Revista Cafeína

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Revista

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Ano I Nยบ 0



Cafeína

Ano I Nº 0

Foto:Daniel Catuver


Café Pequeno

Escolha o café Café Coletivo..................................4 Conversa de Cafeteria .................7 Coador de Pano............................12 Café Amargo.................................18 Café com Elas................................35 Fotocafeína....................................40 ColabCafé.......................................53 Uma xícara e um filme................55 Cafeteria.........................................71

Expediente:

Produção: Ana Clara Santos, Oswaldo Ribeiro Reportagem: Ana Clara Santos Revisão: Nichole Munaro e Oswaldo Ribeiro Diagramação, título e legendas: Ana Clara Santos Colaboradores: Cainã Siqueira, Daniel Catuver, Gabriel Torres, Karina Torres, Ketlen da Silva, Letícia Ribeiro, Luiz Felipe Sudorio, Matheus Aranda, Nichole Munaro, Susanne Coelho Orientação: Prof. Dr. Oswaldo Ribeiro Pró-Reitoria de Graduação: Profa. Rubia Marques Coord. do Curso de Jornalismo: Prof. Ma. Inara Silva Reitoria: Pe. Ricardo Carlos UCDB – 2018

O que perdemos por fazer tudo sempre igual Quando eu era criança olhava para o mundo e, apesar do entusiasmo que ele me causava, sempre me questionava se as coisas continuariam da mesma forma por muito tempo, se não tinha nada de diferente a ser inventado ou descoberto. Pois bem, apenas no tempo que eu tenho de vida, que não é muito, o mundo passou, e ainda passa, por transformações tão bruscas que agora me pergunto se nunca mais irá parar de aparecer novidades, boas e ruins, é claro. Mas eu gosto desse movimento, desse ir e vir das coisas, dessa (re) descoberta que nos faz (re) pensar diversos processos, ensinamentos, aprendizados, bem como a forma de fazer, de colocar nossos pensamentos em prática. Partindo da premissa básica do jornalismo, que é contar histórias, essa revista foi pensada exatamente para que esse clichê fosse colocado em prática de forma diferente, pois, ao fazê-lo pude compreender que o mundo só permanecerá da mesmo jeito se olhá-lo como ele sempre foi. Quem diria que depois de tanto tempo, acharia em mim a resposta para um questionamento de criança! Saber que por trás de tudo existe uma historia apenas esperando para aparecer, poder descobri-la e contá-la faz com que prestemos mais atenção ao mundo e às pessoas, algo tão importante em dias como os atuais. Espero que todas as reportagens, bem como o material colaborativo ao final da revista possa agregar algo a quem ler e o estimule a procurar as histórias escondidas por aí! Ana Clara Santos Editora


Café Coletivo

Hippies da Ary Coelho: histórias de escolhas e liberdade Na praça eles vendem sua arte, marcam a paisagem e tem muitas histórias para contar Ana Clara Santos

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Imagens: Pinterest

pela liberdade, mas isso já nasce com a gente também”. Essa foi a frase que mais escutei durante a tarde que passei com os hippies e artesãos que vendem seus trabalhos na Praça Ary Coelho, na Avenida Afonso Pena, entre a 13 de Maio e a 14 de Julho, bem no centro de Campo Grande. Porém, para chegar à resposta sobre o que os motiva foi preciso conquistar a confiança e mostrar quem eu era para que, no final do dia, descobrisse quem eles são e me sentisse parte deles. De início a abordagem não foi nada fácil, expliquei quem eu era e o que queria, entretanto, era só ouvir a palavra Jornalismo que eles já não concordavam e desconversavam, pedindo pra que eu procurasse alguém que quisesse dar entrevista. Com um pouco de paciência, algumas explicações e prometendo que não faria fotos ou vídeos fui ficando por ali. Após duas tentativas frustradas, iniciei uma conversa com o anfitrião do grupo,

o hippie Carlos Antônio, o Tuca, que tem 42 anos e vive alternativamente há 25, e me atendeu durante toda a tarde, me explicando coisas sobre o modo de vida deles. Não se se foi pela influência e respeito que os outros tem pelo Tuca ou pela boa vontade de ajudar, a partir daí a conversa foi fluindo e eu deixei que tudo passasse de uma conversa formal, com perguntas e respostas para um troca de experiência, pois, enquanto eles me falavam sobre aquele estilo de vida, eu falava um pouco de mim para eles. Assim, fui construindo a confiança que eu precisava que eles tivessem em mim. Já passava das 14h e eu pensava em apenas duas coisas: se eles não iam almoçar e como conseguiam ficar tanto tempo sem comer. Foi então que eu arrisquei a pergunta: “Como vocês almoçam por aqui?” Tuca logo tratou de me explicar que eles bucam a comida que os restaurantes dão para eles depois das 14h.

“A gente leva o balde, eles enchem e a aqui a gente divide. Aqui tudo é dividido porque somos unidos. Pode ser o que for, aqui a gente compartilha”. Durante nossa conversa, dois rapazes chegaram com duas tigelas de plástico tampadas repletas de comida. Fui convidada a me juntar a eles para compartilhar da refeição. Porém, me mantive resistente quanto à ideia de dividir o talher com pessoas que mal conhecia. Cafeína 4


A insistência foi tanta que, sob os olhares atentos de todos, abri minha bolsa e retirei de dentro dela um garfo que, por ter almoçado horas antes, trazia comigo. Junto vieram as risadas, pois na visão deles, era frescura e não uma questão de higiene. Pois bem, quando dei por mim estava sentada no gramado da praça com quatro hippies e um balde de comida que ora vinha, ora ia, alimentando todos ali presentes. Permanecemos sentados, eles contavam histórias e eu observava, tentando entender aquela tranqualidade enquanto ao redor as ruas e avenidas eram movimentadas e cheias de gente que andava apressadamente. Voltamos e, enquanto estávamos almoçando, quem não foi, ficou cuidando o material exposto de quem tinha saído para comer, num gesto fraterno de quem entende o valor do trabalho e da amizade. Continuei a observar e conversar. Parei um pouco para pensar e percebi que tudo aquilo foi um processo e que agora já fazia parte deles. Aliás, já tinha feito várias amizades e ouvido tantas histórias e só tinha passado a metade da tarde ainda.

Entre essas histórias, estava a de Eduardo, ou segundo seus amigos, Gargamel, de 23 anos, que há sete meses deixou que a liberdade que sempre sentiu dentro de si guiasse sua vida. “Eu até pensei em fazer faculdade, fiz o Enem e entreguei uns currículos, mas não era isso que eu queria pra mim. Na verdade, desde pequeno eu já me sentia muito livre. Um dia eu estava lá em casa brincando com uns barbantes e comecei a enrolar até que uma hora apareceu nó. Fui aperfeiçoando, fiz algumas pulseiras e vim aqui conversar com o pessoal. Fui aprendendo mais coisas e agora tô me planejando pra ir pra praia”, explicou o menino loiro e tímido que aos poucos foi se abrindo ao diálogo comigo. Enquanto eu seguia com meu trabalho de observação, eles vendiam suas peças a quem eventualmente parava para olhar, sendo ignorados por muitos que, mesmo diante do chamado, andavam

depressa sem se quer olhar para agradecer, ignorando por completo a pessoa que tenta viver de sua arte. Estando do lado de lá, pude perceber que muitos ignoram o fato de ser uma profissão e que por ser tão informal não deixa de ter seu devido valor. A tarde foi andando, as pessoas passavam,porém, o movimento não estava dos melhores e, por isso, eles matavam o tempo contando histórias que eu ouvia atentamente. Em umas dessas, Juliano, ou Fantasma, como gosta de ser chamado, que é hippie há 15 anos, contou que foi pela liberdade de trabalhar sozinho que renunciou ao pouco que tinha para se tornar independente. “Meus pais morreram quando eu tinha 14 anos, aí eu fui morar com parente, mas eu não queria ficar ali, então, comecei a fazer meus Cafeína 5


trabalhos e saí de lá. Já tô nisso há15 anos, mesmo tempo que conheço o Tuca.”, relembra. Quem também abriu mão do que tinha para experimentar a liberdade que apenas a vida alternativa pode proporcionar foi Reginaldo, o Cuiabano. Ele contou que foi motorista de van escolar por 18 anos e quando se separou da ex-esposa teve que vender tudo para compartilhar com ela, inclusive a van, e isso o incentivou a não querer trabalhar para mais ninguém e há quatro anos é artesão, ofício que aprendeu na comunidade de Piraputanga (Aquidauana), onde tem uma casa. O vínculo com todos eles, desde os que estavam por perto conversando comigo o tempo todo, como Tuca e Juliano, até os que vinham

e iam de vez em quando, foi se fortalecendo de uma forma que, por um momento, me esqueci de que dali surgiria essa matária. Fiquei envolvida de tal maneira por todas aquelas histórias que quando me dei conta já tinha contado de mim também e percebi que tudo aquilo foi uma troca de experiência. As conversas, que variaram entre trivialidades cotidianas, filosofias de vida, histórias do passado, piadas e troca de dicas para aperfeiçoarem o trabalho que vendem, foram cessando e o dia findando. Muitos deles já arrumavam suas coisas para irem embora, talvez com um destino incerto. Fiquei me perguntando se teria outra oportunidade daquelas. Até mesmo quem não quis se envolver no meu trabalho veio se despedir, me desejando boa sorte, reafirmando o espírito de união tão presente entre eles. Enfim, percebi que todos, além de não terem sobrenomes, pois se recusavam a falar quando perguntava, também não têm um destino certo, apesar de terem casa e família, mas em nome de algo que os fazem ser quem são, vivem a seu modo sem se importar com o julgamento alheio. Em nome da tão sonhada liberdade, não criam raízes e pertencem a vida numa tentativa de escapar desse mundo rígido que nos rodeia.

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Conversa de Cafeteria

Jornalismo Cultural: pauta de uma vida toda Oscar Rocha atuou mais por de 20 anos no Correio do Estado e conta sobre suas experiências Foto: Arquivo Pessoal

Ana Clara Santos

Revista Cafeína: Como foi o começo de sua carreira e no Correio do Estado? Oscar Rocha: Antes de sair da universidade eu já trabalhava. Eu trabalhava num semanário, eu era editor, estudante e editor. Fiquei lá um ano e meio e de lá fui pra um outro semanário, onde eu fiquei pouco tempo e, no terceiro semanário já fiz teste pro Correio e passei. Eu saí do semanário e fui pra lá, e fiquei 22, 23 anos só em Variedades. Eu fui repórter, crítico de cinema e música, subeditor e editor, passei por todas essas etapas dentro do suplemento, então, a minha experiência profissional foi quase toda dentro de Variedades. Eu gosto de falar variedades porque não era só cul-

Com 23 anos de serviços prestados ao Correio do Estado, um dos maiores jornais de MS, Oscar Rocha fez carreira no Jornalismo Cultural e viu de perto uma época de ouro no cenário da cultura regional. Influenciado por grandes jornalistas de São Paulo, Oscar viu a cultura e o jornalismo tomarem outros rumos com a ascensão da Internet e das plataformas digitais e acredita que, no momento, estamos vivendo uma transição sem destino certo. Nessa entrevista ele fala sobre carreira, especialização, opiniões pessoais e, é claro, do cenário cultural de Campo Grande. tura, tinha comportamento, moda, e cultura era um dos ingredientes principais, 40% do que vinha era cultura e, nos primeiros anos, além de reportagem eu fazia crítica, era uma coisa que eu gostava de fazer, tanto de cinema quanto de música. Paralelo a atividade da redação eu trabalhei em outros lugares. Eu fiz assessoria de imprensa no Sindicato Rural, Associação dos Procuradores do Estado, e isso foi me dando outras vivências. R.C.: E como começou no Jornalismo Cultural? O.R.: Antes de entrar no Correio eu já fazia cultura num semanário que eu trabalhei. Eu fiz matéria de grupo de rap, literatura, música, eu fazia essas coisas porque

sempre fui ligado à cultura, isso veio antes do Jornalismo. Na verdade, eu fui pra Jornalismo porque eu era ligado à cultura, não foi no Jornalismo que eu descobri isso, antes da universidade eu já gostava de literatura, de música, de cinema, eu já procurava, já ia atrás, eu pesquisei muito, meu direcionamento já era pra cultura. R.C.: O que o senhor pensa sobre a especilização? O.R.: Eu sou favorável a especialização, tem muita gente que não é, mas eu acho que a especialização te dá um suporte muito grande porque o leitor quer a especialização, ele quer que o Jornalismo seja aprofundado, ele percebe quando ele vai ler o lide que a pesCafeína 7


soa entende que aquilo não é fora, por que muitas vezes pega um texto e quem é da área sabe quando o texto tá fraco, tá superficial. R.C.: E quem quer se especializar em Jornalismo Cultural, deve fazer o que? O.R.: Eu recomendo que pra quem quer fazer ficar um pouco em outras editorias porque acaba dando agilidade, porque as editorias de Cidade, Política, Polícia, por exemplo, faz com que você faça um diálogo com a cidade de uma forma mais rápida. Então, acaba levando essa agilidade para área de cultura, acaba acelerando mais as coisas, pode ser que eu esteja errado, pode ser a pessoa não precise disso porque vai pra área e já tá ágil, mas no meu caso, eu hoje, iria me especializar um pouquinho mais. [...] é interessante ele ter esse contato com outras editoras pra depois se especializar. R.C.:Quais foram suas influências no Jornalismo? O.R.: Eu fui muito influenciado pelo Jornalismo Cultural feito naquela época, então, eu sou um produto do Jornalismo Cultural Rio-São Paulo da década de 80. Eu lia muito o Jornalismo feito lá, então, eu tive muito no

começo uma influência deles, de querer ter opinião, de mostrar, de criar uns pontos de interrogação [...] A equipe da Ilustrada da Folha de São Paulo na década de 80, e vários outros me influenciaram muito. Me influenciaram também no aspecto de querer saber mais porque eles me mostravam aquilo e eu queria saber mais. Então, isso foi uma escola muito boa e até hoje quando vejo jornalistas daquela geração eu falo que foram bons professores, mesmo discordando deles, hoje em dia eu discordo bastante de muitos deles, mas eu acho que foi uma boa escola. Outra influência que eu tive bastante foi o da revista Bizz, eu fui um leitor voraz da Bizz e era muito legal. Eu era adolescente, eu tinha 15, 14 anos, e virei colecionador, era uma bíblia pra mim, mas eu também já tinha um pensamento crítico, eu sabia o que ali era legal o que não era, eu já tinha uma visão das coisas ali, mas eles me influenciaram muito como jornalista. R.C.: Como era a cena cultural de Campo Grande quando o senhor estava no Correio do Estado?

O.R..: Quando eu comecei, em 1995, não tinha internet como tem hoje, a difusão, principalmente de imagem e som, não era tão democrática e, por isso, nosso olhar era diferente do que temos hoje. Então, a gente tem que pensar que na década de 90 a produção era menor, as leis de incentivo, os fundos de cultura [...] naquela época não tinham, então, a dificuldade era muito maior. Então, sempre tinha um certo paternalismo: o momento histórico pedia isso. Gravar um CD era muito caro, muito difícil, então, se uma pessoa gravasse já era motivo de ter uma capa. Com o passar do tempo, quando isso se tornou maior, começou essa coisa de critério de quem vai ganhar destaque de capa, quem vai ganhar nota de rodapé. Mas nesses primeiros anos, 95 a 2000, quando era muito mais difícil de conseguir financiamento, a gente tinha um olhar pra ver isso. Não éramos nós falando, mas era o momento que pedia isso. Não havia um planejamento, mas era como aparecia as coisas, tinha isso em perspectiva naquele momento. Nos anos 90 a gente tinha a cena do rock tentando se fortalecer, a gente tinha uma Cafeína 8


cena de veteranos tentando sobreviver. A gente tá falando de uma geração muito criativa que nós vemos na década de 80, fora jovens que estavam tentando se impor dentro do mercado [...]. R.C.: Como foi fazer a cobertura jornalística nessa época? O.R.: Eu fazia reportagem e crítica disso, eu tentava ir para os locais, ver os shows e fazer críticas. Eu tive uma felicidade das pessoas perceberem que minha participação não era simplesmente o negativo ou só o positivo, era uma reflexão do que estava fazendo naquele momento, umas pessoas entenderam e outras não [...]. Eu via que o Jornalismo naquela época teria que ser construtivo, muita gente critica, mas eu sempre achei que teria que dar um passo a mais e não ser um empecilho para quem está querendo fazer, mesmo eu fazendo críticas negativas. Hoje em dia eu tenho pessoas que dizem e agradecem por eu ter falado daquele jeito, viram que eu queria contribuir para elas crescerem mais, era o reconhecimento daquele momento.

R.C.: O espaço dado ao Jornalismo Cultural era bom? O.R.: Por muito tempo o Correio B eram oito páginas e era um espaço muito bom de produção, até porque eu fazia crítica, fazia colunas. Eu penso que, no Jornalismo impresso, nesse período que eu estou falando de uns 20 anos, ele teve espaço e agora no impresso ele perdeu o espaço. Algo muito importante para falar é a diminuição das redações, a gente teve uma perda muito grande de profissionais e isso foi repercutindo um todas as editorias, não só o cultural. Com menos você produz, mas é óbvio que a informação fica menor, com menos qualidade, eles esperam de você mais produção e nem sempre bate quantidade e qualidade. Então, nos últimos anos, o esvaziamento das redações produziu uma queda não só no espaço, mas também na qualidade. Esse Jornalismo na cultura, na parte da reportagem dentro do Jornalismo impresso foi muito bom, vários artistas tiveram perfis, questões da política cultural tiveram espaço, a questão dos projetos teve espaço, nesse período foi em grande quantidade. Agora tem mui-

to de serviço, que muita gente procura e faz parte do Jornalismo Cultural e aí nós temos os sites que fazem muito bem isso, fala que vai ter a apresentação da peça, do show, a Agenda é muito boa, eu gosto muito disso. Tem espaço até hoje o Jornalismo Cultural de serviço que indica o roteiro. R.C.: No meio dessa produção cultural e cobertura jornalística, a cultura alternativa tinha espaço? O.R.: Dessas bandas de Hardrock dos anos 90 todas tiveram matéria, desde o HIV, Dor de Ouvido, e do Metal como a Catástrofe, eu que era do universo queria que eles estivessem ali. Eu lembro de uma banda da Argentina que veio tocar num boteco perto da Rui Barbosa, nós demos uma capa pra eles, e eu fui ver um show deles e a banda é muito boa. O rap também teve muito espaço, eu lembro a primeira matéria de folha inteira que eu fiz um panorama da cena rap, isso em 1992, antes do Correio do Estado. R.C.: Como o senhor vê a crítica cultura hoje? O.R.: Eu não sei se hoje teria sentido aquilo, hoje eu vejo que a crítica, o JorCafeína 9


nalismo Cultural, precisa de outros mecanismos [...]. Hoje eu acho que as redes sociais já fazem isso, por isso que a crítica nos meios de comunicação está muito fragilizada. Eu acompanho, mas eu vejo um certo cansaço, mas no período era até antidemocrático isso porque só um tinha opinião e hoje todo mundo tem. Eu acho fantástico, eu acho maravilhoso isso, a opinião de cada um. Talvez o que eu acho falta é porquê muitos não conseguem dizer por quê não gosta, só isso, mas se soubesse dizer estava perfeito, porque todo mundo gosta ou não gosta de alguma coisa, pois, as pessoas precisam de referências. Então, eu vejo de modo geral um Jornalismo Cultural cansado, mas cansado daquele modelo que era comum. R.C.: O senhor acha que falta essa base sólida para fazer crítica hoje? O.R.: Na internet é muito aquilo “o que você gosta não vale, o que vale é que eu gosto”, e não dá pra ser assim. O Jornalismo Cultural não dá pra ser assim, ele tem que dar um passo a mais, tem que fazer reflexões lá mais pra frente, tem que ter um diálogo com seu tempo

e o jornalista propicia esse diálogo. O jornalismo que eu gosto é onde tem troca, eu fico fascinado com texto quando o jornalista está me oferecendo alguma coisa, tá me oferecendo reflexão, me oferece a informação e eu ganho com isso e o artista também. E é isso que ele quer: que suas obras sejam comentadas, ele quer que falem mesmo, que não ressaltem apenas os aspectos positivos, mas ele quer isso e ele sabe que pro trabalho dele crescer ele precisa desses elementos. Hoje, o que me serve é isso e, ao mesmo tempo, eu vejo muita coisa que está sendo feito no Jornalismo, mas eu esperava mais, até em Campo Grande eu esperava mais. [...] E a geração seguinte eu sentia que era uma geração muito próxima do artista [...]. Eu sou um cara que as pessoas pouco me viam, acabava o show e eu não ficava nos bastidores, e eu também não acho ruim se pessoa é amiga do artista, eu não acho que isso vai prejudicar, mas, no meu caso eu nunca tive essa aproximação, talvez isso tenha até feito eu perder muita coisa, eu devia ter outra visão de algumas coisas se eu tivesse frequentado, mas eu nunca gostei muito.

R.C.: Como foi sua experiência nos editais de festivais como o de Bonito? O.R.: Por causa de críticas que eu ouvia, principalmente quando foram implantadas leis de incentivo à cultura, eu comecei a aceitar a participar da seleção desses festivais, como o de Corumbá e o de Bonito, pra ver como era feito. Como eu recebia muita gente dizendo que era um esquema porque são sempre os mesmos artistas que ganham e eu queria saber como era dentro isso. Entendi o mecanismo de escolha desses artistas, foi uma experiência muito boa pra mim. [...] Nesse universo, como em qualquer outro universo, existe muita coisa de cunho pessoal, momentos que certas tendências são determinantes na escolha desses artistas e eu acho que eu passei também uma fase onde havia um amadorismo brutal do artista em querer vender o produto dele pra uma fase mais profissional e nesse processo, entre o amadorismo e profissionalismo,vi muita gente perdida, que não sabia conduzir sua produção, o que é um problema muito sério de não saber estabelecer quem é ele dentro do cenário. Às vezes o artista tá ali, talentoso e Cafeína 10


tal, mas, às vezes, num processo como esse, mandava um material mal gravado, mandava faltando material e quem mandava um trabalho mais profissional tinha mais retorno do investimento. Então, eu peguei esse cenário que é bastante complexo, e até hoje tem gente que questiona os editais, os processos de seleção. Tá certo, tem que questionar, mas tem um outro lado do edital que é frio, as regras são estipuladas, então, precisava de uma avaliação melhor de cada um, mas deu um salto muito grande de um amadorismo pra uma coisa mais profissional [...]. R.C.: Com a democratização das opiniões e fragilização da crítica, o senhor acha que falta público para esse tipo de Jornalismo? O.R.: Eu estou falando do Jornalismo impress, e houve uma ampliação dos meios de obter lazer, uma democratização dessas informações e o jornalismo não tá acompanhando isso. Muitos sites que ainda fazem isso, mas o que eu vejo que falta nesse jornalismo é crítica, reflexão junto com informação, pra mim poucos fazem isso com consistência.

R.C.: Longe das redações, como o senhor vê o cenário cultural atual? O.R.: Não acho que a Indústria Cultural não produza algo que não mereça existir, mas o problema é quando alguém quer algo mais sofisticado porque ela não vai atrás disso. Hoje eu vejo muitos comentários sobre a Indústria Cultural de que certas coisas não deveriam ter espaço, é estranho que com a internet aí as pessoas ainda fiquem esperando que o Faustão diga o que elas deviam ouvir, mas isso é fase, é outro momento [...] a democratização da informação através da internet é isso: você ter acesso. Mas a maioria da população, você tem um público que não liga pra sofisticação ele quer música de celebração, e isso sempre aconteceu na história da humanidade, isso é estrutural, eles querem música para celebrar o momento. Eu não entendo muito esse mal-estar das pessoas dizendo que vivemos o pior momento da música, eu nunca vi momento tão criativo da música, tanta coisa original! Esses dias eu estava ouvindo o Jão e eu pensei: “Puxa! Se esse menino tivesse surgido há 30 anos, dizendo as coi-

sas que está dizendo agora, seria um mundo tão legal”. Assim, é gente que, teoricamente, não era pra estar produzindo, mas está por causa da democratização. Como nós estamos muito fragmentados, o que é o seu não é o meu, o que você quer, o que você vai buscar não é o que eu vou buscar, poucas coisas nos unem, o jornalismo não sabe pra quem ele tá falando, pra quem ele quer dizer as coisas e isso é muito complicado, você ver que hoje dizer o que, pra quem e como é muito complicado eu acho que esse período de transição as pessoas podem chegar e dizer eu quero ver isso, quero ver aquilo, mas eu ainda sinto as pessoas meio perdidas nesse processo. [...] O jornalismo tá falando pra um público, mas esse público não sabe o que quer mais. A gente tá num período de transição e a gente não sabe direito onde isso vai dar.

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Foto: Paulo Pinheiro

Coador de Pano

Era Disco retorna à Campo Grande com discoteca temática Realização de um sonho, discoteca e uma loja de discos que são viagens no tempo na capital

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m globo espelhado se acende no meio da pista pintada de quadrados brancos e pretos, as paredes exibem retratos de artistas famosos em sépia, uma bicicleta também está pendurada. Lustres compõem o ambiente juntamente com cores fortes, banquetas e mesas, pessoas dançam pelo salão ao som de Bee Gees e Abba. Talvez essa seja uma cena comum nos anos 70, na Era Disco, época que marcou uma geração inteira, mas ela acontece todos os sábados no centro de Campo Grande desde o início de 2018 , no Ultra Vintage Club, discoteca que, além de abrigar um

acervo excepcional de artigos de colecionador, permite uma viagem no tempo a quem frequenta suas noites. Por um fresta que existe na saída de emergência do lugar, Maria Ritha Toazza viu em primeira mão todo o trabalho realizado por Paulo Pinheiro, idealizador da casa noturna. Ela, que sempre trouxe muitas referências dessa época ensinadas pelo pai, se encantou pelo lugar assim que o viu, entrando nessa viagem pelo tempo sem querer e acabando como gerente e publicitária do local. Chame de destino, acaso, sorte ou como bem quiser,

mas o encontro de Maria com esse lugar parece história de filme, a qual ela conta com um sorriso incrédulo no rosto, mesmo após meses administrando o local, pois, ainda não achou uma explicação lógica para ele cruzar seu caminho. Ela conta que um dia, durante o culto da igreja que frequenta, resolveu ir para calçada e foi andando em direção à rua Antônio Maria Coelho, onde fica a danceteria, para ver uma placa sobre serviços jurídicos que lhe chamou sua atenção, o que ela não sabe explicar o porquê e, depois continuou caminhando para ver a Cafeína 12


fachada da discoteca. Tentou ver do que se tratava, pois, até então não fazia ideia de que ali tinha uma casa noturna. “Tem uma porta aqui que está meio entreaberta, é a porta de emergência, e eu só dei uma olhadinha entre a porta e vi a decoração e falei “Gente! Que lugar que é esse?” Sério! Foi coisa de filme. Ainda não tinha inaugurado, ele estava arrumando, mas a decoração já estava toda pronta, tudo completo”, relata. Por já gostar de coisas antigas como música, filmes, decoração e objetivos, ela não poderia deixar passar a oportunidade de conhecer o local e deu um jeito de ver de perto a decoração que lhe encantou, batendo à porta até que alguém atendesse. “Eu vim nessa porta preta e fiquei batendo. Aí ele saiu, estava todo suado e sujo do trabalho, ele disse “Oi”, e já até fiquei meio com medo e eu disse “Oi, o que é isso? Nunca tinha visto esse lugar, posso conhecer?” e ele: “Claro! Pode”. Eu já entrei, já conheci e já fiquei amiga dele na hora”, relembra. A sintonia com o lugar e com a ideia que ele transmite foi tanta que logo na inauguração ela começou

Foto: Paulo Pinheiro

Reforma para ser discoteca vintage foi toda feita por Paulo Pinheiro

a dar ideais para o lugar e ele começou a ouvi-la. “Eu comecei a dar ideia pra ele aqui, ele começou a gostar das minhas ideias, comecei a ajudar na divulgação e quando vi já era gerente, já era quase sócia, já estava ajudando aqui e estamos aí até hoje”, finaliza. Porém, antes de toda essa história, Paulo vinha há 12 anos tentando montar uma casa noturna de sucesso, o que não conseguiu nem com música eletrônica, estilo popular nas noites campo-grandense. Maria Ritha conta que ele tentou diversos tipos de sociedades e estilos, mas o seu sonho sempre foi um espaço como o Ultra Vintage. “O que estava na mente dele, e minha a partir do momento em que eu comecei a trabalhar junto, é essa coisa de voltar no tempo, é uma casa completamente temática e sempre foi o sonho dele

fazer isso aqui, com músicas antigas, que é uma coisa que ele gosta, com coisas diferentes, com decoração de coisas antigas, com esse globo, aquela foto do John Travolta nos Embalos de Sábado à Noite, dos Beatles, enfim, um lugar lindo, e bem administrado”, ela fala contando a história do lugar, que conheceu pela convivência com Pinheiro. Ele confirma dizendo: “Tentei várias vezes e não foi e aí fui para outro estilo de música [...], mas não era aquilo que eu queria, não estava satisfeito ainda. Como o seguimento de música eletrônica estava em baixa, não tive outra saída, tive que ir para outro estilo. E por que não aquela que sempre tinha me interessado? Aí montei, remodelei todinha a casa e trouxe todo o estilo antigo, foi isso que me incentivou a montar a casa” relembra. Cafeína 13


Foto: Paulo Pinheiro

Bicicleta faz parte da decoração, que dá um toque especial ao lugar

Contudo, como nem tudo são flores, fazer com que as pessoas, especialmente as que viveram aquela época, saíam para reviver todas essas lembranças não é algo fácil. Pinheiro diz que é algo natural delas, principalmente dos mais velhos. “É um segmento bem difícil, as pessoas dessa época não gostam de sair à noite, muitas pessoas até gostam, mas não tem o hábito de sair à noite. Eu fui em umas casas em São Paulo e o conceito eu trouxe de lá, baseado no público de lá, mas quando eu montei aqui foi diferente”, lamenta. Pode até parecer modismo a ideia de criar uma casa noturna com estilo vintage, o que, segundo o dono é uma ideia que deu certo porque

todo mundo gosta e até copiam em outros lugares. Mas nem isso torna as coisas mais fáceis porque ainda tem as questões culturais da cidade. “Na verdade todo mundo gosta, todo mundo chega aqui e ‘pira’ na casa, a questão é juntar gente para manter, aí tem que penar um pouco igual estou penando aqui. É questão de hábito mesmo porque a gente aqui de MS ainda é considerado de interior e é difícil de habituar o pessoal a vir, são muito exigentes, qualquer defeitinho que eles veem no atendimento ou em outra área e já não vêm. E outras casas já copiaram de mim, tinha uma casa que mexia só com rock, e já investiram em mercadoria, já chamaram todo o meu público para lá e

eu estou penando aqui”, explica. Mesmo com a dificuldade de manter e formar um público, têm diversas pessoas que são clientes cativos das noites de Flash Disco. Maria conta que muitos tornaram-se amigos da família, frequentam sua casa, cativadas pelo lugar. Falando em família, os pais dela também trabalham na boate, o pai como DJ, e a mãe na bilheteria, os dois à local convite da filha, que os levou para conhecer o lugar na mesma noite que o viu pela primeira vez. Foto: Paulo Pinheiro

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Foto: Paulo Pinheiro

Espaço foi totalmente pensado para frequentadores viajarem no tempo

Alexandre Toazza, pai de Maria Ritha é o DJ da casa quando não há um convidado especial, como Marquinhos Spinosa, que geralmente lota a danceteria. A participação começou justamente porque não tinha ninguém para tocar em uma das primeiras festas. A filha conta que, uma vez o DJ que havia chamado anteriormente disse que não poderia ir, mas como as chances de ter algum profissional disponível eram poucas, decidiu convidar o pai, que já fazia algumas discotecagens nas festas de família. Enquanto organiza cabos

e verifica o som, Alexandre conta que na primeira vez foi tudo de improviso, inclusive teve que fazer uma gambiarra com celular, notebook e as caixas de som para animar a

festa, já que uns dias antes havia excluído o aplicativo que usava para fazer outros eventos. Já Andréa Toazza, a mãe, foi chamada para trabalhar pela filha, que precisava de alguém de confiança que ficasse no caixa para vender os bilhetes de entrada. “Ela não estava fazendo nada, então, chamei ela para trabalhar aqui, e é bom pra ela porque não acaba tarde e tem pessoas que ela conhece”, relata Maria. Foi assim, entre as noites na discoteca, danças nostálgicas e músicas, que o casal e a filha fizeram amizades, que saíram da danceteria e passaram a frequentar a casa do casal. Uma dessas pessoas é Songie Mary Ilis, que trabalha como assistente administrativo, e conheceu o

Foto: Paulo Pinheiro

Festas com DJs conhecidos costumam ser noite de casa cheia Cafeína 15


local na festa de aniversário da prima, que comemorou a data na boate. Ela, que não gostava das noites campo-grandenses, viu no Ultra Vintage Club uma maneira de recordar os tempos de juventude em que frequentava discotecas. Agora ela vai às festas pelo menos duas vezes por mês, junto de seu marido e outros casais. “O que me fez gostar o lugar é o ambiente, é um lugar onde você se sente no túnel do tempo, lugar bonito, de gente educada, músicas lindas”, declara. A vontade de voltar no tempo e permitir que as pessoas também vivam essa nostalgia vem com Pinheiro em outro empreendimento: uma loja de antiguidades, onde são vendidos discos de vinil, gramofhones, CDs e outros artigos de colecionador. O espaço foi montado para vender tais artigos e atender uma demanda de Campo Grande, mas, assim como a casa noturna, agora sofre com a falta de público. Ele diz que há alguns fatores atrapalham os lucros, destcando a venda pela internet. “Não tem público. Muitas pessoas vendem até pela internet, tem o showroom em casa e vendem pelos sites”.

Foto: Paulo Pinheiro

Loja de discos foi a partida para o empreendimento da discoteca

Pinheiro também acredita que a crise financeira enfrentada pelo Brasil nos últimos anos, influência diretamente nos dois negócios sob seu comando. “O que contribuiu foi a crise e esse público bem pé no chão, não é um público que fica esbanjando.” A loja, apesar de ter sido aberta em 2006, mesmo ano que ele começou no mercado de casas noturnas, antecede o início da última, inclusive o conceito da casa, que foi montada anos mais tarde, se baseou em uma capa de um disco de vinil que ele tinha visto. “Na época tinha umas capas de vinil e parecia algumas coisas que lembravam um disco voador, meu sonho sempre foi montar uma boate

que parece disco voador. Fiz vários projetos e orçamentos, fica caríssimo. Então, resolvi montar um genérico, na verdade não está pronto ainda. Eu mandei fazer a estrutura, mas é baseado num disco voador”, relata. Outra coisa em comum entre os dois empreendimentos é a experimentação empregadas neles: os dois não tiveram um planejamento anterior com todos os detalhes, riscos calculados, uma rota pré-definida para seguir, apenas funcionando na tentativa e erro, sempre impulsionados pela vontade de Pinheiro de viver do que sempre gostou. “Na verdade, antes de montar a boate eu tinha uma loja de locação de som e iluCafeína 16


Foto: Paulo Pinheiro

Espaço já promoveu diversas festas temáticas, como a “Mamma Mia” com musicas do grupo ABBA

minação pra festas pequenas, eventos e tal, e comecei com isso. Tinha muito CD, muito vinil e falei “Tô desempregado mesmo, vou tentar”, aluguei o prédio e fui tentando, até dar certo”, relembra. Outra crítica apontada por ele sobre fazer esse tipo de negócio em Campo Grande é o fato de que o comércio da cidade vive muito de copiar as fórmulas que dão certo, como já foi visto no ramo gastronômico com diversos restaurantes de sushi e açaiterias e no de beleza, com uma quantidade enorme de barbearias que acoplam bar e estúdio de tatuagem.

“Ganhei muito dinheiro das casas noturnas em uma no começo, mas fracassei cidade interiorana, realizantambém, porque muita gen- do o sonho de do Flash Diste descobriu esse ramo. Isso co e Flash Back um meio que é o duro de montar as de vida e ainda proporciocoisas em Campo Grande, nar essa volta no tempo para você monta um negócio e todos que sentem saudades vem outro e já copia”, fala. dessas épocas. Agora, ele tenta juntar os dois empreendimentos para mantê-los em funcionamento: a ideia é fazer um showServiço room na entrada da discoteca para que os clientes da noite Local: Rua Antônio Maria vejam o que tem exposto na Coelho, 1260, Centro. Horário: 22h00 às 3h00. loja, que fica ao lado. Entre erros, acertos e nostálgias, Pinheiro e Maria Ritha caminham juntos, somando forças nessa aventura Cafeína 17


Café Amargo

Cheios de histórias, underground sobrevive na incerteza Apesar de lei mais dura, cena alternativa mantém resistência da cultura independente

Ana Clara Santos

A noite cai em Campo pois que uma determinação e o Bar da Valú, os quais Grande. As ruas e avenidas do Tribunal de Justiça de encerraram suas atividades movimentadas mostram a Mato Grosso do Sul levou no começo de 2018. vida noturna da cidade, na ao fechamento de diversos Todavia, para contar a qual pessoas de todas as espaços alternativos por história de resistência do idades buscam distrações conta da queda do limite underground e os motiem restaurantes, cinemas, sonoro de 90 decibéis para vos pelos quais é imporclubes, bares e esquinas. 45, conforme a regulamen- tante que haja um incentivo Enquanto muitos se diri- tação nacional. maior por parte do poder gem aos pontos mais conPortanto, denúncias, fis- público e das pessoas interhecidos, outros seguem calizações mais rígidas, in- essadas, temos que voltar na direção contrária, rumo terdições e até fechamentos ao princípio, tendo em vista ao encontro da Avenida por falta de recursos para se que as histórias do lugares Calógeras e Rua Antônio adaptarem às novas normas se confundem com a de Maria Coelho, região da se tornaram frequentes, não seus criadores, pessoas que Orla Ferroviária. Nesta es- apenas nos bares citados, se dedicam para fortalecer quina, cada um de um lado mas também em outros cada vez mais toda essa sinda rua, os bares Holandês rolês*, como o Drama Bar gularidade da arte. Voador e Resista!, reúnem o que há de mais original Foto: Arquivo Holandês Voador na cultura da cidade com shows de bandas que tocam rock autoral, festivais e junção de diversas tribos que apoiam a arte independente da cidade. Os espaços alternativos são opções para quem quer fugir do convencional, conhecer um outro lado da cidade e incentivar os artistas locais do underground e a resistência da contracultura, principalmente de- Esquina da Calógeras e Antônio Maria Coelho é reduto do underground *Gíria urbana para designar eventos em bares, restaurantes e casas nortunas

Cafeína 18


Foto: Arquivo Holandês Voador

Holândes e Resista! funcionam lado a lado e com zero concorrência

Da falta nasceu um espaço Com a fachada grafitada e aspecto gasto, uma porta de enrolar pintada de vermelho opaco e o interior que transborda arte autoral por todos os lados com manifestações que vão desde desenhos, pinturas, cartazes e músicas de bandas locais, o Holandês Voador, durante oito anos, foi uma das fortalezas do alternativo em Campo Grande, até fechar em setembro de 2018. Contudo, essa história começou bem antes do bar ser inaugurado no primeiro local onde funcionou. Há mais de 10 anos, muito antes do encontro da Calógeras com a Antônio Maria Coelho tornar-se um dos pontos mais fortes do alternativo, George Van der Ven, idealizador e dono do bar, já alimentava a ideia de ter um espaço voltado para a

arte autoral que naquela época aflorava na cidade. Essa vontade nasceu depois dele mesmo ter presenciado, junto com sua banda, O Lixo e a Fúria, a dificuldade de encontrar um palco que desse espaço para o rock autoral. “O espaço para rock autoral na cidade era muito pequeno e era difícil conseguir tocar, ainda mais pra galera jovem que não conhecia ninguém. Surgiu um bar para o pessoal da nossa idade, para as bandas que estavam começando, mas, lá também rolava muito cover, então, se você não tocasse um Ramones, um Green Day, um Nirvana era difícil conseguir entrar na agenda [...] durante um ano ou dois a gente conseguiu tocar uma ou duas vezes no máximo.”, recorda George. A saga atrás de um palco para se apresentar termi-

nou em 2005, quando o Bar do Carioca disponibilizou o palco para as bandas independentes, o que despertou ainda mais a vontade de Van der Ven abrir um espaço próprio, pois, embora fosse um bom espaço, o bar não tinha aparência de um lugar no qual essas bandas tocavam, o que para George era primordial para criar um público cativo. “Eu me apaixonei colocar gente no palco, fazer evento e essa coisa toda e, conforme os eventos foram rolando, eu fui interiorizando isso, vendo as problemáticas [...]. Foi passando o tempo, fui adquirindo experiência e observando de maneira critica o que estava acontecendo. Eu me afastei por um tempo, me tornei pai, mas sempre pensando nisso, sempre pensando em fazer, em como participar e ajudar a cena underground a galgar novos degraus.” Porém, como nada acontece de uma hora para outra, foram precisos alguns anos e uma longa caminhada para que o Holandês saísse do mundo das ideias e virasse algo concreto. George conta que trabalhou em um shopping, juntou dinheiro e alugou um ponto comercial na Afonso Pena “em Cafeína 19


uma época que era possível para humanos comuns alugar salão da Afonso Pena” e, a partir daí, começou a trabalhar com conveniência, mas nunca se esquecendo de seu objetivo. Para colocar o plano de anos em prática, ele contou com seu amigo Fabiano Araújo que o ajudou a procurar um salão para finalmente abrir o bar de rock. Porém, a burocracia é algo institucionalizado e com George não seria diferente: como num jogo, há etapas dificílimas a serem superadas para se alcançar um objetivo, mas, diferentemente dos jogos, cada etapa é mais cansativa que instigante. Então, depois de muito procurar e saber de todas os trâmites necessários para alugar um salão, perceberam que seria mais fácil quebrar as paredes do local que já tinham para ampliá-lo a fim de acomodar um palco e um público maior. Depois de toda reforma, em 2010, estava pronta a primeira versão do Holandês Voador, nome dado em homenagem ao pai de George, um holandês que batalhou ao lado dos Aliados na 2º Guerra Mundial como paraquedista, de forma mais literal, um Holandês Voador. “As bandas iam tocando,

Foto: Arquivo Holandês Voador

Nome do bar é homenagem ao pai de George que era paraquedista

tocando e ganhando cada vez mais experiência [...] tocava banda política, tocava banda que falava de diversão, banda de deus, bastante gospel, banda do outro lado. Tocava todo mundo no mesmo palco, as pessoas se unindo, se fortalecendo e a coisa foi ficando grande”, relembra George com uma certa nostalgia olhando para o interior do bar atual que já estava prestes a fechar. Ele ainda explica o porquê de surgirem tantas bandas para tocar quando finalmente abriu o bar de rock autoral, reafirmando a importância desses locais para fomentar a cultura para além das fronteiras conhecidas e encorajar cada vez mais a expressão artística: “[...] A cena do rock está ligada à banda, ao

palco e ao produtor de eventos. Então, se o palco some, as bandas também desaparecem, então, pra arte aflorar é necessário que tenha um palco para elas se mostrarem.” A identidade visual que o local tem atualmente foi elaborada ainda quando a banda tocava no palco do Bar do Carioca, depois de um evento que uniu MPB, punk, rock e exposições de artes plásticas e poesia, resultando numa mostra permanente neste mesmo estilo nas paredes do Holandês na Calógeras. . Quando ainda estavam na Afonso Pena, já como espaço alternativo, George organizou uma segunda edição desse sarau denominado Fusões Imaginárias e, nesse dia, o público foi tão grande Cafeína 20


que boa parte da avenida foi interditada. Segundo ele, depois desse episódio a mudança de local foi inevitável. “Na segunda-feira a fiscalização estava lá e numa jogada de velocidade eu vendi o ponto e com o dinheiro consegui dar os cheques calção num ponto próximo ao Hospital Universitário e o Holandês todo foi pra lá, a gente pegou tudo que tinha acumulado e fomos pra lá.” O novo espaço era na Manoel da Costa Lima, e com a mudança também veio a ampliação do público, pois, agora as bandas tinham disponível um salão e um palco maior que o anterior. Segundo George, em meados de 2012, o bar alcançou seu auge de eventos e de circulação de músicos, chegando a tocar, dentro de um ano, 60 bandas de rock autoral. “Nisso as bandas já es-

tavam mais amadurecidas. Tinham bandas que tocaram na Afonso Pena e já estavam gravando EP, já estavam gravando disco, tinham projetos de CDs fechados com qualidade profissional como a Burn Universe, que gravou discos, tinha gravado EP aquele ano como a Mister Mustache, Small Fish, Jorge Romero, então, teve muito show de lançamento, muita banda, ensaio aberto.”, recorda o dono do bar. Porém, como nem tudo acontece conforme o planejado, o Holandês teve que fechar suas portas. Ele conta que com o crescimento do público o local na Manoel da Costa Lima estava ficando pequeno e, justamente quando iria renovar o contrato, recebeu uma oferta de pessoas ligadas a Prefeitura Municipal e ao antigo terminal rodoviário para que mu-

Foto: Arquivo Holandês Voador

Sapatos típicos holandeses são lembranças do pai de George

dasse seu bar para o prédio. George diz que chegou a ver os salões disponíveis, mas, conforme suas palavras, a proposta não passou de um “blefe político”. “O Holandês fechou na noite da estreia do EP do Burn Universe, foi uma noite maravilhosa, foi o auge do Holandês na Costa Lima. Eu não renovei o contrato, o pessoal da antiga rodoviária voltou a atrás, dizendo que repensaram a ideia porque eles queriam um bar que atendesse a classe A e B e esse negócio de underground na rodoviária não dava, então, o Holandês fechou.”, conta. “O dono do ponto emprestou só por uma semana e depois ele vendeu. Depois eu comecei a procurar salão e chegamos até aqui na Antônio Maria Coelho, alugamos e começamos a fazer eventos aqui.” Depois de três anos no mesmo espaço até seu fechamento, o Holandês manteve a essência da ideia inicial, sempre dando espaço para os mais diversos tipos de expressões culturais cujo autores não teriam divulgação em outros locais. Contudo, o público se modificou muito, saindo do nicho fechado no hardrock e do punk, pasCafeína 21


sando para pessoas de diversas tribos, com diversos conceitos que se reúnem no bar formando uma tribo que George define como alternativa. “O pessoal do rock está aqui, mas tem pessoas que trouxeram outras referências e, por um bom tempo, o que manteve o Holandês foi um público cada vez mais alternativo. Alternativo no que gosta, alternativo no gênero, na ideologia, virou um prisma, o que era um bloco fechado se abriu. Então, se você vem no Holandês Voador hoje é difícil identificar que tribo é, são tantas tribos misturadas e convivendo juntos ao mesmo tempo que é difícil você falar o que é. Hoje o Holandês não é mais um bar de rock, desde que veio pra cá e essas miscigenações aconteceram, ele é um bar alternativo de arte underground e isso enriqueceu muito, enriqueceu para o público e enriqueceu para as bandas.” Esse encontro do underground na Calógeras existe há três anos, pois, na mesma época em que George encontrou o espaço com a ajuda de Felipe Faia, sócio do Resista!, na esquina, mas do outro lado da rua, outro salão foi posto à disposição. Ao ver a

placa de “aluga-se”, George Foto: Arquivo Resista! não hesitou em transformar esse pedaço de rua, até então sem vida, em espaço de cultura e arte. “Eu liguei para o Felipe, porque eles também estavam com a ideia de abrir um bar e estavam procurando um espaço. Ele até perguntou se não era muito perto e eu disse que era perfeito, a melhor coisa que aconteceu para o Holandês foi abrir o Resista! ao lado.” Essa amizade e parceria conecta as pessoas que se George em apresentação no Resista! aventuram nos rolês alterna- atividades foram encerradas tivos e é essencial para que e o local demolido em 2017. os empreendimentos darem Quando isso aconteceu, certo, pois, todos entendem Kenzo Minata, Felipe Faia, a importância desse trabalho Gabriela Kawakami e Rodrie, quando acontece de fecha- go Garcia resolveram suprir rem as portas, as dificul- a necessidade do público e dades e dissabores também abrir outro espaço, mas, dessão compartilhados, fazendo sa vez, na esquina da Avenicom que trabalhem juntos da Calógeras e Rua Antônio para manter o rolê vivo. Maria Coelho. “Quando teve aquele feResistir, verb.; conservar-se chamento do Vai ou Racha firme; não sucumbir a gente percebeu que a galCampo Grande já teve di- era ia ficar muito carente e versos bares e espaços vol- surgiu a ideia de montar um tados para o público alter- grupo de pessoas que estava nativo que foram fechando a fim de montar um bar pra conforme o tempo. Um dos especificamente apresenmais memoráveis é o Vai ou tações de bandas. [..] A gente Racha, que funcionava na começou procurando o ponesquina da Rua 14 de julho to ideal, um local baseado no com a Av. Euler de Azevedo, que a gente tinha de capital no bairro São Francisco. As Cafeína 22


Foto: Arquivo Resista!

Resista! nasceu para ser ponto de contracultura em Campo Grande

pra investir e gente pegou até um arquiteto para essa parte pra reformar, assessoria contábil, assessoria pra abrir.”, conta Kenzo Minata, um dos sócios do bar. Contudo, a vontade de abrir um bar não era apenas para sanar a falta do que tinha não existia mais. O conceito era ser um ponto de encontro da contracultura de Campo Grande e juntar o máximo de pessoas que não tem espaço e nem incentivo para expressar sua arte como os grupos teatrais e drag queens para fugir da padronização generalizada.

A referência clara para o nome do bar, que traz a ideia da resistência por parte dos que se interessam e querem viver da arte autoral na cidade, foi inspirado em um bar de punk rock de Corumbá. “Batemos o martelo no Resista que era como se fosse o início de um motim para galera da cultura realmente resistir e ter um ponto de resistência que seria lá com a gente”, explica Kenzo. Em relação a parceria que precisa existir entre as pessoas que apoiam os espaços alternativos e se aventuram

em dar sua contribuição para que a cena continue forte, Kenzo fala da amizade que tem com George e como ter bares tão próximos só agregam mais valor aos dois locais. “Desde antes de começar o bar a gente já tinha essa parceria, o George é o underground resistência em pessoa, a gente tem um respeito muito grande por ele [...]. A gente tem um evento em conjunto que é o “Resistência Voadora”, que são os dois bares juntos. A gente sempre achou que nessa parte de cultura a concorrência é zero, na verdade é só soma pra resistir mesmo”, declara. Como resistir é verbo e o local foi criado justamente para colocá-lo em prática, desde o começo o bar, que funciona há um pouco mais de um ano, seus sócios e o público passou por muitos impasses, desde ocupação na rua que ocasionou denúncias de perturbação até a mais recente interdição que os fizeram funcionar algumas vezes na clandestinidade. Por conta de toda a burocracia necessária para abrir um estabelecimento comercial dentro da lei com todos os alvarás, licenças e documentações necessárias, o bar teve sua inauguração realizaCafeína 23


da mesmo antes do alvará de licença ambiental, concedido pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Gestão Urbana (Semadur), fosse expedido, apesar de terem todos os outros como o da Vigilância Sanitária e do Corpo de Bombeiros. Mesmo com a da falta desse documento que certifica que a música ao vivo ou qualquer outra manifestação artística não perturbará a ordem e o sossego alheio, o Resista continuou abrindo normalmente. Até que um outro problema chamou a atenção da fiscalização até o local, resultando na interdição do bar. “O ambiental a gente nunca conseguiu tirar, mas a gente tinha que rodar* (nota

*Gíria para abrir; funcionar

de rodapé explicando a gíria) porque senão seria inviável mais um empreendimento e foi bem complicado. No começo a gente rodou sem problemas, mas aí surgiu os problemas externos, os problemas da rua que com as denúncias acabou chamando a atenção da Semadur e a gente acabou sendo notificado por conta de alvará.” A intenção não era funcionar na clandestinidade, mas era necessário para que todo o investimento feito no local fosse compensado, mesmo que minimamente, tendo em vista que mesmo fechado há contas e despesas para serem pagas o que, por sua vez, só pode ser feito se entrar recurso no caixa do bar. Aliás, o caixa é a única forma de

arcar com os compromissos financeiros, pois, a ideia era democratizar o acesso e torná-lo acessível a todos. “A proposta do Resista! foi não ter portaria, os eventos que tinha portaria era eventos que o pessoal fazia em parceria com o bar, mas os eventos do bar a gente queria que fosse acessível para galera, pras pessoas verem as pessoas tocar, conhecer as bandas daqui e tem mesmo um pouquinho desse lance de educar a galera a valorizar o rolê, se o rolê é de graça porque você vai comprar a cerveja do ambulante e não do bar que tá com a portaria aberta pra você ver as bandas daqui, acho que as pessoas tem que ter essa consciência de apoiar o rolê,

Foto: Arquivo Resista!


mas não propriamente o bar em si, mas o pessoal que tá tocando, que tá tentando trazer algum tipo de cultura pra Campo Grande.”, aponta o sócio do bar. Para Kenzo a ocupação da rua, com carros de som, ambulantes e pessoas que não é o público que o bar quer atingir trouxe alguns problemas como as denúncias pelo barulho e também pela sujeira. Contudo, na visão dele isso também é uma forma de manifestar e resistir a padronização da cidade. “Por essa carência de ponto de encontro, o Resista! acabou se tornando um ponto de encontro que não era bem do público que a gente queria, começou a ir uma galera

com carro de som, colava muito ambulante, então, o rolê acabava ficando externo ao Resista!, o pessoal fazia a ocupação da rua com carro de som tocando funk e aí começou a colar os ambulantes e ficou um rolê de rua, não ficou o rolê do Resista!, foi quando começou a ter problemas com a vizinhança, problemas de sujeira na rua, de depredação, a gente teve uma cobrança muito grande por conta do picho porque com o surgimento do Resista! a quantidade de picho teve um aumento gigante na região. Não foi nem problema do próprio barulho que a gente fazia, que a gente tem um projeto acústico, mas foi problema da rua.”

Foto: Arquivo Resista!

Foto: Arquivo Resista!

Decoração interna no Resista!

Palcos em bares underground dão espaço para música independente

Portanto, além da burocracia da documentação, o local também tem que lidar com as consequências de uma parte da população que ainda desconhece a arte de Campo Grande e apenas vê a rua como um ponto de divertimento barato. “O que a gente percebeu como parte do rolê às vezes as pessoas não dão a devida importância [...] acho que falta um pouco de Cafeína 25


consciência da galera, tanto que agora a gente tá vivendo isso, tem problema de alvará, mas também tem problema de público”, aponta. O bar continua resistindo junto com seu público para que não tenha o mesmo fim de tantos outros e possa realmente ser um ponto de encontro do rolê alternativo da cidade. Para fazer pequenos eventos, agora o local funciona como conveniência com um alvará de expedição quase instantânea, pois, é mais fácil vender bebidas alcoólicas que fomentar a cultura. Juntos a resistência é maior Além de ser um dos fundadores do Resista!, Kenzo é sócio de Leonardo Soldati na Brava, outra iniciativa para fortalecer a cena alternativa. A ideia inicial era fazer um espaço colaborativo viável financeiramente no qual os espaços eram divididos entre profissionais de diversas áreas que queriam ter o próprio negócio, como um escritório designer, que pertence a Kenzo, designer por formação, um de arquitetura, uma hamburgueria e também uma loja colaborativa que contava com várias marcas do estado e, atualmente, está retornando.

“A gente viu que a loja não estava rendendo como deveria, e muitas pessoas começaram a nos procurar para fazer eventos, esse negócio de eventos na Brava nunca foi uma coisa pensada, nunca foi para ser um bar com eventos [...] e a gente começou a abraçar esses eventos, quando a gente começou a abraçar esses eventos começou a aparecer a necessidade do bar ser maior do que era, então foi uma adequação, a loja foi ficando para trás.”, explica Kenzo. Por conta das barreiras econômicas impostas principalmente no ramo alternativo, atualmente espaços colaborativos estão sendo cada vez mais comuns, pois, dessa forma, diversas pessoas podem realizar seus projetos sem precisar arcar com todas as despesas sozinhas e ainda encontra apoio para conseguir ir em frente nesse mercado que merecia ser mais valorizado. A este respeito, Leonardo comenta: “Junto sempre é mais forte. Por exemplo, se a gente fosse manter sozinhos a Brava já não tinha. O aluguel é caro, os custos pra manter é muito caro [...] e isso acaba que é insustentável, o giro tem que ser muito grande pra

conseguir montar uma empresa com essa infraestrutura. Então, você dividindo em partes ela tem uma maior sobrevivência, a gente vê isso muito no co-working, que é a galera que divide espaço, cada um com sua função, cada um com seu trabalho, com sua renda, com sua atividade, mas o espaço é único e o pessoal acaba rateando as despesas, aqui é mais ou menos isso que acontece: tem as subdivisões como a gente pode montar a casa e cada um tem sua função, cada um tem seu tipo de trabalho, ninguém interfere em nada, a não ser quando é de senso comum, algumas decisões é consultado todo mundo, algumas não [...] todos os profissionais que a gente tem aqui dentro, todos os artistas que já expuseram, que expõe aqui e tem material aqui dentro gostam da proposta da casa e acabam abraçando a ideia e a brava, querendo ou não, de uns tempos pra cá só teve uma crescente, a gente tá sendo bem mais visto, o público começou a aumentar bastante e tudo isso tem a questão da cultura que a gente tá trazendo, a gente traz uns artistas novos, a gente sempre tá trazendo coisas novas paras pessoas estarem ouvindo, vendo, sentinCafeína 26


do, experimentando e acaba que já virou um ponto [...] o ambiente é legal, o sistema de funcionamento é legal, as pessoas compram a ideia e acreditam na proposta e a gente fica bem feliz” A famosa burocracia Os problemas com a fiscalização começaram no início de 2018, quando o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul decidiu derrubar uma série de modificações feitas no Código de Polícia Administrativa de Campo Grande de 1992, em relação a poluição sonora, e na Lei do Silêncio, de 1996, as quais previam horários menos rígidos para música ao vivo e mecânica, além de considerar que espaços culturais e de arte não eram ruídos ou perturbação do sossego alheio. A decisão foi dada em uma ação do Ministério Público Estadual, que entendeu as alterações como inconstitucionais. A partir disso, diversos bares alternativos, ou não, fecharam suas portas pela falta de recursos para se adaptar à queda drástica de limite sonoro que saiu de 90 decibéis, permitidos pela flexibilização, para os 45 decibéis exigidos nas normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT),

que passou a reger o funcionamento e fiscalização dos estabelecimentos. A falta de flexibilidade nas exigências da fiscalização afeta sobremaneira os espaços alternativos, tendo em vista que eles não são abertos visando apenas o lucro e, por muitas vezes serem locais acessíveis sem cobrança de entrada, tem baixa rentabilidade, logo, não há recursos disponíveis para fazer as adaptações, situação que piora quando o local permanece fechado em decorrência de interdições e multas. “É uma situação que se você tiver muita grana, muito dinheiro pra investir mesmo, você consegue regularizar, mas uma pessoa com muita grana dificilmente ela vai investir em rock autoral,

ela vai investir nas grandes bandas, nos covers, em uma casa de sertanejo então, o que sobra para o rock autoral é aceitar a ilegalidade ou fecha”, explica George. Um dos recentes fechamentos que abalou a cena alternativa foi o do Drama Bar que sucumbiu as rígidas leis e burocratização para expedição do alvará da Semadur. Após uma denúncia anônima e dois anos em busca do papel que daria a permissão para manifestações culturais sonoras, Mariana Senna Figueiró achou por bem fechar o estabelecimento, pois, de acordo com ela, o investimento foi alto para fazer as adaptações e quando cumpriu com todos os requisitos, o local foi autuado e interditado. Imagem: Arquivo Brava

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Foto: Arquivo Drama Bar “Na primeira semana de funcionamento do Drama levei multa porque eles disseram que eu não tinha entrado com processo do alvará, isso porque eu estava há dois meses esperando, com o Drama fechado, esperando o alvará que nunca saia, ou seja, eles estão autuando sem ao menos ter controle.”, declara Mariana. Ela ainda afirma que as exigências e trâmites para a expedição do alvará são difíceis de serem cumpridas, Drama Bar promoveu diversas atividades culturais em Campo Grande pois, a cada nova inspeção Assim como outros rolês, como espaço cultural realifeita pela Semadur, as mu- o Drama foi organizado com zando diversos eventos que danças solicitadas para que o o intuito de valorizar a arte agregaram na cena underimóvel seja aprovado é cada local e dar visibilidade aos ground da cidade. vez maior. “Quando conse- artistas regionais que fazem “Teve exposição de arte, guimos fazer tudo que eles trabalhos paralelos ao cir- música e exibições de filmes. pediram veio a interdição daí cuito comercial e, além de Ainda foram realizadas ações quebrou a gente”, desabafa. bar, também funcionava sociais, teatro, conversas soFoto: Arquivo Drama Bar bre o Mercado Municipal. Tiveram dois eventos musicais grandes, Dia da Música e o Grito Rock. Trouxemos DJs importantes da música eletrônica para cá.” Mariana entende também que o fechamento desses pontos não se dá apenas pela fiscalização inflexível, mas também porque muitas vezes os artistas e o público não se organizam de forma a pedir incentivos e mostrar que os merecem. “Os artistas precisam se organizar, porque organizado

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Foto: Arquivo Drama Bar

Drama Bar funcionou como lugar de apoio para arte independe da cidade e teve despedida na festa de dois anos

conseguem ser mais respeitados, conseguem adquirir junto ao poder público benefícios para a profissão. Tem a questão dos colegiados, por exemplo, a classe se une para reivindicar melhoras para o setor. Isso está acontecendo na dança, no teatro, na música e no audiovisual. E o público precisa ter mais interesse nos artistas locais, valorizarem o que é feito na cidade, é uma eterna luta.” Apesar das interdições e multas há consenso de que é preciso fiscalizar, pois, ter uma estrutura adequada é parte importante para que o rolê não ofereça riscos a quem o frequenta. Todavia, essa falta de olhar por parte do poder público para esses espaço que incentivam a cultura e pouco lucram com isso, faz com que o processo de regularizar os papéis necessários seja muito dispendioso, ainda mais porque as licenças são caras para serem concedias.

Para abrir o Holandês na Calógeras, o dono do bar teve que esperar cerca de um ano e dois meses para enfim saber que não conseguiria a licença junto a Semadur. Ele conta que o processo se resumiu em entrega de documentos e longas esperas, mas, que por fim, não pode dar prosseguimento ao trâmite porque o local não tem o Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) em dia com a Prefeitura Municipal, que é de responsabilidade do dono do salão. “Tudo isso pra ligar o microfone pra um jovem poder falar. Mas, se eu quiser, em cinco minutos eu tiro uma licença pra encher ele de bebida, então, isso é uma ofensa ao artista. O que a gente precisa pra poder funcionar é uma lei que enxergue o espaço de cultura, que fale que Campo Grande precisa pra fomentar uma identidade cultural mais forte, precisa facilitar a criação da arte, para que a arte aconteça.”, manifesta George. Cafeína 29


Kenzo entende que essa burocratização parecer ser pensada para que os empreendimentos que não contam com altos investimentos não sobrevivam por muito tempo, pois, a cada etapa resolvida aparece mais algumas “Eu costumo dizer que pra burocratizar eles são perfeitos, para simplificar não existe, é uma cadeia que eles montaram de grilhões que você vence um, mas tem mais dez ali, e na hora que parece que você chegou no último, vai arrebentar e na hora que você vai ver seu pé tá preso lá no primeiro, ou seja, acabou pra você, não é pra vencer nunca, é pra desistir.” Como forma de estratégia para conseguir abrir de forma clandestina pela ne-

cessidade de pagar as contas e pela vontade de não sucumbir sem lutar, os bares traçaram estratégias para não chamar a atenção e apenas atender quem realmente está interessado no fortalecimento da música autoral e dos rolês alternativos. Um dos meios foi começar a fazer a divulgação “boca a boca”, sem endereço, sem pontos de referência ou qualquer tipo de informação, até porque as pessoas que estão ligadas à essa cena sabem onde fica os rolês e também entendem as dificuldades para mantê-lo. “Hoje a gente não pode mais divulgar, a gente não pode falar que está aqui porque senão a Semadur vem e você não pode infringir a lei colocando a juventude pra tocar. Vou fechar o Holandês para buscar alter-

Foto: arquivo Holandês Voador

Após oito anos de criação, Holandês fechou as portas em setembro de 2018

nativas para que isso se viabilize [...] se você não gastar uma fortuna fazendo o que a Prefeitura quer, fazendo o que o estado deseja você não vai abrir, e uma pessoa que tem uma fortuna não vai investir na cena autoral.”, enfatiza o dono do Holandês. Apesar dos pesares, a esperança permanece viva, pois, os rolês não são apenas espaços de cultura, mas, também de reunir pessoas com ideias inovadoras, que olham além da fronteira já conhecida e que querem se expressar. Portanto, independente de ter um local para se reunirem essas pessoas sempre irão se juntar e não deixar que a ideia do alternativo fique à mercê de papéis e processos legais. “O espaço como Drama pode acabar, o Resista! pode fechar, mas é como pegar água na mão, vai escapar por algum lado, em algum lugar esse pessoal via se encontrar seja numa praça, seja num boteco de esquina, mas eles vão se encontrar. O rolê nunca vai morrer! Eles vão acabar se encontrando pra tentar fazer, pode não ter a amplitude que tem dos rolês abertos, mas eles vão ficar lá, como brasa por baixo das cinzas, vão ficar queimando, Cafeína 30


você abre um lugar novo, Foto: Arquivo Resista! como abriu o Resista! e todo mundo pega fogo de novo, isso é sempre.”, manifesta Leonardo. Os fechamentos em massa, além de reduzir as opções de lazer, também prejudica de forma acentuada os artistas que dependem desses palcos para mostrar sua arte e elevar a cultura de Campo Grande a outros níveis. Esses locais são tão primordiais para manter a cultura underground ativa que quando aconteceu o movimento contrário, com o surgimento Cenário alternativo vive de incertezas desde a legislação mais rígida deles, diversas bandas se enpouquíssimos bares que es- sentar? E aí afeta muito de corajaram a fim de percorrer sas bandas não tem acesso, não ter um lugar pra se aprea estrada da arte, tendo em então, acaba desanimando a sentar, a gente vê isso pelas vista que agora tinham onde cena 100%, porque, qual é a bandas que voltaram a tocar expô-la. moral de ter uma banda que por causa do Resista.”, expli“Quando a gente abriu o vai ficar ensaiando, ensaian- ca Kenzo. Resista! a gente percebeu um do e não conseguir se aprecrescimento muito grande no movimento de bandas que Foto: João Gabriel Nascimento voltaram a tocar porque agora tinha um local condizente com a banda. Muitas bandas se formaram no período que o Resista! ficou aberto. Então, ter um espaço para poder mostrar sua música é essência motivacional para muitas bandas continuarem tocando e outras bandas surgirem, com o fechamento do Drama, por exemplo, que era onde as bandas estavam se reunindo [...] se resumiram a O prédio onde era Holândes não tem mais pinturas características do bar Cafeína 31


45db NÃO! Para ter condições de debater essas mudanças e suas consequências para a cultura de Campo Grande em igual nível com os órgãos públicos, o cenário alternativo, com diversas representatividades, se organizou no movimento denominado “45dbNão!”. De acordo com Kenzo Minata e Felipe Faia, que fazem parte grupo, o movimento não é apenas uma forma de protesto, mas também busca maneiras viáveis de flexibilizar a legislação e incentivar a manifestação cultural e de lazer. O movimento se organizou em torno de bandas, músicos, donos de bares e espaços alternativos e outros representantes de diversas áreas afetadas pela falta de flexibilidade da lei. Ainda segundo os envolvidos, formar o coletivo torna mais viável o questionamentos da decisão de desembargadores e

procuradores de justiça, por meio legal. Além de mostrar argumentos para defender a posição de que 45 decibéis é muito pouco como limite sonoro para manter um espaço que depende da música para atrair público e permanecer aberto. O planejamento se dá a pequeno e médio prazo e, um dos meios legais de buscar esse incentivo é através do Plano Diretor de Campo Grande, que dentro das obras do projeto Reviva Centro, prevê as Zonas Especiais de Incentivo à Cultura. Conforme consta no programa, essas áreas são voltadas para atividades de cunho artístico,

de lazer e cultural, portanto, permitem flexibilização das exigências e fiscalização. A longo prazo, a ideia de usar as ZEIC como forma de incentivo, é tornar, também por meio da organização da cena alternativa, a área entre a Avenida Calógeras e Antônio Maria Coelho, que hoje está esquecida, em um desses espaços dedicados à cultura. Esse pensamento ao mesmo tempo que resolveria a questão da legalização dos locais, faria com diversos problemas sociais como consumo e venda de drogas na região diminuíssem ou desaparecessem, pois, haveria uma movimentação noturna Foto: Arquivo Resista!

Festival 45 Decibéis reuniu o undergroud em quatro dias de sussuros Cafeína 32


na região, o que inibiria ações como essa, a exemplo do que é realidade em Vitória (ES), onde a arte independente revitalizou o centro antigo da cidade. Contudo, esses são planos para serem desenvolvidos a médio e longo prazo e só será possível com a parceria dos espaços com o poder público. Por enquanto, segundo Kenzo e Felipe, que são sócios no Resista!, o caminho será se adequar a legalidade para manter o rolê ativo, o que também não será fácil devido à baixa lucratividade do caixa, tendo em vista que estão de portas fechadas há mais de seis meses. Como parte das manifestações em prostesto pelo fechamento em massa do rolês, entre o dia 15 e 18 de agosto de 2018, o Resista! em parceria com outros rolês alternativos como a Brava e o Holandês Voador, realizou o Festival 45 Decibéis, no qual a principal atração, conforme divulgado nas mídias sociais do bar, foram os cochichos do público, desde que não ultrapassassem a barreira de som estabelecida pela lei. Para viabilizar a abertura do local durante o evento sem que a fiscalização tivesse motivos

para fechá-lo durante a realização, o bar funcionou apenas como conveniência, sendo que só foi preciso emitr uma licença para vendas de bebidas alcoólicas, a qual se faz pela internet e fica pronta rapidamente. Durante os quatro dias rolou diversas atrações, mas todas priorizando o silêncio como fator principal. Teve grafite ao vivo na fachada do bar, assinatura do abaixo- assinado pelo público que apoia o rolê e exibição de filmes do cinema mudo,além da gravação de um documentário. Para formalizar o movimento e esclarecer o motivo de sua criação, bem como seus objetivos , os organizadores elaboraram um manifesto em defesa da arte autoral e do direito dos artistas tocarem suas músicas. Você poderá lê-lo na íntegra na próxima página. Semadur Procurada pela reportagem da Revista Cafeína, a Secretaria de Meio Ambinete e Gestão Urbana (Semadur) informou que “a emissão de ruídos em decorrência de quaisquer atividades industriais, comerciais, prestação de serviços, inclusive de propaganda,

bem como religiosa, sociais e recreativas obedecerão aos padrões estabelecidos em Lei [NBR 10.151 e NBR 10.152], não há flexibilização em legislação e sim o cumprimento da mesma. Em alguns casos, quando ocorre a fiscalização, e há a ausência da documentação exigida por lei, como por exemplo o Licenciamento Ambiental, o local é devidamente Notificado e Autuado. Ressaltamos que a Semadur cumpre o seu papel de órgão fiscalizatório.”

Para conhecer mais:

Leia: “Como a cena independente está revitalizando o centro de Vitória” Disponível em: https:// www.vice.com/pt_br/article/ a33gq8/como-a-cena-independente-esta-revitalizando-o-centro-de-vitoria

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MANIFESTO EM DEFESA DA MÚSICA:

O movimento 45dbNÃO aponta para o começo de um importante diálogo no sentido de viabilizar a cena musical, especialmente da música autoral de Campo Grande - MS e das cidades brasileiras em geral, em função dos últimos acontecimentos envolvendo a legislação que altera os limites sonoros dos bares e casas de espetáculos, e que vem promovendo, não apenas o fechamento dessas instalações em função de notificações, multas e etc., mas também consequências nefastas para o desenvolvimento da cultura, em especial à música Sul-mato-grossense. Qualquer profissional ligado à área de conforto acústico sabe que a mudança dos limites sonoros de 90db para 45db inviabiliza qualquer atividade de lazer com música, seja mecânica ou ao vivo, uma vez que este limite é superado, por exemplo, por uma conversa em uma reunião ao redor de uma mesa. Sabemos que a legislação local se ampara na legislação nacional, mas sabemos também que a aplicação das leis exige sabedoria e bom senso. O estado do Mato Grosso do Sul é pródigo na produção de músicos talentosos e renomados e podemos citar Almir Sater, Tetê Espíndola, Márcio de Camilo, Bando do Velho Jack e Michel Teló, entre outros. Nenhum deles poderia ter desenvolvido suas carreiras se não tivessem onde realizar seus shows e apresentar suas criações. Além disso, é sabido também que o plano de revitalização do centro da cidade, através do projeto Reviva Centro, a partir de iniciativa da PLANURB, previa desde seu começo o estabelecimento da ZEIC (Zona Especial de Interesse Cultural) que deveria promover a cultura local estabelecendo um perímetro de zoneamento urbanístico onde as ativi-

dades culturais - e entendemos que a música faz parte da cultura - seriam incentivadas e fomentadas. Deste modo, julgamos necessária uma moderação estratégica da SEMADUR e do Ministério Público que possibilite viabilizar a continuidade da cena musical MS, buscando evitar conflitos e especialmente, deliberações que motivem ações policiais com repressão e violência. Acreditamos no diálogo entre os diversos segmentos da sociedade, e acreditamos sobretudo que a cidade é de todos os cidadãos. Portanto, todos deveriam ter o direito ao desenvolvimento pleno de suas atividades profissionais, e naturalmente, de lazer e cultura. Se você tem uma visão que possa contribuir para uma solução possível para a questão, ajude-nos a enriquecer este debate! A banda de rock autoral Os Alquimistas também apoia o movimento [...] A importância de apoiar esse movimento é buscar o direito de todos ao acesso e consumo de cultura, de música autoral, o direito de lazer, de encontrar amigos, de sermos felizes e não sermos impedidos de vivermos plenamente; o direito de exercermos nossa profissão de músicos, além de todos os envolvidos com casas noturnas, desde a limpeza, portaria, caixa, bar tender, roadies, técnico de som, até o próprio dono da casa noturna. [...] Enquanto isso esperamos que em um futuro próximo a nossa luta permita que a cena musical campo-grandense tenha progresso, e que as bandas e pessoas tenham mais espaço na cidade, devolvendo os direitos de lazer e cultura à nossa população.”


Café com elas

O feminismo além das teorias e discursos Mulheres de Campo Grande se unem para colocar empoderamento na prática cotidiana Ana Clara Santos

“Porque o feminismo é um movimento político”. Essa frase dita pela psicóloga Carlota Philippsen, membro do Coletivo Feminista Lídia Baís, explica de forma didática a premissa básica do que é o feminismo, esse movimento tão discutido na atualidade e que agrega cada vez mais mulheres, mas que ainda causa muitos questionamentos e ideias erradas a respeito. A fim de mostrar que o movimento não é algo de outro mundo e que a política nele embutida pode ser vivenciada de diversas formas, mulheres de Campo Grande estão se reunindo em coletivos, seja para viabilizar condições de

trabalho e independência ou para desenvolver ações que levem informações e tornem acessíveis os modos de empoderamento. Com uma varanda ampla e convidativa que exibe enfeites de pássaros e borboletas, a Casa Nuvem é um exemplo bem sucedido de coletivo que tem em sua formação mulheres que enxergaram no apoio mútuo um meio de terem independência financeira, disponibilizando espaços para que empreendedoras, assim como as criadoras, tivessem um espaço para ampliar e consolidar seus negócios. A Casa funciona desde março de 2018 e foi idealizada pela cabelerei-

ra Paula Garde e por Daiane Libero, que é assessora de comunicação. “Como é difícil cada uma se bancar em seus espaços, a gente pensou em fazer a Casa e suprir minhas necessidades pra eu sair lá do quintal de casa e da Lira (Daiane) ter o espaço da agência dela, ela também precisava de um espaço porque fazia homeoffice”, conta Paula, explicando como surgiu a ideia de montar o espaço. Além do salão de Paula, da Una Comunicação e da Pagu Shoes, ambas empresas de Daiane, a Casa ainda é formada pelo trabalho artesanal de Maria Celina Piazza, com os colares e cerâmica Maria Cafeína 35


Karaguatá, por Luciana Suzuki, que trabalha com extensão de cílios e pela sócia de Daiane da Una Elci Holsback. Muito mais que um local de trabalho, a Casa serviu para juntar mulheres que buscam um ideal em comum: empoderar-se e permitir que outras tantas se empoderem por meio do trabalho prestado por elas, mesmo que sejam estéticos como no caso de Paula e Suzuki, que usam seus talentos para proporcionar autoestima e autoconfiança a suas clientes. Por conta do salão, Paula já conhecia Luciana e Maria Celina, as convidando para ter um espaço na Casa mesmo antes da inauguração. “A Maria Karaguatá tem um trabalho incrível com os colares dela e cerâmica e ela também trabalhava em casa, tem a Luciana que faz extensão de cílios e também trabalhava em casa e também uma pessoa incrível e calhou que a gente se encontrou e montou a casa, eu e a Lira somos sócias e as meninas também fazem parte de tudo”, declara Paula. Assim como a cabelereira, Luciana Suzuki tem um trabalho totalmente voltado para a estética que vai além da aparência, para ela é um

equivoco pensar que por ser feminista a mulher deixará de se cuidar, muito pelo contrário, segundo ela “as mulheres se olham e se sentem lindas, com um olhar vivo! Saem da minha maca prontas para ganhar o mundo! Eu digo isso pq foi assim que me senti quando fiz a primeira vez, há mais de três anos.” Ela ainda explica que ser extensionista de cílios é algo novo, pois, quando sua primeira filha nasceu deixou o emprego em um banco de São Paulo e se dedicou à maternidade por durante seis anos. Em abril de 2017 ela fez o curso de extensão de cílios, mas só começou a colocá-lo em prática em agosto,

quando seu filho mais novo começou à ir na escola. “Atendia em casa e a carteira de clientes foi crescendo e comecei a planejar alugar um espaço. Eu era cliente da Paula e em uma das conversas falei sobre a vontade de alugar um espaço e, algumas semanas depois, ela me disse que tinha o projeto do salão em um novo espaço e me convidou a fazer parte.”, relembra Suzuki. Outra mulher que viu novas possibilidades de trabalho foi Maria Celina Piazza, professora no curso de Química na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) por 35 anos e, há três anos, depois de se aposentar, iniFoto: Paula Garde

A ideia do salão de Paula é fazer com que as clientes se sintam em casa Cafeína 36


Pinterest

ciou seu trabalho com colares artesanais e cerâmica. Ela conta que entrou para o coletivo também a convide de Paula e como precisava de um espaço maior para desenvolver o artesanato não pensou duas vezes em aceitar. Segundo ela, a ideia lhe pareceu atrativa porque as pessoas que já faziam parte, as quais a Paula descreveu durante a conversa, encaixaram naquilo que ela procurava. Como o feminismo é um movimento para todas as mulheres independente de qualquer coisa, as mulheres da Casa Nuvem acolheram Maria muito bem, pois, apesar da diferença de idade, ela é uma mulher se inovando depois de tanto tempo na mesma profissão.

“Sempre aprendendo com as meninas porque eu considero elas da geração nova e existem alguns olhares que são diferentes e eu estou aprendendo isso e está sendo muito bacana.” Outro ponto que chamou muito atenção de Maria foi a ideia da colaboração, algo que ela preza muito desde os tempo de docência e ver mulheres unidas em prol umas das outras é um exemplo que nunca é tarde para ser feminista. “Essa ideia que muitas vezes passam que as mulheres duelam entre si, que são competitivas entre si, isso é algo que a gente precisa desfazer porque existe muito mais uma cooperação para que todo mundo ande junto e chegue onde quer chegar e isso parece que essa geração tem esse conceito mais agregado que anteriormente.”, afirma. Da mesma forma, Elci diz que esses coletivos são importantes, pois, trabalham a junção de mulheres que tem o mesmo objetivo para que, dessa forma, possam se fortalecerem umas nas outras. “Acho que é importante as mulheres se juntarem. Estamos em tantos seguimentos do mercado, evoluindo, batalhando pra ter respeito.

[...] Nós temos essa vertente feminista, não para a mulher ser melhor que o homem, mas por essa coisa de buscar pelo respeito.”, ressalta. Como uma forma mais prática de explicar o feminismo, elas também promoveram a 1ª edição do Papo na Nuvem cujo tema foi Mulheres na Ciência. De acordo com Daiane a ideia é fazer mais edições dessas rodas de conversa para debater o espaço da mulher na sociedade e outras questões levantadas junto com a luta das mulheres. Ela ainda explica que a ideia é agregar conhecimento às mulheres e proporcionar formas de fortalecer umas às outras, pois, a Casa, muito além de vender produtos, também precisa promover eventos no qual as colaboradoras acreditam. Seja com rodas de conversa no parque falando com mulheres mais esclarecidas a respeito do que é o feminismo ou falando para mulheres que muitas vezes nem ouviram falar nele, ter um debate aberto e agregar informações verdadeiras a respeito desse movimento é uma forma de vê-lo acontecer na prática.

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Feminismo e o social

Em Campo Grande, quem seguiu por esse caminho foi o Coletivo Feminista Lídia Baís, formado há cerca de dois anos e que desenvolve diversas ações a fim de que p feminismo saia das salas de discussões ocupadas por mulheres que estudam a fundo o movimento e atinja até as mulheres mais humildes intelectualmente. “A ideia era que tivesse tanto um espaço pro estudo da teoria, troca de material, todas nós consideramos uma parte bem importante [...] e também a gente pensou em colocar em prática coisas pudesse nos aproximar de outras mulheres, que a gente pudesse, a partir desse estudo, da apropriação da teoria, que a gente pudesse também levar esse teoria, levar essas ações, buscar formas de atuar realmente na materialidade dos grupos de mulheres que a gente tem”, explica Carlota a respeito dos motivos que levaram a criação do coletivo. Entender que o feminismo “não é só pra mim, nem só pra você, é um movimento de emancipação coletiva” como ela mesmo determina, foi primordial para que junto com outras mulheres elas começassem a trabalhar para levar informações e ajudar

outras mulheres a se enxergarem dentro do movimento. “A partir de quando o coletivo começou a acontecer, a gente começou a ser chamada, por exemplo, pela comunidade do bairro para falar um pouco sobre feminismo, eu como psicóloga ser chamada pelo CRAS para falar com as mulheres, a maioria delas vulneráveis, sem emprego, sem um homem para ajudar, a maioria delas mulheres criando os filhos, os netos sozinhas, então, eu acho que realmente é um trabalho de formiguinha que a gente ainda tem que fazer por conta dessas desigualdades.”, declara. Ela ainda conta que o grupo começou a ser formado justamente em um ambiente de discussão sobre o movimento, que era uma página do Facebook, quando se juntou com outras mulheres que moram em Campo Grande estavam nesse grupo de alcance nacional. “Mas foi uma necessidade, o que a gente conversou, conforme a gente começou a estudar foi que gerou uma necessidade de aplicação, do “E agora o que a gente faz com isso?” e, às vezes, a teoria é só um pensamento e ela só se materializa através da atividade e por essa necessidade

da gente colocar em prática, testar, ver a veracidade, se aquilo funciona mesmo, foi essa necessidade que fez a gente se organizar.”, explica. Contudo, o feminismo está longe de ser algo mágico que transforma a vida de diversas mulheres com apenas um discurso e termo acadêmicos. O movimento passa por uma ordem de processos, desde a desconstrução de diversas padrões e conceitos aprendidos durante a vida, aprendizagem de outros, aceitação de que muitas coisas ainda levaram tempo para mudar e a aplicação na prática. Isso sem contar o grande número de mulheres que não tem esse tipo de conhecimento, mesmo que muitas delas vivam empoderadas, sempre agrega mais valor quando tomam o movimento como uma luta sua também. É importante ressaltar que por ser um posicionamento político, o feminismo é muito mais que a mulher ter liberdade para usar o cabelo ou as roupas que quiser, ou escolher usar maquiagem ou não, ou decidir sobre sua vida como um todo. O feminismo também olha para as situações sociais em que mulheres vivem e como isso impacta diretamente no modo com elas entendem o mundo. Cafeína 38


“A gente vê nas propagandas a mulher passou batom vermelho tá empoderada, acabou a opressão e isso muitas vezes faz a gente se esquecer que não é um batom: o Brasil é 4º país em casamento infantil. Meninas de 8,9, 10 anos se casando, milhões delas por dia se casando com homens de 40, 50 anos, elas podem passar o batom que elas quiserem que elas vão continuar casando com 9, 10 anos.”, explica Carlota. Pensando neste viés mais social, o coletivo desenvolve diversas ações para tornar acessível as ideias feministas. Uma dessas ações aconteceu em parceria com a Prefeitura Municipal de Campo Grande, na qual foram distribuídos produtos de higiene pessoal para mulheres que vivem em situação de rua no entorno da antiga rodoviária. Carlota explica que quando a ação foi proposta, elas buscaram os meios de chegar até essas mulheres e contaram com a ajuda do Município que já faria uma ação na mesma época: “A gente pensou em trabalhar em parceria mesmo e não ficar perdendo tempo fazendo ação duplicada, [...] a gente fez a coleta de absorvente, pasta de dentes, escova de dente, sabonete, a gente foi falando

pro pessoal e conseguiu juntar esse material e colocamos eles junto com o material que teve do pessoal da prefeitura.” Carlota também esclarece que não é tão fácil como parece e, por mais que as idealizadoras saibam que ações como essa beneficiam as mulheres, é preciso ter cuidado para que a mensagem chegue conforme o esperado. “A gente pontuou muito essas questões, principalmente as mulheres que já trabalharam pelo viés da assistência social, pelo viés da saúde, que não é assim tão romântico a gente sair por aí fazendo as coisas. Foi uma ação muito pensada, muito organizada, e a gente achou até melhor por conta dessa logística de que já existe uma rede que trabalha com essa população, a gente achou mais produtivo trabalhar junto com esses parceiros”. Independente de como a teoria do feminismo é trabalhado na prática, esse é um movimento que alcança as mulheres ao longo do tempo, mesmo aquelas que sabem as teorias e grandes pensadoras do assunto. “Eu percebo que a gente ser mulher nesse mundo e resistir a muita coisa já é ser feminista, quando a gente faz

certas escolhas, bate de frente a gente já tá sendo feminista, quando a gente busca, quando a gente percebe que as coisas estão erradas, quando a gente não aceita o local que nos é separado, mas eu percebi durante o meu amadurecimento como pessoa que a gente precisa fazer alguma coisa, ou a gente abafa e deixa que o mundo passe por cima, ou a gente bate no peito e diz “ sou feminista, e isso é um posicionamento político e é desse lugar que eu vou falar agora”, finaliza Carlota.

Para conhecer mais: Livros: • Os homens explicam tudo para mim (2017), Rebecca Solnit • Lute como uma garota: 60 feministas que mudaram o mundo (2018), Laura Barcella e Fernanda Lopes • Histórias das mulheres no Brasil (1997), Mary del Priore (org.)

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Fotocafeína

Upcycling e todo estilo das pochetes Foto: Gabriel Torres

Ana Clara Santos

A Bello Trappo é um marca originalmente mato-grossense, criada há 15 anos pela costureira Nara Leite. Voltada para a criação de bolsas, mochilas e pochetes, as peças são fabricadas por meio do designer de upcycling*, ou seja, tudo é feito a partir de materiais como roupas velhas, principalmente jeans, guarda-chuvas quebrados, barraca de acampamento e quaisquer outros materiais, desde que sejam apropriados. Nara ainda trabalha com serigrafia, dá aulas de costura e em um ateliê de pintura. Todas essas atividades são realizadas na loja colaborativa Frida-se, A doação de material para as peças seguem duas campanhas: “Doe seu jeans e tenha

descontos em nossas peças” e “Transforme a sua roupa em algo especial e útil.” Confira algumas das peças feitas por Nara Leite no editorial nas próximas páginas. As fotos tiveram produção coletiva da equipe Bello Trappo e contou com os modelos Thales Juan, Elso Oliveira. Maewe Ribeiro, e registrado pelo fotógrafo Gabriel Torres.

*Upcycling é a técnica de reaproveitar materias e dar novas ultilidades à eles

Serviço: A Frida-se fica na Rua Sebastião Lima, 237, Centro, O atendimento é feito com hora marcada. Cafeína 40


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Modelo: Thales Juan Maquiagem: Maewe Ribeiro Pochete: Nara Ribeiro Foto: Gabriel Torres

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Modelo: Nara Leite Pochete: Nara Leite Foto: Gabriel Torres


Modelos: Thales Juan, Nara Leite, Maewe Ribeiro e Elso Oliveira Maquiagem: Maewe Ribeiro Pochetes: Nara Leite Foto: Gabriel Torres


Modelos: Thales Juan, Nara Leite, Maewe Ribeiro e Elso Oliveira Maquiagem: Maewe Ribeiro Pochetes,bolsas e mochilas: Belotrapoo Fotos: Gabriel Torres


ColabCafé

Conversas com desconhecidos proporciona novas perspectivas Experiência consiste em puxar assunto com pessoas que passam e se interessar por suas histórias

Ketlen da Silva*

Logo quando acordei no domingo de manhã, não estava muito preparada para falar com estranhos no meio do Parque das Nações Indígenas, estava aceitando que ninguém viria falar comigo e iria embora com as mãos abanando e uma matéria pendente. Peguei minha simples placa, na qual pedia para pessoas me contarem a história delas, e me dirigi ao local com tanto receio, que só passou assim que finquei os pés na grama e aguardei pelas histórias que seriam ditas e pelas pessoas que as contariam e como reagiriam à minha pergunta. Percebi que as crianças estavam em maioria no local por conta de um evento em prol da saúde infantil que estava acontecendo. Nunca vi tantas em um só lugar. Fiquei parada por pouco tempo até a primeira pessoa me abordar. Kelly é mãe solteira, estava acompanhada do pequeno Davi, e se aproximou apenas por curiosidade, dizendo que estava no local para a primeira maratona do seu filho, que ao ser citado, era perceptível o brilho nos olhos da mãe e a alegria abundante. Porém, a conversa durou pouco, Davi estava agitado e não

Na manhã do experimento diversas pessoas pararam para conversar

queria mais ficar ali. Então nos despedimos e logo se distanciaram. Eram muitas pessoas que passavam curiosas para saber o que estava acontecendo, porém nunca paravam para conversar, principalmente quando eu percebia os olhares e as chamava para conversar ou apenas sorria as esperando, sendo totalmente ignorada. Eu, particularmente, achei engraçado por conta de como as pessoas são tão tímidas para contarem algo sobre seu dia, sobre sua vida para uma completa desconhecida. Houve alguns que foram embora comentando que eu estava fazendo um tipo de terapia e não estavam preparadas naquele momento. Foi inusitado, intrigante. Logo após, André me abordou com a Rafaela, de 1 anin-

ho, no colo. Ele foi para lá passear com a pequena e esperar a esposa que havia levado para realizar uma prova de concurso público. Disse que o Parque é um ótimo lugar para relaxar. “Minha rotina é bem corrida e eu e minha esposa aproveitamos, quando temos tempo, pra vir aqui e olhar os bichinhos. As crianças adoram”. Quando ele se despediu, me desejando boa sorte, notei que a paisagem estava ficando cada vez mais magnífica e até me perdi por um momento para admirá-la enquanto esperava mais alguém para “dois dedos de prosa”, como Roseli, uma autônoma sorridente de 46 anos, me disse ao convidar o namorado para conversar um pouco comigo, porém, a timidez foi mais forte. Ela foi a que mais me con-

*Reportagem colaborativa: as informações e opiniões são de inteira resposabilidade da autora

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tou sobre sua vida, pois aproveitou a companhia para esperar seu companheiro que estava no banheiro e, juntos, estavam caminhando pelo Parque, o que, segundo ela, foi um complemento para a mudança de hábitos que estavam seguindo na alimentação. “Ele precisou mudar a alimentação, aí tive que mudar também. E ele precisa fazer caminhada por causa da falta de vitamina no sangue. Aí eu pensei: por que não sermos saudáveis juntos, não é mesmo?”, relatou. Roseli também perguntou sobre minha vida, meu futuro, minha faculdade, posso dizer que foi como se fôssemos amigas de longa data, pois a conversa fluiu naturalmente, como se já nos conhecêssemos. Perguntei se já teve vontade de ter filhos, pois não citou nenhum (a) ao longo da conversa e respondeu que houve um tempo que teve vontade, mas agora está feliz com sua vida da forma que está. Relatou que esse já foi um sonho. Dei muitas risadas quando começou a chamar outras pessoas para conversar comigo, para me ajudar na realização da matéria. Resumindo: um amor de pessoa e sendo humilde, , desinibida e alegre o tempo todo. Nos despedimos quando ele chegou e continuaram sua caminhada. Foi quando algumas crianças, de 13 a 14 anos, que já estavam me observan-

do há um tempo, apareceram. Elas estavam organizando o evento e me apareceram bem atrevidas, com comentários desnecessários. Percebi que as crianças de hoje não são mais as mesmas do que antes: sinceras e risonhas. Logo elas foram embora, o que agradeci, devido à situação. Mais alguns minutos e vi, ao longe, que o evento estava terminando e as crianças, juntamente com os pais, já estavam indo embora. Esperei que elas falassem comigo, contassem como estavam se sentindo e se já pensavam no futuro. Logo que chegaram próximos ao local onde eu estava, dois casais estavam tentando convencer os filhos à falarem comigo. Agradeci a eles mentalmente e aguardei as crianças, enquanto me despedia mais uma vez de Roseli, que já havia terminado sua caminhada e estava a caminho de casa. Recebi um abraço e um desejo de ótimo trabalho. Foi aí que Pedro Henrique se aproximou, sorridente e tímido, mas quando iniciei uma conversa, ele logo se soltou e falou animado que seu grande sonho é fazer gastronomia pois ama cozinhar (mas também gosta muito de comer, eu perguntei). Um sonho bem diferente de outras crianças, eu penso, que querem ser bombeiros, médicos ou jogadores de futebol. Depois de algumas risadas e ele disse “tchau” porque

precisava ir embora, seus pais o estavam chamando. O outro garoto também se aproximou, não entendi seu nome porque estava escondido de vergonha em seu pai, então fui rápida e só perguntei como estava, deixando-o ir embora. Quando saiu, já comecei a arrumar minhas coisas para também ir embora, já não havia mais tanta gente assim. Enquanto fazia meu caminho de volta, fiquei pensando em como essa experiência foi bem-sucedida. Escutei histórias inspiradoras e vivenciei como o amor e a família são importantes, em como o julgamento quanto às pessoas devem ser evitados porque qualquer um poderia pensar que eu era uma pessoa ruim, mas resolveram contar sua história de vida, sua rotina, sem qualquer desconfiança é apenas me ajudar, confiar em mim. Nunca gostei tanto de conversar e conhecer pessoas como neste domingo. Com certeza será uma experiência que vai demorar para ser esquecida e vale a pena ser feita muitas vezes. Ouvir nunca foi tão gratificante.

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Uma xícara e um filme

Cineclubes resgatam clássicos do cinema Projetos nascem de forma independente e visam formação de público e produção regional

Sobre mentes utópicas, cafeterias e uma sacada Segunda-feira,19h30, pessoas de todas as idades se acomodam em um pequeno auditório no centro da cidade. Sentados nas poltronas ou até mesmo no chão, todos acompanham o desenrolar daquela trama, sentem o ritmo, percebem a estética, reparam nas expressões e exibem emoções. O filme da noite é Dançando no Escuro, do diretor dinamarquês Lars von Trier. Por algumas horas todos fazem parte de uma longa tradição que atravessa gerações: o cineclubismo em Campo Grande. Nesse dia, a exibição era realizada no Museu da Imagem e do Som (MIS), promovida pelo CineCafé, que existe há mais de dois anos e é um dos cineclubes mais atuantes da cidade. No hall de entrada, quando o elevador parou, me deparei com o espaço inteiramente tomado por mentes efervescentes que conversavam polvorosas entre si. Ah! Uma dica:

se um dia você for ao MIS, não deixe de ir à sacada e ver como as luzes da cidade são encantadoras vistas de cima. Enquanto aguardava o começo da sessão, eu observava o movimento e me admirei ao perceber que tantas pessoas se interessam por cinema de arte e debate cinematográfico em Campo Grande, que é dominada pelas salas comerciais, onde geralmente são exibidos apenas blockbusters. E foi justamente com o objetivo de ir além nas reflexões sobre cinema que um grupo de amigos, durante uma conversa de cafeteria - daí o nome -, resolveu criar o CineCafé e dar continuidade aos passos de outros cineclubistas, que fizeram de Campo Grande referência nacional no tema. “É uma iniciativa que surgiu numa conversa em uma cafeteria da cidade. Estávamos presentes eu e mais alguns amigos e decidimos que íamos abrir um cineclube. Tínhamos um grupo bem interessado em divulgar o cin-

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Ana Clara Santos

ema fora de um eixo comercial dando mais uma opção para as pessoas conhecerem os títulos e também os diretores, uma estética e uma trama narrativa diferente do habitual”, relembra João Carlos Costa, jornalista e um dos fundadores do clube. Todavia, o cineclubismo vai muito além de um lugar destinado a reunir pessoas para ver e debater filmes. Ele traz intrínseca a ideia de agregar valor e fazer com que se crie um gosto pelo cinema. Um gosto que ultrapassa o entendimento apenas da história contada, criando maneiras de pensar a forma em como contá-las, a forma que elas passam emoções Cafeína 55


e criam reflexões, seja por pensamentos dá a chance do ve aquilo de uma maneira, meio do som, da fotografia, outro perceber aspectos que conforme sua bagagem culedição ou estética. talvez, para ele, passaram tural”. “Reavivar a paixão pelo sem ser notados, além de A respeito disso, ela afircinema e fazer com que as fazer com que se conheça ma: “Cada pessoa traz sua pessoas, mesmo se sentindo diferentes realidades e a for- visão sobre o filme e isso inseguras, possam realizar ma com que isso interfere enriquece muito, porque às seus próprios projetos. Que diretamente na maneira em vezes é algo que você não o CineCafé não seja só um que as narrativas são enten- pensou. É algo que você não leva em conta num contexto cineclube, mas também uma didas. incubadora de sentimento, Encantada com as possib- social, porque às vezes você de afeto, desejo e paixão ilidades que o CineCafé lhe também não conhece. Tem proporcionou nas primeiras muitos filmes que a gente pelo cinema”, resume João. Para que todos os pensa- exibições, a jornalista Isa- nunca ouviu falar, daí vai lá e mentos que brotam em nos- bela Domingues entrou para assiste, e isso também é intersas cabeças quando assisti- o clube alguns meses após essante porque agrega uma mos a um filme não tenham sua criação. Um dos aspec- nova visão daquilo. Quem já seu fim e nós mesmos, por tos que chamou sua atenção viu já tem uma ideia formavia de regra, os cineclubes foi a abertura para o diálo- da do filme porque já contrazem formas de debatê-las go, como ela mesma diz: hece o diretor, já conhece a aberta e democraticamente. “Não existe o certo e errado. história, e tem gente que vem É válido falar sobre a De certa forma cada pessoa com uma visão diferente. Já história em si, bem como a que assiste um filme absor- tiveram mostras muito intertrama secundária, a respeito Foto: Giovanni Coletti (CineCafé) dos recursos técnicos como fotografia, edição, sonoplastia, atuação, estilo dos diretores. Enfim, tudo que vem embutido no filme e agregue valor à narrativa. Durante as conversas, apesar da mediação natural em qualquer debate, todos têm a oportunidade de se expressar, ensinando o que sabem e aprendendo a partir das percepções alheias. É isso que quero dizer quando falo sobre não deixar que os pensamentos sirvam apenas para nossa mente: expressar Isabela (em pé), entrou para o CineCafé para conhecer mas sobre cinema Cafeína 56


essantes porque as pessoas trouxeram uma questão pessoal, e que vai muito além do que está no filme.” O espaço aberto dá oportunidade para quem está disposto a aprender, bem como para os que têm um conhecimento sobre o assunto, mas está aberto a novas ideias e formas de pensar a respeito do assunto. Democratizar o debate faz com que o cinema, principalmente o clássico de grandes diretores, saia de uma classe de cinéfilos vista como elitizada e passe a expandir o grupo de conhecedores da sétima arte, abrindo cada vez mais o leque das possibilidades de interpretações, sempre levando em conta a pluralidade de pensamentos. Por ter um gosto prévio por

Foto: Giovanni Coletti (CineCafé)

Cineclubistas se juntaram para divulgar o cinema de arte na cidade

cinema, Luiz Felipe Sudorio (Ah! Não esqueça de conferir a crônica escrita por ele na pág.73), estudante de Publicidade e Propaganda, frequenta as exibições desde o início por ter encontrado um ambiente de livre expressão, onde pode expor suas ideias, mas também absorver muitas informações para formar Foto: Giovanni Coletti (CineCafé)

Os membros do cineclube fazem o intermédio dos debates após os filmes

suas próprias opiniões. Poder compartilhar o que sabe com quem está disposto a fazer contribuições pertinentes o cativou tanto, que hoje ele também é membro do cineclube. “Acho que todo mundo gosta muito de alguma arte. Eu gosto de arte como um todo e cinema acaba entrando no meio porque tem música, peças visuais e atuação tudo junto. Os filmes são escolhidos por pessoas que entendem disso e têm a possibilidade de discutir e provocar reflexões sobre obras que às vezes a gente já assistiu, mas não pensou muito a respeito” finaliza Luiz. Em essência, o CineCafé se organizou para despertar nas pessoas a vontade de pensar a respeito do que se vê. Apesar de se abrir para debater sobre as possíveis inCafeína 57


terpretações, e todos poderem trazer aspectos pessoais que influenciaram em tais conclusões, o cineclube foca em uma vertente bem técnica do debate cinematográfico, o que não deixa de ser interessante, tendo em vista que um bom filme muitas vezes não depende apenas de um enredo e do que desperta no pensamento alheio, mas é o conjunto de fatores que o compõem (pode não ser também, mas isso depende). Apaixonado pelas imagens em movimento projetadas na grande tela branca, João, cujo os olhos não param de brilhar enquanto me conta da sua história com o cinema e com o CineCafé, fala que o gosto pelo cinema pode ser algo despertado e aprimorado, mas para isso

é preciso que as pessoas estejam dispostas a aprender e também não tenham medo de expor o que lhes agrada em relação ao cinema, até porque isso pode gerar uma contribuição coletiva. “A gente quer trabalhar a paixão pelo cinema, queremos que as pessoas frequentem as exibições porque gostam de cinema, queiram conversar sobre cinema, sobre os diretores que gostam, que admiram, sobre determinada característica estética da fotografia. Ou seja, o que for que anime a pessoa em relação ao cinema, que toque a pessoa em relação ao cinema. Então, vai ter muita gente querendo fazer cinema, mas não sabe e quer saber mais”, pontua. Contudo, apesar desse enFoto: Giovanni Coletti (CineCafé)

O jornalista João Carlos, vê no cinema forma de perceber o mundo

foque, não há como deixar de lado as discussões de cunho social, principalmente nos dias fatídicos que vivemos. Até por que muitas vezes esses aspectos são tratados nos filmes e não há como ignorar. Muito além de exibir filmes e falar sobre a estética e técnica, o cineclube tem um caráter formador, mesmo que implícito, muito importante, pois agrega não apenas na formação cinematográfica, mas discute temas relevantes que as pessoas poderiam não ter acesso se não fosse pelas exibições. “No CineCafé a gente tem essa preocupação de trazer temas importantes, porque o cinema constrói ideologias, mesmo que de maneira sútil, generalizada. E é importante que a gente traga formas de ver o mundo. A gente tem que criar nas pessoas a interpretação do que eles estão vendo. Criar cultura de questionamento é muito importante, porque muitas vezes a gente não tem isso. Então, a gente precisa reforçar uma cultura de interpretação e de entendimento do que está consumindo”, explica Isabela. Por sua vez, João fala que fazer as pessoas pensarem no que veem é parte do processo de criar um público Cafeína 58


que goste de cinema. Mas elas também devem portar um senso crítico em relação ao que assistem para, assim, terem condições de debater a respeito. “Esse é um dos objetivos do CineCafé: mostrar uma obra com um ritmo de diferente e pensar no porquê. É uma forma diferente de fazer cinema e isso faz com que você se questione, amplie sua experiência como recepção. Faz com que você pense mais, porque muitas vezes a gente espera o mesmo de sempre [...]. Se a gente aprende a lidar com essas diferenças nas narrativas, nós acabamos conhecendo mais sobre nós mesmos, aprendemos a sentir melhor, a diferenciar um sentimento do outro, saber diferenciar uma experiência da outra. Uma experiência mais sensível pode fazer com que a gente até tenha algo que se perdeu na sociedade, que é a empatia pelo outro”, diz ele. Esse estímulo para a formação de senso crítico, mas também a possibilidade de conhecer, por meio dos filmes, questões culturais de outras épocas e a contextualização em que é realizada, com a possibilidade de um debate logo em seguida, atraiu a atenção de Simone

Foto: Giovanni Coletti (CineCafé)

Ao fim da exibição, público é convidado a participar de debates

Grisolia, psicóloga atuante em medidas socioeducativas, que foi às exibições a convite de sua filha. Como já dito, há um viés social que vez ou outra aparece nos debates e são inevitáveis. Nesse contexto, Simone, que trabalha com jovens infratores, os quais na grande maioria das vezes são resultado da falta de acesso à educação e à cultura - aí incluem-se filmes e cinema em geral e uma infinidade de outros direitos básicos -, acredita que iniciativas como essa podem transformar a forma de pensar e de viver em sociedade. “Eu penso que o acesso à cultura e lazer contribui para uma postura mais crítica à sociedade que criamos e em que vivemos. Uma so-

ciedade extremamente consumista, em que ter é o que define quem se é. Acredito que opções como CineCafé colocam outras questões que contribuem para um outro olhar para esta sociedade. Uma questão que fica é: apesar de ser aberto, o convite chega a todos?” Ela ainda diz: “É preciso um olhar mais amplo para esta sociedade. Esta mesma que não inclui grande parcela da população nem mesmo nas políticas criadas para ela. Isso ocorre historicamente. E pessoas morrem por isso. Aí, pensa, falta de cultura e lazer mata alguém? Ou favorece um meio de funcionamento da nossa sociedade?” O olhar social também se manifesta em mostras específicas, por exemplo, no Cafeína 59


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evento em alusão ao Dia do Orgulho LGBT, no qual o publicitário Renan Ribeiro, membro da Casa Satine, uma ONG formada para acolher pessoas LGBTs que são expulsas de casa, participou como mediador. Para ele, projetos como o CineCafé, além de abrirem espaço para debates importantes, forma um público para ver filmes além dos comerciais: “São duas coisas importantes: primeiro que ajuda a criar uma cultura de cinéfilos na cidade. Apesar de termos três cinemas grandes em Campo Grande, aqui só vemos blockbusters e filmes muito comerciais. O CineCafé apresenta um mundo diferente, com filmes mui-

to bem pensados e cheios de mensagens que acabam levantando discussões importantes. Aí entra a segunda coisa boa do projeto: as discussões. Os temas são sempre muito relevantes e ajudam as pessoas a entenderem lados diferentes das mesmas histórias, e isso é maravilhoso”, opina Renan. Junto a todas essas vertentes de debater e pensar os filmes, o CineCafé também busca modos de inovar e sempre trazer novas experiências para quem se interessa pela sétima arte. Uma dessas formas é pensar na produção regional, que é muito escassa. “Espero que ele possa construir nas pessoas o interesse pelo cinema. Aqui em MS isso é muito precário. A gente tem pouca produção, existem produções que muita gente não tem acesso, infelizmente. [...] Não que não tenham pessoas que façam um trabalho cinematográfico há muito tempo e de qualidade, mas não tem um cenário forte de cinema aqui, tanto de produção quanto de consumo. Então, eu acho que esse é o grande projeto do CineCafé: levar para as pessoas esse mundo que muitas vezes elas não têm contato [..] (sic)”, explica Isabela.

João alimenta a ideia de que o CineCafé seja uma forma dos frequentadores, além de falar e debater cinema incansavelmente, possam também se inspirar pelas obras vistas. “Me dá esperança de que uma pessoa que está lá no CineCafé falando sobre cinema possa sair daquela sala e “Cara! Eu tenho uma ideia”, e pegar uma câmera e filmar.” Mas, além de colocar em prática as próprias ideias, João também acredita que quem vai às exibições tem muito para contribuir com a produção local. “Cada vez que a gente realiza uma nova exibição, ver o público comparecendo, muitas vezes as mesmas pessoas, colocando na agenda que tem o CineCafé, me dá esperança de que alguém saia e faça com que nossa produção cresça. Mato Grosso do Sul tem uma produção cinematográfica muito interessante, mas há um predomínio da forma documental. Eu gostaria de ver as histórias de MS sendo contadas, a história de pessoas que moram aqui”, conta. Derivado do CineCafé, surgiu o Coletivo Atalho, que promove mostras específicas, sempre em parceria com o primeiro. Cafeína 60


Sobre a Casa, um italiano e literatura Outra paralela formada entre o cinema comercial e os cineclubes, é que no último não há qualquer forma de concorrência, até porque resistir com o cineclubismo em Campo Grande exige parceria e cooperação entre os admiradores do movimento. A troca de conhecimento, a circulação do público entre uma exibição e outra e até mesmo membros que participam de mais de um coletivo, faz com que toda a experiência agregue muito mais significado e valor a experiência de participar do cineclubismo. Em uma tentativa, diga-se de passagem bem-sucedida, de angariar fundos para a Casa de Ensaio, que passou por dificuldades financeiras em 2016, Marcelo Bueno, psicanalista, professor universitário e membro do CineCafé, começou a fazer exibições na Casa, cobrando pela entrada um preço acessível, tendo em vista o retorno financeiro que o espaço necessitava para dar continuidade em suas atividades. Seguindo os passos de antigos cineclubistas e da própria essência do movimento, o espaço tem a ideia

de formar público para a consumir filmes fora do círculo comercial. Contudo, como um ponto fora da curva, em um primeiro momento a ideia era trabalhar o gosto pelas propostas do cinema italiano, tanto que o primeiro filme exibido foi Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore. Mas com a adesão do público, passou a exibir filmes de diversas nacionalidades e debater a cinematografia clássica de outros diretores, não apenas os italianos. Como dito, o cineclube segue em uma linha paralela ao cinema comercial, pois um sobrevive sem o outro, porém a permanência do último depende diretamente do interesse do público, que foi ensinado desde sempre a ver filmes comerciais e com o tempo e o avanço de facilidade de acesso aos produtos audiovisuais, perdeu o encantamento pelas imagens em movimento, que se tornaram, de certa forma, banais. A propósito, Marcelo acredita que, entre as dificuldades de se manter um cineclube em Campo Grande, está a competição indireta com o cinema dos blockbusters, em que houve a perda do sentido social de que ir

ao cinema agregava em seu início, quando nem a televisão era tão recorrente nos lares brasileiros. “É bastante difícil manter um cineclube em Campo Grande porque o trabalho de divulgação tem que ser intensivo, e é muito difícil competir com circuito comercial. Também a questão de que, por exemplo, hoje em dia, com as novas tecnologias, as pessoas estão deixando de fazer do cinema um laço social. Muita gente prefere assistir esses filmes que a gente já encontra pra download ou em outro suporte eletrônico, preferem assistir em casa. Então, parece que cada dia mais diminui esse desejo das pessoas pelo cinema como um laço social” pontua ele. No começo, as exibições do CineCasa aconteciam aos sábados à tarde, sempre com debates e convidados para mediação. Com a retomada das sessões, as exibições passaram a ser na última quinta-feira do mês, sempre à noite, com a permanência das discussões após o filme. Porém, por outras questões, o projeto teve que ser adiado mais uma vez. O cineclubismo também ganha força por tornar o acesso ao cinema democrático e, mesmo quando a enCafeína 61


trada é cobrada, como no caso do início do CineCasa, o preço é mais em conta que nas grandes salas, permanecendo com sua diretriz de abrir um espaço que todos, ou quase todos, possam ter acesso aos conteúdos que dificilmente estariam disponíveis para serem debatidos e pensados em outros espaços. “Temos muitos frequentadores que são ligados em universidade, cursos de Jornalismo, Letras... Também alguns espectadores são da área da psicanálise, porque eu sou psicanalista e divulgo no meio psicanalítico, e tem de outras áreas também. É um público, eu creio, que é próximo ao perfil do público do CineCafé, mas talvez com a diferença de que há muitos participantes que realmente estão realizando uma iniciação, que conhecem pouco de cinematografia”, pontua Marcelo. A Casa de Ensaio é um projeto bem conhecido em Campo Grande, tendo mais de 20 anos de história e diversos projetos na área social. Um deles, no qual Marcelo também está envolvido e tem ligação com o cinema, é o CIA de Leitores, um clube do livro idealizado por Edir de Souza - aluna de Marcelo

no curso de Letras -, e que se reúne uma vez por mês para debater uma obra literária e criar leitores críticos. “Além do cinema, existe um outro projeto também que é relativo à Literatura, mas acaba sendo discutido também o cinema porque os convidados desse projeto têm alguma ligação com o cinema e também vice-versa. Às vezes nós convidamos alguém da área de literatura ou da psicanálise para debater os filmes, que são as áreas por onde eu transito”, conta Marcelo. Sobre marginais, troca de nomes e um espaço ocupado Devemos ser justos ao contar uma história, qualquer uma delas. Seja história real, inventada, história de terror ou sobre aquela tarde que passamos fazendo nada. Ao contar algo, precisamos contá-lo por completo, seja completo até onde eu sei, ou completo até seu fim. Pois bem, continuemos a história. Pinterest

Antes de João, Isabela e Marcelo junto com tantos outros se enveredarem pelos caminhos do cineclubismo, há pouco mais de dez anos, na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), já havia um grupo de acadêmicos seguindo pelo caminho das exibições como forma de difundir a cultura cinematográfica e criar um pensamento crítico em relação à esse conteúdo. Aconteceu assim: hoje, o que se conhece como Cineclube Marginália, já foi Cinema de Horror e Cinema Guarani, já fez exibição no MIS, já teve exibição mensal e bimestral, teve vínculo com a UFMS e agora está no Teatro Maracangália, que é um espaço ocupado perto do prédio da antiga rodoviária. Isso mesmo, uma atividade cultural é realizada no entorno de um dos lugares mais ignorados tanto pelos campo-grandenses quanto pelo poder público, o qual, por ironia do destino, já teve duas salas de cinema de grande sucesso e era responsável pelo lazer dos moradores da cidade. Em 2008, a professora Rosana Sanelato, junto com a então acadêmica do curso de Letras da UFMS, Carolina Sartomen, coordenava Cafeína 62


um projeto de extensão no qual projetavam filmes e faziam debates ao final. As exibições eram feitas regularmente no MIS e intitulava-se Cinema de Horror, que trazia uma proposta de filmes que causassem certo incômodo para serem debatido posteriormente. Contudo, o projeto durou apenas três anos, encerrando suas atividades em 2011, por conta de indisponibilidade da organização. Mesmo assim ainda houve algumas exibições vinculadas com o Cinema de Horror, mas não como curso de extensão, e sem contar com a supervisão

da professora Rosana. Dessa forma, acharam pertinente mudar o nome do cineclube, ficando Cine Guarani. Como todos sabemos, os índios Guarani têm uma problemática bem complexa em Mato Grosso do Sul, que envolve terras, acesso a direitos básicos e a preservação do povo em si, sua história e cultura. Vendo tal situação, o grupo, mais uma vez de forma muito sensata, mudou novamente o nome do cineclube, permanecendo até hoje como Marginália. “A gente tá usando o nome de uma etnia que tem uma problemática social muito Foto: Arquivo Cineclube Marginália

Cine Marginália foi criado para debater filmes com propostas incomodativas

forte, e a gente não tá dando nenhuma devolutiva para eles e não vamos ter condição de levar um projetor para uma aldeia e passar um filme lá. Não vai ter como a gente manter um diálogo com eles, então não é legal a gente usar o nome da etnia à toa assim.” Explica Patrick Adam Alves, cineclubista e um dos organizadores do Marginália. Ele ainda explica que o atual nome do cineclube traz muito da essência do que é proposto nas exibições e debate, os quais deram uma descontinuada por não terem mais o espaço no MIS. “Ficou Cine Marginália porque a proposta estética do cineclube, por conta dessa gênese no filme de horror, sempre foi uma coisa ligada a filmes que causam certo incômodo, certo choque. Então isso se manteve ao longo do tempo, pensamos que Marginália seria um bom nome porque justamente é um cinema mais violento e fora do circuito comercial”, pontua Patrick. Apesar de não ocuparem o MIS com as exibições, pois quem fazia esse intermédio era Caroline, e estar em um espaço ocupado e acharem que esse fato tem a ver com a proposta do cineclube, há planos por parte dos cinecluCafeína 63


Foto: Arquivo Cineclube Marginália

bistas de conseguir levar o cine para o MIS novamente. “Eu acho importante ocupar o espaço público, no caso o espaço institucional, ligado ao Governo do Estado, com uma proposta diferente, uma proposta estética incomodativa, mais de choque, então, para o ano que vem a gente vai tentar voltar para o MIS e tentar conciliar os dois: fazer no MIS e no Maracangalha”, esclarece. Para que o debate traga algo que faça todos saírem de suas zonas de conforto, o cine trabalha com filmes que tenham a estética voltada para o Cinema Marginal - período do cinema nacional que veio logo após o Cinema Novo - com a exibição de filmes como Bran-

co Sai, Preto Fica, direlção de Ardiley Queirós, Boi Neon, de Gabriel Mascaro, e muitos outros fora do circuito comercial dos grandes cinemas, dando prioridade aos filmes que não estreiam nos cinemas convencionais de Campo Grande por pertencerem ao cenário alternativo da filmologia. Conservando a ideia inicial dos cineclubes, o Marginália também promove debates após cada sessão com espectadores, os quais têm o espaço aberto para falar sobre o que pensaram e sentiram em relação ao que viram. Porém, diferente do CineCafé ou CineCasa, por exemplo, a conversa com quem frequenta as sessões é menos voltada para técnicas,

contemplando aspectos sociais apresentados na trama. “Teve uma sessão muito interessante, que deixou a gente muito feliz. Foi a do documentário Pixo (do diretor Roberto T. Oliveira), que é um documentário sobre a pichação lá em São Paulo e que tem uma linguagem que dialoga com quem faz esse tipo de atividade. A sessão lotou de gurizada aqui de Campo Grande que faz pixo e, no final, o debate foi muito interessante porque essas pessoas trouxeram as vivências delas, o que elas vivem em Campo Grande, comparando o que foi mostrado no filme. Então, esse foi um dia em que ficamos muito felizes porque conseguimos fazer um diálogo pleno, foi Cafeína 64


o melhor debate até então”, relembra Patrick. Um aspecto muito importante do cineclubismo é difundir a cultura cinematográfica por meios acessíveis para, assim, poder atingir todas as pessoas, independente de condições financeiras ou classe social, pois, apesar de sofrer com o descaso, a formação cultural é um direito garantido na Constituição Federal de 1988. “Nosso objetivo era tentar sair dessas salas fechadas e ir para os centros comunitários, outros lugares para exibir esses filmes e falar com as pessoas sobre esses filmes que não estão cinema e tentar expandir isso com um projeto de formação de público, mas é difícil aqui em Campo Grande. Não só na questão do audiovisual, mas também em todas as artes, o que chega é esse entretenimento. Não acaba chegando nada muito alternativo, fora do circuito, mas não só no cinema, mas na música também. É complicado, mas tem que tentar”, diz Patrick, esperançoso. De forma contrária aos outros cineclubes citados, nos quais os aspectos técnicos ficam em evidência, aparecendo vez ou outra questões sociais a serem debatidas,

no Marginália o foco muda para que as problemáticas da sociedade sejam analisados em primeiro plano. Contudo, como a linguagem dos filmes exibidos são bem diferente da habitual, é inevitável as considerações acerca desse panorama. “No final dos filmes nós fomos expostos à uma linguagem diferente do que estamos habituados no circuito comercial. Muitas vezes, as pessoas não estão habituadas a esse tipo de linguagem. Então, a primeira coisa que vai vir à tona é o incômodo ou uma surpresa com essa linguagem que é outra [...]. No princípio o que vem é a surpresa com essa linguagem que não é a habitual, e depois vêm as problemáticas sociais e no debate vem essa troca de ideia, e as pessoas dizem o que os temas sustaram nelas e às vezes são coisas surpreendentes”, relata o cineclubista.

Para conhecer mais

Livros • Salas de Sonhos vol. 1 “Histórias dos Cinemas de Campo Grande”, (2008) Neide Fisher e Marinete Pinheiro • Salas de Sonhos vol.2 “Histórias dos Cinemas de Mato Grosso do Sul” (2010), Marinete Pinheiro • Cineclube, Cinema e Educação (2010), Giovanni Alves e Felipe Macedo (org.)

Filmes • Cinema Paradiso (1988), dir. Giuseppe Tornatore • Tapete Vermelho (2006) dir. Luiz Alberto Pereira • Cine Holliúdy (2013) Halder Gomes • O último cine drive-in (2015), dir. Iberê Carvalho

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Mémorias de um cineclubista Descobrir o cineclubismo campo-grandense além das exibições mensais realizadas atualmente, é uma forma de enxergar a cidade de uma maneira diferente, e se surpreender ao saber que aqui já foi referência nacional neste assunto. É saber que em tempo áureos, mesmo com as dificuldades existentes, a cidade tinha muito mais a oferecer. Todas essas lembranças, incluindo as histórias dos cinemas Alhambra, Santa Helena e Rialto e tantos outros que passaram pelas terras campo-grandenses, estão publicadas no livro Salas de Sonhos: Histórias dos Cinemas de Campo Grande, de autoria das jornalistas Marinete Pinheiro e Neide Fisher. É bom esclarecer que datas e fatos apresentados nas linhas seguintes foram retiradas dessa publicação (com a devida autorização da autora). Sobre o ínicio, ditadura e cinema como política Como todos sabem, na época da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985), a censura era algo comum, principalmente nos meios de co-

municação, e nisso inclui-se o cinema naturalmente. Foi nesse período, também, que grupos de jovens contestadores se reuniam nos mais diversos locais para discutir política, questões sociais, arte e cinema. O nascimento do cineclubismo de Campo Grande se deu no final da década de 60, quando a professora do curso de Letras da UFMS, Maria da Glória de Sá Rosa, acompanhava esse movimento que crescia no país todo como forma de resistência, e acabou por trazêlo para Campo Grande. As projeções eram momentos de se expressar a respeito de política, censura, cinema, e se aproximar de filmes, que muitas vezes não passavam pela censura e de alguma forma chegavam às mãos dos cineclubistas. Esse movimento cultural foi de suma importância para o desenvolvimento da cinematografia de Mato Grosso do Sul, tendo em vista que além de falarem sobre cinema, os membros dos cineclubes passaram a produzir filmes, os quais eram projetados nas salas de cinema. Por muito tempo Cam-

po Grande foi uma referência nacional em cineclubes, tanto que a Universidade Federal do estado sediou o 1º Encontro de Cineclubes Nacional, sendo que a efervescência cultural influenciou pessoas como José Otavio Guizzo, deixando lembranças boas na memória de diversas pessoas, que até hoje veem no cinema uma forma de pensar o mundo e transformar as vivências individuais e coletivas. Lembram-se de quando eu disse que é melhor ter conhecimento prévio antes de falar sobre qualquer assunto, e que toda história precisa ser bem contada? Então, tudo o que sei aprendi no livro da Marinete e da Neide, mas também conversei com o professor Paulo Paes, presidente do Cineclube de Campo Grande entre 1982 e 1987 e hoje é coordenador do curso de Artes Visuais de UFMS. Então, vou deixá-lo contar suas memórias.


Sobre um professor, 16mm e cinema de resistência

“O movimento cineclubista nos anos 70 atinge uma força muito grande. Era um movimento de cinéfilos, pesquisadores de cinema, de pessoas que gostavam de cinema, de produtores, e que se espalhou pelo Brasil inteiro que, além de um sentido da poética do cinema, tinha um sentido político de fazer uma resistência de final da ditadura. Então, ele era uma resistência cultural e uma resistência política contra a ditadura em Campo Grande. No Brasil inteiro tinha cineclube, eu lembro que eu morava em Salvador em 77, 78, e lá eu já era do cineclube e quando eu vim pra cá me aproximei do cineclube. [...] Já havia uma polarização da política do cineclube: um grupo mais focado na questão intelectual, focado na perspectiva da poética do cinema enquanto outro grupo, sem deixar

essa poética do cinema, focava nessa educação popular, uma coisa mais paulofreiriana, com uma política que atingisse as populações periféricas. Quando o nosso grupo assumiu (1982) aqui foi com essa perspectiva, então, nós fizemos imediatamente, mas já tinha um trabalho lá dentro. Nós fomos pra periferia, continuamos o cineclube aqui na ACP. Todo domingo à noite tinha um filme, os filmes eram 16mm, os projetor eram 16mm, esses filmes eram da Dina Filmes, uma distribuidora específica de 16mm, da Embrafilmes que tinha bastante filme,

além das embaixadas da Alemanha, da Polônia, a embaixada da França. Pegávamos filmes de vários lugares, só filme bom, só filme de arte, só filme cult. [...] A gente fazia uma guerra grande contra a cultura de massa, até hoje eu estou envolvido nisso, e nós começamos a passar esses filmes na periferia, montamos o Cineclube Nova Lima, que foi um sucesso durante quatro anos atuando dentro do Nova Lima, e o cineclubinho do São Benedito, que era dentro da comunidade quilombola Tia Eva. No cineclubinho tinha cri-

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ança e adolescente e eles mesmos passavam o filme, eles gostavam de passar os filmes, convidar a comunidade para assistir. Foram quatro anos dentro dessas duas comunidades, quase todo fim de semana era um filme. Então, esse cineclube de periferia pra gente era muito importante. Dali surgiu um projeto da Periferia Viva, coordenado pelo cineclube dentro das escolas do São Benedito e do Nova Lima. A partir daí, o cineclube toma um caráter educacional, cultural e político dentro dessas comunidades. Ele deixa de ser visível apenas para os intelectuais e passa a ter essa função lá na periferia. [...] E havia pessoas importantes da época que estavam nesse cineclube engajado. Montamos o Núcleo de Animação com o Celso Arakak. Formamos dezenas de crianças em animação em uma época que era tudo em papel, exigia material

fotográfico. Fizemos uma parceria com a Fundação Cultura de São Paulo, com um grupo de cinema de animação de Campinas, formamos dezenas de crianças. Nós tínhamos uma força muito grande. [...] Na FUCMAT a gente passava filme sexta à noite. Chegou uma época em que os padres proibiram a gente de passar o filme porque tirava muita gente da missa, o filme era no mesmo horário da missa. A gente passava aquela filmadora pesada por cima do muro da FUCMAT e passava filmes contrários aos padres. Mas era uma época em que era tudo mais fácil, os padres ficavam bravos com a gente, mas era como um pai ficando bravo. Fica bravo, mas o espaço continuava. A gente subvertia a ordem dos lugares e hoje, se fizer isso, chamam até a polícia. Antes não, tinha um diálogo. As pessoas relevavam a nossa ação, a gente era tudo jovem.

Eu, o Celso Arakaki, o Luiz Parafina, o Tino, o Baldenir Bezerra, a Auréa Luz, o Jacaré, que é o Nelson Nagazi, que era um cara muito importante no cineclube, o Lino. Nós éramos umas doze pessoas e a nossa sede funcionava dentro da Unidade Guaicuru, que era o último grande movimento modernista de Mato Grosso do Sul, Cafeína 68


talvez o primeiro e último, porque ali havia as Artes Visuais. Surgiu a Unidade Guaicuru, num casarão velho de um amigo artista que tinha aquele espaço da família. No espaço da frente a gente passava filme, no fundo tinha dois grupos de Teatro, o grupo da Cristina Matogrosso e um outro do Cleir, então ali era uma efervescência cultural. Era um entra e sai de pessoas, de artistas, e nós fazíamos movimento pelas Diretas Já, então tinha um caráter político. O caráter político era secundário, ali tinha um caráter estético de resgatar a identidade cultural do Mato Grosso do Sul [...] a gente tinha aquele movimento cultural, tinha manifesto, tudo que caracteriza o movimento da arte contemporânea, e o cineclube fazia parte desse movimento. E a gente ia pra periferia, a gente ia para as escolas, aqui dentro da Universidade a gente tinha uma ação também,

tinha essa ação na FUCMAT e uma ação política contra a ditadura. A ditadura termina e o cineclube começa a perder [espaço] no Brasil pelo fato de a bitola 16mm não dar mais conta. Os filmes novos não eram gravados em 16mm e era muito difícil, era muito caro. Aquele acetato 16mm pega fogo sozinho, é terrível aquilo, é perigoso. Eu sei que a imagem que eu lembro muito é a gente no ônibus indo lá pra periferia com aquela caixona pesada. Coragem de ir lá pra periferia passar filme. Nós conseguimos influenciar esteticamente do ponto de vista cinematográfico populações que não tiveram acesso e iam ver esses filmes da Sessão da Tarde, esses filmes enlatados de péssima qualidade. Nós levávamos o melhor do cinema mundial, discutíamos. Crianças foram formadas na periferia. Hoje tem dessas crianças que falam “Nossa! Aquilo mudou

minha vida”. Tem várias daquelas pessoas que hoje falam isso. Foi muito importante naquele momento, a arma que nós tínhamos era nosso projetor 16 mm. De 87 a 91, o cineclube passa a ser incorporado pelo Sesc e aí já não é a força da comunidade. Ele é a instituição e ele vai perdendo, o 16mm entra em decadência e em 92, 93 já acaba, não repercute o formato 16mm e o movimento cineclubista. É diferente de hoje, hoje qualquer um vai lá e faz. Nós tínhamos o equipamento que era caríssimo e entorno desse equipamento havia toda uma aglutinação de cinéfilos, de intelectuais da cidade, os maiores intelectuais da cidade frequentavam o cineclube e ao mesmo tempo íamos para a periferia também. Nós tínhamos um lema que se chamava promiscuidade cultural, da gente fazer essa ligação de intelectuais com o cinema, com a política, com a periferia, Cafeína 69


com movimento social, enfim... Eu fui presidente do cineclube de 82 a 87 e o cineclube já estava nesse tempo indo para o Sesc. Eu lembro que nesse tempo a gente passava na penitenciária, passávamos para os menores que estavam presos na cadeia de segurança máxima na época. A gente tinha os contatos lá dentro, era só fazer o contato e ir. A incapacidade de fazer uma crítica ao cinema comercial nocivo que está aí hoje é um problema muito sério. Todo esse retrocesso fascista que estamos vivendo hoje está ligado a isso, a cultura de massa. O povo todo está sendo massificado, o que não aconteceria se tivéssemos acesso a uma cinematografia de qualidade, diversificaria o conteúdo, e não há diversidade. O

cinema que gostamos é proibido chegar aqui. O trabalho que os cineclubes fazem é muito importante, porque o espaço comercial é tolhido pelo interesse comercial e o empresário nem quer saber. Ele pode passar o pior filme, desde que ganhe dinheiro. E é isso que está acontecendo, o pior. Na época tinha um sentido, porque nós éramos contra a ditadura. Ninguém ali era a favor da ditadura, como hoje tem uma massa a favor da dela. Ninguém era a favor da ditadura nesses tempos, então, nós lutávamos contra ela. Eu lembro que, para passar o filme ia lá o inspetor da Polícia Federal, tinha que mandar antes a programação, eles verificavam se o filme já tinha sido aprovado em alguma Polícia Federal no Brasil,

se não aprovava passar aqui. A gente enganava, mandava um passava outro. Na realidade a gente tratava muito bem o cara da Polícia Federal, tinha uma amizade, a gente ficava conversando, oferecia café, pipoca, tinha uma relação boa com esse representante da PF que nos acompanhava, mas ele era o censor. Estava ali para nos censurar e nós passávamos filmes políticos. Algumas vezes o filme não passou porque faltava documentação, mas a gente tinha uma boa relação, ia lá na Polícia Federal, conversava, os tempos eram outros. O delegado da PF relevava, todo mundo relevava. Sabiam que não tinha ninguém do mal ali e a gente estava fazendo um trabalho bonito, educativo, tinha um respeito quanto a isso, mas acho que hoje isso seria difícil.”

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Cafeteria

Imagens ilustrativas: Pinterest

Caro leitor, Ao virar esta página você está prestes a entrar em um mundo paralelo ao resto de tudo que já leu até aqui. É parte do todo, mas é parte sozinha também. Essa é a edição nº 0 de uma publicação totalmente experimental, então, penso que se faz necessário alguns esclarecimentos, afinal, preciso te deixar a par do que está por vir. A Cafeteria é o lugar de livre expressão, sem regras ou técnicas, sem imposição e rótulos, mas, principalmente, sem julgamentos. Por prezar pela liberdade de seus colaboradores, os quais cederam seus pensamentos de forma espontânea, as publicações aqui veiculadas não têm uma denomição ou uma classificação certeira: são apenas a livre expressão de algo como pensamentos, sentimentos, ideias, enfim, qualquer coisa que pousou na mente dos escritores. As palavras das próximas páginas têm caráter experimental tanto como essa revista. Sem grandes pretensões, são contos, poemas, crônicas e divagações escritas por pessoas que se arriscam nas palavras, vão experimentando e se expressando da forma que pensam ser melhor. Seja alguém habituado às palavras, um escritor que abre o anotador do celular e minutos depois já esquece o que queria dizer, seja escrevendo poemas nas horas do ócio ou apenas alguém que precisava dizer alguma coisa que lhe passou pela cabeça, querendo ou não, todos temos algo para dizer e, neste caso, preferem dizer por meio do silêncio das palavras escritas. Um último aviso: as publicações foram retiradas de livros, páginas de redes sociais e da plataforma Medium diante da devida autorização de seus autores, mas nem por isso perderam o valor, pois, um texto quando bem escrito vale a pena ser compartilhado.

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Ah, a poesia…

Karina Torres

A poesia chega avassaladora, ignorando hora, desejos e possibilidades. Ela chega e te obrigada a externa-la, a jogá-la no mundo, seja por um arquivo de texto de computador ou em algum guardanapo qualquer, perdido numa mesa de bar. A escrita é guiada a nós, seus guardiões, apenas pela naturalidade da palavra e toda sua fluidez. Pelo bem ou pelo mal, pelas paixões ou pelas tristezas, conquistas ou derrotas Ou seriamos nós os guiados até a poesia? De qualquer forma, ela se esvai da mesma maneira que chega E como chega. Quando o mundo deixa de fazer sentido e quando ele desperta dentro de nós. Quando a bolha na qual insistimos em passar nossos dias e levar todas as nossas possibilidades se fecha em nossa volta ou estoura numa dessas vezes em que a nossa alma tromba outra confortavelmente perturbada pelos caminhos Vez ou outra insistimos em nos perder, ao nadar nas mais profundas ingenuidades afetivas, mas ela chega e nos naufraga de vez, pelo simples prazer de ser a única a poder nos resgatar. Mas quando nos deixa, ah, a poesia faz falta E nos faz faltar. Falta ritmo, falta vida, falta expressão, falta ar, falta desejo E falta justamente quando é mais fundamental Quando nos dispomos a poesiar Mas, ah, a poesia… Ela volta


Luiz Felipe Sudorio

Confissão Inesperada*

“Hoje de manhã a folha que acompanha esse bilhete dividiu comigo um segredo, me contou que embora tivesse nascido em um caderno como tantas outras iguais, ela era na verdade um papel de parede, disse ainda que pouco importava se ela não era colorida, que não tinha arabescos ou padrões rebuscados, pra ela bastava ter pura consciência do que era, ter consigo certeza de alguma coisa sequer, enquanto tantas outras folhas sofriam por suas dobras e manchas. Depois de alguma conversa com essa folha tão esclarecida eu percebi que não sabia muito sobre o seu processo de reconhecimento, se essa folha sempre soube o que era ou se tinha entendido gradativamente, embora parecesse pouco relevante eu me permiti a questionamento. Não fiquei surpreso ao ouvir que ela sequer se lembrava, foi categórica ou dizer que uma vez papel de parede todo o resto eram apenas um borrão em sua memória, ela me disse por fim que se orgulhava de cada rabisco que trazia consigo, que não ligava se haviam escrito nela e que era cheia de amassados, muito pelo contrário, ela se orgulhava de cada marca, principalmente do dia em que fizera parte de uma guerra de bolinhas do seu único dono antes de mim. Confesso que não sei como essa folha veio parar em minhas mãos mas te envio como um presente, bem sabes que minha parede é um mausoléu, não sou um grande conhecedor de arte além disso estou de mudança, sendo assim acredito que tua parede tem um lugar especial para que esta folha repouse em meio a outras obras tão esclarecidas e cheias de histórias como ela.” Esperando que esteja bem, Sud.

Original disponível em https://medium.com/@sudorio


Em pedaços

Susanne Coelho

Desintegrado Dizem "estranho" para um quadro abstrato Fragmentado Ninguém entende o que está no recado Encontro pedaços Que se completam dentro de um retrato Mas que faria mais sentido Se você também tivesse sentido... E mesmo que eu não saiba mais o que você quer Completo versos perdidos Nas últimas folhas de um caderno qualquer Coisas que achei que tivessem sumido A gente sempre acaba achando Uns fragmentos esquecidos Que ainda buscam se integrar, E depois de me deitar no escuro Livrei-me de medos descabidos Que não me deixavam sonhar

Bloqueio

Susanne Coelho

Bloqueio. Pesa a insatisfação Querer mostrar tanto Mas nada sai Como na minha imaginação Palavras sem letra Desenhos sem traço Como me sentir presa Ou caber onde não tem espaço Mas é assim... Aceitar o momento Mudar o caminho Soltar, mexer, adaptar Do começo, se precisar Perder-se para se encontrar Bagunçar e arrumar, Saber como fazer E depois ensinar

Dessa vez a janela estava aberta Dessa vez eu pude respirar A noite estava tão linda Mas faltou alguém com quem compartilhar

Meio torto Meio errado Em pedaços caindo E o corpo cansado

Meus olhos se ajustaram ao escuro Eu descansei sem precisar dormir Mas não é como se eu me sentisse inteira Pois os destroços ainda dançavam dentro de mim.

Arrastando o que ainda não conseguiu soltar Desviando dos obstáculos pra poder continuar Vai do jeito que der Faça como souber Com o que tiver E o melhor que puder.


Letícia Ribeiro

A noite dos Melancólicos*

A noite pertence aos poetas bêbados e às mulheres sem amor, adorada pelos assassinos e temida pelos ignorantes. A brisa que a anuncia é um sopro brando dos deuses, presente que aquieta os espíritos nefastos que vagueiam pelos becos e botecos. Há um moreno encostado no balcão do bar Yvi’s com um copo de vodca na mão, mas ele não entorna a bebida rapidamente como fazia horas atrás. Ele mal pode manter-se em pé. No momento, pensa em nada, só quer terminar sua dose e pedir mais outra e depois outra. Chama-se Vitor, 37 anos de puro fracasso. Mês passado tentou suicidar-se, no entanto, acovardou-se no último instante. Ele não tem amigos nem família; amigos, nunca os teve mesmo e a família toda estava morta. Desde os quinze era só ele e o álcool. Três quadras dali, a prostituta Estela havia sido expulsa de sua pensão por arranhar as bochechas gordas do senhorio que quis agarrá-la sem pagar. Mulher da vida há doze anos e vivia neste mundo há 25, apesar de todas as surras ainda se pode ver certa beleza em sua pele e no olhar arguto. Ah, sim, uns olhos semicerrados capazes de descobrir qualquer segredo. Ela odeia cada pôr-do-sol como se odeia a traição, o que para ela era a mesma coisa. A vida a traíra desde muito cedo. O bar da Yvi era apenas mais um entre tantas outras espeluncas do bairro Pelegrino. A dona era de uma magreza incômoda e seus dentes amarelos sorriam sempre com desprezo; servia cerveja velha no seu balcão de madeira envernizada há muito tempo e o cheiro característico de mofo e mijo em todo canto. Assim, Estela entra e senta-se no mesmo bar. Diz: — A bebida mais forte que vocês tiverem por aqui — sua voz atrai o olhar pesado de Vitor, que imediatamente escorrega para dois bancos mais próximos da mulher. — Por minha conta, se me permitir — Ela o observa e agradece. Certamente muito bêbado para qualquer coisa, pensa. — O que está bebendo? — Vodca. — Vou querer uma dupla, por favor. A noite pertence aos desgarrados e acomodados, os solitários em seu canto escuro e os loucos bebendo de mesa em mesa. Os mortos se levantam de suas alcovas e pedem uma garrafa de conhaque à atendente na esperança de se sentirem aquecidos, os suicidas se despedem com uma última rodada e os velhos encharcam as entranhas vasculhando o passado. Vitor e Estela viram as madrugadas bebendo para esquecer a vida. Filosofia de bêbado e desilusões de prostitutas despejados um sobre o outro, cobrindo-os de lama e lixo acumulados em todos esses anos de existência sem vida.

*Conto publicado originalmente no livro Aquarela: Contos e Crônicas, Andross Editora, 2014, São Paulo.


Ambos caminham trôpegos pela calçada de paralelepípedos esburacada a caminho da pensão de Vitor — ela o acompanha, para onde mais iria? Caem na cama de imediato, mortos de embriaguez. Já passa das quatorze horas quando Vitor desperta com os raios do sol que passam pela janela aberta, queimando-lhe o rosto. Olha encabulado para a mulher adormecida ao seu lado na cama e recorda lentamente da noite anterior e do nome da mulher: Estela. Entra no banho e, quando volta, ela já partiu. Ele não tem esperanças de vê-la novamente. Desce do quarto e vai comer. Do outro lado da calçada, Estela o observa sentado com um prato de comida e uma garrafa de cerveja na mão, balança a cabeça e caminha pelas ruas vazias. A noite é de tormenta. O mundo desabará com o próximo trovão, restará nada além de esqueletos quebrados nas calçadas ou soterrados debaixo das casas, Estela sentencia. Ela não tem para onde ir, durante o dia não consegue um quarto para alugar e nem a grana da noite. Gira nos calcanhares e refaz todos os passos de seu trajeto, abre a porta do estabelecimento e sobre as escadas, diante da porta de número cinco suas batidas soam suaves. Enquanto a porta vai se abrindo lentamente, pode perceber a compreensão brotando dos olhos negros de Vitor. Ela entrou e foi servida uma dose de conhaque. — Acho que você é do tipo que não se esquece — Estela sorri. — E eu não sabia que você é do tipo que... — Vitor suspira tristemente enquanto senta em sua cama — Bem, que retorna a algum lugar. — Bem... Acho que nunca valeu a pena voltar para os lugares por onde estive. Devo uma favor a você e pretendo retribuir a gentileza da noite passada — disse, sentando-se ao lado dela na cama e pondo a mão sobre sua perna. O olhar amargo e a voz seca responderam: — Não preciso dos seus serviços, Estela! — Depois de um longo silêncio ele segurou as mãos dela entre as suas e sorriu pequeno — Mas quero que você fique. A noite desce e o temporal permanece chicoteando as janelas e uivando entre as brechas da parede; o silêncio do quarto esfumaçado e ébrio sobe pelas paredes e lança as garras até o teto. Vitor está deitado na cama e fumo o fim de um dos muitos cigarros que já havia tragado durante aquele dia. Estela vira o copo e deita ao lado dele na cama, aconchegando-se em seu peito. Ele apaga a luz e a abraça. A chuva penetra na alma dos solitários e perdidos. Ela pertence aos que vivem em desamor, vem para enxaguar o sangue que escorre pelos poros e disfarçar as gotas salgadas que brotam dos olhos. Uma noite chuvosa serve para afundar embarcações e afogar os covardes, mas há as raras ocasiões em que esse breu de gotas frias desperta sentimentos escusos do espírito e o amigo destino trata de juntar dois sobreviventes de uma vida desafortunada dentro desse negrume. A noite abriga as ações funestas. Encobre rastros. E esconde o perigo. Mas uma noite de chuva como essa revela angústias e desejos intrínsecos até do mais cauteloso dos homens.


Quatrocentos e quarenta e quatro de volta pra casa*

Cainã Siqueira

pessoas atrasadas roem a unha desesperadamente conversas paralelas me deixam confuso o barulho do motor é muito alto o barulho das engrenagens me dão um pouco de medo tosse leitura uma conversa sobre morar no interior crianças comportadas crianças agitadas óculos anel sobretudo ligação meu tênis tá furado e não param de olhar pra ele unhas vermelhas se seguram para não cair preconceito música no fone batidas na bolsa acho que é eletrônica ou rap é só isso que ela escuta vai abrir um concurso para enfermagem o boné verde e laranja deve ser mais velho que eu a moça correu e o motorista ficou sem paciência estava atrasado ela não tem culpa ele também não bom descanso ela disse obrigado ele respondeu acho que cores fortes estão na moda meias estampadas também e ele quase cai na rotatória é melhor parar de escrever essas bobagens e segurar Original disponível em https://medium.com/@cacazitos


Quando foi que nos tornamos isso?* Matheus Aranda

Acreditar no próximo e na sua bondade é um ideal que carrego comigo diariamente, sempre busquei acreditar que o amor pode vencer o ódio e que apesar dos pesares, o mundo caminha para um futuro devidamente agradável para todos. Há algum tempo, Nando Reis, sim (o cantor com a voz mais doce desse Brasil) lançou Rock ’n’ Roll, música essa que despertou sentimentos inimagináveis em mim, tais como: Raiva, ódio, indignação, melancolia e uma considerável falta de fé na humanidade e todo esse futuro utópico que um dia, já cheguei a crer. “Uma mão na bíblia, outra no coldre, repetindo seu slogan, dente por dente, olho por olho, bandido bom, bandido morto. Parece um contrassenso o argumento que armamento é proteção. Tudo é transgênico no alimento que comemos, mas negros, travestis e transgênero são assassinados, humilhados e tratados com discriminação” tais palavras compostas por este digníssimo cantor e compositor, perpetuam dentro de mim como um louvor evoca sentimentos inexplicáveis para alguns cristãos. Crer em mundo melhor para todos é um principio de toda militância, seja você quem for e por qual causa você luta. Um enorme contrassenso nessa luta diária e muitas vezes árdua, são os percursores do ódio que se alastram por todo o canto. Será mesmo que estamos caminhando para um futuro melhor e mais inclusivo para todos? dúvida cruel. Como lutar contra esse exército de ditos cidadãos de bem que “em defesa da família, da moral e dos bons costumes” cada vez mais sentem-se a vontade para disseminar discursos com uma considerável falta de humanidade e empatia para com o próximo. Quando foi que nos tornamos tão intolerantes? Infelizmente, sempre fomos, desde os primórdios terrestres. O discurso de ódio nunca muda, ele só é maquiado conforme o lapso temporal em que ele é disseminado. Ainda há tempo? Dúvida ainda mais cruel e melancólica. Gostaria muito de formular uma resposta complexa e que despertasse em todos vocês um sentimento de luz e de fé, seja qual for o seu credo, mas não a tenho, pelo menos não ainda. Reitero um único pedido: Resista. Seja uma semente de amor. Não desista, não ainda. Seja luz para aqueles que estão perdidos. Ninguém nasce desconstruído. Acredite em algo, mesmo que isso signifique sacrificar tudo. Original disponível em https://medium.com/@matheusaranda


O Meu Paraíso* Nichole Munaro Eu estou no meio da multidão. Nela, eu tenho meu espaço. Não apenas o espaço que eu ocupo, mas o espaço das minhas diferenças em relação a todos à minha volta. Vivo a vida com a minha cabeça me transportando em pequenos flashes para o meu mundo de êxtase, em que eu sou a rainha e tudo está de bem comigo. Lá, o meu corpo é o meu maior sinal de paz. Paz comigo mesma, eu quero dizer. Tento viver no mundo dos outros com a mesma confiança em que eu vivo no meu. É um exercício que eu aprendi a fazer com a praticidade e inocência de uma criança sem nada com que se preocupar. Às vezes, eu ainda consigo me surpreender com essa minha capacidade. Me olhei várias vezes no espelho antes de sair de casa naquele dia. Reparei em cada centímetro meu, alguns ocupados pelos tecidos e costuras; outros, apenas de carne, gordura, pele e osso. Passeei com meus olhos sonolentos por cada curva. Pelo meu quadril avantajado, minha cintura fina, minhas coxas grossas e a ausência de espaço entre elas. Pelo tronco delicado e feminino. A regata M me ajusta e mostra a desproporcionalidade da minha forma, em que os pneuzinhos estão presentes, mas os seios estão ausentes. A cintura alta dos meus jeans define o meu corpo de uma forma quase poética, e não tem um instante em que eu não me olhe no espelho e não me sinta orgulhosa de tê-los adquirido. Eles parecem intrínsecos ao meu corpo. Eu e ele somos eternos namorados. Naquele momento, é quase impossível me incomodar com o fato de eles serem tamanho 46. Tamanho não é documento, eu penso ao amá-lo em volta de mim. Eu caminho pelo mundo me sentindo perfeita, tudo dentro e fora do lugar. A pose ereta, os quadris balançantes no ritmo hipnotizante de um desfile. Entro tanto no meu personagem empoderado, que é quase impossível de não se reparar, e me contento por deixar explícita a autoconfiança que sempre quis ter quando algum dos meus amigos me nota. “Eu amo o seu jeito de andar desfilando. Queria andar assim que nem você.” Eu rio, corada, fingindo não saber do que ele está falando. “Mas eu só tô andando.” “Minha querida, você tá seduzindo esse lugar inteiro.”

Original disponíevel en http://luadoblog.com.br/2017/10/25/stayyellow-o-meu-paraiso/?v=00e35d76b07d


E é incrível pensar que talvez eu esteja fazendo aquilo mesmo. É de uma energia intraduzível, forte o bastante para ser insuportável, tão presente na minha corrente sanguínea ao ponto de me dar pequenos choques de euforia. Faço poses descontraídas e espontâneas, me exibo de uma forma que eu sinto vergonha de fazê-lo normalmente. Sinto minhas calças se apertarem na minha barriga como se me abraçassem em comemoração. Meu peito se enche de ar, egocêntrico, arrogante, e não me sinto mal. Aquela noite é das minhas formas. Estou longe do padrão, mas estou além de satisfeita. Tudo estava fora do lugar, e eu amava. Aí, passou. Eu acordo, inebriada debaixo dos lençóis. Apenas minha cabeça tem forma para mim. Meus braços, pernas e ombros não têm peso. Não assimilo quem eu sou. Naquele instante, apenas um corpo flutuando em um colchão, longe de existir. É um bom sentimento perto do que está por vir. Eu assusto aquele limbo de perto de mim ao me levantar. O espelho está ao lado da minha cama, e nele, tenho o primeiro contato com a realidade. Furos, furos e mais furos. Não verdadeiros furos, que sangram e me matam aos poucos, mas furos que formam depressões na pele das minhas coxas, que tornam o caminho mais difícil, como uma estrada esburacada. Seria tranquilo se eu me referisse àquela dificuldade só no sentido literal, mas vai além do que realmente é. Elas me matam, sim, mas de desgosto. Esse é o meu dia ruim, eu penso, fitando obcecadamente o acúmulo de gordura no meu estômago, o qual o short do pijama não cobre nem que eu o puxe para próximo dos meus seios. Viro de lado. Pareço um monte de lama empilhada e pronta para servir para uma escultura. Viro de costas. A grossura das pernas e os furos nelas apagam o meu amor pela minha parte de trás. As dobras das costas se mostram quando eu me torço levemente para o lado. Os braços parecem dois pães. Quero arrancá-los com uma faca. É o único pensamento que me vem na cabeça. Visto mangas longas naquele dia. Nenhum decote à vista. Os jeans são pretos e discretos. Evito de abrir o Instagram e me deparar com vales formados pelos seios sem sutiã, as peles lisas em biquínis. Até rio sozinha com a possibilidade de eu entrar em algum deles no próximo verão. Só consigo me imaginar debaixo das cobertas, o ar condicionado cobrindo qualquer resquício de calor e oportunidade de me expor além do que as pessoas precisam ver. Ninguém quer me ver em um biquíni, ninguém precisa ter a visão das pelancas do meu quadril saindo pra fora do tecido. Todo mundo está bem comigo longe desse cenário. Eu estou bem fora desse cenário. Quer dizer, é melhor eu ficar de fora dele para não me sentir ainda pior.


Quando chego em casa, me deparo com aquela visão novamente. A visão das gorduras, das coisas minimamente caídas, dos pequenos relevos e depressões. O flashback das vezes em que eu tentei entrar em uma calça 44 me assombram por alguns milésimos de segundo, e eu luto contra o ar que me falta. Arranco minha roupa, e me encaro como uma mãe encara um filho para chamar-lhe a atenção sem precisar abrir a boca. O sutiã sem bojo é uma arma para eu não tentar forçar os meus seios a formar o desenho perfeito de um vale. Me dá a falsa sensação de que eles apenas são pequenos, e eu me agarro àquela verdade. A calcinha de cintura alta esconde tudo. Esconde o excesso. Me dá o formato de pêra que eu quase sempre amo em mim mesma. E os furos continuam ali. Ninguém se preocupou em fechá-los, apesar de eu saber que aquilo depende só de mim. Eu posso vestir 44 se eu quiser. Posso vestir 40, 38, até um 36 se eu me esforçar tanto. O “problema” (pra não dizer “a solução”) é que eu não quero isso. Não quero me desvencilhar das curvas da minha beleza porque alguém acha que eu preciso, porque alguém botou na minha cabeça em algum momento da minha vida que é aquilo que vai me fazer realmente feliz comigo mesma. Eu não quero dar aos outros a felicidade de me ver entrando nos seus moldes porque eu mesma não fui capaz de enxergar o lindo naquilo que eu sou. Não quero dar a eles o prazer de me ver jogando no lixo as lembranças dos dias de vaidade, de deslumbramento, em que eu não precisava me mutilar e me esconder de ninguém. Em que eu empinava o meu quadril e botava a mão na cintura. Não quero abrir mão do meu andar rebolado, da minha excentricidade, da sensação sufocante que é estar me sentindo maravilhosa. É esse pensamento que me mantém do jeito que eu sou, no meu manequim, quando os dias ruins me perseguem. O pensamento contrário à escravidão dos corpos, à perda da minha identidade. A ideia de que eu sei me sentir perfeita, de que eu não preciso travar uma guerra comigo mesma, de que eu vou estar me matando se fizer isso. De que eu vou estar destruindo todo o mundo que eu mesma criei. E então, eu confio em mim mesma.


Vai um cafézinho aí?

Foto: Daniel Catuver

Por Daniel Catuver

Expresso ou gourmet, preparado por máquinas curiosas e modernas ou passado no coador de pano, igual na casa da ‘vó’, é inegável que o café seja uma das bebidas mais gostosas e afetuosas que conhecemos. Seu aroma, cor e sabor é capaz de nos levar a uma viagem que desperta lembranças de pessoas, lugares e vivências. Com açúcar, adoçante ou sem nenhuma nota dulcificada, uma pequena xícara de café tem o poder de nos tirar da rotina por alguns minutos, acompanhar estudiosos madrugada adentro, sinalizar que o lanche da tarde já está na mesa e, até mesmo, servir como pretexto para bons encontros. Com o propósito de difundir ainda mais a bebida, oferecer ambientes agradáveis e, o melhor, permitir experiências aos clientes, as cafeterias são uma ótima opção para quem gosta de apreciar um bom café. Em Campo Grande perce-

be-se uma intensa adesão às cafeterias nos últimos anos. Talvez tenha até virado moda frequentar estes estabelecimentos, o que é bom, pois as opções são diversas e para todos os gostos. Aqui vai uma lista com sugestões de três diferentes cafeterias, localizadas no centro da capital, que você pode conhecer. Vai um cafézinho aí? 1. Café du Centre - Cafeteria e Doceria

Inspirado nas elegantes cafeterias europeias, a franquia Café du Centre Campo Grande propõe aos clientes uma ‘voyage en France’, anunciada logo na entrada pelo pêndulo almofadado, cujo bordado saúda a quem chega com um ‘bienvenue’. A iluminação amarelada dos lustres sofisticados aliados às cortinas, quadros, mesas e cadeiras milimetricamente organizados, pro-

movem a sensação de estar em um cantinho luxuoso da famosa Paris, reforçada, ainda, pela música francesa ao fundo. São os detalhes que prendem a atenção de quemvisita o local. Os cardápios são uma verdadeira poesia. Repletos de fotografias e versos, as páginas encantam pela delicadeza. Até os guardanapos possuem frases, não dá nem vontade de utilizá-los. Inaugurado há menos de um mês, o Café du Centre tem como objetivo fazer com que o cliente desfrute do local e dos alimentos sem nenhuma pressa, observando cada pormenor. Preparados cuidadosamente por uma francesa, tudo para complementar a proposta do ambiente, o carro-chefe da cafeteria são os croissants bem recheados

Reportagem colaborativa: as informações e opiniões são de inteira resposabilidade do autor.


que podem variar os preços de $8,00 a $18,00. As taças e cafés também variam o preço. Além destas iguarias, outro destaque é o croque monsieur, que custa $25,00. O Café du Centre Campo Grande está localizado na Rua da Paz, 501, Jardim dos Estados, e abre suas portas de terça a domingo, das 15h às 20h. 2. Fran’s Café Há quase 10 anos na capital, o Fran’s Café é uma das mais de 100 franquias da loja espalhadas pelo Brasil. Com o propósito de oferecer um ambiente agradável para que os clientes possam degustar um bom café em situações variadas, a cafeteria possui um amplo espaço dentro e fora da loja. Cercado de muito verde, a ‘varanda’ torna o ambiente mais intimista, como se estivesse em casa. Cafés, bebidas quentes e geladas, sorvetes, sobremesas, salgados, sanduíches,

caldos, massas, saladas, uma infinidade de opções. O cardápio grande e variado proporciona aos clientes atendimento do café da manhã ao jantar. O preço da primeira refeição do dia pode variar de $9,90 a $21,50. Elaborado com exclusividade para a rede, o destaque da casa é o café, feito com grãos selecionados da melhores regiões produtoras do Brasil (cerrado mineiro, Espírito Santo e sul de Minas Gerais). O cafezinho simples sai por $5,70, os especiais são encontrados a partir de $14,90. O blend especial apresenta uma bebida de corpo elevado, acidez média e sabor marcante, com notas intensas de caramelo e leve sabor frutado. O Fran’s Café Campo Grande atende de segunda a domingo, das 07h30 às 23h, na Rua Marechal Cândido Mariano Rondon, 2453, centro. 3. +5 Minutinhos Café Os muitos e diversos relógios espalhados pelo ambiente sinalizam que é hora de dar uma pausa na rotina para apreciar um bom café. O espaço é modesto e os detalhes em madeira tornam o ambiente muito aconchegante. A decoração despojada e re-

pleta de pequenos objetos chamam a atenção. O arremate fica por conta do imenso quadro de giz que fica à disposição para que os clientes soltem sua imaginação através de frases e desenhos ou deixem mensagem para quem visita a cafeteria. Inaugurada em 2013, a cafeteria +5 Minutinhos é o ambiente perfeito para um bom encontro no meio da tarde. O café simples sai por $5,00, os drinks mais elaborados podem chegar até $25,00. O cardápio oferece, ainda, diversas opções de lanches e porções de pastel e coxinha para quem não abre mão dessas apetitosas iguarias. O atrativo da cafeteria é o capuccino, cuja receita é própria e torna a bebida ainda mais cremosa. Outro destaque da casa é a famosa torta que leva o nome da loja. O preparo incorpora os sabores do suspiro, chantilly e morangos, tornando a experiência da hora do café mais doce e saborosa O +5 Minutinhos Café está localizado na Rua Maracaju, 1226, centro. O horário de atendimento é de segunda a sábado, das 07h às 20h.

Original disponível em https://www.facebook.com/pg/textaojornalistico/posts/?ref=page_internal




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