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Imagem e imaginação política por meio do corpo

Ney Matogrosso por Maísa Rabelo Série Campos. Arembepe, Bahia. 1974

Carlos Eduardo Gomes Luiz Centro universitário SENAC São paulo, 2013


Agradecimentos Com base em reflexões teóricas sobre comunicação, o presente trabalho pretende estabelecer um paralelo entre real e ficção, para assim, entender a ilusão imaginária existente nas imagens em diversos contextos históricos, sobretudo no cenário político em que o artista Ney Matogrosso iniciou a sua carreira; compreendendo assim, o corpo como mediador dos códigos imagéticos em seu figurino, sendo resultado de seu discurso crítico aquele contexto. O projeto gráfico que dará forma a essas reflexões, consiste na tradução dos conceitos do universo imagético cênico do artista em forma de estampas conceituais que serão impressas em tecido, estabelecendo uma relação entre imagem e corpo..


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Resumo / Palavras chave Com base em reflexões teóricas sobre comunicação, o presente trabalho pretende estabelecer um paralelo entre real e ficção, para assim, entender a ilusão imaginária existente nas imagens em diversos contextos históricos, sobretudo no cenário político em que o artista Ney Matogrosso iniciou a sua carreira; compreendendo assim, o corpo como mediador dos códigos imagéticos em seu figurino, sendo resultado de seu discurso crítico aquele contexto. O projeto gráfico que dará forma a essas reflexões, consiste na tradução dos conceitos do universo imagético cênico do artista em forma de estampas conceituais que serão impressas em tecido, estabelecendo uma relação entre imagem e corpo. Imaginação; Ney Matogrosso; Corpo; Estamparia.

Abstract / Keyswords Com base em reflexões teóricas sobre comunicação, o presente trabalho pretende estabelecer um paralelo entre real e ficção, para assim, entender a ilusão imaginária existente nas imagens em diversos contextos históricos, sobretudo no cenário político em que o artista Ney Matogrosso iniciou a sua carreira; compreendendo assim, o corpo como mediador dos códigos imagéticos em seu figurino, sendo resultado de seu discurso crítico aquele contexto. O projeto gráfico que dará forma a essas reflexões, consiste na tradução dos conceitos do universo imagético cênico do artista em forma de estampas conceituais que serão impressas em tecido, estabelecendo uma relação entre imagem e corpo. Imaginação; Ney Matogrosso; Corpo; Estamparia.


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Apresentação "A inspiração vem de onde? Pergunta pra mim alguém Respondo talvez de Londres De avião, barco ou ponte Vem com meu bem de Belém Vem com você nesse trem Nas entrelinhas de um livro Da morte de um ser vivo(...)" Transpiração Ney Matogrosso e Pedro Luis (2005)

O tema para esse trabalho de conclusão de curso nasceu de grandes paixões e curiosidades. Sempre fui muito curioso por temas que envolvem relações sociais, culturais, e no modo como mostram isso para o mundo. Quando iniciei meus estudos na área de design, comecei a olhar o mundo como um profissional da área, ação inevitável, e daí relacionar as coisas de forma que se completassem. Música, moda, arquitetura, engenharia e outras profissões técnicas agora pareciam andar juntas. Ao analisar uma grande ligação entre elas, pude perceber um bom design no centro disso tudo. Foi diante dessa complexidade da profissão que me apaixonei e percebi o real fazer organizador do designer. Diante disso, resolvi procurar algo que me inspirasse, trouxesse conceitos e agrasse uma identidade forte ao trabalho. Sempre acreditei e vi bons resultados onde se conseguia ver boas referências, alinhados a inovação e as necessidades do mundo na procura de solução do designer. Achei no cantor Ney Matogrosso uma possibilidade de refletir sobre tudo isso e, pensando em identidade como grande inspiração, não consigo avaliar melhor escolha. Ney possui um característica peculiar de nunca se limitar, deixando a dúvida sobre seu trabalho ser mais musical, comportamental ou visual. A grande resposta vem de tudo isso junto. Ney é sem dúvida um grande conjunto. O equilíbrio perfeito de como um trabalho estruturado de forma consciente é capaz de provocar nas pessoas. Estudando a trajetória e o trabalho de Ney, é impressionante como o mesmo consegue agregar de forma lúcida um discurso que influencia diretamente no

seu objeto final, a música. Ney é visual, uma imagem que possui discurso antecessor e posterior a sua criação, um discurso que provoca lucidez para aqueles que possuem sensibilidade para compreender seu trabalho, que influenciou gerações e continua a influenciar até hoje. No trabalho encontramos um exemplo claro da junção criativa de diversas áreas, agregado a um discurso sólido que tem como resultado uma identidade única e coerente. Sendo este um trabalho de design, mais precisamente design gráfico, procurei refletir sobre o objeto final que passamos quatro anos estudando e projetando: imagem. Afinal, seremos profissionais responsáveis pela produção das mesmas, com o objetivo de tornar o mundo mais cognitivo e organizado dentro da complexidade em que vivemos atualmente. É preciso deixar claro que esse trabalho tem como reflexão a produção de imagens realizada pelo homem (homo sapiens sapiens: aquele que sabe que sabe). Toda e qualquer questão levantada, tem como objetivo refletir sobre a imagem dentro do respectivo conceito em questão, o trabalho do artista será analisado dentro deste contexto, onde estabelecemos um paralelo sempre que necessário. Por meio desse pensamento, a seguir, discutiremos sobre imagem, imaginação, música, corpo, estampa e Ney Matogrosso. O objeto final projetado, será a criação de estampas impressas em tecido, que tem como finalidade todos esse discurso acima, que envolve música, comportamento, moda e bastante reflexão: design.


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Introdução “Se canto sou ave, se choro sou homem Se planto me basto, valho mais que dois Quando a água corre, a vida multiplica O que ninguém explica é o que vem depois...” Chance de Aladin Luli (1998)

A produção de imagens é inerente ao homem; a mesma tem o poder de desviar o desejo humano, tornar presente o ausente e afirmar tudo em um só tempo; há quem defenda que sua produção seja um acontecimento antecessor a consciência. Sua veiculação acelerada na atualidade determina o comportamento entre as pessoas, o que torna essa relação um espetáculo social. As mensagens presentes nessas imagens estão cheias de códigos invisíveis que ultrapassam os olhos, chegando ao cérebro sem serem notadas, muitas vezes causada pela velocidade que a mesma é produzida, veiculada e consumida. Uma sociedade imagética acaba determinando para o homem um estar no mundo apenas quando o mesmo se vê representado em imagem: “existir é estar na imagem”. Essa situação torna a relação do homem com as coisas do mundo superficial, já que é a aparência das coisas que dá sentido à sua vida. Assim, o homem perde contato com ele mesmo, não se reconhecendo mais, se tornando alienado em relação à própria condição humana. Para melhor organizar esses pensamentos, podemos dividir o mundo segundo o pensamento platônico: ser e estar. “Ser” trata da essência das coisas, onde as coisas são estruturadas. “Estar” diz respeito a aparência das coisas, onde as mesmas são vividas, onde estas nos aparecem e assim passamos a conhece-las; daí conseguimos significar as coisas, e assim, representar. A aparência das coisas mudam com certa rapidez, já sua estrutura permanece com certa estaticidade. O erro é acreditar que a vivência no mundo da aparência é fundamento do mundo; as consequências desse erro dá origem a uma sociedade na qual a relação dos homens é mediada por imagens, caracterizada por Guy Debord (1997). Sendo a imagem representação das coisas, a relação homem/imagem torna-se perigosa quando esse perde o referencial entre real e ficção, uma simulação sem referência, acreditando que a imagem tenha sido feita pela coisa e não da coisa, tornando-a sagrada. Em ambos os casos o homem “atravessa a imagem” perde seu referencial e seu senso de realidade; o que denominaremos de ilusão imaginária. Sendo assim, por meio de reflexões, vamos estabele-

cer um paralelo entre a produção de imagens em vários períodos históricos, a relação do homem com as mesmas e a produção de imagens projetadas pelo artista Ney Matogrosso, procurando entender as semelhanças entre a relação imaginária entre suas imagens e as demais, sobretudo aquelas produzidas pelos chamados veículos de massa no período político em que o mesmo iniciou a sua carreira como cantor na banda Secos e Molhados, até o período atual. Ney se insere nessa reflexão pois trabalha com a imaginação em seu espetáculo. Assim, já foi homem das cavernas, bicho, mulher, bandido, índio, forrozeiro e continua sendo qualquer coisa que se possa imaginar. A intenção de Ney sempre foi provocar, beirando o limite do real e imaginário, destacando no palco uma figura estranha com atitudes agressivas. Seu figurino, ao contrário de sua máscara, mostrava mais que escondia. Ganhou fama como cantor em um período repressivo de ditadura. Nos palcos, Ney criticou amplamente esse contexto político que reprimia as atitudes da sociedade. Para isso, esta pesquisa se divide em três partes: 1.imagem e superfície; 2.Ney e a liberdade de imaginar; 3.projeto. O primeiro capítulo abriga a discussão sobre o artifício da comunicação, o entendimento do termo superfície na área de design e como o mesmo será tratado no texto. Analisa a interação entre imagem e palavra e conclui estabelecendo uma relação entre corpo e mídia. O capítulo seguinte, Ney e a liberdade de imaginar descreve o cenário político de repressão no país, destacando a história do artista e seu ponto de vista. Em seguida, tem como foco a relação imaginária do homem com as imagens e o perigo da ilusão em paralelo as imagens do artista, concluindo com os conceitos cênicos projetados em seus espetáculos, que serão trabalhados na criação do objeto final: estampas. O terceiro capítulo, intitulado projeto, tem como objetivo, descrever o processo de criação e produção do conjunto de estampas como hipótese de solução da problemática desenvolvida no início do presente trabalho.


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1. Imagem e superfície (...) Atenção, precisa ter olhos firmes Pra este sol, para esta escuridão Atenção Tudo é perigoso Tudo é divino e maravilhoso É preciso estar atento e forte Não temos tempo de temer a morte Atenção para estrofe e pro refrão Tudo é perigoso Tudo é divino e maravilhoso. Divino Maravilhoso Caetano Veloso (1969)


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nificados que a palavra “superfície” assume, sobretudo no design, para entender melhor como será tratado esse conceito dentro do texto. A palavra superfície é definida pelo dicionário Houaiss como “o exterior, a parte visível dos corpos”. Na área de design a classificação “design de superfície” é muito utilizada para nomear disciplinas, cursos e até mesmo área de atuação. Renata Rumbim (2005), autora de livros que utilizam o termo, se diz responsável por trazê-lo na década de oitenta para o Brasil como tradução do termo “surface design”. Ela explica em seu livro que, enquanto o design gráfico lida com a organização de informações de maneira que transmita dados aos usuários, o design de superfície lida principalmente com a ordem estética e a criação de ornamentos, sendo complemento do design gráfico. Ézio Manzini (1993) pesquisador na área de design, descreve superfície como sendo a parte externa dos objetos, onde acaba o material do qual é feito e começa o ambiente exterior, considerando que revestimentos e acabamentos eventualmente se apliquem como superfície também. Já Reinilda Minuzzi (2001) aborda a questão afirmando que o design de superfície está entre duas áreas do design: a área gráfica (imagem) interage com a de produto (objeto). Para ela, é preciso conhecer a matéria, as características dos objetos e seu processo produtivo. Observamos que sobram contradições no uso do termo. Organizando melhor esses pensamentos, podemos dividir o mundo segundo o pensamento platônico: ser e estar. Diversas vezes ele é empregado em referência à aspectos intrínsecos do objeto em detrimento de sua exterioridade, ou seja, o “ser” é explorado, quando na verdade “superfície” é o seu “estar” no mundo. “Ser” trata da essência das coisas, onde as coisas são estruturadas. “Estar” diz respeito a aparência das coisas, onde as mesmas são vividas, onde estas nos aparecem e assim passamos a conhece-las; daí conseguimos significar as coisas, e assim, representar. A aparência das coisas mudam com certa rapidez, já sua estrutura permanece com certa estaticidade. Jean Baudrillard em seu livro “O sistema dos objetos” aborda o fato de que (...)pouco se diz sobre a questão de saber como os objetos são vividos, a que necessidade, além das funcionais, atendem, que estruturas mentais misturam-se às estruturas funcionais e as contradizem, sobre que sistema cultural, infra ou transcultural, é fundada a sua cotidianidade vivida (BAUDRILLARD, 1997: 10-11). Para melhor demonstrar o que estamos tentando dizer, devemos pensar em objeto de uma maneira mais abrangente, não só como objetos de uso (produtos) e sim como parte de um sistema de comunicação. Podemos concluir que é por meio da superfície que se forma a imagem onde passamos a “conhecer” o objeto, e só passamos a conhecer as coisas que nos são comunicadas, as coisas que nos aparecem, provocam nossos sentidos, nossa experiência estética com os objetos. O autor afirma "A imagem começa a partir do momento em que não vemos mais aquilo que imediatamente é dado no suporte material, mas outra coisa e que não é dada por esse suporte" (WOLFF, 2005: 20). Logo, superfície é a aparência das coisas, o limite que separa o mundo e o objeto, a parte exterior pela qual vamos tomar conhecimento das coisas. Assim sendo, quando falamos de superfície, não estamos falando de estrutura e sim de aparência. O designer como profis-

quando falamos de superfície, não estamos falando de estrutura e sim de aparência.

sional de comunicação, que utiliza o projeto como forma predominante em sua prática e que considera todo o processo, deve entender que o consumidor irá conhecer o objeto formando uma imagem dele, por meio de sua superfície, pois é sua aparência (visual e tátil) que se constituirá entre o produto e o sujeito, seja este resultado de um projeto gráfico ou de objeto de uso. Houve grandes momentos na história em que a relação do homem com os códigos de superfície mudou, pois eles aparecem para nós de forma diferente e, sua visibilidade mudou ao longo dos anos. Se compararmos as superfícies que nos circundam hoje com as que apareceram ao longo da história, podemos constatar que o excesso de informação hoje é predominante. Estamos rodeados de exemplos, na tela da televisão, nos cartazes publicitários, nas embalagens de produtos, indumentária, livros, filmes etc. A característica mais forte é o protagonismo da cor. Há uma explosão delas que, segundo Flusser (2007), é como a superfície aparece para nós. Não se trata de um fenômeno meramente estético, já que cada cor tem um significado; é um aspecto do mundo atual, de acordo com o o autor. E é exatamente por conta de todos esses significados que elas se diferenciam das superfícies apresentadas anteriormente ao longo da história. Se a escrita surgiu da nossa necessidade de explicar as imagens, logo, antes dela as imagens eram meios supremos de comunicação e fomos programados apenas por ela durante parte da história. Mesmo depois da invenção da escrita demorou para essa atingir grande parte das pessoas. A teoria da comunicação é indispensável para entender esses fenômenos; Pierce classifica e diferencia esses códigos linguísticos como ícones e símbolos. É fácil de entender esse raciocínio, já que diferentemente das imagens (ícones) a leitura de palavras (símbolos) necessitam de aprendizado prévio, se trata de uma convenção, enquanto um ícone não cobra esse deciframento, possui caráter universal. A relação imagem e texto, aqui, ainda é separada. As primeiras imagens produzidas pelo homem vem desde o tempo que este habitava ainda as cavernas. Estes homens acreditavam que as imagens seriam mágicas: ao pintar a ação de uma caça, ela aconteceria com sucesso em um futuro próximo, tendo o poder sobre o futuro, uma espécie de “segunda realidade”. Assim, neste período o ser humano acabou elevando essa relação a divindade (FLUSSER, 2007). Segundo o autor, na Idade Média essa relação continua, mas neste período o espaço de culto se difere. Agora, ocupa paredes das capelas, igrejas e catedrais. A maior parte das imagens às quais a humanidade tinha acesso eram nesses locais. Elas eram geralmente utilizadas para contar as histórias do evangelho ou de algum santo. Essa relação com a religião somado ao fato que eram códigos raros e de difícil produção, exerciam um

Entendendo a noção de superfície

Por que o homem é o único animal com a capacidade de fabricar e utilizar imagens? Essa indagação é apontada por Francis Wolff (2005) em seu artigo sobre o poder das imagens. Como resposta, muitos pensadores, inclusive o próprio Wolff, afirmam que nenhuma outra espécie tem a capacidade de refletir e imaginar como a espécie humana. Em seu texto, Wolff (2005: 23) relata que “o homem dispõe desse poder interno de tornar presente, por si mesmo, em pensamento, a aparência visível das coisas que não estão presentes. Esse poder interno chama-se imaginação.” Assim, o homem tem o poder de tornar presente as coisas ausentes pela imaginação e pela criação de imagens. Em latim, para designar “imagem” eram utilizados dois termos: simulacrum, que significa “espectro”, ou imago, que designa um molde em cera dos rosto dos mortos (DEBRAY apud WOLFF, 2005). Quando recorro à imagem de um amigo que não está próximo a mim, ele passa a estar ali, presente. É este o poder da imagem, um modo de re-apresentação do ausente. Mais a frente discutiremos o perigo da ilusão que ela pode trazer. Segundo Vilém Flusser (2007) a comunicação humana é um processo artificial, nos comunicamos por meio de artifícios e o objetivo dessa comunicação é nos fazer esquecer uma vida solitária na qual estamos condenados a morte. Tendo em vista que quase ninguém é capaz de suportar o medo do vazio, produzimos substitutos, para supri-los, por isso a imagem nasce do medo da morte, e contra esse medo, só nos resta fazer uma imagem dela, afirma Kamper (2002). A partir disso, podemos chamar a imagem de “a morte em pessoa”. Outro propósito das imagens é explicar o mundo. Por isso, onde existir humanidade, mesmo nos grupos primitivos, mesmo entre as crianças ou na Pré-História, existe imagem (WOLFF, 2005). O mundo se tornou inacessível e, para superar isso, o homem cria imagens para mediar as ações entre ele e o mundo. Posteriormente, para tentar explicar as imagens, nasce outro instrumento: a escrita. Para tornar mais claro o processo que levam a essas representações, podemos utilizar um exemplo apresentado por Flusser (2007). Primeiramente, ele explica, nos deparamos com uma pedra lá fora, em seguida a imaginamos (criamos imagens tecnicamente) e só depois escrevemos a palavra “pedra”. Esses acontecimentos se dividem em três reinos: o dos fatos, o das imagens e o das explicações. A pedra a qual tropeçamos está nos mundo dos fatos, a imagem que criamos da pedra está nos mundo das imagens, e os conceitos sobre a pedra estão no mundo das explicações. Os dois últimos, o das imagens e o das explicações, o autor denomina de mundo da ficção. Sendo assim, se retomarmos o raciocínio anterior, podemos afirmar que a tentativa de “re-apresentar” o ausente está no mundo da ficção. O que procuramos entender é como o mundo da ficção se relaciona com o mundo dos fatos e como esse mundo se apresenta para nós. Só significamos aquilo que conhecemos, e só passamos a conhecer as coisas por meio da comunicação. Essa comunicação com as coisas do mundo acontece quando nos depararmos com elas, e as diferenciamos umas das outras. Exemplo: Me deparo com uma cadeira, reconheço-a, me afasto, imagino e significo. Porém, para que a imagem da cadeira seja formada diante de mim, ao ponto de reconhece-la, existe uma diferenciação que se dá pela camada sua exterior, o limite que existe entre ela e o resto do mundo, ou seja, pela sua superfície. De início, tentaremos mapear os diversos sig-

grande poder de sedução e fascinação sobre os homens. Durante esse período a imagem manteve esse status. Apenas quando os textos difundiram-se foi que a situação se tornou um pouco diferente. No entanto demorou para o homem entender e aprender o poder e as possibilidades que a leitura de linhas possuía. A escrita só ganhou força após invenção dos tipos móveis, difundindo a mídia impressa, popularizando os textos. O período de guerra e pós-guerra, se caracteriza como aquele em que o texto escrito prevaleceu. Os códigos em linhas “letras e números ordenados em sequencia(...) o significado de tais símbolos independe de cores(...) se esse texto fosse impresso em amarelo, teria o mesmo significado” (FLUSSER, 2007: 128). Outro grande marco na história da relação homem/imagem foi a invenção da fotografia. Além de reproduzir a realidade com exatidão, o que muitos pintores tentavam fazer, também difundiu a produção de imagens e, com o avanço da tecnologia, nada mais normal que essa situação fosse intensificada. Não é a toa que o século XX é conhecido como o “século das imagens”(BAITELLO, 2000). Diante desses acontecimentos, houve novamente uma migração. Com a vulgarização da produção fotográfica, voltamos a ter uma relação intima com as imagens nos espaços onde habitamos, “nos entregamos sem culpa, no calor da privacidade e no fim da resistência corporal” (BAITELLO, 2000: 9). É possível observar, então, que a nossa relação com os códigos de superfície na atualidade não seja uma situação tão diferente daquela em outros contextos históricos, ou seja, uma “novidade revolucionária”. Como aponta Flusser (2007), “pelo contrario: trata-se de uma volta ao estado normal”. Mapas de projetos de equipamentos eletrônicos comparados as imagens elaboradas nas paredes das cavernas vislumbrando a caçada futura possuem a mesma relação imaginária, já que ambas se tratam de mapas de circunstâncias desejadas. No entanto, não é a mesma imaginação que as produz; seria um erro acreditar que viver na atualidade, em meio aos códigos de superfícies de agora, seria igual à pré-história; existe uma diferença grande entre imagens resultantes da tecnologia e as produzidas, por exemplo, durante a idade média. (...) a diferença essencial entre um programa de TV e uma tapeçaria não está no fato de que (como se poderia acreditar) um se move e fala enquanto a outra permanece muda, mas de que o programa de TV é resultado de teorias científicas (textos) (FLUSSER, 2007: 145). Logo, demonstra-se que, diferentemente de antes, após um momento, os textos não só explicam as imagens como também as produz. A relação imagem e palavra, superfície e linha fica mais estreita, e por mais que tenhamos a mesma relação com as imagens, o que nos leva a produzir cada uma delas possui caráter diferente.


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Linha e superfície

É fato que conseguimos abarcar muito do que uma imagem tem a nos mostrar com um simples olhar; após esse primeiro lance de vista, podemos analisá-la, percebendo seus detalhes, o que a compõe; assim, conseguimos arrancar “coisas” da cena, ordená-las, transformando-a em uma narrativa. As plaquetas mesopotâmicas eram formadas por uma sequência de códigos em linha que seguiam este raciocínio “à invenção da escrita deve-se, em primeiro lugar, não a invenção de novos símbolos, mas o desenrolar da imagem em linha” (ZEILEN apud FLUSSER, 2005: 132). Como exemplificado anteriormente, essa relação não ficou apenas na sequência fato, imagem e texto. Com o surgimento da televisão e do cinema, a estrutura do pensamento se modificou. Para entender essa mudança devemos refletir sobre os diferentes modos de ler superfícies e linhas. Para Flusser (2007), a questão é de liberdade; enquanto as linhas nos impõe um processo, da esquerda para direita (no caso da leitura ocidental) de cima para baixo, a imagem nos permite um olhar livre. Mas não se trata só do modo de ler: para aprender na totalidade o que estamos lendo, precisamos seguir as linhas até o final, enquanto a imagem “convida a entrarmos imediatamente e não cobra esse preço”(BAITELLO, 2000: 4). Como já foi relatado, durante um período o pensamento ocidental se expressou muito mais por meio das linhas escritas do que de superfícies (FLUSSER, 2007: 110), representando o mundo por meio de símbolos ordenados em sequência e que geram um significado; o que o autor caracteriza como um estar no

mundo “histórico”, já que história parte de um ponto e pretende chegar a algum lugar. Em paralelo a esses escritos existem as superfícies, que se diferem por representar o mundo por meio de imagens estáticas uma maneira “a-histórica” de estar no mundo. Para o autor a história começa com a invenção da escrita, não pela razão que esta consegue reconstituir o passado, mas pela razão que após ela o mundo é percebido como um processo, “historicamente”. E a diferença entre a pré história e a história, não é o fato de termos documentos escritos que nos permitam acompanhá-la, mas sim o fato de que durante a história há homens letrados que “experimentam, entendem e avaliam o mundo como um “acontecimento”, enquanto na pré-história esse tipo de atitude existencial não era possível.” (FLUSSER, 2007: 140). Após a invenção do cinema e da televisão, o pensamento começou a ser articulado de forma diferente, pois a partir de então passaram a coexistir as imagens em movimento. O autor classifica essa situação como um estar no mundo “pós-histórico”, uma vez que esses novos canais incorporam as linhas escritas na tela “elevando a leitura histórica linear para o nível da superfície” (FLUSSER, 2007: 110) já que nesses modelos nos deparamos com códigos de superfícies, no entanto, nossa leitura continua sendo história, porque precisamos chegar ao final para ter um entendimento total; filmes são um exemplo disso. Porém, o avanço das tecnologias, produzimos textos mais objetivos e claros (pobres) e imagens cada vez mais perfeitas (ricas). Os textos não conseguem mais se adequar a experiência com os fatos, e as ima-

gens suprem essa necessidade já que substituem essa vivência, e nós perdemos o “senso de “realidade”, nos tornando “alienados”. Com a produção de textos objetivos e imagens perfeitas “o homem estava perdendo contato à medida que retrocedia para observá-los” (FLUSSER, 2007: 121). Fazendo um paralelo com um desfiar de um tecido, o autor explica que o desenrolar da imagem em linhas, tem o poder de criticá-la. Assim, a escrita como um código é uma análise da superfície em linha, tornando explícito o que estava implícito na imagem. Acontece que se os textos se submeterem à criação de imagens, a história se tornará um “pré-texto” para criação dessas. Em conclusão, o autor afirma que “se a arte da escrita cair no esquecimento, ou se tornasse subordinada a criação de imagens, a história, no sentido estrito do termo, não existiria mais” (FLUSSER, 2007: 140).

As imagens suprem essa necessidade já que substituem essa vivência, e nós perdemos o “senso de realidade”, nos tornando “alienados”. As diferenças históricas nesse contexto podem ser colocadas da seguinte forma segundo o autor: as imagens produzidas na pré-história representam o mundo, as imagens pós históricas representam textos. Diante disso o autor conclui: Portanto, os mitos pré-históricos significam situações “reais” e os mitos pós-históricos significarão prescrições textuais; a mágica pré-histórica visa proporcionar o mundo, enquanto a pós-histórica visa manipular pessoas (FLUSSER, 2007: 146). Porém, com a junção criativa de texto e imagem, ele recuperará esse senso, recorrendo também, a imaginação. Esse novo tipo de pensamento nos proporciona uma redescoberta dos fatos com os quais estávamos perdendo contato. Esse futuro pós-histórico, para o autor, resultará em uma nova civilização, já que a forma de articular o pensamento foi modificada. Se antes passávamos do fato para a imagem e depois para sua explicação, na era pós-histórica poderemos do conceito retornar à imagem, como um sistema de retroalimentação. Flusser (2007) analisa que “mediante a imaginação ele começa a objetivar seus conceitos e, con-

sequentemente, a libertar-se deles” (FLUSSER, 2007: 118). Ele explica: (...) a ciência e outras articulações do pensamento linear, tais como a poesia, a literatura e a música, estão cada vez mais se apropriando de recursos do imagético pensamento em superfície, e assim o fazem por conta do avanço tecnológico(...) o pensamento imagético está se tornando capaz de pensar conceitos em forma de modelos de superfície (FLUSSER, 2007:118). Quando o autor cita a ciência do pensamento e exemplifica por meio da música, se refere exatamente ao que estamos tentando expor. Quando essas articulações que são basicamente lineares, recorrem a modelos de superfície em uma junção criativa, fazem com que o público expectador por meio da imaginação, estabeleça uma redescoberta dos fatos. A partir dessas conclusões, podemos estabelecer uma relação com a obra do artista Ney Matogrosso, já que o mesmo, em seu trabalho, utiliza recursos imagéticos para dar forma a seus conceitos. O mesmo realiza performances, onde utiliza seu corpo para formar imagens em seus espetáculos musicais. Em entrevista, Ney afirma que sua intenção era criar cenas que provocassem a imaginação do espectador; o que estabelece uma relação entre o conceito abordado por Flusser e às intenções de Ney Matogrosso, já que por meio desse modelo de pensamento o último elaborava seus figurinos, criava conceitos para posteriormente transformá-los em imagem. De acordo com o próprio: “vou anotando cenas da minha cabeça e a coisa acontece no palco” (informação verbal ). As imagens de Ney aparecem para se opor a outras imagens que causavam exatamente o que a perda do senso de realidade causa: a alienação. Flusser (2007) acredita que se o pensamento imagético for bem sucedido ao incorporar o conceitual, levará a novos tipos de comunicação, em que a arte irá propor modelos e a ciência, antes só discursiva, recorrerá a modelos imagéticos. A partir disso, “um novo senso de realidade se pronunciará” (FLUSSER, 2007: 125). Deverão surgir, assim, novos tipos de mídia, o que tornará possível que se descubram os fatos novamente, abrindo novos campos para um novo tipo de pensamento, com sua própria lógica e seus próprios tipos de símbolos codificados (FLUSSER, 2007: 119). Então, se retornarmos um pouco na discussão vamos entender que o pensamento pode ser articulado de duas maneiras: conceitual e imagética. E que esses podem se unir. No entanto, o pensamento conceitual pode ser submetido a criação de imagens, ou, esse pensamento pode ser incorporado em junção criativa, que faz o homem redescobrir o fato; o que nos faz concluir que: “a relação do homem com o fato depende da estrutura do médium” (FLUSSER, 2007: 114).


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O médium

Mídia, médium: “o que está no meio, intermediário”, de acordo com o dicionário Houaiss (2004). Para dar início ao raciocínio teremos que resgatar pensamentos já desenvolvidos anteriormente. Já abordamos a questão das linhas sobreporem as superfícies. A discussão a seguir é a relação com o fato e, se esse mesmo existe, depende da estrutura do médium, como falamos a pouco. Aprofundaremos também a questão de como o mundo da ficção se relaciona com o mundo dos fatos. Para retomar o raciocínio iremos novamente utilizar o exemplo da pedra. A fotografia de uma pedra, e a palavra “pedra” são signos, ou seja, representam alguma coisa pertencente ao mundo dos fatos. Os conceitos significam ordenando ponto a ponto os símbolos, enquanto uma superfície significa de maneira bidimensional. Os textos “concebem” os fatos que significam, as imagens “imaginam” os fatos que significam, “se é que elas significam mesmo fatos e não símbolos vazios.” (FLUSSER, 2007: 113). Ainda podemos distinguir isso com esse exemplo: olhar a imagem de uma pedra ou ler a palavra “pedra” e andar até ela demonstra que as medições entre mim e a pedra significaram algo no mundo dos fatos. Mas o mesmo não acontece com muitas coisas que passamos a “saber” pela mídia, como aponta Flusser (2007): que relações temos com uma partícula alfa ou os seios da senhorita Bardot? O fato é que não há experiências imediatas com essas coisas, e nem faz sentido perguntar em que medida a explicação ou a imagem são adequadas já que essas coisas determinam as nossas vidas, e assim, passam a serem reais, “não importa se a ‘pedra’ ou então a partícula alfa ou os seios da senhorita Bardot estão realmente em algum lugar lá fora.” (FLUSSER, 2007: 112). Muitas coisas que “sabemos” são produzidas pela mídia, como discursos de políticos ou casamento de celebridades, “saber é aprender a ler a mídia nesses casos (...) e a mídia nos oferece cada vez mais coisas que não podemos experimentar” (FLUSSER, 2007: 112). Muitos desses casos acontecem na televisão, que muito se assemelha com os demais meios na era da tecnologia e, o que é transmitido por eles. Por isso, utilizaremos a TV como exemplo de médium para entender as imagens transportadas na atualidade.

Jean Baudrillard (1981) refere-se a esta questão com um exemplo que ocorreu na TV americana em 1971, chamada TV verdade, que relatava o cotidiano de uma típica e tradicional família americana, os Loud. Foram sete meses de filmagem ininterrupta, sem cenário, só o dia a dia da família e seus dramas. Segundo Baudrillard (1981), o triunfo do realizador era dizer que os então personagens ali viveram como se não houvessem câmeras; o que não seria nem verdade nem mentira, seria utópico. Pode-se observar duas situações; a primeira: como o médium consegue reproduzir algo que se trata da realidade sem sua interferência? Percebe-se ai uma tentativa de apresentar o real por meio da imagem, a imagem se mostrando como a própria realidade, fazendo crer que ela não é apenas uma imagem. As imagens perfeitas produzidas pela tecnologia foram abordadas também por Baudrillard (1981). Ele afirma que a relação rigorosa entre o fato e a imagem permite a perda do senso de realidade, agravada pelo excesso de imagens e informação, “mais real que o real, é assim que se anula o real(...) em um universo que existe cada vez mais informação e cada vez menos sentido.” (BAUDRILLARD, 1981: 105). Se o médium constitui um acontecimento formulado pelo próprio espectador, passa então ele a ser aparentemente o constituidor da informação, descaracterizando a sua estrutura. A partir de agora torna-se impossível fazer a famosa pergunta: “De onde fala?” – “De onde o sabe?” “De onde recebe o poder?” sem ouvir imediatamente responder: “Mas é de vocês, é a partir de vocês que eu falo ” - subentende-se, são vocês que falam, são vocês que sabem, são de vocês o poder (BAUDRILLARD, 1981: 44). Flusser (2005) aponta a situação analisando que o homem passa a ser programado por essas imagens, passando a ser produtor e receptor de opiniões de determinado tipo, aniquilando toda crítica por sua parte, pela aceleração ou inflação de imagens. Desta forma, as imagens que são transportados por esse médium tem como função a descrição de comportamentos: “transformar o receptor em um objeto” (FLUSSER, 2005: 158). Deixamos de assistir e passamos a ser assistidos.

Essas reflexões não correspondem às técnicas desse médium e dos novos meios, mas sim às intenções que estão por trás desse transportar de imagens. Todas essas consequências vem de uma sociedade que vive em meio a essa aceleração de imagens, na qual o comportamento dos indivíduos é resultado do que é transportado. Guy Debord (1997) classifica essa situação como viver em meio a um show de imagens um espetáculo que determina o comportamento do homem. “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” (DEBORD, 1997: 14). Show de imagens é o que também atinge nossos olhos em uma apresentação de Ney Matogrosso. Para iniciarmos a análise das imagens projetadas pelo artista, discutiremos primeiramente a estrutura que transporta suas imagens e, como o recorte do presente trabalho se refere a seu figurino, podemos afirmar que o artista só alcança o resultado esperado em suas imagens tornando seu próprio corpo o médium da comunicação. Estabelecendo uma relação com o que abordamos até aqui, podemos afirmar que o homem sempre viveu de imagens e pelas imagens, sendo o seu corpo afetado diretamente por elas. E não poderia ser de outra maneira: o próprio corpo é uma imagem que tem a capacidade de modificar as imagens que estão a seu redor, da mesma maneira que as imagens exteriores exercem influência sobre a imagem do corpo.” (BERGSON apud NOVAES, 2005: 11). Ney provocava com imagens projetadas por seu corpo que foram capazes de modificar as imagens que determinava a relação das pessoas, principalmente devido ao contexto do país no início de sua carreira como cantor. Em tempos de repressão, o artista se expressava no palco criando a imagem de um homem agressivo aquela situação e livre nas suas atitudes; formava com seu corpo imagens diferentes, opostas a situação, mostrando o que não é, e como deveria ser; “o corpo vem antes da imagem (e da consciência): quem destrói a imagem perdeu o medo.” (KAMPER, 2002: 11). O movimento da tropicália que aconteceu na mesmo período (1968-1969), porém, alguns anos antes

Por meio do seu corpo, Ney conseguiu provocar a imagem de um homem sexualmente livre, transgressor de desejos libertos; com atitudes naturais e espontâneas e movimentos corporais animalescos que influenciam gerações até hoje.

de Ney estrear como cantor, possuía a característica de trazer o corpo como objeto de transporte e formador de imagens; Caetano Veloso e Gilberto Gil são nomes que participaram diretamente deste processo, contribuindo com composições musicais que Ney canta até hoje, muitas dessa época. (...) contribuindo para o impacto das construções paródico-alegóricas, essenciais à constituição das imagens tropicalistas. Com eles, o tropicalismo reentronizava o corpo na canção, remetendo-a ao reencontro com a dimensão ritual da música, exaltando o que de afeto nela existe. Corpo, voz, roupa, letra, dança e música tornaram-se códigos, assimilados na canção tropicalista, cuja introdução foi tão eficaz no Brasil que se tornou uma matriz de criação para os compositores que surgiram a partir dessa época. Caetano e Gil, principalmente o primeiro, não abandonaram esta orientação, fazendo do corpo, no palco e no cotidiano, uma espécie de escultura viva.” (FAVARETTO, 2002: 35) Ney sabia exatamente como utilizar seu corpo como forma de transportar suas imagens, sabia exatamente o que queria, e como conseguiria agregar a suas imagens com essa estrutura; transformando assim, seu corpo na própria mensagem, “médium is message.” (BAUDRILLARD, 1981: 44). Quando indagado sobre seu jeito “desengonçado” de se mover no palco, o artista afirma “Era todo quebrado, mas tinha um desenho.” (SANCHES, 2012). Podemos afirmar que Ney foi o mediador de sua comunicação, assim como os diversos intelectuais da época foram os mediadores centrais da cultura, porém o que estamos tentando defender é que o artista utilizava seu corpo para transmitir tais mensagens. Por meio deste, o artista conseguiu provocar a imagem de um homem sexualmente livre, transgressor de desejos libertos; com atitudes naturais e espontâneas e movimentos corporais animalescos que influenciam gerações até hoje. “Defendo a liberdade de expressão(...) fui a primeira pessoa que se expos publicamente defendendo o direito de existir(...) para isso, sempre usei meu corpo com muita intensidade” afirma Ney Matogrosso (RODA VIVA, 2011).


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2. Ney e a liberdade de imaginar Sou um homem, sou um bicho, sou uma mulher (...) Sou seu amor profundo, sou o seu lugar no mundo Sou o novo, sou o antigo, sou o que não tem tempo O que sempre esteve vivo, mas nem sempre atento Sou o certo, sou o errado, sou o que divide O que tem duas partes, na verdade existe (...) Mal necessário Mauro Kwitko (1978)


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Cena e cenário

Em 1964 instalou-se no Brasil o regime militar. O movimento que teve início em março daquele ano, alegava ter o intuito de livrar o país da corrupção e do comunismo, porém o novo regime começou a mudar as instituições do país por meio de decretos chamados de atos institucionais, mais conhecidos como AI. Os militares justificavam esses atos como decorrência do exercício de poder. Em abril de do mesmo ano foi eleito um novo presidente da república por votação indireta do Congresso Nacional: o general Humberto castelo Branco (FAUSTO, 1996). Os primeiros atos quase não deixavam claro que se tratava de um regime totalitário, mas esses violavam princípios básicos da democracia. O primeiro ato dava autoridade ao presidente da república a suspender os direitos políticos dos cidadãos, as imunidades parlamentares e autorizava o comando a cassar mandatos a níveis federais. Até então o congresso funcionava, exceto por alguns períodos em que o mantinham fechado. Dada essa situação, Fausto (1996) afirma, o regime perseguia seus adversários, quem se declarasse contra suas ações envolvendo prisões e torturas. Mas o sistema ainda não era completamente fechado, a imprensa se mantinha relativamente livre. O governo perseguia também quem se declarasse de esquerda, vários políticos perderam seus cargos e outros foram até exilados. Faculdades como a Universidade de Brasília ficaram sobre supervisão e foram criados órgãos para supervisionar e controlar o cidadão, como o SNI, um serviço nacional de informações que ajudava o governo a controlar tais atividades. Em 1965 foi baixado o segundo ato institucional, nele foram reforçados ainda mais os poderes do presidente da república, além de tornar extintos os partidos políticos existentes, com a justificativa que o multipartidarismo era um dos fatores responsáveis pelas crises políticas. Desse modo, tentou-se extinguir diferentes correntes de opinião. Um novo presidente foi eleito, o marechal Arthur da Costa e Silva, que enfrentou um país já com grandes setores de oposição como o movimento estudantil universitário que elaborava grandes protestos e greves.

Já o setor político de esquerda, começou a enfrentar o governo organizando guerrilhas urbanas, empunhando armas, realizando sequestros e atos terroristas. O governo então radicalizou com medidas de prevenção aos movimentos de oposição. Segundo o autor, em dezembro de 1968 houve a promulgação do ato institucional de número cinco (AI-5). Este fechou completamente o congresso, acabou com o sistema político no Brasil e implementou de vez a ditadura no país. Este ato restringia drasticamente a cidadania, pois atribuía poderes ao governo que permitiam a repressão policial-militar. Os anos seguintes foram conhecidos como os mais repressores da ditadura, repletos de exílios, prisões, torturas e desaparecimentos (FAUSTO, 1996). Com a censura, todas as formas de manifestações artísticas e culturais sofreram restrições. Porém, ao mesmo tempo o governo cria entidades para gerir uma política de cultura. “Surgem várias entidades como Conselho Federal de Cultura, Instituto nacional do Cinema, EMBRAFILME, FUNARTE, Pró-memória, e etc.” (ORTIZ, 1994: 114). Além de agir como agentes regulamentadores da produção cultural, disseminavam uma ideologia de direita. Os meios de comunicação de massa tem grande capacidade de difundir informação e de manipular pessoas, e o estado militar naquele momento se aproveitou ao máximo desse recurso, como defende o autor: Grande crescimento da produção cultural brasileira, se consolidam os grandes conglomerados que controlam os meios de comunicação e da cultura popular de massa (ORTIZ, 1994: 121). Nesse cenário político, Ney iniciou a sua carreira como cantor e foi estimulado a criar suas cenas no palco. Ney Matogrosso não aceita o rótulo apenas de cantor; “sou artista” ele afirma em entrevista ao programa Roda Viva (2011). Antes de cantar profissionalmente acreditava que seria reconhecido por suas atuações, queria ser ator, sua voz até então o ajudaria na sua carreira cênica. Chegou a ensaiar uma peça de teatro em Brasília no

ano de 1964, “Invasão” um texto de Dias Gomes, mas foi censurado pelos militares dias antes de estrear, assim como qualquer conteúdo de Dias Gomes, que foi totalmente banido, como Ney relatou no programa Roda Viva (2011). Esse foi o primeiro contato que Ney teve com a ditadura, a censura e seu trabalho. Próximo do ano de 1973, uma amiga próxima o apresentou ao músico João Ricardo, que estava a procura de um cantor de voz aguda para se juntar a uma banda de rock. Foi assim que Ney chegou a banda Secos e Molhados, naquele momento composta por João Ricardo, Ney Matogrosso e Gérson Conrad, conforme o site oficial de Ney Matogrosso. Diferentemente do que Ney acreditava, foi sua atitude de ator que o ajudou e o diferenciou na sua vida como cantor. Com figurinos extravagantes, atitudes irreverentes no palco e letras irônicas que criticavam a situação política da época, Secos e Molhados em menos de um ano ganhou notoriedade nacional. Além das letras e das atitudes cênicas com gestos femininos, o figurino e a maquiagem formavam uma imagem nunca antes vista no cenário artístico, principalmente tratando-se de uma banda de rock. Ney utilizava uma maquiagem forte que cobria seu rosto inteiro com uma tinta branca e a região dos olhos sob uma tinta escura, o que causava estranheza no espectador, muitas vezes assemelhando a sua figura muito mais a um animal do que a um homem. Gerou polêmica com suas atitudes muitas vezes agressivas, como o ato colocar as mãos em suas genitálias ou fazer caretas com a língua de fora ao final de cada música. Estávamos em 1973, auge de uma ditadura militar nojentérrima, um povo careta, um país machista, eu chegava agredindo para me defender(...) eu usava minha nudez como agressão(...) se não fosse agressivo, seriam comigo (entrevista Roda Viva, 2011) . Ney procura agir em cena com total liberdade, assim como acreditava que deveriam ser todas as pessoas: livres para agir e serem quem quisessem ser. Demorou para o “regime” entender aquilo como algo ofensivo ou como uma crítica ao sistema. Ney não possuía um discurso claro e nítido contra o governo repressor, ele atacava com imagens, provocava o imaginário das pessoas por meio de sua arte, do seu corpo; Ney não era militante, poderíamos dizer que praticava uma política de costume, agia como acreditava que todos deveriam agir e ser. Também no Roda Viva (2011), relatou: “nunca falei de política, eles estavam preparados para qualquer pessoa que falasse contra o governo e eu vim desbundado.” As imagens que Ney formava em cena, além de serem provocadoras, e representarem uma transgressão em atitudes, provocava a imaginação das pessoas, que consequentemente refletiam e criticavam o que estavam vendo. Esse mesmo pensamento o artista queria que levassem para as imagens que estavam sendo formadas pelo regime, trazer a razão para a crítica das imagens, como ele próprio relatou: “queria mostrar que poderiam aprisionar nossas atitudes mas nunca nossos pensamentos” (informação verbal ). Flusser (2007) relata que o propósito da razão é criticar a imaginação, assim como o propósito de escrever é criticar as imagens. Assim, criticar a imaginação é atividade fundamental em um regime totalitário.

Em seu show, Ney projeta a imaginação que Kamper (2002) defende em seu texto. O autor reflete sobre as ilusões que as imagens carregam consigo, e analisa que contra o imaginário, no “repouso” da razão que se forma a ilusão, apenas a imaginação. (...) precisamente uma das figuras, das formas, dos rostos que não pertencem ao homem singular(...) a invenção de figuras que fazem o espetáculo que dura toda a vida no palco da vida. O cenário tem valor cognitivo. Não é um outro domínio do imaginário, mas o princípio de uma relação crítica com as imagens que não pode ser instaurada de nenhum outro modo (KAMPER, 2002: 9). Francis Wolff (2005), quando aborda sobre os defeitos da imagem, aponta o seu poder de afirmação, de mostrar aquilo que estamos vendo, só conhecendo o mundo da apresentação, ignorando a negação. Segundo Wolff (2005) a única maneira de provar o contrário, é opor essa imagem a outra, mostrando também como pode ser. Outra possibilidade, exemplificada pelo autor, é utilizar o texto como critica a imagem, como fez Magritte ao escrever junto à imagem de um cachimbo “isto não é um cachimbo”. Essa afirmação com o texto, diz o que a imagem não pode dizer, que não se trata de um cachimbo, e sim de uma imagem, uma criação. Eis ai o poder de afirmação da imagem “por isso que todos os sistemas políticos totalitários, todos os pensamentos monolíticos repousam e se apoiam em imagens” (WOLFF, 2005: 27). Esse é o poder que a imagem possui quando não vemos mais a imagem, e vemos apenas a própria coisa representada. Esta ilusão caracterizada por Wolff (2005), é descrita por Flusser (2007) da seguinte maneira: Existe nas imagens, como em todas as mediações, uma curiosa e inerente dialética. O propósito das imagens é dar significado ao mundo, mas elas podem se tornar opacas para ele, encobri-lo e até mesmo substituí-lo. Podem construir um universo imaginário que não mais faz mediação entre o homem e o mundo, mas ao contrário, aprisiona o homem (FLUSSER, 2007: 143). Assim sendo, o propósito da escrita é criticar as imagens, e a tarefa da razão é criticar a imaginação; Caso isso não ocorra, estamos fadados a vermos modelos e não imagens, atribuindo poder a eles. O que Flusser (2007) classifica como imagem opaca, Wolff (2005) classifica de imagem transparente, sendo aquela que atravessamos e acreditamos se tratar da realidade, que nos remete as mais arcaicas ilusões divinas e mágicas. A banda de rock Secos e Molhados contou com a sua participação por quase dois anos; Ney sai da banda na semana de lançamento do segundo LP. Após o rompimento, Ney se lança em carreira solo. Lembrando que apesar das canções de Secos e Molhados possuírem letras de cunho literário, eram uma banda essencialmente de rock. Agora em carreira solo, Ney não abandona seus traços iniciais, principalmente a sua grande força imagética no palco. O artista continua com o mesmo discurso, agregando clássicos da MPB ao seu repertório, que o faz ser considerado um dos maiores artistas do país. Vale lembrar que o regime militar durou 21 anos (1964-1985), mas o processo de redemocratização só estaria completo em 1988 com a promulgação da nova constituição (FAUSTO, 1996). Já Ney, continua nos palcos até hoje.


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A máscara

A imagem pode assumir três funções se analisarmos o seu significado: a de presença mágica, representação artística e a simulação técnica (KAMPER, 2002). A presença mágica podemos comparar com uma passagem da bíblia, quando em João, lemos a seguinte passagem “Jesus lhe disse: Aquele que me viu viu ao pai” (João, XIV, 8-9). O Deus invisível, torna-se visível por meio de uma figura humana, passando a crer, que quem está presente ali é o próprio Deus, Jesus, assume dois papeis: assim como a imagem, a do filho e a do próprio Deus. Quando abordamos a questão da imagem assumir dois papéis, estamos falando exatamente da situação da imagem ser imagem e ao mesmo tempo tornar-se ela própria o que representa, fazendo-nos esquecer que é uma imagem. A base do cristianismo é imagética, já que segundo ela, somos a imagem e semelhança de cristo, diferentemente de outras religiões, como o judaísmo e islamismo, em que seu Deus é transcendente, inteiramente diferente dos homens e dos vivos. (WOLFF, 2005). Segundo o autor, daí surge toda a batalha contra as imagens, daqueles que as aceitam e aqueles que as destroem como profanas. O próprio cristianismo já sofreu algumas separações por conta das questões dos ícones. Platão sempre a rejeitou, separou nitidamente ideia de imagem, acrescentou suspeita a fantasia, atribuindo a ela a fisionomia de ilusão. (KAMPER, 2002). Esse paralelo entre as imagens e a religião foi feito porque durante um momento da história, parte das imagens sagradas eram ícones ou ídolos. Olhamos a imagem e vimos o próprio Deus, a própria virgem, o próprio santo. Em contrapartida uma época em que essas imagens deixaram de ser “transparentes” e passaram se tornar “opacas” (WOLLF, 2005). A classificação de imagem transparente e imagem opaca é utilizada por Francis Wolff (2005) quando aborda a questão da ilusão. Segundo o autor, a imagem transparente é aquela pela qual atravessamos, não a percebemos como imagem e acreditamos que se trata da realidade. Para o autor, esse é o maior poder da imagem: o de não aparecer. Já a imagem é opaca quando “ao mesmo tempo que mostra alguma coisa, mostra-se a si mesma, como representante.” (WOLFF, 2005: 39). Lá pelo século XIV acontece o nascimento da arte como técnica, e as imagens nesse período se apresentam como opacas. Podemos descrever esse acontecimento porque a partir desse momento olhamos para imagem e não só vemos a presença do que está sendo representado como também o representante “olho um retrato de Descartes feito por Franz Hals. Digo: É Descartes(...) Mas digo também: É Franz Hals.” (WOLFF, 2005: 39). A imagem possibilita que eu reconheça Descartes, porém reconheço também o representante: Franz Hals, pelo seu estilo, sua personalidade, seu caráter, sua época. Houve um momento em que os artistas marcavam a pintura com sua maneira, seu estilo e até mesmo os ícones religiosos passaram a se tornar opacos. Outro ponto a ser levantado é o ponto de vista do espectador, agora fixo, não mais nas imagens de cristo ou do santo; as linhas de fuga convergem não mais para o espectador, “o verdadeiro olhar passa a ser o do homem sobre a imagem, não mais a imagem sobre o homem” (WOLFF, 2005: 41). Então, a representação artística, torna-se um bom exemplo de produção de imagens, como afirma o autor: Assim, houve durante alguns séculos, “a época da arte”, uma enorme produção de “boas imagens”, quer dizer, de imagens transparentes, mas em parte opacas,

afirmando-se como imagens e mostrando que são representações singulares e únicas, representando, por definição (como toda imagem), aquilo que é único e singular, mas sobretudo feitas pela mão do homem singular, único” (WOLFF, 2005: 41).

Com o nascimento da arte abstrata, esta abandona o representativo, que é substituído com o avanço da tecnologia; a fotografia passa então a representar com facilidade e exatidão a realidade, o que classificamos de simulação técnica: “Simular é fingir ter o que não se tem” (BAUDRILLARD, 1981: 9). Com o desenvolvimento das técnicas automáticas de reprodução, como a fotografia, o cinema e a televisão em cores, nos encontramos na mesma situação que antes, quando as imagens eram feitas de maneira estereotipada, com o único intuito de representar, retornando as mesmas consequências: a transparência e a ilusão fundamental de não representar (WOLFF, 2005). Só que agora é inevitavelmente crescente a circulação dessas imagens digitais, até mesmo porque são produzidas em grande escala e passamos a recebê-las em nossas casas diariamente. Essas imagens que parecem ser produto direto da realidade, nos enganam novamente, quando passamos a crer que essas são feitas pela coisa e não da coisa, porém “não são mais sagradas, são profanas” (WOLFF, 2005: 43). A partir da segunda metade do século XX as inovações técnicas e comportamentais se intensificam, tornando o conceito de sociedade do espetáculo lançado por Guy Debord (1997) válido ainda hoje, quando a cultura da televisão e da publicidade é substituída pela internet, o que a autora Maria Rita Kehl (2005) caracteriza como hipermodernidade. Segundo a autora, a sociedade pós-moderna não superou o conceito de sociedade de massa, ainda se mantém, só que na atualidade, essa não só ocupa os espaços públicos movida a grandes comícios de políticos ou líderes religiosos, mobilizamse também por grandes shows, comandado por DJs ou artistas, patrocinados por grandes marcas publicitárias. Essa observação reflete sobre uma sociedade que não mais seguem ordens de um líder totalitário, mas o fascínio das marcas as persegue com igual fanatismo. Os grandes meios de comunicação, como a televisão comercial, utilizam-se desta ferramenta para se dirigirem ao maior número possível de pessoas e “constituem uma massa no momento da recepção das mensagens(...) imagens enunciadas por ninguém e dirigidas a todos” (KEHL, 2005: 236). A velocidade com que essas imagens são veiculadas gera um sintoma que não reprime o pensamento, mas o torna dispensável. Assim, passamos a ter uma vida mediada por imagens, imagens transparentes potencializadas, que nos fazem perder o referencial, onde a vida deveria se situar além do espetáculo, mas na verdade o espetáculo abarca toda a superfície da vida. Passamos a acreditar que essa vivência é fundamento do mundo.

o caráter fundamentalmente tautológico do espetáculo decorre do simples fato de seus meios serem, ao mesmo tempo, seu fim. É o sol que nunca se põe no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo e está indefinidamente impregnado de sua própria glória (DEBORD apud KEHL, 2005: 240).

Segundo a autora, esse acontecimento nos inclui em um processo de alienação; Freud aborda sobre alienação à própria condição humana, quando o sujeito nunca está de posse das condições de sua existência, se expandindo ao laço social e procurando amparo nas imagens, nos produtos. Esse desamparo, leva o ser a inventar seus mitos, de modo que sejam dotadas de sentido as novas formas de ordem social. Em alguns povos indígenas a criação de elementos gráficos surgem como motivações simbólicas, uma convenção, para que em seus rituais sagrados os homens não se percam entre o sobrenatural e a vida humana, entre o mágico e o real. Uma das formas que esses povos utilizam esse artifício é protegendo seus rostos com máscaras que, segundo a análise de professora Sylvia Caiuby sobre a aldeia Wauja no alto do Xingu, “domesticam os aspectos monstruosos dos seres sobrenaturais, o que permite que eles passem a ter com esses seres relações menos perigosas” (CAIUBY 2008: 466). Outra abordagem sobre a utilização de máscara, é feita por Germana Pereira (2008), quando escreve sobre o conceito de simulacro segundo Baudrillard. De acordo com o contexto que já abordamos aqui, no qual a sociedade é mediada por imagens, a autora analisa que as próprias pessoas são simulacros, atores sociais e, utilizam máscaras, pois vivem em um constante representar. Vivem em um contexto de representações de representações, onde não conseguem distinguir até que ponto é simulação ou realidade: “Desvela a fantasmagoria, que sustenta a verdade, mostrando que a máscara é a condição de existência de todas as coisas e que a realidade é vivida como ficção” (PEREIRA apud OLIVEIRA, 2008: 42). Elaborando alguns paralelos a performance cênica realizada por Ney, destaca-se o uso de uma máscara branca em que o entorno dos olhos se distinguia por ser mais escuro. Ney afirma que pelo contexto político da época a utilizava para manter em sigilo sua identidade e preservar sua privacidade, já que naquele período haviam rumores de que artista não poderia andar na rua “não queria perder esse direito”, relata em entrevista a TVIG (2011). Além de possuir uma finalidade específica, a máscara utilizada pelo artista o ajuda a compor seus mitos, pois no palco Ney vivia em constante representação, o próprio diz isso em entrevista a TVIG (2011) quando afirma “sempre me coloquei nos palcos como ator, sempre entrei um personagem”. Outra contribuição é para a composição do imaginário, a construção de um ser ou de figura singular, para que o homem nunca se perca em meio a suas imagens, sabendo identificar o real da ficção, podendo assim, ter uma relação sem perigo com a imagem. Assim, a máscara transforma a imagem em um exemplo de boa imagem, posto que essa se apresenta como tal, evitando que o homem se perca em meio a realidade e a ficção, assim como faziam os índios no alto do Xingu. Contribuindo na formação de imagens que o artista formava em contestação aquelas a sua volta, que nos fazem crer que a realidade tem o poder da sua própria representação, atribuindo a imagem o poder de não se apresentar como tal. Em resumo, autor conclui Menos imagens “transparentes”, que pretendem mostrar o real escondendo-se! Mais imagens “opacas” por meio das quais possamos conhecer uma realidade única e reconhecer uma imagem única. (WOLFF, 2005: 45).


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O passso para trás

mesmo esta perdido. O homem que esta perdido tem a capacidade de imaginar para poder se encontrar, o que tem a ver com liberdade, de acordo com o autor. Constata também que o sentimento de desorientação pode não pertencer a todos, já que na maioria dos casos possuem os “bem integrados” ou “quadrados”. Já os que se sentem perdidos, são movidos pela angustia por estarem em um beco sem saída, o que se torna insuportável, e são esses sentimentos que nos movem para darmos o passo para trás de nós mesmos.

Para discutir a relação do homem com a imagem e sua produção é indispensável que se discuta a estrutura do imaginário. É algo próprio da capacidade humana e, por conta dessa capacidade nos tornamos seres singulares produzindo imagens, como já afirmamos no início do trabalho. Para entender essa estrutura, vamos considerar o gesto inaugural da imaginação como fez Flusser (2007). Para compreender o gesto dos primeiros configuradores de imagens, podemos afirmar o seguinte: “o homem se afastou de um cavalo, olhou para ele e depois fixou essa visão fugida na parede da caverna, exatamente para que outros pudessem reconhecê-la.” (FLUSSER, 2007: 162), sendo o propósito desse gesto o de usar a visão fixada como modelo para uma ação posterior. Então, imaginação passa a ser a atividade de distanciamento, de recuo do mundo dos objetos para um mundo subjetivo próprio. Flusser (2007) afirma ainda que “é singular a capacidade de ex-sistir em vez de in-sistir” concluindo que esse gesto começa com um movimento de afastamento de si, onde abre-se um abismo entre o homem e o mundo objetivo, porém, permite ao homem por meio da distancia, um olhar amplo sobre o mundo, e assim, traçar planos. O autor exemplifica:

a produção de imagem, sem que se faça uma imagem dele, tornando a imaginação imprescindível para compreendermos o mundo e nossas ações. O que não torna oportuno que se proíba a criação de imagens, assim como Franklin (2005) discorre em seu artigo, Flusser (2007) afirma que essas imagens devem ser submetidas a crítica. A critica as imagens, sendo a escrita, e a imaginação, a razão. Mostrando a importância da relação entre imagem e texto, e as mesmas se apresentando como tal, onde “o pensamento linear e racional foram inventados para salvar a espécie humana das ideologias, da imaginação alucinatória.” (FLUSSER, 2007: 143), casos já retratados no decorrer do trabalho. Quando a razão traí a si, servindo a imaginação, nos perdemos em meio as imagens; um regime totalitário como o nazismo torna-se o melhor exemplo dessa situação, segundo Flusser (2007). E nesses contextos, o autor afirma que quanto melhores os ícones contra os quais a imaginação avança, mais forte se torna a razão. Justificando as imagens formadas por Ney projetava em reação as imagens pelas quais o homem possuía um comportamento mágico; trazendo a razão para critica -las. Kamper (2002) discorre sobre em seu artigo afirmando:

Agora que não esbarramos mais numa árvore após a outra, podemos ver a floresta. E é exatamente esse o propósito desse gesto de abstração, ou seja, deduzir as circunstâncias, fixá-las e utilizá-las como modelo para ações futuras, para caças melhores de cavalos(...) recuar para saltar melhor: tais imagens são visões fixadas dos fatos e servem de quadros orientados.” (FLUSSER, 2007: 163)

(...) um presente do espírito no sentido de uma percepção radical que não tem nada a ver com a “verdade”, mas muito tem a ver com a awareness (a conscientização), com a advertência sobre o traço corpóreo da vida, com a atenção ao perigo e com a atenção como veneração. Uma lembrança, que não significa retorno a um estado de salvação, mas significa a capacidade de colocar alguma coisa como alguma coisa, portanto ficção, invenção que pode fazer ver também as imagens como imagens. Uma ilusão, estratégias lúdicas que aparecem no jogo e incluem a disponibilidade para iludir e para se fazer iludir, que colocam em cena as imagens como simulacro e levam em conta uma simulação em diversas camadas (KAMPER, 2002: 14).

O atordoamento pela situação é um bom método para evitá-la. Este atordoamento pode ser formulado assim: a situação me determina e me propele, ela é incompreensível e, mesmo se pudesse compreendê-la, não bastariam minhas forças para opor-me a ela. Isto é uma formulação razoável e uma tentativa honesta de evitar o uso da capacidade para conseguir a liberdade. Via de regra, no entanto, não somos tão honestos, e procuramos fazer crer que fazemos o que fazemos por nos termos decidido livremente para tanto. São os momentos de angústia (por fugazes que sejam) que nos revelam que fazemos o que fazemos por estarmos determinados e empurrados por fora (FLUSSER, 1994: 14).

Portanto, o que Ney coloca em cena, surge como conscientização a veneração a imagens que fazem crer ter o poder de representar o real provocando a idolatria em decorrência da alucinação imaginária; por meio da imaginação, que recorre a crítica. A figura singular que o artista representava em seus espetáculos podemos classificar como um novo homem. Ainda discutindo sobre imaginação, Flusser (1994) em seu artigo “Brasil, ou a procura de um novo homem: por um fenomenologia do subdesenvolvimento” tenta desvendar o homem brasileiro, sempre por uma ótica de um imigrante. O autor reflete sobre vários fenômenos do Brasil como: natureza, cultura, língua alienação e etc. Porém, vamos focar exatamente no início do texto, onde Flusser (1994) discorre sobre imaginação para projeção de um novo homem, quando o mesmo está perdido. O autor afirma que a decisão de tomar ou decidir um caminho, depende sempre de um mapa, que resulta na imagem das posições das coisas e, que o fato do homem assumir um ponto de vista demonstra-se que o

Se estabelecermos um relação desse pensamento a situação da período de repressão, poderíamos dizer que o governo tentava conduzir por meio das imagens os “bem integrados”. Ney se transformava em animal, ser da caverna, um retorno ao homem selvagem. Permitia por meio da projeção da suas imagens que o homem retrocedesse de si. Queria que compreendessem que mesmo tentando aprisionar seus atos, nunca iriam aprisionar a sua imaginação, e assim, por meio dela, lutar, agir por liberdade. Que segundo Flusser (1994) fazem parte do processo de se encontrar, onde precisamos retroceder, para depois imaginar, afim de compreender e depois agir decididamente: “Pois estas são as fases do encontro consigo mesmo: distância, imaginação, conceito, ato” (FLUSSER, 1994). Portanto, quase que parafraseando o autor: queremos demonstrar que, devido a angústia e pela sensação de estar em um beco sem saída, Ney se distancia da sua situação, assume um ponto de vista, projeta daí uma imagem em oposição aquelas veiculadas, na esperança que essa imagem modifique o pensamento e sirva de trampolim para um engajamento, para a mudança.

Porém, toda essa reflexão não teria sentido sem que o homem fixasse aquilo que é visto em forma de códigos em algum lugar, transformando-os em memória, para que outro homem a decifre; assim a imaginação justifica a criação de imagens. Não seria diferente a função da imaginação no ramo das artes. A liberdade de imaginar abordada por Franklin Leopoldo e Silva em seu artigo (2005), analisa a criação de imagens de um artista sendo ela responsável por nos apresentar um caminho ao ideal, distinguindose do real. Porém como o autor afirma, essa liberdade só pode operar como órgão auxiliar do conhecimento se estiver inteiramente submetida ao poder do intelecto, ou da concepção intelectual. A problemática surge pelo fato das imagens, como toda mediação, tender a obstruir o caminho em direção aquilo que é mediado por elas. Tendo como consequência o fato de não se utilizar as circunstancias expressas nas imagens como modelo para orientação no mundo dos objetos o homem começa a agir na sua experiência concreta no mundo para se orientar nas imagens. Em vez de se basear nas imagens para lidar com o mundo dos objetos, começa a tomar como base sua experiência com o mundo concreto para poder lidar com as imagens. Essa inversão Flusser (2007) caracteriza como idolatria, e o comportamento resultante desse acontecimento é chamado de mágico. Daí resulta-se toda um ciclo social que abordamos já algumas vezes durante o texto. Porém, não é possível orientar-se no mundo sem

Pois estas são as fases do encontro consigo mesmo: distância, imaginação, conceito, ato Ainda segundo o autor, a liberdade, por louvada que seja, é incômoda, exige esforço, e não oferece garantia de sucesso, e explica:


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Projeções

Por meio de alguns textos teóricos sobre o homem brasileiro e depoimentos sobre o trabalho de Ney Matogrosso, iremos refletir sobre as imagens que o artista formava em seus shows durante sua carreira, para assim, conceituar a criação de estampas, resultado do presente trabalho Ney de Souza Pereira, ganhou o seu sobrenome artístico por ter nascido no estado de Mato Grosso do Sul, onde diz ter surgido de um Centro-Oeste desconhecido, de um enigma. Ainda pequeno já escolheu o caminho do questionamento inconformando-se com preconceitos e intolerância. Morou em diversas cidades do país e sempre teve muita proximidade com a natureza, segundo seu site oficial. Se tornou aos 30 anos um grande artista popular; carreira que iria levar para o resto da vida. Educado e desbocado, sério e irreverente, sóbrio e escandaloso, Ney criou em cima desses limites, uma personagem sensual, composta por um figurino ousado com atitudes que afirmam a pura liberdade de expressão e escolha, respeitando acima de tudo a si mesmo. Assim, criando um relação com seus espetáculos, podemos afirmar que Ney já foi bandido, sujeito estranho, homem com h, pescador de pérolas, vagabundo, porém, sempre rejeitou rótulos, afirmando em entrevista a revista Personnalité (2012): “eu não sou indefinido. Estou aqui vivendo. Tudo que a vida me oferecer de agradável eu vou desfrutar.” Sobre a construção do seu personagens, Ney comenta: “Sabia que estava criando uma imagem que não era de gente, de homem, de mulher. Era homem, mulher, bicho, inseto, índio. Eu botava antenas na testa, bicos e asas de pássaros. Minha intenção era transitar pela fábula, sem qualquer coisa, eu queria que cada um me visse da maneira que quisesse” (SANCHES, 2012).

Ney não é bem um ser humano. Pertence a uma natureza que mescla os reinos animal, vegetal e espiritual(...) espécie da qual é o primeiro e último exemplar. Fruto da cruza amorosa de um certo bicho com uma flor amazônica. Um ser quase invisível –mas exuberante no palco.

“A cidade do homem nu” é o título do trabalho realizado pelo artista arquiteto Flávio de carvalho (1930), onde o mesmo propôs a construção de uma cidade nos trópicos, para um novo homem que ali habitava. A cidade era idealizada para o homem do futuro, esse não teria Deus, nem propriedade e nem matrimônio. Tratava-se de um projeto urbano pensado para uma sociedade que teria se despojado, se despido da construção cultural e de seu corpo; como o próprio se referia “um homem sem tabus escolásticos, livre para raciocinar e pensar, para começar um contínuo e irrefreável processo de curiosidade, mudança e transformação pessoal.” (CARVALHO, 1930). Carvalho imaginava um urbanismo estruturado por grandes centros e laboratórios: “centro de ensino”, um “centro de parto”, um “laboratório de erótica”, um “centro religioso”, que estaria localizado dentro do laboratório de erótica, e um grande “centro de pesquisa”, lugar onde o homem poderia “descobrir as maravilhas do universo, o prazer pela vida, o entusiasmo em produzir coisas, o desejo de mudar.” (CARVALHO, 1930) lugar onde esses moradores poderiam experimentar. Dando ênfase ao laboratório de erótica, o autor o idealizava como um lugar que “o homem nu selecionaria ele mesmo suas formas de erótica, onde nenhuma restrição exigir-lhe-ia este ou aquele sacrifício; sua energia cerebral seria suficiente para controlar e selecionar seus desejos(…) seria o lugar onde encontraria sua alma antiga, onde projetaria sua energia solta em qualquer direção, sem repressão; onde realizaria seus desejos, descobriria novos desejos.” (CARVALHO, 1930). O que percebe-se é que para Flávio de Carvalho (1930) a sexualidade não é uma forma de libido predeterminada, permitindo ao homem que habitasse sua cidade ideal uma experiência contínua que se bifurcaria de acordo com a subjetividade do sujeito. Assim, concluímos que

Flávio (1930) estava propondo um plano que procurava eliminar qualquer amarra que a sociedade, por meio de sua cultura, poderia impor a sexualidade e ao corpo do homem. Criando um espaço novo, uma nova realidade, para que pudéssemos imaginar como seria aquele lugar “sem tabus escolásticos” livre para se raciocinar e pensar, onde o homem poderia se dirigir a qualquer direção. Quando descrevemos esse indivíduo idealizado pelo autor, há grandes proximidades com a figura que Ney apresenta em seus espetáculos. O conceito de “homem nu” é muito apropriado ao figurino de Ney, que muito mostrava seu corpo, traduzido em suas atitudes corporais agressivas, onde parece que Ney experimenta sua sexualidade quando transita entre o feminino e o masculino com grande facilidade, cuja cena parece criar o “homem sem tabus escolásticos”, proposto por Flávio (1930). Outra descrição curiosa sobre Ney é apresentada pelo jornalista Valdir Zwetsch, amigo do artista a 30 anos, onde escreveu um texto como lembrança de sua amizade, publicado pela resvista Personnalité. Em seu texto, descreve a relação de Ney com a natureza e, como o mesmo é depreendido e sem limites: “Ney não é bem um ser humano. Pertence a uma natureza que mescla os reinos animal, vegetal e espiritual(...) espécie da qual é o primeiro e último exemplar. Fruto da cruza amorosa de um certo bicho com uma flor amazônica. Um ser quase invisível –mas exuberante no palco. Pense na história da cultura brasileira. Tem outro Matogrosso antes? Virá, será, outro depois? Como homem e como artista é o cara das ambiguidades e dos paradoxos. Gosta disso porque é da natureza dele. Como gosta de não ser compositor, mas apenas intérprete – porque essa limitação permite a ele a mais ilimitada liberdade(...) Assim desprendido, despregado, desbragado. Matogrosso. (Revista Personnalité, 2012) Já Ney, quando indagado sobre o que realmente acredita, responde: “Acredito no invisível, no que a gente não vê.” (SANCHES, 2012). Visto isso, na criação das estampas trabalharemos a percepção entre real e ficção na relação homem e imagem por meio dos seguintes conceitos: erótico, selvagem, brilho e alegoria.


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3. Projeto “O que a gente faz É por debaixo dos pano (...) É debaixo dos pano Que a gente não tem medo Pode guardar segredo De tudo que se vê(...)” Por debaixo dos panos Ceceu (1982)


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