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Entrevista do Mês
Sara Graça é Petra Von Preta, afrodescendente via S.Vicente em Cabo Verde e uma artista multidisciplinar que se move em várias vertentes da arte. É uma exploradora nata nas formas de expressão artística e anda a dar nas vistas! Falámos com ela.
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Qual das vertentes artísticas surgiu primeiro em ti e como foi essa escolha?
É complicado escolher ao certo, mas acho que de forma natural, foi o desenho. Digo isto porque desde que me lembro que ando com uma caneta, no mínimo, para todo o lado. Sempre desenhei e gostei imenso de trabalhos criativos. Quando aprendi a escrever foi mais uma camada que podia utilizar para me expressar. No meu primeiro diário tinha muitos poemas acompanhados de desenhos. Com a adolescência, cruzei-me com o graffiti e aí descobri mais uma técnica que me interessava, agora as letras em si podiam ser desenhos também. A questão da escala, finalmente poder explorar desenhos de grandes dimensões parecia incrível, pintar paredes e partilhar as minhas ideias com as pessoas. Foi um mundo novo que apareceu e eu abracei de bom grado. Na mesma altura experimentei fazer teatro e juntei-me a um grupo juvenil em Almada, a Cena Múltipla. Esta experiência proporcionoume algo que, sem saber era urgente, um espaço de partilha, diálogo. Uma matéria que me permitia usar todas as capacidades, físicaemocional-intelectual, do meu corpo para criar e exprimir. O teatro veio escalar esta dinâmica de “abertura ao outro” que o graffiti me apresentou e acrescentar a fortalecer a ideia do coletivo, construir em coletivo! Aí tomei uma escolha consciente de prosseguir o teatro na esfera académica e profissional. Se tivesse de escolher tornar-me algo, uma ideia que nunca me agradou, então que fosse algo que me proporcionasse encontros e experiências diferentes.
Algures no teu caminho resolves explorar outras formas de expressão artística, o que te leva a fazeres essas várias incursões?
Durante a licenciatura em teatro fiz parte de um coletivo, os Medalha d’Ouro, este grupo começou com uma ideia informal, 2 pessoas queriam fazer uma performance e juntaram uma malta de várias áreas, havia pessoal da dança, do teatro, pintura, streetart, cinema. A proposta era a seguinte: 2 pessoas vão a um espetáculo de teatro, aborrecidas decidem sair a meio e começam a andar pelo centro de Lisboa. No meio do percurso, vão passando por situações surreais, ações performadas pelos restantes artistas que participavam. O percurso desembocava numa lojinha (Cão Solteiro) na rua do poço dos negros, onde o publico assistia então a esta vídeo-performance. Este momento foi tipo o partir do espelho e o meu espectro de possibilidades entrou em curto circuito. O que nós estávamos a dizer era, pra mim, um Não massivo a uma ideia fechada de arte, dizer não a ideias pré-estabelecidas que a academia e o sistema procuram impor e/ou perpetuar. Estávamos a dizer não, mas a apresentar uma proposta: queríamos mais, mais variedades e queríamos ocupar as ruas com as nossas vozes e corpos. Foi aí que percebi, ok!!!! Afinal eu não tenho que escolher entre ser atriz ou ser pintora ou o que for, afinal não tenho apenas que reproduzir os clássicos. E o mais importante é que percebi que eu tinha a opção de questionar! Após esta performance, uma seleção natural reduziu o grupo a 10 pessoas e continuamos a explorar e cruzar diferentes disciplinas artísticas, a forma não era o ponto de partida, pensávamos o que queríamos fazer e depois era perceber qual era o melhor veículo para expressar as nossas ideias. Esta maneira de pensar, trago-a comigo até hoje e faz-me sentido assim.
Tens formação académica na área do Teatro, no entanto e de acordo com a tua pluridisciplinaridade, consideras que cada área de arte pode ser limitativa em termos da tua vontade de expressão?
Acho que existem alguns limites que variam, vão desde limites técnicos, os que os materiais e matérias impõe naturalmente até a limites das minhas capacidades técnicas, como é que eu consigo manipular esses mesmos materiais/matérias. Ainda assim, acredito que alguns são impostos por concepções preestabelecidas de “como fazer”, ou como é “fazer bem” alguma coisa. Um amigo repetia bastante esta frase, não sei quem é o autor, “is when you touch the limit you see that you can go a little bit further”. É assim uma frase feita que gosto de revisitar. Existem mesmo muitas possibilidades, é só desligar esse chip do “que é suposto “e até mesmo um limite pode ser o trigger para encontrar uma expressão que nos sirva melhor. Por exemplo, falo muito disto em tom de piada, mas é uma verdade, na realidade da pintura, os materiais são extremamente caros, não é fácil ter grande variedade e quantidades de materiais, no entanto, a vontade e necessidade de produzir continua presente. Cheguei a muitos resultados, que hoje são técnicas pessoais que nasceram dessa “precariedade”, de uma aparente limitação. Atenção, não quero romantizar a falta de acesso a materiais ou condições, sei que chegaria a resultados igualmente positivos e satisfatórios se tivesse outro tipo de oportunidades ;)
Em 2019 participaste no espetáculo do músico Conan Osiris no Coliseu dos Recreios como bailarina e performer, consegues delinear um fio condutor de uma obra tua que possa por exemplo englobar a pintura, a palavra e escrita até ao movimento de corpo na tua performance física?
O espectáculo do Conan Osiris, foi uma experiência incrível, mas numa área que nunca havia explorado até então, a dança. Apesar de não ter treinamento de dança, tenho uma relação de trabalho com o corpo, enquanto ferramenta de trabalho, objeto de pesquisa, etc. Todos os trabalhos que tenho feito, a título individual, seguem um fio condutor. Sinto que cada pergunta que me faço, traz mais perguntas, logo um projeto acaba inevitavelmente por me levar ao próximo. Um dos últimos trabalhos que apresentei, Solo Status, uma performance resultante de uma residência curada pelo coletivo SillySeason, é o objeto que engloba de uma forma mais visível para o público, essas expressões artísticas. Apresenteime em palco com uma série de retratos de pessoas-guias, onde lia e ouvia palavras minhas e dos retratados, enquanto fazia um auto-retrato ao vivo. Esta foi a minha tentativa de combater o isolamento e a ansiedade em alcançar posições de destaque- se não tenho a comunidade, então vou trazê-la da forma que posso para me apoiar e dar força. Trago as suas imagens, palavras e memórias, para não estar sozinha, e é assim que me vou compondo e ocupando a tela. Esta performance na verdade é a exposição do meu
processo individual, inevitavelmente vou passar pelo desenho, pela escrita e vou usar o corpo ou como suporte ou como matéria. São as minhas formas de diluir e transformar a minha vivência. Não me refiro apenas à questão da forma, a nível das problemáticas, as perguntas de partida, olho para cada obra como mais uma camada da cebola. Estou sempre, de certa forma, a falar das mesmas coisas, só que em momentos diferentes e logo com perspetivas diferentes, espero eu!
Editaste recentemente, uma edição de autor de um livro conceptual intitulado "#musicasdomundo", falanos um pouco do conceito por trás e do teu processo para a construção desta obra.
Este projeto é praticamente o início da cebola. Antes de “o parir”, estive um ano e meio fora, passei uma temporada em Cabo Verde, onde tive a oportunidade de finalmente conhecer grande parte do país.
Durante esta temporada voltei a recorrer ao desenho e à escrita, mas desta vez sozinha. Pensei em fazer um livro, criei o conceito, ilustrei-o, mas não sabia como o poderia produzir, então esse projeto acabou por transformar-se numa exposição, apresentada em S. Vicente e que marca o meu percurso a solo. Chamava-se Por Uma Natureza das Coisas, nestas ilustrações estava a refletir sobre identidade e qual era a minha identidade em concreto, o que significava este sentimento de não pertença, ser de um sítio e não ser ao mesmo tempo. Voltei a Portugal
carregada de perguntas e inquietações, agora estava preparada para voltar e enfrentar novamente esta realidade. Neste confronto com a minha identidade, foi impossível contornar a questão de género e racial que são parte do meu cartão de entrada neste mundo. Comecei a ler Fanon, Bell Hooks, ouvir palestras, procurar grupos. Mas estava a faltar-me ler ou encontrar coisas que estivessem próximas da minha realidade, que refletissem sobre o que é ser uma mulher negra portuguesa e se possível no meio artístico. Decidi então que queria fazer um livro, mas um livro à minha maneira. Inscrevi-me num curso de Auto-Edição, na Oficina do Cego, onde explorei várias técnicas artesanais e escolhi focar-me na tipografia e na cianotipia. Este livro parte da construção social da cor preta e da cor azul numa perspetiva eurocêntrica*. Em básicos, preto uma cor má e das bestas e azul, uma cor nobre e pura. Ao longo do livro eu- sujeitx afirmo a cor negra como uma cor de excelência, na tentativa de inverter a narrativa e contrariar uma linguagem (visual/ verbal) que está construída para operar contra algo muito específico. Como repito constantemente, sou Eu a denegrir a minha imagem. Foi um processo duro, mas necessário, em que estava a perceber muitas coisas, aí começou a descolonização da minha mente. Os textos são pessoais, cruzados com referencias várias e partem de experiências muito concretas, mas esses pormenores estão escondidos. O livro chama-se #musicasdomundo, porque pra mim é o meu ep-opeia, um 16x16 que contem 5 tracks. São 5 faixas em que estou a cantar sobre o mundo, sobre o que vejo e o que vivo, agora quem pegar nele é que decide que mundo acha que está a ouvir.
*A história do Azul e do Preto de Michel Pastoreau
Achas que ainda poderás ter espaço como artista para abraçares outras formas de expressão?
Sim, sem dúvida! Não tenho o objetivo de dominar nenhuma forma de expressão artística, se lá chegar durante o caminho, será top! São conquistas, mais ferramentas, mais possibilidades. Olho para a arte talvez como 1 cozinheirx olha para o que está no mundo que habita, existem uma data de ingredientes e mais uma carrada de instrumentos para fazeres o que quiseres. Podes decidir fazer um bolo e usar as coisas pré-estabelecidas pra fazer um bolo, mas também podes decidir trocar as regras, inventar, misturar sabores, técnicas e criar cenas que tu vais gostar mais de comer. A cozinha é nossa.
Que projetos artísticos tens preparado para os próximos tempos?
Existem alguns projetos em coletivo, mas a nível de criações individuais estou a trabalhar no próximo livro de autor A Series of Protective Styles. Este objeto será diferente do #MusicasdoMundo a nível de produção, quero fazer algo que seja mais democrático e acessível, explorar a serigrafia mais a fundo. Estou a magicar ainda a próxima exposição/ instalação, uma série de 3 obras, entre as quais está inserida a Humor Negro. Este é o meu trabalho mais recente, apresentado no evento KILOMBO, curado pela Aurora Negra. A exposição é uma nota, apenas para lembrar que a felicidade também serve como medida de liberdade. Reforçar a ideia de Black Joy! Para além do trabalho artístico, vou começar este ano um projeto educativo que criei com a minha grande amiga Puçanga, o Histórias Invisíveis. É um projeto que se propõe a trabalhar o conceito dos direitos humanos, identidade e memória histórica através das artes, dirigido a alunxs do 2 ciclo
do básico. Estou muito entusiasmada com este arranque, já há muito que trabalho com crianças e jovens e é satisfatório poder pôr em prática algo que está a ser construído há muito tempo e com muito esforço e dedicação.
Qual a mensagem gostarias de deixar aos nossos leitores e "futuros colegas de profissão"?
A verdade é que a mensagem pra mim é simples, enjoy! E por vezes fazer o simples é que é complicado. Não existe uma única forma de fazer as coisas, e não é preciso arranjar uma fórmula para agradar os outros. A estética é importante, mas a ética para mim é fundamental. Aproveitar a viagem, mas consciente de onde estamos e do que estamos a manifestar. Falar a nossa verdade.