Terra Salgada O Sal da Ria Formosa
Ficha Técnica
Terra Salgada
O Sal da Ria Formosa Edição Centro Ciência Viva de Tavira Convento do Carmo, Tavira Autores Margarida Vargues Laura Leite José Manuel do Carmo Equipa coordenadora da produção Ana Luísa Quaresma José Manuel do Carmo (Centro Ciência Viva de Tavira) Cécile Godinho Andrea Siebert (Marisol - Böer & Siebert, Lda.)
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Fotografia António Manuel Quaresma Centro Ciência Viva de Tavira Francisco Clamote Hugo Gomes Hugo Marques Laura Leite Marisol - Böer & Siebert, Lda. Paulo Pereira Pinto Tomasz Boski Design e paginação Pedro Bolito Apoio técnico-científico e apoio financeiro a públicação Marisol - Böer & Siebert, Lda. Reprodução gráfica Gráfica Comercial ISBN: 978-989-95369-1-3 Depósito legal :305511/10 Tiragem: 1000 exemplares Tavira, 2010
Índice Nota introdutória .......................... 3
Mar de Sal
Sal é vida ................................... 4 O que é o Sal? .............................. 5 Ouro branco ................................ 6 A palavra sal ................................ 7
Terra salgada
A história do sal em Portugal ............ 8 O Algarve: Terra de sol e sal ............. 9 Ria Formosa ................................ 10
Ecossistema -A vida que existe no sal
Aves das salinas ............................ 12 Plantas salgadas ............................ 14
Fábrica de Sal
Arquitectura de uma salina tradicional..16
O Sol como Fonte Energética
Que transformações ocorrem? ........... 18 Quanto pesa um litro de mar? ........... 19
Tipos de Sal Marinho
Sal marinho tradicional ................... 20 Flor de sal................................... 20 Sal de extracção mecânica............... 21 Composição química do sal............... 21
Trabalhar o sal ...................... 22 Sal Artesanal. Tradição com futuro.. 24 Manter o equilíbrio ...................24 Para saber mais ....................... 25
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Nota Introdutória
N
o extremo oriental do Algarve, o Sotavento, de Faro até ao Guadiana, o Homem estabeleceu uma estreita união com a Natureza, aproveitando de forma engenhosa os sapais, para a produção de um produto que, pelo seu elevado interesse, tem marcado ao longo da história, não só a paisagem como as próprias comunidades humanas. As salinas, embora sejam um habitat artificial elaborado pelo Homem há milhares de anos, constituem verdadeiros santuários de biodiversidade, permitindo um equilíbrio notável entre o aproveitamento económico de um recurso e a conservação de valores naturais. Tal como para outros produtos, como o medronho, o Centro Ciência Viva de Tavira procura com esta publicação dar a conhecer os seus modos de produção, a “ciência” que lhes está associada e os ambientes naturais em que se integram, focando especialmente as salinas da Ria Formosa.
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Mar de Sal Sal é vida
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Durante milhares de anos, o homem trabalhou o sal e desenvolveu nas regiões costeiras, zonas de produção designadas por salinas. A salinicultura é uma tradição milenar que privilegia uma interacção sustentada entre o Homem e a Natureza.
A
vida na Terra começou nas águas salgadas dos oceanos. A composição química do nosso sangue e fluidos internos, semelhante à água do mar reflecte esta origem. O sal é essencial para o sistema imunológico do organismo e para a manutenção do metabolismo das células em geral, devido à presença dos iões cloro e sódio. Os benefícios do sal, associados à capacidade de intensificação do sabor dos alimentos, fazem com que uma das suas utilizações seja o consumo culinário. Ao contrário do que se possa pensar, a indústria
química é o principal consumidor de sal e apenas uma pequena parte do sal produzido é utilizado com fins alimentares. O cloreto de sódio pode ser utilizado como reagente e intermediário no fabrico de uma diversidade de produtos e materiais do nosso quotidiano. Vários são os sectores da indústria que dependem directa ou indirectamente do sal e dos seus derivados. O sector dos têxteis, dos cosméticos, do vidro, da borracha, do couro, do fabrico de sabões e detergentes, de medicamentos, de produtos eléctricos e electrónicos são apenas alguns exemplos.
Sal a secar naturalmente ao sol, numa salina artesanal.
O que é o sal?
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P
odemos encontrar sal sob várias formas e com várias origens. Para além do “sal marinho” que é extraído directamente da evaporação da água salgada, existe também o “sal-gema”, também designado por sal-pedra ou sal da mina, pois é retirado de jazigos minerais existentes no interior da crosta terrestre resultantes de mares e lagos antigos que secaram. Os oceanos contêm na sua composição todos os elementos existentes em concentrações variadas, mas o cloro e o sódio juntos perfazem cerca de 86% do total das substâncias dissolvidas nos oceanos. A ligação entre os dois iões mais abundantes na água do mar forma o cloreto de sódio, que lhe confere o gosto salgado.
A formação dos cristais de sal vista ao microscópio com uma ampliação de 400x (10 x 40).
Ouro branco
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o longo da História do Homem, o sal foi dos recursos mais influentes ao contribuir para o poder e enriquecimento dos países que controlavam a sua produção e comércio. Devido às suas propriedades únicas no funcionamento do nosso organismo e pelo amplo leque de utilizações, este “ouro branco” era caro e raro, e extremamente valorizado. A descoberta da salga garantia a conservação e a preservação da qualidade dos alimentos consumidos, pelo que o sal se tornou um condimento indispensável durante séculos.
A localização dos salgados (conjunto de várias salinas ou região de salinas) e áreas propícias à extracção de sal foi determinante para a localização e edificação das povoações e das grandes civilizações. Na Europa medieval, várias cidades tiveram a sua ascensão económica graças ao comércio de sal, como por exemplo, Veneza, Salzburgo (cujo nome deriva da palavra germânica salz que significa sal), ou Hallstatt (derivado de hal, a palavra céltica para sal). Pela sua importância, esteve no centro de vários acontecimentos históricos relevantes. A gabelle, uma taxa de sal aplicada pelo Antigo Regime em França terá sido um dos motivos que terá despoletado a Revolução Francesa. Outro exemplo, muitas vezes citado, é a Marcha do Sal liderada por Ghandi em 1930, contra a proibição imposta pelo Império Britânico de extracção de sal na Índia Colonial.
O sal foi desde sempre uma riqueza para os povos que o produziam e comercializavam
A palavra sal A palavra portuguesa sal tem origem na língua latina. A palavra halos, de origem grega, marca hoje presença na nossa língua no vocabulário científico e técnico (halofílico, hiper-halino, halite, etc.).
A
história da produção e comércio de sal é paralela à história da Europa desde tempos anteriores à Grécia Antiga, e a sua influência é ainda notada actualmente no vocabulário e nas expressões que se referem ao sal em sentido figurado. Na Grécia Antiga, o sal serviu como moeda de troca no comércio de escravos oriundos de África, dando origem à expressão ainda usada nos dias de hoje: “não vale o seu sal”. Durante o Império Romano, para além de se referir ao produto, a palavra sal referiase também ao bom gosto, à vivacidade e à inteligência. Aliás, ainda hoje nos referimos às pessoas ou coisas pouco interessantes como insonsas ou como “pãozinho sem sal”. Os Romanos construíram salinas e minas de sal por todo o Império, e este produto aumentou em importância, de tal modo que parte do vencimento dos soldados era pago em sal, daí a origem da palavra salário.
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Terra Salgada
A história do sal em Portugal
A salinicultura é uma das mais antigas actividades extractivas existentes em Portugal. Os vestígios mais antigos conhecidos são de origem fenícia, anteriores à ocupação romana. A documentação referente às salinas data do século X, que realça a importância que esta indústria terá tido em toda a Península Ibérica. 8
E
m Portugal, as regiões produtoras de sal, por excelência, são as regiões de Aveiro, Lisboa, Setúbal e Algarve. No entanto, há conhecimento de que existiam também salinas noutras regiões, onde actualmente não se verificam, como na região do Minho. A exportação de sal em Portugal remonta ao século XIII e a partir dos séculos XIV e XV assiste-se ao aumento de importância desta actividade, em paralelo com o Período dos Descobrimentos. Este corresponde ao período áureo do comércio de sal em Portugal, durante o qual vários países estavam dependentes do sal português. As medidas restritivas do comércio internacional não incidiam sobre este produto, facilitando a liberdade de exportação e compra pelos países estrangeiros. Já durante o reinado de D. José (1714-1777) a indústria pesqueira entra em decadência, provocada por diversos factores, entre os quais uma grande carência de sal no Algarve, essencial à salmoura do atum nessa época.
O espaço localizado em torno das salinas é requisitado por muitas actividades económicas.
Como forma de reverter esta situação, uma das acções do Marquês de Pombal terá sido entregar a par ticulares as salinas de Castro Marim e Tavira, até aí propriedade e monopólio do Estado. Assim, fixou o preço do sal para a pesca e criou entrepostos de salga em Lagos, Faro e Vila Real de Santo António, de forma a facilitar e rentabilizar o escoamento dos produtos da pesca. A intervenção do Marquês de Pombal poderá ter salvo a indústria do sal no século XVIII, mas dois séculos mais tarde, foi a frota bacalhoeira e o desenvolvimento de várias indústrias químicas, grandes consumidoras de sal que asseguravam a actividade extractiva deste produto, apesar da diminuição nas exportações. Nos anos 70, esta indústria entrou em declínio devido ao aumento dos custos de produção e à introdução de novos processos tecnológicos no sector da química e das pescas, contribuindo para um aumento da desvalorização do sal. Actualmente a actividade de salinicultura tradicional está a emergir de novo, em zonas como Aveiro, Figueira da Foz e particularmente no Algarve, no Sotavento.
O rodo de madeira é um dos instrumentos tradicionais usado ainda hoje na produção do sal artesanal.
O Algarve – Terra de sol e sal No Algarve, as salinas ou salgados concentram-se no Sotavento, em Faro, Olhão, Tavira e Castro Marim, todavia existem também a Barlavento, na zona de Portimão. 9
A
s salinas na região de Sotavento estão localizadas em zonas de sapal que se encontram inseridas em duas importantes áreas protegidas. Nos concelhos de Faro, Olhão e Tavira, as salinas incluem-se no Parque Natural da Ria Formosa e as pertencentes a Castro Marim na Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António.
se localizam as salinas. Para além da conversão das salinas em aquaculturas, a pressão urbanística, a indústria hoteleira e o aumento dos custos de produção relativamente ao sal industrial constituem outros factores que colocam esta actividade numa posição de grande incerteza.
CCV Tavira
Tomasz Boski
A região do Algarve é ideal para a salinicultura pela conjugação de vários factores como a qualidade do solo, baixo nível de poluição e o seu clima característico, com um elevado número de dias de sol, baixas precipitações e ventos moderados. Por esta razão, o Algarve permaneceu como uma importante zona de produção, e na década de 80 as salinas algarvias constituíam o principal produtor nacional. No entanto, nas últimas duas décadas, várias actividades competem pelo espaço privilegiado onde
As saliniculturas algarvias inserem-se em zonas de sapal, expostas à acção da maré, mas abrigadas das ondas.
Vista aérea das salinas de Tavira (Ria Formosa).
Manta Rota
Ria Formosa
TAVIRA
Cabanas
Península de Cacela
Limite do PNRF Ilha de Tavira
10 FARO
OLHÃO
Ilha da Armona
Península do Ancão
Ilha da Culatra
Ilha da Barreta Cabo de Stª Maria
A
o longo de aproximadamente 60 km de costa, na zona sul Portuguesa, desde o Ancão até à Manta Rota, encontramos o sistema lagunar da Ria Formosa, que inclui uma grande diversidade de habitats: ilhasbarreira, sapais, bancos de areia e de vasa, dunas, salinas, lagoas de água doce e salobra, cursos de água, áreas agrícolas e matas. Todo este conjunto de habitats possibilita a ocorrência de uma grande diversidade florística e faunística, que se deve proteger e conservar. A presença de um cordão dunar arenoso litoral (praias e dunas) disposto paralelamente à costa, protege este sistema lagunar e todo o conjunto do labirinto de sapais, canais, zonas de vasa e ilhotes. Estas suas características tornam-na uma importante fonte de recursos e um centro de grande importância económica. Práticas como a pesca de diversas espécies (dourada, sargo ou robalo), a cultura de moluscos bivalves (amêijoas) ou a salinicultura são actividades humanas que desta área não se podem dissociar e cuja história está intimamente relacionada com a dinâmica da Ria. Hoje em dia, o turismo e outras actividades recreativas beneficiam igualmente dos valores naturais que a Ria Formosa oferece.
Tejo de uma Salina.
O sistema lagunar tem uma forma triangular, apresenta uma profundidade média de 2 m e encontra-se sujeito a um regime diário de marés. Uma parte deste encontrase permanentemente submersa, e uma percentagem significativa fica exposta durante a baixa-mar (zona inter-mareal). Por outro lado, a disposição irregular dos fundos interfere significativamente nas correntes de maré, tornando a Ria Formosa um sistema dinâmico e muito particular. A sul é limitada por um conjunto de ilhas-barreiras do cordão arenoso litoral, que a separa do Oceano Atlântico. A sua disposição engloba (de poente para nascente): a península do Ancão (Praia de Faro), as ilhas Barreta ou Deserta, Culatra, Armona, Tavira e Cabanas e também a península de Cacela, estando separadas por seis barras de maré, duas das quais foram artificializadas.
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A água que chega à Ria Formosa é quase exclusivamente oceânica pois os cursos de água que nela desembocam (rio Seco, rio Gilão, ribeiras de Almargem, Lacém e Cacela, entre outros) são sazonais, de regime torrencial.
Uma salina artesanal localizada em pleno Parque Natural da Ria Formosa
A exploração salineira na Ria Formosa é uma das actividades que dependem das óptimas condições ecológicas deste ecossistema. No Parque Natural da Ria Formosa existiam, em 2001, 27 salinas, consistindo em cerca de 38% do número total de salinas no país e produzindo cerca de 97,8% do total da produção nacional. Na Ria Formosa existem cerca de 1033 ha de área de salinas, dos quais 794,17 ha correspondem a salinas activas. Das salinas existentes no PNRF, praticamente 40% destas situam-se no concelho de Tavira.
A Ria Formosa, classificada como Parque Natural (PNRF) desde 1987, tem como principal intento a preservação do ecossistema lagunar equilibrando as actividades económicas das povoações costeiras.
Ecossistema - A vida que existe no sal É comum observar-se nas salinas algumas das espécies pertencentes ao grupo das limícolas, um grande grupo de aves que vivem normalmente perto de água, ao longo da costa ou em lodaçais e pântanos. De uma forma geral, os seus ninhos são uma cova tosca no solo ou, estão escavados nas margens dos tanques das salinas, os progenitores que fazem a incubação confiam na camuflagem da sua plumagem e no padrão dos seus ovos. São aves que se alimentam de insectos, minhocas, moluscos e crustáceos e, por vezes, também de matéria vegetal e de pequenos peixes. Uma das suas características mais interessantes observa-se quando se encontram em busca de alimento. Os seus bicos têm formatos adaptados às diversas técnicas de alimentação. São aves que possuem bonitas plumagens e Alfaiate Recurvirostra avosetta
Flamingos em alimentação num evaporador de uma salina tradicional
As salinas na Ria Formosa encontram-se um pouco por toda esta área nas zonas de sapal ou de lagoas salobras. Apesar de serem habitats artificiais (por serem resultado da acção humana) não deixam, no entanto, de possuir um grande valor natural e constituem “a casa” de algumas espécies protegidas. Pelo facto de se encontrarem ao abrigo das marés possibilitam que diversas aves encontrem alimento durante a preia-mar, quando as áreas de sapal estão cobertas por água. A sua frequente utilização por um grande número de aves aquáticas torna-as locais de excelência como zona de nidificação, de alimentação e de refúgio.
António Manuel Quaresma
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Ria Formosa é uma importante área protegida, reconhecida a nível mundial desde 1980, encontrandose incluída na Lista de Sítios da Convenção de Ramsar, constituindo uma das zonas húmidas de importância internacional, devido ao valor da sua biodiversidade e da importância ecológica para inúmeras espécies de aves residentes e migratórias
Hugo Gomes
A
Pernilongo Himantopus himantopus
António Manuel Quaresma
Aves das salinas
Maçarico-galego Numenius phaeopus
Borrelho-de-coleira-interrompida Charadrius alexandrinus
Paulo Pereira Pinto
António Manuel Quaresma
Milherango (ou Maçarico-de-bico-direito) Limosa limosa
António Manuel Quaresma
Garça-real Ardea cinerea
Colhereiro Platalea leucorodia
António Manuel Quaresma
Francisco Clamote
Perna-vermelha Tringa totanus
António Manuel Quaresma
Borrelho-grande-de-coleira Charadrius hiaticula
António Manuel Quaresma
Corvo-marinho Phalacrocorax carbo
Paulo Pereira Pinto
Gaivota-de-patas-amarelas Larus cachinnans.
António Manuel Quaresma
Flamingo Phoenicopterus ruber
Garça-branca Egretta garzetta
António Manuel Quaresma
Paulo Pereira Pinto
Observamos também nas salinas outras espécies, algumas das mais comuns encontram-se nas imagens que se seguem.
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Destaca-se igualmente a presença de Artemia sp., um pequeno crustáceo, que constitui um importante recurso alimentar para diversas espécies de peixes e aves. Habituada ao ambiente extremo das salinas, a Artemia produz no seu interior pigmentos da família dos carotenóides, extremamente eficientes na prevenção dos danos provocados pela radiação solar. As espécies de aves existentes nos sapais e salinas preferem estes crustáceos como forma de alimentação. A tonalidade rosada dos flamingos é acentuada também pela ingestão destes crustáceos. Aspecto da Artemia salina visto à lupa binocular, com dois dias de eclosão (ampliação: 40x)
Plantas salgadas
A
vegetação característica dos sapais é frequentemente encontrada nas margens das salinas. Este é um meio onde a sobrevivência é difícil uma vez que o solo é pobre em oxigénio, salgado e com uma consistência que dificulta a fixação das raízes. Para além disto, verificam-se nos sapais, grandes amplitudes térmicas devido às marés e à forte exposição solar. Dadas as condições de sobrevivência adversas deste local, a vegetação apresenta adaptações de natureza diversa, nomeadamente à água salgada.
Este tipo de vegetação que coloniza os sapais designa-se por vegetação halófita, por possuir a capacidade de viver em meios salgados A vegetação típica de sapal ocupa os muros e barachas que dividem os tanques de uma salina tradicional
Hugo Marques
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Salgadeira Atriplex halimus
Hugo Marques
É frequente identificar ao longo das margens das salinas espécies como o espargo do mar (Salicornia sp., Sarcocornia sp.) ou o valverde-dos-sapais (Suaeda vera) com as suas folhas suculentas, resultado da adaptação às condições exteriores. Facilmente identificável é também o salgado (Limoniastrum monopetalum), uma das poucas espécies que dá cor a estes locais durante a Primavera, pelo facto de apresentar bonitas flores lilases. As folhas desta espécie revelam também uma particularidade, estão revestidas de minúsculos cristais de sal que se acumularam no interior da planta e posteriormente foram eliminados para o exterior, para que o sal em excesso fosse libertado. Entre este conjunto de espécies encontra-se também a salgadeira (Atriplex halimus), uma planta de porte arbustivo com folhas de um verde-claro revestidas por uma fina camada cerosa, cuja finalidade é reflectir os raios solares e evitar as perdas de água.
Valverde dos sapais Suaeda vera
Espargo do mar Sarcocornia sp.
Salgado Limoniastrum monopetalum
Ria Formosa
Fábrica de Sal Arquitectura de uma salina tradicional 16
As salinas ou “marinhas” localizam-se geralmente junto a esteiros de água salgada, em estuários ou sapais, sujeitos à influência das marés.
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mbora distinta de região para região, uma marinha é geralmente constituída por três tipos de tanques, que comunicam entre si por canais e regos. Existem três tipos de compartimentos - o “tejo”, os evaporadores e os “talhos”, cada um correspondendo a diferentes fases do processo de extracção de sal artesanal.
Conc. 36
Tejo
Evaporadores
(aumento gradual da concentração da solução salina)
Conc. 220/240
Contratejo (1ºEvaporador)
Precipitação das substâncias indesejadas
A solução salina é adicionada após cada colheita de sal tradicional
Flor de Sal e Sal Tradicional
Talhos ou cristalizadores Desenho esquemático de uma salina (fonte: Marisol - Böer & Siebert, Lda.)
O tejo, ou “viveiro de águas frias” é o tanque mais próximo do mar ou do esteiro de água que alimenta a salina. Este grande reservatório, separado do mar por uma comporta de madeira, recebe a água do mar durante as marés vivas. De uma forma geral para todas as salinas, é o reservatório com traçado mais irregular e com maior profundidade. Para além da sua função de armazenar a água, é no tejo que ocorre o depósito ou decantação de materiais em suspensão, tais como, sedimentos finos, lodosos, areia, algas ou plantas e depuração do azoto (N) e do fósforo (P) que é realizada pelas algas e plantas marinhas existentes no tejo.
Tejo de uma salina localizada em Tavira.
Quando a água do tejo atinge uma determinada concentração salina (cerca de 40, salinidade em g/L), os marnotos dão início à sua passagem para os evaporadores. Nestes tanques dispostos sucessivamente, a profundidade é menor para facilitar a evaporação da água do mar dando-se um aumento na concentração de sais nela contidos. Este aumento de salinidade provoca a precipitação gradual de vários elementos, tais como os sais de ferro (Fe), o carbonato de cálcio (CaCO3) e o gesso (CaSO4 di-hidratado). No final desta fase a concentração salina atinge uma salinidade próxima de 220.
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Pormenor da comporta do esteiro de alimentação da salina.
Na fase final encontram-se os talhos ou cristalizadores, que são pequenos reservatórios de pouca profundidade (cerca de 25 cm), onde a cristalização do sal marinho começa quando a água atinge uma salinidade entre 250 e 270. A solução salina sai do último evaporador, entra para o travadouro (canal de água existente em torno dos cristalizadores) e passa em seguida para
Talhos e evaporadores (ao lado) de uma salina tradicional de Tavira
cada cristalizador através dos olhais. Os cristalizadores são construídos de forma a proporcionar uma rápida evaporação e a facilitar a extracção do sal. Será aqui que o sal cristaliza na sua forma final, primeiramente na camada mais superior da água (esta camada é recolhida como Flor de Sal), depositando-se em seguida no fundo do cristalizador, até à recolha do chamado Sal Tradicional. Ambas as recolhas são realizadas pelos trabalhadores das salinas – os marnotos. Os cristalizadores são separados entre si por pequenos muros denominados por barachas. Entre o tejo e os cristalizadores existe um pequeno desnível de cerca de 1º (corresponde a 1 metro de desnível para cada 100 metros percorridos), que facilita a circulação de água por gravidade pelos diferentes tanques, por uma rede de canais. Estes canais são abertos no próprio terreno e são colocadas divisórias, geralmente em madeira, em plástico (polietileno) ou também construídas em lama.
Pormenor dos canais de água existentes numa salina tradicional onde se pode observar o travadouro e os olhais.
Na salinicultura tradicional, todos os processos de produção são manuais, incluindo a recolha.
O Sol como Fonte Energética
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O sol é a energia e o mar a matéria-prima. A construção da salina é feita de forma a facilitar a entrada de água salgada utilizando a energia das marés e a maximizar a exposição solar na superfície evaporatória. Para além destes dois factores, a salina deve ser também construída numa orientação específica relativamente aos ventos dominantes. Assim, o sal obtido pela evaporação da água chama-se “sal solar”.
Que transformações ocorrem?
N
as salinas localizadas na Ria Formosa, a salinidade da água que entra na salina directamente de um esteiro da Ria, é cerca de 35,5. Por acção directa da energia solar, a água evapora-se, ou seja, muda do estado líquido para o estado gasoso. Os sais contidos na solução existente no tanque permanecem em solução, aumentando a sua concentração à medida que o volume de água diminui.
Chegados a uma determinada concentração (saturação), os sais minerais começam a precipitar, formando cristais e depositando-se no fundo da salina. Cada elemento precipita a uma determinada concentração, pelo que esta precipitação é gradual e diferenciada. Este processo é utilizado nas salinas para “purificar” a salmoura de componentes não desejáveis, como sejam o ferro, o carbonato de cálcio ou o gesso, que desaparecem nos evaporadores. A solução salina passa para os cristalizadores a uma concentração em que estes elementos já não existem em solução, ocorrendo apenas os elementos desejados.
A energia solar é também utilizada para evaporar o excesso de água contido no sal tradicional e na flor de sal.
A salmoura entra nos cristalizadores com a concentração desejada para a formação dos cristais de sal.
Quanto pesa um litro de mar? A salinidade é uma medida que reflecte a quantidade de sais existentes numa massa de água. De forma simples, de acordo com a “Escala de Salinidade Prática”, uma salinidade de 35 corresponde a 35 g de sal em cada litro de água. Embora a salinidade média da água do mar seja 35, esse valor varia com a região geográfica. Existem casos extremos, como no Mar Morto onde a salinidade pode atingir valores tão elevados como 290 e no Mar Báltico a salinidade está muito próxima de 7.
O sal marinho artesanal é produzido ainda hoje usando métodos tradicionais.
A medição e controle da salinidade são cruciais para o correcto funcionamento e produção eficaz. Os salineiros usam um “pesa-sais”, calibrado para a escala de Baumé (graus Baumé - ºBé), a medida para a densidade, geralmente utilizada nas salinas. O pesa-sais funciona de acordo com o Princípio de Arquimedes, o que significa que, quando mergulhado numa água menos densa, isto é, com salinidade inferior, afunda mais.
Na figura seguinte, observa-se que nos Oceanos Atlântico e Pacífico a salinidade é mais elevada na zona mais próxima do Equador e ligeiramente mais baixa nas Regiões Temperadas. Esta variação depende de vários factores, nomeadamente com a diferença entre a Precipitação e a Evaporação.
O. Pacífico
O. Atlântico
Distribuição da salinidade anual média superficial. As linhas que unem pontos de igual salinidade designam-se por isohalinas
(retirado de: Lalli & Parsons, 1997)
Pesa-sais ou densímetro em graus Baumé.
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Tipos de Sal Marinho Sal marinho tradicional
C
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uidadosamente recolhido à mão nos pequenos cristalizadores das salinas tradicionais, esse sal artesanal é o verdadeiro “ouro branco”. Os marnotos utilizam os rodos para empurrar o sal, formando pequenas serras nas barachas que separam os talhos. A secagem ao sol e a ausência de qualquer processamento artificial preservam a humidade natural e os minerais essenciais da água do mar. A sua cor branca e brilhante e a sua textura húmida, quase gordurosa, deve-se à presença de magnésio. Para além do cloro, do sódio e magnésio, o sal tradicional possui outros sais minerais e elementos essenciais como potássio, cálcio, iodo e selénio que contribuem para sua riqueza natural. Os cristais são mais irregulares e menos compactos (dissolvem mais facilmente) do que os cristais obtidos no sal marinho proveniente das salinas industriais.
Pormenor das “palhetas” de flor de sal que facilmente se desfazem ao toque.
Flor de sal A flor de sal é designada pelos marnotos como o coalho ou nata do sal porque se recolhe da superfície dos talhos. A flor de sal é obtida nas salinas artesanais, e a sua produção é um processo paralelo à produção de sal. Corresponde à camada inicial de cristais que é formada à superfície da água e que se vai depositando, com o tempo, no fundo dos talhos. Esta fina camada de delicadas lamelas é colhida diariamente ao pôr-do-sol ou nas primeiras horas da manhã, se as condições climatéricas o permitirem. A sua recolha é realizada com a ajuda da “borboleta” e é deixada a secar ao sol sem ser processada. A Flor de Sal é considerada um produto de “luxo”, muito procurado na alta gastronomia, o que tem proporcionado um aumento na rentabilidade das salinas, colocando a salinicultura tradicional portuguesa novamente numa posição de destaque.
A recolha de sal tradicional.
Recolha de flor de sal utilizando uma borboleta.
Composição química do sal Sal de extracção mecânica Os cristais de sal (NaCl) encontram-se mais compactados devido ao tempo prolongado de formação dentro dos cristalizadores industriais. A colheita é feita por extracção mecânica uma vez no final da época de produção e de uma forma geral, o sal é pré-lavado e armazenado em grandes serras. Seguidamente, e para tornar o seu aspecto mais branco, o sal é novamente lavado. Nesta água de lavagem, por vezes, são adicionados agentes químicos branqueadores e oxidantes. Segue-se uma centrifugação e secagem por calor de combustão, o que produz um sal chamado “purificado”. O termo técnico “sal refinado” refere-se a um sal que não provém directamente das salinas. É dissolvido e recristalizado a temperatura e pressão controladas em instalações industriais. Devido a este processo, os cristais possuem um aspecto mais perfeito e regular.
Na tabela seguinte pode observar-se algumas das diferenças relativas à composição química de três tipos de sal. As quantidades de elementos para além do sódio são sempre maiores no sal artesanal do que no sal industrial. Elementos
Sal industrial
Sal Artesanal Flor de sal
Sal tradicional
Humidade (110ºC)
2,4
7,4
5,0
Matéria Insolúvel
0,04
0,02
0,03
7,4
8,6
8,4
96,9
97,3
96,9
Potássio K+
0,1
0.4
0,2
Cálcio Ca++
0,1
0,1
0,2
Magnésio Mg++
0,1
0,6
0,6
pH (a 10%) NaCl total (matéria seca)
Composição química de 3 tipos de sal. Quantidades (%) encontradas em 100 g de sal. Dados analíticos fornecidos pela Böer & Siebert, Lda.
Nestas salinas industriais, a solução salina entra nos cristalizadores a uma salinidade mais elevada do que nas salinas artesanais, pelo que o sal industrial não contém alguns dos elementos que existem na composição do sal artesanal (sal tradicional e flor de sal).
O sal de extracção mecânica costuma permanecer uma época inteira nos cristalizadores, e é posteriormente recolhido com tractor.
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Trabalhar o Sal
O 22
trabalho numa salina artesanal é um trabalho sazonal. Entre os meses de Março e Junho começam a preparar-se as salinas, procedendo-se à limpeza do lodo e lamas e reparação dos desgastes provocados pelas intempéries do Inverno. A etapa de preparação das salinas é extremamente importante, pois permite a rentabilização na quantidade e qualidade do sal recolhido posteriormente. Ao mesmo tempo, procede-se à preparação da salmoura, que consiste em gradualmente aumentar a sua concentração por evaporação. Faz-se circular a água proveniente do tejo pelos evaporadores até que a concentração seja a adequada para entrar
Preparação das salinas antes do início da safra e reparação dos muros que separam os tanques com lama.
nos talhos. Após a preparação das marinhas começa a época de produção salina propriamente dita. Os talhos são alimentados com a água já com a salinidade ideal. Nesta fase, a preocupação é manter a salinidade e a altura da água nos níveis adequados para rentabilizar a produção de sal.
Em meados de Junho, a primeira rasa de sal tradicional está pronta a ser colhida. Em cada talho encontra-se uma camada de sal de 4 a 5 cm de espessura misturada com uma pequena quantidade de água. O sal é colocado ao longo das “barachas”, formando pequenos montes ou “serras de sal”, permanecendo aqui cerca de 5 dias ao sol a fim de perder o excesso de humidade. Das “barachas” o sal é levado para o armazém e é posteriormente embalado e vendido.
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No final da época de produção, chegado o Outono e as chuvas, os talhos são cheios de água e ficam submersos durante todo o Inverno. Os talhos são alagados após a preparação da salinas e da salmoura.
Marnoto recolhe a flor de sal cristalizada à superfície da salmoura.
Sal Artesanal. Tradição com futuro
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ada vez mais se verifica um aumento de procura e consumo de produtos tradicionais, acompanhado pelo interesse sobre a sua origem, localização e meios de produção. O sal não é excepção. Tal como já acontecia com o azeite, o vinho ou o queijo, a procura e a exigência dos consumidores obriga a uma maior preocupação quanto à qualidade do sal artesanal e à segurança alimentar associada. O futuro destes produtos passa por uma certificação que lhes garantirá a sua autenticidade. O interesse pela salinicultura está também associado à conservação do ambiente. O turismo de interpretação ambiental tem nesta área um papel importante pois as visitas às salinas, de forma sustentável, permitem perceber
as técnicas empregues na extracção do sal e compreender a necessidade de preservação das actividades milenares de cada região, assim como os valores naturais associados às salinas e às zonas naturais adjacentes.
Manter o equilíbrio. Durante a realização de um percurso pedestre e numa área natural, deve ter especial atenção a algumas regras: •Evitar sair dos trilhos para não pisar animais ou plantas •Não colher exemplares de espécies animais ou vegetais •Evitar fazer barulho, para que seja possível observar fauna sem a perturbar •Não deixar lixo ao longo da área a visitar •Não danificar ou vandalizar estruturas materiais
E ainda...
•Não esquecer do chapéu, do protector solar e óculos de sol, pois são locais onde se verifica forte intensidade luminosa e exposição solar •Não esquecer de levar água •Levar calçado confortável e roupa fresca.
Quando realizar um percurso nas salinas:
•Evitar perturbar o regular funcionamento da salina •Não tocar na água nem deitar lixo ou outros objectos nos vários tanques da salina, especialmente na área dos cristalizadores onde é recolhido o sal • Caminhar apenas pelos locais autorizados e acompanhando o guia ou responsável pela visita
Grupo de visitantes numa salina tradicional.
Para saber mais : Carvalho, A. M. G. (2003). O Sal na História da Terra e do Homem. Conferência pronunciada na abertura da Feira dos Minerais, Gemas e Fósseis. Museu Nacional de História Natural. Disponível online em: http://www.triplov.com/galopim/sal.htm Costa, F. (2003). A Pesca do Atum nas Armações da Costa Algarvia. Editorial Bizâncio, Lisboa Environmental Literacy Council. Salt. Disponível online em: http://www.enviroliteracy.org/article.php/1184.html Lalli, C.l M., & Timothy Parsons (1997). Biological Oceanography: An Introduction, 2nd ed. Elsevier Butterworth-Heinemann, Oxford/Burlington. Morgado, F.; Magalhães, F. (Ed.) (1998). Nos Caminhos do Sal. Itinerários turístico-culturais da região de Lisboa e Vale do Tejo). Comissão de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo, Lisboa. Mularney K.; Svensson L.; Zettertröm D.; Grant, P.J. (2003) Guia de Aves - Guia de campo das aves de Portugal e da Europa. Assírio & Alvim, Lisboa. Necton SA (2006). Guia de boas práticas em Salinicultura. Animação Local para o Desenvolvimento e Criação de Emprego na Ria Formosa. Olhão. ICN (2004) Plano de Ordenamento do Parque Natural da Ria Formosa. Ministério das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente, Instituto de Conservação da Natureza, LIsboa. Salt Institute. Facts about Salt. Disponível online em: http://www.saltinstitute.org/
Mais informações: Centro Ciência Viva de Tavira Tel.: + 351 281 326 231
E-mail: geral@tavira.cienciaviva.pt Web: www.tavira.cienciaviva.pt
Marisol – Böer & Siebert, Lda. Tel.: + 351 289 793 601
E-mail: terrasalgada@marisol.biz Web: www.marisol.info