O peregrino 1

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Índice Prefácio 05 Biografia 09 O Peregrino 109 O Último Sermão 321



Prefácio

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ara muitos pode parecer supérfluo o trabalho de escrever uma introdução para o público, da nova edição de O Peregrino, de John Bunyan, ou fazer algum comentário sobre seu autor. O Peregrino é, juntamente com a Bíblia, um dos mais conhecidos livros já publicados. Podemos imaginar que nem todos tiveram a oportunidade de ler a obra completa de Bunyan, mas em algum momento de suas vidas, elas travaram conhecimento com a famosa jornada do Cristão deste Mundo Àquele que está por vir. Este livro que citamos, conquanto seja suficiente para garantir ao autor um lugar entre os escritores mais renomados, seja dos tempos modernos ou antigos, não representa a décima parte do trabalho feito por Bunyan durante sua vida completamente devotada ao serviço de Deus. A pressa da vida moderna e os apelos incessantes feitos por inúmeras publicações, boas, ruins ou mesmo indiferentes, não são capazes de nos fazer esquecer a imensa contribuição prestada por John Bunyan à causa da verdadeira religião em suas mais de sessenta diferentes publicações, mostrando em cada uma delas uma mente simples, cheia de devoção, a marca de um amor genuíno pela verdade, e a sua grande genialidade.


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Nascido em uma época que se destacou pelo surgimento de muitos homens cujas obras são admiradas até hoje, ele conquistou através de seus permanentes esforços uma elevada posição, se não a mais alta de todas, entre estes homens. Apesar disso, pobreza e ignorância também tiveram participação em sua vida. Após ter optado em sua juventude por uma vida sem Deus, cheia de maldade e pecado. Tornou-se posteriormente um dos grandes mestres da língua inglesa, e um dos mais bem-sucedidos e mais notáveis professores de religião que o mundo já conheceu. Quando sua mente estava totalmente mergulhada em temas religiosos, ele praticamente esquecia-se da pouca instrução que recebera, sendo que o primeiro estudo que fez sobre a Bíblia foi para ele uma tarefa levada muito a sério. Bunyan tornou-se tão familiarizado com os ensinamentos bíblicos, e compreendendo de tal forma a profundidade de seu significado que, com seu rico e vigoroso estilo, mostrava em cada linha o impressionante conhecimento que tinha sobre o “Livro dos livros”. Durante sua vida e mesmo cerca de cem anos após sua morte, os ricos e bem-educados não conseguiam mencionar seu nome ou citar suas obras sem se desculparem por isso. O inculto mascate de Elstow era lido e citado sob protesto de muitos. Para os pobres e pouco instruídos, que não precisavam vencer preconceitos sobre educação ou origem familiar, ele tornou-se imediatamente popular. Este foi um homem testado na fornalha ardente das aflições e que não se deixou vencer nem ficar parado, esperando. Alguém cujas experiências e dificuldades religiosas eram as mesmas que as deles, que lhes estimulava a mente e despertava a solidariedade entre seus compatriotas menos favorecidos. A impressionante originalidade de seu talento garantiu a John Bunyan um lugar entre os imortais. Nos dias de hoje, ele é lido e respeitado por ricos e pobres. Refletindo acerca de sua origem tão humilde, podemos encará-la como um motivo a mais para a admiração que o conteúdo de suas obras acaba despertando.


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E apesar da simplicidade deste homem, nenhum outro escritor religioso aprofundou-se tanto em suas experiências pessoais como ele. Encontramos em suas obras um cenário sem paralelo na literatura cristã, que apresenta a feroz batalha travada para redimir a alma humana do pecado e alcançar libertação. Suas exposições sobre as Escrituras são conhecidas por sua força e simplicidade, sendo adornadas somente por ilustrações caseiras que retratavam a rotina do seu dia-a-dia. Talvez o aprendizado acadêmico tradicional tivesse diminuído sua influência e enfraquecido o poder de suas obras. Este homem iletrado, mas de grande talento, é chamado de “Comentarista dos Pobres”, por nunca ter escrito uma única linha que não pudesse ser claramente compreendida pelo mais simples dos leitores. Ao mesmo tempo, sua simplicidade reflete a grande dimensão de sua obra pela luz própria dos que possuem talento. Na reedição deste clássico religioso, todos os cuidados têm sido observados para reproduzir os textos originais na íntegra e com toda precisão. Apresentamos também um breve resumo da vida de John Bunyan onde os principais acontecimentos de sua carreira são apresentados com destaque ao leitor. J.S.R.



Biografia de John Bunyan (Por John S. Roberts)

O século 17 foi singularmente produtivo em relação aos grandes escritores, religiosos ou seculares. Aquele que em sua origem era o mais humilde de todos e o mais desafortunado, no que diz respeito à educação formal – John Bunyan – é hoje, após um intervalo de alguns séculos, um dos mais conhecidos e mais populares dentre todos eles. Entre estes seus contemporâneos podemos citar: Milton, Dryden, Baxter, Owen, Howe, Henry, Arcebispo Usher, Bispo Hall, Thomas Goodwin, Chefe de Justiça Hale, Cudworth e Henry More. O próprio Shakespeare morrera apenas doze anos antes do nascimento de Bunyan. A simples menção destes nomes nos dá uma ideia bem clara da riqueza dessa época no que diz respeito a homens de grande talento. Se levarmos em consideração o fato de que a maior obra de Bunyan, O Peregrino, foi criação de uma mente inculta tanto sob o ponto de vista formal, quanto por relacionamento com pessoas cultas, ele deverá obrigatoriamente constar como


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o mais notável de todos eles. John Bunyan nasceu em 1628, em Elstow, aproximadamente a 1,5 km da cidade de Bedford, Inglaterra. Seu pai era funileiro; consertava panelas, bules e chaleiras. Esta profissão não era tão respeitada quanto à de um ferreiro, assim como a de sapateiro, não era tão respeitada como a dos artesãos e fabricantes de sapato. Naqueles dias e durante muitos anos que se seguiram, a profissão do pai de Bunyan e de seu famoso filho era difundida em outras localidades por andarilhos e ciganos, também conhecidos como mascates – nome pelo qual os Bunyans foram batizados, embora não viajassem por todo o país ao sabor da profissão. Bunyan e seu pai limitavam-se a trabalhar em uma área restrita às vizinhanças mais próximas. Muitos dos que escreveram a respeito de Bunyan supunham erroneamente que ele fosse descendente de ciganos, esquecendo-se que até certo período da História, ingleses e escoceses atravessavam o país com suas famílias em clãs ou bandos, sobrevivendo da produção e venda de utensílios de lata e madeira. Este que lhes escreve, ainda se lembra desses grupos de “nômades nacionais” se deslocando de um lugar para outro através das áreas centrais da Escócia. Alguns desses grupos chegavam a ter de cinquenta a cem pessoas, entre jovens e velhos. Eles armavam suas tendas em qualquer pedaço de chão disponível nas vizinhanças das vilas ou das cidades e permaneciam ali até que tivessem esgotado comercialmente aquela região, ou até que suas invasões aos galinheiros, plantações de batata e roubos de carne tivessem tornado sua estada indesejável. Essas pessoas eram conhecidas como mascates e eram de ascendência escocesa. Os relatórios da polícia local e a constante reclamação sobre terras devastadas foram gradualmente extinguindo-os como classe nômade, embora ainda possam ser encontrados como famílias nas regiões mais remotas da Escócia e Inglaterra. O herói de Bunyan, cujo negócio era peregrinar pelo país com o lema “consertando as panelas”, não era cigano, mas um mascate escocês – um itinerante que trabalhava com metais.


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O pai de John Bunyan não era cigano e nem mesmo um mascate como os descritos aqui. Ele morava em uma casa e tinha uma vida social comum para um trabalhador de sua época. A designação de “mascate” era usada em virtude do seu trabalho com metais. Bunyan declarava a respeito de si mesmo que “sua descendência era uma geração pobre e sem nenhuma importância e que a família de seu pai era de uma posição social insignificante e desprezada”. Acredita-se que os pais de Bunyan, apesar da humilde condição em que viviam, deram a seu filho o que consideravam ser uma boa educação para as pessoas de seu nível social. Em seu livro Graça Abundante, ele desenhou a terrível figura do vício e da maldade presentes em sua adolescência e início da vida adulta. Mas sem dúvida elas eram uma versão exagerada das acusações de sua própria consciência, fato comum entre os Puritanos. Podemos confirmar isso, pois segundo suas próprias declarações, ele nunca ficou bêbado e nenhuma mulher jamais pôde acusá-lo de qualquer pecado sexual. Mas quando garoto, não respeitava o Sabá, jurava em falso, xingava e era o líder de todas as aventuras maldosas normalmente perpetradas pelos meninos daquela época. Convivendo com amizades que só um jovem malicioso e imprudente poderia ter, Bunyan se esqueceu rapidamente da pouca educação que havia recebido. Falando a respeito deste período de sua vida, ele diz o seguinte: “Nos tempos em que andava sem Deus, eu seguia de fato o caminho deste mundo, conforme minha inclinação natural, segundo o espírito que operava nos filhos da desobediência. Era um prazer ser cativo do diabo, fazer sua vontade e ser cheio de desonestidade. Eu era uma criança como poucas; não tinha nenhuma qualidade além de praguejar, mentir e blasfemar contra o nome de Deus.” Durante toda sua vida, ele se acusava pelos pecados cometidos na adolescência e juventude, mas se defendia veementemente das acusações de libertinagem. Durante a infância de John Bunyan, o pensamento Puritano alcançou seu período mais severo e nenhuma parte da Inglaterra estava sob maior influência desse


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pensamento do que Bedfordshire. Qualquer que fosse sua conduta ou quaisquer que fossem suas práticas, as privações impostas pela religião somadas a uma vida repleta de temor a um Deus apavorante, tiveram fortíssimo efeito sobre a mente imatura e inconsequente deste rapazinho. Seus sonhos eram frequentemente assombrados por visões do julgamento de seus pecados, das quais ele tentava em vão se esquecer mergulhando ainda mais naquilo que considerava ser uma vida profana e de vícios fatais. Devemos levar em consideração que os mais inocentes divertimentos eram tidos pelos puritanos como um pecado temível. Podemos concluir então, com toda certeza, que estando ou não debaixo de alguma influência religiosa, Bunyan era em todos os aspectos um jovem rapaz normal de sua época, que dava lugar às suas inclinações maldosas, e por isso era desprezado pelos religiosos, que em suas vidas de privação e preconceito, não tinham nenhum respeito por ele. Assim como o poeta inglês Robert Southey (1774–1843), somos inclinados a acreditar que seus pais eram tementes a Deus, se esforçando para ensinar-lhe o senso do dever religioso, pois do contrário teria sido difícil e – como se provou mais tarde – ineficiente incutir-lhe tão cedo uma consciência tão severa a respeito do pecado. Muitos livramentos providenciais das garras da morte que ocorreram antes de sua conversão, foram encarados por ele como amostras da graça de Deus para consigo mesmo. Bunyan caiu no mar uma vez e em outra ocasião caiu de um barco no rio Ouse1 . Em ambos os casos escapou da morte por um triz. Em outra oportunidade uma víbora cruzou seu caminho e ele bateu nela com um pedaço de pau, deixando-a inconsciente e corajosamente arrancou a língua do animal com as próprias mãos, pois segundo as crenças da época a língua era considerada a fonte de poder da víbora. Mas outro livramento miraculoso o impressionaria ainda mais. John Bunyan alistou-se no exército e, durante o 2

1 Rio que banha a cidade de York, de tamanho e profundidade consideráveis, permite a navegação de barcos a vapor (N.T.).


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cerco de Leicester22, em junho de 1645, ele estava prestes a entrar no seu turno quando um companheiro de tropa implorou para trocar de lugar com ele. O substituto de Bunyan montava guarda na linha de frente quando foi atingido na cabeça por uma bala de mosquete. Não se têm informações de quanto tempo Bunyan serviu como soldado, mas existem poucas dúvidas de que tenha sido por um curto período. As antigas lembranças traziam à sua memória armas como aríetes e catapultas. Apesar da época em que escreveu A Guerra Santa, algumas armas fossem diferentes das utilizadas no tempo em que ele lutou, a pompa e a circunstância usadas para descrever a batalha são contadas com um estilo de quem já havia tido uma experiência de campo. Muitos dos biógrafos de Bunyan supuseram que ele havia se juntado ao exército em função de seu caráter temente a Deus, esquecendo-se que ele havia se alistado antes de sua conversão, quando a causa do rei era muito atraente para uma personalidade forte e imatura como a sua. Ele costumava dizer que era um daqueles que “temiam a Deus e honravam o rei”. Do início ao fim de sua vida ele sempre se mostrou disposto a submeter-se à lei, o que era injusto e quase impossível para um velho soldado da coroa que sempre se opôs à tirania dos reis. Bunyan foi um monarquista ativo por um curto período e monarquista passivo até o final de uma carreira de sofrimentos e tribulações impostas durante o governo do filho do rei por quem ele havia lutado. Esta é uma das marcas mais interessantes do seu extraordinário caráter. A lei máxima do grande professor era “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, a qual ele obedecia literalmente e através da qual direcionava toda a sua vida. Mas quando “César” exigia o controle de sua mente e vontade nas questões relacionadas às riquezas da vida eterna, ou aos seus vizinhos que tinham o mesmo pensamento, ele resistia em obediência a uma instância divina, superior a de “César”. Entretanto entendemos que os anos de cruel injustiça e 2 Batalha da Primeira Guerra Civil Inglesa (1642-1651), pela disputa do poder entre monarquistas e parlamentaristas (N.T.).


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aprisionamento não afetaram a simplória lealdade que sempre o moveu a obedecer à lei em todos os aspectos terrenos. John Bunyan se casou aos dezenove anos. A união foi um pouco precipitada, pois quando se casaram ele e sua esposa “eram tão pobres quanto alguém poderia ser”, não tinham nem mesmo os utensílios mais simples como colheres e pratos suficientes para duas pessoas. Ele tinha seu negócio para sustentá-los e sua esposa era uma moça prudente e virtuosa que fora criada por um pai amoroso. O pai dela falecera na mesma época em que se casaram e o único dote que ela trouxe para o jovem marido foram dois livros que o pai havia deixado: The Plain Man’s Pathway to Heaven (O caminho do homem rumo ao céu) e a Prática da Piedade, de Lewis Baily. Bunyan lia frequentemente esses livros com sua esposa e essa cuidadosa leitura despertou nele o desejo de mudar sua vida. Ele começou a frequentar a casa de Deus, a igreja nacional, sendo grandemente tocado por um sermão contra a quebra do Sabá. Durante sua participação em um jogo ao ar livre chamado “Tip-Cat”32, ele começou a dizer que de repente uma voz vinda do céu penetrava em sua mente e lhe fazia terríveis perguntas como: “Deseja deixar seus pecados e ir para o céu, ou

permanecer neles e ir para o inferno?” “Com isso”, ele disse, “fiquei tão confuso que deixei o meu ‘gato’ cair no chão. Eu olhava para o céu e era como se Jesus olhasse para mim lá de cima; tinha a sensação de que Ele não estava nada satisfeito com o que via. Parecia que estava me ameaçando com terríveis castigos pelos pecados do presente e do passado.” Embora acreditasse que tinha “visto e ouvido” apenas com sua mente, ele considerou essa mensagem como nada menos do que absolutamente real. Tal fato teve tamanho efeito sobre Bunyan que ele acreditou não haver mais esperanças para si mesmo e que era muito tarde para abandonar seus 3 Tip-Cat - jogo popular no século 17. Usavam-se ripas de madeira como bastões. Um pedaço de madeira retangular representava o “gato”. O “gato” era colocado no chão e um jogador o lançava com a finalidade de ganhar altura e ser rebatido por outro jogador com o bastão para o mais longe possível. Especialistas em esportes consideram este jogo como um dos ancestrais do baseball (N.T.).


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pecados. “Eu estava lá parado, de pé no meio do jogo, diante de todos os presentes. Embora eu não tenha dito nada a eles, cheguei a essa conclusão sozinho. Então, desesperado, retornei ao jogo”. Ele continuou nesse estado de espírito por mais de um mês, quando aconteceu que, estando ele parado perto da janela de um vizinho, “amaldiçoando, praguejando e se comportando como louco”. A dona da casa, embora fosse uma pessoa miserável, perdida e sem Deus, disse, segundo Bunyan, que ele era o pior dos ímpios que ela jamais havia conhecido, por dizer os piores impropérios que ela ouvira em toda sua vida, e que daquela maneira ele seria capaz de corromper os jovens de toda cidade, se eles andassem em sua companhia. Esta repreensão tão severa, vinda de maneira inesperada, teve um efeito fortíssimo na mente imaginativa deste jovem, para quem o sentimento de culpa e insatisfações consigo mesmo, tornaram-se hábitos constantes. Estes sentimentos atacavam seu coração, como se viessem de uma fonte inesgotável. Isso implica dizer que ele era, no mínimo, mais fraco do que quem o acusava. Juntos, seu orgulho e sua consciência causaram nele tal reação que, daquele período em diante, ele abandonou o péssimo costume de praguejar. Ele ainda não havia se convertido, mas para sua surpresa, deixar este hábito havia sido mais fácil do que ele imaginava. Mas algo grandioso estava por acontecer. Incentivado por um pobre, mas bom homem, que conheceu naquela mesma época, ele começou a ler a Bíblia e iniciou um esforço para levar uma vida mais ordeira. Embora, para sua vergonha e arrependimento, ainda voltasse de vez em quando aos velhos hábitos, se tornava cada vez mais evidente o amadurecimento gradual em busca de uma vida mais pura. Com toda certeza o longo processo foi atrasado algumas vezes por estas


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recaídas. Já a sua queda pela dança e por tocar os sinos da igreja de Elstow, foram hábitos mais difíceis de abandonar. Mas estes e outros motivos que ele julgava serem vergonhosos servem para nos mostrar que, ele era muito severo consigo antes de sua conversão. Com a visão da época direcionada pelas marés do Puritanismo, o “Livro dos Esportes”42– um conjunto de regras a serem seguidas aos domingos – foi publicado novamente. Os puritanos discordavam completamente dessas práticas. Para eles, “depois do serviço religioso, nossa boa gente não deve ser perturbada, distraída ou desencaminhada por danças folclóricas, fossem homens ou mulheres, competições de arco, saltos, competições de luta, outras recreações inocentes, ou brincadeiras de roda.” Bunyan se encontrava entre os aficionados por esportes, especialmente alguns tipos de dança em grupo. Desistir desses pequenos divertimentos foi para ele um grande sacrifício e, mesmo quando já não se juntava mais a eles, observava aqueles que sem problemas de consciência ainda conservavam suas práticas. Centenas de bons sacerdotes perderam os benefícios concedidos por não ensinarem este tipo de ordenanças em seus púlpitos. Em meio às suas dúvidas, a satisfação de ter modificado para melhor a opinião dos vizinhos a seu respeito ajudou o nosso pobre e iletrado pecador a continuar por esse novo caminho que agora havia escolhido. Pois mesmo os melhores de nós somos mais influenciados pela opinião de nossos amigos e vizinhos do que temos consciência ou do que gostaríamos de admitir, até mesmo para nós mesmos. Sobre essa época, podemos imaginar a luta travada na mente ardente e imaginativa do jovem mascate e podemos imaginar com alegria a ajuda que deve ter recebido de sua jovem e virtuosa esposa. Os ensinamentos que seu sogro deixara foram, de fato, “pão lançado sobre as águas” e agora 4 Autorização explícita concedida pelo rei para a promoção de atividades esportivas aos domingos, bem como feiras rurais, jogos e danças. Essas atividades eram consideradas pelos puritanos como sendo de origem pagã e por isso uma profanação do Sabá, promovendo, segundo criam eles, ocasião para o pecado (N.T.).


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retornavam à sua vida através da conversão e dos esforços de seu distinto genro de tantas maneiras que não terão fim, até que o tempo tenha acabado e os céus e a terra tenham passado. Seu sentimento de culpa e as severas censuras que fazia a si mesmo lhe provocam visões noturnas, que eram a maneira de demonstrar o estado de sua mente em relação a seus pecados e fraquezas. Embora as visões o atormentassem, elas sem sombra de dúvida o ajudaram a buscar a paz que já esperava por ele em um futuro não muito distante. O autor de A vida de Bunyan, publicado em 1698, era seu amigo íntimo e nos dá um relato preciso dessas visões noturnas. Uma delas é suficiente como exemplo, especialmente porque apareceria mais tarde em uma das famosas cenas de O Peregrino. O biógrafo conta o seguinte: “Uma vez ele sonhou que viu o céu em chamas, o firmamento partindo-se em pedaços e tremendo como se estivesse sendo sacudido por fortes trovões. Um arcanjo voava em meio às nuvens tocando uma trombeta e, à direita, havia um trono glorioso onde estava sentado alguém que resplandecia um brilho intenso, como a estrela da manhã. Diante disso, Bunyan pensou que se tratava do fim do mundo, caiu de joelhos e com as mãos levantadas em direção ao céu, clamou: Ó Senhor, tem misericórdia de mim! O que devo fazer? O dia do julgamento chegou e eu não estou preparado! Então, ouviu uma voz extremamente alta que soava por de trás dele e dizia: ‘Arrependa-se’. Este é o mais vivo e valoroso relato que podemos comparar de perto com a passagem que ele criou para O Peregrino. O Cristão está na casa do Intérprete e vai até um aposento onde um homem está se levantando da cama, tremendo violentamente, que explica sua condição, dizendo ao Cristão: ‘Eu estava dormindo e sonhei que, diante de mim, os céus tornaram-se escuros como a noite: trovões e relâmpagos cortavam o firmamento de forma assustadora, que entrei em agonia. Olhei para cima e vi as nuvens suspensas no céu de forma muito estranha. E ouvi um som muito forte, como o de trombetas vindo do alto e vi um homem assentado sobre uma nuvem, cercado


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pelas miríades do céu. E eles tinham a aparência de fogo ardente e todo o céu era como uma chama ardente. E ouvi uma voz dizendo: Levantem-se mortos e apresentem-se para julgamento. E com isso as pedras se moveram abrindo os túmulos e os mortos que estavam dentro deles saíram. Alguns deles pareciam felizes e olhavam para o céu, enquanto outros procuravam se esconder em cavernas, debaixo das montanhas. O homem que estava assentado na nuvem abriu o livro e ordenou que o mundo se aproximasse, a uma distância segura entre ambos, pois um fogo intenso saía dele e que ficasse a uma distância adequada entre o juiz e os prisioneiros que aguardavam o julgamento. Ouvi ser anunciado aos que estavam com ele nas nuvens: Ajuntem o joio, suas cascas e restolhos e lance-os no lago de fogo ardente. Então, próximo do lugar onde eu estava de pé, abriu-se um enorme e profundo abismo de onde saía fumaça e se viam brasas ardentes e se ouviam sons terríveis. Também ouvi ser dito aos que estavam com Ele nas nuvens: Recolham o meu trigo, e tragam-no para o meu celeiro. Com estas palavras, vi muitos erguerem os olhos para o céu e serem levados para as nuvens, mas eu fui deixado para trás. Busquei um lugar onde pudesse me esconder, mas não consegui, porque os olhos do homem que estava assentado na nuvem continuavam sobre mim. Todos os meus pecados vinham à minha lembrança e minha consciência me acusava de todas as formas. Depois disso, acordei do meu sonho”. O sonho de sua juventude e a reprodução vívida dele mais tarde em seu grande trabalho foi, sem dúvida, resultado da sua ávida leitura das Escrituras enquanto ainda não tinha se regenerado; pensando sobre elas nas vigílias da noite, tal cena como está descrita no capítulo vinte e seis de Apocalipse, foi reproduzida de modo assustadoramente nítido em seus sonhos, tendo a ele como pecador endurecido, um participante aterrori��������� zado e abalado no terrível julgamento. Por um tempo, Bunyan praticou a conduta externa de um cristão; agora ele tinha que ser trazido à salvação de seu pecado e


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encontrar um caminho para a paz e descanso. Ele nos conta em seu próprio jeito singular e impetuoso que, tendo ocasião de ir a Bedford em busca de seu chamado – enquanto envolvido com seu trabalho, ouviu uma conversa de várias mulheres piedosas. “Eu ouvi”, ele disse, “mas não compreendi, pois elas estavam muito fora de meu alcance. Sua conversa era sobre uma nova verdade, a obra de Deus nos seus corações e como também estavam convencidas de seu estado miserável por natureza; como Deus tinha visitado suas almas com o seu amor no Senhor Jesus e com que palavras e promessas elas foram renovadas, confortadas e apoiadas contra as tentações do diabo. Elas também discursavam sobre a impureza do próprio coração, de sua descrença e como desprezavam e tinham horror de sua própria injustiça, suja e insuficiente, que não lhes podia fazer nenhum bem. Parecia a mim que falavam como se a pura alegria as fizesse conversar; elas falavam com tanto prazer da linguagem da Bíblia e com tal aparência de graça em tudo o que diziam, que para mim, era como se “tivessem encontrado um novo mundo e elas fossem pessoas que vivessem sozinhas e não deviam mais ser contadas entre seus vizinhos.” Mais adiante ele nos relata que, quando ouvira e considerara o que diziam, ele as deixou “e segui com meu trabalho de novo; mas sua conversa e discurso também foram comigo e meu coração também se demorava com elas, pois eu fora grandemente afetado por suas palavras, tanto porque fui convencido por elas de que queria o genuíno sinal de um verdadeiro homem de Deus, como também porque fui convencido por elas da condição feliz e abençoada daquele que era assim.” Esta foi uma revelação perturbadora para ele, que havia começado a gabar-se de evitar o mal como uma grande virtude. Certamente, se era tão difícil satisfazer estas mulheres, em sua conduta e serviço de Deus, ele ainda tinha que buscar paz e perdão! Passou-se algum tempo até que estes chegassem, mas ele sabia que não devia mais confiar na sua própria força, ou ceder ao mal, pois havia sido ordenado e separado com um


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intento divino. Esse desespero era seguido de uma pequena chama de esperança, para ser novamente envolvido pela escuridão. Em seu tormento, ele fazia o que era melhor sob tais circunstâncias; frequentemente buscava a companhia daquelas mulheres cuja conversa casual tinha proporcionado a ocasião de seu verdadeiro despertar, do qual duas coisas resultaram, as quais lhe trouxeram grande conforto: “Uma foi a grande suavidade e ternura no coração, que me fazia ter a convicção do que elas afirmavam a respeito das Escrituras e a outra era uma grande inclinação da minha mente para uma contínua meditação sobre isto e sobre todas as outras coisas boas que eu ouvia ou lia em qualquer ocasião.” Mas a evidência mais prática da plenitude do despertamento em sua mente foi a ansiedade do relato de um de seus companheiros, de quem ele gostava muito, que ainda continuava a vida sem Deus, que ele próprio já havia abandonado. Escrevendo a ele, depois de um intervalo de vários meses, Bunyan ficou chocado com os impropérios e blasfêmias, que antes lhes eram tão familiares. “Harry”, ele disse, “por que você xinga e pragueja desta forma? O que será de você se morrer nesta condição?” Ele respondeu num grande deboche, “Quem o diabo teria por companhia se não fosse a mim?” No cristianismo, bem como em outras coisas, o grande teste de sinceridade é desejar que outros sejam igualmente abençoados e como Bunyan tinha dado este passo em seu progresso contínuo, as nuvens que oprimiam sua alma começavam a se dissipar. Lentamente ele readquiriu a facilidade para ler, que tinha perdido inteiramente por causa da negligência durante sua infância e início da juventude. Ficou transtornado lendo as obras de “the Ranters” 52, um grupo que, de acordo com seu testemunho, parecia ter crenças e observâncias em sua vida diária, muito semelhante à dos Mórmons dos nossos dias. Um membro dessa 5 Seita radical inglesa, com raízes em grupos hereges do século 14, conhecidos pela ausência de valores morais. Criam no Antinomianismo, doutrina que nega ou diminui a importância da lei de Deus na vida do crente. Afirma que sendo salvo pela graça, o cristão não tem obrigação de obedecer às leis de Deus (N.T.).


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seita, um conhecido de Bunyan, que praticava e se gloriava em tais abominações, chamando-os de corretos, adequados e superiores a todas as práticas de outros cristãos, assegurando-o de uma imortalidade com a qual pouco sonhava. Não há dúvida de que ele é o original do Ateu em O Peregrino, que almejava fazer o Cristão e o Esperançoso voltarem a usar a linguagem comum às pessoas desta seita, como Bunyan já as ouvira falar. Ele nos conta que as tentações levadas a ele por este homem para se juntar ao corpo “eram adequadas à sua carne, sendo eu apenas um jovem e minha natureza gozando de sua máxima capacidade; mas Deus, que como eu esperava, havia me projetado para coisas melhores, conservou-me no temor do Seu nome e não me permitiu aceitar tais princípios amaldiçoados.” “Eu comecei a olhar para a Bíblia com novos olhos”, ele diz, “e a oração me protegeu dos erros dos Ranters. A Bíblia era muito preciosa para mim nestes dias”. O autor do primeiro livro, A vida de Bunyan, sobre quem já falamos, faz um relato tão assombroso da indecência e profanação das vidas dos Ranters e dos acontecimentos em seus encontros à meia-noite, que foi deixado de fora na segunda edição; consequentemente, é ainda menos adequado para reprodução agora. Talvez seja suficiente dizer que a prática do Mormonismo, quanto ao relacionamento entre os sexos, é decente se comparado a isso. A derrota da causa Monarquista e completa anulação das leis contra grupos religiosos, levou à formação de vários grupos distintos e lhe pareceu por bem, não sendo um intelectual, apegar-se à Bíblia como mestre e guia e isto não obstante muitos receios surgidos da aparente confiança de muitos professores, uma confiança que até então, em sua humildade, tristemente lhe faltava. É mesmo singular que aquele que viria a se tornar o maior mestre fora da Escritura inspirada e da ilustração alegórica, devesse neste tempo ter interpretado literalmente a linguagem figurada da Escritura. Ele lera que “Se vocês tiverem fé do tamanho de uma semente de mostarda, poderão dizer a esta


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amoreira: ‘Arranque-se e plante-se no mar, e ela obedecerá” (Lucas 17.6). Sua educação não lhe tinha ensinado o uso e o valor da linguagem figurada como esta e ele nos conta que, em uma ocasião, enquanto andava entre Elstow e Bedford, ele se sentiu fortemente tentado a provar se tinha fé, pedindo a algumas poças na estrada que trocassem de lugar com o chão seco. Ele fora tão longe em seu desejo de testar a sua fé na tentativa de fazer um milagre que, quando ia orar por esta habilidade, seu bom senso inato veio em seu socorro e lhe mostrou como esta atitude seria ignorante e presunçosa. As dúvidas, esperanças e provações deste período, que tomavam a alma indagadora de Bunyan, são graficamente semelhantes a um navio no mar das eloquentes palestras de Cheever. Ele diz: “Com grande interesse nós seguimos os movimentos da alma de Bunyan. Você o vê como uma barca cheia de vida, cruzando o oceano como um furacão. Pelo brilho dos relâmpagos, você pode descobri-la submergindo e lutando terrivelmente na tempestade à meia-noite; aí se pensa que tudo está perdido. Então, pode contemplá-la, mais uma vez, na silenciosa luz do sol, ou da lua e as estrelas que olham para ela quando o vento sopra suavemente, ou com um vento forte e favorável, ela desliza através das águas. Agora são nuvens, chuva e fortes furacões, vindos tão repentinamente quanto um relâmpago; agora mais uma vez suas velas brancas brilham na luz do céu, como um albatroz no horizonte limpo. Finalmente, se tem a última visão, quando a vemos entrar no porto do descanso eterno.” As tentações de voltar ao mundo alternavam-se com as dúvidas de sua própria indignidade, mas todo o tempo ele lutava duramente para penetrar no sentido oculto das Escrituras. Através da meditação, Bunyan entendia que a divisão das criaturas de Deus em limpas e impuras era emblemática sobre nosso ato de se alimentar da Palavra de Deus e a separação, se assim fizéssemos, dos caminhos dos homens sem Deus. Ele não pensava que fosse suficiente fazer um ou outro, mas que devíamos fazer os dois, recebendo em nós a Palavra e mostrando que a recebemos, separando-nos dos


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pecados que mais apreciamos. O significado espiritual da dispensação Mosaica era um assunto favorito dele e tem grande atenção em seus vários escritos, especialmente em O Peregrino, quando o Cristão e o Fiel analisam o caráter do personagem Tagarela, o qual trazemos à atenção do leitor, como um exemplo singular do extraordinário talento de Bunyan nesta direção, um talento que levou Addison (1672–1719), o grande ensaísta inglês a enfatizar que, se Bunyan tivesse vivido e escrito durante o surgimento da Igreja Cristã, ele teria sido considerado um dos maiores pais da Igreja de Cristo. As boas mulheres de Bedford, cujas conversas tinham sido tão abençoadoras para Bunyan, tinham uma vida humilde e eram membros de uma igreja batista, sob a direção naquela época de um bom homem de Deus chamado John Gifford. No início de sua vida, Gifford vivera o mesmo tipo de vida que Bunyan, tinha se alistado no exército e obtido o posto de major nas forças do Rei, uma circunstância que demonstrara claramente um considerável número de habilidades. Ele uniu-se a outros numa tentativa de levantar uma rebelião contra a Commonwealth62em Kent, foi feito prisioneiro e sentenciado à morte. Na noite anterior ao dia marcado para sua execução, sua irmã encontrou um meio de entrar na prisão e libertá-lo. Ele foi para Bedford, onde trabalhou como cirurgião e ficou marcado por seus hábitos desleixados e seu ódio pelos Puritanos. A leitura de um dos livros de R. Bolton foi o meio de sua conversão e ele ansiosamente buscou comu����� nhão com aqueles que anteriormente desprezara e perseguira, até que ao mostrar tais evidências da graça abundante em sua vida, junto com outros se uniu para formar uma congregação da qual foi eleito pastor. Seu zelo e honestidade logo juntaram ao seu redor um grande número de seguidores, entre os quais estavam as pobres mulheres às quais mencionamos. 6 União das Ilhas Britânicas sob o domínio de Oliver Cromwell e que se autodenominaram Commonwealth. Uma das principais leis da Commonwealth, o “Ato de Navegação”, estabelecia que os produtos importados pela Inglaterra só poderiam ser transportados por navios ingleses; fato que concedeu a Inglaterra a supremacia marítima da época (N.T.).


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Visitando-as e falando de seus medos e dúvidas, Bunyan foi apresentado a John Gifford e a influência deste homem, que era tão superior em educação e conhecimento do mundo, foi um benefício incalculável para abrir a sua mente e colocar a fundação para aqueles princípios tolerantes que mostravam um grande coração, que fizeram de suas obras o tesouro dos cristãos de todas as denominações. Nós não erraremos se concluirmos que este bom homem foi retratado como o original Evangelista em O peregrino. Mas quanto mais Bunyan se aproximava da luz, mais feroz era o embate do mal dentro dele, tentando dominá-lo. Seu próprio registro da última e mais forte luta contra o poder do pecado e escuridão é muito impressionante para ser deixada de fora. Nenhuma paráfrase poderia ter a metade da eficácia da sua própria descrição. Em algum momento antes das experiências que ele narra no extrato que estamos por fazer, sua mente era assombrada pelas palavras do Senhor a Pedro: “Satanás pediu você” (Lucas 22.31) e pareceu tão real que mais de uma vez ele olhou ao seu redor, imaginando que alguém atrás dele as tinha proferido. “Cerca de um mês depois”, diz, “uma grande tempestade veio sobre mim, que me tratou vinte vezes pior do que qualquer outra em minha vida; veio sobre mim uma parte e depois a outra. Primeiro todo o conforto foi tirado de mim e a escuridão me tomou; depois disso, enchentes de blasfêmias contra Cristo, Deus e as Escrituras foram derramadas sobre o meu espírito, para minha grande confusão e surpresa. Estes pensamentos blasfemos eram tais que levantavam dentro de mim questões contra o próprio ser de Deus e seu único Filho amado: se havia de verdade ou não um Deus, ou Cristo. E se as Escrituras não eram uma fábula ou história incrível, ao invés da pura e santa Palavra de Deus... Estas sugestões, como muitas outras que não posso, nem ouso proferir, seja por palavra ou por escrito, trouxeram tal apreensão ao meu espírito e assim pesaram no meu coração, tanto por seu número, continuidade e terrível força, que senti como se não houvesse mais nada, mas apenas isto, de manhã à


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noite dentro de mim, embora, de fato, não pudesse haver lugar para mais nada. Também concluí que Deus tinha, em pura ira para com minha alma, desistido de mim e me lançado a eles, para ser levado embora, como por um poderoso redemoinho. E tão somente pelo desgosto que tais coisas traziam ao meu espírito, senti que havia algo em mim que se recusava a crer neles. Quando eu estava sob esta tentação, muitas vezes encontrava-me subitamente pronto para xingar e praguejar, ou falar algo terrível contra Deus ou Cristo, Seu Filho, e as Escrituras.” Aqui temos a experiência mental que depois funcionou admiravelmente como inspiração para o conflito com Apoliom no Vale da Humilhação, quando o Cristão parecia tudo, menos derrotado, para vencer finalmente quando o seu inimigo já considerava sua vitória tudo, menos garantida. Depois de mais de um ano de esperanças e fracassos, o Gigante Desespero e Apoliom foram finalmente derrotados e o Castelo da Dúvida foi levado pela tempestade. Quando o tempo de sua liberdade e vitória chegou, as palavras do apóstolo vieram-lhe à mente, “Portanto, visto que os filhos são pessoas de carne e sangue, ele também participou desta condição humana, para que, por sua morte, derrotasse aquele que tem o poder da morte, isto é, o diabo, e libertasse aqueles que durante toda a vida estiveram escravizados pelo medo da morte” (Hebreus 2.14-15). “Eu achei”, ele revelou, “que a glória destas palavras era tão poderosa para mim, que estava pronto a desmaiar quando me sentei, não por tristeza e tribulação, mas cheio de sólida paz e alegria”. Um livro que chegou até Bunyan nessa época ajudou-lhe na boa obra em seu espírito. Era uma velha cópia de Luther on the Galatians (Comentário sobre Gálatas, de Lutero). Ele diz que era “tão velha, que estava prestes a se desfazer em pedaços, se eu apenas virasse uma página.” Nela, encontrou o que queria: o registro de uma experiência tal qual a sua. “Eu achei”, ele diz, “minha condição, na experiência dele, tão larga e profundamente


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manejada, como se seu livro tivesse sido escrito a partir do meu próprio coração. Eu prefiro o livro, sobre todos os outros, como o mais adequado para uma consciência ferida”. O livramento de Bunyan estava agora quase completo e ele candidatou-se a ser aceito a congregação, que depois de um breve período probatório, foi-lhe concedida a grande alegria. Na época de sua admissão na comunhão Batista, o batismo por imersão estava proibido pela lei, sob pena de severa punição, pois até mesmo na Commonwealth, assim como na Coroa, os Batistas tinham sofrido os horrores da perseguição. Isto deve explicar porque ele pouco menciona a respeito dos procedimentos ligados à sua admissão no seu livro Graça abundante; pois se ele não temia nenhum homem, importante ou não, era bastante sábio para não atrair a perseguição que envolveria amigos cristãos que tanto tinham feito por ele e tinham tornado-se tão preciosos para ele na comunhão cristã. De acordo com C. Doe7, um dos seus primeiros biógrafos, seu batismo aconteceu entre os anos de 1651 e 1653; o lugar onde foi batizado era um pequeno riacho que corria para o rio Ouse no fim da Estrada Duck, em Bedford. A cerimônia aconteceu à noite, como sempre acontecia, até que as leis de restrição contra os Batistas foram retiradas. No mesmo ano que testemunhou o batismo de John Bunyan, supondo-se que este ocorreu em 1653, Oliver Cromwell foi eleito ao Protetorado da Grã-Bretanha. Thomas Carlyle, criando certo exagero sobre o fato, disse: “Dois homens comuns de tal forma elevados, pondo seus chapéus em suas cabeças poderiam exclamar, ‘Que Deus me capacite a ser rei do que está abaixo disto! Pois a eternidade está abaixo disto, o infinito, o céu e também o inferno! E tão grande quanto o universo é este reino e eu vou conquistá-lo, ou ser para sempre conquistado por ele – agora enquanto é chamado de hoje.’” Não pode haver dúvida que estes homens mantiveram muito cuidadosamente os votos e as obrigações então tomadas. O filho do açougueiro


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dirigiu uma grande nação e fez o nome dela temido e respeitado, onde antes era desprezado. Ele governou os nobres e os grandes, mas nem sempre se lembrou que a coisa certa devia ser feita a qualquer custo. O filho do funileiro entrou para o exército de Cristo como um soldado humilde e veio a ser, no tempo certo, um grande capitão e um campeão da cruz. Sua vida foi dada ao serviço do seu mestre e ao bem das almas; embora já falecido por quase dois séculos, seu ensino e exemplo continuam poderosos como sempre. Não apenas através de todo o mundo civilizado, mas também em nações pagãs, os missionários acreditam que O Peregrino é a maior arma depois da Bíblia para o despertamento dos corações e mentes dos povos selvagens. Os últimos anos não somente testemunharam uma luta com a perversão do seu coração e mente, terminando com um triunfo para este humilde inquiridor da divina verdade, mas suas circunstâncias temporais também melhoraram. Uma vida regular e esforçada produziu os frutos esperados; temos através do primeiro biógrafo de Bunyan, que foi testemunha ocular de tudo isto, o relato que “nesta época a família já tinha aumentado e conforme ela crescia, Deus fazia crescer sua despensa, de modo que ele vivia agora com grande crédito entre seus vizinhos”. Sua posição melhorada entre seus companheiros nesta época é significativamente apoiada pela sua união com trinta e cinco outros – todos os homens de mente esclarecida do condado de Bedford, num memorial ao Protetor, recomendando dois cavalheiros como membros do conselho, criado depois da dissolução do Parlamento. Este memorial data de 13 de maio de 1653 e esta data, nós acreditamos que determina a época de seu batismo como anterior a isso, pois o nome de John Gifford também figura entre os que assinam a petição. De algum modo, podemos dizer agora que ele passou do Pântano da Desconfiança, pois o Cristão se debatendo naquele pântano não é nada mais que uma figura simbólica de sua própria luta atrás do caminho certo durante os muitos meses que


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precederam seu batismo. As três mulheres pobres de Bedford, que surpreenderam o jovem autosuficiente que, confiando em sua grande aderência às leis morais e tarefas desta vida, tentava bravamente convencer-se de que era de fato um cristão. De repente revelaram-lhe que possuíam algo que ele não tinha – uma vida espiritual interior. Elas eram, de fato, os “Três seres resplandecentes” que encontraram o Cristão ao pé da cruz e o Sr. Gifford, a quem elas apresentaram Bunyan, era o Evangelista, que deixou claro o caminho para ele, levando-o adiante no caminho certo, fortalecendo-o em suas lutas e perigos. O funileiro temperamental e autoacusador tinha levantado tantas dúvidas e dificuldades por causa de sua própria ignorância e das atividades de sua maravilhosa imaginação que se espalhava rapidamente; então deu mostra do poder maravilhoso e da produtividade que iria depois distingui-lo. Mas junto com estas havia outra característica de sua mente, que fez cada centímetro de chão conquistado por ele uma possessão permanente, que nenhuma dúvida ou apreensão poderia abalar. Não via verdade na confiança – viesse de outro ou como resultado de suas próprias cogitações. O “Assim diz o Senhor”, em Sua Santa Palavra, deve ser buscado e achado e, quando for achado, deve ser compreendido através da oração e súplica até que sua essência tenha entrado na alma. Muito disso foi alcançado a tal ponto que, qualquer dificuldade vencida era um auxílio em direção à conquista do que estava por vir. Sua admissão na Igreja foi à entrada do Cristão pela Porta Estreita. As lutas do Cristão nunca cessaram até que ele passou pelo portão da Cidade Celestial; nem as lutas de Bunyan, até que a cortina desceu sobre sua longa carreira de bons atos e quando o mundo e todas as suas tentações não podiam mais assolá-lo, pois tinha entrado pelos “Portões Resplandecentes” da Cidade de Deus. O longo conflito mental pelo qual ele passou, o intenso – e até mesmo mórbido – hábito de autoexame e seu estudo íntimo da Bíblia deram-lhe uma visão aguçada e sagaz do caráter e da mente dos outros. Enquanto ele lutava pela paz que apenas um


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senso de perdão total dos pecados pode trazer – ficava chocado ao ver como aqueles do seu tempo estavam à beira da eternidade e por outro lado estavam tão intensamente ocupados com as coisas deste mundo. Ele podia ver ao seu redor muitos que, como ele mesmo um dia, estavam sendo esmagados pelo peso de seus pecados, que tinham um alívio ilusório e, portanto, levaram-no a temer e orar para que não perdesse o rumo em seu próprio pecado e indignidade e sim fosse salvo pela graça de Deus e perdão em Jesus Cristo. Sua aguda observação dos outros, em sua ansiedade de saber o que evitar, é admiravelmente exemplificada no seguinte texto, no qual ele se refere às autoilusões de alguns e à sua própria ansiedade de ser salvo delas. “E aquilo que me fez ter mais medo disso foi porque eu tinha visto alguns que, embora estivessem com peso na consciência, chorassem e orassem, tinham mais preocupação por seus problemas do que pelo perdão de seus pecados e não se preocupavam em como se livrar de sua culpa. Então tiravam isso de sua mente, mas agindo da maneira errada, não eram santificados; pelo contrário, ficavam mais endurecidos, mais cegos e mais iníquos em seus problemas. Isto me fez ter medo e me levou a clamar a Deus ainda mais, para que não fosse assim comigo.” Bunyan não corria o risco de cair nesse erro. Se olharmos desapaixonadamente para seu próprio relato do seu estado de espírito nessa época, estaremos inclinados a ver nele autoacusações de pecados que não existiam, a não ser em sua mente ardente e sensível. A história desse período, conforme narrada por ele mesmo, é a análise mais terrível de um conflito espiritual nunca antes mostrado ao mundo. Quando a paz e a tranquilidade pareciam ter sido obtidas, ele caía em dúvidas e tormentos autoimpostos, que teriam arruinado qualquer mente menos forte que a sua. Espíritos bons e maus estavam sempre ao seu redor, arrastando-o de um lado para outro, até que a adesão ao ateísmo absoluto oferecia um escape tentador para seus problemas. Vozes do invisível se alternavam, avisando-o e ameaçando-o. Quando ocupado


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com seus afazeres normais e para o espectador apenas ocupado com a mera rotina de suas tarefas diárias, ele estava lutando com o espírito e recebendo conforto e desespero de seres, as criaturas vivas em sua imaginação agitada e intensa. Um exemplo notável disto é aqui digno de ser mencionado. “Uma vez eu andava para lá e para cá na loja de um bom homem, me lamentando em meu estado triste e lúgubre; aflito e com nojo de mim mesmo por causa deste pensamento vil e ímpio, lamentando também esta minha dura sorte, por que eu cometeria um pecado tão grande, temendo profundamente que não fosse perdoado; orando também em meu coração, que se este pecado fosse diferente daquele contra o Espírito Santo, o Senhor mostraria para mim e agora estava pronto para afundar no medo. De repente houve, como se entrasse pela janela, o som de um vento sobre mim, mas muito agradável e foi como se ouvisse uma voz falando, ‘Você se recusa a ser justificado pelo sangue de Cristo’? Assim, toda a minha vida cristã passou diante de mim, de onde vi que intencionalmente eu me recusava. Então meu coração respondeu rosnando, ‘Não!’ Então caí com o poder do Espírito sobre mim, ‘Cuidado para não rejeitar aquele que fala’. Isto trouxe uma estranha convulsão ao meu espírito, mas trouxe luz e comandou uma liberação de todos os pensamentos que traziam tumulto ao meu coração e que antes como cães do inferno sem dono, rugiam, vociferavam e faziam um som terrível dentro de mim. Também me mostrou que Jesus Cristo tinha uma palavra de graça e misericórdia para mim e que Ele não tinha, como eu temia, abandonado minha alma. Sim, esta foi um tipo de repreensão à minha tendência ao desespero, um tipo de ameaça para mim, se não lançasse minha alma sobre a Lei de Deus, não obstante meus pecados e a atrocidade deles. Mas quanto ao meu entendimento deste desespero agudo, não sei do que se tratava. Em vinte anos, ainda não consegui fazer um julgamento dele. Então pensei que aqui estava o que deveria estar relutante em dizer.”


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A primeira passagem que pusemos em itálico mostra claramente que, depois de um intervalo de vinte anos, ele ainda se sentia culpado em afligir-se com acusações desnecessárias. A segunda mostra seu desejo ardente por manifestações externas da ação de Deus na vida dele, o que explica a voz que parecia falar com ele e o aparente sopro de vento sobre si. Temos inúmeros exemplos como esse na biografia cristã, que são resultado da exaltação dos sentimentos. E no caso de Bunyan, tais visões e sonhos acordados eram ainda mais vívidos e poderosos, em razão de sua incrível faculdade imaginativa, que deu vida e força a todos que tocou, num nível nunca antes conhecido na história da mente humana. Poucos homens poderiam passar por experiências desta natureza sem se tornarem fanáticos; mas o forte senso comum de Bunyan, sua capacidade de racionalizar tudo e o fato de não descansar satisfeito até que sua causa e significado estivessem entendidos, salvou-o desta condição. Ele não era em nada mais notável do que a conjunção da imaginação mais maravilhosa com a tendência incontrolável de submeter todas as coisas, vistas ou ouvidas a um teste prático, que deveria de uma vez por todas determinar seu valor e servir para futuras influências sobre seus pensamentos e ações. Sobre todas as coisas, quando perseguido com terríveis apreensões de pecados horríveis e imperdoáveis, sua mente entrava em um estado de euforia tal, que sua própria imaginação tornava-se para ele um tipo de realidade, na qual não deveria acreditar de modo algum se pensasse friamente; então recorria à Bíblia para inspiração e direção e para usar suas próprias palavras, “com o coração cuidadoso e olhos atentos, com grande temor ao virar cada página e com muita diligência, movido com temor, ao considerar cada frase com sua força e latitude natural.” O resultado de tal processo logo se tornou manifesto numa mente mais composta e tranquila e, apesar dele manter as últimas opiniões mais fortes sobre suas experiências iniciais, a melhor evidência de sua origem mórbida deve ser


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achada no fato de que ele não parece sofrer das mesmas dúvidas e dificuldades, nem se permitir as mesmas admoestações, depois que passou a dominar e apreciar o sistema do Evangelho. John Gifford morreu em 1656 e seu pequeno rebanho muito sofreu por um homem tão bom e honesto, como seria esperado. Quando ele recebeu John Bunyan na comunhão, que foi o meio, a grande maneira, de levá-lo a um deleite e felicidade nas promessas das Escrituras – “o Santo John Gifford”, como Bunyan lindamente se dirigia a ele – não poderia nunca imaginar os brilhantes serviços que o humilde e iletrado funileiro renderia à igreja de Cristo. Nem o próprio Bunyan tinha qualquer noção de possuir uma qualidade especial para ensinar outros através da pregação da sua caneta. Pois ele conta que algum tempo depois da morte de Gifford, os membros da congregação passaram uma resolução que “alguns dos irmãos (um de cada vez, a quem o Senhor tiver dado um dom) seja chamado à frente e encorajado a falar uma palavra à igreja para edificação mútua”. Eles o nomearam como alguém especialmente qualificado e ele ficou muito surpreso. Mas o início de sua vocação pastoral pode ser melhor contado em suas próprias palavras. “Alguns”, ele disse, “dos mais capazes dos santos entre nós, perceberam que Deus tinha me considerado como digno de entender algo a respeito de Sua vontade e de Sua santa e bendita Palavra e me deu elocução em certa medida para expressar o que eu vi aos outros para edificação. Portanto, eles desejaram, com muita intensidade, que eu estivesse disposto, algumas vezes, a tomar a direção de alguns dos encontros em minhas mãos, a falar uma palavra de exortação a eles. Isto, a princípio, desconcertou e envergonhou meu espírito, mas sendo que eles ainda desejavam e suplicavam para que continuasse, eu consenti e descobri, por duas vezes, nas várias assembleias (mas em particular, embora com muita fraqueza e enfermidade) meu dom entre eles, ao que eles protestaram, pois como se estivessem diante do grande Deus,


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foram afetados e confortados por minhas palavras e deram graças ao Pai das Misericórdias pela graça derramada sobre mim. “Depois disso, algumas vezes, quando alguns deles iam ao campo para ensinar, insistiam para que eu também fosse, onde embora eu não fazia, nem ousava fazer, uso do meu dom abertamente, mas apenas em particular, quando eu ia à casa de boas pessoas, algumas vezes falava uma palavra de admoestação a elas também, ao que eles, tanto como os outros, recebiam com alegria diante da misericórdia de Deus para comigo, professando que suas almas estavam edificadas a partir dali. Por esta razão, ainda sendo desejado pela igreja, depois de alguma oração solene ao Senhor, com jejum, fui mais particularmente chamado e apontado para uma pregação pública e ordinária da Palavra, não somente para e entre aqueles que criam, mas também para oferecer o Evangelho àqueles que não tinham ainda recebido a sua fé.” O número daqueles que estavam separados era dez. Destes, três além de Bunyan eram homens que tinham atingido notoriedade através da perseguição. Um era Nehemiah Coxe, que se acreditava ser descendente do Dr. Richard Coxe, preceptor do rei Edward VI e deão de Oxford. Embora seguindo a humilde profissão de sapateiro, era um homem de grande inteligência, tinha recebido uma educação de primeira linha e defendeu seu indiciamento, quando julgado em Bedford por pregar, primeiro em grego, depois em hebraico, argumentando que seu indiciamento fora numa língua estrangeira (francês normando ou latim); ele teve permissão de fazer a defesa em qualquer das línguas aprendidas. Sendo o conselho de acusação ignorante nestes idiomas, o juiz encerrou o caso, dizendo aos advogados: “Bem, parece que ele conseguiu enrolar todos vocês, cavalheiros”. Outro foi John Fenn, que foi lançado na prisão por pregar em sua própria casa em 1670 e todos os seus bens e mercadorias de trabalho foram levados, deixando sua família destituída de bens. O terceiro foi Edward Isaac, um ferreiro, que ao mesmo tempo foi multado por pregar e teve


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todas as suas mercadorias de trabalho, incluindo sua bigorna, confiscadas. Quando Bunyan continuou sua pregação, teve a satisfação de ver que estava sendo bênção para muitos; embora fosse grato além da medida por isto, nenhum homem jamais tomou uma tarefa tão responsável e grave sobre si com tanta modéstia e lutou pelo bem dos outros mais do que por sua própria fama. Ele nos conta que, “Em minha pregação da Palavra, tomei cuidado especial com uma coisa – a saber, que o Senhor me levasse a começar onde Sua Palavra começa, com os pecadores, ou seja, condenar toda carne e abrir e alegar que a maldição de Deus na lei pertence e cai sobre todos os homens quando eles vêm ao mundo, por causa do pecado. Agora, esta parte do meu trabalho cumprida com grande sentido (de sentimento), pelo terror da lei e culpa por minhas transgressões, pesava na minha consciência. Eu pregava o que sentia, o que agudamente sentia minha pobre alma, que até mesmo gemia e tremia até a perplexidade. De fato, sou um dos que foi enviado dos mortos a eles e fui, eu mesmo, em cadeias, para pregar àqueles que estavam em cadeias e carreguei aquela chama na consciência de modo que os persuadi a tomarem cuidado com ela. Posso verdadeiramente dizer que quando estive pregando, eu chegava cheio de culpa e medo até ao pé do púlpito. Então isso era tirado de mim e minha mente ficava livre até que tivesse feito meu trabalho e, imediatamente, antes mesmo que descesse as escadas do púlpito, me sentia tão mal quanto antes. Ainda assim, Deus me levou adiante, certamente com uma forte mão, pois nem a culpa nem o inferno podem tirar de mim o meu trabalho.” Não deve nos causar surpresa o fato de que um homem tão zeloso e tão dedicado ao ofício de professor da religião, como Bunyan era, se tornasse popular quase imediatamente. Como ele não pregava nada que não fosse previamente estudado, considerado e registrado em anotações para guiá-lo, seu tempo deve ter


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sido muito ocupado, já que ele tinha uma família para sustentar e cumpriu sua tarefa para com eles de modo que não deixasse nada para os malevolentes falarem contra ele nesta questão. Por vários anos foi diácono em sua igreja – escrevendo e ministrando aos doentes e pobres. Este ofício, ele agora se sentia levado a deixar, porque não tinha tempo ao seu dispor para cumprir as tarefas que o ofício envolvia e não era o tipo de homem de fazer as coisas pela metade. Seja lá o que fizesse, ele o fazia de coração e mente. As opiniões dos Ranters, de quem nós já falamos, estavam ocasionando desassossego nas mentes de muitas boas pessoas da vizinhança de Bunyan, cujo grau de instrução educacional e espiritual não era o suficiente para lutar contra eles. Para encontrar-se com tais pessoas e combater suas ideias, também por causa de um desejo de combater a falsa religião e a depravação que existia ao seu redor, Bunyan foi induzido a fazer sua primeira aparição como autor. Para alguém que dentro de apenas alguns anos teve, pela segunda vez, de aprender a ler e que escrevia muito mal, esta era uma tarefa que exigia grande coragem e perseverança. O “o que dizer” estava com ele, mas o que era difícil era colocá-lo em preto e branco para imprimir. A tarefa foi enfim cumprida e em 1656 sua primeira publicação apareceu sob o título de Some Gospel Truths Opened According to the Scriptures (Algumas verdades do Evangelho abertas de acordo com as Escrituras), este foi o começo desta enchente de verdade divina, que ele derramou sem interrupção até o dia de sua morte, e muito do qual pode se dizer, alegrou o coração de milhões de seus companheiros durante os muitos anos que se passaram até que o mundo descobrisse seu valor e o poder de suas palavras. É importante que nós saibamos a opinião sobre esta obra de alguém que conhecia o autor e sua humilde circunstância e não foi, portanto, induzido a dar meramente um testemunho lisonjeiro.


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Bunyan, antes de publicar esta obra, submeteu-a a John Boston, que tinha estado unido com ele na congregação de Bedford. O seguinte é um extrato do testemunho que ele dá em relação a isto: “... Este homem (Bunyan) foi escolhido não em uma comunidade terrena, mas de uma comunidade celestial, a igreja de Cristo, preenchida com o Espírito, os dons e a graça de Cristo – por causa destes, até o fim do mundo a palavra do Senhor e todos estes ministros do Evangelho devem pregar. E embora este homem não tenha o estudo ou sabedoria do homem, ainda assim através da graça recebeu o ensino de Deus e o aprendizado do espírito de Cristo. Ele, através da graça, recebeu diplomas celestiais – união com Cristo, unção do Espírito e experiência com as tentações de Satanás – que contribuem mais para deixar um homem em forma para a pregação do Evangelho do que aprendizado na universidade ou diplomas podem fazer. Tenho experimentado com outros crentes a respeito da integridade da fé deste homem, sua boa conversa e sua habilidade de pregar o Evangelho, não pela arte humana, mas pelo espírito de Cristo; dessa forma tem tido muito sucesso na conversão dos pecadores. Penso que é minha obrigação dar testemunho com meu irmão sobre estas verdades gloriosas do Senhor Jesus Cristo.” Não obstante o calor em sua recomendação, a intromissão da carência de instrução de Bunyan não pode deixar de ser notada. E é ainda mais notável porque há pouco no trabalho em si que pareça ser necessário que deva ser melhorado; mas durante toda sua vida e muito depois da sua morte, sua necessidade de estudar e sua origem humilde foi assunto de referência apologética entre seus admiradores, de detração de seus inimigos: “Pode algo de bom sair de Nazaré?” é uma pergunta constantemente feita quando um filho de natureza humilde, pela pura força da natureza, lança-se entre os imortais. Depois que gerações passaram, a mera circunstância da vida de um grande homem é esquecida e ele é lembrado apenas em relação a seu trabalho. Este foi o caso


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de Bunyan, pois mais de cem anos depois de sua morte, achamos Cowper82afirmando que não poderia colocar o agora glorioso nome de Bunyan em seu verso por medo de causar zombaria. Nesta obra, Bunyan ataca as tolices e heresias de seu tempo sem poupar nada e não demorou muito para que se encontrasse com oponentes ferozes, o primeiro e mais notável foi Edward Burrough, um quaker, mais jovem que Bunyan e tão cheio de entusiasmo por sua crença quanto Bunyan era pela sua. A réplica de Burrough era caracterizada por uma veemência apaixonada, poder de sarcasmo e injúria, aplicado sem muita justiça, contrastando estranhamente com seu título “Defesa do Evangelho da Paz no espírito de mansidão e amor”. Ele fala de Bunyan e dos irmãos de sua comunhão como “passarinheiros astuciosos espreitando o inocente” e ataca-os com palavras no estilo mais cortante. “Por quanto tempo”, ele pergunta, “o justo será uma presa de sua verdade, suas raposas traiçoeiras; seus atos estão na escuridão e seus erros são chocados nas suas camas de meretrício secreto... Vocês fortalecem suas mãos na iniquidade e zombam de si mesmos com o zelo de loucos em fúria. Atiram suas flechas de crueldade e até mesmo de amargas palavras.” Ele declara que Bunyan como “herdeiro de Ismael e da semente de Caim, cuja linhagem vai até os sacerdotes assassinos, inimigos de Cristo, que pregavam por dinheiro”. Burrough lhe perguntou: “Não é o mentiroso e caluniador um não crente de natureza amaldiçoada?” Ao que Bunyan respondeu: “O mentiroso e caluniador é um não crente e se ele viver e morrer nesta condição, seu estado é mesmo ruim, embora se ele se arrepender, há esperança para ele. Portanto, arrependa-se e mude rapidamente, olhe para si mesmo, pois tu és tal homem, como está claro pelo seu discurso.” Certa Anne Blacky, mulher religiosa e uma adversária inteligente, também entrou na lista contra Bunyan. Em uma ocasião, 8 William Cowper (1731–1800), poeta inglês, compositor de vários hinos. Um dos mais populares poetas de seu tempo, costumava escrever sobre a rotina do dia a dia e sobre cenas da vida campestre inglesa (N.T.).


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ela apelou para ele, na presença da congregação para quem ele pregava, para “jogar fora as Escrituras”, ao que ele respondeu: “Não, pois assim o diabo seria muito difícil para mim.” Bunyan não era um oponente à altura de Burrough. Ele era um homem justo e honesto, e muito zeloso para entrar na guerra do abuso. Ele podia falar com vigor contra o erro, os malfeitores, mas não podia sair da sua pura personalidade, apenas pelo desejo de ferir um oponente. Ele respondeu um folheto intitulado A Vindication of Gospel Truths (Defesa das verdades do Evangelho), e falou do abuso do seu oponente sobre ele como uma luta “amarga com uma parcela de expressões ofensivas”. Burrough acusou Bunyan de ter insinuado que os quakers eram os falsos profetas a que as Escrituras aludiam e lhe disse que “não havia quakers naqueles dias”. “Amigo”, diz Bunyan em resposta, “você está certo, ninguém ouviu falar de quakers naquela época, mas se ouviu falar de cristãos”. Sua resposta à acusação sem fundamento de que era um pregador mercenário, é certamente a sua mais nobre defesa e exposição de seu ofício e circunstâncias, que um homem jamais fez. “Para se defender você jogou poeira na minha face, dizendo, se nós investigássemos a sua vida, acharíamos os passos dos falsos profetas em você, através de palavras forçadas, através de teimosias, fazendo das almas um mercado, sendo o salário da injustiça. Amigo, você fala isto por seu próprio conhecimento, ou alguém lhe disse isso? Entretanto, este espírito que o leva por esse caminho é mentiroso, pois embora eu seja pobre e sem reputação quanto às coisas exteriores, ainda assim pela graça eu aprendi, pelo exemplo do apóstolo Paulo a pregar a verdade e também a trabalhar com minhas mãos, tanto para meu próprio sustento, quanto para aqueles que estão comigo, quando tenho oportunidade. E eu confio que, o Senhor Jesus Cristo, que me ajudou a rejeitar os salários da injustiça até agora, ainda me ajudará, para que distribua o que Deus me deu de graça e não por causa do lucro.”


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A resposta de Bunyan foi elogiada em um prefácio por três de seus irmãos de ministério na congregação. Logo, o humilde funileiro não precisava de recomendação ou desculpa para qualquer coisa que fizesse. Burrough respondeu à defesa, mas Bunyan sabiamente se absteve de continuar a controvérsia; o trabalho no qual estava engajado era mais importante aos seus olhos e precisava de todo seu tempo. Era um trabalho tempestuoso e tinha suas provas e dificuldades, assim como não faltavam muitos que escarneciam do funileiro iletrado e acusavam-no de todo tipo de ignorância e até mesmo com vícios, no que se mostravam mais cruéis e injustos, então, do que quando se referiam à sua vida antes da regeneração. O efeito de sua pregação entre aqueles que o ouviam era mais marcado tanto pela hostilidade que se levantava contra ele, quanto por seu bom efeito sobre muitos pecadores endurecidos. Uma ocasião, sendo anunciado que ele pregaria numa vila em Cambridgeshire, um estudioso de Cambridge que passava a cavalo, perguntou o significado da multidão reunida. Sendo informado que Bunyan, um funileiro, ia pregar, ele deu uma moeda a um menino para segurar seu cavalo, para que “ele pudesse ouvir o funileiro tagarelar”. Mas aquele que foi para zombar ficou para orar. Ele foi atingido pela intensidade do pregador, da adequação de suas palavras à sua própria condição – pois ele não era conhecido por sua sobriedade ou virtude – e depois disso se tornou um homem mudado, ouvindo as exortações de Bunyan tão frequentemente quanto podia. Este sucesso e popularidade não o exaltaram, ou mudaram a honesta simplicidade de seu caráter, embora ele nos diga que, “enquanto achado na obra abençoada de Cristo, sendo muitas vezes tentado ao orgulho e a exaltação do coração e embora não ouse dizer que não fui afetado por isso, verdadeiramente o Senhor, em Sua preciosa misericórdia, tem me sustentado, pois na maioria das vezes, tenho apenas uma pequena alegria por dar


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lugar a tal coisa, pois tem sido a minha petição de todos os dias admitir o mal em meu próprio coração e ainda ver a multidão de corrupções e enfermidades lá dentro; que isso cause o abaixar de minha cabeça, abaixo de todos os meus dons e feitos.” Na obra de Toplad achamos uma anedota característica ilustrando esta confissão. “Tendo o Sr. John Bunyan pregado um dia com calor e com demora peculiar, alguns de seus amigos, depois que o culto acabou, tomaram-no pela mão e não puderam evitar observar que bom sermão ele tinha pregado. ‘Ah’, disse o bom homem, ‘vocês não precisam me lembrar disso, pois o diabo me disse o mesmo antes que eu descesse do púlpito.’” Enquanto alguns o chamavam de jesuíta disfarçado, outros o acusavam de ser um feiticeiro. “Mas”, ele nos diz, “o que era repetido com a mais ousada confiança era que tinha meus bastardos; sim, duas esposas de uma vez e coisas do tipo. Agora, eu me glorio nestas calúnias, com as outras, porque elas são apenas calúnias, mentiras tolas e falsidades lançadas sobre mim pelo diabo e sua semente; se o mundo não agisse tão impiamente comigo, eu ia querer um sinal de que sou um santo e um filho de Deus. Estas coisas, portanto, por minha conta, não me incomodam; não embora elas sejam vinte vezes mais do que são: eu tenho uma boa consciência e quando falam mal de mim como se fosse um malfeitor, eles serão envergonhados por acusarem falsamente minha boa conversação com Cristo. Portanto, acho que suas mentiras e calúnias são para mim um ornamento, que pertence à minha profissão cristã, para ser aviltado, caluniado, reprovado e insultado; uma vez que tudo isso não é nada mais, como Deus e minha consciência são testemunhas, me alegro nas acusações pelo amor de Cristo”. “Meus inimigos erraram o alvo nisto que atiraram em mim. Eu não sou o homem. Eu desejo que eles sejam sem culpa. Se todos os fornicadores e adúlteros da Inglaterra fossem enforcados pelo pescoço até que morressem, John Bunyan, o objeto de sua inveja, estaria ainda vivo e bem.


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“... Quando eu vejo bons homens saudarem as mulheres que visitaram, ou que os visitaram, eu faço às vezes objeções a isso. E quando elas respondem, isto é apenas uma pequena civilidade, eu lhes digo que não é uma visão atrativa; algumas de fato, exigem o ósculo santo, mas então”, ele diz ingenuamente, “eu pergunto por que fizeram impedimentos, por que saudaram os mais bonitos e deixaram ir os menos afortunados.” Dessa forma, embora se mantivesse indiferente às mulheres, ele não era beato e na passagem que segue, os pedidos das mulheres, até o mais elevado tema, nunca foram tão bem colocados por um autor que não da Bíblia. “Eu direi que, quando o Salvador veio, as mulheres se regozijavam nele, diante dos homens ou anjos. Eu nunca li que um homem tenha lhe dado nem mísero centavo, mas as mulheres seguiam-no e ministraram a Ele com sua riqueza. Foi uma mulher que lavou seus pés com suas lágrimas e uma mulher que ungiu seu corpo para o funeral. Foram mulheres que choravam quando Ele subiu à cruz, mulheres que O seguiram até a cruz, que sentaram perto do Seu sepulcro quando Ele foi enterrado. Eram mulheres que estavam com Ele na manhã da ressurreição e as mesmas mulheres trouxeram as notícias aos discípulos de que Ele tinha ressuscitado dos mortos. As mulheres, portanto, são favorecidas, e mostram por estas coisas, que compartilham conosco na graça da vida”. Mas uma perseguição de outro tipo estava se juntando ao seu redor como uma nuvem e logo estava para estourar sobre sua cabeça. Até mesmo na Commonwealth, Bunyan foi perseguido por pregar, como descobrimos em Jukes’s History of John Bunyan’s Church (História de Juke sobre a igreja de John Bunyan): “Logo depois de deixar o posto de diácono em 1657, a mão da perseguição se levantou contra ele, pois num encontro da igreja, no dia 25 de fevereiro de 1658, concordou-se que o terceiro dia do mês seguinte seria para buscar a Deus pelo irmão Wheeler, que estava há tempos doente e também para aconselhar aqueles


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que com respeito ao indiciamento do irmão Bunyan na acusação de pregar na Páscoa.” Um de seus Atos pelos quais foi indicado, data de 26 de abril de 1645 e a acusação especial foi exagerada contra ele, embora as leis contra a pregação fossem administradas moderadamente durante o protetorado, dizia que “ninguém pode pregar a não ser ministros ordenados, exceto aqueles que, com vistas ao ministério, pregarão como teste de seus dons e tais devem ser indicados por ambas as casas do Parlamento”. Uma emenda, aprovada em março de 1653, indicou comissões para aprovação de pregadores públicos. Um Ato, aprovado em 2 de maio de 1648, ordenou que qualquer pessoa que diz que o homem não deva crer além do que a sua razão compreenda, ou que o batismo de bebês é contra a lei, ou vazio, que tal pessoa deva ser batizada de novo e, em consequência disso, batizar qualquer pessoa previamente já batizada, será preso até que assegure de que não publicará ou falará deste erro novamente. Como vimos que Bunyan, em seu próprio caso, não cria em nada que não entendesse, ou que sua Bíblia e razão não dissessem ser verdade, nós podemos ter certeza que ele não pregou o que em sua própria prática achou tão benéfico e suas objeções ao batismo infantil como sacramento de valor eram bem conhecidas. Se através de alguma intercessão influente sobre aqueles que exerciam autoridade, ou pela indisposição de perseguir alguém tão notório e respeitado quanto Bunyan era, nós não sabemos, mas a perseguição foi inteiramente abandonada. O Sr. G. Offor, em seu admirável e exaustivo Memoir de Bunyan, nos conta de uma acusação feita contra Bunyan de uma natureza singular – aquela de imputar um crime de bruxaria a uma viúva muito respeitável, uma quaker, que teve seu julgamento em 1659 e felizmente para ela, foi absolvida. Vivendo como eles viviam, num tempo em que os simples e os nobres acreditavam em bruxaria e outras ilusões, é uma evidência singular do bom senso de Bunyan, como aponta o Sr. Offor, que ele não tivesse


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fé em tais crenças monstruosas. Esta liberdade de não crer nas ilusões populares da época é ainda mais marcante, pois em seus anos mais jovens ele tinha visões – tinha sonhos – e cria que estava sendo perseguido por vozes confortadoras e acusadoras. Seu intelecto forte e vigoroso logo se apresentou e o capacitou a ser superior a crenças supersticiosas, que mantinham mentes tão cultas cativas, como as de Sir Mathew Hale, Baxter, Cotton, Matthew, Clarke e um grupo de outros homens igualmente eminentes. Nos dias de Bunyan, a Bíblia era interpretada literalmente por homens conhecidos por seu conhecimento e sua cultura e não é de se admirar que cressem que Satanás pudesse aparecer aos homens na forma de animais e na forma humana. O homem que ousasse ir contra essa ideia seria considerado ateu. George Offor diz: “Bunyan nunca acreditou que os princípios grandes e imutáveis com os quais o Criador ordenou governar a natureza pudessem ser perturbados pelas loucuras de velhas mulheres, com propósitos insignificantes. Não, tal homem não poderia ter espalhado o boato de que uma mulher tomou a forma de uma égua e suas roupas viraram a sela do cavalo (estas foram algumas acusações levantadas contra a mulher quaker). Sentimentos sectários desenfreados perverteram alguns de seus comentários, provavelmente feitos com as melhores intenções, nas mais incríveis calúnias.” A crença de que o diabo podia se transformar num animal ou homem, para o propósito de arruinar uma alma imortal, era uma superstição digna se comparada com tagarelices sem sentido do mesmo tipo – bobagens, entretanto, que custaram a vida de milhares de pessoas dentro destas regiões, em um período de tempo comparativamente curto, debaixo da mão da lei. Em 1658 sua esposa, a quem ele era muito ligado, e cuja vida piedosa e modos gentis fizeram tanto pelo jovem pecador e descuidado com quem ela casou, veio a falecer. Lá pelo fim de 1659, ele


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se casou pela segunda vez, pois cria que “não é bom que o homem esteja só” e seus filhos exigiam atenções que suas ocupações lhe impediam de dar, mais especialmente porque um deles era cego. Depois da restauração e com a aprovação do Ato de Uniformidade de Adoração Pública, os encontros dos dissidentes eram realizados por seu próprio risco. Este Ato não visava apenas os ministros, mas também os ouvintes e tornou uma ofensa legal qualquer pessoa que se encontrasse para adorar a Deus em casas, ou nos campos e florestas, onde a punição era de pesadas multas e aprisionamento e até mesmo a morte. Ministros não conformistas eram levados de suas vidas e seus púlpitos por este estatuto cruel e perverso, que os declarava impróprios para trabalharem com tutores ou professores e que não podiam residir dentro de cinco milhas de qualquer cidade ou vilarejo. Como era de se esperar, tais medidas severas fracassaram em atingir o seu alvo, pois os crentes se encontravam para cultuar em lugares secretos durante a madrugada e os pregadores adotaram todo tipo de disfarce. Como uma parte das multas ia para os informantes, tornou-se um negócio abraçado pela maioria das pessoas de vida dissoluta. Um destes morava em Bedford e os vizinhos o detestavam tanto que, quando ele morreu, sua viúva não pôde obter um carro funerário, ou a presença de seus vizinhos para enterrar o corpo, que teve que ser transportado para o cemitério numa carroça. Como Bunyan era pobre, não havia muita esperança de partilhar uma bela multa no caso dele e por um tempo isto o salvou das atenções dos informantes. Ele encontrava e ensinava pequenos grupos de pessoas em celeiros, estábulos e outros lugares escondidos sob o manto da noite, exortando-os a serem pacientes debaixo da perseguição e a confiar em Deus para rápido livramento. Conta-se que numa dessas ocasiões seu hábito era frequentar


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os encontros disfarçado de carroceiro, usando uma bata branca, um chapéu bem grande e um chicote. O uso do disfarce não era um sinal de falta de coragem da parte de Bunyan. Sendo pobre, ele era totalmente incapaz de pagar uma multa pesada e em tal caso, sua vida estaria em perigo, pois muitos naquele tempo foram enforcados por nenhum outro crime além de adorar a Deus do jeito que suas consciências gostavam mais. Um aprisionamento longo era certo e ele não era homem de se conformar ou de encerrar o exercício do que considerava uma tarefa solene. Quando chegou o tempo, a coragem, mesmo à beira da imprudência, não faltou. No dia 12 de novembro de 1660, ele foi convidado a pregar em Samsell, em Bedfordshire, de um modo público mais que comum, pois a congregação se reuniu na igreja. Francis Wingate, um juiz de paz da região, foi informado do culto e sentiu-se impelido, contra sua vontade, a fazer uso do mandado de prisão contra o pregador. Isto chegou aos ouvidos das pessoas e elas o aconselharam a desmarcar o encontro e efetuar sua fuga. Mas, nisto, bem como em outras coisas, a perseguição contínua induziu uma resolução de aceitar as consequências, fossem quais fossem. Ele mesmo nos conta que hesitou por um momento, pois pensamentos sobre sua esposa e filhos vieram à sua mente, mas depois de orar em particular, chegou à conclusão que “Se eu fugir agora, isso será muito ruim para o país, pois o que pensarão meus irmãos mais fracos e recém-convertidos? Se eu fugir agora que há um mandado contra mim, eu posso, dessa forma, fazê-los ficar com medo de se levantarem, quando eu deveria apenas dizer grandes palavras para eles. Além disso, acho que Deus, em Sua misericórdia, me escolheu para aumentar a esperança perdida neste país, ou seja, para ser o primeiro que sofra oposição por causa do Evangelho. Se eu fugir, todo o corpo que me segue será desencorajado. E além do mais, penso que o mundo aproveitaria a ocasião de minha covardia para blasfemar contra Evangelho e


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para ter alguma base para suspeitar de mim e de minhas profissões mais do que eu desejaria”. O culto aconteceu por cerca de uma hora quando o guarda e seus auxiliares chegaram e, exibindo seu mandado, mandaram que ele descesse do púlpito, ao que Bunyan respondeu que estava cuidando dos negócios do seu mestre e preferia obedecer a sua ordem do que a dos homens. Um guarda subiu as escadas, segurando-o pelo casaco e ia removê-lo à força, mas parou diante do olhar grave e firme que Bunyan lhe deu e retirou-se. Um de seus amigos disse sobre ele, “Tinha um olhar rápido e agudo, seu semblante era grave e tinha algo de terrível para aqueles que não possuíam o temor de Deus”. Como conta o próprio Bunyan, “temia a Deus e honrava ao rei”, então ele obedeceu às ordens em nome do rei para descer e acompanhou o guarda até a casa do juiz. Como este não estava em casa naquele dia, a palavra de um amigo de Bunyan foi tomada de que ele estaria lá na manhã seguinte. Este juiz Wingate parece ter sido um homem bom e justo, que se sentiu mal em ter que pôr em prática os Atos de perseguição e somente o fez quando não podia agir de outra forma, uma circunstância que mostra o modo semipúblico no qual o culto em Samsell estava sendo conduzido. Quando Bunyan foi trazido diante dele, “ele perguntou ao guarda” (que citamos o relato de Bunyan) “o que fizemos e quando estávamos reunidos, o que tínhamos conosco. Suponho que ele quis saber se tínhamos armas conosco ou não; mas quando o guarda lhe disse que havia somente alguns de nós reunidos para pregar e ouvir a Palavra e nenhum sinal de nada mais, ele não sabia o que dizer; mas porque tinha mandado me buscar, me fez algumas propostas, que eram para este efeito – a saber, o que eu fazia lá? E porque não me contentei em seguir minha profissão, pois era contra a lei que alguém como eu fizesse o que fiz”. “Ao que lhe respondi: ‘que o intento da minha vinda aqui e a outros lugares, era para instruir e aconselhar pessoas a deixar seus pecados e se achegarem a Cristo, se não pereceriam


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miseravelmente e que eu podia fazer as duas coisas sem confusão – isto é, fazer o meu trabalho e também pregar a Palavra.’” “Diante destas palavras, me pareceu que ele ficou encolerizado, pois disse que ia quebrar o pescoço dos nossos encontros.” O juiz decretou que ele ficaria em liberdade, desde que tivesse certeza de que não mais pregaria. Vários de seus amigos prontamente se ofereceram para serem seus fiadores, mas quando ele ouviu que se pregasse de novo, teriam que pagar multa ou serem castigados, ele declinou e preferiu ir para a prisão e receber o que o Senhor tinha enviado. Parece que todo esforço foi feito por parte do juiz e de seus amigos para induzi-lo a aceitar os fiadores e protegê-los por seu comportamento; seus próprios amigos também tentaram persuadi-lo, mas sem sucesso. É impossível, neste tempo distante, analisar os sentimentos que tenham levado a isso. Se entendermos a posição que ele assumiu nesta grande crise da sua vida, podemos ver que ele estava perturbado em sua mente com relação a seu próprio curso. As eras futuras colheram os benefícios de seu longo aprisionamento, pois não há dúvida de que o ócio forçado levou-o a composição de O Peregrino, um livro que é mais popular do que qualquer outra produção inspirada pela genialidade humana. Depois de estar preso por vários dias, seus amigos foram ao juiz em Elstow, um certo Sr. Crompton, para tentar convencê-lo a aceitar a fiança deles e a promessa de que Bunyan viria à corte a cada três meses. Mas como Bunyan ficou firme em sua determinação de não fazer um voto de não pregar, o juiz Crompton declinou de interferir, embora evidentemente estivesse ansioso para procurar sua liberação e atuou com os sentimentos mais amistosos para com ele e seus amigos. Este resultado, como ele nos conta, não o intimidou, mas antes o fez feliz: “e vi que evidentemente o Senhor tinha me ouvido, pois antes que eu fosse até o juiz, implorei a Deus que se eu fizesse mais o bem estando livre do que na prisão, que fosse posto em liberdade; mas se não, que fosse feita sua vontade. Pois eu não estava de todo sem


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esperança de que minha prisão pudesse ser um despertamento para os santos neste país; portanto, não sabia o que escolher... e verdadeiramente no meu retorno, encontrei meu Deus docemente na prisão de novo, me confortando, me satisfazendo ao saber que era Sua vontade que eu estivesse naquela condição.” Bunyan, como marido e pai amoroso, sentiu muito pela sua família, mais especialmente por sua filha cega, que através da ação de sua enfermidade sobre sua natureza terna e suscetível, era para ele como a menina de seus olhos. Ele disse, “Pobre criança, eu penso, que tristezas você terá como a sua porção neste mundo? Será espancada, deverá mendigar, passar fome, frio, nudez? E talvez milhares de outras calamidades, embora eu não possa agora suportar o vento que soprará sobre você”. Não podemos ter melhor evidência do respeito que o distrito de Bunyan tinha por ele, onde é claro, era conhecido intimamente por pobres e ricos, do que a ansiedade mostrada pelos magistrados locais, para vencer seus escrúpulos e procurar seu próprio benefício. Depois de estar na prisão por sete semanas, foi trazido diante da corte em Bedford, para as sessões trimestrais, em cujo indiciamento ele foi chamado a apelar afirmando, para todos os efeitos, “que John Bunyan, da cidade de Bedford, trabalhador, se absteve de modo vil e malicioso de participar do culto divino e é um realizador de encontros ilegais, para a grande perturbação dos bons homens do reino, contrário às leis de nosso soberano senhor, o rei”. Então, ele alegou: “Nós temos tido muitos encontros juntos, para orar a Deus e exortar uns aos outros e temos tido a doce presença confortadora do Senhor entre nós para nosso encorajamento. Bendito seja o Seu nome! Eu me confesso culpado e nada mais”. Não foi necessário, sob tais circunstâncias, ouvir qualquer testemunha e uma alegação de culpado foi registrada e ele foi sentenciado a ser “levado de volta à prisão e ficar lá por três meses seguidos; ao final deste tempo, se não obedecer e for à igreja participar do culto divino, não deixando sua pregação, você será banido do reino. Se depois do dia


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determinado for encontrado no reino, sem licença especial do rei, será pendurado pelo pescoço, lhe digo claramente. E assim ele (o juiz) chame o carcereiro para levá-lo embora”. Bunyan, que não foi intimidado por esta sentença, replicou: “Eu lhe afirmo: se estivesse fora da prisão hoje, pregaria o Evangelho amanhã, com a ajuda de Deus.” O juiz que presidia era Keeling, que era conhecido por alguns como sargento Keeling e no ano seguinte foi promovido a Chefe de Justiça. Ele era um juiz cruel e tirano que exercia sua autoridade sobre os não conformistas com grande gravidade. Os termos cruéis e desnecessários da sentença, em nossa opinião, confirmam a suposição de que o Juiz Keeling era o homem conhecido como Chefe de Justiça Kelynge. O erro na grafia era comum naquele tempo. Ele era um homem de caráter incorreto e temerário e morreu desprezado por todos os homens bons, cerca de um ano depois que Bunyan foi posto em liberdade. Ele entrou numa longa disputa com Bunyan, mais para exibir suas habilidades do que para ajudar o prisioneiro. Chamou seu apelo de tagarelice, aconselhou-o a parar de choramingar, lhe disse para não pregar e perguntou de onde ele tinha autoridade, de onde Bunyan citou Pedro, que na sua primeira epístola, capítulo 4 afirma “Cada um exerça o dom que recebeu para servir os outros, administrando fielmente a graça de Deus em suas múltiplas formas” (versículo 10). A isto Keeling replicou zombeteiramente, “Deixe-me alargar um pouco as Escrituras para você, cada um exerça o dom que recebeu - ou seja, como todo homem recebeu uma arte, deixe-o segui-la. Se alguém recebeu uma arte de funilaria, como você recebeu, deixe-o seguir a funilaria; assim, outros homens suas artes e chamados divinos etc”. Então, sentindo que estava perdendo terreno para o iletrado funileiro, “disse que não tinha tanto conhecimento das Escrituras para discuti-las, ou mesmo palavras para aquele propósito. Além do mais, afirmou que eles não podiam mais me atender etc”. Eles não podiam imaginar que


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este exercício de suas funções judiciais sobre um humilde pregador itinerante seria uma questão que iria absorver o interesse de milhões ainda não nascidos e isto, que para ele era tão sem importância, que podia ser posto de lado por causa do atraso que trouxe para outras questões, das quais não sabemos nada e nos importa muito pouco. Manteria seu nome diante do mundo, quando todas as suas outras ações, sejam boas ou más, cairiam no esquecimento. Nos próximos encontros trimestrais, o juiz não trouxe Bunyan diante dele, mas enviou um juiz de paz local para inquirir se ele estava preparado para obedecer na questão de pregar e frequentar os cultos. Este juiz era o Sr. Cobb e deve ter sido um bom homem, sinceramente desejoso de ajudar Bunyan. Nós não temos espaço para toda a conversa, conforme registrado por Bunyan, mas arrumaremos lugar para alguns extratos. “Quando ele entrou na prisão, mandou me buscar na minha cela e disse, ‘Vizinho Bunyan, como vai?’ ‘Obrigado, Senhor’, eu disse, ‘muito bem, bendito seja Deus’. Disse ele, ‘Venho lhe dizer que se espera que você obedeça à lei desta terra, ou no próximo encontro será pior para você, até mesmo ser mandado para fora do país, ou ainda pior que isso’”. A natureza da resposta de Bunyan a isto pode ser julgada por suas respostas quando esteve diante do juiz de paz e dos juízes. A resposta do Sr. Cobb é digna de registro, porque mostra a ansiedade que homens bons em posição de autoridade tinham pelo seu bem-estar. Ele disse: “Eu não me considero um homem que possa argumentar, mas lhe digo isso verdadeiramente, vizinho Bunyan, eu gostaria que você considerasse esta questão seriamente e então obedeça; você pode ter sua liberdade de exortar seu vizinho numa conversa particular, desde que não convoque uma assembleia de pessoas; verdadeiramente você pode fazer muito bem à igreja de Cristo, se agir


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desta forma e isto você pode fazer e a lei não vai impedi-lo, pois é às reuniões privadas que a lei faz objeção.” Bunyan sabia bem que as reuniões em público eram tão inimigas das pessoas no poder, como os encontros particulares feitos para os mesmos propósitos e depois de um bocado de discussão, replicou, “Quanto à sua afirmação de que posso me reunir em público, se tiver permissão, o farei alegremente. Deixe-me fazer reuniões públicas o suficiente e não vou me importar de não ter as privadas. Eu não faço estas reuniões particulares porque tenho medo de me reunir em público... errar e ser um herege são duas coisas diferentes. Eu não sou herege, porque não defendo ninguém que seja contrário à Palavra. Prove que qualquer coisa que creio seja heresia e eu retiro isso... até mesmo no mercado; mas se for verdade, então a defendo até a última gota do meu sangue”. “Mas, bom homem Bunyan”, ele disse, “acho que você precisa não ser tão severo com esta questão, quanto a fazer assembleias em público. Será que você não pode se submeter e ainda assim fazer todo o bem que pode como um bom vizinho, sem ter tais encontros?... Vizinho Bunyan, gostaria que você considerasse seriamente estas coisas, entre este e o próximo encontro e obedecesse. Você pode fazer tanto se continuar ainda nesta terra! Mas, oh! Que benefício haveria para seus amigos e que bem poderia fazer se for mandado para além-mar, ou Espanha ou Constantinopla, ou alguma outra parte remota do mundo? Por favor, seja sensato”. O sério carcereiro estava emocionado diante do que considerava obstinação e ao destino que esperava por ele se persistisse em sua recusa; o carcereiro disse, “De fato, senhor, espero que ele seja sensato”. Bunyan lhe disse que considerava ser sua tarefa suportar pacientemente a pena da lei, qualquer que fosse. “E para tirar todas as suspeitas de uma vez por todas, quanto à pureza de minha


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doutrina em particular, daria com alegria a qualquer pessoa as anotações de meus sermões, pois sinceramente desejo viver com justiça em meu país e obedecer a atual autoridade”. Como argumento convincente e final, o Sr. Cobb disse, “O rei então ordena que você não faça qualquer reunião particular, porque é contra a sua lei e ele é ordenado por Deus; portanto, você não fará nenhuma”. “Eu lhe respondi”, disse Bunyan – e como foi completamente e impossível de responder a sua palavra – “que Paulo possuía o poder de Deus manifestado naquele tempo, e ainda assim, ele foi preso muitas vezes por causa deles. E também, embora Jesus Cristo tenha dito a Pilatos que este não tinha poder contra ele e que apenas de Deus o tinha; ainda assim morreu por ordem deste mesmo Pilatos. Espero que você não diga que Paulo e Cristo eram tais que negaram a magistratura e dessa forma, pecaram contra Deus ao desprezar as ordenações... Estou disposto a não reagir e a sofrer o que queiram fazer comigo... Diante disso, ele (Sr. Cobb) sentou-se quieto e não disse mais nada. Quando Bunyan terminou, eu lhe agradeci por seu discurso civil e manso para comigo e assim nos despedimos”. Bunyan diz, “Que nós nos encontremos no céu” e todos os bons homens creem que assim foi, pois ele era evidentemente um homem honesto e correto para fazer o que fez e para ter conquistado o respeito de John Bunyan. Em tudo isto Bunyan não mostrou nenhum desejo ávido de se tornar um mártir. Embora cheio de coragem, suas respostas e apelos não produziam nenhuma ofensa, além do que era inevitável, dada sua oposição à lei. Ele não era um homem de, por paixão, ou desejo de ganhar aprovação dos homens, cortejasse a perseguição ou o martírio. Seu apoio e conselho vinham da Palavra e da vontade de Deus, buscada mansa e pacientemente e por nenhum outro padrão pelo qual quisesse ser julgado. A própria questão de sua liberdade, que seus juízes teriam melhor apreciado se aplicassem um princípio maior neste caso, nunca foi levada adiante por ele, como uma razão para sua libertação – não,


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ele desejava estar livre simplesmente para que pudesse servir a Deus. Corajosa, como sua esposa depois se mostrou ser, ela, a princípio, antes de sentir e compreender o nobre papel que seu marido foi chamado a cumprir pelo amor da verdade, juntou-se a outros para tentar persuadi-lo a se submeter, pelo menos um pouco, até que pudesse assegurar sua liberdade. Nós não temos dúvida de que foi assim e que no texto que segue parte do Advice to Sufferers (Conselho aos que sofrem), faz alusão a isto: - “A esposa repousa em seu peito e diz, Oh, não se afaste; se deixar isso acontecer, o que vou fazer? Tu disseste que me amas, manifesta-o agora e me conceda este pequeno pedido. Não fique imóvel em tua integridade. Depois vem as crianças, que podem vir a viver na pobreza, a mendigar, serem negligenciadas, pela necessidade de ter com o que alimentá-las, ter roupas e sustentá-las no futuro. Agora temos também os parentes, e amigos e conhecidos; alguns gritam, alguns choram, alguns discutem, alguns ameaçam, alguns prometem, alguns elogiam e alguns fazem de tudo para enganá-lo por um ato tão insensato, como causar seu exílio e trazer sua esposa e filhos à mendicância por tal coisa como a religião. Há duras tentações”. E duras o suficiente ele as achou, sem dúvida. Foi preciso mais coragem para combatê-los do que enfrentar todos os terrores da lei, e sim, até mesmo a própria morte. É notável o fato que a missão de Bunyan de ensinar e pregar o Cristo crucificado pelos pecadores dominou de tal forma sua mente, que excluiu tudo o mais, pois no seu próprio registro de seus atos, não achamos menção dos incidentes excitantes do tempo no qual viveu. Uma rebelião bem-sucedida, que terminou com a execução de um rei, aconteceu e ele próprio tomou parte por um tempo na tentativa de esmagá-la. O filho de um humilde cervejeiro forçou seu caminho até o governo do estado. Muitos nobres e bons homens sofreram na guilhotina. O filho do rei morto foi chamado para receber a coroa de seus pais e, entre aclamações, proclamou anistia para todas as


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ofensas políticas, salvo no caso daqueles que tinham uma parte no julgamento e execução de seu pai. Ele esqueceu sua promessa e derramou o sangue de muitos dos homens mais nobres, insultando até mesmo a poeira de homens ilustres, que se distinguiram na luta pela liberdade que precedeu a Commonwealth e ele restabeleceu os atos de perseguição de seus predecessores, somando à sua severidade e crueldade, até que os dissidentes da forma nacional de culto sofreram por causa de sua consciência penalidades que só eram iguais em número e severidade àquelas dos tempos de “Bloody Mary 9”, e ainda assim não ouvimos nada sobre isso da parte de Bunyan, a não ser que eles esmagaram sua liberdade para fazer a obra do Mestre. Ele era verdadeiramente um evangelista, que não tinha tempo para nada depois de ser chamado para pregar, a não ser para, fosse através da língua ou da caneta, a tempo e fora de tempo, chamar os outros ao Evangelho que fizera tanto por ele.2 O bem feito por uma natureza tão elevada como essa em promover a liberdade civil e religiosa não pode ser estimado. A liberdade civil é tão promovida pela vida e sofrimentos de um homem assim quanto o é a liberdade religiosa; pois é uma verdade ilustrada em todas as eras e em todos os países que um povo cristão deve ser e será livre. É igualmente verdade que nenhuma nação não religiosa pode desfrutar a verdadeira liberdade. De acordo com a tradição, a prisão a que John Bunyan foi confinado era uma estrutura antiga construída na ponte que cruza o Ouse. Era apoiada em um dos píers mais ou menos no meio da ponte e como a ponte tinha cerca de quatro metros de largura, o tamanho das duas celas, uma das quais ocupada por Bunyan, devia ser pequeno. Havia dois apartamentos acima do nível da estrada, que passava por baixo da porção maior da ponte por um arco. Cento e vinte anos depois, John Howard visitou as três prisões de Bedford e relatou que eram insalubres e imundas ao extremo, 9 Mary I era rainha da Inglaterra e da Irlanda. Ela é lembrada por restaurar o Catolicismo Romano na Inglaterra. No processo, ela mandou matar quase 300 dissidentes queimados, o que lhe deu o apelido de Bloody Mary (Maria Sangrenta) (N.T.).


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sem nenhuma tentativa para separar os sexos, ou os bons dos maus; até mesmo na prisão do condado o pátio para exercícios era o mesmo para devedores e assassinos. Nos seus doze anos de prisão, há todos os indícios de que Bunyan tenha sido um hóspede em mais de uma destas abomináveis prisões, se não de todas as três e sua forçada e constante associação com vagabundos de todas as classes, lhe deram muita oportunidade de fazer o bem, do que sabemos, ele tirou toda a vantagem. Não é improvável, pela estima que todos tinham por ele e pelo interesse que mostravam por ele as autoridades e a pouca disciplina daqueles dias, que seu aprisionamento possa ter sido tão pouco enfadonho e desagradável quanto possível. Na época de sua prisão, sua esposa nobre e corajosa estava grávida. O choque foi tão grande que ela ficou de cama por um tempo, muito doente, depois de sofrer um aborto espontâneo. Mesmo isso não destruiu sua coragem, embora o tenha emocionado muito. É confortador, mesmo depois de um lapso de mais de duzentos anos, que ele tenha escapado de ser preso com correntes, de ser maltratado por carcereiros cruéis e desumanos e companheiros de cela igualmente cruéis. Muitos homens e mulheres de mente nobre, aprisionados por causa da sua consciência, registram tal tratamento nas prisões do período, que faziam até mesmo uma morte violenta parecer uma interrupção misericordiosa a seu favor. Não lhe foram negadas oportunidades de ver sua família e seus amigos e de saber sobre seu bem-estar. Se era uma grande tarefa sofrer por amor a Cristo e pela cruz, de modo nobre diante dos homens, havia outra tarefa a qual nenhum bom homem pode esquivar-se, que é sustentar sua família e Bunyan o cumpria fazendo cadarços de sapato; sem dúvida muitos lojistas humildes de Bedford e muitos clientes humildes destes, consideravam uma obrigação vendê-los e comprá-los pelo bem de seu bom vizinho, que tanto sofria por causa de seus serviços cristãos para com eles.


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Entre estas indulgências dadas a ele, lhe era permitido deixar a prisão às vezes e encontrar sua família e amigos. E em tais momentos, costumava orar com eles e exortá-los a serem firmes na boa causa. Em uma ocasião, foi até a Londres e isto chegou aos ouvidos das autoridades e eles ficaram tão irados que o carcereiro quase perdeu seu emprego por sua indulgência. Depois disto, seu aproveitamento de liberdade foi restrito, embora ainda pudesse encontrar sua família de vez em quando. As histórias a seguir são contadas a respeito de Bunyan e seu carcereiro. “Sendo bem conhecido de alguns de seus perseguidores em Londres, que ele estava frequentemente fora da prisão, enviaram um oficial para falar com o carcereiro sobre a questão e, para descobrir, ele precisava chegar lá no meio da noite. Bunyan estava em casa com sua família, mas tão inquieto que não conseguia dormir. Então, informou à sua esposa, que embora o carcereiro tivesse lhe permitido ficar até de manhã, ele devia retornar imediatamente. Assim o fez, e o carcereiro o culpou por vir numa hora tão ruim. De manhã cedo, o mensageiro chegou e, interrogando o carcereiro, disse: ‘Estão todos os prisioneiros a salvo?’ ‘Sim.’ ‘John Bunyan está seguro?’ ‘Sim.’ ‘Deixe-me vê-lo.’ Ele foi chamado, apareceu e tudo ficou bem. Depois que o mensageiro se foi, o carcereiro, chamando Bunyan disse: ‘Bem, você pode sair de novo quando achar adequado, pois sabe quando retornar melhor do que eu posso lhe dizer’.” Quando a perseguição ficou desenfreada contra seus irmãos ao redor de Bedford, seus pensamentos eram levados de seus próprios sofrimentos para os dos outros. Havia frequentemente até sessenta pessoas na prisão junto com ele por causa de suas consciências, tanto ministros quanto ouvintes da Palavra. Seu próprio peso era aliviado ao ajudar os fracos e mais tímidos entre eles a suportar os seus. O roubo e o saque dos ricos e pobres eram a ordem do dia em nome das coletas impostas por desobediência, até que o “reino do terror” ficou tão cruel que, quando Fleckman, de cuja influência vil já citamos aqui, chamou os


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bandos treinados para assisti-lo no trabalho de sequestrar “os negociantes, artesãos, trabalhadores e servos que tinham deixado a cidade ou se esconderam para evitar sua convocação, a cidade estava tão magra de pessoas que parecia mais uma vila do que uma sociedade, as lojas normalmente estavam fechadas e parecia um lugar visitado por uma peste, onde normalmente se escreve sobre as portas Senhor, tem misericórdia de nós”. Além de Fleckman, um juiz de paz local, o Sr. Foster, fez-se notável por sua extorsão cruel, ao aplicar tais leis aviltantes, que não precisava de ajuda de seus instrumentos no quesito crueldade. Nos casos onde as multas não eram imediatamente pagas quando exigido, elas eram dobradas e não havendo pagamento, tudo que a pessoa possuía era tomado, mesmo nos casos em que seu valor excedia em muito o da multa. Certo Sr. Arthur foi privado de seus bens e perguntou a Foster se seus filhos iriam passar fome. A resposta brutal foi que, enquanto ele fosse um rebelde, seus filhos passariam fome, acrescentando que quando todos os bens dos que se encontravam para cultuar fossem tomados, ele encheria as prisões com seus corpos. Alguns atos assustadores em nome da lei algumas vezes criavam vida com um toque de humor, como testemunha o seguinte: “Enquanto Battison e outros oficiais estavam tentando invadir uma casa de bebidas, um grande número de todo tipo de pessoas estava reunido com eles expressando sua indignação por tentar isto contra Bardolf, o fazedor de malte, que a cidade toda conhecia como um homem justo e inofensivo. E as pessoas comuns colocaram um rabo de bezerro nas suas costas, zombando dele com gritos e vaias; ele foi embora sem causar qualquer infortúnio ali. Um dos primeiros a sofrer com multas e embargos em Bedford foi o Sr. Ruffhead, um leal amigo que apoiava Bunyan. Ele tinha sido multado em três libras e eles levaram duas árvores – ele era provavelmente um construtor – que valiam sete libras. Tal tipo de extorsão branda era muito incomum, pois eles normalmente levavam tudo. O crime era não por ir aos cultos, mas por não ir à


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igreja. O pecado da omissão era tão severamente punido quanto o pecado cometido. Como os informantes eram normalmente homens sem caráter, o número daqueles que sofriam sendo inocentes era muito grande, pois eles sabiam que seus superiores os apoiariam em tudo que fizessem. De fato, quando o sentimento público se levantou contra as crueldades praticadas, os juízes publicaram um folheto em 1670, justificando tudo que fizeram como sendo de acordo com a lei. É terrível considerar que tais cenas como estas estavam sendo executadas por toda a Inglaterra e que mesmo horrores piores eram ainda mais desenfreados na Escócia, onde o assassinato e morte pela lei eram mais comuns e as pessoas fugiam de suas casas para escapar da morte, indo para as florestas, montanhas e pântanos de sua maltratada terra. A perseguição na Escócia se tornou tão cruel e incansável que o povo, tiranizado pelo único crime de adorar a Deus de acordo com sua consciência, por fim pegou em armas para sua defesa, promovendo uma guerra desesperada e sangrenta contra seus inimigos e quando suas paixões foram liberadas, alguns dos mais desesperados entre eles não temeram cometer assassinato quando perseguidores famosos caíram em suas mãos. Calcula-se que na Inglaterra não menos que entre oito e nove mil pessoas tenham morrido na prisão durante o reinado de Charles II, “O feliz monarca”, como era chamado. Certamente sua felicidade deve ter sido da mesma natureza que a de Nero quando Roma estava em chamas. O rei, voluptuoso, cômico e sem coração, não ignorava o que estava sendo feito em seu nome. Enquanto isso desperdiçava seu tempo entre cortesãos e cortesãs, conseguindo até mesmo escarnecer da morte e dos sofrimentos de homens inocentes e tementes a Deus, cuja integridade e princípios elevados deviam tê-los feitos tão valorosos para ele quanto os defensores de sua coroa. Estes eram mais valiosos do que os cortesãos que buscavam seu próprio bem e o ajudaram nas más decisões que o levaram a uma morte prematura e não lamentada.


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Um vagabundo e bêbado que jurava em falso, informante profissional chamado Tipler, artesão que fazia papel, acusou John James, o pastor da igreja Batista em Whitechapel, de pronunciar palavras de traição em um sermão. Não obstante as várias testemunhas confiáveis que estavam na igreja afirmando que tais palavras não foram ditas e Tipler admitiu que quando foram ditas ele não estava dentro da igreja, mas do lado de fora, o Sr. James foi condenado à forca. Sua esposa em desespero, depois de muita dificuldade, conseguiu chegar à presença do rei e implorou misericórdia, quando o monarca sem coração zombava da esposa infeliz e abalada e replicou: “Oh, o Sr. James; ele é um doce cavalheiro.” Na manhã seguinte, ela se apresentou e caiu a seus pés novamente, buscando sua misericórdia; ele a desprezou, dizendo: “John James, aquele tratante, que seja enforcado sim; que seja enforcado.” E assim foi feito, numa forca erigida em frente à sua própria igreja. Por ocasião da coroação do rei em 23 de abril de 1661, ele ordenou a libertação de muitos prisioneiros de certa categoria e entre estes estavam Bunyan e seus companheiros, que sofriam pela mesma razão e foram incluídos. A proclamação permitiu doze meses para o processo de perdão. Este era um processo que muitos amigos dos sofredores não podiam pagar e tinham o desgosto de ver que milhares de embusteiros e vagabundos estavam sendo postos em liberdade sem ter que cumprir o processo de perdão. As sessões aconteceram em Bedford, em agosto do mesmo ano e Bunyan decidiu pedir aos juízes sua liberdade; como não teve permissão de aparecer e apelar em pessoa diante deles, confiou esta petição a sua corajosa e nobre esposa. Ela já tinha ido a Londres com uma petição na Casa dos Lordes102, que foi apresentada através do Lorde Barkwood, que depois de conferenciar com vários de seus irmãos sobre o assunto, disse que não podiam 10 A Casa dos Lordes é a segunda casa do Parlamento do Reino Unido. No passado os membros tinham seu direito garantido hereditariamente, mas agora são indicados (N.T.).


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interferir, pois o rei tinha dado o poder de libertar seu marido aos juízes. É de se lamentar que nenhum dos primeiros biógrafos de Bunyan nos fale nada sobre essa mulher notável. Depois da primeira semana de sua prisão, sua coragem e resignação foram um grande conforto e encorajamento para ele. Depois de aparecer duas vezes diante deles, ela foi mais outra vez e dirigindo-se ao famoso Sir Matthew Hale, falou, “Senhor, eu ouso vir outra vez a Vossa Excelência, para saber o que será feito de meu marido”. Ao que o Juiz Hale colocou: “Mulher, eu falei antes que não podia lhe fazer nenhum bem, porque eles deram esta condenação pelo que o seu marido disse nas sessões, a menos que algo seja feito para desfazer isto, não posso lhe ajudar.” “Meu senhor”, ela replicou, “ele está preso injustamente; eles o pegaram antes que houvesse qualquer proclamação a respeito das reuniões. O indiciamento também foi falso; além disso, eles nunca lhe perguntaram se era culpado ou não; nem ele confessou o indiciamento”. Aqui, um dos juízes disse: “Meu senhor, ele foi condenado justamente.” “Isso é falso”, ela disse, “pois quando perguntaram a ele, ‘Você confessa o crime pelo qual foi indiciado?’ Ele apenas disse que tinha estado em vários encontros, nos quais eles estavam pregando a palavra e orando e que tinham a presença de Deus entre eles”. Neste ponto, o juiz Twisdom respondeu com muita raiva: “Você pensa que podemos fazer o que queremos; seu marido é um transgressor da lei e foi condenado pela lei.” Depois disso o juiz Hale pediu o livro dos registros. O juiz Chester falou: “Meu Senhor, ele foi condenado justamente.” “Isso é falso”, disse ela; “foi apenas um discurso de palavras que eles tomaram por uma condenação, como já ouviram”. “Mas está registrado”, disse o juiz Chester, como se tivesse que necessariamente ser verdade, uma vez que estava registrado. Com tais palavras eles frequentemente tentavam fechar sua boca, sem ter outro argumento para


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convencê-la além de “Está registrado! Está registrado!” “Quando ela contou a Bunyan sobre sua visita a Londres e o que Lorde Barkwood disse-lhe a respeito do poder dos juízes, estes nada disseram. Somente o juiz Chester disse: ‘Meu senhor, ele é um sujeito pernicioso, não há nenhum outro assim no país. Mas o que me diz, senhora?’ Chester disse, dirigindo-se a ela. ‘Seu marido vai deixar de pregar? Se ele o fizer, então que vão buscá-lo!’ ‘Meu senhor’, ela disse, ‘ele não ousa deixar de pregar, enquanto puder falar’. ‘Vejam isto’, disse o juiz Twisden, ‘o que mais devemos falar sobre tal sujeito; ele pode fazer o que quiser? Ele é um infrator da paz’. Mais uma vez ela lhe disse que ele desejava viver em paz, e seguir sua profissão, para que pudesse manter sua família. E ‘além do mais, meu senhor, eu tenho cinco filhos pequenos, que não podem se sustentar, uma dos quais é cega, e não temos do que viver, a não ser da caridade de boas pessoas’. ‘Você tem cinco filhos?’ disse o Juiz Hale. ‘Você é muito jovem para ter cinco filhos’. ‘Meu senhor’, ela respondeu, ‘eu sou a madrasta deles, pois só me casei com ele há dois anos. De fato, estava grávida quando meu marido foi preso pela primeira vez, mas sendo jovem e não acostumada com tais coisas, eu fiquei chocada com as notícias e entrei em trabalho de parto; assim continuei por oito dias e então tive o bebê, mas ele não resistiu’. Ao que ele, olhando muito gravemente para a questão, disse, ‘Oh, pobre mulher’. “Mas o juiz Twisdom disse-lhe que ela fizera da pobreza seu manto. E que, além de tudo, ele entendia que eu (Bunyan) era sustentado melhor viajando para cima e para baixo no país do que através de minha profissão. ‘Qual é a profissão dele?’ disse o juiz Hale. Então alguns dos acompanhantes que estavam por ali disseram, ‘Um funileiro, meu senhor’. ‘Sim’, ela disse, ‘e porque é um funileiro e um homem pobre, portanto é desprezado não consegue obter justiça’. Então o juiz Hale respondeu muito mansamente, dizendo, ‘Eu lhe digo, mulher, vendo que é assim, que


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eles tomaram o que o seu marido disse por uma condenação, você deve tentar uma audiência com o rei, ou tentar o processo de perdão, ou conseguir um rescrito de revisão de processo. Mas quando o juiz Chester ouviu-o dar-lhe este conselho, e especialmente, como ela supôs, porque ele falou sobre um rescrito de revisão de processo, ele se encolerizou e pareceu muito ofendido, dizendo: ‘Meu senhor, ele pregará e fará o que lhe apraz.’ ‘Ele não pregou nada a não ser a Palavra de Deus’, respondeu ela. ‘Ele pregou a Palavra de Deus’, disse Twisden (com o que ela pensou que ele fosse bater nela); ‘ ele anda para cima e para baixo e faz o mal’. ‘Não, meu senhor’, disse ela, ‘não é assim. Deus é o dono dele e tem feito muito bem através dele’. ‘Deus’, disse Twisden, ‘sua doutrina é a doutrina do diabo’. ‘Meu senhor’, disse Twisden ao juiz Hale; ‘não se incomode com ela, mas mande-a embora’. Então disse o juiz Hale, ‘Eu sinto muito, mulher, que não possa lhe ajudar. Você deve fazer uma das três coisas que já falamos, a saber, tentar uma audiência com o rei, ou tentar o processo de perdão, ou conseguir um rescrito de revisão de processo; mas um rescrito de revisão de processo será o mais barato’. Mais uma vez Chester pareceu ficar irado diante disso e tirando seu chapéu, como ela pensou, coçou sua cabeça de raiva. ‘Mas quando eu vi’, ela disse, ‘que não iam mandar buscar meu marido, embora desejasse que eles o fizessem para que ele pudesse falar por si mesmo, dizendo-lhes que ele lhes poderia dar maior satisfação do que eu no que exigia deles, com muitas outras coisas, que agora eu me esqueço; só me lembro disso: que estava um pouco temerosa de entrar no salão, mas antes de sair não resisti e caí em prantos, não porque fossem tão duros de coração comigo e meu marido, mas por pensar que triste relato tais perseguidores terão que dar na vinda do Senhor, onde terão que responder por todas as coisas que fizeram, sejam boas, sejam más. “E assim, ela disse com um toque de sarcasmo, apesar de sua grande tristeza e perturbação, ‘eu parti, o livro dos registros foi trazido; mas o


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que eles disseram ou fizeram com ele eu não sei, nem ouvi de nenhum deles’.” Esta jovem esposa simples e corajosa sentiu que se ela não pôde mover seus sentimentos, o livro de registros seria de pouca ajuda. Quantos milhares, desde aquele dia, têm lido esta narrativa amorosa da devoção feminina devem ser gratos por aquele ‘Oh, pobre mulher’, de Sir Matthew Hale, mesmo quando o culpam por permitir a oposição de seus irmãos mais rudes do banco, que cancelaram sua evidente simpatia e desejo de ajudá-la. Não podia este bom homem pensar que o humilde funileiro, através da narrativa desta cena, faria seu nome, renomado como é por sabedoria e bondade – conhecido de milhares, que de outra forma podem nunca ouvir falar dele. Quanto aos juízes Twisden e Chester, eles asseguraram a imortalidade. Mas por seu tratamento duro e sem sentimentos para com esta pobre mulher indefesa, não teriam ouvido falar em seus nomes por uma geração após sua morte. Se fosse dado a conhecer aos homens o que acontece aqui embaixo, seus espíritos estariam atormentados com o pensamento, como poderiam ter ganhado tão facilmente a aprovação de futuras gerações. Quão pouco poderiam eles e até mesmo o juiz Hale, com seu coração grande e conhecimento maior, ter imaginado que quando a frágil mulher começou a chorar, ela pensava neles e na sua aparição diante do grande juiz de todos, para responder por tais pecados e atos vis que estavam cometendo. Seria difícil, pensamos, encontrar seja na ficção ou na história, uma narrativa tão tocante quanto esta. A mulher simples, jovem, frágil e corajosa como um leão, porque a segurança de seu marido estava em jogo, - o tratamento brutal que recebeu por parte dos juízes Twisden e Chester e a simpatia de Matthew Hale, que desejou, mas não teve coragem de ajudá-la – seu rompante de sentimento pelos severos juízes (que fizeram tão pouco por ela, quando podiam ter feito tanto), ao pensar no dia em que estiverem diante do Juiz de todos, mas mais distante dEle, do que ela estava deles, e sua falta de fé no livro de registros, o qual ela


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via que falhou na tentativa de alcançar seus corações, de formar um quadro de insuperável interesse, que até mesmo o apelo de Jeanie Deans em favor de sua irmã diante da própria realeza, nas mãos do grande mestre da ficção, não consegue alcançar. Parecia, então, para Bunyan que ele tinha pouca esperança na clemência dos homens e, como o exílio ou a morte pareciam ser sua porção, resignou-se com toda sua coragem para preparar-se, de corpo e alma, para a segunda opção. Ele diz: “Uma vez, eu fiquei numa condição muito triste e deprimida por muitas semanas; isso pesou muito sobre o meu espírito, pois o meu aprisionamento poderia terminar nas galés, pelo que eu sabia... Portanto, quando comecei a pensar, isto era uma grande verdade para mim. Pensei comigo mesmo, que na condição em que agora me encontrava, eu não estava pronto para morrer, e nem achei que pudesse, se de fato fosse chamado. Além do mais, pensei ainda, deveria rascunhar um meio de subir as escadas, embora eu, com tremores e outros sintomas como desmaios, estivesse dando oportunidade ao inimigo de envergonhar os caminhos de Deus e seu povo por minha timidez. Isso, portanto, trouxe grande peso sobre mim, pois pensei que eu estava envergonhado de morrer com um rosto pálido e joelhos vacilantes por uma causa como esta. Assim, orei a Deus para que Ele me confortasse e me fortalecesse para fazer e sofrer tudo pelo que Ele me chamara. Ainda assim, o conforto não veio e continuou escondido. Também eu nesse tempo, estava tão possuído pelo pensamento da morte, que frequentemente era como se estivesse na escada com uma corda no meu pescoço; somente isto servia como pequeno encorajamento para mim. Pensava que assim teria a oportunidade de dizer minhas últimas palavras para uma multidão de pessoas, que achava que viria me ver morrer e, pensei, se for assim, se Deus converter uma só alma por minhas últimas palavras, não considerarei minha vida como desperdiçada, nem perdida... Ainda assim o tentador me seguiu com estas perguntas: ‘Mas para onde você vai quando morrer? O que será de você? Que evidência há


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para você do céu e da glória, ou de uma herança entre aqueles que foram santificados?’ Assim, fui jogado por estes pensamentos de um lado para o outro por muitas semanas e não sabia o que fazer. Enfim, esta consideração veio a mim, que era pela palavra e maneira de Deus que eu estava nesta condição, portanto, eu estava disposto a não recuar nem um centímetro nela. Eu também pensei que Deus podia escolher se Ele me daria conforto ou não na hora da morte, mas não podia, portanto, escolher se reteria minha profissão ou não; estava cativo, mas Ele era livre. Sim, era minha obrigação cumprir sua palavra, olhasse Ele por mim ou não, ou se Ele me salvasse no final. ...Agora meu coração estava cheio de conforto, pois esperava que fosse sincero. Sou confortado cada vez que penso nele e espero e bendigo a Deus para sempre pelo ensino que me deu através desta provação.” Bunyan tinha chegado até aqui e através de muito sofrimento tinha sido purificado e preparado para o sacrifício, se assim fosse. Mas Deus apenas o tinha, até agora, levado ao início de sua carreira. O que vinha a seguir seria para glorificar o Seu santo nome entre as futuras gerações. O humilde funileiro, que era considerado um sujeito desagradável e tratado como um vagabundo e tratante por aqueles que tinham autoridade sobre ele, era um dos instrumentos escolhidos de Deus; sim, um daqueles que só surgem entre longos intervalos, dos quais a terra não é digna. Nós soubemos por uma testemunha ocular como ele passava seu tempo na prisão. Charles Doe, que fez muito por nós preservando muitos incidentes em sua vida, que de outra forma não conheceríamos, nos conta: “foi lhe fazendo uma visita na prisão que o vi pela primeira vez e devo confessar que não pude deixar de ver nele um homem de excelente espírito, zeloso pela honra de seu Mestre e que alegremente deixava toda a sua preocupação à disposição de Deus. Quando eu estive lá, havia cerca de sessenta dissidentes além dele, presos um pouco antes de um encontro religioso em Kaistoe, no condado de Bedford, além de dois famosos


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ministros dissidentes, o Sr. Wheeler e o Sr. Dun (sendo ambos bem conhecidos em Bedfordshire), embora já tenham morrido há tempos. Portanto, por causa disso, a prisão estava lotada de fato; ainda assim no meio de toda aquela correria, acarretada por tantos recém-chegados, ouvi o Sr. Bunyan pregar e orar com aquele poderoso espírito de fé e absoluta certeza da ajuda divina que me fez ficar de pé, maravilhado... Nem ele, enquanto estava na prisão, passou seu tempo de modo descuidado e indolente; pois fui testemunha de que suas próprias mãos ministraram às necessidades deles e de suas famílias, fazendo centenas de dúzias de longos cadarços, para preencher seu tempo vago, o que ele aprendeu a fazer para este propósito, uma vez que tinha sido preso. Lá, também, eu pesquisei sua biblioteca, a menor, mas ainda assim a melhor que já vi – a Bíblia e O Livro dos Mártires.” Durante o seu aprisionamento (já que citei sua biblioteca), ele escreveu vários tratados excelentes e úteis, particularmente The Holy City (A Cidade Santa), Christian Behaviour (Comportamento Cristão), The Ressurection of the Dead (A Ressurreição dos Mortos) e Grace Abounding to the Chief of Sinners (mais conhecido como Graça Abundante)”. E o mais notável de todos estes, ele escreveu a primeira parte de O Peregrino e Charles Doe nos conta que ouviu da boca do próprio Bunyan. Mas como a introdução já deixa claro, assim como a introdução da segunda parte prova que foi produzida depois que ele foi posto em liberdade. Nós não vamos acumular evidência sobre um assunto que é uma dúvida do passado. Por ocasião da visita de Charles Doe a Bunyan na prisão, em 1665, “The Holy City, or the New Jerusalem” (A Cidade Santa, ou Nova Jerusalém), já estava escrito e era um tratado notável, sendo as circunstâncias que levaram à sua produção tão interessantes e características. Nós damos o relato da origem do texto, simplesmente mencionando de antemão que a parte principal dele foi pregada aos seus companheiros de prisão num domingo em particular.


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Esta produção notável, sobre um assunto tão bem calculado para mostrar seus poderes peculiares, é talvez o segundo mais interessante, ficando atrás apenas de O Peregrino, junto com “Graça Abundante”. Tem quatro dedicatórias – primeiro, Aos Devotos: “Embora os homens deste mundo, tendo a visão deste livro, não apenas zombarão, mas rirão todos juntos, ao considerar que alguém tão vil, desprezível e sem consideração como eu possa se ocupar desta forma, se metendo com a exposição de uma escritura tão dura e complicada como a que acham aqui, neste pequeno livro. Ainda assim, estes se lembrem que Deus escolheu o que para o mundo é loucura para envergonhar os sábios... e o que nada é para reduzir a nada o que é (1 Coríntios 1.26-29). Considere também, que desde o passado tem sido o seu prazer esconder estas coisas dos sábios e prudentes e revelá-las as crianças.” Depois, segue-se um relato muito interessante das circunstâncias que levaram à produção deste texto. “Num certo domingo, estando junto com meus irmãos em nossa cela, eles esperavam que, de acordo com o nosso costume, algo fosse dito sobre a Palavra para nossa edificação mútua. Por fim, eu pus meus olhos sobre esta profecia, quando depois de considerar um pouco, pensei ter percebido algo daquele jaspe em cuja luz encontrei a Cidade Santa descendo. Por esta razão, tendo um pequeno vislumbre de lá e desejando ver o que havia dentro da cidade, eu, com alguns gemidos, completei minha meditação ao Senhor Jesus Cristo com uma bênção, que Ele imediatamente concedeu e me ajudando a sentar-me com meus irmãos; todos comemos e ficamos satisfeitos. E vejam que, enquanto eu estava distribuindo, ele aumentou tanto na minha mão, que das sobras que deixamos, depois todos jantamos e eu ajuntei esta cesta cheia. Por isso, me dediquei a uma busca mais apurada, através da oração frequente, primeiro com fatos, depois com explicações, depois os fatos de novo e, assim, terminei.”


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Segundo, Aos Eruditos: “Senhores, eu suponho que em sua leitura deste discurso, serão capazes de me culpar por duas coisas: primeiro, porque eu não embelezei meu assunto com pureza de linguagem como vocês poderiam desejar; segundo, porque não lhes dei, nas linhas ou nas margens, uma nuvem de testemunhas dos Pais instruídos, que de acordo com a sua sabedoria (possivelmente), lidaram com estas questões antes de mim... A razão pela qual me acham vazio da linguagem dos instruídos – quero dizer daquelas frases e palavras que os outros usam – é porque não as tenho, nem as li; se não fosse pela Bíblia, eu não só não teria feito este trabalho, mas nada mais... Eu honro os devotos como cristãos, mas prefiro a Bíblia antes deles; e tendo-a ainda comigo, me considero melhor equipado do que se estivesse sem ela e com as bibliotecas das duas Universidades. Além disso, eu prefiro beber água da minha própria cisterna, a qual Deus fez minha pela evidência de Sua Palavra e Espírito, nos quais ouso ter coragem. Sendo assim, vendo que estou sem essas linhas treinadas, mas ainda bem equipado com a Palavra de Deus, quer dizer, a Bíblia, eu me contento com o que provei até hoje e, colocando-o diante de seus olhos, ‘Eu suplico, leiam e retenham senhores o que gostarem mais; E o que não gostarem, deixem para trás.’”

Terceiro, Aos Críticos: “Meu livro é tanto para vocês quanto o joalheiro faz suas joias para o focinho da porca.” E por último, À Mãe das Prostitutas: “Senhora, aqui não há pintura para adornar a tua face enrugada, nem muleta para sustentar o teu reino vacilante de Roma; mas um presságio certo de tua queda final. Pode cheirá-lo, mas não irá prová-lo. Eu conheço o teu olho libertino e todos os teus efeminados filhos mal-educados que estão sobrepostos em teu colo e encantado com as tuas fornicações, e que clamarão diante de um prato tão simples, oh! fungarão e dirão ‘desprezível’!”* Esta é uma mostra suficiente do frutífero e maravilhoso intelecto, que logo produziria O Peregrino e o colocaria 2

* O texto bíblico maravilhosamente retratado nesta obra é encontrado em Apocalipse 21.10-27; 22.1-4.


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entre os imortais, aquele grupo seleto que inclui apenas alguns nomes, que são sóis no firmamento dos gênios, e todos os outros são estrelas menores, cujo brilho é apenas a luz refletida de sua glória. A crueldade e perseguição daqueles no poder se omitiu. A influência dos homens bons na prisão, que espalhando suas opiniões despertaram a mente das pessoas, era maior “em cadeias” do que quando livres. Notavelmente, foi assim no caso de Bunyan. Vimos a influência que ele exerceu sobre seus companheiros de prisão, e agora que ele tomou sua caneta nas mãos, milhares que nunca poderiam ter ouvido sua voz ou o visto em carne e osso, estavam sendo influenciados por sua dedicação e genialidade. Muitas pessoas o visitaram em seus problemas espirituais, recebendo conselho valioso e conforto, os quais podemos ter certeza que alcançou muitos além dos receptores. Um dos que o visitou enquanto esteve na prisão foi um quaker, que disse: “Amigo Bunyan, o Senhor me mandou até aqui por sua causa. Já estive em vários lugares à sua procura e agora estou feliz porque lhe encontrei.” Sua resposta testifica que não lhe faltava senso de humor, embora não o exercitasse frequentemente. “Amigo”, ele disse, “você não fala a verdade, ao dizer que o Senhor lhe enviou a mim; pois o Senhor bem sabe que tenho estado na prisão por alguns anos, e se Ele tivesse enviado você, lhe teria mandado direto aqui”. O livro Graça Abundante, que foi produzido na prisão, antes de O Peregrino, é uma das obras mais marcantes jamais escrita. Para aquele que estuda os fenômenos mentais e espirituais, ele possui um interesse ainda maior do que O Peregrino. A luta de Fausto de Goethe entre o bem e o mal não é nada comparada com a luta deste ser humano em busca de luz. O horror de seu pecado e o temor da punição da ira de Deus está sempre presente nele. No seu trabalho diário, em casa, nos campos – dormindo ou acordado – o terrível conflito está constantemente sendo travado – até que alguém imagina se a mente e o intelecto


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do homem não recuaram. Dúvidas e lutas como estas aqui registradas, mandaram muitos para o sanatório, e mesmo em nossos dias, mandaram homens educados para a comunhão na Igreja Católica Romana, pois em nenhum outro lugar as questões que os atormentavam poderiam ser tiradas de seus ombros e resolvidas para eles através das mãos de um guia infalível. A perversão de um homem como o Dr. Newman parece, para aqueles que leram Apologia e escritos recentes, ter surgido da necessidade de aliviar-se de um peso de dúvida, que ele mesmo achou intolerável. A igreja de Roma oferece uma esperança ilusória de paz e tranquilidade para tais espíritos inquietos, mas como teria sido melhor se tal homem tivesse enfrentado suas dúvidas como Bunyan o fez, e enfim achou alívio através do Senhor Jesus Cristo. Tão certo quanto o homem deve morrer, e nesta última tarefa não vai encontrar substituto, assim é o conflito com o pecado e a descrença que cada homem deve carregar na luta consigo mesmo. Nenhum credo, nenhum dogma, ou nenhuma assim chamada igreja infalível, pode fazer isto por ele. A igreja e seus discípulos, qualquer que seja sua crença, podem apenas ajudar; mas na mente aflita e atingida deve sempre permanecer “o peso e o calor do dia”. Graça Abundante é o clamor de uma alma sofredora em sua agonia de dúvida e perplexidade em sua busca pela paz. Não pode haver dúvida de que a terrível luta para ele era real. O diabo estava trabalhando nele contra tudo que era bom. As vozes dos espíritos bons e maus eram para ele um incentivo real para fazer o bem ou o mal e, quanto mais perto ele chegava do que tão apaixonadamente desejava ser, mais terrível se tornava o conflito com Satanás. Em Jerusalem Sinner Saved (Pecador de Jerusalém Salvo), ele diz: “Satanás é contrariado ao se separar de um grande pecador. ‘Por que, meu servo’, ele cita, ‘meu velho servo, me abandonará agora? Tendo se vendido a mim tantas vezes para cometer


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a iniquidade, me abandonará agora? Seu velhaco horrível, você não sabe que pecou além do alcance da graça, e pensa encontrar misericórdia agora? Você não é um assassino, um ladrão, uma prostituta, uma bruxa, um pecador dos maiores e procura por misericórdia agora? Você acha que Cristo vai sujar Seus dedos com você? Já é suficiente fazer os anjos ficarem corados’, disse Satanás, ‘ao ver alguém tão vil batendo na porta dos céus pedindo misericórdia e você vai ser tão ousado para fazer isso?’” Para ele, estas coisas eram muito reais e seu peso e importância não eram diminuídos, mesmo se fossem falsas a metade das acusações. A primeira parte de O Peregrino, que foi composta logo depois, é a mesma história na forma de uma alegoria, contada de modo muito mais agradável. As dúvidas que traziam temor e as provações de Graça Abundante, tornaram-se, na história de O Peregrino, a narrativa mais deliciosa existente na língua inglesa. Quando O Peregrino tem início, Bunyan parece estar indeciso quanto à sua forma e conteúdo real; certamente não tinha ideia de que estava escrevendo uma obra que atrairia mais do que popularidade comum. Nesta defesa poética para o livro ele diz: “Quando pela primeira vez para escrever Peguei a caneta em minha mão, Eu não pude compreender Que não deveria fazer um pequeno livro De tal modo que não tinha me comprometido a outro fazer, Que quando estava quase acabado Antes que percebesse, assim havia começado. E assim foi: sobre o caminho comecei a escrever E a corrida dos santos nestes dias do nosso evangelho, Até que de repente uma alegoria a aparecer Sobre sua jornada e caminho para a glória, Em mais de vinte coisas a escrever,


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O Peregrino Isto feito possuía mais vinte em minha história Elas de novo começaram a se multiplicar Como fagulhas que do carvão em chamas começaram a voar Não, pensei então, que se são produzidas tão depressa, As colocarei de lado, a fim de que, por fim, Não provem ser ad infinitum, devorando O livro que já estou começando. Bem, assim o fiz, mas eu não almejava Mostrar a todo mundo minha pena e tinta De tal modo; eu apenas em fazer pensei Eu não sabia o quê; nem me encarreguei Desta forma de agradar meu próximo; não, Eu fiz para minha própria gratificação. Nem gastei apenas momentos ociosos Neste meu garatujar; também não pretendia Fazendo isso, apenas me distrair, De pensamentos piores que erroneamente me fizeram agir. Assim, levei a caneta ao papel com alegria E rapidamente pus meus pensamentos em preto e branco Ainda, eu puxava, ele vinha e eu escrevia Pois agora com meu método quase acabando Até que chegou por fim a ser Em extensão e composição a grandeza que agora vão ver.”

Ele mostrou-o a seus amigos, com os resultados comuns em tais casos, quando o assunto é sobre um personagem novo. “E alguns disseram, ‘Deixe-os viver’; alguns, ‘Deixe-os morrer’ Alguns disseram ‘John, imprima-o, outros disseram, ‘não’. Alguns disseram, ‘não’. Outros disseram ‘Pode ser bom’.”


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Felizmente para o mundo, apesar dos seus amigos, ele pensou: “Já que vocês estão divididos Eu vou imprimi-lo, e o caso foi decidido.”

Ele tenta explicar para seu método e propósito e ainda acha oposições tolas. Um lhe diz: “Bem, eu ainda não estou satisfeito Será que este seu livro vai resistir quando testado com efeito?” “Por quê? Qual é o problema?” “É sombrio.” “Sim?” “Mas é inventado.” “E daí?” “Eu penso que alguns homens por palavras tão inventadas assim Fazem a verdade reluzir e seus raios brilharem” “Mas eles querem solidez.” “Diga, homem, o que pensa.” “As metáforas nos deixam cegos. Elas deixariam os fracos se afogarem.”

Ele justifica seus métodos pela prática dos profetas que “usavam muitas metáforas para explicar a verdade”

E até mesmo a própria Bíblia:

“Está em todo lugar, tão cheia de todas estas coisas Figuras sombrias, alegorias – mas lá nascia Deste mesmo livro, aquele lustre, e aqueles raios De luz que transformam nossas noites mais negras em dia?”

O propósito deste livro é indicado a seguir:

“Este livro é diante de seus olhos esboçado O prêmio duradouro que pelo homem é buscado Ele mostra de onde ele vem, para onde ele vai O que deixa incompleto e ao que ele atrai


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O Peregrino Também como ele corre e corre mostra Até que aos portões da glória chega Também mostra aqueles que saem para a vida com velocidade Como se fosse alcançar a última coroa: Aqui também podem as razões compreender Porque eles perdem seu trabalho e como tolos vão morrer.”

Bunyan, de acordo com o hábito do seu tempo, era o costume, como já vimos, de detalhar por um tempo considerável as circunstâncias ligadas à produção da maioria de suas obras; em sua poética “apologia” ou Prefácio, nós temos, sem dúvida, um registro das objeções de alguns de seus amigos. Embora modesto e humilde quanto a seus próprios méritos, ele era um juiz perspicaz de seu próprio trabalho e seu valor e não era provável que fosse mais influenciado por críticas hostis do que de ser enlevado por recomendações ou elogios. As linhas que concluem a Apologia dão um catálogo tão admirável dos méritos do livro que não podemos deixar de citá-lo: “Tu fugirias da melancolia? Serias tu agradável, mas longe da selvageria? Lerias tu uma charada e sua explicação? Ou te afogarias em tua contemplação? Tu gostas de comer carne (aos pedaços)? Ou verias Um homem nas nuvens e falar contigo o ouviria? Estarias em um sonho e ainda assim sem dormir? Ou irias tu em um momento chorar e rir? Tu te perderias sem ter problemas com isso? E de novo te encontrarias sem um feitiço? Tu lerias sozinho, sem saber o que leu E ainda saberia se é abençoado ou não, Lendo as mesmas linhas? Oh, venha então, E incline meu livro; juntos, sua cabeça e coração.”


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Milhões de leitores enlevados obedeceram à evocação e não há sinal de que a maré de popularidade jamais diminuirá. Já foi traduzido para todas as línguas europeias e para as línguas de nações não cristãs e tribos selvagens; os últimos encontram em sua forma alegórica as circunstâncias que os levam a simpatizar-se com a obra. Uma edição, no dialeto chinês, cremos que traduzida pelo Reverendo William Burns, missionário, é ilustrada e as figuras são nativos vestidos com seus trajes típicos, usando tranças. Este livro, que foi iniciado como relaxamento do tédio da prisão e do que ele entendia como estudos e trabalhos mais sérios e mais importantes, estava destinado a ser lido e aproveitado por pessoas de todos os climas e de todas as nações debaixo do sol; pois, sem dúvida, ele será traduzido em todas as línguas vivas. Uma tirania cruel e perversa despachou este homem para a prisão, para que ele não pudesse, por sua voz, semear o que eles chamavam de erro e heresia entre o povo de Bedford e seu distrito; e vejam! De sua prisão, sua voz alcançou os ouvidos de todos os homens, exercendo uma influência que nenhum homem poderia estimar. O que, para ele e seus amigos, pareceu uma grande perda para a causa de Deus, torna-se o serviço mais triunfante de Deus e Seu povo que o mundo já viu. O corpo estava aprisionado, mas a mente estava livre e a glória de Deus foi obtida pelas cadeias que prendiam seu corpo de um modo que dificilmente teria se apresentado se ele permanecesse livre. Livre ou em cadeias, ele não temia nenhum homem e muito fez para fortalecer a coragem daqueles que temiam fazer uma confissão aberta de sua fé. Em Israel’s Hope Encouraged (Esperança de Israel Encorajada), ele diz: “Há milhares que não ousam nem pensar em sua religião, por causa do poder do inimigo que eles contemplam, quando, oh! eles não veem ninguém, mas os espantalhos que o diabo ergueu; pois conto os perseguidores do povo de Deus apenas como espantalhos do diabo, pois o velho inimigo mesmo está quieto; ainda assim, digo, como eles ficam


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amedrontados! Como ficam impressionados! Quantos inimigos da religião estes conterrâneos têm visto hoje! Sim, eles tão logo irão aventurar-se a correr o perigo do fogo do inferno, como se levados pelos inimigos para este caminho. Ora, o povo de Deus prontamente iria por todos eles e não seria mais capaz do que outros de fazer isso por conta própria. Portanto, eles são enlaçados, cercados e defendidos pela misericórdia, que é a verdadeira causa, de fato, de sua devota perseverança.” Quão característica é essa noção de que quando o diabo tem muitas pessoas para fazer o seu trabalho e fazer o papel do próprio espantalho, ele mesmo fica quieto! Não temos meios de saber a data exata da publicação de O Peregrino, se foi lançada antes do relaxamento de sua prisão, ou logo depois. A segunda edição, com inserções, foi publicada em 1678, e tão rapidamente foi vendida depois desta data, que a décima edição data de 1685. Este maravilhoso sucesso trouxe-lhe um bando de imitadores. Houve muitos que lhe acusaram de plágio por certos livros de caráter semelhante, a maioria dos quais, como notou Sir Walter Scott, ele nem poderia ter visto e alguns deles não eram em inglês, ele não poderia tê-los lido, mesmo se estivesse de posse deles. Nos versos do prefácio de The Holy War (A Guerra Santa), ele deixa uma réplica indignada a essas pessoas: “Alguns dizem que O Peregrino não é meu, Insinuando que brilharia eu Com nome, fama e o valor de outro tomando Como alguns que ficam ricos ao seu irmão roubando; Ou que, quero tanto nobre ser Que se preciso for filhos bastardos posso ter; Ou, que contarei uma mentira impressa para ser aplaudido; Eu rejeito isso: Desde que Deus me remiu Um John que amontoasse tanta sujeira nunca mais existiu. Que isso seja suficiente


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Para mostrar que apóio o meu O Peregrino Porque ele veio do meu próprio coração, e para minha cabeça passou, E daí nos meus dedos entrou, Então para minha caneta, de onde imediatamente, No papel o escrevi refinadamente. Jeito e assunto foram muito próprios de mim, E de nenhum outro mortal conhecido Até que eu o tivesse feito. Nem ninguém, então, Por livros, por sabedoria, por línguas, caneta ou mão Somou cinco palavras a ele, ou escreveu meia linha Portanto, o todo e toda sabedoria é minha.”

A respeito dos livros se supõe que ele possa ter visto e recebido algumas dicas para a construção de sua alegoria, um poema intitulado A peregrinação, na obra Emblems, de Whitney, originalmente impressa em Leyden, em 1586, é um deles. The Voyage of the Wandering Knight (A Viagem do Cavaleiro Errante), uma tradução do francês de Jean de Cahrthenay, um frei carmelita, é outro, e também a obra de Bernard, Isle of Man, or the Legal Proceedings in Manshire Against Sin (Ilha do Homem, ou Os Procedimentos Legais do Homem Contra o Pecado). Este último era um livro popular no tempo de Bunyan e ele não poderia não tê-lo visto, e nem estar familiarizado com o seu conteúdo. Southey diz: “Há tanta sabedoria nele quanto em O Peregrino, e é esta veia de sabedoria que Bunyan trabalhou com tanto sucesso. Ele quer o charme da história e não tem nada daquele interesse romântico que ‘impede as crianças de dormirem’; portanto, sua popularidade já passou. Mas ele é escrito com grande espírito e habilidade.” O seguinte extrato do prefácio não foi feito sem interesse, e mais especialmente, como sugere o Sr. Southey, deve ter estado na mente de Bunyan quando ele escreveu os versos introdutórios da segunda parte de O Peregrino.


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“Bem, eu vesti este Livro desta forma: pode ser que tenha sido tomado por algum capricho, como uma vez aconteceu com o velho Jacó, que vestiu José de modo diferente de todos os seus irmãos, com um casaco colorido. Também pode ter acontecido que eu tenha olhado (como Jacó olhou para José) com mais alegria para este rapaz do que para os outros vinte dos seus irmãos nascidos antes dele, esperando assim, obter mais aceitação quando ele deveria vir alegremente e minha expectativa não me decepcionou; não me enganei, como quando Jacó mandou José aos seus irmãos invejosos; pois não foram centenas, mas milhares que o receberam bem em suas casas. Eles diziam que gostavam de sua fisionomia, seu hábito, seu jeito de falar bem, embora outros não estivessem muito satisfeitos com isso. Mas, quem pode agradar a todos, ou como pode alguém assim escrever ou falar, de modo a satisfazer a todo homem? Se alguém estiver enganado quanto a mim, e insultá-lo demais em sua apreensão carnal, que ponham a culpa em si mesmos e não em mim ou nele, pois a culpa é só deles, a qual desejo que corrijam. Você que gosta dele, oro para que o aceite; pois é para sua meditação espiritual que o mandei sem estes conteúdos e mais notas de rodapé. O seu traje não é nem um pouquinho alterado, o qual é constrangido por ele a vestir, não apenas em dias de trabalho, mas até mesmo em feriados e domingos, também, se viajar. Uma roupa mais adequada não tenho para ele; se eu enviasse o pobre rapaz nu, sei que não lhes agradaria. Este casaco dele, embora não seja reformado quanto ao estilo, é feito um pouco mais longo. Pois embora desde o seu nascimento até hoje seja quase um ano, ele já está um pouco maior. Mas acho que já atingiu sua estatura total. Então, ele será um pigmeu, para ser carregado por aí no bolso de qualquer homem. Eu rogo a vocês desta (segunda) vez que o aceitem e usem como eu pretendi e colherão os frutos. Mas eu os proíbo de não ficarem felizes com ele, como cristãos.


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Então adeus a todos, com muitos bons desejos a todos. R.B., 28 de maio de 1647.” Em 1683, este livro já tinha atingido a marca da décima sexta edição. Supõe-se que um livro chamado A Parábola do Peregrino, escrito a um amigo por Symon Patrick, D.D., Deão de Peterborough, sucessivamente bispo de Chichester e Ely, de modo bem peculiar, deu a Bunyan dicas e sugeriu a forma de sua obra de arte. O valor de sua sugestão pode ser julgado a partir do fato de que o prefácio ou inscrição do bispo à obra é datado de 1672 e que não foi publicado até 1678 – tendo sido a primeira parte de O Peregrino escrita muito antes de seu surgimento, e uma segunda edição dele apareceu no mesmo ano em que foi publicado. Sir Walter Scott112, na “Quarterly Review”, diz: “Se o Dr. Patrick tivesse visto O Peregrino, ele teria provavelmente, pelo orgulho do aprendizado acadêmico, desprezado a ideia de adotá-lo como um modelo; mas, em todo caso, como um homem da verdade, nunca teria negado a obrigação se estivesse devendo uma. John Bunyan, por sua vez, desprezaria a ideia, de todo o coração, de pegar algo emprestado do deão. De fato, quem quer que se dê à tarefa de comparar os dois trabalhos, tratando-se praticamente da mesma alegoria, com títulos semelhantes e sendo lançadas mais ou menos na mesma época, verá claramente sua total diferença. A alegoria de Bunyan é fechada e continuada, na qual a ficção metafórica é sustentada com a exatidão de uma história real. Na obra do Dr. Patrick o mesmo plano é geralmente anunciado como algo que surge do desejo sincero de um viajante, a quem ele chama de Philotheus ou Theophilus, cujos desejos estão fixos em fazer uma jornada até Jerusalém como um peregrino. Depois de muita incerteza, causada pelos impedimentos de guias falsos, que recomendavam rotas diferentes, ele é enfim recomendado a um guia seguro e inteligente. Theophilus se apressa a se pôr sob seu cuidado e o bom 11 Sir Walter Scott (1771-1832) frutífero romancista histórico e poeta escocês famoso por toda a Europa. Foi o primeiro autor a ter uma carreira verdadeiramente internacional em sua época. (N.T.).


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homem dá suas instruções para o caminho, com riqueza de detalhes, de modo que todos os perigos de errar e companheiros indiferentes possam ser seguramente evitados; mas em tudo isso, muito pouco cuidado é tomado para preservar a aparência da alegoria - resumindo, você tem quase em termos claros, os preceitos morais e religiosos necessários para serem observados no curso real de uma vida moral e religiosa... É desnecessário apontar a extrema diferença entre esta linha de didática continuada, mais impedida do que incentivada pela surpreendente metáfora, que geralmente é quase perdida de vista, a qual o autor se lembra de vez em quando, quase por acidente e a maneira completamente semelhante à vida na qual John Bunyan põe diante de nós as aventuras do peregrino. Duas circunstâncias apenas nos mostram a trincheira aberta entre o estilo de Bunyan e de Elstow: uma é que quando o guia acorda alguns peregrinos preguiçosos, os quais ele acha dormindo pelo caminho; a outra é quando seu caminho é cruzado por dois homens a cavalo, que insistem em tomar a ocupação de guias. Um é agradável e gosta de conversar, excelente companhia pela razão de seu bom humor e modos agradáveis. Mas eles observaram que este tinha uma espada no seu lado e um par de pistolas diante dele, junto com outro instrumento pendurado em seu cinto, que descobriram ser para arrancar os olhos! O outro, é mais triste e melancólico, mais rude e de porte mais pesado também, que cruzou seu caminho pela direita.” Com todo o respeito devido sir Walter Scott, nós imaginamos que o erudito Dr. Patrick estava em dívida com John Bunyan pela ideia de seu livro e que ele tinha a impressão de que estava prestando um serviço à igreja ao escrever uma obra semelhante, que seria para a igreja o que o livro de Bunyan tinha sido e era para o não conformismo. Mas conhecimento e posição elevada eram pobres substitutos para o gênio que fez do funileiro iletrado de Elstow o homem de seu tempo na região da literatura de imaginação.


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Mais recentemente, de fato, dentro dos últimos trinta anos, Bunyan foi acusado de ter trazido sua alegoria do holandês, a língua em que The Pilgrimage of Dovekin and Wilkin to their Beloved Jerusalem, (A Peregrinação de Dovekin e Wilkin à sua Amada Jerusalém), publicada em 1627, o qual teve uma considerável popularidade. Southey afirma, no que diz respeito a este livro e a acusação feita contra Bunyan de ter pegado emprestada sua narrativa: “Uma pessoa olhando (como o acusador de Bunyan) para os pontos, não compreendendo a linguagem na qual o livro é escrito, pode ter suposto que as dicas foram dele para as aventuras no Pântano da Desconfiança e na Feira das Vaidades; mas O Peregrino não era uma tradução do livro que ele deveria ������ conhecer. Os peregrinos no livro são mulheres e não é necessário conhecimento de holandês para perceber que o livro é escrito não como uma narrativa, mas como uma série de diálogos.” Southey, numa carta para Sir Egerton Brydges, depois da publicação de sua “Biografia de Bunyan”, diz que ele “tinha esquecido que o desenho completo de O Peregrino não pode ser encontrado em Hermotius, de Lucian. Não que Bunyan tenha visto isso lá, mas a alegoria óbvia se apresentou na mente de Lucian, como na de muitas outras pessoas”. De acordo com Southey, o início de O Peregrino deve ser encontrado num sonho ou visão registrado em Graça Abundante e nós o citamos aqui. Ele estava pensando nas três pobres mulheres de Bedford, como já mostramos previamente, que tanto tiveram influência sobre a vida religiosa de Bunyan. “Eu vi como se elas estivessem sobre o lado ensolarado de uma montanha bem alta; lá se refrescavam com os agradáveis raios de sol, enquanto eu me encolhia e tremia de frio, aflito, com gelo, neve e nuvens escuras. Parece-me que entre eu e elas vi uma parede que passava por esta montanha. A minha alma queria muito passar por esta parede, concluindo que, se pudesse assim fazer, iria até o meio delas e também seria confortado pelo calor do sol. Fui à parede de novo e de novo, para ver se podia achar algum caminho ou passagem


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pelo qual pudesse entrar por ela; mas por algum tempo não achei nada. Por fim, vi uma estreita abertura, como um pequeno portal, pelo qual tentei passar. Como a passagem era bem pequena e estreita, fiz um grande esforço para entrar, mas tudo em vão, até ficar exausto de pelo esforço de tentar atravessar. Finalmente, com grande dificuldade, pensei primeiro ter passado minha cabeça: depois, com um escorregão, meus ombros e meu corpo todo. Então, fiquei extremamente feliz, fui e sentei no meio delas, fui confortado pela luz e calor do sol. Agora, a montanha e a parede foram feitas para mim. A montanha significava a igreja do Deus vivo, o sol que brilhava sobre nós, o brilho confortador de Sua face sobre aqueles que estão dentro dela. A parede que pensei ser a Palavra, que de fato traz separação entre os cristãos e o mundo e a abertura na parede, pensei ser Jesus Cristo, que é o caminho para o Pai. Mas, uma vez que a passagem era tão maravilhosamente estreita, tão estreita que não pude entrar a não ser com grande dificuldade. Isto me mostrou que ninguém pode entrar na vida eterna a não ser aqueles que são sinceros; a menos que tenham também deixado aquele mundo iníquo para trás, pois aqui só havia lugar para corpo, alma e pecado.” A linguagem de O Peregrino mostra sua ligação estreita com a Bíblia, e também com O Livro dos Mártires, de John Fox 122, e provavelmente vários dos primeiros escritores ingleses sobre assuntos religiosos. É o vernáculo simples, e como tal, é um inglês puro e nervoso, notável por sua força e livre de rudeza, o que era de esperar no trabalho de um homem iletrado. Tal linguagem, enquanto se dirige ao entendimento mais pobre, é igualmente aceitável nos cultos, e tanto a criança quanto o adulto ficam igualmente interessados na narrativa, pois é tão facilmente lida e compreendida como uma história da hora de dormir. Sua vívida imaginação e maravilhoso poder de descrição capacitaram-no a 12 John Fox (1516-1587) - nasceu na Inglaterra e estudou na universidade de Oxford. Durante a perseguição aos protestantes pela rainha Mary Tudor, exilou-se na Alemanha e Suíça, onde escreveu a primeira edição de O Livro dos Mártires, cuja mensagem moldou a consciência religiosa e política da Inglaterra durante vários séculos (N.T.).


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construir personagens e incidentes com uma simplicidade e capacidade gráfica que poucas vezes foi ultrapassada. D’Israeli13, o ancião, chama-o de “o Spencer do povo”, e embora haja uma vasta diferença entre o culto e o imaginativo poeta, que se misturou com o melhor da sociedade do seu tempo e o autor iletrado de O Peregrino, ainda assim, qualquer comparação entre eles deve resultar no estabelecimento da vasta superioridade de Bunyan sobre o escritor intelectual de Faery Queen. Sir Walter Scott diz: “Em um estilo de composição, considerado venerável por sua antiguidade e ainda mais pelo propósito ao qual foi aplicado, John Bunyan, embora subestimado, foi um mestre distinto. De nossa parte, somos inclinados a permitir-lhe, na simplicidade de sua história e sua própria perspicácia e, se o leitor preferir, sua objetividade própria de um estilo simples, uma superioridade sobre o grande poeta com quem foi comparado por D’Israeli que, considerando os dois escritores como alegoristas, pode, em alguns sentidos, contrabalançar as vantagens de uma mente repleta de educação, uma cabeça cheia de graça e liberdade poética - resumindo, as várias e indescritíveis distinções entre o amigo de Sydney e Raleigh, o fascinante poeta da terra do imaginário, e o obscuro funileiro de Elstow, o autoeleito representante dos Anabatistas de Bedford. Ambos contaram uma história expressiva para os propósitos da religião e da moralidade - Spencer sob a guisa de um romance de cavalaria, enquanto Bunyan lembra o esboço de um conto de fadas popular com sua combinação de gigantes, anões e magos. Até aqui eles se assemelham; se o último escritor permitir ao primeiro a vantagem de uma imaginação mais rica e um gosto incalculavelmente mais cultivado, o não-educado homem do povo pode, por sua vez, reclamar sobre Spencer a superioridade devido um plano mais simples e bem forjado, do qual ele não foi tentado a se afastar...


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“Spencer desejava, sem dúvida, ajudar a causa da virtude, mas fez isso no caráter de um moralista frio e desapaixonado, facilmente seduzido e afastado desta parte de sua tarefa pelo desejo de fazer um elogio a alguma cortesã, ou moça nobre, ou o mero desejo de dar uma visão maior à sua imaginação. Bunyan, pelo contrário, ao recomendar suas próprias opiniões religiosas aos leitores de seu romance, ficou impressionado todo o tempo com o sentido da sagrada importância da tarefa para a qual ele sobreviveu à pobreza e ao cativeiro e, foi não duvidamos, preparado para morrer. Temos certeza de que, para ganhar o favor de Charles e toda a sua corte, ele não guiaria os cristãos para nem um único passo longe do caminho estreito e reto; sua excelência sobre Spencer é que seus pensamentos poderosos eram todos direcionados a um fim solene e sua fértil imaginação se ocupava de tudo que pudesse dar vida e variedade à sua narrativa e vigor e consistência ao espírito de sua alegoria. Cada pensamento seu voltava-se para fortalecer e confirmar a racionalização da qual dependia seu argumento; nada é mais admirável do que a aguda imaginação com a qual, ainda mantendo o olhar sobre seu propósito principal, Bunyan consegue extrair, dos detalhes mais insignificantes, os meios de estender e fortalecer a sua impressão.” Este extrato é tão admirável e claramente expresso quanto é verdadeiro. Extraímos duas estrofes de Faery Queen, de Spencer, como indigna de ficar lado a lado com um quadro de O Peregrino: “Daquele lugar distante ele mostrou um pequeno caminho íngreme que uma boa cidade à sua visão levou Cujas paredes e torres foram construídas altas e fortes De pérola e pedras preciosas, que línguas terrenas Não podem descrever, nem com sabedoria o homem pode contar Uma cantiga muito elevada para eu cantar! A cidade do grande Rei, como era bem chamada


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Onde a paz eterna e felicidade têm sua morada. Como ele ali ficou a olhar, podia ver Os anjos benditos a subir e descer Do mais alto céu em alegre companhia Ele pode entrar naquela cidade com grande alegria Simplesmente, como um amigo faz com outro amigo À vista do que ele muito pensou e logo perguntou Qual era aquele prédio que se erguia tão alto Suas torres iam até as estrelas e que nações desconhecidas habitavam nelas.”

A cidade santa de Bunyan não é menos magnífica que a de Spencer.14 “Era construída com pérolas e pedras preciosas, também a rua era pavimentada com ouro, de modo que por causa da glória natural da cidade e o brilho do reflexo dos raios de sol sobre ela, o cristão adoeceu de desejos de ali permanecer.” Quando o Cristão e o Esperançoso se aproximaram do portão, saíram para encontrar-lhes vários dos arautos do Rei, vestidos de trajes brancos e brilhantes, tocando sons melodiosos e altos, que fizeram até o céu ecoar com seu som; então ele descreve ...“eles foram guiados por todos os recantos... e a música continuava enquanto eles seguiam. Era uma melodia belíssima com som de alegria e notas de adoração nas alturas, tão bela que, apenas por ouvi-la, podia se sentir como se o céu tivesse descido a terra para recebê-los. Assim, o Cristão e seu companheiro continuavam caminhando ao som das trombetas e os que lhes acompanhavam além da música lhes faziam gestos e lhes mostravam, com seus olhares felizes, que eles eram esperados muito bem-vindos e, que todos estavam alegres por estarem em companhia deles. Este momento, para os dois homens era como se os céus, se abrissem e fossem envolvidos pela visão dos anjos e o som de suas melodias. A essa altura, já era possível ter uma vista melhor da cidade em si, o que significava que ela já estava 2

14 Edmund Spencer (1552-1599) - poeta inglês era uma figura controversa por seu zelo em destruir a cultura irlandesa e foi um dos principais criadores da língua inglesa moderna (N.T.).


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bem próxima e eles imaginavam que já era possível ouvir os sons dos sinos que saudavam a sua chegada. Mas acima de tudo, os próprios pensamentos que tinham sobre habitar naquela cidade eram reconfortantes e cheios de alegria, apenas por pensarem que estariam na companhia daqueles que louvavam sem cessar! – Oh, que palavra escrita ou falada poderia expressar tal alegria! E assim meditando, chegaram junto ao portão... e eu vi em meu sonho que estes dois homens seguiram até o portão; de repente, à medida que entraram pelos portões, foram transfigurados; e tiveram suas roupas transformadas e elas começaram a brilhar como ouro. Também receberam coroas em suas cabeças e harpas em suas mãos. As harpas foram dadas para adoração e as coroas em sinal de honra. Ouvi todos os sinos da cidade tocando em sinal de alegria e era isto que a música deles dizia: ‘Venha e participe da alegria do seu Senhor.’ Também ouvi que os dois homens cantavam com grande voz, ‘Ao que está assentado no trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra e a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos, amém’. Assim que os portões foram abertos, para que lhes fosse permitido entrar, eu olhei para além e vi adiante deles a cidade que resplandecia como o sol, com ruas pavimentadas com ouro por onde caminhavam muitas pessoas e elas tinham coroas em suas cabeças, ramos verdes e harpas de ouro nas mãos com as quais tocavam e cantavam louvores. E algumas dessas pessoas tinham asas e cantavam ininterruptamente em resposta umas às outras dizendo: ‘Santo, Santo, Santo é o Senhor.’ Depois disso os portões foram novamente fechados, e por tudo que já havia visto neste sonho, desejei que eu mesmo estivesse junto com eles”.


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Ele também descreve a jornada de Cristiana, “Mais uma vez, quando Cristiana entrou no rio, a estrada estava cheia de pessoas para vê-la fazer sua jornada. Mas, todo o leito do rio está cheio de cavalos e carruagens, que vieram lá do alto para acompanhá-la até o portão da cidade. Então, ela veio adiante, e entrou no rio, com um adeus para aqueles que a seguiam até o leito do rio”. O inculto mascate tinha visões mais lindas do que o poeta cortesão que conhecia os lugares terrenos e que a gloriosa imaginação dos grandes escritores e poetas que o precederam, ou daqueles que eram seus contemporâneos. Suas cercanias, fossem a prisão ou seu humilde chalé, não o faziam inadequado para pintar um quadro da Jerusalém celestial, digna de ficar lado a lado com a de seu grande contemporâneo, John Milton.15 Nunca foi igualada em simples força gráfica. Ele escreve como se realmente a tivesse visto; talvez realmente tivesse sido dado a ele, mais do que a qualquer outro escritor de qualquer tempo ou país, sentir como se as visões que imaginou fossem verdadeiramente submetidas aos seus olhos errantes. A visão do portão da cidade e o desejo do sonhador de partilhar a glória por um momento revelada a ele, move a mão do Mestre e a alma do humilde homem torna-se santificada conforme ele conta, “quão glorioso era ver como a região aberta foi cheia de cavalos e carruagens, com trombetas e gaitas, cantores e instrumentistas com instrumentos de corda, para dar as boas-vindas aos peregrinos quando eles subiam e seguiam um ao outro no lindo portão da cidade”. A seguinte avaliação de O Peregrino é de um jornal, o North American Review, de abril de 1833, que não é a produção de um escritor comum. De fato, não conhecemos nenhum ensaio mais admirável sobre Bunyan do que este e lamentamos não saber o 2

15 John Milton (1608-1684) - poeta inglês, o autor do famoso poema épico, Paradise Lost (Paraíso perdido), que descreve a queda da humanidade. Radical, republicano com visões heréticas é um dos maiores e mais significativos escritores e pensadores de todos os tempos (N.T.).


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nome do escritor. Ele diz: “Talvez nenhum outro trabalho possa ser mencionado, que admirado por mentes cultas, tenha tido ao mesmo tempo tal efeito de melhorar as classes mais baixas da sociedade como O Peregrino. É um livro tão cheio de senso comum ao nativo, que nenhuma mente pode lê-lo sem ganhar sabedoria e vigor no seu julgamento. Que efeito incrível deve ter produzido sobre a massa das mentes comuns trazida sob sua influência! Não podemos computar o bem que já alcançou até agora na terra. É um dos livros que, sendo conectado com as mais queridas lembranças da infância, sempre retém o nosso coração e exerce uma dupla influência, quando numa idade mais avançada e menos sob a influência da imaginação fértil da infância, nós o lemos com uma percepção mais grave e pensativa de seu significado; e como muitas crianças se tornaram cidadãos melhores do mundo por toda a vida, por causa da leitura deste livro, ainda na infância! E quantos, através de sua instrumentalidade, podem ter sido adequados à vida eterna, para viver para sempre? A guerra cristã aqui é adornada com o brilho da imaginação para fazer-se mais atraente. Quantos peregrinos, em horas em que a perseverança estava quase exausta e a paciência estava quase desistindo e nuvens e escuridão estavam se ajuntando, sentiram um retorno da animação e da coragem, pela lembrança dos severos conflitos do Cristão e sua gloriosa entrada pelos portões da cidade!” Cerca de um ano depois de sua publicação, uma cópia da obra de Edward Fowler, um clérigo de Bedfordshire, depois promovido ao bispado de Gloucester, intitulado O Desenho do Cristianismo, veio até as mãos de Bunyan e como ensinava doutrinas errôneas e perigosas, ele escreveu uma réplica para o texto. Sendo levado a isto por uma onda de sinceridade e atividade, que ele compôs um texto chamado “Uma defesa da doutrina da justificação pela fé em Jesus Cristo”, com 118 páginas de um quarto,162rigorosamente impresso, no espaço de quarenta e dois dias. 16 Estilo de dobrar as folhas dos textos em quatro, usados na época do autor (N.T.).


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Os controversos textos de Bunyan, são marcados, via de regra, por uma calma e dignidade singulares, mas em resposta à Fowler, ele usa uma considerável quantidade de linguagem forte. Ele o chama de “homem brutal e bestial, um culto Nicodemos ignorante, um blasfemo. Alguém que arrancaria os portões do céu de suas dobradiças, um anjo das trevas”. Falando sobre a necessidade de vir a Deus através de Cristo, ele cita: “Mas este ladrão gostaria de subir e buscar ir a Deus por outros modos.” Em outro lugar, ele afirma: “O que diz você sobre opinião duvidosa, apesar dos modos, ritos e circunstâncias na religião? Eu não conheço ninguém tão devotado àquilo quanto você - esta gangue do seu clero tagarela de imitação, que geralmente fala como o macaco, que arranca aplausos e glória de suas tolices e como o seu séquito, com suas discussões tolas e sofísticas, você cobre as suas partes imundas.” Bunyan diz a ele “que você mesmo é um deles, que com seu livro severamente e perversamente, de modo demoníaco transformou a graça de Deus em uma doutrina lasciva, dando liberdade ao relaxamento e endurecendo os que estão longe de Deus na iniquidade na qual, se você persistir, eu não falharei (se eu viver e souber, se for ajudado por Deus para fazer isso) em descobrir ainda mais adiante a raiz de suas doutrinas, com suas detestáveis tendências. ... Do começo ao fim, de cima abaixo, é um livro amaldiçoado e blasfemo; um livro que transforma Jesus mais em vilão do que os próprios quakers o fizeram! Você participou aqui difamando e pisando no sangue do Senhor Jesus, preferindo a choradeira de sua própria mente a Ele, e assim apenas desenhou seu próprio quadro e deu ao seu leitor uma ideia de quem você é”. Para aqueles que são familiarizados com a literatura controversa daquela época, o que vem a seguir não parecerá uma grande ofensa ao bom gosto e nós ficamos perdidos e não conseguimos entender porque Macaulay falou como se Bunyan tivesse injuriado Fowler “com uma ferocidade que nada pode justificar, mas que o nascimento e a criação do honesto funileiro de algum


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modo pôde desculpar”, uma vez que o bispo que deveria ser, e foi criado para ser, um cavalheiro, era um transgressor ainda maior que Bunyan no que diz respeito às boas maneiras. A maneira exaustiva e a destreza com que Bunyan lidou com esta obra evocou uma resposta sob o título de Dirt Wipt Off; or a manifest discovery of the gross ignorance, erroneousness e wicked spirit of John Bunyan, lay preacher in Bedford, which he hath shewed in a vile Pamphlet published by him, against the Design of Christianity (A Sujeira varrida; ou um manifesto da descoberta da dura ignorância, estado de erro e espírito ímpio de John Bunyan, pregador leigo de Bedford, o qual mostrou num panfleto vil publicado por ele, contra O desenho do cristianismo). O próprio título é um espécime maravilhoso da caridade do clero. Em seu prefácio ao leitor, ele diz: “Sei que tu serás tentado a imaginar, como qualquer pessoa prudente poderia se convencer a usar sua arte contra uma obra de orgulho tão lamentável e desprezar-se a ponto de poluir seus dedos com uma criatura tão suja como é a pessoa com quem eu tenho de lidar nas páginas a seguir... Eu nunca empreendi algum negócio que fosse contra a precisão como este fez, nem posso mais negar-me a qualquer coisa que se ache superior, mas a consideração de que há algo de necessidade neste caso prevaleceu sobre mim e derrubou meu espírito. Não que haja nada que este John Bunyan tenha publicado contra O desenho do Cristianismo que um leitor inteligente possa ver de outro modo que não com desdém e deboche... Pois eu professo sinceramente que nunca soube de qualquer pessoa que se expusesse tanto, nem desse tantas vantagens ao seu adversário para descobrir sua vergonhosa ignorância, seu erro, sua desonestidade e a base de sua natureza, como este fez neste livro.” Precisamos explicar que a réplica é escrita como se por um amigo do Sr. Fowler, um subterfúgio que nunca poderia desculpar tais expressões não caridosas, referindo-se ao crítico que de tal forma levantou sua a ira. Desculpando-se ainda um pouco mais por entrar na guerra com um combatente tão humilde


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e sem cultura, ele fala que “é impossível para ele fazer tal coisa como desgraçar os textos ou a pessoa do Sr. Fowler, por todos os seus grupos, assim como não se pode eclipsar a lua latindo para ela, ou fazer palácios ruírem por levantar contra eles as suas pernas”. O infeliz e mal dirigido J.B. é instruído “que o Sr. Fowler lucra muito mais trabalhando do que escrevendo respostas à estes rabiscos miseráveis, mas se tivesse tempo, não seria facilmente persuadido a conceder tal honra a rabiscos tão ousados e rudes”. Ele está muito ansioso para mostrar que não valoriza nada que J.B. possa escrever contra ele e que não “estará nem um pouco preocupado com os latidos bestiais de tal criatura”. No corpo do panfleto ele diz: “Apelarei agora para a Autoridade, se este homem deve desfrutar de qualquer interesse na tolerância de sua majestade, que está longe de estar satisfeito com sua própria liberdade, pois encontra-se numa posição detestável diante do Ministro da Igreja, também do livro licenciado pela autoridade e de todos os Ministros da Igreja juntos e da mesma forma a disciplina e os ritos estabelecidos. Se deixarmos esses criadores de caso, esses insolentes que incitam divisão maliciosa ficarem impunes, não tenderemos à subversão de todo o Governo? Eu digo que deixe nossos superiores julgar este caso”. Mal sabia ele que o real caráter do homem com quem ele estava lidando fica evidente pela próxima citação: “Mas com que expressão pode este homem vil acusar o livro do Sr. Fowler, quando sua própria consciência deve precisar contar a ele que a única coisa que o faz lançar seu veneno deste modo é que sua forma tira toda a sombra de pretensão para a sua suja libertinagem e loucos princípios?” Ele despede-se de seu oponente e de seu leitor depois de citar os termos duros usados por aquele contra ele dizendo, “Portanto, tu vês que se o Sr. Fowler for tão demoníaco e terrível quanto J.B. diz, este erudito apertará as mãos dele”. Nós certamente pensamos que ele deve ter feito isso com boa consciência: a “ferocidade” do funileiro, para usar a frase de Macaulay era inferior em todas as formas àquela do erudito que depois se tornou bispo.


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Através de todas as suas expressões de desprezo por seu humilde oponente, pode-se ver prontamente como ele se sentia: naquela época não podia nem sonhar que o livro do qual falava ao seu leitor, “que todos os homens bons devem ter uma afeição por ele” é apenas conhecido pelo nome por milhares porque o humilde funileiro achou que devia escrever-lhe uma réplica. Um exame dos escritos religiosos deste período prova que não há necessidade de desculpas para o jeito rude ou áspero de Bunyan se expressar. Seu estilo era espelhado nos dos melhores livros, a Bíblia, e é singularmente conciso, forte e idiomático; suas ilustrações são frequentemente deselegantes e são ainda melhores por isso. Seu argumento é sempre claro e é o resultado de uma convicção honesta. Na era do preconceito, especialmente nas questões religiosas, ele está livre dele de modo singular e sua teologia é a dos cristãos de mente liberal e aberta e não a de um sectário. Antes de Bunyan ser posto em liberdade, foi apontado ao pastorado de sua igreja e nós achamos, pelos escritos nos livros da igreja, que através da indulgência de seu carcereiro, ele tinha permissão para sair da prisão de vez em quando para visitar seus amigos e família e cultuar com eles. Mais ou menos nessa época, ele entrou numa controvérsia com os Batistas quanto ao batismo de imersão ser um pré-requisito para a Ceia do Senhor. Bunyan tinha a visão mais liberal e iluminada sobre o assunto, que desde então tem sido advogada por eminentes teólogos. Em seus dias a promulgação de sua visão liberal sobre o assunto exigiu muita coragem, o expôs ao abuso de muitos e a desentendimentos. Sua obra sobre o assunto foi a última publicação lançada da prisão, chamada de Uma confissão da minha fé e razão da minha prática; ou, com quem posso e com quem não posso ter comunhão dos santos, demonstrado por argumentos divinos, que embora não ouse comunicar com os abertamente profanos, ainda assim posso fazê-lo com os santos visíveis que diferem acerca do batismo das águas.


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Bunyan recebera a promessa de um prefácio laudatório da parte do Dr. Owen, mas não foi acessível, ao que ele observou de maneira muito pertinente que talvez fosse “mais para a glória de Deus, que a verdade viesse nua ao mundo, do que secundada por um escudeiro tão poderoso quanto ele”. Vários de seus oponentes o atacaram com severa amargura. O fato de que tinha sofrido aprisionamento por causa de sua consciência deve tê-lo salvo de ser comparado com a serpente que seduziu nossos primeiros pais e com Zimri17 , que assassinou seu mestre. Um dos oponentes de Bunyan era um certo Sr. Kiffin e, em conexão com esta controvérsia, temos as seguintes afirmações sarcásticas sobre ele nas obras de Robinson. “Eles (os oponentes de Bunyan) chamavam seus argumentos de demoníacos, topo da ignorância e preconceito; mas nisto os perdoamos, pois John era um funileiro sem prato ou colher e, na melhor das hipóteses, apenas um pregador do interior; o Rev. William Kiffin era um ministro de Londres, que valia 40.000 libras”. Sem dúvida isto fez uma grande diferença entre muitas pessoas daquele tempo, mas quem liga para o Rev. Kiffin agora e quem, por todo o mundo cristão, não liga para o funileiro de Elstow? Quão poderosos são dinheiro e posição enquanto seus possuidores estão vivos! É apenas a honestidade e a verdade que vive e cresce; quando soma-se à isso a genialidade, eles vivem através dos tempos, venham de onde vierem - não, a prática deste mundo é tão peculiar que dificilmente se fará justiça a um homem de baixa posição nos seus dias, enquanto um predecessor, que em seu tempo sofria em circunstâncias semelhantes, será reverenciado ainda mais por causa de seu nível social baixo enquanto vivia. O que Bunyan disse de Kiffin não tem valor, principalmente por ter traído seu temperamento sempre calmo e estável. Ele diz: “O que o Sr. Kiffin fez, eu perdoo, e não o amo menos, mas devo defender meus princípios, porque eles são pacíficos, lucrativos e como tais tendem à edificação do meu irmão e, como eu creio, 2

17 Zimri - príncipe da tribo de Simeão, durante o tempo dos israelitas no deserto (N.T.).


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será justificado no dia do julgamento.” Temperamento calmo e fé intensa como esta de tal homem deveria ter desculpado o erro, ou pelo menos lhe poupado as aspersões severas de homens cristãos. Depois de o governo ter perseguido sem pena os não conformistas por doze anos, um decreto real foi liberado, permitindo a estes que se reunissem para adorar em lugares separados e propriamente licenciados para este propósito; os pregadores também deveriam ter licença. Na declaração o rei diz: “que este esforço pelos direitos e interesses da igreja foram suficientemente manifestados a todo mundo por todo o curso de Nosso Governo, desde a Restauração Feliz e pelos muitos e perfeitos caminhos da Coerção que Nós temos usado para reduzir o número das pessoas que erram e que são dissidentes e para compor as diferenças infelizes que ocorrem nas questões de religião, que Nós achamos entre Nossos assuntos sobre o Nosso Retorno: Mas estando evidente pela triste experiência de doze anos que há muito pouco fruto em todas estas árvores frutíferas, penso que sou obrigado a fazer uso do Supremo Poder em Questões Eclesiásticas, que não é apenas inerente a Nós, mas foi declarada e reconhecida ser, por vários Estatutos e Atos do Parlamento etc.” E assim continua para indicar a extensão da clemência real. Que humilhante foi para este rei e este governo confessar isso! Depois que esta declaração foi feita, os que eram prisioneiros por causa da sua consciência foram tratados mais humanamente. Bunyan, que durante quase todo o período de seu confinamento gozara de uma quantidade incomum de liberdade, podia agora ir para casa e fazer quase tudo o que quisesse. Foi neste tempo que foi eleito pastor da congregação. A casa de Josias Roughead, que tinha sido roubado apenas alguns meses antes por causa das multas impostas pelo Não conformismo, foi registrada como um lugar para culto e Bunyan foi licenciado como seu pastor. As palavras de sua licença não podem deixar de interessar nossos leitores. Seguindo a velha ortografia:


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Charles R. para todos os pre- Licença de Bedford para John feitos, meirinhos e outros dos Bunyan ser um professor na casa Nossos Oficiais e Ministros Civis do Josias Roughead, 9 de maio de 1672. e Militares a quem possa interessar, Saudações. Em cumprimento de nossa Declaração de 15 de março de 1671/2, nós daqui para a frente permitimos e licenciamos John Bunyan a ser um Professor da Congregação, com permissão dada por Nós na casa de Josias Roughead, Bedford, para o uso da qual que não é conforme a Igreja da Inglaterra, nós que somos da Persuasão, normalmente chamados de Congregacionais. Com licença adicional e permissão ao mencionado John Bunyan para ensinar em qualquer outro lugar Licenciado por nós, de acordo com nossa já mencionada declaração. Dada na nossa corte de Whitehall, no dia 9 de maio no 24o ano de nosso regime, 1672. Por sua ordem, Arlington. Até poucos anos atrás, acreditava-se que a libertação completa de Bunyan da prisão, devia-se à intercessão do Dr. Barlow, o Bispo de Lincoln. Através das investigações zelosas do Sr. George Offor, de cujos elevados serviços à literatura e à biografia de Bunyan nós já citamos, aprendemos que sua liberação e a de muitos outros, devem-se a uma intercessão de um tipo muito mais romântico e interessante. Temos espaço apenas para um breve recital das afirmações mais interessantes do Sr. Offor. Depois da desastrosa derrota em Worcester, quando Charles estava se escondendo pelo país afora e o Parlamento oferecia mil libras por sua captura, ele achou um jeito de chegar à Brighton, então uma pequena aldeia de pescadores, onde seus amigos conseguiram contratar um pequeno barco de pesca para levá-lo à França. O barco estava indo para Poole com uma carga de carvão, o Rei e seu acompanhante, Lorde Wilmot,


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passando por mercadores fugindo de seus credores. “Eles deixaram Shoreham” (citamos a narrativa do Sr. Offor): “às sete da manhã; e às cinco, fora da Ilha de Wight, com o vento norte, o navio partiu para a França; o Rei fugitivo e seu companheiro aportaram próximo de Fecam, NAS COSTAS DE UM QUAKER, e o navio cruzou o canal de novo para Poole, sem ninguém saber que tinha saído do seu curso.” Este quaker era John Groves, imediato do navio, e somente ele e o capitão sabiam o valor da carga viva que tinham transportado. Anos se passaram e o humilde quaker passou de segundo homem num barco de pesca a imediato de um West Indiaman, e ainda assim nunca se apresentou ao Rei que servira de modo tão nobre. Mas finalmente, a cruel perseguição aos membros do seu grupo, o levou a ir até o Rei e pedir sua libertação. Nenhuma ideia de se beneficiar passou-lhe pela mente. O Rei lhe deu uma entrevista e o reconheceu de pronto, prometendo considerar seriamente a questão. Charles, que não queria astúcia, deve ter ficado maravilhado diante deste humilde marinheiro, que lhe prestou um serviço tão notável, mas não havia aparecido anos antes em Whitehall. Podemos imaginar suas bem-humoradas zombarias à custa dos cortesãos, infinitamente menos merecedores, que estavam diariamente lhe perturbando, pedindo favores e preferências. O Rei, a princípio, prometeu libertar pelo menos seis quakers que conhecia pelo nome, mas o leal John Groves não ficou satisfeito com isso, e outras influências foram trazidas à consideração do complacente Rei, de modo que o nome de outros 471 prisioneiros foram anexados a um perdão concedido pelo Rei. Mais de noventa por cento destes eram quakers, pois a influência junto ao Rei se deu por parte de membros eminentes deste grupo e seus amigos mas, que seja dito para a sua honra, Bunyan e um considerável número de Não conformistas devem sua liberação à intercessão dos quakers. Um perdão era um assunto caro naqueles dias. Era calculado em 30 libras por cabeça em taxas antes que os contemplados pudessem buscar libertação


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e os quakers interferiram, conseguiram reduzir as taxas e coletaram o dinheiro que era necessário entre eles, concluindo seu nobre serviço. É uma pena pensar que muitos dos proprietários de terras, que faziam parte da pequena nobreza, esforçaram-se até o limite para lançar impedimentos no caminho destes pobres sofredores. O Sr. Offor aponta que no documento de libertação o nome de Bunyan foi escrito de quatro modos diferentes. O nome de cada pessoa era repetido onze vezes e o de Bunyan foi escrito cinco vezes como o fizemos agora, três vezes Bunnyan, duas vezes Bunnion e uma vez Bunnyon. Foram libertados junto com ele da prisão de Bedford: John Fenn, John Dunn, Thomas Haynes, George Farr, James Rogers, John Curp, John e Tíbitha Rush. John Bunyan foi aprisionado no dia 13 de novembro de 1660 e foi libertado em novembro ou dezembro de 1672. No seu livro Graça Abundante, ele nos conta que seu aprisionamento durou doze anos completos. Na continuação de sua vida, anexado à Graça Abundante, escrita por um de seus amigos, sabemos que “Quando ele veio novamente para fora, descobriu que seus negócios seculares tinham falido; tinha que começar de novo, no que dizia respeito a eles, como se tivesse acabado de nascer. Mas não estava destituído de amigos, que por todo tempo tinham-no apoiado com o que era necessário e que tinham sido muito bons para a sua família; desse modo, com sua assistência, ajeitando um pouco a sua vida, ele decidiu que tanto quanto possível, declinaria dos luxos do mundo”. Se ele residia em Bedford no tempo de sua prisão não sabemos com certeza, mas depois disso, sua família viveu lá num pequeno chalé e ele ali continuou até a sua morte. Era um chalé tão humilde em aparência quanto o de seu pai em Elstow. O Rev. J. G. Geard, de Hitchin, em seu Diário, no dia 17 de julho de 1774, cem anos depois da libertação de Bunyan, quando a propriedade tinha aumentado de valor consideravelmente, diz: “Eu preguei pela primeira vez em Bedford aos sucessores da congregação do bom Sr. Bunyan e no dia seguinte fui a casa onde ele viveu e


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entrei no quarto que a tradição diz que era seu escritório. Esta casa, embora tenha sido a habitação de um homem tão grande, agora custava apenas quarenta shilings por ano.” Pouco agora resta a ser contado, salvo que sua popularidade como pregador cresceu rapidamente e deu fruto abundantemente. Ele fez peregrinações por todo o país e por Londres. Multidões de todos os lugares se reuniram para ouvi-lo falar. Em Londres, até 1.200 pessoas se reuniram às sete da manhã, uma circunstância sem igual, até onde sabemos, até aos dias de Wesley, Whitefield e Edward Irving. Como falsas continuações de O Peregrino foram lançadas em seu nome e vendidas por vendedores de livros desonestos, ele foi levado, em 1684, a escrever e lançar uma segunda parte e esta, diferente da maioria dos segundos esforços de uma certa linha, foi com merecimento tão popular quanto a primeira. Bunyan sofreu grande perseguição e os escárnios e zombarias dos vis e irracionais, mas manteve-se em seu caminho com uma singularidade de mente e propósito no seu chamado que nada pôde intimidar ou impedir. Em 1682, ele preparou e publicou o que o Sr. Offor chama muito justamente de “sua alegoria mais linda e profunda”: A guerra santa, feita por Shaddai sobre Diabolus, para retomar a Metrópole do Mundo; ou A perda e a tomada da cidade de Mansoul. Esta alegoria nunca foi tão popular como O Peregrino, embora quanto ao interesse e execução chegue bem perto de seu antecessor. O diabo é o Inimigo, e o homem é a Cidade. Tendo tomado posse de Mansoul182e colocado as tropas de seus servos nela, que representam todos os maus pensamentos dos quais o homem é herdeiro, ele propõe um cerco pela posse da cidade, contra Emmanuel. Mas Emmanuel tem um exército igualmente numeroso, composto do material mais digno, representando todas as virtudes que devem adornar o cristão; depois de uma luta desesperada, ele ganha o dia. Suas experiências no 18 Mansoul é um tipo de trocadilho do autor, pois se parece na escrita com man’s soul, que significa a alma do homem (N.T.).


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campo Real vêm ao seu auxílio aqui, embora, talvez por amor às coisas e costumes antigos, a guerra é feita com armas que então eram obsoletas, que pensamos aumentar o interesse e o efeito. Esta obra é digna do mais cuidadoso exame. É mais rica do que qualquer outra de suas obras em forte sátira e vigoroso humor, de linguagem trabalhada, notável por sua força e clareza idiomática. Em 1685, ele fez um documento de doação, investindo todas as suas posses em sua esposa e, salvo suas obras ainda não publicadas e as publicadas nas quais ele tinha um sócio, seu valor na época era pequeno. O documento é selado com uma moeda de prata de dois centavos. O documento original ainda existe e está religiosamente preservado no livro da igreja de Bedford. Neste documento ele fala de si mesmo como um caldeireiro (fabricante de caldeirões), de modo que é provável que tenha seguido seu humilde chamado quando não estava pregando ou visitando. Nos últimos anos de sua vida foi eleito capelão de Sir John Shorter, Lorde Prefeito de Londres. Isto é registrado na Correspondência de Ellis, onde é comumente designado como um operário. Sua saúde depois da libertação era muito incerta, e parecia ansiar pela possibilidade de que a morte o tomasse repentinamente durante os últimos dezesseis anos de sua vida. Seu incessante trabalho pastoral e literário, somado ao longo confinamento que sofreu, vagarosamente desgastaram sua constituição originalmente forte e, um pouco antes de sua última doença, sua força tinha sido grandemente reduzida por um ataque de doença do suor, um mal misterioso e terrível daqueles dias. Quando mal havia se recuperado, ele partiu para Reading, numa jornada de misericórdia. Um pai tinha brigado com seu filho e ameaçava deserdá-lo. Bunyan foi ao pai como um pacificador e teve sucesso em sua missão. Ele voltou por Londres, para transmitir a notícia tão desejada ao filho e se molhou com a pesada chuva que prevaleceu durante a jornada e chegou a casa de seu amigo, o Sr. Strudwick, em Snow Hill, num estado de exaustão, que desenvolveu


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um ataque de febre. Seus sofrimentos, suportados com paciência, terminaram na sua morte dez dias depois de sua chegada em Londres. A data de sua morte varia. Charles Doe diz que ocorreu em 31 de agosto de 1688, enquanto outras autoridades vivas naquele tempo dizem que foi entre 12 e 17 daquele mês. A data exata é questão de pouca importância. Daria muito prazer a milhões de leitores se pudéssemos saber que sua nobre e devotada esposa esteve com ele no fim, do que decidir tal questão, mas os biógrafos ficam em silêncio neste assunto. Os restos de John Bunyan foram colocados na catacumba de seu amigo, o Sr. Strudwick, no cemitério de Bunhill Fields; foi tão grande a reverência para com ele, que muitos, quando estavam morrendo, desejavam ser enterrados perto dele, tanto que mais tarde o chão já não mais os continha. Ele teve seis filhos com sua primeira esposa, três sobreviveram depois de sua morte - Thomas, Joseph e Sarah. Thomas era um pregador e continuou a exercer seu chamado até 1718. Joseph se estabeleceu em Nottingham e depois de fazer um casamento lucrativo, se uniu à Igreja da Inglaterra. O Sr. Offor diz: “Uma descendente dele estava viva em 1847, em Islington, 84 anos, a Sra. Senegar, uma agradável mulher de bom coração, e Batista severa”. Sua viúva o seguiu para o túmulo em 1692. Sua filha cega, cuja condição desamparada o emocionou tanto durante os primeiros anos de seu confinamento, morreu anos antes dele. Charles Doe descreve sua aparência: “Ele tinha a aparência de ser de um temperamento rude e forte, mas sua conversa era mansa e afável, não dado à loquacidade ou muito discurso em público, a menos que alguma ocasião urgente assim exigisse. Observava, mas nunca para se gabar ou aos seus amigos, mas parecia ser pequeno a seus próprios olhos e submetia-se ao julgamento dos outros, detestava mentir e praguejar, sendo justo em tudo que estava sob seu poder, não parecia se vingar de injúrias, amava reconciliar diferenças e fazia amizade com todos. Tinha um


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olhar rápido e agudo, acompanhado de um excelente julgamento das pessoas e era rápido em fazê-lo. Quanto à sua pessoa, ele era alto, embora não fosse corpulento, tinha uma face um tanto rude, com olhos faiscantes, usava bigode, como era moda na época na Inglaterra. Seu cabelo era ruivo, mas nos últimos dias estava salpicado de cinza; seu nariz bem ajustado, mas não caía nem ficava pendurado e sua boca moderadamente grande; sua testa era um tanto alta, e seus hábitos sempre simples e modestos. Portanto, imparcialmente descrevemos as partes internas e externas de uma pessoa, cuja morte foi muito sentida. Uma pessoa que provou os sorrisos e a testa franzida do tempo. Que não se encheu de si na prosperidade, nem se encolheu na adversidade. Sempre mantendo o compromisso ideal. “Historiador, Poeta e Teólogo superior três grandes Dignos nele uma vez brilharam Então até a ressurreição dos justos na poeira imperturbável descansar o deixaram.”

Em 1685, ele manifestou seu providente cuidado para com aqueles que dependiam dele, executando um documento de doação deixando tudo o que tinha para a sua esposa. Ele não o fez meramente pela visão da incerteza da vida, mas para que o pouco que ele possuía não pudesse ser arrancado dele através de multas e penalidades impostas por pregar a palavra de Deus. Este documento, que está no livro da igreja em Bedford, está selado com uma moeda de prata de dois centavos, e é o seguinte: “A todos a quem possa vir este presente texto, J. Bunyan, o pároco de St. Cutbirt, na cidade de Bedford, no distrito de Bedford, Brazier, saúda. Vocês sabem, que eu, o dito John Bunyan, em consideração pela afeição natural e amor que tenho pela minha querida esposa, Elizabeth Bunyan e também por diversas outras boas causas e considerações, nesta presente manhã, dei e concedi, perante estes presentes aqui, dou e concedo para a dita Elizabeth Bunyan, minha esposa, todos e cada um dos meus bens e haveres, dívidas, dinheiro disponível, pratos, anéis,


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objetos da casa, vestes, utensílios, objetos de latão, vasilhas de estanho, roupa de cama e todas as outras coisas, móveis e imóveis, de qualquer tipo, natureza, qualidade ou condição em que estejam ou venham a estar e em qualquer lugar em que estejam ou venham a ser achados, que estejam sob minha custódia, posse, e de posse, nas mãos, poder e custódia de qualquer outra pessoa, ou pessoas. Irá possuir todos e cada um dos já mencionados bens e haveres, dívidas e todos os outros já mencionados bens de propriedade, a já mencionada Elizabeth, minha esposa; seus testamenteiros e administradores, e designo para ela e seu próprio uso, livre e silenciosamente, sem qualquer desafio, clamor ou exigência de minha parte, John Bunyan, ou de qualquer outra pessoa, ou pessoas, quer seja em meu nome, por minha causa ou procuração e sem qualquer dinheiro ou qualquer outra coisa que seja entregue, paga ou feita para mim, o dito John Bunyan e meus testamenteiros ou administradores. E eu, John Bunyan, deixo todos e cada um dos acima descritos bens e haveres e bens de propriedade para Elizabeth Bunyan, minha esposa, seus testamenteiros, administradores e cessionários para o uso já descrito, contra todas as pessoas garanto e defendo através destes presentes. E, além disso, saibam que eu, John Bunyan coloco Elizabeth, já mencionada, minha esposa, em posse pacífica e quieta de todos e cada uma das propriedades já mencionadas, pela entrega a ela, com a colocação de um selo neste de uma moeda de prata, comumente chamada de dois centavos, fixada com o selo destes presentes. * Em testemunho do qual, eu, John Bunyan, aqui coloco minha mão e selo neste vigésimo terceiro dia de dezembro, no primeiro ano do reino do nosso senhor soberano, Rei James Segundo da Inglaterra etc, no ano de 1685 de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. 2

JOHN BUNYAN. * Uma parte da cera permanece, mas a moeda se perdeu - G.Offor


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Selado e entregue na nossa presença, cujos nomes estão aqui subscritos. JOHN BARDOLPH. NICHOLAS MALIN.

WILLM HAWKES. LEWES NORMAN.

Elegias e poemas na época de sua morte surgiram em grande número. O seguinte texto é um exemplo favorável daqueles escritos pelos seus contemporâneos: UMA BREVE ELEGIA EM MEMÓRIA DO SR. JOHN BUNYAN, ESCRITO POR UM CARO AMIGO SEU.

O peregrino viajando pelo vasto palco do mundo Enfim termina sua cansativa peregrinação Ele agora se assenta em vales agradáveis E gloriosa coroa é da labuta a premiação. A tempestade passou, todos os terrores se foram Aqueles que em seu caminho tanto o assustaram; Ele não chora, nem mais suspira, sua corrida acabou Bem sucedidamente, que tão bem começou. Vocês dirão que ele está morto: Oh, não ele não pode morrer ele apenas mudou para a imortalidade. Não chorem por ele, pois não têm motivo para lágrimas; Calem seus suspiros e acalmes suas lágrimas desnecessárias. Se algo de amor por ele sente Segue seus passos e se arrepende. Se o conhecimento das coisas aqui de algum modo permanece depois do túmulo, para compensá-lo por suas dores e sofrimentos no mundo; viva, então uma vida correta E isto será para ele uma visão de alegria completa Siga em sua corrida como se de novo possam se encontrar, e sua conversa muito mais doce tornar; Quando purgado da impureza, possuirá, sem mistura a mais pura essência da alegria eterna. “No púlpito pregou a verdade em primeiro lugar, e então Ele na prática pregou-a de novo”


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Citamos a apóstrofe de Cowper para Bunyan por completo. É necessário dizer que ele se desculpa por não dar-lhe nome. Mesmo em seus dias, os eruditos e cultos não podiam dissociar o Autor do Funileiro. Ó, tu, que na asa impetuosa da fantasia nasceu, À feliz estação da primavera da vida retrocedeu, Eu alegre me lembro e não hei de esquecer Enquanto a memória aqui seu trabalho fizer; Engenhoso sonhador! Em cujas lendas bem contadas, A doce ficção e a doce verdade prevalecem enlaçadas. Cuja forte sensatez e estilo simples e veia bem humorada, Podem ensinar o mais alegre e fazer o mais sério sorrir; e como teu Senhor, sábia e bem empregada, Falando em parábolas sua palavra menosprezada. Não te nomeio, pois um nome tão desprezado Poderia trazer deboche para tua fama merecida Mesmo sendo transitória hoje a vida Isto traz aos meus castanhos uma mistura de cinza Reverencio o homem, cujo Peregrino o caminho marca E a alma no progresso até Deus embarca; A maioria ficaria feliz se os livros pudessem mostrar sua infância, e na idade adulta os agradar; O homem, o que o menino encantou aprovaria, E em paz, conforto e alegria, pelo menos, morreria, E não com maldições em seu coração, que roubou a gema da verdade de sua alma, a qual não guardou.

Em nosso tempo, seu humilde nascimento e circunstâncias modestas durante a sua vida, como vimos, criou a ocasião para uma frase de Lorde Macaulay, ao tratar de sua controvérsia com um oponente, que um pouco de amor teria prevenido. Nenhuma pessoa sociável de seu tempo foi mais moderada em seu discurso e certamente ninguém então, ou desde então, escreveu com convicção mais intensa, ou mostrou mais amor cristão ao lidar


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com seus opositores. Nele estavam unidos uma fé sincera, um intelecto de rápida clareza e vigor e uma simplicidade de caráter infantil, de um nível raramente encontrado na história da religião. Tais homens são dados ao mundo entre longos intervalos, e eles se levantam como faróis e exemplos para todas as gerações seguintes. Bunyan era tão genial quanto humilde. Embora verdadeiramente impressionado com a santidade do elevado chamado a que se devotou, ele não carregava tristeza ou seriedade desnecessária pelas preocupações comuns da vida. Mesmo seu ensino, seja oral ou escrito, era iluminado com conceitos vivos e singulares. Diz George Offor: “Entre seus amigos e associados religiosos, ele deve ter sido uma companhia cheia de vida, agradável e divertida. Embora solene, mais até, terrível, tenha sido sua experiência no Vale da Sombra da Morte, quando emergia das trevas e aproveitava o sol do favor divino, ele amava encontros sociais e a comunhão dos santos. É uma das calúnias lançadas sobre o cristianismo chamá-lo de um tema sombrio e melancólico: embora seja “melhor ir para a casa onde há luto que a uma casa em festa” (Eclesiastes 7.2), ainda assim o homem piedoso e sábio, mesmo numa festa elegante ou num jantar na casa do senhor prefeito, desejaria dizer frases úteis. Sempre que Bunyan descreve uma festa social, especialmente um banquete, ele sempre introduz um prato completo; e é singular, na abundância de publicações, que não tenhamos sido favorecidos com Problemas difíceis de resolver em encontros religiosos, por John Bunyan, ou Coleção de suas charadas piedosas. Portanto, na esplêndida festa real dada para Emanuel, quando ele entrou em Mansoul triunfantemente, “ele divertiu a cidade com algumas charadas curiosas, de segredos tirados da escrivaninha de seu pai, pela habilidade e sabedo������� ria de Shaddai, do tipo que não há em nenhum reino”. “Emanuel também esclareceu ele mesmo algumas destas charadas para eles, mas Oh, como estavam deliciados! Eles viram o que nunca viram, nunca puderam pensar que tais raridades coubessem em


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tão poucas e simples palavras. O cordeiro, o sacrifício, a rocha, a porta, o caminho.” “O segundo Adão foi antes do primeiro, o segundo pacto foi antes do primeiro”. “Adão era mau antes de comer o fruto proibido?” “Como pode um homem fazer suas orações sem dizer uma palavra?” “Como os homens falam com seus pés?” “Resposta Provérbios 6.13.” “Por que os vasos para ablução dos sacerdotes eram feitos dos espelhos das mulheres?” “Como podemos compreender que algo não pode ser compreendido ou saber aquilo que traz conhecimento?” “Quem foi o fundador do estado ou da dominação dos sacerdotes sobre a religião?” “O que quer dizer o tambor de Diabolus e outras charadas mencionadas na Guerra santa?” Passaram-se muitos anos antes que uma inscrição fosse colocada sobre seu túmulo. Em 1849, a igreja de Bedford, na qual Bunyan tanto pregou, foi demolida e um belo edifício de pedras surgiu no seu lugar. O dinheiro de sua construção foi levantado por contribuições e o prédio foi desenhado como uma homenagem a John Bunyan. No presente ano, uma estátua de Bunyan foi inaugurada em sua cidade natal pelo duque de Bedford. O lugar e entendemos que uma grande parte dos fundos necessários para a execução, foram doados pelo duque. Março de 1874.




O PEREGRINO John Bunyan

Parte I



Capítulo I

A

medida que eu caminhava através deste mundo desolado, cheguei por acaso a um lugar onde havia uma caverna1 , parei para descansar ali e peguei no sono. Enquanto eu dormia, tive um sonho. E olhando, vi um homem vestido com trapos imundos,* de pé em certo lugar, e o seu rosto estava voltado em direção à sua casa; ele tinha um livro em suas mãos e um grande fardo estava preso às suas costas. Eu olhei e o vi abrindo o livro, e lendo o que estava escrito nele. Ele começou a chorar e a tremer, e não foi capaz de se conter por muito tempo, iniciando um grande clamor,2 e dizendo: “O que devo fazer?”* 2

1 A prisão. Bunyan escreveu este precioso livro na prisão de Bedford, onde ficou encarcerado por causa de sua religião. A seguinte história é contada a respeito dele: Um quaker* foi até a prisão visitá-lo e lhe disse o seguinte: “Amigo Bunyan, o Senhor me enviou para lhe encontrar, e estive em várias regiões do país à sua procura. Agora estou feliz porque finalmente o encontrei.” Ao que Bunyan replicou: “Amigo, não há verdade em suas palavras quando você diz que Deus o enviou. Deus sabe muito bem que estou nesta prisão há alguns anos e, se Ele verdadeiramente o tivesse enviado, o teria mandado diretamente a este lugar”. * Quaker: Sociedade dos Amigos – Grupo religioso de tradição protestante, criado em 1652 pelo inglês George Fox. Os membros desta sociedade, ridicularizados com o nome de quakers, ou tremedores, rejeitam qualquer organização clerical, para viver no recolhimento, na pureza moral e na prática ativa do pacifismo, da solidariedade e da filantropia (N.T.). * Isaías 64.6 2 O lamento de um pecador consciente, que tem uma visão de sua justiça como trapos imundos, uma alma cheia de ira, em um estado miserável; exposta à condenação eterna. Sentindo o peso dos pecados sobre seus ombros, ele desvia o olhar de sua casa, de si mesmo e de todas as falsas esperanças e da vã confiança que possui, em busca de refúgio. Ele leva sua Bíblia na mão para mostrá-lo para onde ir à procura de refúgio e salvação. Quanto mais um pecador lê a Bíblia, mais ele se convence da condição miserável e da ruína de sua preciosa alma imortal; da sua necessidade de correr em direção a Cristo em busca de salvação e da vida eterna. À medida que lê, o pecador treme e chora ao pensar o que será dele. Leitor, você já passou por essa experiência? Já enxergou a verdadeira face dos seus pecados e sentindo o peso deles sobre si, clamou com a alma angustiada: O que tenho que fazer para ser salvo? Se você ainda não passou por essa situação, enxergará este livro apenas como um romance ou uma história que não tem nenhuma relação com a sua própria realidade. Talvez fosse mais fácil entender este livro se ele fosse escrito em uma língua desconhecida. Como você é carnal, morto em seus pecados, ainda jaz nos braços da maldade e da falsa segurança. Este livro é sobre coisas espirituais e só pode ser entendido por almas espiritualmente vivificadas, que já tenham experimentado a salvação em seus corações, as quais começam a ter um pequeno vislumbre, uma vaga ideia do que é o pecado, do medo da condenação eterna. E é somente por isso que os peregrinos começam a jornada da cidade da destruição para o reino celestial. * Atos 2.37; 16.30


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Foi neste estado, portanto, que ele voltou para o seu lar e tentou controlar-se o quanto pôde para que sua esposa e seus filhos não percebessem sua aflição. Mas ele não conseguiu ficar em silêncio por muito tempo, porque seu tormento crescia cada vez mais. Depois de um tempo, ele dividiu com sua esposa e seus filhos o que se passava com ele. “Minha querida esposa”, ele disse, “e vocês, filhos das minhas entranhas. Eu, seu grande amigo, estou arruinado por causa do fardo que carrego comigo; além disso, fui informado que esta nossa cidade* será consumida pelo fogo dos Céus, na qual subjugados pelo medo, ambos, minha esposa e eu, e vocês meus filhos amados, estaremos destinados à ruína, a não ser que de alguma forma encontremos um escape – e até agora não vejo nenhum, pelo qual possamos ser salvos”. Com isto, seus parentes ficaram perplexos,32não porque eles acreditassem que ele havia dito a verdade, mas porque pensavam que algum tipo de insanidade havia tomado conta de sua mente. Quando a noite chegou, acreditando que o sono talvez o acalmasse, eles o levaram para a cama43o mais rápido possível. Mas a noite era tão angustiante para ele quanto o dia. Por isso, ao invés de dormir, ele passou a noite entre lágrimas e suspiros. Então, quando amanheceu, eles já sabiam que ele iria dizer coisas cada vez mais terríveis. Ele insistia em contar-lhes a mesma história, mas eles estavam insensíveis às suas palavras. Sua família pensou que poderia curar o seu destempero sendo severa, exigente e ríspida com ele. Algumas vezes eles o desdenhavam, o repreendiam ou simplesmente o ignoravam – por esta razão ele começou a se recolher em seu quarto para orar, apiedando-se deles e também da sua própria miséria. Às vezes ele caminhava solitário pelos campos, outras vezes lia ou orava. E durante alguns dias, foi desta maneira que ele gastou seu tempo. Eu o vi depois de um tempo, enquanto andava pelos campos, e ele estava (como era de seu costume) lendo seu livro e tinha a mente em grande aflição. Conforme lia, rompeu em grande pranto, clamando como havia feito antes: “O que devo fazer para ser salvo?”*54 * Este mundo. 3 A convicção do pecado nos corações se revelará naqueles que estão ao nosso redor através da sua conduta e das suas atitudes. 4 Quando iniciamos o caminho da salvação, amigos carnais dizem que somos como loucos caminhando para destruição, e se utilizam de métodos carnais para “curar” nossa alma pecadora e doente. * Atos 16.30-31; Hebreus 9.27 5 Nenhuma pessoa faz qualquer esforço para se salvar, até ouvir o grito do seu coração clamando pela salvação da condenação eterna.


Capítulo I

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E vi também que ele olhava de um lado para o outro como se fosse começar a correr, mas percebi que continuava parado porque não sabia qual a direção seguir. Então olhei e vi um homem, chamado Evangelista, que vindo até ele, lhe perguntou: “Porque chora?” 6 2 Ele respondeu: “Senhor, eu percebi através deste livro que tenho em minha mão, que estou condenado a morrer, e depois a ser julgado. Mas descobri que não desejo a primeira condição e que não estou preparado† para a segunda”.73 Perguntou-lhe o Evangelista: “Porque não deseja morrer, já que esta vida é cheia de maldade?” O homem respondeu: — Por que o peso que carrego em minhas costas84vai me arrastar para um lugar mais profundo do que a sepultura, e vou descer até o Tofete.*E, senhor, se não estou pronto para ir para a prisão, não estou pronto para o julgamento, e nem dele para execução. Tais pensamentos me fazem chorar. — Portanto, disse o Evangelista. — Se esta é a sua condição, por que ainda continua parado? Ele respondeu: “Porque eu não sei para onde devo ir.” Então, o Evangelista deu ao homem um rolo de pergaminho, e nele estava escrito: “Fuja da ira vindoura”*95. O homem leu o pergaminho, e olhando para o Evangelista, perguntou com muita atenção: “Para onde fugirei?” O Evangelista apontou para além de um campo muito grande, e lhe perguntou: “Consegue ver, lá bem ao longe, uma porta estreita?”† “Não”, o homem respondeu. “E aquela luz brilhante,10 6também ao longe,‡ consegue vê-la?” “Acho que sim”, ele respondeu. 6 Observamos aqui o terno amor e o cuidado de Jesus, o grande pastor, o bispo das almas, para com o pecador aflito, carregando o pesado fardo do pecado, ao enviar-lhe o Evangelista, um pregador do evangelho da graça e das boas novas da salvação. 7 A verdadeira confissão de um pecador esclarecido. 8 O convencimento do Espírito de Deus no coração faz com que o homem sinta o insuportável peso do pecado sobre seus ombros, e tema a ira de Deus revelada dos céus contra o pecado. * Região do vale de Hinon, em Jerusalém, onde os cananitas sacrificavam crianças, queimando-as vivas em fornalhas ao deus Moloque. Por esta razão Tofete tornou-se um sinônimo para inferno (N.T.). 9 O evangelho nunca deixa um pecador confesso sem esperança ou alívio para a situação miserável em que se encontra, mas o conduz diretamente a Jesus para sua segurança e salvação, em quem ele poderá fugir de si mesmo, e deixar para trás a ira que possui dentro de si para se encher totalmente da graça de Cristo, representada aqui pela porta estreita. * Mateus 3.7 † Mateus 7.14 10 Cristo, e o caminho que conduz até Ele, não podem ser encontrados sem a Sua Palavra. A palavra aponta para Cristo e o Espírito trabalha nos corações, que é onde o pecador encontra Cristo na Palavra. É isto que torna a Palavra de Deus tão preciosa. ‡ 2 Pedro 1.19


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“Mantenha os olhos naquela luz, siga diretamente até ela, e encontrará a porta estreita,” lhe disse o Evangelista. “Quando chegar lá, você deverá bater, e lhe será dito o que deve fazer.” Depois de ouvir isso, o homem começou a correr, mas agora ele não ia mais em direção à sua casa. Quando sua esposa e seus filhos perceberam isso, começaram a chamá-lo pedindo para que ele voltasse.* Ele, porém, tapou os ouvidos com as mãos e correu, gritando: “Vida, vida eterna, vida eterna!” Sem olhar para trás†, o homem fugiu em direção à planície.112 Seus vizinhos também vieram ver12 o que acontecia. Enquanto ele corria, alguns debochavam, alguns o ameaçavam e outros gritavam para que ele voltasse. Entre eles, havia dois que resolveram trazê-lo de volta à força. O nome de um era Obstinado e do outro, Volúvel. A essa altura, o homem já estava a uma boa distância. Eles, entretanto, resolveram capturá-lo e em pouco tempo conseguiram alcançá-lo. E o homem lhes perguntou: “Vizinhos, por que vieram atrás de mim?” “Viemos persuadi-lo a voltar conosco,” eles disseram. Ao que o homem respondeu: “Não será possível; vocês moram na Cidade da Destruição (o mesmo lugar onde eu nasci). E eu vejo dessa maneira: se morrerem lá, cedo ou tarde vocês descerão mais fundo do que uma cova, para um lugar que arde em fogo e enxofre. Alegrem-se, bons vizinhos, e venham comigo.”13 — O quê?! — disse o Obstinado — e deixar nossos amigos e o nosso conforto para trás? — Sim. Porque o que vocês devem renunciar* não tem nenhum valor, se comparado a menor parte da alegria que estou buscando, — disse o Cristão (porque este era o nome deste homem). — E se forem comigo e observarem isso, encontrarão fartura, pois lá para onde vou, há bastante† para todos. Venham e certifiquem-se das minhas palavras. * Lucas 14.26 † Gênesis 19.17 11 Quando um pecador começa a fugir da condenação, seus relacionamentos mundanos se esforçarão para impedi-lo de continuar. É mais sábio parar de ouvir os argumentos da carne e do sangue, do que debater com eles. As paixões carnais não podem prevalecer sobre as convicções espirituais. O pecador, determinado em busca de salvação, deverá fazer-se surdo aos convites para retornar. Quanto mais ele for convidado a voltar, mais rápido deverá fugir. 12 Aqueles que fogem da ira vindoura servem de espetáculo para o mundo. 13 O genuíno espírito de um pecador consciente dos seus pecados fugindo da condenação. Ele se alegra em convencer outros pobres pecadores a seguir com ele. A graça de Deus se revela na boa vontade para com os homens. * 2 Coríntios 4.18 † Lucas 15.17


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Obstinado — Que coisas são essas que você busca? Por que deixou tudo o que há nesse mundo para encontrá-las? Cristão — Eu busco “uma herança que jamais poderá perecer, macular-se ou perder seu valor,‡ herança guardada e protegida nos céus§ para ser revelada nos últimos tempos”. Se desejarem, podem ler o livro. Obstinado — Ora, chega desse livro! Você vai voltar conosco ou não? Cristão — Não, eu não vou voltar. Já coloquei minha mão no arado.II Obstinado — Venha, amigo Volúvel! Vamos voltar para casa sem ele. Existem alguns homens que são como os bufões sem juízo, que quando colocam uma ideia na cabeça, insistem nela até o fim e se acham mais sábios aos seus próprios olhos do que sete homens de bom senso. Volúvel — Não o ofenda! Se o que o bom Cristão diz é verdade, as coisas que ele procura são mais importantes que aquelas que nós possuímos. O meu coração está inclinado a seguir com o nosso vizinho. Obstinado — O quê, também enlouqueceu?! Siga o meu exemplo e volte. Quem sabe para onde um homem insano como este irá levá-lo? Volte. Seja sábio e volte.142 Cristão — Não faça isso. Acompanhe o vizinho Volúvel. Existem muitas coisas valorosas que eu poderia mencionar e ainda outras glórias mais. Se você não crê no que digo, leia o livro: A verdade que é demonstrada neste livro é confirmada pelo sangue dele que fez isto.* Volúvel — Bem, vizinho Obstinado; tomei uma decisão. Eu pretendo acompanhar este bom homem e ter o mesmo destino que ele. Meu bom companheiro – ele perguntou ao Cristão – você sabe o caminho para o lugar que buscamos? Cristão — Um homem chamado Evangelista me orientou a ir direto até a porta estreita que está adiante de nós, além da planície. Lá chegando, deveremos receber instruções sobre o caminho. ‡ 1 Pedro 1.4 § Hebreus 11.16 II Lucas 9.62 14 Quem, por causa de Cristo, nunca pareceu um tolo aos olhos deste mundo ainda não se tornou sábio na salvação através da fé em Cristo * Hebreus 9.17, 21


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Volúvel — Vamos, bom vizinho, vamos continuar. E ambos partiram juntos. Obstinado — Eu vou voltar para minha casa. Não vou acompanhar esses homens desorientados.152

15 Podemos ver aqui os diferentes efeitos da verdade do evangelho sobre a natureza humana. Obstinado o rejeitou completamente. Já Volúvel ouviu essas verdades com alegria e acredita em algumas delas por algum tempo; e acompanha o Cristão durante uma parte do caminho.


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