a guerra

Page 1

A guerra - minhas hist贸rias / 1




4


A guerra: minhas hist贸rias Adriana de Oliveira Mariano Nat谩lia Rosana Barbosa


Projeto Gráfico e Diagramação: Fábio Megale (fabio@cadernodeideias.com.br) Revisão: Fernanda Fonseca


Sumário

Prefácio : Por tantas facetas da guerra Introdução Depois do baile 18 anos e a mala pronta Lurdinha O 13 que não foi de sorte Prazer em pedaços Refeições exóticas Sedução perigosa 142.286 Horand, o honrado Bem-aventurados Do lado esquerdo do peito de um suicida Lágrimas Vantagens? Pósfácio: A Terceira Guerra

11 21 23 27 33 39 45 51 57 63 69 73 77 83 91 95



Agradecimentos

Aos familiares, amigos e orientadores: sem vocês não seria possível essa realização. Aos pracinhas: profundo agradecimento pelo compartilhamento dessas memórias.



a guerra - minhas hist贸rias / xx



Por tantas facetas da guerra

Um rapaz quer namorar Carminha, mas descobre que precisa embarcar. Outro deseja apenas estudar e ser alguém na vida, mas tem o mesmo destino. Um terceiro é obrigado a trocar os ciúmes da noiva barulhenta pelos acordes ruidosos de uma metralhadora. Alguns tiveram que apontar armas para inocentes. Outros foram feitos prisioneiros. Teve quem se salvou, mas viu a morte de muitos companheiros. Ali, as lágrimas bem podiam ser abundantes, mas também eram escassas. Nem sempre havia espaço para o desabafo. Não é a toa que chocolate e cigarro eram mais que simples prazeres, mas uma forma de lembrá-los que estavam vivos. Do mesmo modo como não importa se a carne era ou não de cavalo, muito mais duro que isso pode ser a tortura de amarrar um lenço no joelho, ser mandado ao campo de Stalag, viver a cada segundo a iminência de nunca voltar ao país, ver a família, os amigos. Em meio a tudo isso, vozes que defendem: “é em nome da pátria”. Outras tantas que proclamam: “a guerra traz benefícios, olhe só para os avanços da ciência e da medicina”. Mas é um pensamento forte, quase ingênuo, que ecoa: “Será que essas descobertas não poderiam ter sido feitas na paz?”. Os homens de fato não são os mesmos depois da guerra. E como poderiam sê-lo diante de todas as experiências por que passaram? A guerra - minhas histórias / 13


Prova disso está nas histórias contadas por quem esteve ali. Mais que soldados, sujeitos anônimos que num passado não muito distante foram colocados diante de situações limite. A morte como pensamento, como fato, como onipresença. A tortura psicológica. As experiências que persistem na memória, que ganham forma de relato. As crônicas de “A Guerra: Minhas Histórias” exploram esse cenário. Não se trata aqui de excursionar pelo passado com descaso pelo sofrimento ou pelos pormenores aparentemente insignificantes. Ao contrário, são as particularidades contadas por esses sujeitos que interessam. A História é retirada de seus lugares estritamente institucionais. Não se trata aqui simplesmente da história política e social vista nos livros didáticos das escolas de ensino básico. Nem tampouco de justificar a guerra, os interesses por trás de um ou de outro lado. A finalidade é outra. Por isso, o trabalho dos autores de sentar-se ao pé dos entrevistados e ouvi-los, aprender com eles, reconhecer como é rica a expressão de sujeitos que contam sua própria história. Daí a escolha da abordagem oral: “Ela trata de vidas individuais - e todas as vidas são interessantes. E baseia-se na fala e não na habilidade da escrita, muito mais exigente e restritiva” (Paul Thompson). É a experiência de vida de pessoas comuns em meio ao sofrimento da guerra que ganha projeção. E sabemos que esses homens também falam a partir de lugares, de contextos específicos. O testemunho por mais verdadeiro que seja também é um jogo de lembranças e esquecimentos. Tanto mais quando se fala da guerra, de fatos que são difíceis de se lembrar. Ademais, não podemos nos esquecer que são humanos, sentem ciúmes, desejos, medos que nem sempre querem revelar. Acolhem, mas também desconfiam daquele que se senta ao seu lado e lhes pede que narrem suas histórias. O que dizer então daquele que transforma o relato em história? Guiados pelos sentimentos de descoberta proporcionados pela entrevista, pela dimensão viva que o passado adquire por meio da memória dos entrevistados e, mais que isso, pela empatia que muitas vezes os personagens inspiram, são também sujeitos. Ao escrever, mesclam apuração jornalística e procedimentos de representações literárias. Trazem consigo suas subjetividades, suas projeções. “Ninguém é o mesmo depois da guerra” E quem será o mesmo depois de ouvir as suas histórias? Afinal, a realidade é inseparável da percepção que dela temos. 14


A subjetividade passa então a poder ser vista não como limitação, mas como potência. Trata-se de um artifício, um modo de trazer a riqueza, a espontaneidade dos relatos orais para a formalidade do texto escrito. Por isso, a forma escolhida foi a crônica, os pequenos acontecimentos do dia a dia no campo de guerra. Por trás de cada escrito, um trabalho de apuração que se referencia no real. Embora anônimas, as fontes estão lá, os fatos que elas narram dão suporte para a narrativa. Mas a riqueza dessa expressão não pode ser captada senão pelos jogos verbais, pelos coloridos da linguagem. A temática da guerra pede sensibilidade no contato com a realidade. E o leitor é chamado a acompanhar o acontecimento guiado pelo olhar do cronista. “Ninguém é o mesmo depois da guerra.” E depois de ler e conhecer mais sobre suas histórias, quem seremos? Paula Alkmim Figueredo Mendonça

A guerra - minhas histórias / 15



A guerra - minhas hist贸rias / 17


18


“A maioria dos seres humanos atua como historiadores: só em retrospecto reconhece a natureza de sua experiência”. Eric Hobsbawn, Era dos Extremos: o Breve Século XX: 1914 - 1991

A guerra - minhas histórias / 19



“Não precisa! Os meus meninos tomam aquela merda no grito!” (General Zenóbio da Costa, um dos comandantes da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra, referindo-se a não necessidade de treinamentos da tropa de brasileiros)

Todo mundo já ouviu e aprendeu na escola sobre a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Mas, geralmente só nos atemos aos relatos oficiais e ao fato de que a guerra aconteceu no Velho Continente. Aprendemos que a Segunda Guerra Mundial foi a maior catástrofe provocada pelo homem em toda a sua longa história e que envolveu cerca de setenta nações em todos os continentes (direta ou indiretamente), provocando um número inexato de mortes que supera a casa de cinquenta milhões de mortos e uns vinte e oito milhões de mutilados. Sabemos também dos avanços científicos trazidos pelo conflito, como o uso da penicilina e o poder de destruição em massa da bomba atômica. Conhecemos por fim, muitas coisas desse episódio da humanidade, e por muitas vezes, somos ignorantes sobre a atuação do Brasil na Grande Guerra. E, é fato que até 1942 os brasileiros sequer tomavam conhecimento do que era guerra. O Brasil mantinha-se neutro e chegava a demonstrar simpatia pelos regimes fascista e nazista, pois era governado de maneira ditatorial por Getúlio Vargas, no chamado Estado Novo A guerra - minhas histórias / 21


(1937-1945). Contudo, o nosso Brasil estava economicamente atrelado aos países Aliados e somente se sentiria impelido a posicionar-se diante do conflito após a pressão popular, decorrente do abatimento de cinco navios brasileiros pela Marinha alemã. O Brasil declarava guerra aos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e organizava, naquele ano de 1944, a Força Expedicionária Brasileira (FEB), que, sob o comando do general Mascarenhas de Morais, partiu para a guerra no norte da Itália com 25.334 homens e 67 enfermeiras. Nos campos italianos morreram 465 soldados brasileiros e cerca de 3000 ficaram feridos. A FEB capturou mais de 20 mil prisioneiros em oito batalhas vitoriosas, que trouxeram, paradoxalmente, alegria e dor. Além desses sentimentos, o fim da guerra e a volta dos combatentes também rechearam a nossa História de histórias de vida daqueles que resistiram bravamente diante de todos os tipos de adversidades. De maneira quase lúdica, mas com traços dos métodos jornalísticos, são retratados aqui momentos, da convocação até a vida durante e pósguerra, dos pracinhas nascidos nas Minas Gerais, a terra das montanhas alterosas. As histórias aqui descritas são uma humilde homenagem aos meninos heróis que ganharam a guerra no grito, e que hoje, senhores com idade média de 90 anos, emocionam-se ao relembrar momentos tão difíceis, e gritam novamente pelo reconhecimento de sua importância histórica para a conquista do valor da democracia, pela qual pudemos aprender a lutar em nosso país desde o governo Vargas.

22




“Dei cinco filhos para Deus, nada mais justo que dar um para a Pátria”.

Passava das nove horas da noite. O baile de formatura colegial da Carminha estendia-se ao som dos boleros de Anysio Silva. O salão estava esplêndido, cheio de mocinhas bonitas, cheirosas e maquiadas. Os sorrisos envergonhados eram próprios delas, que aguardavam serem retiradas para dançar com algum rapaz. Carminha trocava olhares apaixonados com o jovem Geraldo. Naquela noite dançariam a primeira valsa juntos. O rapaz nem podia acreditar que aquela noite era tão especial. O tempo paralisava na mente dos dois, só existiria um para o outro entre os desalinhados passos de dança. Abraços tímidos e leves furtos de perfume no cangote eram o máximo que era publicamente aceito. A valsa acabara e a febre juvenil também. O baile terminava. Uma chuva de prata caíra sobre todos, abençoando os amores ali vividos. A alegria de Geraldo não cabia mais em seu peito. Queria encontrar Carminha no dia seguinte mesmo e pedir sua mão em namoro. Assim, feliz e um pouco alto por tomar algumas biritas, Geraldo chegava em casa tropeçando nas coisas. Seu olhar de felicidade contrastava com os rostos fúnebres de seu pai, mãe, irmãos e tias. Estavam todos ali, esperando-o chegar, como se fosse para lhe aplicar uma bronca pelas bebidas alcoólicas que havia ingerido. A guerra - minhas histórias / 25


A matriarca levantou-se e olhou profundamente nos olhos puros e pulsantes de alegria de Geraldo. Com a voz falha, ela fez um pronunciamento inesperado: “Deu na Rádio Inconfidência, agora à noite, que o Brasil acaba de entrar em guerra contra a Alemanha”. “Sério, mãe?” “ Sim”. “A lista de convocados pela Pátria também saiu e seu nome foi pronunciado”. A última folhinha da chuva de prata despregava-se da sua camisa e caía lentamente no chão. Todo o brilho daquela noite estava ofuscado. Getúlio Vargas entrava em guerra, após abatimentos de navios civis na costa do país. Naquele momento não seria mais fácil a cobra fumar do que o Brasil entrar na Guerra. A esperança estaria em olhar para o lado e avistar os seus irmãos de carreira religiosa. Infantilmente, Geraldo indagou sua mãe, dizendolhe para conversar com o Monsenhor e pedir a sua dispensa do serviço militar. Friamente, Dona Agnes largava o seu sentimento de mãe e respondia: “Dei cinco de meus filhos para Deus. São padres e irmãs de caridade. Acho mais do que justo agora eu dar um filho para a Pátria. Você embarcará, Geraldo, e servirá com honra este país”. A juventude acabara ali. Não ouviria mais valsas, apenas bombas. Não veria mais a sua moça pura e linda, apenas gente morta caindo ao chão.

26


A guerra - minhas hist贸rias / 27


28


“Involuntariamente me voluntariei para pegar um uma arma”.

Ele sonhava com um futuro melhor, e foi parar em meio ao fogo cruzado dos solos europeus. Aos 16 anos, ele deixou a pequena cidade de Várzea da Palma, no norte de Minas Gerais, para tentar a sorte na capital. Queria estudar e ser alguém na vida. Naquela época, início dos anos 1940, a vida era difícil, e em especial no interior. A educação nessas áreas resumia-se a aprender a ler, escrever e fazer as contas básicas. Sabendo-se assinar o nome e somar o pouco dinheiro que circulava pelo vilarejo, dava-se fim à fase escolar. Aqueles que desejavam estudar mais tinham que sair da cidade. E foi isso o que ele fez. Com a morte do pai, não viu mais motivos para permanecer em Várzea da Palma. Sua mãe tinha outros filhos para ampará-la. Juntou as poucas coisas que tinha em uma mala surrada e partiu rumo às montanhas belo-horizontinas. Quase sem lenço e nem documento, carregando o pouco que tinha e tendo como documento a certidão de nascimento, buscou abrigo provisoriamente na casa de conhecidos que haviam se mudado para a capital. Precisava de emprego. Era menor de idade, mas naquela época não era necessário ter 18 anos para trabalhar. Sempre foi esperto, aprendia com facilidade, e sua habilidade com números rendeu-lhe uma vaga em um banco. Mas não podia assumir tendo apenas a certidão, A guerra - minhas histórias / 29


tinha que ter carteiras de identidade e de trabalho, além da dispensa do serviço militar. A fim de providenciar tudo com a maior agilidade possível, foi ao Exército pedir dispensa do serviço militar obrigatório. Ao chegar, foi encaminhado aos exames médicos. Acreditava que era um procedimento padrão, e realmente era. Todo jovem tinha que se alistar no Exército ao completar 18 anos. A avaliação médica determinava quais estavam ou não aptos a ingressar na organização. Contudo, procurar o 10° Regimento naquela ocasião foi um passo que mudou para sempre o destino daquele jovem. Exames feitos, apresentou-se ao capitão para pegar sua carta de dispensa e ocupar seu cargo no banco. Assustou-se quando foi encaminhado ao quartel onde deveria prestar serviço por dois anos. Era março de 1943, e apenas em maio completaria 17. Não compreendia a situação, era menor de idade, não precisava servir o Exército, mas devido à guerra que acontecia do outro lado do Atlântico, regras haviam sido modificadas. O Exército brasileiro estava aceitando voluntários, e, involuntariamente, o jovem se alistou. Confusão já feita, restava a resignação e rezar para que os dois anos que viriam fossem calmos. Doce ilusão. O ano de 43 passou tranquilo, mas em 44 a coisa mudou. Um dia, o comandante convocou todos os soldados do quartel e comunicou que o Brasil iria à Guerra. Àquela altura todos sabiam do conflito na Europa, mas nunca imaginaram que ele afetaria suas vidas. Todos em posição, o comandante perguntou quem gostaria de integrar as Forças Expedicionárias Brasileiras. Apenas dois soldados deram o passo à frente. Mas, como no Exército a opinião pessoal não é levada em conta, todos tiveram que ir. O destino gosta mesmo de pregar peças. Nos exames médicos que determinariam quem estava apto ao combate, apenas dois soldados do 10º Regimento foram considerados incapazes: os dois que deram um passo adiante na conversa com o comandante. No Brasil o treinamento era leve, quase de rotina. Exercícios físicos e treinamento com as armas que tinham. O quartel não possuía armamento pesado, afinal, não havia necessidade disso. Aprenderam a manuseá-las já em solo italiano. 30


Esperavam pelo dia em que entrariam no navio rumo ao alémmar. Enquanto aguardavam, fizeram treinamentos de embarque. Foram três até o verdadeiro. Saíam da Vila Militar, marchavam até o navio, embarcavam e, após algum tempo, faziam o caminho de volta. Diziam aos soldados que a prática era para despistar o inimigo. Algumas semanas depois foram chamados a arrumar suas malas e marchar rumo ao porto. Acreditaram que logo estariam de volta, sãos e salvos em seus alojamentos. Ao chegarem ao porto, deparam-se com a multidão que sempre estava ali. Mas desta vez uma presença fez os saldados terem a certeza de que aquele era o embarque verdadeiro: o senhor presidente da República Federativa do Brasil. Sob aplausos e com a despedida do então presidente Getúlio Vargas, que garantia que suas famílias estariam amparadas, foram rumo ao destino incerto, cheios de dúvidas se um dia voltariam a ver aquele mar. Aquele 2 de julho de 1944 era o primeiro dia de uma nova vida, que para alguns significava um caminho sem volta, e para outros um caminho rumo à glória. Com 18 anos recém-completados, o jovem agora tinha sua juventude interrompida. Não era mais o menino de 16 anos que saiu do interior de Minas Gerais carregando uma mala velha e sonhando com um futuro melhor. Era um menino-homem de 18 anos, que com as malas prontas, caminhava para um destino incerto.

A guerra - minhas histórias / 31



A guerra - minhas hist贸rias / 33


34


“Sua voz era mais temida do que qualquer outro som”.

Era uma moça delicada. Quem olhasse aquele um metro e cinquenta e três centímetros não imaginava como podia ser brava. Seus olhos eram de um castanho-dourado, que enfeitavam um rosto de pele morena, emoldurados por cachos bem feitos, passavam a impressão de uma delicadeza infinita. Não que ela não fosse meiga, tinha a doçura inerente a toda moça apaixonada, mas, sua paixão era tão forte que beirava à insanidade. Via mulheres insinuando-se para seu noivo onde quer que estivessem. No baile, na praça, na igreja, em todos os lugares havia sempre alguma sirigaita com intenção de roubar seu amor. Ele a amava. Não tinha intenção de traí-la. O casamento seria dali a quatro meses. Aumentava o ritmo dos preparativos, e também as crises de ciúmes da moça. Estava tudo indo como planejado, até que uma fatídica carta mudou o rumo de suas vidas. Numa tarde de terça-feira, chegando em casa, deparou-se com seu noivo. O que ele fazia ali? Não era dia de namorar. Seus pais estavam com olhar estranho. Um clima ruim pairava no ar. O que estava acontecendo afinal? Seu pai começou o discurso: “Minha filha. Precisamos conversar, mas você precisa ficar calma.” Aquelas palavras só serviram para deixá-la mais nervosa ainda. A guerra - minhas histórias / 35


Detestava quando pediam a ela para ter calma, ainda mais quando não sabia do assunto. “Calma, mas por que papai? Que surpresa boa meu amor. Veio me visitar. Precisava mesmo conversar com você. Tenho umas questões para olhar sobre nosso casamento, afinal, já está quase aí.” Foi logo se apressando em dizer. “Filha”, começou o pai, “sobre o casamento... não vai mais ter.” Seu mundo caiu. Não acreditava no que estava ouvindo. Como não haveria casamento? Já estava tudo pronto. A data, a igreja, as daminhas. Dona Zélia estava fazendo o vestido, o mais lindo que Belo Horizonte já vira até então. Suas mãos começaram a suar frio, e ela soltou uma risada. “Como assim? Você está rindo, minha filha?” “Claro mamãe. Isso só pode ser uma piada. De muito mau gosto, mas é uma piada, não é?” Perguntou com um fio de esperança. Diante do olhar angustiado de seus pais, ela se voltou para o noivo. “Amor. Que brincadeira é essa? Fala pra mim que isso é uma brincadeira. Já sei, hoje é primeiro de abril, não é isso?” “Não, minha filha. Já estamos em maio.” Disse a mãe. “Se não é primeiro de abril, por que essa brincadeira? Por que não vai mais haver casamento?” “Lurdes, eu não estarei mais aqui.” Falou o jovem pela primeira vez desde o início daquele trágico diálogo. “Como assim? Você vai me abandonar? Me deixar sozinha? Você não me ama mais? É isso, não é? Você arrumou outra! Me fala quem é a sirigaita!” “Não tem sirigaita nenhuma, meu amor. Eu te amo! Você é a única mulher que existe para mim.” “Então por que não vamos mais casar?” “Eu vou para a Guerra.” Aquelas quatro palavras desnortearam-na. Seu amor numa guerra. Tiros para todos os lados. Doenças, frio, fome, e o pior, mulheres oferecendo-se para os soldados! “Você não vai.” Disse com uma firmeza descomunal. “Querida, não tenho escolha. Se eu não for, serei preso.” “Não me interessa, mas fora do país, longe de mim, e num lugar 36


cheio de mulher, você não fica.” Não teve escolha. Ele foi. Ela tentou de tudo, inclusive ir com ele, mas não aceitavam mulheres. Assistiu aos prantos seu amor partir rumo às europeias. Quando embarcou, ele prometeu escrever todos os dias. Ela acreditou. Lurdes mal acordava e corria para caixa de correio, ainda de camisola. Revirava todos os envelopes, mas não havia nenhum assinado pelo seu amado. Esse ritual permaneceu por meses. Ela escrevia freneticamente para ele. No início eram três, quatro, até cinco cartas por dia. As primeiras diziam da paixão. As que se seguiram falavam da saudade, e as últimas expressavam a ira que sentia por ele não responder. “Será que ele deixou de me amar?” Chorava ela no colo da mãe. Falava tão rápido que mal se conseguiam entender as palavras que saíam de sua boca. Do outro lado do mundo, seu noivo sofria com a falta de notícias. Por que a bela Lurdes não respondia suas cartas? Será que ela havia se casado com outro homem? Será que ela não o amava mais? Por que não recebiam notícias um do outro? O que havia no meio do caminho? O Exército censurava o que os praças recebiam do Brasil. Muitos presentes, alimentos e, principalmente, cartas, nunca foram entregues. Segundo os oficiais, os agrados provocavam distrações nos soldados. As cartas de Lurdes nunca foram entregues ao noivo, e as do noivo nunca foram enviadas ao Brasil. Ele sonhava com a noiva a ponto de ouvir, no barulho feito pela Maschinengewehr42, a voz de sua Lurdinha. E não é que era realmente parecido? Com apenas um metro e vinte e dois centímetros, onze quilos e cinquenta e sete gramas, calibre 7.92 x 57 mm, 1.200 tiros por rajada, a arma fazia um barulho inconfundível quando em trabalho. Exatamente como Lurdes, a MG42 não dava tempo para ninguém falar, ela calava a boca de todos. Não teve jeito. Do alemão para o português, a Maschinengewehr42 passou a ser chamada de Lurdinha. Era temida por todos, mas, para aquele soldado, ouvir o som dos tiros, desde que distante, era uma maneira de sentir seu amor mais próximo. Amor para os braços do qual voltaria, se Deus permitisse, em pouco tempo, para unir-se para sempre à mais destrutiva e ao mesmo tempo mais adorável das armas: uma mulher ciumenta. A guerra - minhas histórias / 37



A guerra - minhas hist贸rias / 39


40


“Fui bobo, de coração mole ao ter dó daquele homem”.

Faz muito frio. O terreno parece vazio, as casas foram abandonadas. Mas, mesmo assim preciso conferir se todas as residências estão mesmo vazias, para evitar a morte de civis. Daqui 50 minutos, começará um bombardeio para extirpar os inimigos da área. As regiões vizinhas já são bombardeadas por aviões da força americana. Ando mais alguns metros na neve meio suja, em meio a galhos e pedras. O tempo está ruim e a visibilidade reduzida. Faltam mais duas casas para serem revistadas. Após passar por um salgueiro, entro numa casa onde se pode ouvir uma criança chorar. Tem gente aqui. O som vem do andar de cima. Subo as escadas com cautela para não ser descoberto. Encontro uma família italiana acuada contra a parede, posso sentir o medo naqueles seis pares de olhos. Tento me identificar, arranhando o italiano: “Fuori di qui. Bombardamenti nella regione1”. Sinalizo que precisam sair do local. Eles resistem, expressando imensa dor e também apego àquela terra e objetos. O homem provedor da família fala pausadamente para que eu possa entender. “Non lasciare la mia casa prendere mia moglie ei miei figli, preferisco morire in questa terra poco hanno combattuto per avere sia2”. 1 Saíam daqui. A área será bombardeada. 2 Não deixarei minha casa. Leve minha mulher e filhos, prefiro morrer nessa terrinha que tanto lutei para ter.

A guerra - minhas histórias / 41


Já nervoso com a situação, exponho e lhe aponto uma arma na cabeça, dizendo que se ele não sair dali eu terei que matá-lo, pois minha missão é retirar os civis de toda a área que será bombardeada. Não posso perder tempo. Peço para a mulher e as crianças saírem correndo. O homem parece decido a morrer. Minha mente já pensa em como executar aquele homem. Terei que matar um civil inocente. Não tenho alternativa, cumpro ordens expressas pelo meu regimento militar. Somente um brasileiro como eu para pensar em ética numa hora dessas. Dez minutos de espera. E agora? Ordeno que ele se vire de costas para mim. Preparo minha arma. O tiro será na cabeça. Não sei se sou eu ou ele quem treme mais. Estou diante de um pai inocente que se recusa a sair dessa humilde casa que virará pó. Peço a Deus que um dia me perdoe, mas são necessidades da guerra. Conto mentalmente até três para encostar o dedo no gatilho e, num ato milagroso, esse homem abaixa e se vira de novo para mim, ajoelhando-se e dizendo que vai embora. É para mim uma rendição da alma esse momento. Seria uma vida a mais que eu poderia poupar nesses trágicos dias de batalha. Melhor eu não pensar e engolir qualquer sentimento que ainda me resta. O tempo é muito curto e falta ainda uma casa para averiguar. O som dos bombardeios ficam cada vez mais fortes. Posso morrer se não conseguir fazer a minha missão em tempo hábil. A outra casa está há poucos metros dessa última, para minha sorte. Mas, por azar, na última casa também encontro um homem bem agasalhado sentado na varanda, fumando. Seu semblante mantém-se calmo, mesmo ao me ver. Mais uma vez sinalizo que é preciso sair dali. E já mostro que estou armado. Não posso ter mais paciência. Contudo, a pressa quase não me deixa desconfiar que aquele homem usa botinas reforçadas e de um brilho negro intenso. Não tenho tempo para questionar, mas se trata de um soldado, provavelmente italiano também. Peço para ele seguir e já vou apressando-me também em retirada. Ele gesticula, mostrando-me que vai pegar sua mochila. Dou-lhe um sinal de concórdia e peço agilidade, acenando-lhe com a mão. Olho no meu relógio de pulso: restam 36 minutos para o início do ataque em Abateia. Procuro me apressar mais. Salvarei minha vida. Não preciso ficar ensinando lições e sinalizando a necessidade de sobrevivência àquele 42


soldado. Se ele quiser, que saia - ou não. O outro era um civil e por isso perdi tempo para conscientizá-lo, mas esse sabe as regras militares. Começo a andar em retirada e escuto passos atrás de mim. Depois disso, só sentiria muita dor. O soldado, aparentemente um italiano, era na verdade um calculista soldado alemão, que me examinou com cuidado e frieza antes de ser covarde de atirar-me pelas costas, sem nenhum dó, vários tiros da metralhadora Maschinengewehr 42, pelo que pude perceber ao esquivar-me naquela fração de segundos. Caio na neve. Ainda sinto que estou em condições de me levantar e revidar aquele maldito. Meu sangue, que enrubesce a neve, exala vingança. O covardão esconde-se de volta na casa ao escutar o barulho de um jipe se aproximando. São soldados brasileiros que passam em recolhida de algum civil retardatário no caminho. Sabendo disso, reanimo minhas forças para levantar e chegar próximo à estrada por onde o jipe passará. Um tiro de raspão atingiu o meu pescoço e pinga muito sangue. Provavelmente precisarei baixar no hospital, mas não antes de me vingar daquele filho da puta! Faço sinal para os meus companheiros que passam ali e ordeno que mirem o morteiro logo na janela quebrada daquela casa. Meu pedido é acatado com precisão. Uma pequena explosão se faz ali dentro. E, imbuído ainda pelo ódio e pela dor que começava a sentir nas costas, vou e me arrasto contra a vontade dos meus companheiros até aquela casa semidestruída. Quero me certificar da morte daquele nazista miserável que abusou da minha confiança e ingenuidade. Chego até o local, com a roupa ensanguentada e sensação de dormência pelo corpo. Estou mesmo fudido e verei qual foi o fim daquele desgraçado. Tenho satisfação ao ver pedaços daquele corpo maldito espalhados pela casa. Procuro pela cabeça, pelo simples prazer de olhar pela última vez a cara do inimigo que se mostrou incompetente ao ponto de não saber atirar direito e liquidar a minha vida. Acho a cabeça estraçalhada e piso em cima com orgulho. Uma sensação prazerosa toma conta de mim. E penso que se eu morrer, morrerei honrado agora. Volto para a porta da casa, minha tropa já está à minha espera. Nesse momento, amoleço e caio novamente. Precisaria de ajuda para chegar até o jipe e ser encaminhado para o hospital. A essa hora, já ouço A guerra - minhas histórias / 43


de maneira difusa os comentários dos meus companheiros: “precisamos atingir o ponto cotado, 789 metros em 10 minutos, e o Sargento deve ser encaminhado à enfermaria o quanto antes, ele levou 13 tiros da MG42, a Lurdinha, que atira tão freneticamente quanto o jeito de falar da noiva ciumenta do cabo Duarte. Os soldados desmancham-se em risos após o comentário sobre a Lurdinha”. Ao escutar aquilo tudo, penso mais uma vez no meu momento derradeiro: vou morrer, por culpa das minhas manias de contrariar as regras, eu poderia executar duas vidas num mesmo final de tarde! Sobreviver a 13 tiros à queima-roupa seria um novo milagre a acontecer naquele dia. E em meio a minha semiconsciência, comecei a ouvir bombardeios. Se sobrevivesse, nunca mais voltaria àquele lugar, porque nada mais ali em Abateia existiria.

44


A guerra - minhas hist贸rias / 45


46


“Eram pequenas alegrias empacotadas”.

Nem mesmo na guerra as pessoas deixam de buscar seu prazer. Não estamos falando de sexo, mas de outros prazeres que o ser humano pode sentir. O ser humano tem cinco sentidos: audição, visão, tato, olfato e paladar. E, cada qual pode oferecer prazeres incríveis. Naquela situação, o que mais se ouvia eram estrondos de tiros que cruzavam os céus. A visão era povoada por destroços e ruínas do que um dia deviam ter sido lindas construções. O cheiro que predominava era o do sangue e as mãos tocavam apenas o frio metal das armas. O paladar tinha que ser adaptado ao que se tinha para comer, sem muitas opções. Pois, numa guerra nem sempre comida é comida. Todos os soldados recebiam o que chamavam de ração, um kit que continha um pouco de tudo: comidas enlatadas, produtos para uma higiene precária, curativos. O nome era usado para passar a ideia de que tudo é algo racionalizado, contado, escasso. Essa escassez incluía um pouco de tudo, inclusive chocolates e cigarros. Em busca desses nacos da iguaria de cacau, muitos soldados brasileiros faziam contatos e até amizade com civis italianos, soldados americanos e colegas de outros batalhões de infantaria. Lucky Strike, Camel e Chesterfield. Não interessava a marca, a sensação da fumaça entrando nos pulmões era inexplicável. Para quem fumava, os cigarros eram mercadoria valiosíssima, assim como os chocolates para os jovens praças. A guerra - minhas histórias / 47


Durante décadas, o ato de fumar foi visto como uma prova de masculinidade e rebeldia, mas para aqueles jovens, alguns recém-chegados aos 18 anos, a valentia não precisava ser provada através do tabaco. O próprio estar em uma guerra já era prova mais do que suficiente. O chocolate era mais precioso para eles. Remetia à adolescência roubada pelos fuzis. Sua juventude roubada por generais que nunca haviam visto. Seus olhos claros pareciam conservar um quê de ingenuidade. Nos ouvidos, no lugar do samba faceiro do Grupo do Luar, o estrondo dos morteiros. Os campos de várzea dos jogos de futebol com os amigos transformaram-se em trincheiras cobertas de sangue de desconhecidos companheiros. Não gostava de cigarros. Não suportava aquela fumaça entrando em seu pulmão, sufocando-o. Preferia chocolates. Estes o remetiam à sua casa, ao carinho e aos paparicos de sua mãe. Ali não havia nada disso, e o prazer que o chocolate lhe trazia fazia-o retomar esses pedacinhos de alegria que não sabia se um dia teria novamente. Colocar o doce na boca funcionava como um bálsamo para alma e coração. Na sua ração vinham poucas barrinhas. Míseros gramas de felicidade que valiam ouro. Precisava de mais, era quase que um vício. As caixas de cigarro não lhe valiam de nada, mas para outros eram preciosas. Cigarros e chocolates eram vícios. Cada qual com seus benefícios e malefícios, cada qual com sua cota de prazer. O escambo, como nos tempos mercantilistas, era a maneira mais fácil de conseguir essas preciosidades. Quem fumava trocava favores e chocolates pelos maços dos companheiros. Jovens pegavam todos os maços de cigarro que tinham e procuravam entre os companheiros aqueles que gostariam de trocá-los por chocolates. Aventuravam-se por vários pelotões. Aprendiam outras línguas nessa procura. Iam às enfermarias atrás dos doces. No auge do desespero, no campo de batalha, chegavam a vasculhar os kits de ração dos mortos. A batalha durava o dia todo. Vários companheiros caíram, assim como muitos inimigos. Nas trincheiras estavam os corpos, e nos acampamentos próximos, alimentos e vestimentas. Tendo a certeza de que estavam em segurança, iam aos acampamentos para ver se encontravam 48


alguma coisa que lhes fosse útil. Enquanto a ordem era buscar armamento e informações, alguns procuravam chocolates e cigarros. Quem os encontrava escondia nos bolsos, no capacete ou onde mais pudesse. Eram preciosidades que não poderiam ser divididas. Sempre que encontrava um pouco de chocolate, colocava-os no fundo do saco A, como era chamada a mochila de sobrevivência que cada soldado deveria carregar consigo aonde fosse. Pegava os cigarros também, já que lhe eram úteis no escambo. E assim levavam os dias. Guardavam aqueles pedacinhos de prazer como seu maior tesouro e, à noite, quando a escuridão parecia que não ia mais ter fim, encontravam nessas preciosidades um pouco de conforto.

A guerra - minhas histórias / 49



A guerra - minhas hist贸rias / 51


52


“O principal ensinamento da guerra é a adaptação que tem um ciclo que parece ser sem fim”.

“Não sabia que brasileiro comia carne de cavalo?” Assustou-se a jovem de olhos verdes diante daquele comentário bizarro feito à mesa. “Carne de cavalo, quem come isso?”, pensou consigo. Estavam em guerra, comiam o que lhes fornecia o exército norteamericano. A dieta era diferente sim, não incluía o tradicional feijão com arroz, e, quando havia algum desses, o gosto era completamente diferente daquele que estava acostumada a comer em terras tupiniquins. O feijão era branco, enlatado e adocicado. “Onde já se viu – pensava – feijão doce?” Sentia falta do tempero brasileiro. Da pimenta, do arroz com feijão nosso de cada dia. Vinha em sua mente a lembrança da boa feijoada de sua mãe. Dos quitutes que sua avó preparava quando era criança, em Minas Gerais. Nunca pensou que sentiria saudades de uma simples broa de fubá. O gosto daquelas delícias que antes não passavam de coisas corriqueiras estava em sua boca a cada alimento estranho que comia. A comida americana não era ruim. Ao fim da guerra não pôde dizer que sentiu fome, ao contrário. Enquanto os soldados voltaram para casa magros, ela retornou ao Brasil dez quilos mais gorda. Os americanos comiam bem. Até mesmo em meio a uma guerra não abriam mão de uma mesa farta. Ela não sabia exatamente o que A guerra - minhas histórias / 53


comia, mas tinha consciência de que lá fora muitos passavam fome e muitas moças trocavam seus corpos por pratos de comida. Por vezes, os próprios maridos e pais ofereciam-nas para conseguir pão. Um dos principais ensinamentos da Guerra é a adaptação. Não há tempo para frescuras, receios ou nojo, a sobrevivência é o principal motivador. Aprende-se de tudo, inclusive a comer carne seja lá do que fosse. “Como assim, carne de cavalo?” Perguntou a moça espantada. “Isso que você tem em seu prato, e todas as carnes que você consumiu até agora, são de cavalo”. Disse o jovem médico, com os olhos brilhantes pela doce tortura que provocava na enfermeira. “Você está brincando? Isso é carne de cavalo?” Perguntou, com um fio de esperança de tudo não passar de chacota de americanos com a cara de inocentes brasileiras. “Claro que não. Veja aqui.” Disse, entregando-lhe uma revista. Folheando aquelas páginas um tanto quanto receosa, a jovem via, com um misto de horror e incredulidade, a notícia que mostrava cavalos sendo abatidos para que a carne fosse enviada aos soldados na Itália. “Então isso aqui”, disse mostrando um pedaço de bife espetado no garfo, “é carne de cavalo”. “Sim. Há meses você come carne de cavalo. Pensei que soubesse”. Disse cinicamente o americano. “Pois... até que não é tão ruim”. Afirmou a moça colocando o pedaço na boca. Naquele momento, todos os americanos que se divertiam com a situação ficaram espantados. Então aquela moça delicada, de olhos verdes penetrantes, não sentia nojo e nem fazia cara feia para comida? Pensava, enquanto mastigava, no porquê de nunca ter sentido alguma diferença entre aquela carne e as que estava acostumada a comer no Brasil. Agora que sabia a proveniência da carne, podia reparar como aquele bife era sempre seco, até mesmo quando vinha ensopado. E era mais claro, meio esbranquiçado, não podia dizer com o que se assemelhava. Mas de todo, não era ruim. A partir daquele momento começou a prestar atenção no que comia. Será que o frango era mesmo frango? Comia-se frango apenas uma vez por semana. Todos esperavam 54


ansiosos pela ave assada. Era uma verdadeira festa quando o avião chegava com o carregamento. Nesses dias, a impressão era de que o jantar demorava a chegar, o dia passava mais lentamente, as pessoas esperando por sua metade. Cada um tinha direito a meio frango. Sempre havia se perguntado onde conseguiam tantas aves pequenas, e agora a dúvida era outra: eram realmente frangos? Vendo com os olhos de quem tinha consciência de que experimentara carne de cavalo, acreditava agora que se tratavam de pombos, afinal, diziam que havia muitos nos Estados Unidos.

A guerra - minhas histórias / 55



A guerra - minhas hist贸rias / 57


58


“Seus olhos podiam ferir mais do que qualquer arma”.

A noite estava tenebrosa, como todas naquele país. Há anos, nem mesmo a luz da lua cheia que brilhava no céu italiano era capaz de iluminar os corações. A Guerra não permitia que nada fosse visto em sua beleza integral. Muita coisa já havia se perdido entre tiros e bombardeios. Mais do que monumentos e construções simples, a esperança perdeu-se nos rostos daquele povo. Não havia mais nobres, ricos, pobres, religiosos ou mendigos, eram todos um bando de maltrapilhos que vagavam pelas ruas, refugiavam-se em lugares ermos, tentavam fugir do país devastado ou apenas permaneciam ali, esperando pelo fim. O pior na Guerra não é a morte, mas sim a tortura. Muitos pereceram nas mãos dos inimigos, que se divertiam com o macabro jogo de provocar e assistir ao sofrimento alheio. Castigos físicos eram impostos aos homens, de forma que quem caísse em mãos inimigas sofria lentamente, definhando em campos de concentração ou prisões improvisadas, tentando lutar pela vida até o último fio de esperança esvair-se e o fizesse implorar pela morte. Para as mulheres a tortura era pior. Sem mais nem porque sentiam suas bocas sendo abafadas enquanto mãos exploravam seus corpos, muitos ainda puros. Debatiam-se numa luta que sabiam estar perdida, mas a honra dizia que deviam lutar até o fim. Tentavam, em vão, trancar suas pernas para não permitir que o fato se consumasse. A guerra - minhas histórias / 59


Com força, aquelas mãos que empurravam suas pernas para os lados arranhavam seus corpos até que gotas de sangue manchassem a pele. Lábios sedentos passavam por seus corpos como se fossem alguma comida há muito não apreciada. Ouvíamos gritos, por uma parte desesperados e por outra, de prazer, e sabíamos que a luta era perdida. Elas sempre perdiam. Sentiam a dor da invasão bruta em seus corpos e almas, por homens que nunca haviam visto, nem sequer sabiam o nome e provavelmente nunca saberiam. As lágrimas escorriam com a resignação de quem não mais tem forças para lutar, esperando pelos outros que viriam, pois nunca vinham sós, andavam em grupo, e quando pegavam uma infeliz, era o brinquedinho do pelotão. Durante a Guerra, víamos moças lindas, que mesmo trajando farrapos ostentavam a elegância e beleza do povo italiano, com um pano amarrado em seus joelhos. Aquilo era a marca da vergonha que tentavam esconder, era o registro de que sua pureza havia sido roubada pelos inimigos. Os soldados alemães eram os mais cruéis: estupravam e marcavam a ferro quente os joelhos daquelas infelizes que tiveram o azar de cair em suas mãos. Consideravam-nas apenas objetos de prazer e marcavam-nas como fazendeiros marcam o rebanho. Por debaixo dos lenços, a suástica nazista as faria lembrar para sempre daqueles meses de terror... Vi-me ali, diante daquela beleza, tão branca quanto a neve que cobrira a terra napolitana. Uma legítima italiana de pele clara, corpo bem feito, longos cabelos loiros que lhe emolduravam o rosto, onde reluziam olhos castanhos tão intensos que podíamos nos perder dentro deles como se fossem grandes lagos onde habitam sereias encantadoras de homens. Ao mesmo tempo em que era bela, era também perigosa. A beleza é perigosa, traiçoeira. É como a neve, bonita e branca como flocos de algodão, e quem vê ao longe pensa que deve ser macia e divertida, mas quem se vê obrigado a viver nela, sabe que pode matar. Assim era aquela moça. Linda, mas mortal. Talvez não tivesse forças para matar meu corpo, mas o que seria capaz de fazer com meus valores? Era noite e estava de patrulha. Não sei exatamente como ela conseguiu passar pelas barreiras, mas o fato é que estava ali, escondida. Ao longe pensei que era o inimigo, mas ao me aproximar, arma em punho, pronto para atirar, vi que era a moça. Trajava farrapos, mas isso não escondia sua beleza. Acuada como um animal diante da acuada 60


como um animal diante do predador, ela me olhava com aqueles olhos castanhos que misturam medo e desafio. O que queria afinal? “Alimentari”. Foi o que me respondeu quando perguntei, em um ítalo-português, o que queria em nosso acampamento. Fiquei com pena, cedi. Dei-lhe alimento e ela comeu como se há muito não fizesse isso. Apenas a olhei comendo. Cada grão que ingeria despertava minha curiosidade. Como podia, ao mesmo tempo, parecer tão delicada e desafiar um pelotão inteiro, invadindo nosso espaço? Será que não tinha medo de morrer ou de cair em mãos inimigas? De onde veio aquela coragem? Como conseguia manter-se austera diante da fome avassaladora e dos perigos iminentes por estar ao lado de um jovem soldado de 20 e poucos anos, com os hormônios à flor da pele e que há meses não sentia a pele de uma mulher perto da sua? Fui me perdendo em meus pensamentos enquanto ela se alimentava. Quase que inconscientemente fui me aproximando até que toquei em seu ombro. Um calafrio percorreu minha espinha, arrepiando todos os pelos do meu corpo. Minha mente imaginou como seria sentir aquela pele quente sob a minha. Lembrei-me do prazer que não sentia há meses, e fui me excitando. Aquela situação jamais passou pela minha cabeça. Aproveitar-me de uma moça que se encontrava naquela situação miserável? Mas a Guerra faz perder o sentido, afinal, não sabemos quanto tempo ainda temos de vida no campo de batalha. Estava perdido em meus pensamentos, com a mão em seu ombro, imaginando qual o gosto de sua pele, de seus lábios, como seriam as formas escondidas pelo que um dia foi um vestido, quando quatro palavras me tiraram do meu devaneio. “Sono a vostradisposizione”. Disse, com aquela voz resignada. Bastou apenas isso, só quatro palavras, para exterminar todo desejo que eu tinha. De repente aquilo soou em meus ouvidos e permaneceu em minha mente como um eco: sonoa vostradisposizione... estou à sua disposição... a vostradisposizione. Naquele momento me senti o pior ser da face da Terra. Será que a Guerra havia deturpado meus valores? Será que eu seria capaz de me aproveitar da pobre moça? Diante de minhas dúvidas, retirei minha mão de seu ombro e disse-lhe que fosse. Que seguisse seu caminho, mas tivesse a consciência de que nem todos agiriam como eu agi. Se caísse em mãos alemãs estaria fadada a usar em seu joelho um lenço branco. A guerra - minhas histórias / 61


Observei aqueles longos cabelos loiros sumindo na escuridão da noite, imaginando se ela teria mais sorte caso se aventurasse novamente pelos acampamentos. Fiquei ali o resto da noite, de vigília, olhando o horizonte por onde ela se perdeu. Em minha mente ainda ressoavam aquelas palavras: “sono a vostradisposizione...”

62


A guerra - minhas hist贸rias / 63


64


“Tenho três datas importantes. Em uma delas nasci, em outra fui condenado à semimorte, e na última me senti a própria Fênix, pois renasci”.

Em 9 de dezembro de 1944, ele foi batizado de 142.286. Antes ele era um praça e, bem antes ainda, apenas o jovem Astolfo, um menino novalimense que ficou órfão aos 15 anos e que não se importava em embarcar para a Grande Guerra, onde viria a passar por inúmeras dificuldades inerentes ao conflito. O momento mais duro da sua jornada foi quando o levaram à prisão Stalag VII A, o maior campo de prisioneiros do Nazismo. A partir dali, perder o nome e a patente de cabo seria só uma das etapas torturantes que a guerra traz aos homens. E, é assim que a memória não pode esquecer os motivos daqueles terríveis 217 dias como prisioneiro... Tudo começou bem antes de 1944, mas o cume da história de 142.286 deu-se em 22 de outubro daquele mesmo ano. Era dia santo na Itália, pois, mesmo durante a guerra, mantinha-se a tradição católica, e missas e datas comemorativas eram preservadas. Havia que se ter muita oração para superar todo o sangue derramado naquele chão. Próximo dali, naquele momento de redenção espiritual e festa, dezenove soldados brasileiros realizavam patrulha de reconhecimento territorial na região de Barga, em Toscana. Quando o contingente de soldados brasileiros depara-se com um grupo de mulheres que caminhaA guerra - minhas histórias / 65


vam em procissão, ouviram gritos alarmados destas: Tedeschi! Tedeschi! Sono vicini! Não se poderia precisar se elas esgoelavam por estarem assustadas ou com medo de algo muito pior. O sargento que comandava aquela patrulha de brasileiros parecia não se importar com o desespero daquelas mulheres e pedia que a tropa avançasse pelo terreno. Era como uma missão suicida. Qualquer passo naquela região era entrar em uma redoma cercada por nazistas. Os passos eram ordenados sob a ameaça de que o homem que fugisse dessa missão seria executado. O destino reservava outra realidade. A execução estaria perto para todos, inclusive para o próprio sargento, que, ao preparar e apontar sua arma, provocou o revanchismo dos alemães que lhe miraram uma rajada de fuzil no meio da testa, daquela mente que pagava um preço por ser teimosa. Um show de pirotecnia de tiros de fuzis, metralhadoras, morteiros e granadas, cruzava os céus sob gritos desesperados das mulheres que não possuíam mais passos ordenados em procissão, nem o semblante em calma espiritual. Tudo era desespero e perdas, de fé e de vida. O Exército Brasileiro teria, naquele trágico dia 15, baixas e a prisão do restante da tropa. Começava uma nova saga de incertezas na vida do jovem Amynthas. No vagão da morte Fome, frio e tortura seriam as sensações possíveis nas garras das tão terríveis forças alemãs, por seus métodos de experiências médicas e psíquicas em prisioneiros de guerra e judeus. A essa altura, Amynthas imaginava o que seria feito de sua vida. Suas unhas seriam arrancadas uma a uma, tomaria um banho de cera quente e sua pele tilintaria como carne em óleo quente. Contudo, os soldados não foram tão ruins quanto ele esperava. Render-se sob a ameaça de um revólver mirado em sua cabeça era apenas o susto inicial. Após isso, viria a humilhação de rodar todo o Norte da Itália rumo à Moosberg, na Alemanha. A travessia não era nada fácil. Batalhões da Força Aliada tentavam destruir as tropas alemãs que transportavam os prisioneiros. A situação estava cada vez mais encurralada. Permanecia-se dias em vagões insalubres e sem mais 66


do que duas batatas pequenas, às vezes cruas e podres, de refeição por dia. As necessidades fisiológicas eram feitas no vagão, ao lado de outras pessoas. Não havia sanitários. Tudo estava sujo e fedendo a merda, em todos os sentidos possíveis da palavra. Quase se morria de sede. Tomar água? Só quando o trem parava e os cantis eram abastecidos com água suja. A pele dos que estavam ali, inclusive a sua, era um tecido de assaduras provocadas pelas urinas cada vez mais ácidas e fétidas. A sensação de estar preso ali era pior que a condição de um animal em estábulo que não sabe quando será o seu abate. A vida e o estômago esvaziavam-se. A vontade de lutar pela sobrevivência era aquietada pela falta de energia metabólica dos prisioneiros, que, mesmo assim, ainda conseguiam reunir forças para se esquivar do fogo cruzado durante o trajeto no vagão da morte. Lutavam por sobrevivência naquela semivida. Balbuciar uma oração e o nome de Deus era a pequena saída naquela triste realidade. Stalag VII A Durante três semanas, mais de mil prisioneiros de diversas nações enfrentaram vários obstáculos físicos, bélicos e naturais. Não se podia saber qual era o frio pior: os 28 graus negativos que o inverno trazia ou o frio interno que Stalag provocava nos corações aflitos. Em Moosberg, na Alemanha, cada homem ganharia um novo ‘nome’, seria rebatizado, independente de sua religião. Os nomes não eram formados por letras, mas sim por números. Seis algarismos transformaram o cabo Amynthas em 142.286. Não teríamos mais o Cabo Carvalho, e sim o prisioneiro que seria desprovido de suas roupas de soldado e após dias a frio, seu corpo ganharia um pijama fino e listrado que deveria resistir às adversidades climáticas daquele ano de 44 e quantos anos mais viessem. A nova morada, o Stalag VII A, seria o grande palco da dor, angústia, sofrimento, fome, doenças e outras privações de mais de 40.000 mil homens. O cenário de peste bubônica estava repleto de outras enfermidades: pneumonia, gastrite, icterícia e a temida tuberculose. Ter esta última era passaporte certo para a execução a gás. Havia medo de se tossir e espirrar, para não levantar suspeitas. Ali, os sinais vitais do sistema nervoso simpático deveriam controlar o parassimpático. Era um engessamento da vida. A guerra - minhas histórias / 67


Naqueles dias, só a mente não parecia paralisada. Ressoava na mente de 142.286 o hino dos expedicionários do Brasil, inspirado no famoso poema de Gonçalves Dias: “por mais terras que eu percorra, não permita Deus que eu morra!’’. A imaginação era a única forma de sobrevivência. Lembrar das belas montanhas mineiras, da vida progressista na ruas de São Paulo e, principalmente, de um bom prato de comida com arroz e feijão. Mas não passavam de lembranças. Apenas horas de trabalho retirando neve das ruas alemãs esperavam os prisioneiros que, como recompensa, recebiam uma fatia de pão preto com um pedaço de chucrute. Nos demais dias, só restava sopa aguada de pedra, com terra e batatas. O kit de comida fornecido pela Cruz Vermelha, que os prisioneiros deveriam receber, passara a ser a fonte de alimentação dos soldados alemães, que também tinham fome e muita falta de alimentos devido à força do general inverno, que devastara quase tudo. 217 dias se passaram assim. Fome. Dor. Sujeira. Insegurança e muito frio. Cada sentimento destes era imensamente concreto e parecia nunca ter um ponto final. Sobravam dedos da mão para se contar o número de banhos tomados nesse período. A mandíbula doía e rangia ao tentar se abrir: não havia comida e nem comunicação, estavam todos murados sob os olhares sanguinários dos vigias do Stalag VIIA. Na base brasileira na Itália, ninguém sabia notícias concretas sobre o verdadeiro estado dos demais companheiros aprisionados. Sua vida estava perdida entre os números de guerra. A esperança morria a cada dia, em cada rosto e corpo atrofiado. Estava tudo perdido, nem mesmo os alemães sabiam como sobreviver tomando conta de tantos semidefuntos marcados com números em seus pijamas. Que Hitler perdia força em toda Europa, só viria a saber muito depois. O Exército estadunidense traria a salvação para aquelas almas em 29 de abril de 1945, sob muitos bombardeios. Os prisioneiros não tinham nem mais força para sair dali, quando o que parecia impossível aconteceu. Renascia o cabo Carvalho, renascia o Amynthas Pires de Carvalho, que hoje afirma que tem três datas importantes: o nascimento, a condenação ao ser capturado para a semimorte e a última, quando se sentiu a própria Fênix, pois renasceu. 68


A guerra - minhas hist贸rias / 69


70


“Ao longo da história, vários receberam treinamento de guerra e foram mandados para o front de batalha”.

Um soldado distinto, que tem a habilidade de escutar qualquer passo há muitos metros de distância, farejar rastros estranhos, passar frio sem se abater, dormir em qualquer canto e ainda estar sempre na linha de frente. Selecionado entre os melhores, audaz como um lobo, ágil feito coelho e dotado de uma capa preta, Horand era admirado pelos alemães e odiado pelos ingleses e franceses, pois não mudava de time jamais. Esse exímio soldado de fidelidade incontestável não possui nenhuma biografia. Não por falta de biógrafos, mas sim porque os métodos de apuração seriam um tanto quanto complicados. E, é por isso que esse pitoresco herói merece este breve relato. Horand, como o próprio nome sugere, é um soldado honrado. Nunca atirou contra uma vida em guerra e nem teve a capacidade de executar a própria vida, marcada pela cegueira e a escuridão profunda. Isso jamais afetou a sua valentia e prestatividade, o que assustava muitos que o viam em estado de vigia nas linhas de batalha. Horand era a própria encarnação da fortaleza e do sentimento de resistência dos alemães. Mas, aqueles que examinavam com cuidado aquela condição tão frágil com que estava levando a vida, sentiam pânico. Baixar na enfermaria seria a opção e a salvação para outros em situação semelhante, mas não era a alternativa para esse guerreiro, que mesmo diante dos A guerra - minhas histórias / 71


empecilhos percorria a tortuosa geografia italiana e ajudava a enterrar seus amigos. Sua persistência era demonstrada em pequenos gestos: não tremia ao som dos bombardeios e nem chorava pedindo arrego. Alguns companheiros ensaiavam e cochichavam sua execução, para livrá-lo daquela situação tão lamentável de não enxergar nem as próprias pegadas. A ideia da autoexecução nunca passou na irracional e já confusa cabeça de Honrad, que não sabia por que estava ali e nem o motivo de tanto cheiro de sangue espalhado por todo canto em que ia. Seu olhar ingênuo e obscuro sob o cenário de guerra amolecia até mesmo os mais duros dos corações alemães, já acostumados e afamados pelas terríveis execuções que realizavam em qualquer ser vivo. Horand conseguia mesmo evocar amor onde só havia dor. O hábito de alentar feridos e desesperados era uma pequena dose de carinho possível no meio daquela tragédia. Os nazistas mantinham-no como o resquício de humanidade que a guerra ainda não arrancara de suas almas. Mas, a Alemanha perdia. O desespero batia até mesmo em quem não podia ver a derrota chegar e raciociná-la. E, até hoje, não se sabe o que aconteceu a Honrad naquele ano de 1944. Se o bravo soldado foi poupado por mais um tempo, morreu em algum conflito ou sobreviveu em outro lugar, será sempre um mistério. No entanto, Horand ficou na memória de combatentes de várias nacionalidades, inclusive dos pracinhas brasileiros. Como pode um cão cego provocar sentimentos bons no Exército Nazista? Honrad era um pastor alemão e também o melhor amigo de seus companheiros de batalha, um caso singular durante a Segunda Guerra Mundial.

72


A guerra - minhas hist贸rias / 73


74


“Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos. Bem-aventurados os que padecem perseguição por amor de justiça, porque deles é o reino dos Céus”. ( Mateus, V:5, 6 e 10)

Na penumbra daquela capela arranjada na base brasileira em terras italianas, escuta-se uma súplica de piedade: Pai, fortalecei os corações dos que aqui combatem. Passo aos meus irmãos a tua palavra. O evangelho que pregastes, eles recebem, pois sabem que ao elevar seus olhos aos céus, o teu socorro brotará. O nosso socorro vem do Senhor, que fez o Céu e a Terra. Não nos deixeis padecer, Pai. Tu já dizias que bem-aventurados são os aflitos, que serão consolados, bendigamos esse sofrimento, como prelúdio da cura eterna de nossas almas. Livrai-nos de todo mal agora e sempre. Amém. Após o momento de prece para os aflitos localizados em várias linhas de batalha, o Frei recebe, logo ali na capela, a convocação para mais uma missão do Serviço de Assistência Religiosa do Exército: muitos feridos desejam uma última benção na região de Bombiana. Serão dadas unções aos feridos e, infelizmente para alguns, o último dos sacramentos: a Extrema Unção. É preciso apressar para chegar a tempo de dar um alento àquelas almas que agonizam estraçalhas de corpo e alma no front. A guerra - minhas histórias / 75


Tem-se apenas um jipe aberto à disposição para chegar à Bombiana. A estrada, como todas naquele país, está abatida. A viagem será dura. O sargento que está na direção da ação diz que as chuvas os obrigavam a seguir um caminho mais longo, que durará cerca de 3 horas. Pelo rádio, o comandante pede agilidade no encaminhamento do Frei. O Brasil sofria novas baixas em seu pelotão e o desespero espalhava-se entre os sobreviventes, que diante de tanto sangue e tragédia pensam em suicídio. O comandante já não pode controlar tamanho desespero, necessita da ajuda de alguém com formação espiritual para encorajar seu pelotão. O Frei reza e pede mais uma vez a misericórdia do Senhor. Entre solavancos na enlameada estrada, o jipe para. Parece atolado em uma grande pedra. Todos descem. É preciso unir esforços para extirpar a pedra da roda traseira do jipe. O trajeto, estipulado em 3 horas, ganha mais alguns muitos minutos. A força dos bravos soldados e do capelão, que empurravam o jipe, não seria suficiente. Precisariam da junção de força com a suspensão da parte traseira do jipe. Contudo, faltam ferramentas resistentes para isso. Suspender o jipe com a carabina feita de ferro e muito resistente era a solução brilhante que encontravam. O Frei vibra, pois os aflitos do front poderão em breve receber as bênçãos esperadas. Os soldados poupam o religioso do esforço de tentar levantar o jipe e escorá-lo com a carabina. Com os olhos vibrantes de alegria diante da possibilidade de extirpação da pedra, o Frei acompanha atento a ação. O jipe é levantado ao mesmo tempo em que se escuta um disparo. A carabina não estava travada. Há poucos passos da traseira do carro o frei agoniza. A bala pega em seu peito. Seu corpo cai ao chão. Um vidrinho de óleo para os sacramentos, que estava em seu bolso, quebrase. O sangue começa a jorrar. Escutam-se gemidos de dor e o início de uma oração da própria Extrema Unção: Deus tenha piedade... A voz é abafada pela dor. Uma lágrima escorre dos olhos do Frei. Morre ali um peregrino de Deus.

76


A guerra - minhas hist贸rias / 77


78


“Nós pracinhas preferimos lembrá-lo como um grande herói. Não importa os motivos que o fizeram um suicida, um inconsequente”.

É assim que começam e também se encerram as conversas sobre um famoso soldado brasileiro, de origem alemã, que lutou junto à Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial. Não conseguimos ir muito além dos relatos da bravura desse homem, sempre pronto e no comando das patrulhas mais perigosas durante a batalha. Reza a lenda que ele acreditava ter o corpo fechado e que nada o atingiria. Ironia pensar isso numa guerra, onde balas de fuzis e granadas voavam a todo o momento. A fé no corpo fechado, como em rituais de ‘macumbaria’, era a sua maior arma de defesa e a justificativa para os seus atos mais insanos. Já imaginou sair sem proteção alguma diante das tropas alemãs em plena luz do dia? Isso era possível e totalmente racional na cabeça desse soldado. Mas, estudos psicológicos já afirmam, desde muito tempo, que um suicida sempre tem uma válvula motivadora. E qual seria a desse soldado? Das hipóteses às negativas seguimos. O soldado não estava em desespero por estar em ambiente trágico, sua cordialidade e honraria mantinham-se intactas diante de sua missão e amigos. Não recebia nem um tostão a mais por agir daquela forma e também não tinha medo de perder a batalha, afinal acreditava que seu corpo era fechado e estaria sempre a salvo. A busca por respostas e/ou alguma pista do que aconA guerra - minhas histórias / 79


tecia naquela mente permanecia. Revira-se um baú de fatos, relatos e fotografias. E a pergunta insistente não se calava: por que ele era o único que agia assim e ainda incentivava alguns poucos que compunham junto a ele a chamada Schutzstaffel (SS) brasileira. A possível resposta estaria talvez em uma fotografia guardada sempre no bolso de sua camisa, no lado esquerdo do peito. A foto revelava a família daquele suicida, nos rostos daquelas pessoas já se identificava a origem do soldado: tratava-se de membros de uma colônia alemã de Santa Catarina. Eis uma suposta pista, então! Poderíamos evidenciar que o modo de o soldado agir em batalha referia-se a alguma dificuldade em aceitar que lutava contra o país berço dos seus antepassados? Não! A resposta sempre foi não, pois esse soldado possuía muito orgulho de ser brasileiro e servir às vontades de sua pátria. Derrotar os governos nazi-fascistas era uma missão de prestígio. Contudo, a explicação sobre aquela fotografia só viria após muito bate-papo informal sobre o amor. Sim, o amor. A força que realmente move o mundo, seja por inveja, ambição ou paixão, no fundo o ego sempre quer amor. E a envelhecida imagem trazia a recordação das três mulheres mais queridas na vida daquele homem: a mãe, a esposa e a pequena filha. Ele dizia que voltaria vitorioso para o Brasil para cuidar desta última, pois a primeira já possuía quem lhe tomasse conta bem e a amada esposa... já não poderia mais ver. Porém, os amigos das Minas Gerais contam timidamente que na verdade, o soldado sempre andou à procura de perigos e que foi à guerra tentando encontrar a morte. Não havia motivos para voltar ao Brasil. A filha só reforçaria o fruto de um amor que jamais poderia ser resgatado. A morte da mulher que amava fez a vida perder todo o interesse. E a dor do desamor era também justificada: ele teria que inventar alguma coisa para passar o tempo e fazer algo de bom para a coletividade, e essa forma era aliviar seus companheiros de tantas patrulhas aterrorizantes e das missões mais arriscadas. E assim ele fez. Recebeu medalhas de combate por sua bravura e competência, vindo a comandar voluntariamente a patrulha de reconhecimento da região de Monte Forte e Biscaia, a denominada “terra de ninguém”, pois nenhum exército ainda havia conseguido dominar aquela área. Naquele 12 de abril de 1945, seria sua última missão suicida. Num breve instante, os deuses abriram seu corpo para tentar 80


curar seu coração. O soldado foi fatalmente atingido por uma rajada de metralhadora alemã, na altura do lado esquerdo do peito, junto à fotografia. O corpo literalmente se abriu, jorrando sangue e espedaçando-se ao chão. Derramavam-se muitas lágrimas entre os soldados brasileiros. Morria ali um herói, que agora estaria junto com a sua esposa amada no céu.

A guerra - minhas histórias / 81



A guerra - minhas hist贸rias / 83


84


“Foram duas as vezes em que chorei na Guerra: quando cheguei e quando parti”

A primeira lágrima Ela era enfermeira por formação e fora convidada junto com outras jovens brasileiras a fazer um curso especial de cuidados para ferimentos de grande extensão. A preparação era difícil, complicada, tanto que apenas 4 das 16 moças que se inscreveram em Minas Gerais foram aprovadas, entre essas, ela. Ao final, receberam o convite para embarcar rumo à Europa representando o seu país na Segunda Guerra Mundial. Não tinha medo, pelo contrário. Temia permanecer naquela cidade do interior e ter o mesmo destino de suas primas: casar e ter um filho a cada dois anos. Para desgosto da família, que tentou de todas as maneiras persuadi-la a desistir, embarcou. A viagem não foi fácil. Parando em Tindoff, na África, foi obrigada a fumar para espantar os mosquitos transmissores da malária, e descobriu que era alérgica a nicotina. Sentiu a língua e vias respiratórias inchadas e muita falta de ar, e achou que não chegaria ao seu destino. Foi salva por um médico da região, que aplicou em sua boca um unguento verde, cuja procedência não conhecia, além dos instrumentos utilizados, que não sabia se estavam esterilizados, nem sequer sabia o que era aquilo, do que era feito e se funcionaria, mas na situação em que se encontrava, não pensou duas vezes: qualquer coisa que a fizesse respirar ela aceitaria de bom grado. A guerra - minhas histórias / 85


Por fim, chegou à Itália. Essa foi a única vez em que se sentiu mal. Nem mesmo o frio que cortava a pele a abateu. Era forte, de corpo e espírito. Cruzou os céus do Atlântico em uma aeronave suspeita. Quase morreu sufocada na África, e não seria um friozinho de 28° negativos que a derrubaria. Mas nem todas eram como ela. Algumas de suas colegas eram mais delicadas e sentiram a viagem e a mudança repentina no clima. Das colegas brasileiras, tinha um carinho especial por Roselys. Esta não suportou a viagem de avião, a parada na África e o frio europeu. Adoeceu no primeiro dia em solos napolitanos. Cuidou da amiga e a deixou descansando. Aproveitou o tempo para andar pela cidade semidestruída, que seria sua morada nos próximos meses. Vagando pelas ruas, vendo restos do que deveriam ser grandes construções, chegou a um teatro. Na porta uma placa dizia: “Red Cross Theater”. Em italiano, o porteiro informou que apresentações eram realizadas a fim de dar aos soldados um pouco de alegria e distração. Entrou e seguiu pela escada rolante. Empurrou a porta e entrou no grande salão. Deparou-se com um mar de uniformes verdes circundando um palco onde se apresentariam cantores de várias nacionalidades. Ao longe viu um braço assinalando que ali havia um lugar vago. Sozinha, não conseguiria passar por todos os homens e mulheres até chegar ao assento sinalizado. Não soube explicar, mas quase que carregada chegou àquela cadeira. O teatro era enorme, redondo, com um palco na ala norte. Conservava parte de sua beleza, com arabescos de um dourado apagado que subiam pelas pilastras e cadeiras com assentos de veludo vermelho desbotado. Um homem trajando um smoking anunciou que o show começaria em breve. A bandeira italiana foi carregada pelo palco enquanto um cantor de voz potente e corpo robusto entoava uma triste canção em italiano. Ao final, ovacionado, deixou o palco para dar lugar a um cantor estadunidense, para alegria dos soldados norte-americanos ali presentes. O ritual se repetiu, até que a bandeira brasileira pintou de verde e amarelo um pontinho daquele palco. Elvira Rios, uma mexicana de rosto bonito, cantou “Casinha Pequenina”. Ela não era brasileira e preservava um pouco do sotaque de seu país, mas a letra daquela música começou a ressoar pelo salão: “Tu não te lembras da casinha pequenina. Onde o nosso amor nasceu, ai?”. 86


Na medida em que a canção tomava força, a emoção fazia com que a jovem enfermeira derramasse, pela primeira vez desde que deixou o Brasil, as lágrimas que estavam represadas em seu coração. “Tu não te lembras das juras, oh perjura. Que fizeste com fervor?” As lágrimas rolavam face abaixo de tal maneira que os soluços as acompanhavam. A impressão da jovem era de que apenas seu choro enchia o salão. Mãos surgiam por todos os lados a consolar a jovem moça de olhos claros que tanto se emocionava com uma canção. Com o término da música, ela foi se acalmando, a altura do choro diminuindo e as lágrimas secando. Ao término da apresentação, voltou para o hotel onde Rosalys descansava. Essa foi a primeira vez que chorou. A segunda Lágrima Durante o conflito não havia muito tempo para lamentações. Eram 64 pacientes feridos aguardando tratamento, e um leito jamais ficava vazio. Longos meses se passariam até o fim da Guerra. E, quando esta terminou, tiveram que esperar mais algumas semanas para retornar ao Brasil. Com o fim da Guerra, as tropas Aliadas tiveram que esperar o fim do combate entre Estados Unidos e Japão para poder retornar ao Brasil. O trajeto era feito por navios e aviões norte-americanos. Sem o medo de que uma chuva de tiros caísse sobre suas cabeças, os soldados, médicos e enfermeiras podiam andar pelas cidades destruídas e tentar imaginar como ela seria antes dos bombardeios. Todos os dias, em grupo ou solitários, os combatentes saíam do hotel para caminhar, ir às apresentações musicais ou ao cinema, mas tinham que deixar no mural ao lado da porta o nome e o destino do passeio, pois a qualquer momento poderiam ser chamados para embarcar para casa. Naquela manhã resolveu ir ao cinema com as amigas brasileiras. Deixaram no mural o destino do passeio e foram assistir Casablanca. O romance de IlsaLund e Rick Blaine ganhava mais realidade diante dos olhos de quem vivenciou a guerra que ambientou o filme. Durante o intervalo do filme, todos que estavam no cinema pararam para ouvir o autofalante que chamava por nomes aqueles que embarcariam. Três das quatro enfermeiras de Minas Gerais foram chamadas, a quarta acreditou não ter ouvido seu nome devido à confusão que as outras faziam. A guerra - minhas histórias / 87


Arrumaram suas malas e foram para o aeroporto. Na conferência do embarque, o nome dela não estava. Realmente não embarcaria para casa. Um praça ofereceu-se para ficar em seu lugar, mas americano não é brasileiro, que dá um jeitinho em tudo. Ela não iria e ponto final. Ouviu que embarcaria logo, dali a duas horas ou duas semanas, não havia como prever. Escondendo as lágrimas, disse que estava tudo bem, que ficaria aguardando sua hora. Com as malas nas costas voltou para o hotel. Naquele quarto vazio, em uma cidade em ruínas, sem nenhum amigo, a solidão invadiu o peito como um furacão devasta uma cidadezinha feita de palha. As lágrimas rolaram por seu rosto. Começaram lentas, uma após a outra, até terminarem em um mar de água salgada que lavava o corpo e a alma daquela moça. Nunca se sentiu tão sozinha na vida. Não tinha a certeza de quando voltaria, e não sabia como faria para sobreviver no semi-isolamento a que fora condenada, em um país onde ocorreram crimes horríveis e onde ainda reinava a desesperança. Chorou a noite toda. Acordou com o sol alto, metade do dia já havia se passado. Com os olhos inchados de quem adormeceu enquanto chorava, resolveu sair. Ficar no hotel apenas aumentaria sua solidão. No quadro escreveu seu nome e no local onde deveria escrever aonde ia, deixou as seguintes palavras: “Vou sair sem destino”. Na praça, logo à porta do hotel, havia um rapaz. Na pele negra se destacavam as meias e a boina vermelha, bem como a camisa multicolorida. Conduzia uma charrete, na qual, instantes depois, a moça entrou. Em inglês ele perguntou para onde deveria conduzi-la, e ela lhe pediu que a levasse em um lugar bonito. Percebendo a tristeza no olhar da jovem, o rapaz contou-lhe que falava nove idiomas e perguntou de qual parte dos Estados Unidos ela era, se do norte ou do sul. A jovem então lhe disse que não era americana, apesar de ter os traços parecidos e usar o uniforme daquele país. Disse que era brasileira e contou que foi deixada sozinha, já que suas companheiras haviam retornado ao país no dia anterior. Ele a conduziu pela cidade, com paisagens lindas. Chegaram a um salão grande, redondo, com várias mesas sobre as quais estavam pequenos placares. Andou por entre elas e leu os nomes de presidentes e países. O rapaz a conduziu a uma mesa especial. No placar estava escrito: “Sr. Getúlio 88


Dornelles Vargas – Presidente da República Federativa do Brasil”. Era o prédio que sediou a primeira reunião da ONU. “Ele não veio.” Disse o jovem. “Por quê?” “Você é brasileira e não sabe? Vargas nunca saiu do Brasil, nem mesmo ao Uruguai foi. Todos sabem que ele não viaja para fora do território brasileiro.” A moça sorriu. Como foi descobrir algo sobre seu presidente quando estava do outro lado do mundo? E ainda por cima através de um jovem que não sabia sua nacionalidade? Quando chegou ao hotel, mais motivos para sorrir: foi chamada para retornar. Pegou as malas que já estavam prontas desde o dia anterior e correu para o aeroporto. Única mulher em meio a um avião repleto de soldados norte-americanos, não se abalou, porque desde o princípio seu coração lhe disse que pelo menos uma mulher brasileira deveria ter ido à Guerra, e fora ela uma das escolhidas.

A guerra - minhas histórias / 89



A guerra - minhas hist贸rias / 91


92


“Há quem diga que a Guerra trouxe benefícios, mas quem pensa assim não a vivenciou. Ao longo dessas décadas, fui a muitas escolas dar palestras, falar aos jovens sobre minha experiência na Segunda Guerra Mundial, e sempre me perguntam o que há de mais horrível nesta situação. Eu sempre respondo que, em uma guerra, não é a morte do corpo a mais cruel, mas sim a do espírito. Assim como eu, muitos companheiros foram conhecer a morte na Itália. Foi lá que aprendemos a ser insensíveis, pois ver a morte de perto tornou-se algo banal. Na Guerra, morrer não é o fator principal, a tortura psicológica é mais cruel. Ela deixa cicatrizes na alma que nunca desaparecem. Ver um povo derrotado, faminto, famílias desestruturadas, homens oferecendo suas esposas e filhas em troca de comida. Admirar moças bonitas, ver seus joelhos cobertos por panos brancos e saber que foram violentadas e marcadas a ferro quente com a suástica nazista. Essa é a principal barbárie da Guerra. Em uma das muitas vezes que fui convidado a compartilhar com jovens minha experiência, um professor de história me questionou quando argumentei que naquela Guerra nada de bom se construiu. Segundo ele, a Ciência e a Medicina se desenvolveram muito nesse período, então, de certa forma, ela teria trazido benefícios às pessoas de várias gerações. Ele citou a penicilina, que, apesar de descoberta em 1928, foi desenvolvida e utilizada em grande escala só durante a Segunda Guerra e até hoje é usada na fabricação de medicamentos. A Guerra só traz benefícios aos países produtores de armas. Desde que o mundo é mundo as guerras existem e no final nunca benefiA guerra - minhas histórias / 93


ciam a maioria. Apenas os poderosos lucram, só para eles ela é benéfica, pois estão longe, em segurança, protegidos por paredes reforçadas, comendo do bom e do melhor, enquanto os pobres morrem de fome e frio. Com apenas uma frase encerrei a discussão: “Será que essas descobertas não poderiam ter sido feitas na paz?”

94


A guerra - minhas hist贸rias / 95


96


Para a grande maioria, a Segunda Guerra Mundial teve início e fim. Começou em 1939, quando a Alemanha Nazista invadiu a Polônia, e terminou em 1945, com a vitória dos Aliados. Contudo, para quem vivenciou o conflito, 45 era o início de um novo combate. Para quem viveu a Guerra, voltar ao Brasil significava um novo começo. Quando partiram, receberam a promessa de uma vida financeiramente estável, e foi esse o motivo que levou muitos a não relutar no embarque. Mas, o que a maioria não sabia é que a compensação financeira custaria caro. Muitos não voltaram. Perderam-se em trincheiras escavadas em terras estrangeiras ou repousavam agora em Pistóia, os metros quadrados brasileiros em território italiano. A terceira guerra tinha nome: readaptação. “Ninguém é o mesmo depois de uma Guerra”. Foi uma das frases que mais ouvimos durante as entrevistas. Seguida pela fala de um senhor que, prisioneiro das forças alemãs, repetia a todo o momento: “Guerra... é...não é fácil. É dureza”. E nossa experiência de ouvir nos comprovou a verdade do que diziam. A grandeza infeliz desse sentimento, felizmente jamais poderemos experimentar, mas tivemos a oportunidade de ouvilas de quem sentiu na pele as mazelas do combate. Foram recebidos como heróis. Moçoilas espevitadas ficavam apaixonadas pelos jovens de farda. Desfile a céu aberto, convites para festas, jantares em residências de pessoas ilustres e, depois de alguns meses, o esquecimento. Os combatentes da FEB saíram da Guerra, mas ela não saiu de dentro deles. O som dos tiros permanece nos ouvidos até hoje. “Tem A guerra - minhas histórias / 97


companheiros que perderam a razão. Até em um garfo caindo ouviam a Lurdinha”, disse-nos um veterano. Muitos não conseguiram reconstruir a vida. Não tinham condições de manter um casamento saudável ou nem mais amar. “Na Guerra aprendemos a ser insensíveis”. Foi assim que nos responderam a pergunta sobre a experiência de ver a morte. “Muitos conheceram a morte na Guerra, inclusive eu”, disse-nos um senhor de olhar cansado. Corpos se amontoando em verdadeiros lagos de sangue, se decompondo e exalando o mau-cheiro da destruição logo ao lado. Ver companheiros de batalha, verdadeiros amigos que até poucos meses atrás eram desconhecidos, sendo consumidos pelos vermes. Uma visão que nunca sairá da memória. Belas moças de pele clara e feição delicada, com joelhos cobertos por panos brancos tentando esconder a vergonha da invasão bruta. Por baixo daquele lenço, o símbolo nazista: a suástica gravada a ferro quente na pele daquelas que foram estupradas. Algumas se ofereciam, ou eram oferecidas, em troca de comida. Simples objetos de uso descartável. Eram jovens, muitos recém-chegados aos dezoito anos, que tinham sua juventude roubada por coronéis sem rosto. Família, amigos, namoradas e noivas deixadas para trás. Rostos que deveriam ficar muito bem gravados na mente, porque não se tinha a certeza de que algum dia seriam vistos novamente. Pequenos prazeres encontrados em barras de chocolate e maços de cigarro. Preciosidades baratas que valiam ouro. Não sabiam o que comiam: carne de cavalo, de pombo, de algum animal desconhecido. Ração, enlatados, feijão adocicado. Na mente, o gosto dos quitutes que ficaram do outro lado do Atlântico. Amores brasileiros e italianos. Um soldado suicida que chorava pela esposa falecida. Um Frei que rezava pelas almas perdidas. Amor, descrença e fé unidos pelos tiros de uma temida alemã de aço, cujo falar lembrava uma determinada noiva ciumenta que ficou em terras tupiniquins. Uma moça que, para terror da família, embarcou rumo à Europa e chorou apenas duas vezes: quando chegou e quando partiu. Um soldado que carrega no corpo as treze marcas dos tiros que ensinaram a não ser piedoso. Um professor que tentou enaltecer as descobertas científicas da Guerra e um senhor de 88 anos que resumiu tudo em dez palavras: “Mas essas descobertas não poderiam ter sido feitas na paz?” 98


Durante meses nos envolvemos no universo um tanto quanto sombrio da Guerra. Um conflito que não vimos acontecer, e que, portanto, não podemos compreender em toda sua magnitude. Mas encontramos pessoas maravilhosas: homens e mulheres de honra, que são esquecidos pela maioria. Um certo presidente declarou que o Brasil carece de heróis. Mentira. Conhecemos muitos: senhores de cabelos brancos e caráter forte. São companheiros, guerreiros esquecidos, heróis de uma Guerra que não era deles. Mas antes de tudo são uma família, pois são todos irmãos de honra. Adriana Mariano Natália Barbosa

A guerra - minhas histórias / 99




102


A guerra - minhas hist贸rias / 103


104


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.