A Redoma de Vidro - Representatividade Feminina nas Tecnologias Digitais e no Ciberespaço

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ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES - UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP) TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO COMUNICAÇÃO SOCIAL - PUBLICIDADE E PROPAGANDA

A REDOMA DE VIDRO Representatividade Feminina nas Tecnologias Digitais e no Ciberespaço

Beatrys Fernandes Rodrigues São Paulo, 2015



ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES - UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP) TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO COMUNICAÇÃO SOCIAL - PUBLICIDADE E PROPAGANDA

A REDOMA DE VIDRO Representatividade Feminina nas Tecnologias Digitais e no Ciberespaço

Beatrys Fernandes Rodrigues São Paulo, 2015

Trabalho de conclusão de curso apresentado para o Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Luli Radfahrer



À todxs aquelxs que encontram alguma redoma de vidro impedindo seu caminho: ela é quebrável. Não parem de martelar.


Agradecimentos Uma vez, quando eu tinha lá os meus 7 ou 8 anos, a diretora da minha escola de ensino fundamental chamou minha mãe à secretaria. Para essa diretora, eu tinha um problema gravíssimo que demandava tanta atenção a ponto de ocupar a agenda ocupada por trabalho dela: eu estava brincando apenas com meninos, de pega-pega, de futebol, conversando sobre meu Nintendo. Como uma criança feliz, eu não enxergava problema nenhum com isso. Felizmente, eu fui abençoada com uma mãe que também não via. Ao invés de me reprimir ou de me submeter à essas ideias, enfrentou aquela autoridade e apoiou as minhas amizades e gostos. Obrigada mãe, por toda minha vida apoiar quem eu sou, acreditar em capacidades que eu nem mesma acreditava que eu tinha: eu devo toda essa minha garra e espírito questionador a você. Obrigada por todos os “Como eu posso te ajudar com isso?” durante a elaboração dessa monografia - elas foram por muitas vezes força para continuar escrevendo. Espero um dia poder retribuir tudo o que você já fez por mim. É com grande pesar que me despeço da escola-da-minha-vidameu-amor. Mas dizem que aqueles que a gente ama nunca nos deixam de verdade. E eu sei sobre a veracidade dessas palavras porque devo muito de quem sou hoje pelas amizades e experiencias que vivi nesses 5 anos de ECA. Esses aprendizados vão seguir comigo para sempre. Obrigado a todos os que fizeram parte dele, professores inspiradores como Leleba, Clóvis, Roseli, Irene, Carrascoza, Dorinho e Eneus, entre outros. Também os ppéios, PPMATS11, veteranos, rpéios, ecanos, enfim - todos que compartilharam esses anos incríveis comigo, muito obrigada!


Um agradecimento especial também ao meu orientador Luli, que foi um grande incentivador não apenas durante todo esse trabalho, mas durante grande parte da minha vida acadêmica desde que entrei pela primeira vez na sua sala. Você conseguiu criar muita ordem do caos que é minha cabeça. Obrigada pelas conversas, pelas aulas, pelos textos, pelos livros e por topar mergulhar de cabeça nesse tema. Muito obrigada à Reitoria da USP e ao governo Canadense por me proporcionar os fundos para viver um 2014 cheio de aprendizados. Queria agradecer especialmente à professora Dayna McLeod, da Concórdia University por me mostrar como a teoria acadêmica podia ajudar a explicar muitos dos meus questionamentos. E também pela aula maravilhosa do professor Alex Enkerli, que me ajudou muito na elaboração dessa monografia. Muito obrigada também aos professores Robert Gehl, Wendy Faulkner e Brenda Berkelaar por responderem meus emails muito gentilmente me recomendando bibliografia. E obrigada Thaise por me ajudar durante todo esse processo da maneira mais eficiente que já vi na vida. Obrigada também, ECA Jr, por proporcionar 14 meses incríveis na minha vida e por me dar de presente uma nova família chamada 11/12. Devo grande parte da felicidade durante a minha vida ecana às pessoas que conheci nessa entidade. Obrigado especialmente aqueles amigos que me mandaram mensagens de apoio durante esses últimos meses e ouviram minhas lamentações ou conversas infinitas sobre o mesmo assunto. Carrego no meu coração vocês: Dods, Lia, Arthur, Davi, Cassiano, André, Renan, Natália, Mônica, Danilo, Beliza, Forms, Cauê e Eloah. Vocês me colocaram muito para cima e fazem minha vida mais feliz. Aos PPinheiros companheiros de muitos trabalhos madrugadores e altos e baixos da vida ecana: Diana, Henrique, Marina e Jéssica: dava certo porque eram vocês!


Seus posts e mensagens pareciam um empurrão, que me ajudava a ir em frente. Eritchos, só tenho a agradecer pela sua amizade, não só agora, mas sempre. Thiara, obrigada por acreditar no meu tema, me ajudar a pensar e sentar comigo para organizar esse TCC. Sua existência me inspira de maneira sem igual - e só cresço quando estamos juntas. Não posso deixar de fora também um amigo especial que me apoiou durante todo esse processo. Denis, obrigado por ser esse parceiro incansável, seja aqui ou na Europa. Obrigada por me acompanhar em inúmeras correrias, roles, confissões, conversas. Ao seu lado, eu acredito que tudo é possível, e ao mesmo tempo, você me lembra a importância de continuar pisando no chão. Preciso agradecer da maneira mais efusiva possível também o meu amado Frika. Não é de hoje que voce é essencial na minha vida. Você teve um papel fundamental e foi imprescindível na elaboração desse meu TCC. Obrigada principalmente pelas críticas, pelas novas perguntas e pelo seu olhar atento. Seria impossível sem você, meu segundo orientador. Quero continuar conquistando ao seu lado. Família, muito obrigada! Só foi possível pelos inúmeros carinhos, apoio e força que recebi. Sou o que sou por causa de vocês. Por fim, obrigada a todos aqueles que emprestaram um ouvido amigo para escutar as minhas ideias malucas.

Sou imensamente grata pelas decisões que me guiaram até aqui.

Continuarei martelando.



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BANCA EXAMINADORA

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Prof. Dr. Luli Radfahrer

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Avaliadxr

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Resumo Quais são as implicações do uso de tecnologias que utilizam-se de códigos e representações feitas majoritariamente por uma elite branca e masculina? O presente trabalho busca compreender as relações entre tecnologia e gênero, e como esse vínculo contribui para moldar aquilo que é feminino ou masculino. O argumento principal dessa monografia é de que as tecnologias são construções sociais da mesma maneira que o gênero, e ambos se formam de maneira mútua. Apoiando-se nas teorias sobre construtivismo social, Queer e a Sociedade em Rede são analisadas alguns dos exemplos de tecnologias digitais mais utilizados na atualidade como assistentes pessoais, jogos e redes sociais para examinar como esses podem contribuir para uma exclusão feminina.

Palavras chave: tecnologia, digital, ciberespaço, gênero, divisões sex-

uais, construções sociais, teto de vidro


Abstract What are the implications of using technologies that are built upon codes and representations which are made mainly by a white and male elite? This paper seeks to understand the relationship between technology and gender, and how that bond helps to shape what is comprehended as masculine or feminine. The main argument of this paper is that technologies are social constructions in the same way that gender, and both are mutually shaped. Relying on theories of social constructivism, Queer and the Network Society some examples of the most used digital technologies are analyzed such as personal assistants, games and social networks in order to examine how these can contribute to women’s segregation.

Key words: technology, digital, cyberespace, gender, sexual divide, social

constructions, glass ceiling



AGRADECIMENTOS 6 RESUMO / ABSTRACT 12 e 13

FORA DA REDOMA 16 EU NÃO SOU MEU CORPO 20 O NOVO EU 28 HIPERCONECTADO 36 CIRCUITOS, REDES, TELAS 47

DENTRO DA REDOMA 55 SILICA 58 VITRIFICAÇÃO 62 TRANSLUCIDEZAS 78 ARQUÉTIPOS DIGITAIS 87 MARTELO 101 UMA PONTADA DE ESPERANÇA 109

BIBLIOGRAFIA 111


fo ra da re do ma


Em 1963, Sylvia Plath lança sua novela autobriográfica entitulada de “A Redoma de Vidro”. Em inglês, o título é “The Bell Jar” (O Jarro em Sino, em tradução livre direta do inglês), fazendo alusão à uma redoma de vidro de formato parecido com o de um sino, no qual a protagonista do romance metaforiza que se sente presa. Ela sente uma certa alienação em relação ao mundo exterior, sendo impossível de realmente fazer parte dele. O enredo narra a história de uma jovem que se sente prisioneira das expectativas da sociedade patriarcal Estado-unidense dos anos 50, que demandam que ela cuide dos afazeres domésticos e sinta o desejo de ser mãe, renegando seus talentos intelectuais. Esther, a personagem principal, assume que não pode continuar sendo uma poeta enquanto mulher, esposa, mãe e dona-de-casa. Aos poucos sua identidade entra em conflito com as expectativas das mulheres e homens à sua volta, pois ela não consegue enxergar como conciliar seus desejos de carreira com a vida submissa que leva dentro de casa. Ao final, assim como a autora, Esther não vê escapatória da sua condição e tenta se suicidar. Esse romance é apenas um dos muitos exemplos na literatura que ilustram as dificuldades que mulheres enfrentaram ao decorrer da História ao tentar conciliar proficiência técnica, reconhecimento, arte e ciência com os “deveres” e expectativas femininas. Neste trabalho, a metáfora da Redoma de Vidro é utilizado para ilustrar as dificuldades encontradas por mulheres para se apropriarem das tecnologias digitais e as utilizarem da maneira mais benéfica possível. Assim como o fenômeno chamado de “Glass Ceiling” (Teto de Vidro em inglês, em tradução livre), que teoriza sobre os obstáculos que mulheres encontram para exercerem profissões gerenciais ou cargos de liderança, as resistências são muitas vezes invisíveis e difíceis de serem ultrapassadas. Elas dependem de diversos fatores culturais e sociais que só se fazem evidentes após profunda análise e problematização. Como os processos que formam essas construção são dinâmicos e mutáveis, e dependem de outras construções tão variáveis e infinitas quanto a questão focada, é necessário escolher os pontos principais que serão utilizados para análise.

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Para elucidar a questão, inicialmente este trabalho procura analisar como se compreende o que é feminino e masculino, apoiando-se em cima das teorias Queer e feminista, que definem que o gênero humano é construído através da sociabilidade. Foi feita uma análise a partir das teorias contemporâneas construtivistas, que rechaçam o essencialismo como fonte de representação ou identidade. Depois, a Sociedade em Rede de Manuel Castells é utilizada para demonstrar a necessidade e papel das TICs no momento atual, procurando assim esclarecer a importância da discussão e reivindicações daqueles excluídos dos processos de uso e criação de novas tecnologias. Adicionalmente, é considerado estudos sobre o relacionamento entre tecnologia e gênero, chamados de Estudos Feministas da Tecnologia, que chamam atenção para a masculinização de tecnologias importantes e o rebaixamento daquelas tecnologias relacionadas com o feminino. Alguns estudos de caso serão utilizados para demonstrar o papel da mídia, do design e do uso dessas tecnologias neste contexto. De maneira geral, essa monografia pretende elucidar os processos que tangem a construção mútua entre tecnologia e gênero, utilizando-se de exemplos ilustrativos mais modernos possíveis, além de tecnologias cotidianas e de uso massivo. A hipótese final desse trabalho é de que uma mudança de paradigma é possível de ser catalisado através de um trabalho sincronístico de retorno ao passado, iniciativas no presente e novas maneiras de se narrar o futuro. Acredito que esse trabalho pode inspirar desdobramentos mais elaborados, e trazer a tona problemáticas que são muitas vezes desconhecidas dos produtores de tecnologia em geral. Assim, espero que as discussões feitas nesta monografia continuem sendo exploradas e utilizadas para avaliar tecnologias digitais.

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EU

Nテグ SOU MEU

CORPO


Para compreender a crítica à desigualdade feminina dentro do ciberespaço é necessário entender o que é o feminino e como se configuram as relações de gênero de maneira geral no mundo contemporâneo. O pressuposto que guiará o pensamento dessa monografia é a consideração que tanto a definição de gênero como a sua divisão binária em masculino e feminino são contestáveis e dependentes do contexto social. Esse tipo de contestamento faz parte de uma série de pensamentos contemporâneos que englobam a chamada “Teoria Queer”. Foi apenas nos últimos 30 anos que a compreensão que as desigualdades de gênero são construídas por padrões sociais e possuem bases históricas foi verdadeiramente consolidada dentro das Ciências Sociais. As maioria das diferenças de gênero, performances dos papéis sexuais e preconceitos raciais costumam surgir a partir da crença na existência de tais condições sociais, como por exemplo a noção de que algo é superior ou melhor do que outro. Para os sociólogos e antropólogos construtivistas (FOUCAULT, 2001; BUTLER, 2003), as diferenças e juízos de valor que existem entre homens e mulheres iniciam seus estudos a partir da ideia de que esses domínios não possuem raízes biológicas. Ser mulher ou ser homem, utilizando-se desse ponto de vista, é uma construção social, da mesma maneira que a cultura e a identidade. A identidade, nesse sentido, é aquilo que dá sentido aquilo que é gênero. A partir de diversos estudos, esses sociólogos argumentam que não existe uma maneira direta na relação entre a genitália com a qual a pessoa nasceu e sua identidade. Assim, certos imperativos sociais como o fato de homens serem vistos como mais insensíveis ou mulheres como mais calorosas são apenas esteriótipos que ajudam a perpetuar cada vez mais os próprios imperativos. Além disso, há também diversos outros imperativos sociais que determinam aquilo que é visto como adequado para um gênero e outro: homens não usam saia, mulheres usam cabelo comprido. Aqui não há juízo de valor sobre as pessoas que se encaixam no esteriótipo, e sim um olhar mais crítico à existência de certas atitudes que são perpetuadas de forma majoritária. Como explicado por Claude Lévi-Strauss (1976), a cultura se inicia e torna-se instituída a partir da criação de regras iniciais. A divisão entre os gêneros, de maneira cultural, inicia-se com a divisão do trabalho: homens exerciam funções e atividades que eram restritas às mulheres, e vice e versa. Historicamente e de maneira sistemática, algumas características foram sendo associadas àquilo que é feminino e outras ao masculino. Essas diferenças são especialmente evidentes a partir dos estudos etnográficos da sociologia construtivista. Ao observar diferentes sociedades pelo mundo em diferentes períodos históricos, percebemos que aquilo que significava ser homem e ser mulher pode diferir muito. Como as culturas são diferentes, algumas características relacionadas ao gênero também vão diferir. Um exemplo simples é o uso de “saia” pelos escoceses ou o cabelo comprido dos homens nativo americanos, que pode ser considerado algo inadmissível como valor masculino para outras culturas. Aqui faz-se necessário um esclarecimento sobre como o sistema sexo e gênero será abordado e citado durante este trabalho. Como explicado por Gayle Rubin, o sistema sexo/gênero é

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“o conjunto de medidas mediante o qual a sociedade transforma a sexualidade biológica em produto da atividade humana e essas necessidades sexuais transformadas são satisfeitos” (RUBIN, 2003). Gayle Rubin utiliza as duas expressões para explicitar a existência de todo um conjunto extremamente complexo de significações e atividades que dão sentido ao sexo biológico da pessoa com o sexo gênero. Ser mulher é ser feminino, e ser homem é ser masculino, olhando como a sociedade se relaciona com essas diferenças. Mas essas imposições não são necessárias, ou naturais, como é acreditado. São exatamente isso: um conjunto de imposições e acordos sociais que dão sentido à vida em sociedade. Assim, quando for citada a ideia de gênero, sexo ou o binarismo masculino/ feminino, será de acordo com a definição proposta pelas sociólogas contemporâneas feministas como Judith Butler, Gayle Rubin e Simone de Beauvoir. A teoria mais moderna e refinada sobre o tema é a feita por Judith Butler, que é pós-estruturalista. Como explicado por Butler, gênero é uma performance, ou seja, ao retratar homens e mulheres com um uso específico de linguagem, maquiagem, roupas e aparência, o reforço das diferenças é reproduzido. O aparelho reprodutor, também chamado de sexo, é diferente da questão de gênero que vamos abordar nesta análise. O sexo é biologicamente definido, mas as imposições socioculturais atrelados a ele não são. Butler formulou sua hipótese ao observar performances de drag queens, e perceber que suas performances (aqui no sentido verdadeiramente performático, teatral) procuravam subverter o papel do homem e da mulher. Assim, quando ela diz que gênero é performático, a filósofa explicita que ele é formado por manifestações que se repetem para simular aquilo que é homem ou mulher. O corpo e suas manifestações são criados a partir de uma certa historicidade, ou seja, aquilo que é compreendido historicamente como mulher é o que é reproduzido para simular uma certa naturalidade. A manutenção daquilo que compõe a dicotomia entre feminino e masculino na história de uma cultura se dá por uma repetição de discursos (expressões como “volta para a cozinha” voltada a mulheres), atos (mulheres se movimentam de maneira delicada enquanto homens se movimentam de maneira brusca) e significados (azul para meninos e rosa para meninas). Todos esses fenômenos formam aquilo que entendemos como gênero, e por isso, constituem sua performatividade. Judith Butler sugere então a contestação desses atos performativos, ou seja, a desconstrução dessa ordem compulsória que demanda que homens e mulheres se adequem a essas normativas sociais. De maneira metafórica, pode-se compreender o corpo como uma tela vazia, e o gênero nele pintado é aquilo que o estiliza. As regras para pintura, ou seja, como o pincel deve ser utilizado ou que cores de tinta podem ser usadas naquele canvas é aquilo que a filósofa e também Michel Foucault chamariam de disciplina e normas. A superestrutura que rege aquilo que é o gênero não possui uma só origem, como a família ou o Estado, mas permeia a sociabilização humana quase como um todo. São os chamados “micropoderes” (FOUCAULT, 2001), que formam conjuntos de regras que

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fazem com que o gênero seja um processo constante, que necessite dessa manutenção sucessiva. Mulheres não são boas líderes. Homens não choram. Os esteriótipos funcionam como “ficções regulatórias”, que acabam por determinar aquilo que é esperado de uma pessoa baseada no aparelho reprodutor que ela nasceu. A força da ficção regulatória começa mesmo antes da criança nascer. Com a ajuda do ultrassom, o gênero é constituído por uma série de fatores que buscam coerências de gestos, objetos: se é menina, o quarto será rosa e os brinquedos comprados serão bonecas; se é menino, o quarto será azul e serão comprados carrinhos. Assim, gênero é um ato intencional, uma força coercitiva que atua na sociedade. Para aqueles que não se adequam às normas vigentes, como travestis ou tomboys, é necessário lutar contra esse poder controlador. Para ilustrar o quão difícil é fugir dessa coerção social, podemos citar o caso de crimes de ódio contra transsexuais e travestis. O Brasil é considerado o país mais violento para pessoas trans, segundo a ONG TransGender Europe1(EXAME, 2015 ). Entre 2008 e 2015, 689 assassinatos de pessoas 1Brasil lidera número

de mortes de travestis e transexuais | EXAME.com. Exame. Disponível em: <abril. com.br/mundo/noticias/brasillidera-numero-de-mortesde-travestis-e-transexuais>. Acesso em: 12 Nov. 2015.

trans foram reportados à polícia. Aqueles desviantes das normas vigentes são isolados e alvos de intensa discriminação. A teoria queer afirma que não há uma essência feminina ou masculina - tudo o que não possa ser atrelado diretamente a uma diferença biológica faz parte de um conjunto de consensos culturais. O binarismo imposto que antagoniza homens e mulheres, feminino e masculino e macho e fêmea não passam de categorias reducionistas, que não se atentam a multiplicidade e complexidade humana. Mesmo a taxonomia que divide os seres humanos em homens e mulheres, por exemplo, falha ao categorizar aqueles conhecidos como “hermafroditas” ou intersexuais que nascem com a genitália mista. Simone de Beauvoir, por exemplo, é famosa por sua frase “não nascese mulher, torna-se”. De maneira resumida, essa teórica argumenta que mulher não é uma categoria estável mas sim um verbo em construção. Como já explicitado, gênero é fluído e sua manutenção e representação depende de diversos fatores e atitudes. As performances ou atos que fazem o gênero são tanto repetições quanto únicos e novos. Van Oost (2004) separou em três níveis nos quais gênero pode ser moldado por um indivíduo:

“no nível mais pessoal e individual, a identificação de gênero de uma pessoa é explicita através das suas atitudes e identidades. Depois, gênero se manifesta de maneira estrutural dentro da sociedade, pela divisão de trabalho. E por último, em um nível simbólico, através de valores, normas e processos que são divididos em masculino e feminino.” De acordo com Van Oost, pode-se observar que as características atreladas ao que é considerado feminino e masculino costumam ser muito diferentes, mesmo em tempos que essas narrativas começam a ser questionadas. A delicadeza costuma ser

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associada ao feminino, enquanto a força ao masculino e assim por diante. O homem é normalmente considerado ativo enquanto a mulher, passiva. Diversos estudos e pesquisas (KULMS et al, 2011; BRITON; HALL, 1995; NASS et al, 1997) demonstram que essas diferenças ainda persistem em diversos níveis, principalmente midiáticos. Por exemplo, uma pesquisa realizada pela agência Heads em julho deste ano, analisando mais de 7 mil peças publicitárias, mostrou que 28% dos personagens mostrados na peças reforçam esteriótipos negativos de gênero, com a maioria dos desvios em relação a papéis femininos.

Figuras 1 e 2 Disponível em: <http://www.b9.com. br/61418/advertising/ menos-de-20-dos-comerciais-contribui-paraa-equidade-de-generoe-raca-no-brasil/>. Acesso em Nov. 2015.

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Figura 1 - Análise quantitativa sobre os esteriótipos de homens e mulheres em propagandas brasileiras Fonte: Brainstorm 9


Figura 2 - Análise quantitativa sobre a contribuição para a equidade das propagandas brasileiras Fonte: Brainstorm 9

A mídia possui um papel muito importante neste contexto, principalmente ao analisar seu poder de propagar e perpetuar esteriótipos. Obviamente, a publicidade apenas recorre aos esteriótipos que já permeiam a sociedade como um todo e segue as normas sociais aceitas, como forma de promover seus produtos. Assim, “dualista ou não, a classificação das pessoas em personagens sociais é certamente uma maneira de controlar a experiência social e de reduzir a sua ambiguidade” (FRY, 1982). As ideias pré-concebidas,por mais que possam ocasionar efeitos nocivos para aqueles fora da normatividade, existem como forma de dar sentido aquilo que muitas vezes é incompreensível. Dessa maneira, feminino e masculino acabam sendo apresentados como opostos: aquilo que é esperado de uma mulher geralmente terá o seu antagonista esperado do homem. Quando algo é dividido em duas categorias opostas é normal que uma seja diferente da outra: por isso foram divididas dessa maneira. Se o homem representa dominação, logo, a mulher representará submissão. Enquanto o homem é visto como aquele que domina a natureza e cria o artificial, a figura da mulher é associado aquilo que é natural. Por isso, não é de se estranhar que a tecnologia não compactue com aquilo que é feminino, pois em nível simbólico é opositor a ela. Não é objetivo dessa análise questionar como acabar com a desigualdade e

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o reforço de papéis sociais pensando-se no gênero, mas sim evidenciar como essas questões são explicitas dentro de um contexto tecnológico e digital. Parte-se do pressuposto que o sistema binário de classificação dos gêneros é vigente atualmente, e mulheres e homens são divididos culturalmente com os valores simbólicos citados durante a elaboração desse trabalho. Dentro desse sistema binário, existem algumas características básicas associadas ao que é feminino, ou seja, que tange ao universo da mulher e outros que tangem ao homem. Esse pensamento binário tem suas raízes encontradas principalmente no dualismo cartesiano iluminista. A partir dessa filosofia, aquilo que é antagônico tende a se complementar. Da mesma forma é visto aquilo que é feminino e masculino: dois diferentes que possuem características opostas, no entanto complementares. O grande problema da desigualdade entre os dois sexos não estaria em suas diferenças mas na subordinação de um pelo outro. E devido às inúmeras construções sociais advindas de uma sociedade patriarcal, já que os poderes estão concentrados no homem, as características associados aquilo que é feminino geralmente é “inferior”. Por exemplo, a delicadeza, característica feminina, é considerada fraqueza em um contexto masculino. Ora, partindo desse pensamento dualista, se aquilo que foi associado ao homem é positivo, naturalmente o que foi associado a mulher é negativo. Para Engels (1960), a opressão feminina começa a partir do momento que o direito hereditário é pautado na paternidade, e a partir disso, o sexo feminino passa a ser submisso aos prazeres e poderes masculinos. Já para Lévi-Strauss (1976), a opressão feminina é pautada principalmente na divisão sexual do trabalho, que acaba produzindo o que é gênero. A mulher é um signo e seu significado é de um bem de troca, afinal elas possuem as capacidades reprodutivas e o trabalho doméstico possui valor econômico. Ela é pessoa e também objeto trocado. Enquanto mulheres circulam por serem mulheres, homens circulam por suas funções e trabalhos. Por isso existem diversas práticas que objetificam a mulher em diversas culturas, como por exemplo o pagamento do “dote” para a família da noiva, que simboliza que a mulher é produto passível de compra. Outra análise interessante e que possui um grande paralelismo com os tempos atuais ficou por conta da socióloga Gayle Rubin (2003): as mulheres foram “domesticadas”, no sentido de serem as responsáveis pelo trabalho doméstico. Só que dentro da lógica capitalista, no qual o trabalho deve gerar lucro, o trabalho doméstico não é produtivo, afinal não produz diretamente capital. Ora, aqui não deve-se procurar racionalizações para a subordinação feminina, mas sim evidenciá-la. Dentro de um contexto mercadológico, o trabalho doméstico realizado por mulheres é infrutífero. Através de diversos estudos sociais e psicológicos, já foi demonstrado que a mesma atitude pode ter diferentes avaliações dependendo se for mostrada por um homem ou por uma mulher (KULMS et al, 2011; RUTTKAY e PELACHAUD, 2004). E apesar de não muito evidente, tais diferenças em atitudes se estendem para questões tecnológicas e digitais. E neste contexto, como explicado por Peter Fry, “Não há nada

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mais eficiente na produção de ‘condições sociais’ do que a crença na sua existência” (FRY, 1982). Ou seja, quanto mais esteriótipos e mais diferenças entre homens e mulheres forem apontadas, mais elas serão evidentes e continuarão a se propagar. Assim, essa crítica procura evidenciar tais condições para que a partir de sua explicitação seja possível criar e desenhar tecnologias mais igualitárias sobre a questão do gênero. Mas, como essa reflexão é possível neste século? Se as condições sociais atuais apontam para uma diferença entre os sexos, e uma subordinação do feminino, como essa desigualdade se tornou explícita nos tempos atuais? São algumas das questões que a Teoria Queer ajuda a elucidar. Durante essa monografia, ao se tratar da binária homem e mulher, qualquer diferença biológica será explicitada. O foco da análise é nas significações e discursividades dada a homens e mulheres, que é de caráter sociológico. Assim, ao citar termos como homens e mulheres, feminino e masculino, é importante lembrar que a discussão não aborda as diferenças biológicas entre os sexos. Em suma, o sexo é relacionado a natureza enquanto o gênero possui relação com a cultura, e o foco do dessa monografia será no segundo. É importante destacar que ambos são interligados e um não pode existir sem o outro, até por isso que a socióloga Gayle Rubin chama esse sistema de sexo / gênero. Mas diferenças que tangem diferenças biológicas na representatividade do ciberespaço exigiriam um conhecimento de biologia e psicologia que não será necessário na análise atual.

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Diversos autores contemporâneos convergem para a definição da chamada “pós-modernidade” (BAUMAN, 2001; MAFFESOLI, 1998) ou até “hiper-modernidade” (LIPOVESTKY, 2004). De maneira geral, essas teorias são visões sociológicas sobre a condição humana na era digital e capitalista. Não existe um momento fundador ou evento histórico específico que marca o início dessa condição: é um período histórico marcado pelo desmantelamento das grandes narrativas e filosofias. São discursos que buscam analisar essas grandes “crises” de identidade e da queda das narrativas como religião ou identidade nacional. Apesar das críticas quanto ao uso do termo ou do sintetismo da teoria, essas ideias podem ser usadas de maneira representacional - para ilustrar melhor as condições sociais observadas por esses pensadores na a contemporaneidade. Para embasar essa análise, o presente estudo vai se apoiar principalmente nas características principais que são ditas como “definidoras” da pós-modernidade. . É difícil apoiarse em universalidades para definir toda uma geração ou uma época, mas aqui essas características serão usadas em relação aos novos olhares e maneiras de se compreender a identidade de gênero, e também o relacionamento com a cibercultura, que é o exemplo primordial dentro das tecnologias da informação. Para efeitos de abstração, existem algumas características prevalentes que regem a pós-modernidade e que são comuns a quase todos os autores. De maneira geral, os termos são utilizados para explicar a situação cultural moderna: seus fenômenos e características predominantes pós-Guerra Fria. Os autores que cunharam o termo concordam que a condição pós-moderna é caracterizada por uma crise das antigas instituições como filosofias, identidades nacionais e utopias. É uma nova lógica, que utiliza como comparativo aquilo que os sociólogos utilizavam para caracterizar a modernidade. Como explicado por Featherstone (1995), “pós-modernismo como uma lógica cultural, ou dominante cultural, que conduz à transformação da esfera cultural da sociedade contemporânea”. Assim, podemos entender a pós-modernidade como essa crise de identidade que permeia diversos aspectos culturais da nossa era. Para aquelas que possuem reverberações diretas na questão de gênero, as principais características são: presenteísmo, a sociedade de consumo e a fluidez. Uma das principais características que caracterizam a pós-modernidade é o presenteísmo: “No tempo pontilhizado da sociedade de consumidores, a eternidade não é mais um valor e um objeto de desejo (...) a ‘tirania do momento’ líquido-moderna, com seu preceito carpe diem, substitui a tirania pré-moderna da eternidade com seu lema memento mori”. (BAUMAN, 2008) A tirania do momento, ou o presenteísmo, acaba por permear os mais diversos tipos de comportamentos e sociabilidades. E dessa maneira, diversas tecnologias são criadas que refletem esse substrato da vida social. Pensandose por exemplo nas “timelines” das redes sociais mais utilizadas como o Facebook e o Instagram: elas mostram em tempo real a atualização de seus conteúdos, necessitando de um input constante pelos seus usuários. Um dos exemplos mais recentes é a criação do aplicativo Snapchat, que compartilha imagens e vídeos por um período determinado de tempo e então os

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2 SHONTELL, Alyson. Snapchat Is A Lot Bigger Than People Realize And It Could Be Nearing 200 Million Active Users. Business Insider. Disponível em: .businessinsider.com/ snapchats-monthlyactive-users-maybe-nearing-200-million-2014-12>. Acesso em: 15 Nov. 2015.

destrói de maneira irreversível. O imediatismo é o fator predominante do Snapchat, que hoje já conta com mais de 100 milhões de usuários ativos por mês2 (SHONTELL, 2015). A enfase no presente acaba por dominar a vida cotidiana, fazendo com que aquilo que oferece benefícios mais imediatos domine aquilo que oferece melhor perspectivas futuras. Efemeridade e frugalidade são adjetivos que caracterizam as relações interpessoais dentro dessa condição, por exemplo. Os indivíduos não são aquilo que são: mas aquilo que estão, e se a identidade passa a ser moldada por tudo aquilo que cerca a sociedade, que acaba por partilhar dos mesmos valores, produtos, e coisas terão as mesmas características. A obsolescência programada, pensada como importante etapa do processo de design de produtos para o mundo capitalista, é necessária para que o consumo continue crescendo e evoluindo. Essa frugalidade também se desenvolve na identidade de gênero: como a manutenção da performance é um processo, e não um dado biológico, a maneira como um indivíduo se representa pode mudar de acordo com o tempo. Mas ao mesmo tempo, a pessoa necessita confirmar seu gênero constantemente através de atos e ações, da mesma maneira que precisa alimentar sua identidade digital fornecendo conteúdo. As experiencias transsexuais e de mudança de identidade sexual representam essa possibilidade de escape de uma identidade fixa e imutável. E essa possibilidade de mudança é também definida pelos objetos de consumo. Maquiagem, salto alto, e silicone. O que define o que é ser mulher? Para um cross-dresser, por exemplo, ser mulher por uma noite pode significar o uso de uma peruca e de maquiagem. Para jovens em festa do “trocado”, no qual homens se fantasiam como mulheres, para aparentar uma mulher basta utilizar um vestido e um batom vermelho. Objetos de consumo possuem uma característica quase que fundacional para definir o gênero de um ser humano. Diversas revistas de beleza afirmam para suas leitoras que para aparentar feminilidade elas devem usar certos tipos de vestuário, consumir cremes e perfumes específicos e comprar aqueles produtos voltados exclusivamente as mulheres. Intervenções cirúrgicas também podem ser compradas para ajudar um indivíduo a modificar sua identidade de gênero, ou a ressaltar ainda mais sua feminilidade ou masculinidade. Tudo isso representa uma característica muito importante da condição pós moderna, provocado também pelo sistema sócio-economico atual: a expressão do eu a partir daquilo que ele consome.

“Na sociedade de consumidores ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável” (BAUMAN, 2008) Assim, como afirma o próprio autor, ocorre um deslocamento daquela sociedade de produtores tão criticada por Karl Marx para uma sociedade formada essencialmente de consumidores: consumir não é apenas uma característica, mas um dever dos indivíduos. O não consumo causa completa exclusão social e repulsa: aqueles que não possuem capital para fazer parte da dinâmica da sociedade de consumidores são ostracizados.

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Parte-se então do fetichismo da mercadoria do século XX de Karl Polanyi para um fetichismo da subjetividade, que serve primariamente para esconder a realidade comodificada da sociedade atual. Dessa maneira, vendem-se e compram-se símbolos empregados na construção da identidade, da mesma maneira que são feitos com as mercadorias capitalistas. Também o amor e os relacionamentos seguem essa lógica: se tornaram commodities da mesma maneira que móveis ou objetos, de maneira mais explícita proporcionado pelos meios digitais. Tal tendência é confirmada através dos sites de relacionamento online, que permitem que os relacionamentos sejam iniciados através de uma barreira de proteção contra a humilhação da rejeição – o indivíduo cria um perfil online exaltando suas melhores qualidades e expõe-se em uma vitrine da mesma maneira que um sapato em um grande Shopping Center. Assim, caminha-se para a consolidação da macro - tendencia que guia a criação identitária dentro na Era da Informação: “A característica mais proeminente da sociedade de consumidores (...) é a transformação dos consumidores em mercadorias” (BAUMAN, 2008). As mesmas lógicas utilizadas para a realização de compras online, por exemplo, é utilizado para a realização de escolha de pessoas. O Tinder, por exemplo, no qual o usuário pode escolher entre diversas pessoas disponíveis apenas com um movimento rápido do dedo, permite a navegação em um catálogo de pessoas, da mesma maneira que um site de compras como a Amazon. Da mesma maneira como a possibilidade da realização de compras online é disruptiva no sentido de eliminar a movimentação física do indivíduo até uma loja, um relacionamento pode ser iniciado com um clique: de forma imediata. A indústria mobile tem mudado enormemente a maneira como as pessoas podem se relacionar. É importante pontuar que esses sites e aplicativos também fazem parte de um contexto de mercado, e precisam monetizar suas aplicações para continuarem a existir. Assim, da mesma maneira que marcas e indústrias investem muito em publicidade e marketing para publicizar seus produtos, visibilidade humana é comprável. Basicamente, há uma extrapolação da dinâmica pela qual os consumidores do capitalismo moderno se relacionam com os produtos para suas relações sociais e até subjetivas. A identidade parte do consumo: todos os significados embutidos em um produto ou uma marca são atribuídos ao seu comprador ou utilizador. O consumidor atual não busca apenas produtos pela sua qualidade ou valor estético: todo o universo sígnico que envelopa o serviço ou o objeto comprado é importante na escolha da utilização. “Sou o que sou porque outros me reconhecem como tal, a vida social empírica não é senão uma expressão de sentimentos de pertenças sucessivas” (MAFFESOLI apud 3 Classe média: Ela quer e BAUMAN; BAUMAN 2008). Na modernidade líquida e na sociedade dos consumidores compra luxo. Gazeta on- explicada por Bauman, a identidade é formada por aquilo que é consumido - o que pode line. Disponível em: .redegazeta.com.br/_con- ocasionar até em incoerências e mutações constantes. teudo/2014/03/noticias/ cidades/1480795-classemedia-ela-quer-e-compra-luxo.html>. Acesso em: 15 Nov. 2015.

No Brasil, um exemplo dessa característica é o consumo de marcas luxuosas por pessoas de classes mais baixas. A classe C brasileira, por exemplo, representou 22% do consumo de artigos de luxo no país em 20143 (Gazeta Online, 2014). Ou ainda,

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4 Metade das casas em favelas tem TV de plasma e computador - São Paulo - Estadão. Estadão. Disponível em: .estadao. com.br/noticias/ geral,metade-das-casasem-favelas-tem-tv-deplasma-e-computadorimp-,1093246>. Acesso em: 15 Nov. 2015.

um estudo de 2013 mostrou que metade das casas em favelas possuem televisão de plasma e computador, mesmo com uma média salarial de R$9104. (PENNAFORT, 2013) Consumir representa uma maneira de inclusão social. O momento da compra também significa um momento definidor para a identidade e representação do indivíduo. Dessa maneira, produtos que promovem a inclusão em um grupo social (como nos exemplos sobre tribalização de Maffesoli) serão os mais cobiçados, principalmente por aqueles de baixa renda. O consumo aparece então como um determinante social. Na questão feminina ou masculina, os objetos em si também possuem valor de gênero: perfumes feitos exclusivamente para homens, maquiagem vendidas apenas para mulheres. Dessa maneira, para reforçar sua identidade de gênero, o individuo deve consumir aquelas mercadorias condizentes com o seu aparelho reprodutor biológico ou sofrerá estranhamento. Ora, se o consumo também faz parte dessa frugalidade imposta por todo esse sistema social no qual estamos inseridos, a identidade dos consumidores também passará pela mesma lógica: será fluída.

*para saber mais Castells (2007) - Teoria da Real Virtualidade.

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A fluidez ou liquidez é especialmente analisada nos trabalhos do sociólogo Zygmunt Bauman. Se nos tempos modernos a identidade e seu processo de construção eram vistas a partir de bases sólidas, coerentes e quase imutáveis, na pós-modernidade o indivíduo será muito mais maleável, e nada mais será uma certeza. Representado pelas definições de “amizade” e “relacionamento” mostradas pelos usuários em redes sociais, as conexões entre as pessoas se tornam frágeis e passageiras - podendo ser modificadas com um clique. Assim, se o ser humano é definido pelo ambiente a sua volta e com a ajuda das tecnologias da informação é mais fácil do que nunca se relacionar com pessoas e ideias que excedem sua posição geográfica, a identidade pode ser tão maleável e multifacetada quanto aquilo que pode ser escrito em um perfil de Facebook. “A internet tornou-se um importante laboratório social para a experimentação com as construções e reconstruções do eu que caracterizam a vida pós-moderna” (TURKLE apud WERTHEIM, WERTHEIM 2001). A definição da identidade, assim como o preenchimento de um perfil online, acaba sendo de responsabilidade do indivíduo. Fica a cargo do próprio indivíduo definir a que grupos pertencer, que modelos a seguir e que autoridades vai obedecer. Uma pessoa pode adentrar comunidades online que sejam muito diferentes das comunidades ao qual pertence fisicamente, por exemplo, e adquirir conhecimento sobre os assuntos discutidos nela a partir do vasto catálogo de conhecimento que está disponível online. A identidade online pode ser “falseada” facilmente, ou seja: como os inputs para as informações são dados pelo usuário, é fácil por exemplo uma criança clicar em “sou maior de 18 anos”, ou um homem selecionar a opção de sexo feminino em seu perfil. Mas é importante neste momento pontuar sobre a divisão entre o real e o virtual - aquilo que acontece na virtualidade não é menos ilegítimo do que as ações offline*. Existe assim uma crise identitária, no qual as estruturas fixas como religião ou política se tornam tão passíveis de mudança quanto os indivíduos. Os referenciais perdem sua rigidez e o sujeito não é visto como definido por uma biologia ou uma essência - mas


sim parte de um conjunto de práticas culturais e de um momento histórico. Seguindo a lógica do consumo, não há a intenção de um esforço voltado a uma rigidez: quanto mais o indivíduo se transformar e se reinventar, mais deve consumir para atender a sua nova identidade. O fluxo de pessoais e capital (monetário, cultural, social) deve ficar em constante movimento. Dentro desse contexto, podemos observar a convivência de diversos tipos de estilos e estéticas, mesmo que aparentemente incoerentes com seu momento histórico. A complexidade é densa, neste contexto. Hoje em dia, dificilmente há uma tribo ou comunidade que não possa ser encontrada em uma busca rápida no Google, e o usuário pode pedir para ser aceito dentro da comunidade com a facilidade de um clique. Assim, abre-se também a oportunidade para a experimentação no âmbito do gênero: dentro do ambiente online, o usuário que define por qual gênero gostaria de ser representado. Mais adiante esse argumento será mais desenvolvido. Mas deve-se reforçar que dentro deste contexto, o indivíduo ainda está fragmentado, e sua estrutura e formação depende de uma rede complexa de significações. Baudrillard explica bem esse conceito ao afirmar que devemos estudar o indivíduo como único. Ele rejeita a ideia de massa utilizado por seus predecessores, e sinaliza para que os estudiosos a utilizem apenas para fins representativos. O sociólogo cunhou a ideia de Simulações e Simulacra, afirmando que os indivíduos pós-modernos se encontram dentro de uma lógica vigilante e controladora. Para explicar como os códigos sociais aliciam a personalidade humana, Baudrillard explica que:

“Assim como a linguagem contém códigos ou modelos que estruturam o modo como nos comunicamos – e nossas células contêm códigos genéticos, DNA, que estruturam nossa experiência e nosso comportamento–, assim também a sociedade contém códigos e modelos de organização social e de controle que estruturam o ambiente e a vida humana. Ou seja, modelos urbanos, arquitetônicos e de transporte estruturam, dentro de certos limites, como as cidades, casas e sistemas de transporte são organizados e usados. Dentro de ‘casas-modelo’, códigos de design, decoração e gosto, livros de cuidados com crianças, manuais sexuais, livros de culinária e revistas, jornais e media de broadcast, todos fornecem modelos que estruturam várias atividades na vida quotidiana. Modelos e códigos, assim, passam a estruturar a vida quotidiana e a modulação dos códigos passa a constituir um sistema de diferenças e relações em uma sociedade de simulações”. (TASCHNER apud BAUDRILLARD; TASCHNER 1999) A comunicação por si só é representacional, e o mundo é explicado e entendido a partir de signos e discursos. Pensando-se assim, as simulações não são alheias a realidade, mas a constituem. E é importante pensar que no contexto da Sociedade do Espetáculo (DEBORD, 2003), apenas aquilo que “aparece existe”. Assim, as mídias ditam aquilo que é visto, e a partir das representações mais difundidas, compreendidas.

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No ciberespaço, o real e o virtual se misturam. O virtual é o real. “A própria definição do real se torna: aquilo do que é possível dar uma reprodução equivalente – o real não é apenas o que pode ser reproduzido, mas o que já está sendo sempre reproduzido, o hiperreal ” (BAUDRILLARD, 1991). Problemáticas que tangem significações ficam assim ainda mais problemáticas dentro do ciberespaço, pois muitas vezes é necessário associá-lo ao offline, que pode ser difícil de mapear ou encontrar a parte que tange alguma questão. Ao submeter todo tipo de informação exclusivamente dentro da lógica computacional, perde-se muito, pois a computação trabalha com representações. As materialidades como som, imagem e linguagem são transformadas em dados binários através das mídias digitais, fazendo com que a “realidade” seja muito mais facilmente manipulável do que é possível no offline. O conhecimento acaba por se transformar em dados e cálculos e se torna supérfluo ao detentor das ideias. O ciberespaço deve ser analisado de maneira mais abrangente, pensando-se em sujeitos e sociabilidade assim como no offline. Um dos pontos mais importantes para a análise da problemática da representação dentro da cibercultura é a compreensão de que a criação das tecnologias também se insere dentro de uma lógica que favorece certas ideologias ou representações, normalmente atreladas aos grupos majoritários que fazem parte da sua concepção e utilização. Assim, os grupos que detém o capital necessário para inovar acaba por definir aquilo que deve ou não ser desenvolvido como tecnologia, por exemplo. Uma prática comum nas grandes empresas de tecnologia, como a Apple, por exemplo, é de focar seus esforços intelectuais na criação de produtos que apenas uma parte da população economicamente ativa terá acesso. Além disso, certos decisões de produção são tomadas a partir da necessidade de enquadrar o produto ao desejo dos consumidores. Capital intelectual, recursos técnicos, energia… são diversos os recursos que são usados para a criação de objetos e conhecimento com a finalidade de trazer de volta o retorno de investimento em formato de capital econômico. Ao analisar as práticas concretas de design e inovação, leva-se à conclusão que certas convenções levam a ausência de usuários específicos. A própria ciência está inserida dentro de um contexto de forças e interesses, muitas vezes de caráter econômico, e que passa a defini-la. Países como os Estados Unidos e a Coreia do Sul, por exemplo, possuem investimento em pesquisa e desenvolvimento em Ciência e Tecnologia em sua maior parte advindas da iniciativa privada (SCIENCEOGRAM UK, 2015). Essas empresas possuem interesses específicos e então investem naquilo que vai de acordo com seus interesses, o que muitas vezes pode ocasionar uma concentração de saberes em certas áreas que são economicamente mais valorizadas. Para observar esse fenômeno, basta observar quanto aumentou o investimento em startups voltadas em tecnologias computacionais, e o valor das empresas de computação atual. O conhecimento do século 21 é produzido por aqueles que fazem parte de uma elite intelectual, que por sua vez muitas vezes produz aquilo que é de interesse do capital. A comercialização dos saberes acaba por se tornar um padrão. Por isso é muito difícil produzir conhecimento e tecnologia que servem ao propósito

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de diminuir desigualdades: muito daquilo que é criado em um contexto de mercado é focado visando um grupo específico. Pensar em diminuir desigualdades é pensar fora de uma lógica econômica tradicional, que classicamente visualiza um consumidor modelo ao produzir um objeto de consumo. E esse consumidor modelo é estereotipado, baseado em narrativas hegemônicas. Como explicado por Lyotard (2004), a queda das macro-narrativas é uma das características predominantes da pós-modernidade. Tudo pode ser questionado, inclusive a ciência, e com ela, suas tradições. As macro-narrativas procuravam agrupar e oferecer uma certa universalidade a diversas questões, o que não decorre dentro da lógica da pós-modernidade. Lyotard nega a existência de grandes fontes ou somatórias: ele exemplifica a condição atual como detentora de inúmeros “jogos de linguagem”. Assim como um jogo, os saberes e discursos só encontram legitimização dentro de sua própria dinâmica, ou seja, não possuem estruturas estáveis ou imutáveis. Dessa maneira, existem diferentes tipos de conhecimentos e formas de criar saberes, cada uma com seus critérios e formas de avaliação que definem sua própria pragmática. Não existem mais verdades que não possam ser questionadas ou essência generalista que guia todas as técnicas. É necessário avaliar que jogo de linguagem guia o protocolo de certa técnica. Mas a legitimização desses jogos se dá a partir de critérios e eficiência, ou seja, de performance. Esse tipo de critério é aquele que guia a tecnologia e a ciência, por exemplo, que analisa resultados desse jeito. Poderes hegemônicos estão passíveis de questionamento por outros poderes até então considerados historicamente mais fracos ou submissos. Veja o feminismo por exemplo, que foi historicamente rechaçado mas vem ganhando força através de novos discursos e maneiras de se interpretar a opressão. Por outro lado, Lyotard não nega que a incredulidade para com as grandes narrativas excluam ou neguem a existência de uma futura macro-narrativa. Novas narrativas podem existir, e deixar de existir. Dentro deste contexto pode-se avaliar a existência de uma lógica classista e patriarcal dentro da Sociedade da Informação. É uma lógica opressora e predominante, mas a existência de correntes de pensamentos que questionam esse tipo de narrativa permitem que essas forças opressoras sejam discutidas. E, se como Lyotard afirmou, se na sociedade pós industrial a lógica é voltada para o desenvolvimento e a comercialização de mercadorias e tecnologias da informação, será interessante uma tentativa de usar essa própria lógica para criar tecnologias mais inclusivistas. Existem lógicas que pautam o desenvolvimento das tecnologias da informação atuais que acabam por reprimir outros saberes ou falham em abarcar grupos oprimidos, muito diferente da lógica universalista que prometem. E se nossa compreensão do que é a identidade de gênero é influenciada pela semiótica, por representação, por mitos e metáforas, então é de fácil conclusão que a tecnologia, que possui um relacionamento tão estreito com a sociabilidade humana também faria parte dessa construção.No próximo capítulo, isso será analisado dentro do contexto da Sociedade da Informação proposto por Castells.

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Para compreender o binarismo dentro da tecnologia, ou seja, a dicotomia que separa aquilo que é tecnológico ou não entre os gêneros, é importante estar atento ao estudo da chamada “rede sócio-técnica” (LATOUR, 2004), ou seja, os fatores sociais e tecnológicos que contribuem para a divisão. Assim, não basta olhar a tecnologia por si só. Ao invés de atentar ao estudo dos objetos por si só, a análise será guiada pela tradição deixada pelos acadêmicos construtivistas de analisar aquilo que leva à formação do objeto. Para verdadeiramente compreender o impacto sobre as tecnologias da informação sobre o ser humano, um olhar crítico deve ser lançado a cultura e à sociedade que o formou. Atualmente, a teoria do construtivismo social já é aceita nas Ciências Sociais, mas suas descobertas não são compartilhadas com os produtores de tecnologia, como engenheiros ou programadores. Muitas dessas discussões acabam por ficar restritas entre os alunos de humanas, e esse tipo de conhecimento não penetra as discussões empresariais, principalmente no setor tecnológico. Por essa razão, os exemplos utilizados devem ser tangíveis para que possam ser posteriormente digeridos fora do eixo estritamente acadêmico. A fim de expandir o etendendimento mais a fundo a necessidade de relacionar tecnologia e comportamento, esta pesquisa se apoiará na definição de Manuel Castells a respeito da a “Sociedade da Informação” ou a “Sociedade em Rede”. O início da Sociedade em Rede, segundo Castells, se daria com o advento da internet e das tecnologias digitais. O período anterior (Era Industrial) não é marcado por uma utilização massiva e constante dessas tecnologias características desse momento contemporâneo. Em sua análise, Castells se apoia bastante em estudos e bases empíricos para fazer valer seus argumentos - assim, a trilogia sobre a Era da Informação possui inúmeros gráficos e números que validam suas suposições. O interessante sobre esse tipo de análise é que parece com uma análise de caráter pós-moderno, pois se apoia em bases informacionais - quase que cibernéticas - para fazer valer-se. As análises cobrem dados estruturais dos anos 70 e 90. A análise de Castells foi escolhida por ser bastante explícitas em sua definição da formação dos paradigmas atuais em relação a tecnologias da informação. Inicialmente, a denominação de “Sociedade em Rede” já explicita qual será o fator que mais influenciará as relações políticas, sociais e tecnológicas dentro da época atual. Assim, a “rede” é a característica principal que faz com que esses fatores se interrelacionem, formando um emaranhado sem começo ou fim. O indivíduo passa a ser enxergado como apenas um nódulo dentro dessa rede, ou como explicado por Bruno Latour, um ator. 5 Tradução da autora

“The network society represents a qualitative change in the human experience. if we refer to an old sociological tradition according to which social action at the most fundamental level can be understood as the changing pattern of relationships between nature and culture, we are indeed in a new era”

“A sociedade em rede representa uma mudança qualitativa na experiência humana. Se nos referirmos a uma antiga tradição sociológica no qual a ação social no nível mais fundamental é entendida como mudança no padrão de relações entre natureza e cultura, estamos de fato uma nova era” (CASTELLS, 2007)5 Segundo Castells a informação flui dentro da rede, em níveis globais. Essa troca

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6 Tradução da autora

Information is the key ingredient of our social organization and why flows of messages and images between networks constitute the basic thread of our social structure

7 A Social Brain Is a Smarter Brain. Harvard Business Review. Disponível em: .org/2014/05/a-socialbrain-is-a-smarterbrain/>. Acesso em: 15 Nov. 2015.

de informações é possibilitada pelo uso das novas tecnologias digitais e os meios de comunicação massivos. “Informação é o principal ingrediente da nossa organização social e a razão pela qual os fluxos de mensagens e de imagens entre as redes constituem o segmento de base da nossa estrutura social” (CASTELLS, 2007)6. O exemplo primordial é a internet. Todos os dias, novas tecnologias são criadas a partir da necessidade de controlar a quantidade absurda de informação que é gerada nos dias de hoje. Essa quantidade que circula na rede é tão grande, que geramos novos algoritimos para compreender e usar esses dados, que são por sua vez, também algoritimos. Máquinas são criadas com o intuito de lidar com outras máquinas. Neste contexto, informação funciona como matéria-prima, e a lógica das redes pode ser utilizada em todos os tipos de processo. A ideia de colaboração, com a criação de sites e plataformas que funcionam como verdadeiros receptáculos de conhecimento tem seus exemplos como Wikipédia ou Kickstarters. Essas plataformas funcionam dentro dessa lógica em rede, no qual a contribuição individual acaba por criar algo muito maior e mais complexo do que seria alcançado individualmente. Por estarem conectados, é infinitamente mais fácil de mobilizar capital intelectual em torno de uma só causa e o conhecimento gerado pelo grupo é infinitamente mais robusto e complexo do que aquele definido por apenas uma pessoa. Por causa disso, o conhecimento dentro dessa lógica de rede cresce de maneira exponencial. “Um cérebro social é um cérebro mais esperto” (ZYNGA, 2014)7. A sociedade possui as ferramentas necessárias para transformar a si mesma, mediada pelas tecnologias digitais. A resposta para uma cura de uma doença na Ásia pode ser encontrada na Europa, e esse conhecimento pode ser compartilhado de forma instantânea. E isso só é possível pois a linguagem usada dentro das tecnologias digitais é global e comum, fazendo com que a informação seja processada de forma padronizada. Esse novo paradigma é uma lógica de rede no qual o conhecimento é “auto-gerado”. Cocriação, sinergia, marketing 3.0 - tudo isso é resultante da Sociedade da Informação, e pode gerar resultados criativos muito mais complexos e interessantes.

Infelizmente, o cenário permitido pelas tecnologias é muito diferente daquilo que ocorre na prática, principalmente durante o nosso século. Mesmo com possibilidades tão incríveis de troca de conhecimento e um fluxo enormes de informação, o desenvolvimento trazido por essas tecnologias acontece de maneira desigual. Isso é chamado por alguns teóricos de “Divisão Digital (Digital Divide) e basicamente se caracteriza pela exclusão daqueles que não possuem acesso as tecnologias digitais da 8 chamada “Sociedade da Informação”. Um exemplo notável é a diferença de acesso a Pela 1ª vez, acesso à educação e computação em países de baixa renda, por exemplo. No Brasil, metade da internet chega a 50% das casas no Brasil, diz população ainda não possui acesso a internet, como mostram dados de 2015 (GOMES, pesquisa. Tecnologia e 2015)8. No nosso contexto nacional, os excluídos digitais se encontram principalmente Games. Disponível em: .globo.com/tecnologia/ nas áreas rurais do país. Quanto à divisão social, as pessoas que não têm acesso a noticia/2015/09/pelainternet nem possibilitada por um dispositivo móvel se encontram principalmente nas 1-vez-acesso-internetchega-50-das-casasclasses C, D e E. Como explicado no primeiro volume da trilogia de Castells, quanto mais no-brasil-diz-pesquisa. acesso à tecnologia (normalmente promovido através de incentivos governamentais) html>. Acesso em: 15 Nov. 2015. menor é o desemprego no país e mais rápido ele é inserido dentro do contexto

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9 Tradução da autora

“some uses are more likely to yield beneficial outcomes than others”

10 Na criação publicitária, a mulher ainda é invisível - Economia - Estadão. Estadão. Disponível em: .estadao. com.br/noticias/ geral,na-criacaopublicitaria-a-mulherainda-e-invisivelimp-,1516674>. Acesso em: 15 Nov. 2015.

informacional. Então qual a grande problemática do avanço tecnológico? A mesma que impera desde os tempos da crítica de Karl Marx: a divisão internacional do trabalho. O acesso a capital intelectual, e com ele, a possibilidade de competitividade é muito mais fácil para aqueles países e grupos que já possuem tecnologia e meios para fazêlo. Além disso, informações básicas como endereços de hospitais, ofertas de emprego ou oportunidades educacionais que poderiam contribuir para o desenvolvimento social desses indivíduos excluídos são cada vez mais disponíveis na web - assim, por não possuirem acesso, o ciclo acaba se perpetuando cada vez mais enquanto aqueles que possuem o acesso (em seu significado mais extenso) acumulam oportunidades e controlam as decisões sociais. Mas não é simplesmente aumentando o acesso que fará com que esses indivíduos possam participar de forma ativa e benéfica na Sociedade da Informação. Como demonstrado por diferentes análises e pesquisas (LAWSOM-MACK 2001, WARSCHAUER 2004, HARGITTAI 2013), “alguns usos são mais propensos a produzir resultados benéficos do que outros” (SUSAN, 2013)9. Se medidas educativas mostrando como utilizar a internet não forem desenhados para esse público, e as possibilidades econômicas que o acesso a essas tecnologias podem trazer ensinados, dificilmente o uso comum da internet vai trazer privilégios necessários para esses usuários. Na verdade, os desinformados podem perpetuar ainda mais sua condição mesmo com o uso da internet. Um exemplo claro disso pode ser mostrado em uma análise superficial das mentiras políticas espalhadas pela rede social mais popular do Brasil - o Facebook. Aqueles que não possuem conhecimento da dinâmica de distribuição de notícias falsas, acabam por compartilhá-las e acreditando, minando uma experiência política mais condizente com o cenário real. Assim, forma-se uma legião de desinformados que colhem as desvantagens por participarem de um meio no qual não sabem a lógica do sistema. A desinformação acaba por fazer que muitos sejam vítimas de fraudes ou por instalarem malwares que roubam informações bancárias, por exemplo. Pensando-se no contexto da desigualdade de gênero, o cenário parece inicialmente positivo: no Brasil, por exemplo, mulheres são maioria do público conectado à Internet. (IBOPE BRASIL, 2015) Mas a desigualdade é muito mais complexa do que aquilo que os números podem evidenciar. Nesse sentindo, existe uma desigualdade feminina não no sentido de acesso ou uso, mas principalmente de apropriação da cultura tecnológica. Apesar do grande número de usuárias da rede, o número de mulheres controlando e dirigindo tecnologias da comunicação e da informação é bem menor do que o de homens (SCHELLER, 2014)10, além das práticas de opressão que ocorrem no mundo offline que são reencenadas no digital, como a pornografia online ou páginas que disseminam piadas de cunho machista. A partir de uma mudança de paradigma é possível que mulheres se tornem ativas no processo tecnológico ao invés de passivas usuárias. A apropriação:

O ato de apropriação não passa por uma concessão anterior do apropriado e nem é um ato inspirado por outros. Esta é a primeira manifestação da apropriação: a autonomia da ação . Apropriar-se é um ato intencional que se apropria. Não há uma concessão de 41


11 Tradução da Autora

El acto de apropiarse no se pasa por una concesión previa de loapropiado ni es un acto inspirado por terceros. Esto se convierteen la primera manifestación de la apropiación: la autonomía de laacción. Apropiarse es un acto intencional del que se apropia. No esuna concesión de terceros ni impuesto por terceros. Apropiarse esun acto dentro de la esfera de la subjetividad del que se apropia. Por eso, si la ejerce el dominado, el subalterno, el “otro”, es una inicia-tiva inalienable

terceiros ou imposta por terceiros. Apropriar-se é um ato dentro da esfera da subjetividade do que se apropria. Portanto, se ela exerce sobre dominado, o subalterno, o “outro”, é uma iniciativa inalienável (NEUMAN, 2008)11 O outro deixa de ser dominado para ser agente, recriando novas maneiras de fazer tecnológico. As possibilidades de inovação ao incluir mais pessoas no processo são infinitas. Novos olhares e produtos, com perspectivas muito diferentes das tradições que são utilizadas hoje podem emergir de um cenário mais inclusivo. Por mais que os dados mostrem para diversas mudanças de paradigmas, como o processo de queda do patriarcado citado por Castells nos tempos atuais, a mudança se torna muito mais lenta quando não existem incentivos sobre o assunto. Ainda mais quando a resposta não se reduz ao objeto material, ou seja, a criação de tecnologias inclusivistas. O design, o desenvolvimento, o uso, a difusão, o significado: tudo isso faz parte de um contexto excludente. Por isso diversos pesquisadores citam a chamada “brecha digital de gênero” (WAJCMAN 2006, ALONSO 2007, CASTANO 2008), que acaba por excluir mulheres de uma maneira cultural e simbólica, principalmente. Castells explicita um pouco dessa dinâmica ao explicar o contexto do seu “Espaço de Fluxos”, no qual:

12 Tradução da Autora

“presence or absence in the network and the dynamics of each network vis a vis others are critical source of domination and change in our society: a society that, therefore, we may properly call the network society, characterized by the preeminence of social morphology over social action”

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“presença ou ausência na rede e nas dinâmicas de cada rede vis à vis outras como sendo fonte essencial de dominação e de mudança em nossa sociedade: a sociedade que, por isso, podemos chamar apropriadamente de a sociedade em rede, caracterizada pela preeminência da morfologia social sobre ações sociais” (CASTELLS, 2007)12 No Espaço de Fluxos citado por Castells, as telecomunicações do século 21 permitem que trocas sociais ocorram de maneira simultânea mesmo que estejam separadas geograficamente. Apesar dessa possibilidade, é importante relembrar que existe o problema de acesso a essas telecomunicações. Mesmo com o custo da internet e de aparelhos que permitem o uso a ela caindo vertiginosamente, as inequalidades no uso da tecnologia também são substanciais. Isso ainda é mais evidente quando o design de usabilidade não é apropriado para o uso de pessoas que não possuem familiaridade com a interface. Como demonstrado na pesquisa etnográfica de Warschauer, Matuchniak: New Technology and Digital Worlds (2010), após analisar o uso de computadores por estudantes, acesso não é suficiente. Os estudantes ainda encontravam dificuldade e utilizavam os computadores de maneira substancialmente diferente, independente do acesso irrestrito que encontravam em suas escolas. É necessário o desenvolvimento de políticas para o pensamento baseado em sistemas, abstração, experimentação e colaboração. Por isso, ter a habilidade e possibilidade de participar da lógica em rede é tão importante para o desenvolvimento. Após sua profunda análise da Sociedade em Rede, Castells conclui que “A tecnologia informacional e a capacidade de usá-la e adaptá-la é o fator crítico na geração e acesso à riqueza, poder e conhecimento em


13 Tradução da Autora

“informational tecnology and the ability to use it and adapt it, is the critical factor in generating and acessing wealth, power, and knowledge in our time”.

14 Tradução da Autora

“Dominant functions are organized in networks pertaining to a space of flows that links them up around the world, while fragmenting subordinate functions, and people in the multiple space of places, made of locales increasingly segregated and disconnected from each other”.

15 Tradução da Autora

The overall policy challenges is not to overcome a digital divide but rather to expand access to and use of ICT for promoting social inclusion”

nosso tempo”. (CASTELLS, 2007) 13. Informação é uma das principais formas de acesso a capital (seja ele cultural, intelectual ou econômico). Dessa maneira, enquanto o acesso a informação e conhecimento for limitado e desigual, a rede se retro-alimentará de práticas excludentes, de forma que aqueles que não estão dentro da dinâmica atual terão a possibilidade de participar.

“Funções dominantes são organizadas em redes pertencentes a um Espaço de Fluxos que estão ligadas ao redor do mundo, enquanto funções subordinadas são fragmentadas, e as pessoas no múltiplo espaço de lugares, feito de localidades cada vez mais segregadas e desconectadas um do outro...”(CASTELLS, 2007)14 Ou seja, dentro desse espaço, funções dominadoras seriam conectadas enquanto as funções subordinadas serão cada vez mais segregadas. Pensando-se em alguns empregos que seriam os dominadores neste contexto, pode-se citar os analistas simbólicos (WARSCHAUER, 2010) como cientistas, executivos, designers, marketeiros… Enquanto o salário e o número de empregos ofertados para trabalhos de produção (como aquelas funções que trabalham com processamento de dados ou de fábrica) ficarão mais escassos e segregados, a categoria dominante vai acumular cada vez mais capital. Pense no exemplo de um planejamento de uma grande agencia de publicidade. Tirando aquelas pesquisas com dados protegidos pela empresa ou encomendadas, normalmente esses profissionais usam como fonte de pesquisa o Google - que pode ser acessado por praticamente qualquer um com acesso a internet. O que diferencia esse profissional (além da dedicação a essa função, é claro) é sua habilidade de identificar e fazer a curadoria de dados importantes, e comunicar soluções através de conceitos mais tangíveis. Acesso não o fez diferente - e sim a forma como as informações são analisadas. Condições sociais como posição geográfica, educação e contexto de uso das TICs são pontos que devem ser levados em conta ao criar políticas de inclusão digital, e não simplesmente ampliar a pontos de wi-fi ou computadores públicos, por exemplo. “De maneira geral, os desafios políticos não é de superar a brecha digital, mas sim de expandir o acesso e utilização das TICs para promover a inclusão social” (WARSCHAUER, 2003)15 Sobre a segregação ocupacional e social das mulheres podemos traçar a linha divisória sobre o seu papel na indústria de inovação:

“A importância no papel das mulheres que encontramos em todas as novas tecnologias é simples: Elas são as operadoras. Elas pressionam os botões ou as teclas. Elas são as únicas que fazem com a máquina o que ela foi construída para: elas produzem sobre ela, como em tomografia computadorizada, padrões já estabilizados ou classificados, ou simplesmente dar por concluída as ordens para os empacotadores do correio. O seu papel é de saída e não de entrada. O que as mulheres não podem ser vistas fazendo [...] é a gestão tecnologia, ou desenvolvendo a sua utilização [...] As mulheres estão adquirindo o ‘que’ do conhecimento, mas não o 43


16 Tradução da autora

“The significance of the role we’ve found women playing in all the new technologies is simple: They are operators. They press the buttons or the keys. They are the ones who do with the machine what it is made for: they produce on it – CT scans, graded patterns and lays, or simply completed orders for the mail order packers to parcel up. Their role is output not input. What women cannot be seen doing […] is managing technology, developing its use […] Women are acquiring the ‘what’ kind of knowledge, but not the ‘how’, the ‘why’ and the ‘whether’ of technology”

“como”, o “porquê” e o “se” da tecnologia” (COCKBURN, 1985)16. Mulheres então ainda possuem funções majoritariamente subordinadas em relação à tecnologia, o que se agrava ainda mais no contexto da Sociedade da Informação apresentado. Um outro ponto que divide e exclui pessoas a se relacionarem com as interfaces da TICs é exatamente a questão da compreensão de uso da interface. Não se consegue mexer em um Iphone se não for explicado que ele funcionará através do sistema “touchscreen”. Pode parecer um exemplo fora da nossa realidade, no qual existem mais celulares do que pessoas em certas cidades brasileiras, mas esse experimento pode ser facilmente observado: peçam para que um idoso que não está acostumado a lidar com celulares para abrir um aplicativo. O termo “analfabetismo digital” aborda essa problemática que não está relacionada ao acesso, da mesma maneira que não é simplesmente permitindo o acesso a mulheres à Internet que a opressão sofrida será minimizada. Na extensa revisão de Susan Halford e Mike Savage, chamada de Reconceptualing Digital Social Inequality (2010), os autores alertam para o fato de que a ideia do “digital divide” não se baseia simplesmente em uma divisão, mas sim em uma inequalidade muito mais expressiva: já é comprovado que as TICs implicam em desigualdades analisando-se fatores como raça, gênero, classe e até idade. A problemática em definir esse conceito como uma divisão, segundo os autores, é que separa tecnologia do processo social, enquanto as duas são muito mais interligadas. Ao se estudar a Divisão Digital como uma fronteira entre aqueles que possuem acesso a tecnologia e a usam, e aqueles que não o podem ou conseguem, essa análise acaba por superficializar processos mais complexos de estratificação social. Bruno Latour, que introduz a teoria do Ator-Rede, critica tal tipo de análise lembrando que a utilização de categorias pré-existentes como classe e gênero são preconceitos que promovem agregados sociais ao invés de analisarem a partir de uma sociologia associativa, como proposta em sua teoria. Usando a ANT (do inglês, Actor Network Theory), deve-se eliminar a possibilidade de grupos sociais préexistentes, e partir a análise sem esse tipo de categoria. Pensando-se nesse tipo de análise, as desigualdades observadas dentro do meio digital, por exemplo, são causadas muitas vezes por condições muito mais complexas estruturalmente. Agora, existe um paradigma observado pelos sociólogos contemporâneos que deve ser analisado com muita atenção para não influenciar diretamente na maneira como são averiguadas o uso dessas tecnologias. Como já mencionado, mas que será abordado com mais profundidade no próximo capítulo, as tecnologias são dotadas de ideologias e significações marcada tanto pela sua construção, design e contexto. Assim, não podemos simplesmente definir qual a posição ideológica de uma tecnologia, afinal, essa posição será muitas vezes definida pelo seu contexto de uso. Como explicado por Susan Halford, esse tipo de suposição acaba por muitas vezes se resumir em um modelo de “input-output”: “o ‘input’ social - de raça, por exemplo - formam como as tecnologias são usadas, que por sua vez moldam os ‘outputs’, o mais provável (neste exemplo) é a

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17 Tradução da Autora “the social input - race, for example - shapes how technologies are used, which in turn shapes output, most likely (in this example) the reproduction of racial inequality”

reprodução da desigualdade racial”. (2010)17. Pensando-se na dinâmica proposta por Latour, no qual não se deve considerar agrupamentos sociais pré-existentes, uma análise mais refinada procuraria atentar como processos culturais e sociais que determinam o que significa pertencer a uma raça acabam por definir certos usos da tecnologia, enquanto a tecnologia também é analisada dentro de um contexto no qual configura como raça é percebida. Assim, esse relacionamento correspondente e recíproco deve ser analisado, ainda mais dentro do seu contexto cultural e temporal, que está em constante mudança e evolução. Além disso, como proposto pelos sociólogos pós-modernos, esse tipo de problemática pode ser muito mais multifacetada do que aparenta na superfície. Para compreender o relacionamento da Sociedade da Informação com a tecnologia, é importante ressaltar como se dá a criação tecnológica dentro deste contexto. Como nos encontramos em uma época na qual a sociologia é vista através de correntes de pensamentos pós-estruturalistas e construtivistas, e a “realidade” é estudada através de suas representações e simbologias, podemos concluir que uma tecnologia e sua atuação em algum conflito social pode ser analisado como uma representação de algo muito mais complexo. Através dos estudos linguísticos, já existe a compreensão que todo signo é ideológico (BAKHTIN, 1992), e nesse sentido, a tecnologia também é sígnica e representa seu momento histórico e cultural. Pode-se afirmar então, que a criação tecnológica também possui motivações pautadas em forças históricas e culturais. Castells explica em sua análise sobre os pólos inovadores do mundo (como o Vale do Sílicio nos Estados Unidos) que alguns requisitos são necessários para que ocorra a inovação tecnológica:

18 Tradução da Autora

“technological innovation is not an isolated instance. It reflects a given state of knowledge, a particular institutional and industrial environment, a certain availability of skills to define a technical problem and to solve it, an economic mentality to make such application cost-eddicient, and a network of producers and users who can communicate their experiences cumulatively, learning by using and by doing”

“a inovação tecnológica não é um exemplo isolado. Ela reflete um dado estado de conhecimento, um ambiente institucional e industrial particular, e uma certa disponibilidade de competências para definir um problema técnico e para resolvêlo, uma mentalidade econômica para fazer tal aplicação com custo benefício, e uma rede de produtores e usuários que podem comunicar as suas experiências cumulativamente que aprendem pelo uso e pela prática” (CASTELLS, 1997)18. Esses tipos de espólios (econômico, social, cultural e simbólico) são conceituados por Bourdieu como “capital”, ou seja, poderes que atuam dentro de áreas que compõem a percepção do mundo social. É importante entender o conceito de capital de Bourdieu, porque a partir dele poderemos compreender a relação entre a criação tecnológica e sua característica excludente. A partir dessa definição de capital pode-se analisar em que contextos e situações no qual ele pode ser acumulado. Assim, pode-se afastar da ideia pré-definida que alguns grupos possuem em sua essência características que os fazem desiguais ou oprimidos. É importante lembrar também que Bourdieu critica um estudo feito com grupos sociais pré-definidos e ao invés disso analisar como é que as “fronteiras” entre os grupos são construídas. Pensando assim, conglomerados sociais que possuem a capacidade de acumular capital acabam por ter vantagens e distinção sobre outros que não podem acumular a mesma quantidade de capital. Um exemplo claro disso no Brasil

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é o fato de estudantes de boas escolas serem mais aprovados nos melhores vestibulares do país: a partir do acesso a capital intelectual, eles podem trilhar o caminho para acesso a acumular ainda mais esse capital. Como podemos observar, o processo pelo qual essa acumulação se dá é importante para entender como se estabelecem desigualdades e desvantagens entre grupos. A partir desta definição de Bourdieu, podemos perceber que ao observar desigualdades causadas por tecnologia, a presença ou ausência de conhecimento técnico não necessariamente produz uma vantagem per se (HALFORD, 2010). O contexto no qual essa tecnologia é utilizada, assim como o capital já acumulado pelo utilizador fazem mais sentido nessa análise do que simplesmente começar a análise a partir do pressuposto que um grupo é explorado. Apesar dessa definição ajudar a elucidar um pouco as desigualdades na esfera digital, é importante lembrar que as TICs possuem características que tornam sua análise um pouco mais complicada, como sua origem advinda de uma malha de conhecimento e capacidade produtiva mais complexa.

19 Tradução da Autora

“A central theme in the timehonored ideology of progress, the belief that technological development and the enhancement of human abilities move foward together, is now effectively undermined by innumerable systems that assume most working people are incompetent. A recurring pattern in modern technological and cultural transformation is that, as new technologies are invented, the kinds of people who will be using them are also invented.”

“Um tema central consagrado na ideologia do tempo de progresso, a crença de que o desenvolvimento tecnológico e a melhoria das capacidades humanas avançam juntos, agora está efetivamente prejudicado por inúmeros sistemas que assumem que a maioria dos trabalhodores são incompetentes. Um padrão recorrente na transformação tecnológica e cultural moderna é que, à medida que novas tecnologias são inventadas, os tipos de pessoas que vão utilizá-las também são inventados” (BENDER e DRUCKEY, 1994). Portanto, ao observar aquilo que faz uma tecnologia “excludente” para algum tipo social, primeiramente deve-se compreender que tipo de capital acumulado o outro possui para criar essa barreira. Além disso, o contexto no qual a tecnologia é utilizada ou se encontra pode variar. E outras vezes ainda, a tecnologia não é o fator de exclusão, mas sim suas regras de utilização. Nesse sentido, podemos pensar em como algumas tecnologias não são aprendidas facilmente pois seu ensino é regulamentado. Assim, podemos de novo evocar a teoria Ator-Rede de Bruno Latour para desenhar a explicação sobre esses relacionamentos de exclusão. Essa análise irá se basear na proposta desenhada por Susan Halford & Mike Savage sobre a intersecção das duas teorias, e apoiar-se na ideia que possuem complementariedade. Uma das bases da teoria do atorrede é que o mundo material é também o mundo social, e o poder faz parte dessa rede. Se poder ocorre apenas onde há desigualdade, existe assim uma diferenças de poderes no mundo material, ou seja, nas tecnologias. De uma maneira geral, podemos concluir que as tecnologias são aquilo que nós fazemos delas, e por sua vez, as tecnologias acabam tendo agencia. As rede-sociotécnicas continuarão a se perpetuar enquanto existirem pessoas que continuarem a repetir e reproduzir seus valores. Vide o machismo e o sexismo: não são essas instituições, mas sim processos sociais. Enquanto atitudes machistas continuarem se perpetuar através dos objetos criados, atitudes e linguagem (ou seja - tecnologias) e permeando diversos

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aspectos da nossa cultura, esses processos continuarão a existir. Mas, principalmente através das teorias sociológicas contemporâneas como as citadas acima, é muito mais fácil investigar como funcionam esses processos que produzem desigualdade. Se olharmos o machismo ou o racismo como uma rede que possui diversos atores que continuam a perpetuá-la ao invés de uma instituição, podemos promover ações em atores específicos que ataquem sua durabilidade.

20 Tradução da Autora

“A central theme in the timehonored ideology of progress, the belief that technological development and the enhancement of human abilities move foward together, is now effectively undermined by innumerable systems that assume most working people are incompetent. A recurring pattern in modern technological and cultural transformation is that, as new technologies are invented, the kinds of people who will be using them are also invented.”

21 Tradução da Autora

“Science is global, but it also reproduces in its internal dynamics of process of exclusion of a significant proportion of people, by not treating their specific problems, or by not treating them in terms which could yield results leading to improvement in their living conditions”

“Existe, portanto, uma relação estreita entre os processos sociais de criação e manipulação de símbolos (a cultura de nossa sociedade) e a capacidade de produzir e distribuir bens e serviços (as forças produtivas). Pela primeira vez na história, a mente humana é uma força produtiva direta, e não apenas um elemento decisivo do sistema de produção” ( CASTELLS, 2007)20. Como a mente humana é cada vez mais parte do processo de produção, a dominação de certos tipos de pensamento sobre outros acaba por permear a produção. Então, não é surpreendente que a ciência e a tecnologia sejam “enviesadas”. Seres humanos são formados por todo o universo simbólico que os circunda, e suas ações possuem teor ideológico. Ora, se a mente humana é uma das forças produtivas, não é de se estranhar que aquilo que for produzido sirva aos propósitos intuídos pelos seus criadores. E se a cadeia produtiva muitas vezes se insere em um contexto capitalista, no qual o dinheiro gasto com inovação tecnológica deve servir ao objetivo de gerar lucro, é normal que as descobertas e inovações sejam criadas com esse propósito - mesmo que indiretamente. A partir disso partimos para uma terceira conclusão: aquilo que está sendo produzido tenta se vender ou atender os interesses daqueles que podem consumir, ou seja, a elite econômica mundial. Problemáticas como desigualdade ou exclusão sejam tópicos constantemente discutidos no processo de design entre aqueles que possuem o capital para inovar.

“A ciência é global, mas também reproduz em sua dinâmica interna processos de exclusão de uma porção significativa de pessoas, por não tratar os seus problemas específicos, ou por não tratá-los em termos que poderiam produzir resultados que conduz à melhoria em suas condições de vida” (CASTELLS, 2007)21. O conhecimento humano e a inovação tecnológica, de maneira geral, cresce e se modifica de maneira exponencial. Mas ainda assim, certos indivíduos e grupos acabam por não participar tão ativamente dos benefícios e desenvolvimentos proporcionados por essas tecnologias. E de maneira geral, essas diferenças e desigualdades ocorrem pela ação de diversos atores (humanos e não humanos) dentro de diferentes redes, que alimentam-se mutuamente e se perpetuam. Como explicado por Nell Tenhaaf ,

“A filosofia da tecnologia .... foi articulada a partir de uma perspectiva masculina em termos que metaforizam 47


22 Tradução da Autora

The philosophy of technology…. has been articulated from a masculinist perspective in terms that metaphorize and marginalize the feminine. In real social discourse, this claiming of technology has been reinforced by, and has probably encouraged, a male monopoly on technical expertise, diminishing or excluding the historical contributions of women to technological developments

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e marginalizam o feminino. No discurso social real, esta reivindicação de tecnologia tem sido reforçado por, e provavelmente encorajado, um monopólio masculino em conhecimentos técnicos, diminuindo ou excluindo as contribuições históricas das mulheres à evolução tecnológica” (PENNY, 1995)22. Em conclusão, são muitos os fatores que levam a disparidade na representação feminina dentro da Sociedade de Informação. Se a dinâmica dessa sociedade é pautada no capitalismo, e o sexismo da maneira como é manifestado é um subproduto desse sistema, é de se esperar que o sexismo esteja embutidos em diversos processos e ações dessa dinâmica. Aqui, o foco é principalmente as tecnologias - e como foi explicado, a inovação tecnológica pertence a um grupo particular, que possui os capitais e condições o suficiente para fazer parte desses pólos inovadores. Esses pólos possuem seus próprios valores, e acabam por reproduzi-los e retroalimentam sua própria dinâmica. E esse processo é coordenado por uma elite primordialmente masculina, que acaba por oprimir a participação feminina a partir do seu monopólio.


CIRCUITOS

REDES

TELAS


De acordo com a teoria do Construtivismo social, o determinismo tecnológico possui diversos problemas conceituais - principalmente se analisado o que as tecnologias são criadas e desenhadas por humanos. Existe um grande movimento intelectual, principalmente circundando as faculdades de Exatas, de que todas as transformações atuais da sociedade partem da tecnologia. Essa é uma visão extremamente simplória dos processos que envolvem a criação da tecnologia. O essencialismo ou o determinismo tecnológico fazem com que a sociedade acabe por ter um papel passivo e contemplativo em relações à tecnologia. A escolha de autores como Bordieu, Castells e Latour foram feitas para distanciar dessas correntes de pensamento que afirmam que os objetos são independentes e que suas ações para promover a desigualdade ocorrem de forma emancipada. E como já demonstrado pelo capítulo anterior, podemos perceber que a mente humana é muito mais ativa e que seu papel é de extrema importância. Para analisar uma tecnologia através das lentes do construtivismo social é necessário uma metodologia. Pinch e Bjiker (1986) introduziram o modelo SCOT, acrônimo de “construtivismo social da tecnologia”. Neste modelo, 5 elementos principais devem ser analisados ao estudar tecnologia: grupos sociais relevantes, problemas e conflitos, flexibilidade interpretativa, flexibilidade de design e estabilização. Apesar desse modelo ter sido revisto e criticado por alguns autore, ainda é um modelo relevante para iniciar uma discussão sobre práticas sociotecnológicas, ou como a tecnologia e suas práticas possuem relação. A partir dele, pode-se traçar aquilo de mais importante que circunda e influencia a posição de uma tecnologia dentro de uma sociedade. Como explicado no capítulo anterior sobre a Sociedade em Rede, para que uma nova tecnologia seja implementada e usada, primeiramente deve-se existir condições sociais e políticas para tal. E mais ainda: é necessária uma mentalidade pré-existente que favoreça a fruição de ideias e do empreendedorismo. Agora, relacionando esse cenário com a questão da divisão entre os gêneros, pode-se perceber que algumas tecnologias não possuem o “capital de interesse” o suficiente para serem desenvolvidas. Assim, podese citar o caso da pílula de testosterona (OLIVEIRA, 1997), que foi desenvolvida na mesma época que a pílula de progesterona utilizada como anticoncepcional atualmente, mas não foi comercializada e melhor desenvolvida. Uma das razões apontadas é o fato que os primeiros testes da pílula acabaram diminuindo o libido e tornando alguns homens estereis mesmo 2 anos após o interrupção do uso da pílula. Ora, as pílulas para mulheres também possuem efeitos colaterais até nas suas versões mais modernas, como a também queda de libido e a possível formação de coágulos. Será que forças políticas não tiveram uma participação mais profunda no desenvolvimento dessa tecnologia reprodutiva? Um exemplo muito elucidativo é trazido por Judy Wajcman, que analisa a industria têxtil:

“Existem algumas evidências históricas de que a taxa do desenvolvimento tecnológico dependeu, ao menos em parte, do preço da força de trabalho disponível e da flexibilidade de sua habilidade. Por exemplo, a indústria do tecido tem permanecido tecnologicamente estática desde o século dezenove, com poucas 50


mudanças no processo de costura. Certamente, há obstáculos puramente técnicos à mecanização da produção de tecido, como o material mole envolvido na produção e as mudanças de estilos e moda. No entanto, deixando de lado as dificuldades técnicas, haverá menos incentivo para investir na automação se houver força de trabalho qualificada e barata disponível . Portanto, há um elo importante entre o status da mulher enquanto uma trabalhadora não qualificada e mal remunerada e a medida desigual do desenvolvimento tecnológico. Tradicionalmente é a mulher quem costura e quem está disponível a baixos salários, tanto nos países de Terceiro Mundo quanto como trabalho migrante em países capitalistas mais avançados” (WAJCMAN, 1998). Dessa maneira, o empreendedorismo e a influência que o gênero tem sobre o processo de inovação tecnológica pode ser muito mais profundo e importante do que a atenção mínima que lhe é dado atualmente pelos estudos antropológicos e históricos. Ao analisar o desenvolvimento tecnológico de algum aparato em específico, algumas das questões que poderiam ser levantadas em relação ao gênero podem ser por exemplo sobre o porque existirem mais homens em determinado setor ou mais mulheres, como o aparato contribuiu simbolicamente para a performatividade de gênero, ou até mesmo qual era o antecedente cultural e social dos criadores da tecnologia.

23 Tradução da Autora

“Of course, technology does not determine society, technology is society and society cannot be understood or represented without its technological tools”

Sociedades privilegiadas possuem à sua disposição as tecnologias mais avançadas para suprir as necessidades humanas. Primeiramente a tecnologia era criada para tornar algumas atividades que o corpo humano não conseguiria realizar tão facilmente mais “executáveis”. Hoje em dia, podemos afirmar que agora as tecnologias procuram até transcender o humano, tornando aquilo que seria impossível de ser realizado por um indivíduo, possível. Podemos usar de exemplo o nosso próprio sistema monetário - que utiliza sistemas computacionais tão complexos para definir o valor de uma moeda, que é impossível para que um indivíduo ou um grupo de pessoas conseguissem defini-los com a mesma precisão. Mas afinal, o que é a tecnologia que tanto discutimos? E por que discutir tecnologia? Já está explícita a relação entre a tecnologia e sua produção com a sociedade, mas é necessário especificar mais discriminadamente seu relacionamento com o comportamento humano. “Claro, a tecnologia não determina a sociedade, a tecnologia é a sociedade e a sociedade não pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas tecnológicas” (CASTELLS, 2007)23. Mas então, o que a tecnologia quer? É exatamente isso que o estudioso Kevin Kelly tenta responder em seu livro homônimo. A conclusão de seu livro é que no final, a tecnologia irá servir para trabalhar como um meio para que humanos possam alcançar seu verdadeiro potencial. Toda tecnologia inventada será utilizada para realçar aquilo que os humanos têm de melhor. Ou, utilizando-se de exemplos de tecnologias já existentes, permitirem que a humanidade vá além do que seria possível sem ela, como uma visita a Lua ou que um amputado pudesse voltar a andar. Já para Johnson (2006):

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24 Tradução da Autora

While technology often originates with engineers, many other actors and institutions are involved in determining which technologies succeed, how technologies are used, and what cultural meaning is associated with them. […] We encounter technology as we move physically and socially through our lives.

25 Tradução da Autora

“While technology per se does not determine historical evolution and social change, technology (or the lack of it) embodies the capacity of societies to transform themselves, as well as the uses to which societies, always in a conflictive process, decide to put their technological potential”

26 Tradução da Autora

“Technology is neither good or bad; nor is it neutral”

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“Embora a tecnologia muitas vezes tem origem com os engenheiros, muitos outros atores e instituições estão envolvidos na determinação de quais tecnologias terão sucesso, como as tecnologias são utilizadas, e que significado cultural está associada com eles. [...] Nós encontramos a tecnologia enquanto nos movemos fisicamente e socialmente através de nossas vidas”.24 Tecnologia, então, é tudo aquilo que podemos considerar tecnologia. Tecnologia não é separada da ciência, e muito menos da sociedade, são também produtos culturais. De maneira resumida, tecnologia é representada pelo uso que é feito dela. Mas então, qual o papel da tecnologia na sociedade? “Embora a tecnologia por si só não determina a evolução histórica e a mudança social, a tecnologia (ou a falta dela) admite a capacidade das sociedades de se transformar, assim como os usos que as sociedades, sempre em um processo conflituoso, decidem colocar seu potencial tecnológico” (CASTELLS, 2007)25. Tecnologia não é apenas o meio, mas também um catalisador: é a partir dela que podemos potencializar a capacidade humana. De maneira reducionista, ao mencionar “tecnologia” no decorrer desse trabalho, abarcará as definições mencionadas acima. E como o foco desse trabalho é ainda mais específico, discriminando as tecnologias da informação e comunicação, é importante lembrar que não estamos falando apenas da ferramenta, mas sim todas as decorrências que levam até ela. Também poderíamos criticar o determinismo tecnológico tendo em vista os diferentes usos que se distanciam do objetivo inicial dos designers em redes sociais ou aplicativos. Um exemplo interessante é o aplicativo 99taxis que foi usado como uma ferramenta para oferecer serviços de prostituição a taxistas. Podemos chamar esse tipo de customização do uso como “cultura hacker” - isto é, a adaptação de uma tecnologia aos desejos do usuário, modificando o código e o design como forma de subverter objetivos pretendidos para objetivos pessoais. Tanto os usuários quanto os designers participam da criação do valor simbólico de uma tecnologia. Esse relacionamento será principalmente investigado no terceiro estudo de caso, focando em games. Como forma de reforçar o argumento da construção social dos valores tecnológicos é interessante referir-se a Primeira Lei de Kranzberg (1986) : “Tecnologia é nem boa ou ruim, muito menos neutra” 26. A tecnologia por si só não possui valores hereditários: os valores são formados por aquilo que foi trazido dos seus designers e da utilização dos usuários. Assim, ao analisar os fatores negativos de uma tecnologia, é interessante principalmente compreender o seu uso e as práticas ligadas a ela. Além disso, traduzir os efeitos em “ruins” ou bons é extremamente dualista, e oferece uma visão muito reduzida. Não é porque uma tecnologia promove a desigualdade que isso faz com que todos os seus usos sejam negativos. Assim, ao falar de desigualdade, é necessário ter em mente que isso parte de uma análise dentro de um contexto, e passível de resignificações. Uma maneira de realizar essa análise é pensar no termo “agencia”, citado por Akrich e Latour: atores não-humanos que possuem papéis morais e materiais intrínsecos ao seu design


e papel no mundo físico. Ou seja, dentro de uma rede, mesmo objetos podem ser considerados atores, e não estamos falando apenas de sua “fisicalidade”, mas sim, suas interações. Ora, sociedade e tecnologia são tão entrelaçados que separá-los acaba em não apenas simplificar uma análise, mas também perder uma verdadeira compreensão sobre o objeto analisado. Ao estudar aquilo que tange o computador, as redes sociais, a realidade virtual e games não basta apenas analisar a constituição do objeto per se ou suas implicações: é necessário avaliar a cadeia de fatores sociais, condições culturais e ideologias que configuram seu desenvolvimento. A análise deve se basear em como a tecnologia está sendo usada e replicando atitudes que promovem a desigualdade. Um caminho para traçar essas desigualdades, como sugerido por Judith Butler (2004), é analisar o discurso que permeiam essas tecnologias. Dessa maneira, seria possível compreender o que produz “acessibilidade dentro do sistema” (FOCAULT, 1997). De maneira geral, as perguntas que podem ser feitas para traçar esse tipo de análise, irão tangir as relações de poder e conhecimento dentro dos sistemas de opressão. “Por que existem menos mulheres na área de engenharia? Por que faltam ícones femininos na área de tecnologia?”. Butler também lembra que para compreender aonde a desigualdade e o poder se encontram, é necessário olhar para os momentos de exceção. Como no exemplo que iniciou a formulação da hipótese de Butler sobre drag queens, algumas formulações podem ser pensadas. “O que faz uma drag queen diferente de uma mulher? Por que essas características conhecidas como femininas podem ser reproduzidas para homens? Por que ser mulher é engraçado - enquanto o contrário não é verdadeiro?” Um exemplo muito elucidativo de como as relações de poder são traçadas dentro dos trabalhos que segregam gêneros foi feito por Wajcman e Cockburn. Ao compreender que existe uma concepção social que relaciona homens com destreza e força e mulheres com incompetência física, máquinas e processos de produção serão criados com esses viéses. O trabalho de um “pedreiro”, demanda muita capacidade física, e isso independe de seu gênero. Um senhor muito velho, uma criança, um homem jovem com problemas musculares - todas essas figuras possuem capacidades físicas menos potentes para realizar esse trabalho de que uma mulher de meia idade saudável. Mas o trabalho de “pedreiragem” já está muito relacionado com um universo sígnico extremamente masculino, tanto que os assédios que mulheres recebem nas ruas são aproximados com essa figura. Ademais, como os trabalhos de construção são relacionados diretamente com o uso de músculos, as ferramentas criadas para a execução desse tipo de trabalho serão feitas com uma persona em mente que já possui essas capacidades físicas.

“As prensas e as chapas de impressão poderiam ser menores também. A tradição tem decidido sozinha a partir de que peso devese introduzir o uso dos guindastes e dos bondes para carregar as formas. Não há nada de natural nas unidades de trabalho. Seja para fardos de feno ou para sacos de 50 kg de cimento ou emplastro, o desenho é sempre político”. (WAJCMAN, 1998) Aqueles que fazem parte do sistema de produção de uma obra também possuem interesses específicos e de cunho político e ideológico no design, no uso e

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no desenvolvimento de ferramentas. Como as lógicas que regem a construção civil são extremamente relacionadas com interesses capitalistas, ou seja, voltados ao acúmulo de capital, é de se esperar que os critérios de avaliação para as ferramentas também sejam esses. É de interesse construir ferramentas que consigam aumentar a eficiência do trabalho utilizando o mínimo de energia, e para utilizar o mínimo de energia o patamar de potencia é elevado. O uso da força mecânica, braçal, é “inesgotável” e leva a menores custos de produção. A conclusão de Wajcman sobre essa lógica chega a ser catastrófica: “Os trabalhadores homens usam sua efetividade corporal e técnica para desenhar a maquinaria e as tarefas de trabalho a fim de se constituírem a si mesmos como os trabalhadores capazes, e as mulheres, como incapazes” (WAJCMAN, 1998). A experiencia dos pedreiros atuais, suas necessidades e visões para a profissão que inspiram o trabalho dos engenheiros que irão criar a maquinaria industrial que vai melhorar seu trabalho. Essa lógica acaba por perpetuar a ideia de que as mulheres são incapazes de realizar este trabalho, afinal, as ferramentas também não são baseadas em ideias para incluí-las. Não é como se essa lógica fosse intencionalmente excludente ou que sempre sejam feitas dessa maneira, mas é um exemplo que pode elucidar como os poderes se perpetuam na divisão para “trabalhos de mulher” e “trabalhos de homem”. Neste contexto, a tecnologia não é uma força de mudança, pois é desenhada a partir de relações de gênero já existentes e desiguais. Diversas autores se propuseram a estudar a visão tecnológica através do viés do gênero. A conclusão principal é de que tudo aquilo que tange tecnologia ou aparatos tecnológicos é considerado “masculino” como apresentado por diversas pesquisas (JOHNSON, 2006; TURKLE 2001; WAJCMAN 1998; FAULKNER, 2000). Como citado no artigo de Stanley (1998), até o termo tecnologia muitas vezes é usado de forma a enfraquecer o papel da mulher: objetos criados e utilizados por homens são chamados de tecnologia, mas objetos usados por mulheres são chamados de utensílios domésticos ou ferramentas. Historicamente, domínios do conhecimento ou habilidades dos homem são chamadas de tecnológico ou técnica, enquanto aquelas performadas pelas mulheres foram chamados de artesanato.

27 Tradução da Autora

“we do not see reality as it is, but as our languages are. And our languages are our media. Our media our metaphors. our metaphors create the content of our culture.”

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Focando em tecnologias específicas que tangem a informação e a comunicação, existe ainda um escopo ainda mais profundo do que uma análise feita simplesmente com tecnologia de artefatos. Nas TICs, ainda precisamos analisar toda a questão da influencia da comunicação. Castells explica um pouco essa problemática ao explicar sobre a emergência da “cultura da real virtualidade”. Basicamente, é uma cultura mediada pelos interesses e forças definidas pela mídia. E como a cultura é mediada e se apresenta através das comunicações, isso acaba sendo a cultura em si. A grande importância da comunicação, como explica Postman (apud CASTELLS, 2007), é que a comunicação acaba por ser uma formadora de cultura pois é a partir dela que ela se manifesta. De maneira mais resumida: “nós não vemos a realidade como ela é, mas como nossas linguagens são. E as nossas linguagens são as nossas mídias. Nossa mídia nossas metáforas. E nossas metáforas criam o conteúdo da nossa cultura.” (CASTELLS, 2007)27. E é muito importante se atentar em como a comunicação está sendo mediada


através dessas tecnologias - afinal, a forma pela qual a informação é transmitida passa por todo o processo de códigos e convicções de seus engenheiros e designers, além das significações dadas por seus usuários. Em suma, para realizar uma análise sobre a desigualdade de gênero dentro das TICs, é importante pensar que discursos dentro do ciberespaço que promovem essa desigualdade e também na linguagem utilizada por eles. Nos tempos atuais, uma parte muito significativa da população passa grande

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Brasileiro gasta mais tempo na internet do que vendo televisão. Comportamento. Disponível em: .otempo.com. br/interessa/comportamento/ brasileiro-gasta-mais-tempona-internet-do-que-vendotelevisão-1.963760>. Acesso em: 15 Nov. 2015.

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2015 Brazil Digital Future in Focus. comScore, Inc. Disponível em: .comscore. com/por/imprensa-eeventos/apresentacoes-edocumentos/2015/2015brazil-digital-future-in-focus>. Acesso em: 15 Nov. 2015.

parte do seu dia se comunicando com seus pares através de uma tela. São diversos os tipos de TICs e, a cada dia, uma nova maneira de se comunicar, adequada ao contexto histórico-cultural no qual se encontra, é lançada. Seja por SMS, email, Whatsapp, Facebook Messenger ou Snapchat, muito da sociabilidade é feita através da Internet. Como mostrado por uma pesquisa conduzida pelo Ibope, 37% da população brasileira se conecta todos os dias na Internet, e gastam cerca de 5 horas por dia online durante a semana (AGENCIA BRASIL, 2015)28. Outra pesquisa, realizada pela comScore, mostra que 45% dos brasileiros gastam cerca de 650 horas por mês navegando nas redes sociais. Para efeitos de comparação, essa média é 60% maior do que a do resto do mundo. Sobre o gênero desses usuários brasileiros, a proporção é bem balanceada: 50.5% dos usuários são homens e 49.5% são mulheres (COMSCORE, 2015)29. E o número de usuários e tempo gasto navegando só tende a crescer, impulsionado pelo barateamento das tecnologias necessárias. A ubiquidade das TICs chega com o melhoramento de sua velocidade e mobilidade. Como explicado por Castells (2007), a sociedade em rede funciona de maneira “hipersocial, não uma sociedade do isolamento”. Entretanto, essa rede funciona a partir de diversos indivíduos conectados, formando assim uma rede constituída pelos mais diversos tipos de informações únicas, só que interligadas. Os usuários se encontram dentro de um novo funcionamento discursivo, heterogêneo, no qual aparentemente há abertura para todos os tipos de ideologias e ideias. Mas a realidade é outra: as relações de poder dentro do ciberespaço tornam fácil o acesso a certos tipos de ideias e ideologias, enquanto outros são impedidos de fazer parte do mainstream ou relegados a segundo plano. Mas afinal, o que exatamente é o ciberespaço? O termo apareceu pela primeira vez no romance Neuromancer, do escritor William Gibson em 1984. Dentro desse romance, o ciberespaço era uma alucinação coletiva representada como um universo, que mostrava os dados retirados dos computadores de maneira gráfica. Ora, essa definição se aproxima muito de uma metáfora para aquilo que é compreendido como ciberespaço. O francês Pierre Lévy (2000), define “o ciberespaço (que também chamarei de “rede”) é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores.” O interessante dessas definições é que elas se pautam na imaterialidade do ciberespaço, mas ao mesmo tempo reconhecem sua fisicalidade. Wertheim, em seu livro Uma história do espaço: de Dante à Internet, compara o ciberespaço com um espaço cartesiano, quase que tridimensional, mas que não está sujeito às leis da

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física e que não é possível de se determinar através de coordenadas matemáticas. O comentário mais interessante da autora é seu paralelo entre o pensamento Iluminista e o ciberespaço: da mesma maneira que os iluministas acreditavam na divisão de corpo e mente, assim é pensado o relacionamento com o ciberespaço. Um depende do outro, e ainda não é possível acessar as informações na internet sem que o corpo físico performe uma ação de conexão. Através da internet, podemos dialogar com o mundo inteiro, mas nosso corpo permanece em frente ao computador. Assim, o ciberespaço é formado pela convergência desses diversos fatores, fazendo que ele não seja apenas uma comunidade mas também um “gerador de discurso”. Assim, esse espaço é tão real quanto imaginado. A comunicação mediada por computador, também conhecida pela sigla CMC, se encaixa dentro de um contexto de cibercultura, ou seja, insere-se dentro de um conjunto de regras e significações que são estruturadas dentro do ciberespaço. Neste contexto, é importante lembrar o autor Pierre Lévy, que define “cibercultura” como “conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço” (LÉVY, 1999). Algumas características importantes que se desenvolvem dentro do ciberespaço, são, por exemplo, a falta de barreiras territoriais, a dominância da língua inglesa, os processos colaborativos e o surgimento de militância de minorias. A partir dessas reflexões, é importante compreender ao comparar qualquer tipo de interação online com interações ocorridas no mundo “real”, analisar o impacto que o meio tem sobre a mensagem do indivíduo (MCLUHAN). Outra observação poderia ser também como os indivíduos diferenciam a realidade offline da realidade virtual. Como a cibercultura cada vez mais cria suas próprias dinâmicas e dita seu próprio futuro, e os brasileiros gastam cada vez mais tempo online, é importante estar atento a que tipo de interação ocorre online. Como Nakamura (1999) sugere, é interessante compreender a cibercultura como “uma série de negociações que acontecem online e offline”. Um dos estudos mais completos sobre a questão da identidade dentro das mídias digitais foi escrito por Nakamura (2014), que concluiu que a maioria das representações “padrão” em ambientes virtuais remetem a homens brancos. Mas pela lógica das redes, é também possível questionar esse tipo de padrão. Mesmo com os engenheiros representando seus valores através de representações masculinizadas, por exemplo, a própria rede se manifesta contra esse tipo de representação. Quando a rede possui acessibilidade, mesmo que reprimidos, muitas vezes é possível que uma minoria consiga se manifestar usando as mesmas ferramentas que a maioria.

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dentro da redoma de vidro


De maneira geral, diversos estudos (YEE et al, 2007; HUSSAIN e GRIFFITHS, 2008; KULMS et al, 2011; GEFEN e RIDINGS, 2005; ZANBAKA et al, 2006) acabam por chegar numa conclusão que é muitas vezes esquecida por programadores e designers: as interações sociais que ocorrem dentro do ciberespaço são governadas pelas mesmas normas sociais que regem o mundo físico. Dessa maneira, pode-se inferir que em ambientes online também ocorrerão problemáticas como racismo, machismo e problemas de adaptação cultural. Apesar da possibilidade de uma minoria ter a chance de rejeitar a opressão da maioria, é muito mais difícil dentro de uma hierarquia de poderes. Pode-se tratar um paralelo entre o ciberespaço e o horário político brasileiro na televisão: os partidos que possuem mais representação acabam por receber mais tempo na programação, conseguindo assim eleger ainda mais políticos e acumular mais capital para se manterem ainda mais visíveis na mídia. No ciberespaço, ainda mais regido pela lógica capitalista, acontece um movimento similar. Exemplo primordial é o buscador Google, fonte principal de acesso para os diferentes sites da web. Quanto mais acessos e links um site tiver, mais ele aparecerá como resultado no buscador. Assim, ligado ainda com a venda de espaço publicitário pela Google, é muito difícil para sites novos ou com poucos visitantes serem acessíveis para o público em geral.

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How I Rebuilt Tinder And Discovered The Shameful Secret Of Attraction. BuzzFeed. Disponível em: .buzzfeed.com/ annehelenpetersen/we-areall-classists#.nqy156dzk>. Acesso em: 16 Nov. 2015.

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Como citado no artigo de Yee et al, alguns estudiosos acreditam que é possível fazer o estudo inverso: pode-se analisar interações sociais dentro do ciberespaço e generalizá-los para interações sociais no mundo real, mesmo com modos de navegação tão distintos. Um bom exemplo de questionamento utilizando-se do caminho inverso é a análise do aplicativo Tinder feito pela jornalista Anne Helen Petersen, para o website BuzzFeed (2014)30. O Tinder é um aplicativo desenhado para promover o encontro de pessoas para relacionamento amorosos. Os usuários observam o perfil da pessoa e tem a possibilidade de selecionar sim ou não para aquele perfil. Se o “sim” for escolhido mutuamente, um canal de conversa se abre. Analisando dados das pessoas que mais recebiam “sim”, não surpreendentemente, a jornalista concluiu que as pessoas baseavam sua atração principalmente em bases de classe. Assim, aqueles que possuíam em suas fotos símbolos imagéticos que remetiam a um pertencimento a uma classe alta (como dentes perfeitos, roupas de marca, tintura capilar, etc) recebiam uma taxa muito alta de “sim”, enquanto aqueles que pareciam pertencer a uma classe baixa recebiam uma taxa alta de “não”. A conclusão da jornalista? Os americanos são muito “classistas”, ou seja, baseiam sua atração e o potencial romântico a partir do seu status monetário. Esse tipo de reflexão é interessante para compreender como as dinâmicas do ciberespaço (como no caso do Tinder, que apresenta os perfis de forma randômica a partir das preferências dos usuários), dificilmente rompem com os preconceitos já estabelecidos pelos usuários no mundo offline.


Turing Game Um dos estudos mais interessantes sobre identidade de gênero em um ambiente online é aquele conduzido através do chamado “Jogo Turing”, de Joshua Berman e Amy S. Bruckman (2001). Os pesquisadores desenvolveram uma pesquisa através do jogo que os ajudaria a explorar como a comunicação online contribui para a criação da identidade e representação de um indivíduo. Partindo da premissa que identidade não é apenas como uma pessoa se apresenta, mas também como as pessoas te percebem, esse jogo foi desenhado para ajudar os jogadores a pensarem sobre essas questões em um ambiente online. Basicamente, dentro do ambiente do jogo, os jogadores podem testar diferentes identidades online que não combinam com sua identidade offline, se comunicando da maneira como julgam ser apropriado. O objetivo do jogo é adivinhar corretamente qual o gênero dos participantes, baseado em sua comunicação online. Assim, alguns jogadores serão impostores enquanto outros se manterão verdadeiros a sua personalidade. Ao final de cada jogada, todos os participantes revelam sua verdadeira identidade e discutem como acertaram ou erraram suas escolhas. A conclusão mais interessante que podemos tirar desse estudo é deixar em evidencia a realidade dos preconceitos comunicacionais e a performatividade do gênero. Os participantes julgavam uns aos outros dependendo de como conversavam, sem se apoiar em nenhum tipo de interação social física prévia, ou sugestões imagéticas ou fonológicas. O notável é que algumas vezes um participante estava sendo verdadeiro ao relatar seu gênero, e mesmo assim os outros participantes erravam; ou o contrário, quando um impostor performava tão bem o gênero oposto que nenhum jogador conseguia descobrir quem era. Assim, podemos perceber que a identidade social, mesmo mediada por um ambiente online, pode ter uma diferença entre aquilo que é pretendido com aquilo que é percebido. E mais importante ainda: existem diversas construções linguísticas e referências que associamos exclusivas a homens ou mulheres. Além disso, podemos perceber que muitas vezes essas fronteiras entre os gêneros podem ser facilmente atravessadas e flexionadas, por isso é possível um participante se travestir e mascarar sua identidade real. No mundo real, esse tipo de flexibilidade também pode ocorrer, mas não tão facilmente como em ambientes online, no qual não é possível se apoiar em sugestões ambientais e gestuais para definir a identidade da pessoa.

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31 Tradução da Autora

“Yet identity is becoming the main, and sometimes the only source of meaning in an historical period characterized by widespread destructuring of organizations, delegitimation of institutions, fading away of major social movements, and ephemeral cultural expressions”

Com as pessoas utilizando cada vez mais as redes sociais para se comunicarem, e se conhecendo através dela, a importância da representação online será cada vez mais relevante. Enquanto as dinâmicas preconceituosas continuarem a se perpetuar no offline, isso se reflete no online, e vice versa. “No entanto, a identidade está se tornando o principal, e por vezes a única fonte, de sentido em um período histórico caracterizado pela desestruturação generalizada de organizações, deslegitimação das instituições, enfraquecimento dos principais movimentos sociais e expressões culturais efémeras” (CASTELLS, 2007)31. E se gênero se torna cada vez mais fluído e compreendido como uma performance, o preconceito em cima de uma linguagem gendrada perde sua importância de forma gradual.

SILICA Como grande parte da população lida com as TICs quase que de forma diária, é importante pensar como essas tecnologias tangem a questão do gênero e na manutenção do binarismo feminino e masculino. A falta de representação feminina dentro do contexto da tecnologia obviamente não é um problema contemporâneo. Por causa da divisão do trabalho feminino, e a domesticação da mulher, elas foram privadas da produção do conhecimento tecnológico por muito tempo. Mesmo assim, existiram mulheres notáveis que contribuíram enormemente para o desenvolvimento das tecnologias digitais atuais. Um dos maiores exemplos é Ada Lovelace, que desenvolveu os primeiros algoritmos matemáticos que serviram de base para a computação atual. Mas as contribuições femininas para a ciência e tecnologia são esquecidas no ensino de história geral. O esteriótipo do nerd ou geek que ama tecnologia é pensado como homem, branco e normalmente de classe média ou alta. Se durante anos o termo foi utilizado de forma pejorativa, hoje em dia eles são sinônimos de prestígio. Os grandes ícones contemporâneos do Vale do Silício seguem em sua maioria essa fórmula: Bill Gates, Steve Jobs, os fundadores de startups como Airbnb ou Snapchat. - Em todo o mundo, os funcionários do Facebook são 69% do sexo masculino, 31% do sexo feminino. Em tecnologia, o hiato de gênero era maior de novo - 85% homens e 15% mulheres.- Nos EUA, 63% dos funcionários do Facebook eram brancos, 24% da Ásia.

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Hispânicos representaram apenas 6% e os afro-americanos 2%. - 70% dos funcionários do Twitter são homens - Os funcionários do Google são 70% do sexo masculino e 30% feminino. Fonte: RUSHE, 2014 O problema da diversidade já é muito evidente na área da tecnologia, mesmo com ícones femininos muito poderosos em algumas das maiores empresas do mundo. Como dito por Sheryl Sandberg, atual COO do Facebook:

“A verdade nua e crua é que os homens ainda comandam o mundo. Isso significa que, quando se trata de tomar as decisões mais importantes para todos nós, a voz das mulheres não é ouvida da mesma forma. Dos 195 países independentes do mundo, apenas dezessete são governados por mulheres. As mulheres ocupam apenas 20% das cadeiras dos parlamentos no mundo. Nas eleições de novembro de 2012 nos Estados Unidos, as mulheres conquistaram um número de assentos no Congresso que ultrapassa todos os anteriores, alcançando 18%. No Brasil, 9,6% das cadeiras no Congresso são ocupadas por mulheres.” (SANDBERG apud FERREIRA, 2015)32 32

Gizmodo. Gizmodo Brasil A mulher no mercado de tecnologia Conquistamos muito mas ainda estamos longe do ideal. Disponível em: .uol.com.br/especial-a-mulherno-mercado-de-tecnologia/>. Acesso em: 16 Nov. 2015.

33 IBGE. :: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: .ibge.gov.br/home/ estatistica/populacao/ trabalhoerendimento/ pnad2009/default. shtm>. Acesso em: 16 Nov. 2015.

Apesar dos lentos avanços no aumento da representatividade feminina, não se pode negar que a disparidade na área ainda é gigante e alguns exemplos de sucesso não excluem o problema sistemático. No Brasil, o primeiro curso de Ciências da Computação foi criado em 1960 na PUCRio. Em 1974, foi a vez do IME abrir vagas para o bacharelado de Ciências da Computação e Sistemas da Informação. As primeiras turmas desses cursos tinham em sua maioria mulheres, pois era considerado uma extensão do secretariado e a profissão ainda não dava muito retorno financeiro. Quando a profissão foi ficando mais valorizada, cada vez menos mulheres foram vistas nas salas de aula. Hoje em dia, o número é preocupante: 79% das estudantes desistem do curso no primeiro ano (IBGE, 2009)33. Além disso, a disparidade nos salários é absurda: nos cargos de gerência, o salário das mulheres chega a ser 65% menor. Todos esses números são dados empíricos da argumentação inicial dessa tese: de que a masculinização das tecnologias faz parte de uma rede sóciotécnica muito mais complexa, que exclui as mulheres categoricamente dos processo de participação.

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Figura 4: “O que o Vale do Silício realmente pensa sobre Mulheres?”, reportagem especial da revista americana Newsweek 34 Newsweek - News, Analysis, Politics, Business, Technology, Lifestyle, Photos and Video. Newsweek. Disponível em: . Acesso em: 16 Nov. 2015.

Fonte: Acervo digital da revista Newsweek34 J. Cooper, da universidade de Princeton, mostrou como o contexto social é dependente do gênero em grupos de aprendizado com crianças. Através de sua pesquisa ele percebeu que

“A resposta parece ser que, para as meninas, ter meninos presentes tem o efeito de aumentar sua ansiedade sobre o computador e diminui sua aprendizagem. Light et ai. (2000) tinha meninos e meninas trabalhando em um jogo de resolução de problemas moderadamente competitivo em que a tarefa dos jogadores era chegar a uma localização geográfica, sem ser capturado por monstros. As crianças trabalharam em grupos de dois, seja do mesmo sexo ou em duplas com o sexo oposto. Light et ai. (2000) verificaram que, em geral, os meninos apresentaram melhor desempenho neste jogo do que as meninas. No entanto, em díades do mesmo sexo, a diferença no desempenho era pequena. Em duplas mistas, a diferença foi reforçada. O desempenho dos meninos foi claramente melhorado em relação ao seu desempenho no grupo de pessoas do mesmo sexo, enquanto o desempenho das meninas mostraram decréscimos 62


significativos” (COOPER, 2006). Dessa maneira, a falta de ícones femininos no cenário brasileiro e internacional de TI não é de se estranhar dentro desse contexto tão hostil, que inicia desde o aprendizado na infância, no qual as meninas são socializadas a ter uma performance inferior a dos meninos. A falta de ícones femininos é especialmente danoso pois não há inspiração para jovens empreendedoras no meio digital. E por isso, “McIntosh argumenta que a existência de um rótulo fortemente desenvolvido constrange o comportamento no sentido de fazê-lo conformar-se as expectativas sociais e sexuais geradas por esse rótulo. Assim, de certa forma, as taxinomias são profecias que se cumprem”. (FRY, 1982) Quanto mais meninos geeks existirem, mais eles continuarão a existir. E quanto menos mulheres na área tecnológica, mais difícil será para novas mulheres entrarem neste sistema. Felizmente, o cenário parece um pouco mais promissor através de iniciativas e políticas de incentivo dentro de universidades e empresas. Mas o cenário ainda está longe do ideal ou de um equilíbrio de representatividade. Pensando neste contexto, podemos já evidenciar uma classificação hierárquica dentro da própria definição de tecnologia, aumentando ainda mais a segregação entre os gêneros. Um exemplo decorrente do cotidiano é a associação sobre o conhecimento de tecnologias mais complexas (como por exemplo a mecânica de automóveis) é automaticamente associado a um universo sígnico associado ao masculino, enquanto tecnologias consideradas mais simples (como o uso de aparelhos de cozinha ou costura) são voltados ao uso feminino. Obviamente tal classificação vem de uma complexidade história e uma rede de significados que excede uma redução tão simplística - e tal tipo de relação já foi extensamente pesquisado por sociólogos e historiadores. Mas tais exemplos servem para evidenciar a problemática que tange a questão do ciberspaço e da comunicação mediado por computadores. Em conclusão, todas essas questões contribuem para a falta da criação de uma “identidade” feminina de caráter positivo e empoderador em ambientes online. Além disso, o reconhecimento das ciências exatas e da tecnologia como fontes de capital e catalisadores do desenvolvimento mundial fizeram com que fossem alinhadas a valores masculinos. E como aquelas nascidas com o sexo feminino são sistematicamente oprimidas e afastadas da tecnologia, esse ciclo acaba se repetindo.

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Vi tri fi ca ção


Diferentes estudos foram conduzidos para determinar se as tecnologias têm um caráter masculinizado. Em destaque, os estudos conduzidos por Wajcman e Faulkner são os mais recentes e completos sobre a questão. Em um primeiro momento, as feministas estudiosas da tecnologia se preocuparam em analisar o papel da tecnologia como opressora. Nesses estudos, a tecnologia foi criticada por servir os interesses da sociedade capitalista e patriarcal, e possuía uma essência opressora por ter sido concebida dentro desses moldes. Essas feministas criticaram principalmente a divisão sexual do trabalho, que forçava as mulheres o trabalho doméstico e o uso dos eletrodomésticos relacionados a ele: a máquina de lavar, a pia, o fogão. Ora, como essas tecnologias faziam parte desse contexto social considerado opressor, por isso foram analisados a partir dessa ótica. Durante os anos 70, as feministas começaram suas críticas a tecno-ciência e a tecnologia como forma de opressão, concluindo que a essência da tecnologia seria masculinizada e patriarcalista. Já algumas acadêmicas utilizavam a teoria Marxista para compreender o histórico sócio-cultural do porquê esse domínio era essencialmente masculino. Essas mesmas estudiosas questionavam situações como o impacto das divisões de trabalho modernas entre homem e mulheres ou do porquê tecnologias como o refrigerador ou a máquina de lavar roupas não eram consideradas tão importantes quanto outras tecnologias - ou até mesmo questionar como a ética sobre as tecnologias reprodutivas eram definidas. O grande problema desses artigos acadêmicos era a essencialização dos objetos e até das mulheres. Para essas feministas, existia uma essência opressora nas tecnologias pois eram advindas o patriarcado, e as mulheres acabavam por não possuir uma participação ativa neste contexto por causa de sua essência feminina. Dessa maneira, acabavam por excluir toda a rede de significações e de construção social que acabava levando a esses resultados. Elas faziam parte de um contexto estruturalista das Ciências Sociais, que não olhava para as condições sociais que circundam a significação de um objeto. Dispositivos são criados, em sua maioria, para realizar certo tipo de trabalho, e esse trabalho adquire sentido dentro de um contexto cultural e também prático. As diferenças entre homens e mulheres promovida pelos objetos não é uma relação unilateral, no qual a tecnologia é independente no seu papel de alterar a sociedade. Nas décadas seguintes, essa abordagem mais holística foi desenvolvida aos poucos.

35 Tradução da Autora

t”echnology studies that shifted theoretical and empirical attention from engineers’ decisions to the complex social negotiations and contestations, the heterogeneity of expertise, of interest groups, and of material or institutional networks involved in technological innovation and in the stabilization or redesigning of artifacts”

Já no final dos anos 80, a ideia do construtivismo social passou a ser a mais utilizada para estudos etnográficos e sociológicos, e dessa maneira “estudos de tecnologia desviaram a atenção teórica e empírica das decisões dos engenheiros para as complexas negociações sociais e contestações, a heterogeneidade de especialização, de grupos de interesse, e de materiais ou redes institucionais envolvidos na inovação tecnológica e na estabilização ou redesenho de artefatos” (BIJKER et al, 1989)35. Passa-se então a compreender as novas tecnologias como parte de uma grande rede (LATOUR, 1993) oriunda de motivações culturais e políticas: essa é a rede sociotécnica. Atualmente, o relacionamento entre gênero e tecnologia é visto como uma via de mão dupla: tecnologia é tanto uma fonte e consequência de relações de gênero; e vice-versa (FAULKNER, 2001). Os estudos feministas sobre tecnologia, conhecido pela sigla FTS (do inglês, Feminist Technology Studies), procuram estudar a produção

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36 Tradução da Autora

“One fundamental way in which gender is expressed in any society is through technology. Technical skills and domains of expertise are divided between and within the sexes, shaping masculinities and femininities”

37 Tradução da Autora

“the self emerges out of material things, which appear to take on lives of their own”

39 Show Blog. : 5 Ways The Gaming Industry Is Way More Sexist Than You Think. Disponível em: .blogspot.com. br/2015/06/5-waysgaming-industry-isway-more.html>. Acesso em: 16 Nov. 2015.

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de tecnologia como forma de influência política, para compreender quais são esses significados. A tecnologia e a sociedade passaram a ser vista de maneira interligada, e isso acabou aprofundando o questionamento sobre gênero. “Uma maneira fundamental em que o gênero se expressa em qualquer sociedade é através da tecnologia. Habilidades técnicas e domínios de especialização são divididos entre e dentro dos sexos, moldando masculinidades e feminilidades” (BRAY, 2007)36. Dessa maneira, o “eu” , seguindo um pensamento Freudiano, é tão manufaturado quanto as tecnologias que são utilizadas por ele. Através do design, da publicidade, do uso, das narrativas e dos esteriótipos relacionados com cada tecnologia “o ‘eu’ emerge de coisas materiais, que parecem assumir vida própria” (LUPTON, 1993)37 . Mas através de um estudo com um olhar crítico nos valores que distinguem em relação ao gênero, fica mais fácil compreender que essas tecnologias não são tão neutras ou essencialmente opressoras como antes era acreditado.

Figuras 5: Exemplos de propagandas das marcas Bell & Howell, Datacomp e Voco Fonte: Blog Pessoal de Autor Anonimo39


Relações entre Gênero e Tecnologia Com a propagação das ideias construtivistas, os Estudos Feministas da Tecnologia passaram a convergir para uma abordagem mais ampla, focando nos processos de desenvolvimento tecnológico e no uso das tecnologias. Wajcman e Faulkner definiram três aspectos principais que guiam as relações entre gênero e tecnologia: estruturas, símbolos gendrados e identidades. (WAJCMAN, 2000; FAULKNER, 2001).

Estruturas: Os problemas estruturais são aqueles relacionados principalmente na divisão de gêneros no consumo e na produção de tecnologia. Como já ilustrado, a disparidade de representação entre homem e mulheres na área de tecnologia é bem grande. “Exemplos de design que afirmam falar em voz neutra tendem para se alinhar, por padrão, com designers masculinos, inventores, empresários, e outros produtores de cultura. As mulheres, como os compradores e usuários de vários produtos de consumo, são um campo fundamental(...)” (LUPTON, 1993). A influencia do design e da área de produção de tecnologia com o seu uso e sua percepção com os consumidores é pouco compreendida ainda, mas existem alguns estudos que levam a uma análise mais robusta desse relacionamento. É importante frisar que ao criticar o design de um produto e sua estrutura, seu significado não é estático, mas sim emerge das diversas práticas sociais no qual o objeto está inserido assim como seu significado para as pessoas que os utilizam. Apesar do crescimento da feminilização na área de tecnologia, esse processo é marcado por problemáticas severas como a subordinação das mulheres, que raramente chegam a cargos de liderança. Além disso, a incumbência sobre o trabalho do lar ainda sendo feminina, as mulheres se veem obrigadas a equilibrar as duas funções dentro da lógica capitalista. É a velha história da assalariada que após um dia cheio no trabalho, ainda tem que voltar para casa e desempenhar diversas tarefas domésticas que não recebem ajuda do parceiro. Além disso, também recai sobre a mulher a responsabilidade quase que total de criar os filhos, afetando assim a flexibilidade necessária para cumprir com as exigências do cargo. Pode-se citar diversas estruturas que contribuem para a manutenção dessas “duplas” jornadas para o sexo feminino, como a licença maternidade garantida por lei, mas a inexistência de uma licença paternal. Essas diferenças estruturais na produção tecnológica contribuem para o sexismo da área.

40 Design Research Lab | Research & Projects. Design Research Lab. Disponível em: .design-research-lab. org/research-projects/>. Acesso em: 16 Nov. 2015.

Não existem muitos estudos comparando a diferença entre os gêneros na fase de criação e design tecnológico. Mas um estudo interessante conduzido no formato de workshop pelo Design Research Lab da universidade alemã Berlin University of Arts (DESIGN RESEARCH LAB, 2015)40, produziu uma conclusão muito interessante: as pesquisadoras acabaram por dar as pessoas participando do workshop materiais relacionados diretamente com aquilo que é considerado feminino (como plumas, objetos rosa, etc) e acabaram por enviesar o resultado dos estudos. O objetivo inicial era exatamente comparar as diferenças em design se essa incumbência fosse dada apenas para as mulheres. Esse tipo de consideração é importante para perceber o

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quão enraizado estão os preconceitos, que afetam até o processo de pensar sobre eles. Outro estudo, realizado por Cockburn (1997) mostrou a diferença de percepção dos gêneros sobre certos tipos de tecnologias que são consideradas gendradas: engenheiros de produção consideravam trabalhar com tecnologia para auxiliar afazeres domésticos desinteressante e simplório, enquanto outras áreas como entretenimento são consideradas desafiadoras. Já sobre o consumo, uma tecnologia pode acabar criando um “gênero” por associação com aquele que mais o consome. Isso acontece especialmente com tecnologias ligadas a afazeres domésticos como aspiradores de pó e máquinas de lavar. Assim, esses aparelhos acabam sendo considerados femininos, e o marketing acaba contribuindo para isso. Já aparelhos marrons e pretos, que servem para trabalhos domésticos pontuais e esporádicos como furadeiras e churrasqueiras são associados com masculinidade (COCKBURN, 1997). Além disso, são poucos os aparelhos que são igualmente utilizados pelos dois sexos.

41 Tradução da Autora IBGE. :: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: .ibge.gov.br/home/ estatistica/populacao/ trabalhoerendimento/ pnad2012/default_ sintese.shtm>. Acesso em: 16 Nov. 2015.

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No Brasil, não existem muitos estudos aprofundados sobre o tema, mas podemos citar alguns casos interessantes que evidenciam a questão. Um exemplo interessante é o caso do “black out” ocorrido em abril de 1997. O Jornal A Folha de São Paulo (SILVA,1998) relatou que uma das principais causas do problema de energia elétrica na região Sudeste foi o aumento do consumo de energia decorrente da compra de eletrodomésticos. Pensando no problema, o jornal então fez um apelo às donasde-casa para que procurassem evitar o desperdício de energia elétrica. Algumas das dicas da reportagem incluíam evitar a máquina de lavar roupas no horário de pico, e posicionar a geladeira longe do Sol. Dessa maneira, recaia a responsabilidade do black out sobre as donas de casa brasileiras, que são consideradas como aquelas que utilizam verdadeiramente os eletrodomésticos do lar. Podemos ainda, em uma análise mais pontual sobre o relacionamento da classe alta brasileira com suas empregadas domésticas, que além de gendradas, as tecnologias também acabam por sofrerem diferenciação de classe. As tecnologias de limpeza pesada doméstica ou de cozimento mais elaboradas ainda são de responsabilidade feminina. Enquanto aparelhos como o microondas acabaram se tornando mais neutros em relação ao gênero, especialmente por evocarem a simplicidade, o manuseio de tecnologias domésticas ainda são de uso feminino. Depois da maior adesão da mulher no mercado de trabalho, era de se esperar que elas dedicassem menos do seu tempo ao trabalho doméstico, ou que isso fosse dividido entre os sexos, mas algumas pesquisas demonstram que a disparidade ainda é grande. Uma pesquisa do IBGE, de 2012, mostra que em 2012, as mulheres despendiam, em média, 20,8 horas por semana realizando afazeres domésticos, enquanto os homens gastavam cerca de dez horas semanais. (IBGE, 2012)41 A professora Helena Hirata, docente visitante da Universidade de São Paulo, afirmou em uma entrevista que: “as horas ocupadas com a limpeza da casa e a manutenção dos objetos tenham diminuído com as tecnologias do lar (...) o tempo poupado pelos eletros é usado ainda nos afazeres domésticos e familiares como cozinhar ou cuidar dos filhos” (SEREZUELLA, 2014)42.


42 Os eletrodomésticos deram mais tempo livre à mulher? Especialistas analisam - Casa e Decoração - UOL Mulher. Disponível em: .uol.com.br/casa-edecoracao/noticias/ redacao/2014/03/06/ os-eletrodomesticosderam-mais-tempolivre-a-mulherespecialistas-analisam. htm>. Acesso em: 16 Nov. 2015. 43 Electrolux - A Cozinha da Fantasia. YouTube. Acesso em: 16 Nov. 2015

Outro exemplo, é o uso contínuo da publicidade de ícones femininos ao divulgar eletrodomésticos. Essa convenção (da associação de mulheres e eletrodomésticos) vem de uma longa história, e data desde 1920. Em 1963, Betty Friedan escreveu uma crítica a publicidade em uma publicação intitulada The Feminine Mystique. Neste estudo, Friedan argumenta que as mulheres de classe média têm suas ambições limitadas pela ideologia ligada ao trabalho doméstico que permeia revistas femininas e propagandas de eletrodomésticos. E mesmo hoje, mais de 50 anos depois, muitas propagandas ainda utilizam esteriótipos como o da dona-de-casa, ou coloca a mulher como única operadora do eletrodoméstico familiar. Na cultura popular brasileira, essa figura estereotipada é também conhecida como “Amélia”, uma mulher que dedica sua vida ao trabalho do lar e o cuidado com os filhos. Uma pesquisa de 2012 do Serasa Experian43, os presentes mais ofertados pelos varejistas no feriado do Dia das Mães é primeiramente roupas, sapatos e acessórios, seguido de eletrodomésticos (32% das ofertas). Um exemplo notável do Dia das Mães de 2014 é o filme “A Cozinha da Fantasia”, produzido pela agencia F/Nazca Saatchi & Saatchi para Eletrolux, uma das marcas mais conhecidas de eletrodomésticos no Brasil. A peça publicitária foi divulgada principalmente dentro de redes sociais, e só no Youtube conta com mais de 2 milhões de visualizações até a presente data. (ELECTROLUX - A COZINHA DA FANTASIA, 2014). No filme, mães e seus filhos (de ambos os sexos) cozinham enquanto as crianças relatam suas fantasias em relação a comida. O interessante dessa peça é que o único homem adulto retratado é um ilustrador, que fica atento as fantasias que as crianças relatam e desenha suas histórias para que sejam servidas junto com o prato. Esta peça, além de se encaixar em um contexto da perpetuação do esteriótipo da mulher como a única responsável pela alimentação dos filhos, também mostra o homem como o responsável pela parte criativa e artística da campanha. Um anúncio de 2014 da rede Fast Shop, publicado na página oficial da marca no Facebook, recebeu diversas críticas por continuar esse esteriótipo justamente em outro feriado focado no público feminino: O Dia Internacional da Mulher. Apesar da introdução de novos esteriótipos e das críticas que esse tipo de campanha gera no contexto moderno, a existência desse tipo de discurso evidencia a segregação sexual que ainda existe no imaginário coletivo.

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44 Mulher. Adnews. Disponível em: .adnews. com.br/publicidade/ mulher-tera-maistempo-livre-se-comprarmaquina-de-lavar-dizfast-shop>. Acesso em: 16 Nov. 2015.

45 Mr. Músculo. (@ MrMusculoBrasil). Disponível em: . Acesso em: 16 Nov. 2015.

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Figura 6: Anúncio de Dia das Mães para Facebook da marca Samsung

Fonte: Adnews44

Figura 7: Peça publicitária do produto de limpeza Mr.Músculo para Twitter, que possui um mascote altamente masculinizado, mas quem cuida dos afazeres domésticos é sempre uma figura feminina. Fonte: Página Oficial do Twitter do Mr.Músculo Brasil45


Uma extrapolação do que significa o fato das mulheres manusearem os trabalhos domésticos enquanto os homens se distanciam deles nos leva a pensar no papel de servitude da mulher, que decorre da posição de subordinação que ela tem em relação ao homem na sociedade. “O padrão de relações de gênero onde a mulher serve e o homem provê é muito mais extensivo socialmente e é a força ideológica preponderante, mesmo onde a mulher também provê. Em geral as mulheres continuam servindo” (SILVA, 1998). Assim, apesar de 17 anos terem se passado desde a pesquisa, podemos perceber a contemporaneidade da análise. Da mesma maneira que o papel serviçal da mulher é criticado desde as análises sobre a classe média da era vitoriana, mesmo com a maior participação feminina no mercado de trabalho, o trabalho doméstico ainda é visto como uma atribuição delas. Através de uma pesquisa etnográfica realizada em 30 famílias pela socióloga brasileira Silva, uma análise muito interessante vem das opiniões dos homens sobre a inovação tecnológica nos aparelhos domésticos. “A exploração do desejo em relação aos equipamentos do lar permitiu observar que os homens raramente percebem o que é possível possuírem de inovador para o trabalho doméstico.” (SILVA, 1998). Em contraste, as mulheres podiam apontar com precisão aquilo que elas consideravam como ideal para seus aparelhos domésticos. Essa observação pontual é importante pois reflete o problema da falta de inputs femininos no design e na engenharia tecnológica. “O fato de que o trabalho doméstico tem cabido sobretudo a mulheres também tem implicações fundamentais sobre as características, preços, desempenho e mesmo sobre a aplicação de descobertas científicas às inovações para tecnologias do lar.” (SILVA, 1998)

* Mais informações no documentário de 2014, Fed Up

Pensando-se em um contexto de mercado, no qual muitas tecnologias precisam considerar as expectativas do consumidor em seu processo de design para que possam se manter rentáveis, e assim existentes, não é de se estranhar que a falta de consideração com as mulheres como grupo consumidor pode influenciar diretamente no processo de design. Podemos extrapolar essa afirmação para quase toda a ciência, que muitas vezes é pensada a partir de premissas industriais e capitalistas. Como exemplos, podemos citar as pesquisas encomendadas pela indústria do cigarro para tentar fazer a ponte entre esse produto e a saúde; ou ainda as pesquisas que tentam desacreditar que o refrigerante tem ligação com obesidade e diabetes*. Pensando-se em premissas, o machismo pode inferir nesse processo de ao considerar as mulheres como menos capacitadas, como exemplo. Susan Ormrod e Cynthia Cockburn realizaram um estudo etnográfico que possui diversas implicações sobre a história do aparelho de microondas. Em Gender and Technology in the Making (1993), as antropólogas relatam como o aparelho de microondas passou por um processo de mudança de gênero, saindo de um contexto masculino para o feminino. Inicialmente desenhado para atender as necessidades consideradas masculinas, o microondas foi pensando como um objeto de cor marrom. Como não fez sucesso, foi mudado para a cor branca e seu design foi feito para ter

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um uso mais simples, com menos botões, pensando-se que quem o usaria a partir de então seriam mulheres. O design atual desse eletrodoméstico, é inspirado na persona criada pelos designers, que viam o público de donas-de-casa como tecnologicamente incompetentes e incapazes de manusear a interface mais robusta do piloto original da máquina de microondas. Assim, as necessidades imaginadas pelos designers definiram como o aparelho seria desenvolvido. Se a inovação tecnológica parte da premissa da necessidade, é importante tornar as necessidades visíveis para aqueles que possuem o conhecimento para torná-la possível. Com a divisão do trabalho e as tecnologias do lar renegadas a uma segunda categoria, a inovação tecnológica acaba por se concentrar nas áreas de maior prestígio e de domínio predominantemente masculino, como por exemplo a engenharia espacial. Não que a inovação nessas áreas seja inexistente, mas possibilidades muito diferentes poderiam ser criadas a partir de um processo de cocriação mais sofisticado envolvendo ambos os gêneros. A grande problematização pensando-se no problema estrutural é a sistematização das diferenças entre homem e mulheres. Alguns dos primeiros estudos femininistas procuravam libertar a mulher da sua posição subordinada das tecnologias patriarcais. Atualmente, pode-se pensar nesse debate não em termos de libertação apenas de um sexo, mas sim em uma igualdade entre os dois. “É claro que as mulheres querem liberarse de fogões, máquinas de lavar roupas, etc. mas não podem esperar ser substituídas nessas operações pelos homens, ainda que a participação dos homens nessas atividades aumente. Trata-se de facilitar a operação das tarefas e de retirar as atribuições de gênero associadas a elas. “ (Silva, p.60, 1998). Assim, apesar de diversos estudos feministas apontarem para a estrutura de poder patriarcal que acaba por contribuir para a formação da tecnologia como um domínio masculino, como explicitada a partir dessa tese, essa estrutura não é fixa ou estável. Por partir de negociações e reforços constantes, essa estrutura pode sofrer alterações, principalmente a partir da co-criação e da associação de simbologias de diferentes grupos. Se isto se verificar positivamente, podemos tirar as mulheres do seu papel marginal em relação a tecnologia.

Símbolos: Tecnologias também incorporam símbolos, metáforas e valores que possuem conotações masculinas (WAJCMAN, 2007a, 2004b, 2006c). Como explicado no capítulo sobre a neutralidade tecnológica, a criação dos designers tem imbuída em seu código os valores dos seus criadores. E quando a grande maioria dos designers e engenheiros são homens, é de se esperar que as tecnologias sejam fortemente masculinizadas. “Como a tecnologia e gênero são tanto socialmente construídos e socialmente difundidos, nunca podemos compreender plenamente um sem também entender o outro” (LOHAN e FAULKNER, 2004). Dessa maneira, para verdadeiramente compreender as diferenças entre os sexos na questão tecnológica, deve-se olhar combinadamente a tecnologia e os significados atrelados ao gênero. Wajcman e Cockburn supõem que a associação do

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masculino com a tecnologia moderna tem raízes na Revolução Industrial, período no qual começou a divisão conhecida na atualidade da mulher com o trabalho doméstico e o homem com o trabalho industrial. Durante os séculos, essa divisão passou por períodos de maior preeminência e períodos no qual essa divisão perde a força (como nos tempos atuais), mas a associação simbólica continua. Vale lembrar que as mulheres sempre foram usuárias de tecnologias, como no próprio período da Revolução Industrial, no qual elas dominavam os atelies e teares de tecidos. Só que essas tecnologias muitas vezes nem são assim classificadas e acabam sendo consideradas hierarquicamente inferiores, assim como foi explicado sobre os utensílios domésticos.

Figura 8: Talentos Subestimados Fonte: David Shenton para o jornal The Guardian, 2008 Além disso, mais importantemente ao analisar o universo sígnico das tecnologias e porque são alinhadas ao masculino, é possível se apoiar no que é associado a esses dois conceitos. Lembrando que essas ideias dicotômicas partem principalmente da filosofia ocidental, que divide o mundo binariamente: corpo versus mente, artificial versus natural e etc. As tecnologias da informação, mediadas por computadores e processamento de dados, são baseados em conceitos matemáticos, racionais e lineares (LATHAM, 2006). Esses conceitos são usualmente conectados ao masculino, enquanto o feminino é conectado ao seu antagônico. A mulher é vista como a criadora de vida, a Eva, ligada à natureza. Hera, Héstia, Deméter e Perséfone se contrapõem a Hefesto e Ares, que lidam com o artificial, aquilo que é humanamente criado. Enquanto os homens são considerados naturalmente razoáveis, as mulheres são consideradas naturalmente emotivas. E se a razão é premissa para as ciências exatas e computação, não é de se espantar que as mulheres são criteriosamente afastadas. Rajagoapalan explica que “a metafísica da cultura ocidental expõe o logocentrismo e o falocentrismo como duas faces da mesma moeda” (RAJAGOAPALAN, 2006). Assim, enquanto o feminino é associado à natureza, ao artificial, àquilo que é feito pelo homem, ou seja, a tecnologia é associado ao masculino. (FOX e JOHNSON, 2006). Alguns exemplos podem ser citados a partir da construção da figura do ciborgue na ficção. Os exemplos de ciborgue mais famosos são

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figuras masculinas: como O Homem de 6 Milhões de Dólares, Robocop, Eu, Robo e O Homem Bicentenário. Esses exemplos de ciborgues são duráveis, ágeis e inteligentes. Enquanto isso, temos robôs femininos como Rosie, de Os Jetsons, que não passa de uma empregada doméstica robotizada. Isso também é corroborado pela História e pelas narrativas mais famosas, que não apresentam mulheres inventoras. Um exercício rápido de imaginação pode levar a essa conclusão. Os inventores mais famosos da História são todos do sexo masculino: Leonardo da Vinci, Thomas Edison, Nikolas Tesla, Archimedes… A lista é descomunal. É difícil pensar em alguma invenção que não tenha como exemplo de criador um homem. Mesmo as invenções mais importantes da modernidade: a Internet, que tem sua gênese na figura de Tim Berners-Lee ou o computador na figura de Alan Turing. Wajcman explica que “Contribuições das mulheres, de modo geral, têm sido deixados de fora [...] da História” (1991). Obviamente, existem mulheres que fizeram grandes contribuições à ciência e são devidamente atribuídas às suas invenções. Um exemplo é Marie Curie e sua filha que ganharam prêmios Nobel. Ou mesmo na história da computação, Ada Lovelace e Grace Hopper contribuíram enormemente para as bases computacionais que utilizamos até hoje. Mas não se pode negar a enorme discrepância entre o número de modelos masculinos com o pequeno número de modelos femininos. Como afirma Mckinsey, em seu famoso estudo chamado “Women Matter” (2007), 64% das mulheres percebem que a falta de modelos inspiradores femininos é um entrave ao seu desenvolvimento.

46 Pesquisa analisa a trajetória de inserção das mulheres no ensino superior. FAPERJ. Disponível em: . Acesso em: 16 Nov. 2015.

Analisando historicamente, não é de se estranhar que mulheres não tenham participado de processos de inovação em ciência e tecnologia, e aquelas que participaram tenham tido seus realizações reduzidas ou excluídas dos registros históricos. Se atualmente as mulheres são as que mais recebem títulos de graduação no país, historicamente as mulheres só passaram a ingressar no ensino superior a partir dos anos 1930, com a maior emancipação feminina. (MOTTA, 2014)46 É recente a participação ativa e institucionalizada das mulheres em meios acadêmicos e de pesquisa, por exemplo. Renegadas ao trabalho doméstico, as inovações e tecnologias utilizadas por mulheres não eram vistas como verdadeira “ciência”. Assim, é interessante ver a diferença que é dada as tecnologias que são utilizadas pelas mulheres possuem essa conotação “mundana”, muito diferente do estrelado e posição futurística que a tecnociência masculina possuem. Enquanto alguns são considerados aparelhos cotidianos, outros tem muito potencial atrelado. Neste contexto, como Pacey (1983) explica: “Tecnologia, assim como ‘economia’ é um termo convencionalmente definido pelos homens para indicar uma série de atividades em que eles estão interessados [...] Quase todos os trabalhos das mulheres, na verdade, são abrangidos pela definição usual de tecnologia. O que os exclui de reconhecimento não é apenas a simplicidade do equipamento utilizado, mas o fato de que ela implica um conceito diferente sobre o que é tecnologia. Construção e a conquista da natureza não são glorificados, e há pouco para perceber dentro do virtuosismo tecnológico. Em vez disso, a técnica é aplicada aos processos naturais de crescimento e decadência. [...] A apreciação do processo neste sentido depende em parte em aceitar e trabalhar com a natureza ao invés de tentar conquistá-lo, e é um conceito negligenciado na tecnologia convencional”. 47

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47 Tradução da Autora

“Technology’, like ‘economics’ is a term conventionally defined by men to indicate a range of activities in which they happen to be interested. […] Nearly all women’s work, indeed, falls within the usual definition of technology. What excludes it from recognition is not only the simplicity of the equipment used, but the fact that it implies a different concept of what technology is about. Construction and the conquest of nature are not glorified, and there is little to notice in the way of technological virtuosity. Instead, technique is applied to natural processes of both growth and decay. […] Appreciation of process in this sense partly depends on accepting and working with nature rather than trying to conquer it, and is a neglected

concept in conventional technology”

Outro exemplo que ajuda a corroborar o sinergia tecnologia como parte do universo simbólico masculino é o exército. (LATHAM, 2006) Como grandes invenções tecnológicas muitas vezes foram criadas em tempo de adversidade e guerra, e advindas diretamente dos laboratórios de exército do mundo, e exército é visto como uma atividade preponderantemente masculina. Assim, “discurso da ciência da computação, da cultura das engenharias e da ligação simbólica entre a identidade masculina e o exército” (EDWARDS apud LATHAM, 2006). Enquanto a militarização é exaltada, o trabalho doméstico é desrespeitado. Nos Estados Unidos, as primeiras escolas de engenharia também eram academias militares, mostrando essa coerência. Esse tipo de construção nos leva a compreender também o porquê de tecnologias voltadas a morte e à submissão são muitas vezes muito mais desenvolvidas do que sistemas de cuidado e saúde. Relembrando mais uma vez o estudo realizado por Cockburn (1993) sobre o aparelho de microondas: por ser um aparelho de alta tecnologia, era visto como masculino, mas ao se inserir no contexto doméstico passava a ser visto como feminino. Inicialmente, o design do microondas foi feito procurando apelar para jovens homens que não tinham tempo e nem queriam gastar tempo com o preparo de comida. Depois que o microondas não conseguiu alavancar as vendas com esse grupo, ele foi redesenhado e pintado de branco. As estratégias de marketing se voltaram as mulheres, e o aparelho foi vendido a elas. Assim, as tecnologias podem ser ressignificadas como femininas ou masculinas, mais uma vez provando o argumento de que as relações de gênero são pautadas em negociações mais do que uma essência pré-definida. E podemos perceber através desse exemplo como essas negociações podem influenciar no design de uma tecnologia. O gênero assumido de uma tecnologia vai envolver as simbologias e a comunicação ao seu redor. Outro exemplo é do telefone, que inicialmente foi criado pensando-se em sua utilização como um aparelho para conversas estritamente sobre negócios. A partir da apropriação das mulheres, as companhias telefônicas tiveram que modificar a maneira como eram feitas as cobranças telefônicas pois o aparelho era utilizado para conversas mais sociais e casuais. (MARTIN, 1991) Além disso, mulheres são um grupo muito negligenciado pensando-se em termos de design. Produtos voltados a um determinado tipo de gênero normalmente são produzidos apoiados nos esteriótipos de masculino e feminino. Embelezar, pintar de rosa ou minimizar parecem ser as únicas características que designers diferenciam quando lidando com tecnologia voltada para as mulheres. Diversas outras funcionalidades como usabilidade e reconhecimento são negligenciadas. Ao invés do designer ser orientado as necessidades dos usuários, pensando-se na questão do gênero, apenas as “feminilidades” são exploradas. Não só o discurso de maneira generalista corrobora para essas percepções. Discursos especificamente fabricados, e aqui me refiro à publicidade, enfatizam essa questão de forma bem direta. Claramente, a publicidade também não é uma esfera individual que possui força própria e age aquém dos discursos e ideias correntes da

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sociedade: muito pelo contrário, a publicidade normalmente faz uso de esteriótipos para que sua mensagem seja absorvida com maior facilidade.

48 Tradução da Autora

However, the artifact itself, or its representation through instruction manuals, advertisements, marketing, or the media, can often be shown to incorporate “configurations of the user,” including “gender scripts,” for instance, shaver models that inscript male desires to tinker versus female preferences for simplicity (van Oost 2003) or cars marketed to men as powerful, to women as reliable

49 Tradução da Autora

Arguably, mannequin birth simulators epitomize and, thus, recapitulate the medical conceptualization of birth as a project thatrelies upon the supervision, technological control,and skill of the medical authorities rather thanmothers and natural processes

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“No entanto, o próprio artefato, ou a sua representação através de manuais de instrução, anúncios, marketing ou na mídia, muitas vezes podem ser exemplificados por incorporarem “configurações do usuário”, incluindo “scripts de gênero”, por exemplo, modelos de máquinas de barbearque incorporam desejos masculinos contra as preferências do sexo feminino para simplicidade (van Oost 2003) ou os carros comercializados para homens como poderosos, e para as mulheres como confiável” (WYER, 2003). 48 A publicidade novamente aparece assim como grande catalisador das diferenças de gênero, reforçando constantemente os discursos binários. Pensando-se em tecnologias reprodutivas, o problema torna-se muito explícito.

“O enfoque sobre as tecnologias de reprodução ressaltam as formas de controle sobre a sexualidade e a fertilidade femininas enquanto derivações de valores culturais e científicos e de poderes jurídicos e políticos. Os processos de intervenção têm indicado um tratamento desvalorizado do corpo da mulher ao invés de aumento do controle pelas mulheres sobre sua sexualidade.“ (SILVA, 1998) O desenvolvimento das tecnologias reprodutivas passa pelo crivo ideológico da comunidade cientista, que machista, acaba por muitas vezes impor suas opiniões sobre o corpo feminino. Como exemplos, podemos citar os regulamentos e critérios para o uso de anticoncepcionais ou remédios abortivos. Mas um manequim utilizado como simulador para enfermeiras em treinamento nos Estados Unidos pode elucidar um pouco mais a questão. Os “manequins-mãe”, simulam o trabalho de parto de uma mulher da maneira convencionalmente ensinada nas escolas de medicina: com uma mulher passiva, deitada, à mercê da disponibilidade médica que realiza cesáreas algumas vezes indiscriminadamente. Os manequins reagem como é esperado de uma mulher nessa situação de parto: são programados para gritar, responder perguntas e sofrer hemorragias. Apesar das facilidades pedagógicas proporcionadas pelo simulador, esse tipo de método limita o aprendizado a situações pré-determinadas. “Indiscutivelmente, manequins que simulam o nascimento resumem e, portanto, recapitulam a conceituação médica do nascimento como um projeto que necessita da supervisão, do controle tecnológico, e da habilidade das autoridades médicas em vez de mães e processos naturais” (NALL, 2012) Outros tipos de nascimento são taxados de perigosos e não-convencionais, e desencorajados, ao invés de estudados e melhor desenvolvidos. Lembrando que apesar do problemática principal analisada nesta tese são as relações de gênero, atribuições devem ser tiradas da tecnologia como um todo: seja ela por idade, raça ou classe. A chamada “intersectionalidade” (do inglês, intersectionality) também influi na tecnologia, mas não será abordada nessa tese simplesmente por uma


motivação de foco. Mas é importante ressaltar esse ponto para que seja lembrado que da mesma maneira que a ciência da maneira como é estruturada hoje em dia é apoiada em universalidades, também a crítica presente não pode se valer do mesmo erro.

Identidades:

50 Tradução da Autora

“The self if, to some degree, a manufactured object, a social product. Over the past two centuries, people increasingly have defined themselves through the products they buy and use”

Partindo de uma visão construtivista e sóciopsicanalista, a identidade é baseada não em uma série de estruturas pré-formadas, mas sim uma construção de momentos na vida de um indivíduo, não necessariamente contínuas e ainda fragmentados, construído a partir de discursos. As personalidades são formadas a partir de condições sociais, sendo elas desde estruturas de poder como o Estado (como afirmou Foucault), até micropoderes como regras familiares ou grupos a qual a pessoa pertence. Normas de comportamento de gênero, oportunidades economicas disponíveis a partir da sua identidade cultural, tudo isso fabrica aquilo que é chamado de “Ego” ou “Caráter”. “O ‘eu’ é, até certo ponto, um objeto manufaturado, um produto social. Nos últimos dois séculos, as pessoas cada vez mais se definem através dos produtos que compram e usam” (LUPTON, 1993)50 A socialização do ser humano tem uma parte muito importante na maneira pela qual seu gênero será demonstrado. Como explicado pela teoria de Judith Butler, os imperativos sociais que determinam o gênero não devem ser subestimados - ainda mais, como no exemplo do Turing Game, ao lembrar que a identidade não é independente e tem sua formação a partir de fatores externos ao indivíduo. Como a performatividade de gênero é algo que está a todo momento sendo negociado dentro das relações sociais, no vestuário, na maneira de falar, na maneira de agir, é importante lembrar que a forma como os indivíduos aprendem como devem performar e agir é baseado em normas e acordos sociais que precedem a sua individualidade. Assim, é um erro acreditar que por livre e espontânea vontade alguém pode mudar de gênero, ou melhor dizendo, alterar sua performatividade. Obviamente, a análise de Butler também é pautada na existência da exclusão, ou seja, suas observações encontram validação naquele que é diferente: existir alguém “queer”, “drags”, “lésbicas” mostram como os imperativos sobre o gênero não são necessariamente a norma. Na teoria queer, quando alguém contraria as normas heteronormativas vigentes, essa pessoa “torna-se outro”, e assim como aquele que tenta contrariar o “Fato Social” descrito por Durkheim. A pessoa então é marginalizada e sua identidade torna-se motivo de chacota ou reprovação social. A partir dessas observações e questionamento aquilo que é aparentemente norma é tirado do senso comum e levado a análise. Hall (2000) explica isso como um “jogo de modalidades específicas de poder” , ou seja, a identidade vem da superioridade ou inferioridade do outro. É um jogo de exclusão: a identidade é firmada através daquilo que ela reprime, do que não é ou do que não faz. A identidade é construída a partir do relacionamento do eu com a sociedade. “Ser mulher” significa “não ser homem” e vice-versa. Pensando-se nesse exemplo, a dicotomia homem / mulher é vista dentro de uma oposição de hierarquia, no qual, obviamente, a

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mulher está em posição inferior.

“Aquilo que é peculiar ao segundo termo [homem/mulher] é assim reduzido - em oposição à essencialidade do primeiro - à função de um acidente. Ocorre a mesma coisa com a relação negro/branco, na qual o branco é, obviamente, equivalente a ‘ser humano’. ‘Mulher’ e ‘negro’ são, assim, “marcas” (isto é, termos marcados) em contraste com os termos não-marcados ‘homem’ e ‘branco’ “ (HALL, 2000) Assim, a partir da análise de objetos tecnológicos, podemos perceber diferentes formas de configurações de poder e de identidade. Enquanto “meninos reunidos em torno da tela do computador praticando habilidades de hackear, enquanto as meninas desenvolvem novos códigos de comunicação usando emoticons” (Lægran 2003b, Miller 2004). Assim, ao analisar o universo simbólico que circunda a computação e a ciências exatas, vemos que são elementos que não contribuem para a formação de uma identidade feminina. Por exemplo, vemos que as mulheres que trabalham em cargos de engenharia ou computação muitas vezes se abstém de maquiagem e acessórios, pois isso não faz parte do universo simbólico do seu cargo. Ora, mais uma vez é importante ressaltar que esse exemplo é para fins ilustrativos: aquilo que é relacionado com o universo da mulher, não que necessariamente se aplica a todas as mulheres, não é alinhado com ambições tecnológicas. Mas de maneira geral, ser um “hacker” ou um “geek” não está intrisicamente relacionado a construção de uma identidade feminina. Os estereótipos sexuais, que se encontram presentes em nossa vida desde o dia em que nascemos, associam homens com características tais como: racionalidade, competitividade, independência e objetividade; já as mulheres são associadas à irracionalidade, passividade, dependência, ternura, emotividade e subjetividade. As características femininas são tidas como um obstáculo para a persecução da carreira científica, já que as qualidades necessárias para fazer ciência são as masculinas. Às mulheres se associam mais as habilidades verbais e relações interpessoais (KELLER, 1986; GONZALEZ e PEREZ, 2002). Além disso, em um estudo realizado por Cockburn (1983) sobre as máquinas de escrever, vemos que também ouve uma sistematização da exclusão das mulheres nos trabalhos que necessitavam mais técnica, e que as mulheres foram muitas vezes proibidas de se arrumar em sindicatos de trabalhadoras. Essas atitudes não foram feitas de forma inconsciente como muitas das atitudes em relação as questões de gênero são: foram leis e ações que tiraram as mulheres de trabalhos com maiores salários e de cargos qualificados, as submetendo a funções mais simples. Um exemplo histórico é o da transição da máquina Linotype para o teclado QWERTY: No final do século 19, o trabalho de digitação no teclado QWERTY já era majoritariamente executado por mulheres, e o sindicato dos homens que trabalhavam com a máquina de Linotype tinha bastante força. A partir do momento que a máquina foi aperfeiçoada, o teclado QWERTY foi sendo generalizado, em uma tentativa dos industrialistas de introduzirem mulheres nesse trabalho, já que eram mais baratas. A união dos “compositores” das

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máquinas que possuíam um teclado diferente lutaram muito para que o teclado que usamos atualmente não fosse desenvolvido. Dessa maneira, eles procuraram manter o monopólio sobre esse conhecimento, e manter as mulheres fora do seu trabalho. Já que o teclado QWERTY era considerado tão simples que até uma mulher conseguia trabalhar com ele, os tipógrafos viram como uma afronta a suas habilidades essa mudança. Esse é apenas um exemplo como trabalhos que necessitam de mais perícia e qualificação são associados a homens, formando uma identidade para a categoria. 51 Folha de S.Paulo - Tec - 16/03/2011. Folha de S.Paulo - Tec 16/03/2011. Disponível em: .folha.uol.com.br/ fsp/tec/inde16032011. htm>. Acesso em: 16 Nov. 2015.

Alguns títulos da sessão Tec do Jornal Folha de S.Paulo, mostram como o problema ainda se encontra na contemporaneidade: “Falta mulher”; “Executivas são raras no mundo hi-tech”, “Mulheres criam pouco para Wikipédia” (FOLHA TEC)51. Apesar de diversas mudanças comportamentais, principalmente naquelas que tangem a divisão dos gêneros, o relacionamento entre mulheres e tecnologia continua em debate. Fox-Keller (2005) aponta para o fato que normalmente a conexão entre tecnologia e ciência com masculinidade é auto-evidente, mas não muito discutido fora das acadêmicas que se consideram feministas. Esse problema também contribui para a aversão ao assunto e a discussão, assim como a racionalização das problemáticas. Mas os argumentos para tais racionalizações normalmente parte de lógicas essencialistas ou estruturalistas: de que é “normal” que isso aconteça, que é “natural” que mulheres não se envolvam com tecnologia. De maneira geral, essa divisão dos estudos feministas da tecnologia nos ajudam a compreender a importância que esses estudos tem para compreender o relacionamento de tecnologia da sociedade como um todo. A grande contribuição dessas estudiosas foi exatamente a compreensão de que seres humanos não são passivos em relação a uma tecnologia que molda suas atitudes a partir do momento que são inventadas. Outro ponto de importante contribuição é o questionamento do que é visto como tecnologia e o que não é nas sociedades modernas. Percebe-se a grande disparidade com as quais as tecnologias são hierarquizadas através da crítica a submissão feminina que essas acadêmicas procuravam. E por fim, a outra contribuição de suma importância foi a reflexão sobre a influencia de nossas próprias ideologias e credos sobre a ciência e o design. Ao fazer uma tentativa de se esquivar de sua própria rede de significados, essas sociólogas procuram encontrar maneiras de analisar os objetos distanciando-se de seus preconceitos da melhor maneira possível, algo que não era questionado por muito tempo. De forma geral, para que a desigualdade de gênero não continue a ocorrer, o primeiro passo já foi dado por essas estudiosas, que foi a instauração do questionamento sobre essa questão. A partir do reconhecimento que existe uma hierarquia entre os sexos, o próximo passo é compreender o que faz com que essa desigualdade ocorra.

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Translucidezas


Para continuar a analizar o relacionamento entre as TICs e o avassalamento de certos grupos sociais, é importante também analisar o papel da linguagem dentro desses meios. A comunicação mediada por computador, também conhecido pela sigla CMC, já virou objeto de estudos de diversos acadêmicos. Esse modal de comunicação também é analisado dentro do contexto das interações humano e máquina (Human Machine Interaction no inglês, de sigla HCI). Neste trabalho, a CMC será analisada dentro do contexto da opressão de gênero, ou seja, procura-se aqui explicitar como esse contexto linguístico pode ser particularmente negativo para mulheres, ainda mais mediado por softwares e meios feitos sem considerar essas questões. De maneira geral, é importante primeiro compreender que apesar da CMC ser aqui vista de uma maneira mais generalista, esse tipo de comunicação não se apresenta de maneira uniforme ou única. Existem diversos tipos de modais, cada um com suas particularidades: emails, chats, videoconferencias, SMS, entre tantos outros. Todos os dias, por exemplo, um novo fórum é criado com um objetivo específico e diferente. Dentro do ciberespaço, hoje em dia já tão ampliado, podemos perceber inúmeros jeitos de fazer comunicação: desde salas de bate-papo no qual os usuários podem valer simplesmente de imagens até jogos no qual o avatar do indivíduo deve escolher uma ação dentro de um menu para interagir com o próximo. A característica que une todos essas modalidades é exatamente aquilo que define a CMC: a mediação pelo computador. Apesar de ser manifestadas de incontáveis formas diferentes, todas essas comunicações dependem de um computador (e computador aqui se apresenta de uma maneira mais ampla, pensada como processador, ou seja, celulares se encaixam nessa definição), e muitas vezes também dependem também de uma conexão à internet. Pensando-se no conceito da “Real Virtualidade” de Castells, podemos considerar toda a realidade mediada por um grande conjunto de simbologias e virtualidades. Então o que faz o discurso eletrônico diferente por exemplo, da escrita - pensando que ela é mediada pelo papel e pela caneta, e pelas condições que a levam até seu destinatário? A mediação por si só não é a que a faz diferente, mas a computação possui características específicas. A maioria dos pesquisadores posicionam a CMC como uma híbrida da comunicação escrita com a comunicação face-a-face, apresentando características comum ambos (Alves 2011, Hilgert 2001, Marschuschi 1997). Assim, a comunicação mediada por computador não é simplesmente uma carta ou papel digital no qual escrevemos. O texto é mediado pelos códigos e representado. As mensagens são quebradas, transformadas em código e então enviadas para diferentes partes do mundo através da rede. A rede passa por fios, e então é reorganizada e representada de outra maneira na tela de outro computador, de outra pessoa, provavelmente com outras configurações. Alguns autores chamam esse o fenômeno das “impressões” que ficam marcadas na composição e na organização do texto de “efeitos do meio” (CRYSTAL, 2001; HERRING, 2001). Algumas das características demonstradas por esses autores são por exemplo a simultaneidade das mensagens no meio digital, que permitem que diversas pessoas do mundo inteiro mandem sua opinião em tempo real, no mesmo segundo (formato Todos-Todos, de LÉVY, 1999) . Outro exemplo é o caráter público proporcionado pelas mensagens online, que

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52 A conspiração dos imbecis | VEJA.com. VEJA.com. Disponível em: .abril.com.br/ noticia/brasil/aconspiracao-dosimbecis/>. Acesso em: 16 Nov. 2015.

53 Tradução da Autora

permitem que elas sejam rastreadas e lidas abertamente. Como criticado por Umberto Eco, que fez uma crítica ácida afirmando que “o drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade” (2015). O fato da mensagem ser pública tem efeito sobre como o interlocutor escreve a mensagem e como os leitores reagem a ela. Outra característica importante, e que será debatida em mais profundidade no próximo capítulo é que o anonimato da internet, no qual é possível se comunicar com alguém sem oferecer as informações visuais imediatas (que resultam em preconceitos para o observador em relação a raça, gênero, classe e etc) e a falta de sugestões auditivas acaba por oferecer uma posição de conforto para o interlocutor. Além disso, a pessoa que está digitando a mensagem pode esconder suas atribuições na vida offline, como profissão ou posição social de suas opiniões, coisa que é muito mais difícil de acontecer em uma conversa face-a-face. Por isso a dura crítica do escritor Umberto Eco (que disse em entrevista que a internet dá voz a todo tipo de opinião desqualificada) , que acredita que esses fatores contribuíram para uma sobrecarga de opiniões online. (WOLF, 2015)52 De maneira geral, inicialmente o fato da CMC ter a possibilidade do anonimato fez com que algumas ciberfeministas do início da década de 90 acreditarem que através dela a opressão de gênero não aconteceria mais, pois o gênero do interlocutor estaria mascarado atrás da tela, indectável. Como falado por Taylor e Jordan, “dizer que o ciberespaço será libertador porque gênero, raça, idade, aparência, ou até mesmo ‘cachorrisse’ são potencialmente ausentes ou alternativamente fabricados ou exagerados com desmarcada licença criativa para uma infinidade de propósitos legais e ilegais” (TAYLOR e JORDAN, 1999) 53

to mean that cyberspace will be liberatory because gender, race, age, looks, or even ‘dogness’ are potentially absent or alternatively fabricated or exaggerated with unchecked creative license for a multitude of purposes both legal and illegal

54 Wikipedia. Wikipedia. Disponível em: .wikipedia.org/wiki/on_ the_internet,_nobody_ knows_you’re_a_dog>. Acesso em: 16 Nov. 2015.

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Figura 8: Charge feita por Peter Steiner, inicialmente publicada no jornal The New Yorker em 5 de Julho de 1993 Tradução: Na internet, ninguém sabe que você é um cachorro. Fonte: Wikipédia54


Atualmente diversas pesquisas demonstram que o relacionamento entre o offline e o online é muito mais estreito do que inicialmente pensado. O mundo virtual e o real se mesclam, e ainda não temos possibilidades tecnológicas para que um exista sem a existência do outro. Mesmo aqueles que participam de processos de “avatarização”, não se pode negar que suas atitudes online partem de conhecimentos prévios. E se como explicado no capítulo sobre a pós-modernidade, o ser humano é multifacetado, a faceta apresentada online é apenas mais uma de um mesmo indíviduo e não algo além dele. Um fato importante a ser considerado é que apesar da internet muitas vezes apresentar uma linguagem específica do seu meio, os indivíduos se comunicam a partir da linguagem que conhecem, e na internet ocorrem adaptações e o desenvolvimento dessa língua aprendida no offline. Assim, diversos autores acreditaram que a opressão masculina, racial ou de classe não encontrariam expressão dentro dos ambientes online. Eles seriam democráticos e promoveriam a igualdade entre as pessoas. As ciberfeministas ainda iam mais além: acreditavam que a consciência para a performance de gênero e o fim do patriarcalismo se iniciaria em ambientes online. Mas as pesquisas subsequentes mostraram o contrário. Exatamente por suas características, a CMC acabou se mostrando um meio tão opressor (e em alguns casos até mais: ver HERRING, 1996) quanto em grupos de discussão offline. A partir de marcas linguísticas, que serão exploradas no capítulo a seguir, foi observado que mulheres poderiam sofrer a opressão masculina mesmo em ambientes no quais não apresentam suas marcas físicas, como aparência ou voz. Mesmo recriando suas identidades femininas usando de recursos muito diferentes do que os usados no mundo real, a virtualidade evoca e mimetiza diversos elemento da realidade. O ciberespaço então foi visto cada vez mais como um espaço gendrado: “ao invés de quebrar as barreiras de gênero e de criar maior igualdade, a comunicação on-line freqüentemente reflete os problemas de comunicação de gêneros do mundo cotidiano” (FERRIS, 1996 apud LATHAM) “. Através de diversos estudos empíricos linguísticos realizado ao longo de muitos anos, diversos pesquisadores apontaram para as diferenças generificadas na comunicação, como será explicado no próximo capítulo.

LINGUAGEM Se a linguagem pode abrir caminho para análise das relações de poder dentro de uma cultura, as principais análises empíricas contrastando a maneira pela qual homens e mulheres se comunicam mostram as diferenças dicotômicas colossais que existem entre os dois gêneros. Além disso, em línguas como o português brasileiro, o gênero do emissor é marcado assim como o do receptor. Assim, temos certos substantivos e adjetivos que se modificam (obrigada para mulheres / obrigado para homens). Essa forma é a mais direta de “sexualização” da linguagem, e assim supor o gênero tanto da pessoa que está falando assim como da que será falada.

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Outras línguas, como a japonesa, vão mais além: possuem diferenciações não apenas para gênero, mas também para idade e status social. Dependendo da sua percepção de posição social de si mesmo e do outro, é necessário escolher a forma gramatical que será usada. Assim, uma pessoa que possui uma posição social abaixo de outra deve conversar com ela apenas usando um formato mais formal, enquanto a de posição social acima pode se referir aquela de posição inferior de maneira mais imperativa. Mas como explicado por Latham:

“na maioria das vezes, o gênero é indicado de forma nãoexclusiva, ou seja, formas lingüísticas podem traduzir múltiplos significados sociais e podem ser usadas por falantes de ambos os sexos; e indireta, uma vez que a relação entre determinada forma lingüística e uma determinada categoria social (no caso, gênero) é mediada por outros fatores, como papéis sociais, atividades, e pontos de vista dos falantes” (2006) Pensando-se assim, a variabilidade dos jeitos de se expressar, e a infinitude de interpretações que uma análise linguística pode ter tornam a correlação entre gênero e linguagem difícil de ser considerada tão direta como pressuposto por alguns linguistas como Lakoff (1973) ou Hall (1995), que partem de certos pressupostos sobre os porquês de homens e mulheres se comunicarem de certa maneira. Esses linguistas se apoiaram em ideias essencialistas, buscando expor as diferenças entre os sexos sem considerar que a linguagem é uma forma de construção de identidade. Um exemplo facilmente observável é em grupos de discussão gays: homens referem-se a si mesmos usando pronomes femininos, ou utilizam pronomes femininos para referirem-se a outros homens. Aqui, a forma linguística feminina é utilizado como forma de explicitar a sexualidade do falante, não importando sua identidade cis-gênero. Assim, algumas pesquisas empíricas procuraram explicitar diferenças percebidas entre os sexos na comunicação mediada por computador, mas é necessário ler as análises desses autores com cautela, atentando para aquelas análises que se iniciam a partir da premissa que o gênero dos participantes é pré-existente ao discurso. O discurso feminino e masculino aqui é então visto como um fato social que está aquém do indivíduo e seu gênero. Alguns estudos procuraram mapear as diferenças entro os gêneros a partir de dados estatísticos e analíticos. A tabela seguinte sintetiza as principais diferenças entre a comunicação feita por homens e mulheres em grupos de discussão. Mesmo quando os autores das mensagens respondiam anonimamente ou não utilizavam seu nome verdadeiro, os autores acreditavam que era possível deduzir o gênero do participante através dos seus maneirismos linguísticos e pelos padrões de comportamento interacional com os outros participantes do grupo.

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Tabela 1- Características lingüísticas e padrões de comportamento interacional que sinalizam gênero em listas de discussões e grupos de notícias Fonte: baseado em HERRING 2003, tabela feita por LATHAM (2006), que sumariza resultados de diferentes estudos

As diferenças notadas por Herring são interessantes no contexto que explicitam como o gênero dos escritos se define através da interação, se alinhando as características consideradas como femininas ou masculinas. A análise peca ao pressupor a dicotomia entre homens e mulheres, reforçando que a linguagem é em si mesma um processo de definição da identidade e de cultura. Também peca ao não explicitar quais são as sobreposições entre os gêneros, e as similaridades. Mas a análise é interessante ao mostrar a existência de diferenças dentro do contexto social online, e apresentar como a linguagem é utilizada para aproximar um indivíduo de um gênero ou outro. Assim, percebemos a forma sistemática pelas quais os indivíduos formam suas identidades, e também a tirania masculina que impera nas discussões online. Dessa maneira, alguns estudos conseguiram evidenciar a existência dessas diferenças de poder entre aqueles que se comunicam de forma “feminina” e daqueles que se comunicam de forma “masculina”. Herring citado acima e exemplificado na tabela, mostrou que homens tentavam silenciar as mulheres quando a participação feminina ultrapassava 30% das mensagens totais, respondendo suas tentativas de contraargumentação com acusações e mensagens raivosas e sarcásticas. Outra pesquisa

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(KRAMARAE e TAYLOR, 1993) provou que os problemas comunicacionais encontrados pelas mulheres na vida offline são espelhados na comunidade online, como assédio sexual ou desconsideração das opiniões femininas, agressividade masculina, etc. Soukup (1999) também relatou exemplos parecidos em seu estudo etnográfico em salas de chat, no qual as mulheres acabavam vendo silenciadas e subjugadas pelo comportamento masculino, mimicando os problemas de gênero tradicionais. Mesmo na sala de batepapo voltado ao público feminino, as normativas masculinas acabavam por subjugar as interações feitas por mulheres. Em conclusão, é evidente que as relações de poder dentro de ambientes online são desiguais para aqueles que emulam o conjunto de práticas discursivas alinhadas ao sexo feminino, que são subjugados e dominados por aquelas práticas discursivas masculinas. Assim, “a definição do que é uma conversação apropriada ou não, torna-se escolha do homem” (LATHAM, 2006). A partir desses exemplos pode-se perceber que esses problemas ainda são muito vigentes dentro do ciberespaço, e ainda será necessário muita discussão e pesquisa para problematizar essas relações de hierarquização.

Horizonte A facilidade de análise através da etnografia digital, por causa dos registros digitais e da agilidade para indexação, faz com que as análises sejam mais precisas e tenham um escopo muito maior do que permitido antes da conexão em rede. Hoje é possível cruzar dados de diversas culturas e de milhares de pessoas com a facilidade de um clique. Com a enorme quantidade de mensagens produzida todos os dias pelos usuários, é possível predizer “certos comportamentos on-line com maior freqüência que o acaso quando consideradas populações agregadas de usuários, controladas as variáveis de idade, tópico, e sincronicidade do meio” (LATHAM, 2003). E cada vez mais será mais fácil de analisar como esses preconceitos se manifestam na linguagem escrita ao analisar a enorme quantidade de dados disponíveis online. Se os estudos exemplificados aqui tinham que realizar seus estudos com grupos pequenos por limitações e pela dificuldade da análise, e se atentar muito a grupos de controle para conseguirem afirmar suas generalizações, no século 21, com o uso do Big Data, isso não será mais necessário. Online ficam armazenados milhões de gigabytes de conversas, facilmente divididas pelo gênero do interlocutor. E a análise desses dados através de inteligencia artificial tornará fácil aquilo que antes era muito complexo. Alguns protótipos e startups do Vale do Silício já estão sendo utilizadas voltados a esse objetivo. Essas companhias surgiram principalmente motivadas pelo “Gender Gap” (Lacuna entre os Gêneros - tradução livre) da tecnologia, ou seja, a falta de representatividade feminina nas áreas chamadas STEM (o inglês, as quatro disciplinas ciência, tecnologia, engenharia e matemática ). No estado da Califórnia, estado americano no qual se encontra as sedes das maiores empresas de tecnologia da atualidade, foi instituído no ano de 2015 uma lei específica para prevenir diferenças

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de salário entre homens e mulheres, chamado de Fair Pay Act. Algumas empresas, com ânsia de implantar políticas de inclusão mas ao mesmo tempo encontrando dificuldades para fazê-lo, têm se voltado à inteligência artificial e ao processamento de linguagem e imagem para cruzar dados e apontar o que torna uma oferta de emprego sexista. Essas tecnologias são interessantes pois partem da premissa que indivíduos encontram muitas dificuldades para se libertar de seus preconceitos e imperativos sociais, e a análise vem como forma de enxergar aquilos que humanos dificilmente conseguiriam por si só, por causa de sua própria historicidade e construção social. Um exemplo interessante é a plataforma Textio, que otimiza ofertas de emprego online. Criada em Seattle pelo neurolinguista Kieran Snyder, a plataforma procura alinhar os estudos sobre o sexismo linguístico com um processador de linguagem, procurando deixar as ofertas mais “gender-neutral”, ou seja, mais neutras em relação ao gênero. O aplicativo realça palavras que inclinam para um gênero em específico e propõe alternativas.

Figura 9: Screenshot exemplificando a plataforma Textio.

No texto: “Atenção! Essa frase atrai mais empregados masculinos. Outras escolher: alta performance, forte performance, guru” (Tradução Livre) 55 Textio: words data = magic. Textio. Disponível em: . Acesso em: 16 Nov. 2015.

Fonte: Site oficial da Textio55 Outro exemplo é a startup localizada em Utah chamada HireVue, que foca em superar preconceitos sobre possíveis candidatos de emprego. Usando IA, a startup analisa vídeos enviados pelos candidatos a uma oferta, verificando e comparando gestos e aquilo que eles disseram com uma grande quantidade de dados. Gestos, temperatura corporal, dilatação da pupila, velocidade da fala, estrutura de sentenças: tudo isso é analisado pela máquina, tentando deixar a entrevista do candidato o mais imparcial possível, eliminando também as premissas do entrevistador. Assim, a HireVue

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compara essas entrevistas com pessoas que foram contratadas e sua performance quando empregados com os possíveis candidatos, não importando seu gênero, idade ou classe social. De maneira geral, já existem novas tecnologias e técnicas que procuram minimizar as desigualdades sociais, principalmente as de gênero. A consciência de que é muito difícil para um ser humano simplesmente ignorar seus preconceitos decorrentes de sua construção e criação social promovem o comissionamento de avaliações para as inteligencias artificiais, desde que estas sejam programadas para serem o menos preconceituosas possível.

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ArquĂŠtipos Digitais


Assistentes Pessoais Cada vez mais, criam-se assistentes virtuais que auxiliam o usuário humano a navegar por interfaces. Os exemplos mais notáveis desses assistentes são aqueles comandados por voz, e se encontram instalados nos smartphones mais populares do mundo, assim como em call centers, GPS e eletrodomésticos. Esses sistemas comandados por voz funcionam como verdadeiros assistentes pessoais, eliminando o esforço da digitação manual pelos usuários. Para aqueles que usam seus celulares como GPS, por exemplo, e encontram suas mãos ocupadas pelo volante, os assistentes pessoais facilitam muito a navegação. Alguém que acabou de entrar em casa pode pedir para que as luzes sejam acesas falando seu pedido em voz alta. Esses são apenas alguns exemplos desses novos tipos de interface que são programadas para escutar e servir os pedidos dos seus utilizadores, que se tornam cada vez mais populares e permeiam diversos tipos de aparelhos, principalmente aqueles que fazem parte da chamada “Internet of Things” (Internet das Coisas - tradução livre). Utilizando-se da conexão a internet e de uma inteligencia artificial que aprende a discernir as nuances na voz do seu usuário e a aprender suas preferências, esses assistentes pessoais se tornam os escravos perfeitos: nunca questionando aquilo que lhes é pedido e evoluindo rapidamente para se tornaram mais eficazes. O pesquisador Clifford Nass, explica em seu livro “Wired for Speech” (2005), que as pessoas se relacionam com seus assistentes pessoais comandados por voz da mesma maneira que se relacionam com outras pessoas. Assim, os usuários respondem às inquisições de suas interfaces baseados na maneira que eles respondem as suas situações sociais cotidianas. Ao utilizar uma assistente pessoal que interage e conversa, usando de uma linguagem humana, é como se as tecnologias passassem de simples ferramentas ou extensões humanas para algo além, algo passível de relacionamento e empatia.

56 Siri and Cortana Sound Like Ladies Because of Sexism. Wired.com. Disponível em: .wired. com/2015/10/why-siricortana-voice-interfacessound-femalesexism/?mbid=social_ fb>.

Atualmente, os assistentes pessoais mais utilizados e mais populares são aqueles instalados nos smartphones, principalmente no sistema IOS da Apple e Android da Google. Siri, como é chamada a assistente instalada nos Iphones a partir de 2011, tem o nome inspirado em velhas línguas escandinavas e sua tradução significa “bela mulher que te guiará à vitória”. (HEMPEL, 2015)56. E não é só seu nome que a liga ao gênero feminino: sua voz é delicada e dublada por uma mulher, além de que em línguas que possuem marcadores de gênero como a portuguesa (usando obrigada ao invés de obrigado, por exemplo), a assistente pessoal refere-se a si mesma utilizando a forma feminina. Assim também funciona a assistente virtual Alexa da Amazon e a Google Now. Essa também é a mesma lógica da Cortana, a assistente pessoal instalada nos smartphones da Microsoft, que foi nomeada em homenagem a inteligencia artificial fictícia que guia os jogadores de Halo. Sua voz é dublada pela atriz Jen Taylor tanto nos jogos quanto na assistente pessoal. Na franquia de jogos Halo, Cortana atua tanto como personagem tanto como

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artifício para auxiliar o jogador a compreender as táticas e a história do jogo, que assume o papel do oficial hiper-masculinizado Master Chief. Dessa maneira, Cortana aparece como seu oposto dentro do jogo, sendo hiper-feminina e sexualizada. Os designers do jogo afirmaram que se inspiraram nas estátuas da rainha Nefertiti para modelar a corporificação holográfica da I.A, que quando aparece no jogo holograficamente, assume a forma de uma mulher sensual.

Figura 10: Cortana em Halo 4. 57 Cortana. Halo Nation. Disponível em:<wikia. halo.com> . Acesso em: 16 Nov. 2015.

Fonte: Wikia do Halo Nation57 Segundo essas circunstâncias, os designers e engenheiros dessas assistentes pessoais são inspirados em ícones femininos em suas criações. Grande parte da tecnocultura que circunda as pessoas que trabalham com tecnologia possui esse tipo de referência, inspirada nesses grandes exemplos atuais: jogos como Halo e outras assistentes pessoais com vozes femininas. Condicionalmente, as maneiras de se fazer tecnologia evoluem a partir do que já foi feito e as inspirações se repetem, fornecendo material umas as outras. Quanto mais assistentes pessoais mulheres existirem, mais elas continuarão a existir, e mais o público se acostumará a elas. Além da cultura específica que rodeia aqueles que trabalham com tecnologia, também existem as problemáticas sociais mais macro que acabam por fazer com que a escolha de voz das assistentes pessoais sejam em sua grande maioria femininas. Como explicado por Nass, em seu livro O homem que mentiu para seu computador, “vozes de mulheres são vistas em média, como menos inteligentes do que vozes masculinas”. (2010) A escolha de uma voz feminina, assim, faz com que o usuário “perdoe” mais facilmente eventuais deficiências do sistema de reconhecimento de voz. Ademais,

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deve-se pontuar que as assistentes pessoais se encontram dentro de um grande sistema mercadológico: elas devem ser desenhadas da maneira mais universal possível, a fim de agradar os consumidores. E uma maneira de se fazer isso é seguir os viéses hegemônicos sobre vozes masculinas e femininas. Como demonstrado por Karl Macdoman, em uma pesquisa de 2011, homens e mulheres compreendem vozes femininas como mais calorosas. Ademais, os designers de produto procuram criar interfaces que não distraiam os consumidores ou os levem a questionar dilemas relacionado a gênero. É de lugarcomum pensar que as interfaces devem ser aprendidas e utilizadas da maneira mais “natural” possível. Como homens e mulheres se comunicam de forma culturalmente diferente, como já explicitado em capítulos anteriores, os usuários poderiam se distrair ao ver uma voz feminina utilizando de expressões majoritariamente ditas por homens. Nass também afirma a partir de suas pesquisas que vozes femininas são vistas exatamente de forma assistencial, ou seja, como uma ajuda a resolução de problemas. Enquanto isso, vozes masculinas são percebidas de maneira autoritária, ou seja, como uma voz especialista que sabe a resposta para o problema. (2010). Para ilustrar ainda mais como esse problemática, Nass documenta um exemplo em seu livro sobre como a BMW foi obrigada a trocar a voz feminina em seus sistemas de GPS porque os motoristas alemães relatavam muita desconfiança. Ou ainda um call center no qual as transações eram feitas por vozes masculinas, mas as cotações das ações eram ecoadas por vozes femininas quando o cliente inicialmente ligava para o serviço. A falta de diversidade nas vozes utilizadas nas assistentes pessoais reflete a falta de diversidade na indústria de tecnologia, que ainda não utilizou todo o potencial sonoro que já foi dominado tecnicamente. Ao se pautar nos possíveis desejos e questionamentos dos consumidores, continuam a perpetuar a ideia de que mulheres são meras assistentes ao invés de vozes de autoridade. Lembrando também de toda a simbologia embutida na existência de assistentes pessoais femininas, ligando novamente a ideia do feminino com servidão, passividade, submissão e hospitalidade.

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Games

58 Bigger Than Hollywood: The Numbers Behind Video Gaming. Bloomberg.com. Disponível em: .bloomberg.com/news/ videos/2015-08-05/ bigger-than-hollywoodthe-numbers-behindvideo-gaming>. Acesso em: 17 Nov. 2015.

Gaming - ou o ato de jogar jogos digitais - tornou-se uma das mídias mais proeminentes do século XXI. Com um número que só cresce de jogadores no mundo inteiro, é uma indústria que movimenta bilhões de dólares e que possui títulos que vendem cópias em valores que ultrapassam a casa dos milhões - ultrapassando em números alguns filmes de Hollywood, tanto em lucro quando em “espectadores” (BLOOMBERG, 2014)58. Mesmo com um alcance tão abrangente, apenas recentemente o estudo de games foi incorporado em âmbito acadêmico, principalmente assuntos que tangem sexualidade, gênero e construção de desigualdades. Mas games se tornaram uma mídia muito poderosa na análise das relações da identidade de gênero, e alguns estudos-chave (JENKINS, 1998; CONSALVO, 2006) foram muito importantes para demonstrar a problemática que as mulheres enfrentam nas novas mídias. Indo ainda mais além, videogames são importantes pois são uma maneira interativa e recreativa de se relacionar com computadores e cultura digital. Já na infância, crianças podem se relacionar com máquinas através dos consoles e da exploração dos computadores nos quais os jogos estão instalados. Mas a indústria de games, seguindo a tradição da tecno-cultura masculinizada, afasta mulheres e valores femininos. Não só a indústria, mas também toda a cultura gamer foi extensamente estudada e documentada com críticas a seu assédio e perseguição a jogadoras. De maneira geral, é uma mídia altamente dominada por homens, tanto na indústria, quanto em seus valores, sua cultura, suas narrativas e nos personagens criados. Um dos exemplos observáveis mais facilmente como games podem ser agressivos às mulheres é a falta de avatares e protagonistas femininos em jogos. Diferentes metodologias foram utilizadas para exemplificar este problema. Ivory (2006), por exemplo, ao analisar reviews de jogos, notou que 75% dos reviews mencionavam personagens masculinos, enquanto apenas 42% mencionavam personagens femininos. Burgess et al concluiu que homens tinham duas vezes mais probabilidade de aparecer nas capas do que mulheres. Williams et al. (2009) desobriu que “personagens masculinos são muito mais propensos a aparecer do que personagens femininas em geral. A diferença total de 85,23 / 14,77 por cento é também um grande contraste com a distribuição de 50,9 / 49,1 por cento da população real”. Pode-se argumentar que grande parte dos jogadores são mulheres, mas elas encontram representações de avatares masculinos. “O conjunto de estereótipos da ‘feminilidade’ aparentemente não contém nenhuma alusão constantemente desvalorizada da mulher a não ser enquanto, atributo por atributo, a identifica em última análise ao estereótipo-síntese: passiva.” (MISSE, 1979) Enquanto a passividade feminina é traduzida em atributos e características nos sujeitos contemporâneos, no jogo, especificamente, a passividade vai além a partir do momento que essas personagens não possuem ações ou defesas da ação masculina. A passividade feminina é objeto constante de estudos sociológicos, e não é exclusiva do universo “gamer”. Como demonstrado no artigo de Craig Atkins e Rana A. Emerson, desde 1970 as

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mulheres tendem a ser retratadas em posições subalternas ou de submissão ao gênero masculino, enquanto homens são colocados em posições de autoridade. Enquanto a maioria das personagens femininas continuarem a serem desenhadas em uma posição de fragilidade e de objectificação, que estão a disposição do jogador, que por sua vez é representado por um avatar masculino, a cultura gamer continuará com um problema de representação. Ao vincular valores como a força, habilidade e proeza sexual como “masculino”, ou em outras palavras, classificando alguns valores como específico para os homens, os designers do jogo reforçam a construção de desigualdades entre os gêneros. Mas é importante lembrar que tal passividade não é dado natural ou inerente a psique humana - e sim algo construído socialmente e que operam dentro de um determinado contexto cultural e histórico. Existem exemplos que podem ser usados de contraste que confirmam tal crítica. Como explicado por Misse, “é reconhecido também que há, nestas civilizações, uma predominância do ‘objeto sexual’ na qualificação social da mulher, o que nem sempre ocorre nas chamadas ‘civilizações do Oriente’ O mito da ‘inferioridade biológica’ da mulher é desconhecido em muitas sociedades do passo e até hoje em algumas sociedades tribais” (MISSE, 1979) . O fato das personagens femininas não serem jogáveis é particularmente danoso pois reinforçam e naturalizam conceitos pré existentes sobre gênero e sexualidade. Como explicado no livro Values at Play, que apela a designers de jogos para que suas criações sejam mais conscientes: “tecnologias, incluindo jogos digitais, englobam valores éticos e políticos, e aqueles que projetam jogos digitais têm o poder de moldar o envolvimento dos jogadores com esses valores “ (FLANAGAN e FAY). Tais ideologias são repassadas através de cada ação performada em jogo, e assim como ao consumir a narrativa que é apresentada. “Sistemas de conhecimento só existem socialmente se reproduzidos pelos atores sociais, e a vitória de um ou outro sistema dependerá, em última instância, do relativo poder dos seus proponentes.” (FRY, 1982) Assim, a imersão dentro desses sistemas de conhecimento é um dos constituintes na construção da identidade moderna. Jogadores contrários a essa crítica muitas vezes se apóiam na existência de personagens mulheres protagonistas e fortes, como Lara Croft de Tomb RaIder ou Samus Aran de Metroid. Apesar dessas personagens evocarem narrativas emergentes, no qual o esteriótipo da mulher frágil e passiva é subvertido, elas também são objetificadas sexualmente através da sua aparência: curvas muito acentuadas, roupas provocativas e até o uso do “male gaze” (MULVEY, 1975), ou o olhar masculino, nas câmeras que focalizam as personagens. A existência de algumas exceções não diminui a enorme disparidade de representação na indústria como um todo. Como “gaming” é um poderosa mídia nos tempos atuais, não é de se espantar que é um objeto midiático que poderia ser utilizado para questionar normas vigentes pela liberdade criativa proporcionada pela tecnologia. Mas, ao ater-se a naturalização da passividade feminina, jogos como os citados trabalham exatamente como limitadores e controladores sociais. Pode-se dizer que o binarismo homem e mulher pode ser diferentemente explorado pois “o reexame teórico levou a uma crítica geral do determinismo biológico, em particular do conhecimento baseado na biologia das

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diferenças sexuais. A evidencia histórica e do cruzamento de várias culturas minou a noção de que os papéis das mulheres, que variavam tão amplamente, pudessem ser determinados por uma sexualidade e reprodução humana aparentemente tão uniformes” (VANCE, 1995). E a mídia videogame, no qual através da tecnologia novos mundos, corpos e até biologias podem ser imaginadas de uma maneira completamente diferente do mundo real, é de se estranhar que os esteriótipos mais nocivos continuem a permear a indústria como um todo. Uma olhada rápida nos jogos mais populares e mais rentáveis dos últimos anos, títulos como Call of Duty, Halo e Grand Theft Auto têm base em valores como violência e enfrentamento como forma de sociabilização. Além da virilidades dos protagonistas fortemente masculinizados, o jogador navega pelos mundos virtuais encontrando novos armamentos para enfrentar seus inimigos”. Todo esse universo é ligado a valores masculinos. Como explicou Judy Wajcman: “Muitos dos jogos mais populares são simplesmente versões programadas de jogos de computador tradicionais, envolvendo atirar, explosões, corrida ou ‘zapear’ de alguma forma ou de outra. Eles geralmente têm títulos militaristas ... destacando seus temas de aventura e violência” (WAJCMAN, 2006)59 59 Tradução da Autora

“Many of the most popular games are simply programmed versions of tradittionally non computer games, involving shooting, blowing up, speeding or zapping some way or another. They often have militaristic titles… highlighting their themes of adventure and violence”

Assim, jogos digitais se encontram dentro de um contexto que possui uma temática que exalta e celebra esses valores (violência, militarismo, força, etc). E “Psicólogos demonstraram que histórias desempenham um importante papel na cognição e na forma que modelamos o mundo “(Graesser de Zwaan e Magliano, 1995). Assim, não é de se espantar que mulheres, que são relacionadas ao universo feminino e que possui valores antagônicos a estes, sofram tanta degradação ao procurar participar da cultura gamer. Muitas meninas reportam casos de misoginia e assédio ao adentrarem RPGs online, por exemplo. O aumento da presença feminina nos últimos anos nestes “espaços” dominados por homens tem aumentado a violência contra jogadoras (CONSALVO, 2012). Dois exemplos recentes muito relatados pela mídia é o caso de Anita Sarkeesian e o chamado “Gamer Gate”. Anita realizou uma campanha de crowdfunding para angariar fundos para a criação da sua série chamada Tropes vs. VideoGames, no qual procura analisar os artifícios mais utilizados em jogos digitais e como isso se relaciona com a misoginia em games. Após conseguir um dos financiamentos mais bem sucedidos da história atual do Kickstarter, Sarkeesian passou a receber ameaças de morte e agressão constantes por suas redes sociais. Um dos episódios mais recentes dessas ameaças aconteceu no ano de 2015, no qual teve que cancelar uma palestra para a qual tinha sido convidada na Universidade do Estado de Utah, pois um agressor anônimo mandou uma nota para a reitoria afirmando que iria repetir o “Massacre de Montréal” caso ela realizasse sua palestra. (HOLPUCH, 2014) É importante ressaltar também que jogos geralmente são mídias procedimentais (salvo jogos que permitem narrativas emergentes ou de código aberto), ou seja, possuem “espaço” e caminho limitadas. O jogador não é capaz de fazer ações que o jogo não foi programado para realizar, apesar de poder criar significados diferentes ou interações

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inusitadas. Mas, por exemplo, um jogador que não queira fazer parte de uma cena de estupro em Grand Theft Auto não poderá completar o jogo, uma vez que a história só vai continuar quando a missão for concluída. O jogador que queira prosseguir com a narrativa do jogo deve se submeter àquela cena, mesmo discordando das ações do seu avatar, pois não há caminhos que permitam decisões diferentes. Mas a generização dessa mídia não é restrita apenas às decisões de designers homens que acabam perpetuando esteriótipos de gênero, ou mesmo de consumidores acostumados a um certo tipo de narrativa que evoca valores de uma tecno-cultura masculinizada. A divisão de espaço na hora da comercialização dos games em “jogos para meninas”, o uso de modelos com roupas hiper-sensualizadas em eventos de divulgação de jogos, a discriminação sofrida por meninas ao adentrar jogos online, ou mesmo o nome discriminatório do console Game Boy. De uma maneira conclusiva, videogames então podem ser considerados “tecnologias de gênero” (LAURENTIS, 1987) pois reinforçam, reproduzem e naturalizam preconceitos sobre homens e mulheres.

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Figuras 11 e 12: Estande de Jogos para Meninas na Gamestop e Showgirls no Taipei Game Show 60 Games 4 Girls at Gamestop: Gagging, Weeping, Bleeding From the Eyes. Wired.com. Disponível em: <wired. com>. Acesso em: 16 Nov. 2015. 61 Taipei Game Show 2009 Showgirls Collection MMORPG Photo News - MMOsite.com. Taipei Game Show 2009 Showgirls Collection - MMORPG Photo News MMOsite.com. Disponível em: .mmosite.com/

Fonte: Revista Wired60 e Foto promocional no site do Taipei Game Show61 Além disso, o contato com videogames é muito importante para instigar a curiosidade tecnológica nas crianças através de um contexto lúdico. Através do videogame que se pode instigar em crianças a vontade de compreender como foi feito o design e a interface dos jogos, que possui bases computacionais. Assim, é uma mídia muito importante em um contexto de aprendizado de programação, por exemplo, e por isso é interessante que não seja atrelado ao sexismo. Videogames devem ser profundamente estudados como mídia interativa contemporânea e fenômeno cultural, além de propagadores de valor. De um ponto de vista crítico, da mesma forma que filmes e literatura podem reforçar estereótipos de gênero nocivos e o binarismo entre os gênero, jogos podem propagar ideias que ajudam a enfatizar atitudes degradantes de homens em relação a mulheres. É importante criticar e analisar tais histórias, a fim de contribuir com uma discussão mais ampla dos padrões usados nos meios de comunicação ao retratar diferentes pessoas, especialmente pensando em intersetorialidade. Jogos podem ser usados como uma ferramenta poderosa para o ensino e explorar os limites da sexualidade humana e representações, mas os títulos mais importantes da indústria continuam a usar os mesmos clichés da publicidade e cinema em suas narrativas. Trazendo a tona tal discussão, a conversa sobre gaming pode tornar-se mais inclusiva e solidária com grupos sub-representados, e até utilizado como ferramenta de compreensão de diversidade.

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Redes Sociais As redes sociais são caracterizadas por sua possibilidade de abertura e participação do público. E de maneira geral ainda existe muita hostilidade e degradação em relação às mulheres na cultura em geral, a partir da historicidade e da sistematização do machismo existente. Lembrando aqui que ao pontuar machismo e patriarcado não estamos falando de uma ação isolada, mas sim um conjunto sistemático e histórico de opressão às mulheres e feminilidades. E se hoje em dia, entre aqueles que possuem acesso à conexão de Internet, grande parte da sociabilidade é feita através das chamadas redes sociais, é de se esperar que esses valores sejam espelhados também através dessas redes, afinal, grande parte do público ainda partilha desses valores. Um relatório de 2006 entitulado “Dominamos a tecnologia para erradicar a violência contra as mulheres” da APC (Association for Progressive Communications), mostrou que certos tipos de violência contra as mulheres podem ser classificados e tipificados, pois acontecem de maneira característica em 12 países do mundo. Apesar da variação das tecnologias utilizadas, essas violências tinham como objetivo simbólico minar a autonomia e liberdade feminina. E são nas redes sociais, as mais utilizadas pelo público em geral, que essas atitudes ocorrem de maneira mais explícita. Orkut, Facebook e Twitter se tornam então, ao mesmo tempo que mídias para ativismo sobre a igualdade de gênero, também se tornam campos para que se ocorra discriminação e violência contra mulheres. A rede social mais popular do mundo, o Facebook, foi criada pelo estudante de Harvard Mark Zuckerberg. A primeira rede social criada pelo estudante foi um site chamado “FaceMash”, no qual estudantes de Harvard podiam classificar alunos e alunos como atraentes ou não. Aqueles com mais votos de atratividade entravam para ranking. O site ficou online apenas por um final de semana, e os jornais de Harvard escreveram comentários sobre como ele era impróprio. Depois de largar a faculdade, Mark Zuckeberg se concentrou no projeto que hoje possui mais de 1 bilhão de usuários ativos. O escritor Zadie Smith critica que tudo sobre o Facebook é “reduzido ao tamanho do seu fundador. [Por exemplo] cutucar, porque é isso que garotos tímidos fazem com meninas que eles estão com vergonha de conversar”. (SMITH, 2010) Se as raízes da rede social não são suficiente para demonstrar suas características machistas, também é interessante notar algumas práticas feitas por seus usuários que a configuram assim. Perseguição, assédio, “flaming”, publicação de fotos e vídeos íntimos, ofensas, são rotineiras nessas plataformas. E a maioria das vítimas neste caso, são mulheres.

“E apesar da internet ser sim um espaço belicoso para todos que a navegam, há uma enorme diferença na forma com que homens e mulheres são atingidos por essa questão problemática. Em 2006, pesquisadores da Universidade de 98


Maryland criaram vários perfis falsos em salas de bate-papo. Usuários com nomes femininos receberam, em média, 100 mensagens violentas e de cunho sexual por dia. Usuários com nomes masculinos, apenas 3,7” (THINK OLGA, 2014). No Brasil, temos o caso notável da campanha promovida pela jornalista Nana Queiroz dentro do Facebook. Indignada com os casos de assédio ocorridos no país, e uma pesquisa do Ipea que afirmava que grande parte da população brasileira concordava com a frase “Mulheres que mostram o corpo merecem ser atacadas” a jovem decidiu usar a rede social como forma de ativismo contra essa ideologia.

Figura 13: Montagem com a Jornalista Nana Queiroz e fotos de outras mulheres que aderiram à campanha Fonte: Revista Época62 62 Nem elas nem ninguém merece... revistaepoca.globo. com. Disponível em: .globo.com/ideias/ noticia/2014/04/nemelas-nem-bninguemmereceb.html>. Acesso em: 16 Nov

Apesar das mais de 40 mil mulheres que aderiram à campanha, e do aval de celebridades como a Presidenta Dilma Roussef, Nana Queiroz também recebeu diversas ameaças de morte e estupro por usuários da rede social. Diversas expressões de ódio também foram publicadas na página do evento contra àquelas que aderiram a campanha, incitando violência contra as mesmas e desacreditando suas afirmações estavam erradas. Expressões chulas eram dirigidas contra aquelas que participaram da campanha que possuem concepções negativas e que levam a um processo de estigmatização (Goffman 2008) como “putas” ou “vadias”, fomentando um processo de repressão à liberdade sexual feminina e sua luta contra a violência sexual. Na parte estrutural da rede social, a análise pode ser feita através da ideologia que guia a censura de fotos. A rede social é notória por censurar fotos de mães amamentando seus filhos mas não censurar fotos pornográficas, por exemplo. O estudante de jornalismo Wilheim Rodrigues, em 2014, mostrou em sua tese de conclusão de curso que os casos de censura do Facebook no Brasil partem de um consenso ideológico sobre o que é

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pornográfico, um sistema que nega a postagem de imagens como fotos jornalísticas de mulheres com os seios à mostra mas não censura fotos de mulheres em posições eróticas. Essa unilateralidade ideológica em relação a censura das imagens inspirou um projeto da fotógrafa Julia Rodrigues chamado de #podeounaopode que posta fotos de homens e mulheres mostrando os mamilos e avalia quais são censuradas ou não. A censura é feita apenas à exposição de seios femininos, mesmo sendo fotografados sem nenhum tipo de apelo sexual. Enquanto isso, diversas páginas que exaltam e disseminam conteúdo erótico não são censuradas.

Figura 13: Mulheres censuradas e homens com mamilos à mostra, do projeto Pode Não Pode 64 Facebook. Pode Não Pode. Disponível em: .facebook.com/media/se t/?set=a.768369123279 093.1073741854.37202 9299579746&type=3>. Acesso em: 16 Nov. 2015.

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Fonte: Albúm de Fotos da página Julia Rodrigues Fotografia, no Facebook64 Em 2013, em um caso público retratado pela revista Wired, o Facebook se retratou ao não atender os pedidos de derrubar uma foto adulterada sem permissão de uma mulher islandesa. A foto de Thourlag Agustsdottir foi alterada por um usuário machista que colocou marcas de espancamento em seu rosto e adicionou a frase: “As mulheres são como a grama, elas precisam ser batidas / cortadas regularmente” à fotografia. Ao ser perguntado pela revista o porque que a imagem não estava sendo retirada do ar, um porta-voz oficial da empresa publicou que a foto não desrespeitava sua Declaração de Direitos e Responsabilidades que guiam os pedidos de censura do site. Após a publicação da história, o site se desculpou e retirou a foto do ar.


Figura 14: A foto adulterada da islandesa Fonte: Reportagem da Revista Wired65 65 Facebook Apologizes for Tolerating Violent Imagery Toward Women. Wired.com. Disponível em: .wired. com/2013/01/facebookviolence-women-2/>. Acesso em: 16 Nov. 2015.

66 Facebook .Disponível em: <https://www. facebook.com/terms. php>. Acesso em: 17/11/2015

Wilheim concluiu que a delineação do que é ou não pornografia fica a cargo do oligopólio da mídia, que não respeita as leis de livre expressão brasileiras ou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. As agressões das redes sociais não partem apenas dos usuários, mas também pelas determinações da empresa sobre o que deve ser banido ou não. Apesar de nos Termos e Condições do Site (FACEBOOK, 2015)66 estar determinado que “Você não irá publicar conteúdo que é de ódio, ameaçadora, ou pornográfico; incite à violência; ou contenha nudez ou violência gráfica ou gratuita.”, essa política de padrão de conduta não é reforçada pela empresa que a determinou. Um exemplo disso é uma página que fazia apologia ao estupro, chamada de “Você sabe que ela está se fazendo de difícil quando você tá perseguindo ela por um beco”. (Tradução livre de: “You know she’s playing hard to get when your chasing her down an alleyway”. Ao ser procurado por jornalistas da BBC sobre o caso, a empresa lançou uma afirmação dizendo que tinha se recusado a retirar a página do ar pois gostaria de manter liberdade de expressão dentro do seu site. “É muito importante ressaltar que o que uma pessoa pode achar ofensiva, outra pode achar engraçado”, dizia a declaração oficial da empresa. Sony, American Express e Blackberry pediram que suas peças publicitárias não fossem veiculadas junto à essa página. O Facebook posiciona algumas páginas como de teor humorístico e por isso não as tira do ar. Dessa maneira, certos grupos podem se apropriar de sistemas simbólicos que se encaixam em valores “humorísticos” para disseminar agressões, ódio, incitar a

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violência e preconceitos negativos. Para Lemos (2006), tais “lógicas da cibercultura dizem respeito a três princípios, o da liberação do pólo emissor, permitindo uma pluralidade de vozes; ao princípio de funcionamento em redes descentralizadas e ao princípio de reconfiguração dos media e da sociedade a partir dos dois anteriores” Por mais que a internet sirva como um pólo de difusão de conhecimento sobre igualdade de gênero, um meio para manifestações contra desigualdades e um espaço para que grupos de militância possam se organizar, ainda assim existem diversas tensões que reprimem o avanço do acesso feminino. E essas tensões decorrem da hegemonia masculina sobre os meios, novamente, não em condições numéricas mas sim ideológicas. E também existe a questão da interface e dos códigos criados para as redes sociais que acabam por interferir em como os usuários se representam, pois dependem da interface para se representarem e desempenharem sua performance de gênero. E se essas interfaces possuem um teor ideológico em sua constituição, que influenciam a forma como os discursos serão apresentados, é necessário uma política de inclusão sobre o conhecimento e o design das interfaces utilizadas por uma parte grande da população. É esperado que não haja restrições na maneira que as pessoas possam se expressar online.

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Figura 15: “Mostre para eles, Ada!” Fonte: Website do Quadrinista Hark! A Vagrant De maneira geral, o virtual não é a antítese do real. As tensões ocorridas dentro do ciberespaço são decorrentes das tecnologias que as “abrigam”, da hegemonia de uma ideologia que tende a excluir as mulheres de processos tecnológicos, e das simbologias relacionadas à tecnologia, que são de caráter predominantemente masculino. Além disso, de maneira empírica, existe uma enorme discrepância no número de mulheres que se engajam no aprendizados dos conhecimentos necessários para o desenvolvimento tecnológico, o que resulta em um número reduzido de presença feminina em carreiras relacionadas as TICs e liderança nas áreas de ciência e tecnologia. Imaginar um futuro mais igualitário, no qual esse tipo de problemática é reduzida, depende da melhoria da desigualdade no presente. Mas “um futuro aberto depende de um novo passado” (HARAWAY, 2013) como explicou Donna Haraway, e olhar como as construções sobre a generização do trabalho foi feita também é importante neste cenário. Por fim, um futuro também depende de visões diferentes sobre ele, além de modificações no presente para garanti-lo. Para que isso ocorra, como explicado por Judy Wajcman, “para expressar isso em jargão de computação, uma política emancipatória da tecnologia exige mais do hardware e software; ele precisa wetware - corpos, fluidos, agência humana”(2001). Diferente das políticas de inclusão que focam exclusivamente no acesso de mulheres, ou apenas se propõem a criticar o passado a partir uma visão feministas não asseguram que o ciberespaço e a tecnologia se tornem menos opressoras e desiguais para as mulheres. Passado, presente e futuro devem ser trabalhados de maneira contígua para que a compressão sobre o assunto seja mais holística e mudanças de paradigmas sejam induzidas.

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Passado A mulher que vivia dentro da caverna cozinhando, enquanto o homem enfrentava os perigos como caçador parece ser a imagem básica que é ensinada nos livros de História sobre o homem pré-histórico. Essa imagem universal é o status quo da Arqueologia, e parece basear o inicio de toda a sociedade humana. Já para pesquisadoras como Donna Haraway, os estudos arqueológicos possuem uma visão muito androcêntrica, e deveriam dialogar mais com os estudos de gênero. Afinal, será que deveriam ser feitas premissas sobre o gênero dos utilizadores das ferramentas, por exemplo, baseados na ideia de que a mulher era passiva em relação a elas? Deve ser assumido que restos humanos históricos carregando espadas e escudos são por padrão masculinos? A crítica de Haraway deixa transparecer que é necessário avaliar toda a construção da arqueologia de um ponto de vista mais cuidadoso em relação ao gênero para que as narrativas antigas sobre mulheres deixem de influenciar novas narrativas. Afinal, “A maneira como as mulheres se percebem e foram percebidos inelutavelmente foi moldada pelas formas em que as imagens de mulheres foram construídas e comunicadas à população em geral” (PILCHER e WHELEHAN, 2004). Assim, ao revisitar as imagens das mulheres que contribuíram para a ciência e a construção das tecnologias digitais, por exemplo, essas novas-velhas narrativas e ícones podem inspirar futuras contribuições femininas para área. É interessante pontuar essas contribuições e sua importância, e também pontuar o porque das contribuições femininas muitas vezes terem sido sistematicamente retiradas ou diminuídas da História.

Figura 15: Introdução de um artigo do jornal The New York Times afirmando que homens inventaram a internet Fonte: Acervo Virtual do Jornal The New York Times

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A repetição, nesses casos, atua como a redução da probabilidade da diferença. Mas as diferenças existem e podem existir, deixando de se tornar “diferenças”. Mulheres em tecnologia podem deixar de se tornar exceção ou casos excepcionais como por muitos anos ocorreu em diversas áreas do conhecimento, como a Medicina. Ao mesmo tempo, não é necessário que mulheres se tornem regra. Mas para que esse tipo de mudança de paradigma ocorra, é necessário mais do que simplesmente a reescrever um passado a partir de um olhar mais crítico, mas também criar políticas e empoderar no presente.

Presente A partir da análise histórica, é possível observar que aquelas áreas do conhecimento e carreiras que as mulheres conseguiram se inserir de maneira significativa e disruptiva, como na política ou no Direito, decorreu também da obtenção do conhecimento acadêmico e técnico necessário para exercer autoridade e prestígio nas áreas. Dessa maneira, torna-se necessário a existência de políticas de inclusão de mulheres no mercado de trabalho das TICs ou políticas de incentivo as áreas de estudo das STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática). Mas ao mesmo tempo, tais políticas devem ser cuidadosas para que “as TIC’s que não reproduza a masculinidade hegemônica excludente“ (JENSEN, 2009) que segrega a questão de gênero a um “problema menor”, um problema de mulheres e a um problema de mercados.” Assim, não é simplesmente a entrada de mulheres no mercado de trabalho ou nos cursos que mudarão um cenário que as oprime e as repulsa. Ao pensar de uma maneira mais holística sobre o assunto, é possível tentar reverter cenários no qual a “Feminização” do trabalho acabou por desvalorizá-lo, como no caso dos datilógrafos citado em um capítulo passado. De maneira geral, existem inúmeras modificações que necessitariam ocorrer na forma estrutural de se criar e fazer o trabalho científico e tecnológico para que fosse mais inclusivo para grupos que foram marginalizados nessa lógica.

“O que não se questiona, com esta forma de ver as coisas, é o próprio funcionamento do sistema tecnológico e científico, da cultura tecnológica das empresas, universidades e instituições sociais, muito resistentes às mulheres. Um efeito muito evidente disso é que o desempenho das mulheres nos âmbitos masculinizados é afetado pelos estereótipos, a perseguição misógena, a resistência masculina à autoridade feminina, a carência de aliados, a sobrecarga de tarefas (pelo cuidado da família), gravidezes, os problemas de saúde específicos, a exclusão das redes masculinas informais, o excesso de exigências e tensão de todos os superiores” (NATANSOHN, 2013). 106


Uma maneira de compreender melhor como as plataformas digitais contribuem para a desigualdade, ou que interfaces possuem barreiras subjetivas e simbólicas que afastam ou suprimem as feminilidades podem ser melhor estudadas através de análises qualitativas e quantitativas. Esse tipo de análise pode vir a melhorar a compreensão sobre as ferramentas digitais de uma maneira mais holística quanto a questão. Como afirmado pela pesquisadora Graciela Natansohn, “Ou seja, desenvolver a imaginação utópica para democratizar o acesso às novas tecnologias, muito além da indagação de mercado que adapta os dispositivos existentes à demanda em potencial” (MAFFIA, 201?). Pensando-se na teoria semiótica de Pierce, imagens denotam de maneira indexical ou icônica por causa da sua similaridade com o objeto de referência, enquanto palavras denotam de maneira simbólica por causa de convenções culturais atreladas a elas. A partir dessa conceituação teórica, uma interface que ofereceria melhores condições para que as pessoas possam se expressar de maneira mais realista, sem a interferência da própria interface necessitaria de condições de customização tanto na sua parte imagética mas também nos seus códigos textuais. E para conseguir “visualizar” os códigos e as técnicas que criam a grande parte das tecnologias digitais, é necessário um conhecimento técnico de programação e design de interface. Por isso, é interessante promover a educação para aqueles grupos que são excluídos de um contexto. Agora, partindo para uma dimensão mais simbólica, a produção de possibilidades para a construção de novas subjetividades e identidades pode decorrer de um maior acesso à informação proporcionada pelas tecnologias da Sociedade de Informação, que permitem que um fluxo enorme de dados e diferentes maneiras de agir sejam compreendidas por pessoas que não teriam acesso geográfico e até cultural a exemplos diferentes. O movimento queer, as pessoas transgênero e suas modificações corporais, o movimento drag queen - muitos dessas novas maneiras de fugir do binarismo feminino/masculino se transformam em produtos culturais que podem ser acessados e consumidos de diferentes partes do mundo, proporcionado pelas mídias conectadas a Internet. Esse tipo de contato pode ser libertador para as pessoas pois mostram diferentes maneiras de construir sua identidade. Assim como jogos como Second Life, que permitem que as indivíduos descorporificados experimentem sexualidades, gêneros, corpos e representações desconectadas daquelas que utilizam na vida offline, que possuem o potencial de possibilitar esse tipo de questionamento nos indivíduos, de forma lúdica. Mas dificilmente essas questões iram se resolver “naturalmente” com a introdução de tecnologias que proporcionem esse questionamento. A sociedade ainda é muito baseada nas relações de gênero, e o sexo ainda é determinante para a formação de identidade de um indivíduo. “O risco é, além da despolitização ingênua, o de instituir outra mitologia, como a de que na cultura digital, as exclusões por causa do gênero podem ser minimizadas per se, ou que as identidades se diluem ou implodem, junto com suas opressões.” (NATANSOHN, 2013) Por mais que essas imersões digitais proporcionem novas maneiras de compreensão do relacionamento das velhas dicotomias entre mente e corpo, homem e máquina, sexualidade e atos sexuais, por exemplo, ainda é necessário a definição de novos conceitos que consigam abarcar essas multiplicidades.

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Além disso, existem os grupos de apoio femininos, que buscam empoderar mulheres nessas áreas do conhecimento criando espaços de compartilhamento e apoio, para que possam desenvolver melhores políticas de incentivo que tangem questões trabalhistas ou promover a liderança. Tais iniciativas são interessantes pois trazem força às discussões sobre a divisão sexual do trabalho, e as diferenças de salário entre homens e mulheres por exemplo. Desse modo, pode-se possivelmente potencializar a mudança sobre questões estruturais que terrorizam as mulheres. Mas ao mesmo tempo deve-se relembrar que a tecnologia é um produto sóciomaterial, ou seja, depende dos processos pelos quais a sociedade é constituída para então se reconstruir mutuamente. A rede inteira de artefatos, cultura, representações, conhecimentos precisa sofrer alterações para que uma relação de poder mude. Uma tecnologia mais universalista e inclusiva depende também daqueles movimentos de empoderamento e questionamento que já ocorrem na sociedade, como as manifestações feministas, o pensamento pós-estruturalista e mesmo a necessidade mercadológica de comercializar seus produtos para o maior número de pessoas possíveis. Já ocorreram exclusões que servem para demonstrar quais são as problemáticas da falta de um pensamento voltado ao feminino no processo de design. Um deles é o total esquecimento das diferenças biológicas entre homens e mulheres, que muitas vezes são desconsiderados. Para tecnologias que tentam se promover como universais, tal falta é grave. Um exemplo bem contemporâneo foi o sistema de reconhecimento de voz em carros. Os engenheiros do sistema de reconhecimento esqueceram de testá-lo com vozes de mulheres, fazendo com que o assistente pessoal tivesse muita dificuldade em reconhecer aquilo que as motoristas estavam dizendo. O sistema da OnStar, por exemplo, foi inicialmente melhorado para vozes masculinas, sendo muito mais preciso para homens. Algumas mulheres tiveram que gritar constantemente com seus carros para que ele pudesse reconhecer o que elas estavam dizendo. A materialidade da tecnologia permite que essas diferenças sejam investigadas de maneira mais pertinente. E se já se sabe que a inovação decorre principalmente da amálgama de pessoas e ideias diferentes, é interessante para tudo e todos, de maneira geral, a acessibilidade dos meios e uma representatividade mais expressiva.

Futuro Se Judy Wajcman olhava com certo pessimismo o fato de “a tecnologia não é uma força independente; a maneira pela qual ela afeta a natureza do trabalho é condicionada pelas relações existentes”, pode-se também olhar com positividade para o fato que as relações existentes são passíveis de transformação e mutação, assim mudando a tecnologia. “O processo de mudança tecnológica como parte integrante da renegociação

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das relações de poder de gênero” (2006). E com a mudanças na tecnologia, também renegociar as opressões e diferenciações que acontecem entre homens e mulheres. E de maneira mútua, é possível olhar para um futuro diferente do atual, com possibilidades para o assunto infinitas. Nos países com os maiores índices de igualde de gênero do mundo, como Islândia e Suécia, mudanças legislativas impulsionam olhares diferentes para o tema. Na Suécia, por exemplo, foi feita a introdução de um novo pronome pessoal, que caracteriza um terceiro gênero neutro para ser usado em situações no qual o gênero da pessoa é irrelevante ou desconhecido.

Figura 16: Capa do livro sueco Kivi & Monsterhund, história que apresenta um personagem de gênero neutro Fonte: Website Olika.Nu Donna Haraway propôs a criação de um indivíduo ciborgue, híbrido de homem e máquina, como nova representação que mudaria as perspectivas gendradas sobre o ser humano. A partir da imagem do ciborgue, velhas dicotomias sucumbiriam: o natural e o artificial seriam mesclados, criando um novo ser constituído de matéria orgânica e inorgânica. O novo ciborgue, diferente das figuras gendradas de Robocop e Rosie, seria um novo mito de cunho político, uma maneira de se pensar ficcionalmente em um futuro deslocado das imposições dualistas seria o primeiro passo para romper com as dicotomias ocidentais. A ficção, neste contexto, funciona como catalisador e também como forma de promover diferentes olhares sobre a relação humana com ciência e tecnologia. Ao criar novos mundos em videogames, na ficção científica, em peças audiovisuais, pode-se imaginar um futuro com esteriótipos e representações mais igualitárias e diferentes dos oprimidos de hoje. Através das tecnologias de modelagem 3D, por exemplo, é possível imaginar mundos completamente distintos da realidade

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atual, facilitando ainda mais a visualização de novas profecias auto-realizáveis naquilo que tange o gênero. Além disso, com a possibilidade dos aparelhos de realidade virtual, é muito mais fácil emergir nesses contextos e sentir empatia pelas representações. E a partir disso, promover possibilidades distintas que transcendem as narrativas atuais que exercem poder tão limitador àquilo que tange as identidades humanas.

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Uma pontada de esperança Em suma, para compreender verdadeiramente a relação entre tecnologia e gênero é necessário uma análise mais holística sobre o assunto, tentando relacionar e compreender os elementos e forças que compõem a rede de significados mais próximas e tangíveis do tema. Acreditar que a tecnologia não se insere dentro de uma rede de significações e possui em si uma relação mutuamente constituinte sobre o ser humano é analisar com leviandade. Também atrapalha muito uma análise simplesmente considerar certas características como “dadas” ou “essênciais”, e não olhar seu entorno, historicidade e significações. O mesmo digo quanto à questão de gênero: antes de acreditar que algo é natural ou simplesmente existe e acontece por decorrência de forças maiores ou determinações biológicas imutáveis, deve-se questionar o porquê que algo parece tão natural. Com este trabalho procurei explicitar da maneira mais ilustrativa possível as questões principais que minam uma participação mais ativa das mulheres em tecnologia, e sua representatividade como mais ativas dentro do ciberespaço. Para tal, é possível observar a publicidade, a História, o design dos produtos e sua utilização, entre outros. Apesar de focar na questão de gênero, acredito que o mesmo exercício crítico pode ser feito às diferenças de sexualidade, raça e classe social. A escolha do foco na relação em gênero foi feita especialmente por ser a característica que mais concerne a minha identidade pessoal, e acreditei portanto que poderia oferecer um olhar mais relacional com o problema. Após perceber que essa problemática é muito mais complexa do que simplesmente uma questão de design de tecnologia ou de inclusão digital, a conclusão final é de que deve-se trabalhar o Passado, o Presente e o Futuro de maneira simbólica, estrutural e cognitiva para que mudanças profundas possam acontecer com a estrutura sexista existente nos tempos atuais. A ficção ensaística é um dos grandes motores catalisadores dessa mudança, e pode guiar as estruturas futuras que serão desenvolvidas. De maneira geral, termino minha monografia com uma visão otimista sobre o tema. A diversidade e capacidade humanas são infinitas, e acredito que serão criadas cada vez mais maneiras da sociedade como um todo participar dos processos que as concernem mais diretamente. Iniciativas e movimentos contemporâneos como o ativismo digital, a cultura do DO IT YOURSELF, a difusão do conhecimento em rede e a conexão mundial trazem possibilidades incríveis e inimagináveis para todas as áreas de produção de conhecimento humano. A integração humano-máquina pode fazer com que a humanidade se torne um ser híbrido, trans-humano, com capacidade orgânica além daquilo que é possível biologicamente. Já tivemos a oportunidade de aumentar a agência sobre a reprodução humana, o que causou uma revolução com as consequências mais adversas e

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empoderadoras do que os criadores do anticoncepcional poderiam ter imaginado. Em um mesmo tom, acredito que a integração humana através das redes digitais vai transformar nossas capacidades e condições atuais de maneiras tão diferentes que nem o mais renomado futurista conseguiria prever. As aspirações mais idealísticas vão encontrar respostas além dessa redoma de vidro que visualizamos daqui de baixo. E aqui, me atrevo a fazer uma aposta: existirá coragem e capacidade para fazê-la deixar de existir.

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ECA - USP 2015


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