente minha obra. Eu sempre me surpreendo com o tipo de pessoa que gosta dos meus filmes. E também me espanto com os filmes que mencionam como seus favoritos. É bastante esclarecedor. Quando a gente já possui certo volume de trabalho e as pessoas chegam e dizem “eu gosto deste filme”, e de repente esse talvez tenha sido o primeiro e nem eu mesmo sei ao certo se ainda gosto ou não, então eu olho para a pessoa e penso: “será que você não gostou de nenhum dos outros?”. Não há muita explicação para isso, o que faz sentido pelo fato de que é muito subjetiva a reação que cada um tem diante de uma obra. Quando alguém chega perto de mim e está prestes a dizer “eu gosto mesmo do que você faz”, e então diz “Gêmeos foi o meu favorito”, ou então Crash ou Scanners ou meus primeiros filmes de terror, nunca sei realmente qual deles cada um vai apontar. É um exercício interessante tentar descobrir qual é o favorito de cada pessoa.


20TH CENTURY FOX

20TH CENTURY FOX

Holly Hunter em cena de Crash - Estranhos Prazeres, de

Ralph Fiennes em Spider - Desafie sua mente, de 2002, onde

1996, polêmico filme sobre desejos e auto-flagelo.

Cronenberg trata sobre o incesto.

Mas você fez um remake de A mosca. É diferente. Eu não estava fazendo um remake de um filme meu. A mosca original foi encantador e interessante, mas não foi uma obra de arte. Eu me senti assim porque a descoberta do DNA, e de tudo mais, me levaria a fazer um filme que seria bem diferente do anterior e que não incomodaria os aficionados pelo primeiro filme. Na época, as pessoas me perguntavam: “você vai pedir a Vincent Price que faça uma aparição?”, e eu de fato fiz uma pequena entrevista no rádio com ele sobre isso. Mas eu respondi que não, de jeito nenhum. Porque

Existe algum tema recorrente, que você se sinta compelido a continuar explorando? Eu realmente não penso em filmes como sendo “temas”. Acredito que eles podem ser uma ferramenta analítica, podem se tornar um instrumento crítico, mas não penso que isso faça parte do processo criativo. Nunca me digo algo como: “agora vou explorar o tema da identidade”. Claro que consigo entender quando alguém diz: “o tema da identidade perpassa todos os seus filmes”. Eu consigo entender, estudei literatura e poderia até ter sido um crítico literário ou cinematográfico, talvez. Quero dizer, eu consigo fazer esse exercício, mas a criação não começa por aí. Um filme não vem de algo abstrato como um tema. Para resumir, então, a resposta é que não se trata de um tema, é geralmente algo muito mais físico ou visual ou humano que algo abstrato como uma idéia. *Thom Ernst é pesquisador e crítico de cinema

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Mais uma vez, é uma questão de evolução. Se você sempre faz a mesma coisa, vai acabar entediado e vai terminar entediando também a platéia. Por isso, há sempre um desejo de... é mais que um desejo, aliás, é algo natural: seus interesses mudam ao mesmo tempo em que a sua vida muda, sua própria perspectiva sobre as coisas vai se transformando. Bob Dylan disse uma vez que ele não poderia se imaginar escrevendo agora as mesmas músicas pelas quais ficou famoso. Ele diz não saber de onde elas vieram, e não conseguiria repeti-las agora. É a mais pura verdade, e todos nós temos de alguma maneira essa experiência. Ás vezes somos forçados a pensar sobre isso e a contemplar a possibilidade de fazer mais uma vez algo que já fizemos, quando alguém diz “queremos que você faça um remake de Calafrios”, por exemplo, ou de Scanners ou de seja lá o que for. Mas eu não conseguiria fazê-los de novo.

quando isso se transforma em um filme sobre outros filmes, quando se torna nostalgia, corre o risco de ser algo retrô e isso destruiria a potência do filme. Esse seria um elemento bastante subversivo do tipo errado num remake. E também imagino que Vincent Price odiaria o meu filme. Eu não sei qual foi a verdadeira reação dele diante de A mosca, mas ele foi muito gentil comigo nessa entrevista por telefone que fizemos, muito amável e um verdadeiro cavalheiro. Minha percepção sobre ele é exatamente essa: um cavalheiro bastante gentil e amável. Imagino que ele ficaria meio incomodado com a violência extrema do meu filme, e talvez com a sexualidade também. Eu acredito que a geração dele – embora seja horrível rotular -, especialmente conhecendo o tipo de pessoa que ele era (e eu cheguei a conhecê-lo um pouco), enfim, creio que ele não iria gostar muito desses aspectos do meu filme.

CÂ M AR A

Disseram-me que os cineastas, em geral, não gostam de ser comparados com outros diretores, mas quando você afirmava agora que muitas pessoas dizem gostar dos seus primeiros filmes de terror, fiquei pensando naqueles que se aproximam de Woody Allen e lhe perguntam: “por que você não volta a fazer comédias?”.


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PARAMOUNT PICTURES

P R E MIÉ RE

Binoche por Kiarostami Por Neusa Barbosa

A atriz francesa Juliette Binoche resplandece no premiado “Cópia Fiel”, do diretor iraniano Abbas Kiarostami, filme que lhe rendeu a Palma de Ouro no Fes- “Ser ator é estabelecer uma com o público”, diz tival de Cannes, relação Binoche. “E não há nada mel2010 em maio. hor do que encontrar diretores

interessados em compreender a humanidade, em tocar nas questões que importam. O filme é Refletindo uma preocupação presente ao engraçado e tam- longo da própria obra de Kiarostami e de outbém triste, é real e ros cineastas iranianos, bem como particunum trabalho recente do brasileiro imaginativo, é leve larmente Eduardo Coutinho (“Jogo de Cena”), “Cópia e denso. A vida não Fiel” constroi um admirável jogo de verdades é assim também?” e mentiras de um casal, formado por Juliette

Juliette Binoche: “Cópia Fiel” é um filme de deslocamentos, sobreposições. O que transforma as coisas mostradas em arte é o olhar do espectador.

Binoche e o cantor lírico britânico William Shimell, estreando no cinema. A verdadeira natureza do relacionamento destes dois é uma das chaves da descoberta da história, cheia de camadas, climas e evocações. Filmado em belíssimos cenários da Toscana, o filme é uma joia intimista, pulsante nos rostos

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PARAMOUNT PICTURES

Fragmentos de obras de M.C.Escher

a atriz em cena de Cópia Fiel. Antes da Palma de Ouro, Binoche havia recebido o Oscar por Paciente Inglês, de 1996.

de seus atores e em que o uso do discurso amoroso - oscilando entre o inglês, o francês e o italiano - é movido pelas chamas, ora amortecidas, ora vibrantes, da maturidade. Nas primeiras cenas, vê-se o escritor James Miller (Shimell) chegando a uma cidadezinha italiana para uma palestra sobre seu novo livro sobre arte, que se chama justamente “Cópia Fiel”. A partir de detalhes aparentemente banais, evidencia-se um dos temas do filme, sobre as contínuas interrupções do discurso, qualquer que seja. Como quando a apresentação de Miller é interrompida pelo toque de seu próprio celular e pela entrada de uma espectadora atrasada (Juliette Binoche) e seu filho (Adrian Moore). O fato de que ela se senta entre os lugares reservados na plateia e que cochiche com o tradutor do livro, ao seu lado, parece evidenciar que ela é íntima do escritor. Mais tarde, uma conversa com o filho dá a pista de que, na verdade, ela procura essa intimidade. Quando Miller e ela finalmente se encontram, na loja de antiguidades dela, eles parecem na verdade estranhos que podem ou não querer se conhecer. Sem querer estragar o jogo da narrativa, o relacionamento entre os

dois atravessa vários climas, da tentativa de sedução ao compartilhamento de lembranças e sensações. É como se estes dois tivessem vivido algumas vidas diferentes e, em algumas, se encontrado, noutras, se perdido - sem que isso acarrete nada de sobrenatural, apenas experiências diversas ao longo dos anos. Além da natureza instável do amor, “Cópia Fiel” toca outros temas - o primeiro deles, o que dá nome à obra, em torno da importância da discussão sobre o que é autêntico ou falsificado, e o valor, relativo ou absoluto, das muitas cópias encontradas no mundo da arte. Nesta discussão, é envolvido inclusive um casal de passagem, (o famoso roteirista Jean-Claude Carrière e Agathe Natanson). Justamente quando procura engajá-los a favor de seus argumentos, a protagonista encontra no passante ocasional um intérprete ideal do que está, emocionalmente, tentando dizer a Miller - sem que este a entenda, independentemente da língua que ela fale. Essas várias línguas que se sobrepõem são o símbolo vivo das várias camadas de incompreensão que podem se acumular entre as pessoas nesta Babel que não é só linguística, mas sobretudo emo-

cional e amorosa. Os vários casais que aparecem no filme - os jovens noivos apaixonados que se sucedem para uma foto junto a uma estátua tida como portadora de sorte; o par maduro que conduz o filme; e uma dupla de velhinhos que eles encontram perto do final - todos se somam como retratos dos vários tempos do amor. Essa maneira circular de expor seu tema é o grande segredo da magia do filme, que demonstra o engenho raro de sua direção e de sua dupla principal de atores, conduzindo-se esta espiral de sensações com inteligência e sutileza exemplares. Não é o tipo do filme que se vê todos os dias. Mas é certamente o tipo que se deseja imediatamente rever.Melhor atriz no Festival de Cannes 2010, Juliette Binoche resplandece em “Cópia Fiel”, novo filme do diretor iraniano Abbas Kiarostami. CÓPIA FIEL (Copie Conforme) França, Itália e Bélgica, 2010 | 106min. Direção: Abbas Kiarostami Elenco: Juliette Binoche, William Shimell e JeanClaude Carrière Roteiro: Abbas Kiarostami Lançamento: 03 de junho


Kiarostami, entre o real e a dúvida Luiz

Ca rl o s

São estranhos - Juliette Binoche e o escritor, interpretado pelo barítono William Shimell, que se conhecem quando ela assiste à leitura que ele faz de um trecho de seu novo livro, sobre a relação entre cópia e original. Estamos falando de obras de arte. Os dois caem na estrada, numa das mais belas regiões do mundo - a Toscana, cenário de grandes filmes de Bernardo Bertolucci e dos irmãos Taviani. Tomam café, jantam, visitam um hotel. De repente, ela pergunta ao homem se ele se lembra do hotel em que passaram a lua de mel? São casados? A dúvida persiste em Cópia Fiel, o novo Abbas Kiarostami, que estreia hoje nos cinemas brasileiros, depois de integrar a Mostra passada. O autor não se preocupa em esclarecer a natureza da relação entre Juliette e Shimell. Em Cannes, 2010, pressionado por jornalistas dos EUA, Kiarostami chegou a ironizar. Disse que era ‘irrelevante’ saber se Juliette e Shimell são casados (ou não). E ele chegou a acrescentar, com alguma malícia: “É o menor dos problemas que o público deve experimentar assistindo ao filme”. Mas, se este é o menor, qual é o maior? A essa pergunta, Kiarostami nem responde. Para fruir Cópia Fiel, o espectador tem de se fazer coautor, formular ele próprio as explicações. O filme de Kiarostami pode não ser o melhor do ano, até agora - afinal de contas, Poesia, do sul-coreano Lee Chang-dong, já jogou as expectativas de 2011 lá no alto -, mas é certamente mais um capítulo intrigante da obra de um artista que, nos últimos anos, tem investigado a linguagem como as relações entre as pessoas. Pela articulação desses dois elementos - a linguagem e o estar do homem no mundo -, Kiarostami tem conseguido dar seu testemunho sobre o Irã dos aiatolás. O caso de Cópia Fiel virou um pouco particular. Kiarostami filmou na Itália, sem relação aparente com os problemas de seu país de origem. Ele se vale do seu prestígio

Merten

internacional - como ‘autor - para seguir filmando, num momento em que as condições, sob o regime de Mahmoud Ahmadinejad, se tornam cada vez mais duras. O próximo Kiarostami será feito no Japão, ou seria. Dadas as condições atuais do país devastado pela tragédia combinada do terremoto mais tsunami mais ameaça nuclear, é pouco provável que Kiarostami consiga manter o cronograma de produção. E o fato de ele não filmar no Irã não significa que esteja a salvo das graves questões que ocorrem no país. Kiarostami, está neste momento, em Teerã. Só fala farsi (seu inglês é ‘limitado’, como diz). Sua tradutora, com quem gosta de trabalhar, mora em Paris, o que dificulta o contato. Desde Cannes, no ano passado, Kiarostami tem se manifestado em defesa de Jafar Panahi. Desde o ano passado, Panahi foi condenado e privado de seus direitos, o que motivou uma homenagem no Festival de Berlim deste ano e uma corrente internacional de solidariedade (e protesto). Na coletiva de Cópia Fiel, em maio passado, Juliette Binoche já chorara por Panahi. Suas lágrimas correram mundo. “Foi um gesto humanitário, não político”, esclareceu a atriz. Ao Estado, ela explicou que a origem de Cópia Fiel está numa história que Kiarostami lhe contou, no Irã, que ela visitou, a convite dele. A história, cada vez mais complicada e emocionante, deixou Juliette com o coração na mão. Quando ela cobrou de Kiarostami o desfecho, ele lhe confessou rindo que era tudo invenção, tudo mentira. A origem do filme foi essa, mas Kiarostami incorporou a história de outro célebre casal cinematográfico - o protagonizado por Ingrid Bergman e George Sanders em Viagem na Itália, de Roberto Rossellini. Cópia e original, verdade e mentira. Kiarostami reinventa sua linguagem e, ao fazê-lo, pouco importa se o casal é casado, ou não. A essência da discussão sobre as relações afetivas, essa sim, é verdadeira.

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cadernos de

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CRÍTICA

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SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA BRÓDER

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Singularidades de uma rapariga loura de Manoel de Oliveira

DO LITERÁRIO AO TEATRAL p or

INÁ CIO

É fantástico “Singularidades de uma Rapariga”, o Manoel de Oliveira que acaba de entrar em cartaz. Já tinha passado na Mostra, na penúltima, mas a gente vai correndo ao cinema, assim que pode, para rever. É um gesto quase automático. Oliveira cria, a rigor, várias raparigas. A garota por que Macário se apaixona ao ver através de uma janela, protegida por um véu, a imagem de sonho da linda garota, Luísa. Rapariga ficcional: personagem de um quadro, ou de um filme visível pela janela indiscreta de Macário. Aos poucos, Luísa deixará o reino da ficção para se tornar palpável. A encontraremos na loja do severo tio de Macário, Diogo. Mais tarde,

ARAÚJO

no estranho círculo literário onde enfim será apresentada a Macário. Haverá ainda mais uma Luísa. Não se pode falar dela. Seria estrepar com quem ainda não viu o filme. Mas pode-se dizer que ela será tão surpreendente que deixará de ser real ou realista para assumir uma terceira natureza. Ou terceira personalidade, acho que no caso dá no mesmo: esta última vai atirála num registro de franca irrealidade. Essa última personalidade de Luísa existe, fiquei com a impressão desta vez, em relação com o tipo de trabalho de Oliveira sobre o tempo. Num momento estamos no Portugal moderníssimo da União Européia: um trem belíssimo a em-

A ÁRVORE DA VIDA MEIA-NOITE EM PARIS MELANCHOLIA

balar a história que Macário conta à mulher (Leonor Amarante).De repente, chegamos à loja. À austeridade quase demente do tio Francisco (Diogo Dória). À idéia de uma viagem a Cabo Verde como se fosse o exílio (não conheço o original, não sei se é assim que as coisas se passam lá). O círculo literário criado por um ministro da Informação de Salazar!!! Luís Miguel Cintra declamando O Guardador de Rebanhos, nesse jogo que vai do literário e o teatral.Enfim, é como se o filme revolvesse várias camadas de tempo, várias histórias, várias sensibilidades portuguesas a partir da saga de Luísa, que é, no mais, bem esquiva, bem Capitu. É impressionante como Oliveira enfileira filmes insubstituíveis, um atrás do outro. SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA (idem) Portugal, Espanha e França, 2010 | 143min. Direção: Manoel de Oliveira Elenco: Ricardo Trêpa, Catarina Wallenstein e Diogo Dória Roteiro: Manoel de Oliveira Lançamento: 03 de junho

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Bróder de Jeferson De

REFAVELA po r

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CHRISTIAN

Depois de tomarem rumos diferentes na vida, três amigos de infância, agora jovens adultos, moradores do Capão Redondo, bairro pobre de São Paulo, se reencontram na favela, para comemorar o aniversário de um deles. Este é o ponto de partida de “Bróder”, longa de estreia do diretor paulistano Jeferson De. Para contar a história do trio de protagonistas, os personagens Macu, Pibe e Jaiminho, o cineasta traça um retrato íntimo do Capão Redondo, sem romantizações ou glamurizações à práticas criminosas. Por conta disso, o filme se destaca, mesmo que ele seja vinculado ao rótulo de “favela movie”, sub-gênero que tem em “Cidade de Deus”, seu primeiro representante. “Quando recebi o roteiro do diretor Jeferson De, eu senti imediatamente que ele conhecia de perto aqueles personagens, aquele lugar. E que ele, por ser negro, faria um filme diferente, sensível, cheio de afeto. Me bateu também o orgulho de poder representar um garoto criado na cultura negra, na música negra, e que se sente negro, mesmo

P ET ER MAN

sendo branco”, afirma Caio Blat, intérprete de Macu, o personagem marginalizado da trama. Enquanto Jonathan Haagensen interpreta Jaiminho, um jogador de futebol bem-sucedido, que mora atualmente na Espanha, Sílvio Guindane dá vida a Pibe, um tipo comum brasileiro, casado e pai de um filho, que trabalha muito para ganhar pouco. Juntos, o trio representa as principais camadas da sociedade: aquela que causa medo, aquela que gera aplausos e aquele que nos é indiferente. “Meu personagem representa o meio, já que existem dois extremos, um lado marginal, e o outro da glória, da fama. O Pibe representa 80% da população da comunidade do Capão, ele não causa medo, nem causa aplauso. Ele sai da favela e vai para o centro de São Paulo, que também é um lugar bem pobre. O filme começa com a luz cortada na casa dele, ele não tem um grande talento, não canta, não joga bola, não sabe ser bandido, não mente, um cara que poderia ser economista, mas faltou estudo.

Ele representa a grande população da periferia, o trabalhador”, explica Sílvio Guindane, o Pibe. Distante da comunidade há muitos anos, Jaiminho volta e comprova que perdeu a intimidade com pessoas que fizeram parte de seu passado recente. Ele ainda se sente parte do Capão, mas sua nova condição de vida, que inclui um carro importado, visto nos mais caros videoclipes de hip hop americano, e um visual reformulado, com roupas de grife e penteados estilizados, o distancia desta dura realidade. Para viver o personagem, Haagensen contou que visitou clubes, e tentou se apropriar de características de jogadores famosos como Adriano e Neymar. “Mergulhei muito neste universo (do futebol). Ele é um personagem muito brasileiro, todo mundo é fã de algum jogador de futebol, algo que faz parte da nossa cultura” “Bróder” inverte a expectativa do cinema brasileiro, e apresenta o personagem branco marginalizado, e o personagem negro bem-sucedido. Sobre a decisão de rodar um filme sobre a essência da amizade, o diretor revela quem é sua fonte de inspiração: “Meu grande mestre é o Shakespeare. Eu só tento copiá-lo: dramas, traição, amizade, a natureza humana, isso que me interessa. “Bróder” é um grande drama, que eu poderia ter feito no Leblon, mas não conheço tanta gente no Leblon, poderia ter feita na periferia de Paris, mas eu conhecia um número muito grande de pessoas no Capão Redondo, e foi aonde eu resolvi filmar”, explica Jeferson De. “Bróder” diverte, emocia e informa, tudo ao mesmo tempo, e é pontuado por uma trilha sonora de rap paulistano, dos clássicos Racionais MCs ao novato Emicida. Jeferson De começou com pé direito sua carreira nos longas-metragens. BRÓDER (Bróder) Brasil, 2011 | 120min. Direção: Jeferson De Elenco: Caio Blat, Jonathan Haagensen e Silvio Guindane Roteiro: Jeferson De e Newton Cannito Lançamento: 03 de junho


Como falar de um filme como A Árvore da Vida? De um filme tão grande tanto na sua ambição quanto na sua execução? Tão transcendente em cada linha de diálogo, em cada plano? Como falar de um filme que em duas horas e pouco mais aborda todas as grandes questões da vida humana? Todas as suas dúvidas, todas as suas contradições, toda a sua beleza e ao mesmo tempo toda a sua escuridão. Como falar de um filme sem paralelo na história do Cinema, verdadeiramente único em… bem, em tudo? O regresso de Terrence Malick (não o irei sequer comparar com os seus filmes anteriores, já que são todos únicos) é um filme do qual é difícil falar, mas que é fácil de sentir. É arrebatador e intimidante na sua dimensão e, ao mesmo tempo, no seu intimismo. Falar da sua história (que, creio eu, se pode dizer que é basicamente sobre uma família nos anos 50) é inútil, já que o filme se assume como uma obra profundamente meditativa e, acima de tudo, fluída. O tempo, o espiritual e o humano são as personagens principais de um filme que fala, acima de tudo, sobre a vida. A vida está em A Árvore da Vida em toda a sua dimensão. Desde a sua origem no espaço ao seu crescimento na Terra; desde o crescimento na América dos anos 50 à vida no mundo actual onde os edifícios chegam ao céu como a Torre de Babel tentava chegar a Deus. Esteticamente, é a perfeição absoluta. Imagem memorável atrás de imagem memorável, uma experiência sensatorial perfeita apenas comparável, no cinema mais recente, a The Fountain – O Último Capítulo, de Darren Aronofsky. As cenas no espaço, aliás, dão a impressão de que Malick resgatou a técnica de

TRIN DA DE

microfotografia usada por Aronofsky, com efeitos igualmente assombrosos. Os ângulos são perfeitos, a handcamera está sempre onde tem de estar, movimentando-se sempre da forma correcta, e todo o universo imagético criado por Malick é incrível, com imagens e símbolos que ficarão com o espectador muito depois de este ter saído da sala de cinema (a última meia-hora, em particular, é absolutamente incrível). Há que falar também das interpretações, todas elas óptimas. Sean Penn é, para todos os efeitos, o que menos aparece, mas é aqui que se vê a o seu talento: mesmo com menos cenas, usa a sua presença (algo imprescindível para qualquer actor que trabalhe com Malick) para criar momentos memoráveis, particularmente perto do final do filme. Os jovens actores estão todos óptimos, tal como a magnífica Jessica Chastain, mas é Brad Pitt quem mais impressiona, sendo a mais imponente presença no ecrã, com uma excelente personagem que, possivelmente, muito terá a ver com o passado de Malick. Todo o

A ARVORE DA VIDA (The Tree of Life) EUA, 2011 | 138min. Direção: Terrence Malick Elenco: Brad Pitt, Sean Penn, Jessica Chastain e Hunter McCracken Roteiro: Terrence Malick Lançamento: 10 de junho

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G ON ÇA LO

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CA D E R N O

UM MONUMENTO À VIDA

cenário passado nos anos 50, todas as questões que trespassam o filme mostram um homem em processo de meditação sobre si mesmo e o mundo que o rodeia. Perda de inocência, dúvida religiosa, conflictos famiiares, o apreço dado à vida…. tudo está presente no filme, vivido pelo realizador. Terrence Malick ergueu um filme absolutamente monumental, gigantesco, arrebatador em todos os seus aspectos, feito por um realizador no seu auge, em controlo absoluto do seu talento. O que aqui temos é um filme que transborda vida, sentimento e pura transcendência. A Árvore da Vida é, acima de tudo, uma experiência que tem tanto de espiritual quanto de sensatorial, único e incomparável. Não pode ser explicado, apenas visto, e para quem dele gostar será, certamente, algo de memorável. Não é um filme para todos, poderá desiludir até fãs do realizador, mas jamais poderia ser de outra forma num filme tão pessoal e, ao mesmo tempo, tão gigantesco. É por vezes incompreensível, frequentemente arrebatador, por vezes profundamente comovente, e todo ele transcendente. Como a vida, portanto.

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A Árvore da Vida de Terrence Malick


Meia-noite em Paris de Woody Allen

OS EXILADOS DE ALLEN por

AN A

MARIA

É uma boa coisa que Meia Noite em Paris (Midnight in Paris, Woody Allen, 2011) tenha sido escolhido para abrir o Festival de Cannes, semana passada: poucos filmes que eu me lembre realizam tão bem a visão do encontro entre cinemão e cineminha, entre Estados Unidos e França. É delicioso, leve, altamente digerível mas bem acabado, bem articulado, bem resolvido coisa que nem sempre os últimos trabalhos de Woody Allen tem sido, especialmente quando ele se deixa possuir por rancor, amargura e cinismo. Estamos bem longe disso nesta meia noite numa Paris da imaginação. O clima é A Rosa Púrpura do Cairo e não Celebridade: um bombom, talvez um suspiro, e não uma poção de arsênico. Pena que, para presevar a delícia do filme, eu não possa dizer quase nada sobre ele _ é um desses 20TH CENTURY FOX

B AH IANA

que quanto menos se sabe antes de sentar na cadeira, melhor. O que posso dizer: um escritor frustrado (Owen Wilson, escolha mais que certa para o papel) vai com sua noiva (Rachel McAdams, ótima) e a familia dela para Paris. O pretexto é uma viagem de negócios do futuro sogrão (Kurt Fuller) republicano roxo, produto típico da era Bush . A viagem deveria ser também uma excursão de compras para a nova casa dos noivinhos (que ainda não existe) guiada pela futura sogra ,o tipo de pessoa que acha uma cadeira de dezenas de milhares de euros “uma pechincha”. No meio do caminho haverá o encontro com o ex-namorado da moça (Michael Sheen) um sujeito pomposo que gosta de dar palestras espontâneas sobre qualquer assunto, de vinhos a história da arte, mesmo que ninguém queira ouvir.

Gil, o escritor, é um roteirista de sucesso mas intui, como muitos antes dele, que ser apenas “super procurado pelos estúdios “ (palavras da noiva) não é o suficiente para saciar sua fome de algo mais, a busca de uma felicidade sem nome que ele, talvez por falta de opções, coloca no passado, na Paris dos anos 1920, onde modernismo, cubismo e surrealismo estavam sendo criados e uma geração de autores e artistas norte-americanos, alegremente auto-exilados, se reinventava. “Nostalgia é medo do futuro”, pontifica o ex-namorado, e ele tem mais que um pouco de razão (o que não o torna menos irritante.) E então, numa bela noite, Gil tem uma epifania mágica… Como em tantos outros de seus filmes, Gil é um alter–ego de Allen. Ou melhor, uma faceta de sua alma, aquela que, no outono da vida, reavalia uma carreira de sucesso e pensa se isso é ou não o bastante. A decisão de abordar esse dilema com generosidade e lirismo – e não com ressentimento e sarcasmo – é o que faz Meia Noite em Paris a delícia que é, indo além dos dez minutos de cartão postal da abertura para uma visão gloriosa da Paris dos sonhos, das possibilidades, repositório das aspirações de gente criativa e contra a corrente de todas as épocas. Allen está no topo de sua forma como dialoguista e desenhista de personagens. Em poucos traços, sabemos exatamente quem são esses americanos exilados em Paris e o que cada um espera da Cidade Luz (que, na visão de Woody, retribui exatamente na medida do desejo de cada um, cidade-fada-madrinha dos sonhos alheios). A escolha do elenco é perfeita, a fotografia é linda e o gosto de Allen pelo jazz dos Roaring Twenties casa-se perfeitamente com o clima do filme. MEIA-NOITE EM PARIS (Midnight in Paris) Hungria, 2011 | 138min. Direção: Woody Allen Elenco: Owen Wilson, Rachel McAdams e Kathy Bates Roterio: Woody Allen Lançamento: 17 de junho


E DUA RDO

Após dois longos anos de espera, eis que Von Trier nos traz Melancholia. O filme é algo novo e, como tal, provou que é realmente um “auteur”. Mas não como você viu antes. O filme começa com um sequência vertiginosa, que irei comentar mais tarde e em seguida se divide em duas partes. A primeira nos mostra a festa de casamento de Kirsten Dunst, uma executiva de publicidade que sofre de depressaã e tem uma família bem, digamos, complicada. John Hurt é seu pai, Charlotte Rampling sua mãe, Charlotte Gainsbourg (que levou prêmio de melhor atriz em Cannes por sua interpretação em ANTICHRIST) como sua irmã e Kiefer Sutherland como o cunhado. Todas as performances estão boas, embora o roteiro não trate Sutherland muito bem. É interessante ver que Dunst, após garantir uns milhões na conta bancária com a trilogia do Homem-Aranha, está se arriscando cada vez mais. No meio do filme, após o término da festa, a personagem nota um estranho objeto celeste. Na segunda parte,

CA S TRO

ja é constatado que este estranho objeto é um planeta novo, que, escondido atrás do sol, passara desapercebido pelos astrônomos. O planeta, chamado Melancolia, está numa possivel trajetória de colisão com a terra, e é enquanto os personagens aguardam o veredito sobre o fim da vida na terra que o filme ganha força. O filme é apocalíptico, mas ele nos mostra isto somente através de 4 pessoas: Dunst, Gainsbourg, Sutherland e o filho do casal, que estão habitando a mansão de Gainsbourg e Sutherland. Em momento algum vemos imagens de outros locais no planeta ou mesmo trechos de telejornais para nos guiar. Enquanto o filme começa lotado de gente (na extensa festa de casamento) ele termina focado nestas poucas pessoas. É um filme que evoca suas questões poeticamente, nunca explicitamente: vale a pena nos salvarmos? O que acharíamos do fim? Como vamos encarar o fim do mundo? Repito, seria fácil ele concluir que nos comportaríamos como

MELACHOLIA (Melancholia) Hungria, 2011 | 138min. Direção: Lars von Trier Elenco: Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg e Kiefer Sutherland Roteiro: Lars von Trier Lançamento: 24 de junho

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O ENSAIO SOBRE O FIM

CA D E R N O

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Melancholia de Lars Von Trier

animais selvagens e chocar, mas ele abandonou as caricaturas e tratou, neste filme, de pessoas reais. Devemos tratar da fotografia, o ponto mais forte do filme. Parece que Von Trier abandonou completamente suas regras do Dogma pois, nos 10 minutos iniciais, que todos os críiticos devem mencionar, assistimos seis ou oito composições de câmera que usam tilt-shift, super slow-motion e até computação gráfica. Lars von Trier seria o último diretor de quem eu esperaria ver uma cena espacial com o planeta Terra. O filme é uma maravilha de se ver. Lindo, lindo, lindo. Ele optou sempre pela câmera na mão, mas invés de planos sequência usa cortes rápidos. O foquista, coitado, deve ter penado, pois mesmo no produto final a transição entre um ponto focal e outro às vezes é bem perceptível.Alguns podem ficar um pouco tontos com tanto movimento de câmera, mas pra quem já conhece, vai dar tudo certo. É também um filme bem feminino, que deve dar ao diretor um pouco de distração das inúmeras acusações de misoginia que ele sempre recebe. Na verdade há até um contraste duro entre os homens e as mulheres no filme, mas dizer muita coisa revela spoilers da trama. Fica pelo menos a dica, de que o diretor consegue mesmo transitar neste mundo menos agressivo. Mas o título dá uma dica: é um filme emotivo, como a propria melancolia, mas não é nem histérico nem controverso. Pode ser que muitos dos que vieram vêlo com um apetite pelo sanguinário saíram desapontados, mas os que buscam uma meditação técnica e artisticamente brilhante sairão satisfeitos. Pela primeira vez uma estranha se direcionou a mim após o filme. Perguntou: “Onde que conseguiremos ver uma ficçãoo assim, hoje em dia?”


CIDADE DE DEUS

desconstruindo o cartaz de

CIDADE DE DEUS por

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MAR C ELO

O cartaz do filme “Cidade de Deus” traz uma proposta visual bem interessante, com oposições bem definidas e um conjunto gráfico uniforme e coeso. Em relação às cores, apresenta pouquíssima variação, oscilando basicamente na faixa de tons quentes compreendida entre amarelo e vermelho. O título do filme, em branco puro, é o elemento que mais destoa do conjunto, seguido em menor grau pelos tons negros das roupas de alguns personagens. Não se constata a presença de nenhum matiz de cores frias, como 0 verde e 0 azul , 0 que condiciona as associacões afetivas geradas pelo observador a um espetro bern definido. Tal como no filme. excetuando-se 0 caso excepcional do narrador. a realidade mostrada não acena com a possibilidade de mudança nem suscita ambigiiidade nas interpretação. As personagens são 0 que são e cumprem 0 papel a eles destinado, ou deles esperado. Estão enclausurados em seu contexto. Lüscher, baseado em pesquisas, sustenta ser 0 vermelho puro excitante. provocando uma estimulação ern todo 0 sislema nervoso quando olhado por um certo tempo. Provoca tambem alteração no ritmo cardíaco e elevação da pressão arterial. Fitar o azul, por outro lado, produz um efeito exatamente contrário: a respiração e o ritmo cardíaco diminuem. O azul, assim, tem efeito

ME LLO

MAC E DO

psicológico calmante. Como o filme em questão é caracterizado por um ritmo frenético e nervoso, pontuado por cenas de suspense do início ao fim, o vermelho foi uma escolha acertada na proposta gráfica do seu cartaz. Entre as associações afetivas pontuadas por Farina (1986) acerca do vermelho, aplicam-se neste caso o furor, violência, intensidade, excitação e ação, entre outras. Quanto aos tons alaranjados, que na verdade são os que predominam no conjunto, suscitam euforia e energia estimulantes no espectador. O amarelo, nascendo de uma luz branca atrás do grupo e logo transmutandose em espontainedade e expectativa, segundo o mesmo autor. Essa cena do grupo de jovens armados realmente faz parte do filme, apesar de ter sido recortada e colocada sobre o fundo amarelo. Corresponde ao momento do encontro inesperado com policiais, ficando Buscapé entre as duas forças. Sob o comando de Zé Pequeno, que os incentiva a não se acovardarem, todos sacam suas armas e medem forças com os policiais. Daí a adequabilidade do amarelo para transmitir as conotações de orgulho, idealismo e expectativa, citadas acima. Conforme exposto anteriormente, as cores quentes produzem uma reação expansiva, ou seja, dão a impressão de se aproximarem do observador. Com o uso dessas cores e da forma como os elementos foram


GRÁTIS, NA SUA 8 E 1/2, UMA RÉPLICA DO CARTAZ ORIGINAL DO FILME

CA R T A Z

*Marcelo Mello Macedo é biblioteconomista, publicitá­ rio e pesquisador pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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outro lado, difere do título na sua função e tipologia. Escrita em fonte estilo manuscrito, combina com a fala do narrador; consistindo de um jogo de palavras, centrado na própria imagem, cumpre a função poética do cartaz. Devido ao seu reduzido tamanho, entretanto, quase se confundindo com os dados técnicos dda produção, não pode ser tomado com um pólo de oposição nem ao título nem a qualquer outro elemento. Por isso, não será aqui trabalhado dentro da semiótica plástica do cartaz. O título, por suas já citadas características e por não ter elemento com o qual formar oposição, igualmente, também será descartada nesta análise. Por fim, a galinha, uma clara metaforização da situação do narrador. A fuga desesperada daquela, no início do filme, não representa senão outro tipo de fuga (ainda que os algozes sejam muitos semelhantes), esta protagonizada por Buscapé durante toda a trama. No cartaz, a ave tenta alçar vôo em direção ao observador, única saída possível daquela atmosfera quente e sufocante. O narrador, do mesmo modo, encontra sua saída além da Cidade de Deus. A galinha se salva por acaso; nosso personagem, pela determinação, pela vaidade de outrem (o desejo de Zé Pequeno de ser fotografado com seu bando e suas armas) e, porque não, também por uma pitada de acaso.

A R T E

dispostos, o cartaz transmite uma das idéias centrais do filme: a impossibilidade de saída daquele mundo. Mais de dois terços do espaço vertical corresponde ao chão. A faixa superior, onde está o bando, teve o fundo original substituído por uma cor expansiva, de modo a suprimir a noção de profundidade que um azul, e sim edificações da favela, a supressão desses elementos “fecha” ainda mais essa cena, passando a idéia que a Cidade de Deus não oferece alternativas: ou se entre para o crime, ou tenta-se a mesma sorte da galinha. Isso, inclusive, gerou protestos, segundo o crítico Ismail Xavier, por mostrar a comunidade aí estigmaizada, reproduzindo o esteriótipo já criado pela imprensa antes do filme. Quanto ao conteúdo verbal do cartaz, os únicos elemnetos que poderiam participar de uma semiótica plástica seriam o título e a dupla de sentenças logo acima, que correspondem ao trecho da música que o narrador parodiou ao se referir à Cidade de Deus. O título usa a linguagem na sua função meramente referencial: a fonte utilizada é comum, sem floreios gráficos, mas encorpada e de contornos levemente ondulados, passando uma idéia de solidez (como se os caracteres fossem feitos em pedra). A razão de ser grafado em branco refere-se provavelmente à necessidade de um bom contraste com o fundo vermelho-alaranjado. O preto não daria o destaque necessário; tons quentes, menos ainda, e o azul complementar aos tons do fundo quebraria a proposta gráfica. A dupla de sentenças, por


AM A R CO R D

Anita Ekberg se banha na Fontana di Trevi no clรกssico A Doce Vida (La Dolce Vita), dirigido por Federico Fellini.

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CINECITTร


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