UTOPIA condenados pelo jĂşri , pela cela e pela vida .
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Editorial
ELE SÓ QUERIA VOAR... Por Caio Castro Mello
Guiados pelos campos magnéticos terrestres ou plainando pelas correntes de ar, os pássaros seguem caminhos traçados por um destino, inerente a espécie. De alimentos a símbolos sagrados, um se destaca no imaginário oriental. Tsuru é uma ave sagrada no Japão que carrega folclore e esperança. Reza a lenda que pode viver até mil anos e portanto, teriam poderes sobrenaturais. Daí, mais tarde, a crença de que qualquer desejo possa se tornar realidade àquele que completar a dobradura de mil origamis (capa) no formato do animal.
Sobre esperança e caminhos que se trata essa edição da Revista Utopia. A partir de um olhar ingênuo, alçar voo é fruto exclusivo do porte de asas. Porém, tempestades e intempéries dificultam, oprimem e por vezes abatem. A cada página uma história, um olhar. Indivíduos que tiveram seus caminhos traçados ao nascerem, ditados pela marginalização dos sujeitos. De asas quebradas, alguns voaram, alguns plainaram, outros tentam ainda decolar.
Diagnosticada com Leucemia, após a explosão da bomba de Hiroshima, Sadako, uma garotinha de apenas 12 anos recebeu papéis no hospital para que fizesse os mil origamis. Contudo, faleceu ao completar o de número 964. Seus amigos terminaram o trabalho e iniciaram uma campanha que resultou na construção de um monumento em sua homenagem no Parque da Paz da cidade.
Se ressocializar pode ser a chave para uma sociedade segura e justa, as utopias ainda terão que dar conta dos anseios por dias melhores. Condenados pela própria existência, antes de um júri, sobreviver é o ponto máximo de sucesso para muitos brasileiros e brasileiras.
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Sumário
A não ressocialização que ressocializa | Perfil
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Quando a saída é a fé | Reportagem
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Pregações de viagem | Crônica
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Ressocialização de menores: a diferença entre o Brasil que pune e o que educa | Artigo
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Os filhos abandonados do Brasil | Reportagem
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No cerne da questão: uma análise sobre a redução da maioridade penal | Entrevista
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Ressocialização e socioeducação: um recorte de gênero | Reportagem
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A representação do presídio feminino em Orange is the New Black | Coluna
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Entrevista com Juliana Serretti | Entrevista
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A deformação do macho | Reportagem
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Expediente
Redação Caio Castro Mello Cassio Oliveira Cícera Amorim Jorge Cosme Maria Eduarda Barbosa Orientação Isaltina Gomes Planejamento Gráfico Mayara Bione Fotografia da capa Élida Maria Nascimento Agradecimentos especiais Associação Maria Amélia Barbara Brandão Cristhovão Gonçalves Daniel Meirinho Élida Maria Nascimento Érica Babini Juliana Serretti Marília Montenegro Paulo Wanderlan Lino Teixeira Wilma Melo Victória*
A não ressocialização que ressocializa Por Jorge Cosme
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Perfil
Paulo hoje se considera ressocializado, mas não pelo sistema, pelo contrário: a falta de capacidade do Estado em cumprir seu papel de ressocializar foi o motivo para que ele buscasse o feito por seus próprios meios.
Um telefonema interrompeu a conversa. A gravação da entrevista podia ter sido pausada, como já havia sido em uma ligação anterior. Mas não foi. - Esse telefone é lá do presídio – ele alertou, mostrando o visor do aparelho identificando o chamado como de “Lúcio Bombinha”.
No dia 15 de janeiro de 1998, Paulo Wanderlan Lino Teixeira, na época com 26 anos, estava bebendo com um amigo no Bar Três Corações, no bairro de Ouro Preto, no município de Olinda, Região Metropolitana do Recife. O tal amigo arrumou confusão com uma pessoa no estabelecimento. Bate boca e troca de empurrões. “Me dá meu revólver, me dá meu revolver aí, porra!”, teria dito o sujeito do bar, conforme lembra Paulo, que na hora sacou o revólver que carregava. O tal rapaz fez menção de puxar uma arma da cintura. “Fui mais rápido. Atirei. Três tiros e ele veio a óbito”, relembra Paulo.
- Digaí, meu filho, tudo bom?- ele atende - /.../ Tudo tranquilo. /.../ Falei ontem. Ontem à noite ele ligou pra mim. Tá na PAI, né? /.../ Mas vai sair de lá, se Deus quiser, Deus é pai, Deus é maior. /.../ Anham. Eu falei até com Marcelo. /.../ Falei. Olha, eu to conversando aqui com o pessoal da Universidade Federal de Pernambuco, viu? /.../ Tenho tempo pra você sim, seu cabra safado. Olha, eles estão fazendo uma matéria, estão fazendo uma revista, sobre o sistema prisional e eu estou dizendo aqui que o sistema prisional e merda é a mesma coisa, tá entendendo? Certo? Que vocês que são presos, como você, como Tarado, sofrem dentro da cadeia, entendeu? Viu? /.../ Beleza, vai timbora, /.../ tchau. Eles ligam e me pedem ajuda – explicou, assim que finalizou a ligação.
Paulo foi levado a júri popular no dia 3 de dezembro de 2003, sendo condenado por maioria de votos a uma pena de 12 anos e três meses. Ele teve o direito de apelar em liberdade, mas, mesmo com o recurso, a decisão foi mantida. O acusado se apresentou na Vara do Tribunal do Júri da Comarca de Olinda no dia 13 de agosto de 2007 e no fim daquele mesmo dia já estava na Penitenciária Professor Barreto Campelo, em Itamaracá.
Paulo recebe telefonemas como esse com certa frequência, visto que hoje é advogado. São de presos pedindo ajuda. Eles pedem para não serem esquecidos, o que ocorre com muitos lá dentro.
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até às 23h na prisão. Paulo conseguiu convencer o juiz da Vara de Execuções Penais Adeildo Nunes e o promotor de Execuções Penais Marcelo Ugiette a, excepcionalmente, conceder-lhe o direito de continuar cumprindo a pena no Aníbal Bruno.
Com poucos dias na Barreto Campelo, Paulo presenciou um principio de rebelião que resultou em seis mortes, por faca e fogo. Pouco tempo depois, no dia 7 de outubro, viveu o tumulto causado por Paulo Cristóvão Pereira, vulgo Paulo Doido, que matou a companheira no dia de visitas e por causa disso foi assassinado pelos outros presos. Ainda em dezembro daquele ano, outro motim culminou na morte de três presos. “Eu estive no inferno”, Paulo rememora.
Em maio de 2015, já formado em Direito, Paulo conseguiu o livramento de condicional, que é a liberdade antecipada com uma série de restrições. Agora ele se sente mais livre para fazer aquilo que o motivou a cursar e concluir o curso. “Eu quero atuar na área criminal, para brigar contra as injustiças do Judiciário. É o cara ser preso porque furtou uma caixa de chocolates nas Lojas Americanas e ir para um lugar daquele. Vai sair pior. Presos que não têm família, condições de pagar advogado, vai lavar cueca dos outros presos, fazer faxina, apanhar e cair no esquecimento do Judiciário. Vai pagar pena e continuar preso. Se ele não entende de lei, é uma pessoa leiga, mofa, entra sadio e sai com enfermidade incurável”, ressalta, dizendo que tinha este objetivo em mente desde que estava preso.
O rapaz, desde que chegara à Barreto conseguira trabalho, fazendo as carteiras de encontro conjugal. O emprego teria sido conquistado graças ao diretor da unidade, o coronel Geraldo Severiano. O coronel, no início de 2008 seria transferido para o Presídio Aníbal Bruno, atual Complexo do Curado, na zona sul do Recife. Para a comodidade da família, Paulo pediu que também fosse transferido. Conseguiu, mas não imaginava o que ali presenciaria. “No Aníbal Bruno o que presenciei foram coisas horripilantes, que nunca tinha vivenciado aqui fora. Lá dentro, vi presos sendo decapitados, os outros jogarem bola com a cabeça dele, vi presos depois de assassinados terem seus olhos arrancados”, recorda. Assim que chegou à unidade, Paulo ganhou a função de registrar as mortes. De janeiro a dezembro de 2008, ele computou 48 homicídios – não sabe se todos esses chegaram até a imprensa.
“O sistema prisional em nada ressocializa. Pelo contrário, é uma faculdade do crime”, resume o advogado. “Quando cheguei ao presídio, passei oito dias dormindo sentado e só melhorou porque paguei R$ 300 para dar ao chaveiro de espera, para conseguir um lugarzinho para dormir. Era uma cela com espaço de 4 metros quadrados, que na minha concepção só cabiam dez pessoas, mas tinham mais de cem. Outros dormiam em pé, com lençol amarrado por debaixo das axilas. Lá não existe higiene. Tinha comida, mas não era completa, mas aprendi com minha mãe e com meu pai que o tempero da comida é a fome. É um local onde impera a maldade, a inveja, onde somos tratados feito bichos. Não temos acesso à direção do estabelecimento. Ao falar com o agente, temos que por as mãos para trás e abaixar a cabeça. Se levantar e olhar para a cara dele é pau, negão, é pau”.
Tão logo chegou ao semiaberto, em junho de 2009, o preso decidiu fazer algo que sempre teve vontade: prestar vestibular. “Precisava ocupar minha cabeça”. Passou em Direito na Faculdade Maurício de Nassau. Conseguiu um desconto de 30% na mensalidade durante todo o curso após contar a sua situação na direção da faculdade. Se fosse transferido para Penitenciária Agroindustrial São João, em Itamaracá, como deveria, já que estava em regime semiaberto, teria dificuldades de locomoção, visto que precisaria estar
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indo também seus parentes. “As negações são tantas que se tornam impulsionadoras do desejo de conhecer e exercer seu direito de cidadania. O tratamento é cruel, desumano e indigno, e a família passa por isso e fica se questionando”, explica Wilma.
Paulo mostra um documento, um processo, no qual está trabalhando. Um detento que cumpriu a pena em março, mas continua atrás das grades. “Não ganhei nada por isso”, ele fala, orgulhoso. “Fiz amigos. Algumas pessoas merecem amizade. Tem pessoas boas lá. Elas pedem para andar com o processo delas”. Lúcio Bombinha está preso por porte ilegal de arma de fogo, pegou pena de 3 anos e 6 meses. “Já era para estar na PAI, mas continua em regime fechado”, denuncia.
A diretora ressalta que os parentes ficam curiosos e começam a ir aos fóruns, a procurar os promotores e tentar descobrir o que é e o que não é permitido. O número de familiares engajados poderia ser bem maior se não fosse a falta de informação e baixa escolaridade da grande maioria das famílias dos detentos, ela acrescenta.
O advogado sabe a dificuldade que é alguém se manter em pleno juízo vivendo dentro de um presídio daqueles que ele viveu. Ainda assim, acredita que a ressocialização pode ser feita independente do Estado tentar o oposto. “A ressocialização existe dentro de cada um de nós. Eu quero, eu posso, eu vou me ressocializar. Querer é poder. Eu tive propostas de sair de lá podre de rico, mas eu não quero, eu quero é minha paz, acordar no meu travesseiro com a consciência limpa. Cumpri minha pena, paguei o que devia a sociedade”, finaliza.
Ainda assim, Wilma lembra casos de pessoas que entraram em cursos de formação universitária em Direito para combater as injustiças sofridas contra seus entes presos. “Conheço um caso de esposa que foi fazer Direito logo depois do marido ser preso. Este preso sofreu muita tortura dentro da prisão, ele havia cometido delitos graves, mas o Estado também cometeu delitos graves contra ele. A esposa está cursando Direito atualmente”, cita Wilma, que em seguida lembra outra história: “A outra pessoa, esposa também, já terminou o curso. É um caso de um homem que respondia processo pela Justiça Militar e a esposa foi fazer o curso de Direito pela dificuldade de acesso a tudo”, lembra.
FAMÍLIA Paulo não aprovava que sua família fosse visitá-lo na prisão. Nunca permitiu que seus dois filhos fossem. A mãe e a esposa o visitava aos domingos, das 8h às 13h. “Quem cometeu o crime foi eu, quem devia estar preso ali dentro era eu, não elas. Até mesmo porque aquilo é um barril de pólvoras, pronto para detonar”, aponta ele. A Constituição deixa claro que o principio da responsabilidade pessoal no direito penal limita a responsabilidade do fato praticado para apenas o condenado – e ninguém mais. Entretanto, a família também vira vítima.
De acordo com Wilma, há muitas outros casos semelhantes e muitos de pessoas que desejam muito cursar Direito. A militante, inclusive, acredita que deveria haver um incentivo do Estado para que as pessoas fizessem cursos universitários ou pelo menos cursos de orientação. O SEMPRI já promoveu três cursos informais de agente de Direitos Humanos, orientando cerca de 120 familiares de presos. Uma nova edição deve ser realizada ainda este ano.
Para a diretora do Serviço Ecumênico de Militâncias nas Prisões (SEMPRI) Wilma Melo, essa vontade de lutar contra as injustiças que ocorrem nos presídios vai além dos próprios presos, ating-
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Quando a saída é a fé Texto por Cássio Oliveira Créditos da foto: Reprodução/Facebook
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Reportagem
Existem diversas modalidades de tratamento para dependência química, como por exemplo, comunidades terapêuticas, programas de desintoxicação, grupos de autoajuda, intervenções religiosas, tratamento em regime de internação, entre outros.
Amplamente discutida e cercada de tabus a dependência de substâncias químicas é um fenômeno diariamente agendado à discussão pela mídia e diversas instituições. Entre falácias e novas descobertas científicas, as teorias apontam para visões biologizantes que enfatizam os efeitos dos narcóticos no funcionamento cerebral, e outras sociais que alegam ser o vício uma consequência de experiências afetivas afetadas (Acesse o QR Code para mais).
A BUSCA PELO PROFETA Os dogmas, louvores e orações que vão do grave ao agudo em segundos, não são as únicas características marcantes das igrejas protestantes neopentecostais, presentes em praticamente todas as vielas brasileiras. Essas instituições são também amplamente conhecidas por suas organizações de apoio à reabilitação de usuários de drogas.
De acordo com o sociólogo Paulo Carvalho, que trabalha em instituições de reabilitação, um dos principais problemas da dependência é o isolamento e a busca, que pode chegar a ser ‘insana’, pela droga. “A dependência química vai tirando a pessoa do convívio da família e afastando do convívio social”, disse. Para ele, “no geral quando o dependente chega ao centro de recuperação sua primeira reação é de reserva por estar adentrando em um local novo e desconhecido. O sucesso ou não do tratamento depende, em grande parte, dos novos relacionamentos que irão estabelecer no processo que se inicia e na forma como será apoiado para enfrentar os desafios que se farão presentes”.
Prova viva do trabalho realizado pela igreja, André Nicolas Gonçalves da Silva, 22 anos, conta um pouco de sua história de vida e como saiu “do mundo das drogas” para um “mundo de religiosidade”. Morador de São Lourenço da Mata, André tornou-se usuário ainda na adolescência quando teve experiência com diversos tipos de entorpecentes. “Já provei muita coisa, primeiro foi loló, depois maconha, crack, pó virado, cocaína e até cola de sapateiro”, disse.
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O desamparo mudou os rumos de André. “Estava precisando de ajuda, não conseguia mais parar de usar drogas e decidi ir à igreja por que não tive nenhum apoio da minha família, principalmente quando eles souberam que eu tinha começado, além de usar, a vender drogas. Como minha família não me ajudou, busquei ajuda na igreja, que me levou a uma casa de recuperação para dependentes químicos, em Petrolina”, explicou. Membro da igreja cristã evangélica Assembleia de Deus, André é incisivo ao declarar sua reabilitação. “Bem eu tinha uma vida pobre emocionalmente, pobre financeiramente, pobre de expectativa de vida, vivia uma vida por viver, vivia em vão, vivia me destruindo aos poucos como um cigarro que é tragado na boca infeliz de um fumante, fora que eu não tinha paz exterior e interior, mas agora sou cheio de expectativas, tenho vida financeira equilibrada, estou bem emocionalmente e vivo uma vida com propósito de, primeiramente, continuar firme na fé”, ressaltou André Nicolas.
Nesse artigo, o jornalista britânico Johann Hari aborda parte de sua pesquisa publicada no livro: “Perseguindo o grito: os primeiros e os últimos dias da guerra contra as drogas”.
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Crônica
Pregações de viagem Por Caio Castro Mello
Bastaram três viagens naquela condução e algumas canetas da Manassés para que eu descobrisse do que eu precisava. Por mim não tinha jeito e, desde pequeno, martelam em minha cabeça vozes suaves, por vezes até agressivas, dizendo qual era o caminho. Titubiei, bebi. Adormeci em mesas de bar que não me conheciam, outras sabiam meu tipo sanguíneo e CPF. Perdi paixões e amigos. Dos que me amaram um dia, restou um ardor. Os olhares de pena e desdém daquilo que me tornei me consumiam, porém, não mais que meus órgãos sensibilizados a cada gole. Enfim, salvação. Dizem que naquele livrão com páginas finas e letras pequenas estaria a resposta. Fé.
foi o suficiente. Sobre o livro, comprei um, mas ainda não abri, por medo. O poder dele transcendeu o papel, por isso nunca precisei passar as páginas. Fui, e orei, e ouvi, e chorei. Eu não podia mais voltar sozinho. Parecia que o via. A palavra dizia que como leões me rondavam aqueles seres monstruosos prontos a me devorar. Não pequeis e estarás salvo. Mudei. Essas feras invisíveis me tiravam o fôlego e não me deixavam piscar. Vigiai e orai. Tornei-me algoz de minha alma. Aquilo que parecia me libertar sem grades, agora me aprisionava em mim. Parei de beber, de sair, de namorar, de dançar, de cantar, de respirar, por vezes, de viver. Não era o fardo leve do profeta que carregava, era a cruz. Arrastei-me, ofertei. Reabilitei-me.
Nunca fui de ler, também nunca aprendi. Memorizei alguns desenhos dos ônibus e isso
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Ressocialização de menores: a diferença entre o Brasil que pune e o que educa Por Cícera Amorim
É no perdão que se encontra o caminho da gratidão e da honestidade. Não na punição. Na punição a recíproca é verdadeira e vem aliada ao ódio. É nesse contexto de erro e redenção, teoria e práxis, que está inserida a discussão sobre os processos de ressocialização. A reintegração social de alguém que tenha cometido um ato infrator é um direito assegurado pela Constituição Federal. Além disso, antes de sua retomada à liberdade, é direito do cidadão que ele tenha durante o cárcere, acompanhamento e direcionamento que o auxilie a voltar ao meio social com integridade moral e dignidade.
“Olha aí o meu guri” Existem, no mínimo, dois Brasis. Um seria o idealizado no nosso conjunto de normas. Nesse Brasil tudo é lindo, as pessoas se respeitam, há alimento, moradia, educação, lazer e cuidados de saúde para todos. No Brasil das leis e estatutos, crianças e jovens são tratados com primor. Para a infelicidade de muitos brasileiros, existe muito pouco desse Brasil. Quase nada. É no outro Brasil que vive o Guri da música do escritor e cantor Chico Buarque. Nele a desigualdade é devoradora, não existe respeito e a lei é quase como a da natureza selvagem: o mais forte sobrevive. Moleque que não nasce em família com estabilidade financeira é peão ou bandido. Caso fuja dessa regra, terá que enfrentar uma escalada bem difícil. Nesse segundo Brasil, se fala muito em Deus, Jesus, Jeová, mas não se leva a sério o ensinamento que livrou Maria Madalena do apedrejamento ou a multiplicação do perdão ensinada a Pedro.
Seguindo o pensamento de Rousseau, um sujeito que comete delito está refém de alguma condição que o fez tomar essa atitude, pois sua essência é boa por natureza. Se a sociedade o trata com injustiça, ele terá grandes chances de retribuí-la com injustiça. Mais indignado ainda estará o homem se, em vez de reeducação, receber punição. No Brasil real, vivemos com o sistema de punição. O indivíduo é marginalizado, preso, se
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Artigo revolta, torna à marginalização, corrompe outros indivíduos e assim sucessivamente. É cíclico. Sócrates falou sobre as vantagens de ser justo em seu diálogo com Trasímaco no livro A República. Nele, o filósofo levanta o questionamento sobre como retribuir com justiça àquele que nos trata com injustiça. Esse seria o ideal de harmonia em uma sociedade: permanecer justo. Porém, de nenhum dos lados em nossa atual configuração social é comum essa ação. No Brasil que temos, as injustiças são moedas de troca.
centivo de acolhimento a esses menores. Afinal, se o jovem sai com habilidade profissional, mas não encontra na sociedade oportunidades de emprego por puro preconceito, há enormes chances de que ele seja reincidente criminal. “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.” Essa afirmação de Paulo Freire sintetiza tudo a respeito do resultado dos processos de ressocialização. Não dá para dizer que o sistema não é eficaz em sua proposta se ele é falho em sua execução. Muitos são os fatores que interferem na plena execução dos projetos de ressocialização do menor. Foucault, filósofo francês, em sua obra Vigiar e Punir, escreveu que “a educação do detento é, por parte do poder público, ao mesmo tempo uma precaução indispensável no interesse da sociedade e uma obrigação para com o detento”. Se o agente socioeducativo não desempenha bem sua função, a educação do menor está comprometida. Basta uma pesquisa de notícias sobre esses funcionários públicos para ver o grau de insatisfação deles com suas condições de trabalho. Percebe-se que o problema desses agentes é que eles não possuem progressão profissional e seus salários são baixos. Esses profissionais também não recebem formação pedagógica adequada para trabalhar com crianças e adolescentes e agem quase como agentes penitenciários. Os menores deveriam ter atendimento de psicólogos, arte educadores, assistentes socais e acabam apenas tendo funcionários para garantir a segurança. Faltam mais políticas de capacitação e valorização dos profissionais das casas. Alguns muitas vezes se utilizam de violência, tanto verbal quanto física, enquanto o estatuto determina que menores não podem sequer serem algemados e sim conduzidos. Nesse meio de frustração e desestímulo por parte dos profissionais das unidades é que os adolescentes convivem. Se alimentam de desesperança, deitam sobre o leito do descaso e se banham com a revolta.
“Como fui levando não sei lhe explicar. Fui assim levando ele a me levar e na sua meninice, ele um dia me disse que chegava lá.”
EDUCAÇÃO: O DIREITO ROUBADO Paulo Freire dizia que a chave para as transformações sociais é a educação. É também ela a ferramenta fundamental no processo de ressocialização. Além da Constituição Federal, a Lei de Execução Penal (LEP), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394) e o Plano Nacional de Educação (PNE) garantem aos detentos brasileiros o acesso aos estudos. Se o menor não tinha estímulo para frequentar a escola, no internamento esse desejo deve ser despertado. Através da educação por meio de variadas atividades que o adolescente vai enxergar no seu futuro uma possibilidade de atividade profissional e acadêmica. Para que existam essas atividades se faz necessário uma estrutura apropriada, materiais, profissionais capacitados e políticas de in-
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Outro problema está na falta de aplicação de estudos sociais para esses menores. Por exemplo, muitos desses jovens já possuem uma vida conjugal, uns tem filhos, mas dentro das unidades eles não podem ter visitas íntimas. Nesse estágio da adolescência eles estão com os hormônios aflorados e suas necessidades sexuais muito intensas, mas o sistema ignora isso. Ignora também que existe o fato de que eles se violam dentro das unidades e não possuem nenhuma política de educação e saúde sexual. Ou seja, colocam uma quantidade excedente de pessoas dentro de cada casa, as deixam lá dentro e não se preocupam se existem adolescentes maiores, mais influentes por serem de comunidades mais perigosas, se existem uns mais fortes e acaba que além da falta de políticas voltada para a sexualidade desses menores existe também a não interferência. Eles estão afastados da sociedade, estão todos recebendo água e comida, então não se importam com o que aconteça entre eles dentro da unidade. Esses casos acontecem muito em todo o país, mesmo que haja raras unidades que conseguem ter um desempenho melhor.
Qual reflexo tem o fruto do desprezado pela sociedade? Que armadura vestir para subir a ladeira do preconceito? Onde encontrar a subsistência que não vem do governo? O caminho é árduo e os desvios numerosos. Para o guri do morro a criminalidade é saída e, muitas vezes, imposição para viver melhor. Para driblar a marginalização de menores se fala hoje em redução de maioridade penal. Porém não há a verdadeira discussão e esclarecimento acerca do que se trata e suas implicações na sociedade. Mais uma vez o Brasil insiste em punir ao invés de educar, frustrar, ao invés de orientar. Mesmo que os índices de crimes hediondos cometidos por menores sejam ínfimos, parte da população acredita que prender resolve o problema. Como já falado, às vezes não em caráter de solução, mas de exclusão. O indivíduo cresce não tendo moradia digna, não tendo educação básica de qualidade, não tendo atendimento de saúde decente, mas ao invés de corrigir esses problemas focam a atenção em excluí-los ainda mais. A cidadania da criança acaba sendo negligenciada. Além do não cumprimento desses compromissos básicos, a questão da redução de maioridade penal não cumpre também com a Declaração dos Direitos Universais da Criança e do Adolescente que o Brasil assinou e ratificou. É um retrocesso pensar que essa medida resolve o problema do país. Aqui é investido mais de R$ 40 mil por ano em cada preso em um presídio federal, enquanto são, em média R$ 15 mil anualmente com cada aluno do ensino superior. Já na comparação entre detentos de presídios estaduais, onde está a maior parte da população carcerária, e alunos do ensino médio (nível de ensino a cargo dos governos estaduais), a distância é ainda maior: são gastos, em média, R$ 21 mil por ano com cada preso — nove vezes mais do que o gasto por aluno no ensino médio por ano, R$ 2,3 mil isso conforme
OS CAMINHOS ERRADOS PARA AS SOLUÇÕES
“Chega no morro
com carregamento: Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador. Rezo até ele chegar cá no alto. Essa onda de assaltos está um horror.”
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a família, porque a punição será não entrar no reino dos céus e assim por diante. Mas se um dia o indivíduo perde essa fé ou conexão com a religião, ele pode não ter assimilado outras reflexões a respeito do porquê que os crimes não devem ser praticados. É preciso trabalhar no adolescente, essencialmente, a questão moral, ética, cível. Antes de qualquer pecado, de qualquer decepção, entrar em conflito com a lei compromete o bem estar social. São essas reflexões que devem ser a priori na ressocialização dos menores infratores.
o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Isso só mostra o quanto as prioridades estão invertidas. Não se pode levantar a questão da redução de maioridade penal enquanto o sistema de ressocialização não funcionar. A chance dos que saem das unidades serem reincidentes é enorme. Alguns não voltam ao crime por motivações próprias, mas porque se apegam à família ou à religião. Incluir a família no processo de ressocialização, fazer com que ela também se importe com a mudança do filho e dela mesma é fundamental, porque muitas vezes a criança é infeliz no próprio convívio familiar. A figura materna é uma das mais importantes para o menor, seja ela mãe, avó, tia ou irmã. Cultivar o sentimento afetivo é importante para fazê-los refletir e um psicólogo é quem deveria estar trabalhando nesse processo.
“O guri no mato, acho que tá rindo. Acho que tá lindo de papo pro ar. Desde o começo eu não disse, seu moço! Ele disse que chegava lá”
A religião assume um papel muito significativo na vida dos adolescentes em processo de ressocialização. Ela auxilia na vida dos jovens, mas só ela não supre as necessidades de repensar os atos infracionais. As religiões mais presentes nesses lugares são as cristãs, principalmente a evangélica. O modelo cristão, à sua maneira, retoma a ideia de punição. Através dela o adolescente vai enxergar o ato cometido como errado porque é pecado, porque decepciona Deus e
Um dia os guris chagam lá. Até lá existe essa enorme distância entre o ideal e o real, há a luta entre educação e punição, entre a oportunidade e a exclusão. Enquanto o concreto separar a sociedade é a falta de amor que irá nos punir.
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Os filhos abandonados do Brasil Por Cícera Amorim
“Quando, seu moço,
adolescente vai entrar, em um primeiro processo, que é o de liberdade assistida. Todo adolescente que entra em qualquer conflito com a lei passará pelo primeiro modelo que é o CENIP- Centro de Triagem de Atendimento Sócio Educativo.
nasceu meu rebento não era o momento dele rebentar. Já foi nascendo com cara de fome e eu não tinha nem nome para lhe dar.”
A nova lei do SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo) diz que o adolescente tem que entrar ali e passar no máximo quarenta e cinco dias. Após esse período, automaticamente, sem passar por vara de juiz, ele tem que ser solto. Foi por esse primeiro processo que Rivonaldo Francisco passou. Ele foi enviado para a unidade de Caruaru com 15 anos. Após o tempo limite determinado no CENIP, foi acompanhado pelo conselho tutelar. Ele conta que durante o tempo em que esteve lá não obteve nenhum estímulo que o fizesse querer mudar. “Os funcionários tratavam a gente com empurrões e mau humor. Depois que saí de lá fui preso, mas dessa vez já como de maior. As duas experiências foram ruins. Se hoje eu trabalho e tenho minha família é porque decidi por mim mesmo. A casa (CENIP) não me ajudou.”
Negro, do sexo masculino, tem de 16 a 18 anos, não frequenta escola e vive na miséria. Esse é o perfil do menor infrator traçado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). No Brasil, se o adolescente com menos de dezoito anos comete um crime, qualquer que seja, ele é atendido por um sistema socioeducativo. Esse sistema está baseado em uma ação de não punição e internamento; mas em uma ação de sociabilização. A criminalização, entretanto, já começa pelo primeiro processo. É decisão de um juiz, da vara de infância e juventude definir se esse
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Reportagem que ter no máximo noventa pessoas. Em Pernambuco há, atualmente, duzentos e setenta. Os centros de internação não podem ser compostos, por exemplo, por celas como em um presídio. Eles têm que ser casas com, no máximo, oito adolescentes por casa. Esses ambientes devem criar uma ação socioeducativa para que os adolescentes participem de projetos sociais, de arte e educação, projetos esportivos e que a partir desses projetos eles consigam se conscientizar e se ressocializar de uma forma muito mais lúdica, prática e leve. Saindo por esse modelo eles ainda têm de ser acompanhados pelo sistema do conselho tutelar.
Após esse processo o sistema deve agir da seguinte forma: se o menor tiver menos de dezoito anos ele não entra no sistema socioeducativo. Ele passa a ser assistido por um conselho tutelar. O juiz determina quando o jovem tem que ir à vara da infância e juventude, onde participa de projetos e ações comunitárias que são acompanhadas, necessariamente, pela família e por conselheiros tutelares. A casa dele também vai ser acompanhada com visitas do conselho tutelar pelo menos uma vez a cada quinze dias para ver como é que está o sistema socioeducativo, a assistência social, verificar se há uso de drogas na família e outras pertinências. Isso porque, até determinada faixa etária, o sistema entende que se um adolescente comete crime, ele é induzido pelo mundo adulto. Ele não pode ir para um sistema de privação de liberdade, pois ele não é inteiramente responsável por seus atos.
Quando o menor entra no sistema, se ele tiver entre doze e quatorze anos terá que ir para uma unidade socioeducativa onde não irão se misturar, por exemplo, com meninos ao fim dos quatorze até dezesseis anos. Da mesma forma, os jovens de dezessete até os vinte e um não poderão estar na mesma unidade que os demais. Em Pernambuco, por exemplo, existe a unidade de Jaboatão, onde ficam os mais novos, a de Abreu e Lima que é onde ficam os adolescentes com mais idade e a do Cabo de Santo Agostinho onde estão os mais velhos, até os vinte e um anos. Desses três exemplos, onde vemos mais notícias de rebeliões são nas unidades de Abreu e Lima e Cabo de Santo Agostinho, pois lá os menores são mais velhos e há uma maior dificuldade em executar atividades lúdicas com essa faixa etária.
Existe também o sistema de semiliberdade onde o menor passa o dia em uma atividade socioeducativa e a noite volta para casa, ou o contrário. Ele pode passar o dia em uma escola fazendo atividades (e obrigatoriamente tem que estar matriculado em uma escola) e participar de projetos sociais. Caso um juiz identifique que não há participação no sistema de semiliberdade, o próximo passo é um sistema de internamento. Este, por sua vez, funciona com três anos no máximo. Caso o adolescente cometa um crime com dezenove anos ele vai ficar internado até os vinte e um, idade prevista em lei.
Grande parte acredita que basta retirar o infrator do convívio social para “limpar as ruas” e puni-lo que ao fim da pena, automaticamente, ele sairá redimido. Outra parcela reconhece e pensa no preconceito que um ex-presidiário sofre e as dificuldades que ele enfrenta mesmo após o cumprimento de sua pena. Muitos ignoram os enormes gastos que temos no Brasil com a população carcerária e
Existe um grande problema em Pernambuco que se dá pelo fato de o SINASE não delimitar os modelos de direitos humanos e os direitos da criança e do adolescente que o estatuto preconiza. Por exemplo, todo atendimento socioeducativo das casas de atendimento tem
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seguem no desejo de redução da maioridade penal. No fundo, a maioria que quer essa redução não acredita mesmo que a criminalidade infantil irá diminuir, porém o que eles querem é que esses sujeitos, esses reféns da marginalização sumam do campo de visão deles. Além da resistência à busca de informação fidedigna por parte da população, existe a grande mídia que corrobora para a má visão do processo de ressocialização.
vante nas dificuldades que ele tem de enfrentar ao sair da unidade. Essa exposição é uma desmotivação para ele na construção de outra imagem. Muitos programas policiais pecam ao abordar crimes cometidos por menores. Alguns até cometem gafes, como quando reclamam do fato de um menor, após cometer crime, não ser jogado diretamente em uma prisão. Tal atitude ignora e desrespeita um conjunto de normas que protege a liberdade da criança e do adolescente. Esses programas geralmente incitam o ódio e revolta das pessoas para com os menores e não para com o sistema. A falha do sistema em relação à mídia é que, muitas vezes, eles optam pelo silêncio ou dificultam o acesso às informações de dentro das unidades. Então quando aparece alguma notícia na imprensa, é geralmente de caráter negativo, como notícias de rebeliões. Se a população só recebe esse tipo de informação, denunciando ações de revolta dos menores e não das falhas do sistema, cria-se a ideia de que o processo de ressocialização não funciona.
“Chega estampado, manchete, retrato
com venda nos olhos, legenda e as iniciais. Eu não entendo essa gente, seu moço, fazendo alvoroço demais.” A mídia, por lei, não pode expor o menor identificando-o. Mas existem outras maneiras de colocar em risco a imagem do adolescente. O Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos referentes aos atos infracionais cometidos por crianças ou adolescentes, como também a identificação deles em notícias a respeito do fato. Além de vedar fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco, residência e iniciais de nome e patronímico. Mesmo sob essa determinação, vemos muitas matérias policiais que, mesmo não apresentando o menor, entrevistam pessoas ligadas a ele. Se, por exemplo, um menor comete algum crime e entrevistam a mãe dele, a imagem dela irá referenciá-lo diretamente. Então, o jovem que está indo para um sistema de ressocialização já sabe que quando sair dali vai ser conhecido pelo crime que cometeu e isso só irá ser um agra-
Em Pernambuco, saíram notícias elogiando a unidade de Jaboatão, mas ela é apenas uma espécie de vitrine do sistema de ressocialização. Nessa unidade estão os mais jovens, e como já foi falado, é mais fácil trabalhar atividades lúdicas com esses adolescentes. Então, se eu tenho uma mídia que mostra que existe uma unidade que trabalha com crianças na média de 12 a 13 anos e elas conseguem se ressocializar e voltar para a sociedade vivendo como cidadão de bem, mas logo em seguida me mostra outra unidade que atende adolescentes mais velhos e lá só são noticiadas rebeliões a ideia de que para os mais velhos não tem solução irá fixar ainda mais na sociedade. É preciso sair da superficialidade e sensacionalismo e apontar o que está errado no processo.
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Entrevista
No cerne da questão: uma análise sobre a redução da maioridade penal Por Cícera Amorim Entrevista com Daniel Meirinho
Daniel Meirinho é professor universitário e pesquisador. Envolvido com estudos e ações de ressocialização de menores, ele respondeu algumas perguntas sobre o tema e expôs sua conclusão e ponto de vista para os problemas que o Brasil e, especificamente, Pernambuco enfrenta nessa área.
trabalho lá dentro, já que as organizações não são abertas. No CENIP, por exemplo, as unidades são fechadas, eles estão ali confinados. Aí, outro problema: o adolescente passa internado em torno de três anos, com direito a dois encontros por semana com a família. Ele não pode ter encontros conjugais, porém, estou falando de um adolescente de dezessete anos que já é casado, ou que já é pai de dois filhos, por exemplo, e morador de uma comunidade periférica. Então o que é que acontece quando ele está dentro do sistema? Sendo bem sincero: eles se violam ali dentro. E o próprio sistema educativo não prevê, por exemplo, uma política de saúde sexual e reprodutiva para eles.
É possível falar em ressocialização de menores dentro do atual sistema praticado no país? O sistema não funciona de forma decente. E sendo bem sincero, o sistema mesmo prisional ou “socioeducativo” é invisível para a sociedade. Você tira o adolescente do convívio social e desaparece com ele do sistema, porque ele é um problema. Ninguém quer saber, ninguém faz projetos sociais ali dentro. Algumas organizações não governamentais, por exemplo, a Unicef, fazem uma vez ou outra um projeto.
Meninos e meninas ficam misturados nesse sistema? Não. Mas, tu tens dezessete anos, tu estás com teu hormônio à flor da pele e entra em um sistema que sabe que vai passar três anos ali dentro. Entendeu?
O conselho da criança e do adolescente, bem como as organizações que trabalham com infância e juventude, pouquíssimas vezes atuam com adolescentes em conflito com a lei. Primeiramente, é uma burocracia gigantesca para você fazer um
Eles passam três anos, independente da idade que têm?
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existe o caso do adolescente que entra com menos força, que tem menos poder, de comunidades mais periféricas. Por exemplo, um menino veio da comunidade do Cabo, ou de Barreiros, logicamente não terá o poder de peso, de força, que um menino que mora no Coque. Em nível de respeito, dentro da unidade, eles acabam sendo muito coagidos.
Não. Eles podem ter penas diferenciadas. E, só passam os três anos se não tiverem bom comportamento. Se sim, saem antes e acabam sendo acompanhados. Podem sair do internamento, onde estava confinado, para o sistema de semiliberdade - ou de liberdade assistida - que é quando ele é acompanhado pelo conselho tutelar. O grande problema é que como o sistema não garante para o menor um processo de reeducação e de ressocialização, quando sai, ele volta a cometer crimes até os dezoito anos. Quando ele sabe que tem dezoito anos, ele acaba sendo um pouco mais cauteloso, porque aí sim, ele pode entrar em um sistema prisional mais sério. O problema não está no adolescente cometer crimes, porque em nível de taxas, é muito baixa a quantidade de adolescentes que cometem crimes hediondos de atentado e, por exemplo, homicídios, estupros, latrocínios e tudo mais. Além de ser pequena essa porcentagem, eles sempre são influenciados por adultos. Então, normalmente quando a gente vai ver reportagens de adolescentes infratores, eles são presos, normalmente com adultos.
Vemos hoje nas pesquisas que muitas pessoas estão se dizendo a favor da maioridade penal. O que você acha que está faltando para que eles repensem essa posição? Faltam os movimentos sociais se juntarem e explicarem o que é a redução da maioridade penal. Vi, recentemente, uma campanha onde era feita uma enquete com as pessoas perguntando se elas eram a favor da redução e as respostas eram positivas. Logo em seguida, era perguntado: “e se seu filho cometesse um furto?” As pessoas, após essa pergunta, paravam para pensar. Isso porque elas não se veem dentro do sistema. Elas veem que, por exemplo, quem vai cometer delitos são as comunidades periféricas, as comunidades excluídas da sociedade. Falta as pessoas saberem o que é a redução de maioridade penal e, efetivamente, o que isso vai alterar no modelo de violência da sociedade. É pouco provável que haja redução da violência, haja vista outros países, como os Estados Unidos, onde eles tem a maioridade penal reduzida e isso não foi relevante na redução da violência. Aqui no Brasil, quando um adolescente entra em conflito com a lei pela primeira vez, é ali que está a oportunidade de ressocializá-los, de fazer com que eles repensem, com que eles visualizem novas oportunidades e que não voltem a cometer esses delitos. Estamos perdendo o modelo da ação educativa.
Outro problema é que a gente só tem uma unidade socioeducativa em Pernambuco que é feminina. Nessa, todas as meninas estão lá dentro. Então, lá vai ter uma adolescente de treze anos junto com uma de vinte e um e elas se violam, usam força, usam violência. E ninguém está ali para intervir nesse processo, porque se coloca quinze a vinte meninas dentro de uma cela e as deixam lá. Todo o sistema do SINASE que é do Estatuto da Criança e do Adolescente diz que quando o adolescente entra, tem que ser atendido com ações socioeducativas e não ser simplesmente confinado. As unidades daqui se negam a distribuir preservativos, porque simbolicamente, eles têm aquele preconceito de “isso é uma unidade masculina, se a gente distribuir preservativo a gente vai incentivar a homossexualidade”. E não é. São relações que são homossexuais e não relações homoafetivas. Você não está incentivando a homossexualidade. Mas,
Qual a avaliação que você faria do ECA? O ECA ainda tem algumas falhas, mas tem algumas coisas ali que são básicas. Se pegarmos o ECA e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, mui-
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Existe uma preocupação com relação à família do adolescente? Se o problema da família for muito grave existe uma ação para pensar a tutela do menor?
tas coisas se cruzam. O que o ECA faz é regionalizar, internalizar alguns modelos de política. Adaptar a nossa realidade. A Declaração dos Direitos Universais da Criança já preconiza algumas ações de ressocialização: direito à liberdade, à privacidade, etc. Todos esses direitos, ligados à criança e ao adolescente já estão na Declaração. Eu acho que até hoje ela é válida, o grande problema, é respeitá-la. Por que querer discutir maioridade penal se existe um sistema socioeducativo que não funciona? Lógico que o adolescente vai ser reincidente. Por exemplo, o adolescente entra com quatorze anos no sistema socioeducativo, vai para uma liberdade assistida onde ele não é assistido, os conselhos tutelares são mal pagos, toda a mídia tem um modelo de pressão e criminalização desses adolescentes. Dentro da unidade, o adolescente passou determinado tempo onde ele não aprendeu nada, ninguém sentou com ele para conversar sobre essas relações de sociedade, não teve um psicólogo pra isso, então ele volta pra sociedade pensando: “eu posso fazer de novo”, porque ele vai voltar para o mesmo ambiente. Um erro grande do SINASE é que quando eles saem, não têm atendimento.
No SINASE, diz-se que tem que haver um acompanhamento da família, mas na realidade isso não acontece. E deveria! Pois, a família ainda é a grande base deles. No que se refere à efetivação, o que falta é monitoramento. Cada estado é responsável pelo seu adolescente. Não existe unidade federal. Então, deveria existir um agente que fiscalizasse, porque existe verba distribuída entre os estados para suprir as necessidades das unidades. Qual o papel da igreja na ressocialização dos jovens nas unidades? A instituição religiosa, dentro das unidades, até prisionais, é a única instituição que de alguma forma os fazem refletir sobre a vida deles, sobre o que fizeram e possibilitam uma prospecção do que terão de futuro. Caso não, algumas organizações têm muita dificuldade de chegar, porque a fé é algo que toca, algo que meche com as pessoas e que pune. Elas passam a ter uma relação de vigilância e punição muito forte, então se voltam a uma relação de autopunição. “Você é um pecador, então, você tem que se autocontrolar”. Muitos grupos evangélicos adentram as unidades, onde têm uma hora de manhã e uma à tarde. Lá, realizam uma oração que é puxada por um dos adolescentes. Não é algo muito institucionalizado, por exemplo, ele vai para um pavilhão, cheio de celas e começa a gritar, os outros, gritam de volta. Gritam coisas como tipo: “Você precisa perceber que você precisa respeitar a sua mãe”. E respondem: “Amém!”. Tudo muito na relação maternal.
Existe alguma política do sistema para prevenção do envolvimento de menores com a criminalidade? Se sim, qual a relevância deles? Existem projetos sociais com ações educativas em escolas. Não com relação a crimes, mas voltado para a prevenção do uso de drogas. Ações educativas, utilização de comunicação enquanto processo de empoderamento, de engajamento, rádios comunitárias, jornais fanzine, vários projetos. Só que, por exemplo, a escola não funciona muito bem, existe um projeto de escola onde o adolescente tem um processo de educação muito formal. É um adolescente do século XXI com escola do século XIX. O aluno não se sente acolhido pelo espaço escolar e é na rua que ele busca esse espeço, porque em casa ele também não é acolhido.
É comum que outras religiões que não a evangélica esteja presente nas unidades? Existem vários grupos religiosos católicos e espíritas, mas a adesão muito maior é de grupos evangéli-
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de criminalidade estão vinculados a ações socioeducativas, a ações educativas, de fato. Se o país tem uma escola que engaja a criança, onde ela se sente acolhida naquele espaço, onde o professor trabalhe, não só aquela educação formal, das disciplinas comuns, mas que seja um educador por cidadania, que trabalhe os direitos humanos, aborde noções de exclusão, etc.; o adolescente vai se sentir engajado, vai ter uma autoestima muito maior e não vai chegar a cometer crimes. Mas se não se tem um sistema de educação decente, a criminalidade é toda a consequência de um sistema de violência, de opressões, de hegemonia da sociedade, do capitalismo. A base está em boas escolas públicas, projetos sociais, projetos que funcionem dentro das comunidades e não ações que as afastem.
cos, porque esses grupos têm um discurso muito potente. Primeiro, eles tem um discurso de conexão com o problema. Às vezes, o discurso católico se apresenta muito hegemônico, como é na missa. Ela é muito programada, existem etapas e não existe uma participação muito ativa do fiel. Já no modelo evangélico, há uma linguagem muito popular que chama pelo problema e conecta com a entidade divina. Há uma apropriação muito maior por classes populares. Talvez por isso os evangélicos têm tido um grande avanço na sociedade, graças a esse diálogo direto, que cria um medo muito maior. Os evangélicos vão dizer: “Isso é coisa do demônio, ele está perto de você”, então isso acaba te puxando um pouco mais para perto da fé. A igreja funciona muitas vezes melhor do que as Organizações Não Governamentais dentro das unidades, e acaba encabeçando todo o processo, quando isso deveria ser responsabilidade do sistema estatal. As atividades deveriam ser encabeçadas por psicólogos, terapeutas, agentes socais e não, necessariamente, apenas por religiosos. Porque eles acabam colocando aquela situação em que os jovens vivem como consequência de um pecado, e não os fazendo pensar sobre os motivos que de fato o colocaram ali. Ou seja, pensar a questão social, moral, ética, cível e de valores.
Cada vez mais estamos empurrando a periferia para longe. A gente tem uma “bolha” dentro da cidade onde ela é relativamente segura. Fora dessa bolha, as pessoas estão se matando. E quem está dentro não quer que as pessoas participem do convívio delas. “Rolezinhos” é um exemplo. As pessoas não querem que um garoto de periferia vá para um shopping center. Não é porque ele vá talvez para fazer baderna, é porque não querem simplesmente que ele vá. “Você está violando o meu espaço. Eu sou branco, tenho uma classe social alta, tenho condições financeiras e você está violando o meu limite que tenho com você. Esse é o meu espaço de consumo. O seu é na periferia. Continue lá”.
Apesar de tudo a adesão do jovem a religião não é um fator que vai colocá-lo numa garantia de não reincidência. Ele pode estar engajado nos grupos religiosos, mas ainda assim, cometer crimes. A única coisa que vai fazer com que ele não seja reincidente é visualizar novas oportunidades, enquanto não houver isso, ele vai continuar encontrando como única oportunidade, o crime.
Se as pessoas não saírem desse modelo de intolerância e a mídia não conseguir de alguma forma sensibilizar as pessoas de que a problemática está em uma política de estado e, não necessariamente, nesses adolescentes, a gente vai conseguir ressocializar, teremos uma nova geração de pessoas que não vão cometer delitos, que vão refletir criticamente, serão atores políticos na sociedade, se engajarão e serão mais empoderados. Precisamos sair, também, dessa mídia que não responde aos interesses da sociedade, mas apenas aos interesses privados. Assim, a gente chega lá.
Para além do que já temos, você acredita que há alguma outra coisa que seria possível fazer e ainda não é pensado, ainda não é feito? Acho que a base é trabalhar em um sistema educativo decente. Os modelos que tem menos índices
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Ressocialização e socioeducação: um recorte de gênero Sistemas penitenciário e socioeducativo refletem desigualdades de gênero encontradas em nossa sociedade Por Maria Eduarda Barbosa
Como sugere o nome da loja, os produtos são feitos de maneira sustentável. Ou seja, transformam-se resíduos recicláveis em artesanato. Os preços são variados e escolhidos pelos próprios reeducandos, com renda revertida para eles. Os valores podem R$ 3 a R$ 300 reais.
Enquanto o sol de uma quarta-feira fervia as cabeças dos recifenses, no Paço Alfândega, era aquele vazio de sempre, que foge à rotina apenas durante o carnaval e outras festividades que movimentam o Bairro do Recife. No primeiro andar, músicas embalavam o lançamento de uma loja de roupas, contrapondo-se ao silêncio do estabelecimento ao lado, onde Victória* trabalha. À primeira vista, os produtos colocados à venda na loja Atitude Sustentável chamam atenção pela criatividade. Chaveiros, carrinhos de madeira, banquinho, quadros, entre outros, todos esses artefatos são feitos por reeducandos que estão no Sistema Penitenciário de Pernambuco.
Victória é mãe de dois filhos e trabalha há 10 meses no estabelecimento. Hoje, ela está em condicional. A atendente cumpriu parte da pena em regime fechado e agora responde à justiça fora da prisão. “Não sou totalmente livre”, explica Victória, mais tarde revelando que ainda falta muito tempo para o fim do regime. Ela soube do programa durante uma chamada realizada quando saiu em condicional. Na cerimônia, são passadas informações sobre o que pode ou não ser feito na nova condição e ainda sobre as possibilidades de obter a CNH e de se conseguir um
A loja Atitude Sustentável é mantida por uma parceria entre o Paço Alfândega e a Secretaria Executiva de Ressocialização (SERES), através da Chefia de Apoio a Egressos e Liberados (CAEL).
*nome fictício 26
Reportagem
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trabalhou em uma empresa através da CAEL e hoje está quite com a justiça.
emprego. “Então, assim que eles me passaram essas informações, eu corri atrás. A SERES foi e me deu uma oportunidade”, conta a reeducanda. O programa da CAEL não oferece benefícios como férias e o reeducando pode continuar até o fim da pena. Além da loja no Paço Alfândega, também há produtos à venda na Casa da Cultura e na Feira Nacional de Negócios do Artesanato (Fenearte).
Acerca das condições de lazer e esporte no sistema penitenciário feminino onde estava, Victória destaca a existência de uma quadra. “Eu era craque no handebol”, enfatiza com orgulho. Já as visitas íntimas eram difíceis de acontecer, segundo a reeducanda. “O presídio de homem é mais fácil ter visita íntima do que o da mulher. O da mulher pra ter é uma burocracia, visse?”, ressalta.
Durante seu período no Sistema Penitenciário, Victória trabalhou em outra loja localizada no bairro da Imbiribeira. Na época, ela estava na Colônia Penal Feminina de Abreu e Lima, também conhecida como “Cotela” por ficar próximo ao Cotel, e conta que acordava às 5 horas da manhã e retornava ao presídio às 21h. “Quando eu pensava em ver a rua e não ficar ali dentro, oxe, eu me acordava feliz da vida”, relata. Foi no antigo trabalho que Victória conheceu seu atual marido, que também passou pelo sistema penitenciário,
A REALIDADE NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO FEMININO A hierarquização de papéis sociais para o homem e a mulher também é imposta às instituições socioeducativas. Os estudos sobre o cárcere feminino no Brasil são poucos e tornam-se ainda mais escassos quando é voltado para as adolescentes.
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nos. Muitas garotas possuem vida sexual ativa, passaram ou passam pela gestação e têm seu direito sexual tolhido. Érica aponta que um dos argumentos utilizados pela instituição é o medo de elas engravidarem. Contudo, não há uma política de educação sexual voltada às socioeducandas. As adolescentes grávidas têm direito apenas ao pré-natal, realizado fora da unidade. Mesmo assim, há dificuldades para o deslocamento e algumas meninas acabam perdendo a consulta do mês.
Recentemente, foi publicada uma pesquisa,feita através de um edital do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que traz à tona a realidade vivenciada pelas socioeducandas do Brasil. De antemão, é possível constatar, ao ler a pesquisa, a violação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e um olhar patriarcal do sistema às adolescentes. Intitulada “Dos espaços aos direitos: A realidade da ressocialização na aplicação das medidas socioeducativas de internação das adolescentes do sexo feminino em conflito com a lei nas cinco regiões”, a pesquisa teve a coordenação de Marília Montenegro, professora da pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
Outra atividade de cunho sexista é o serviço de limpeza da instituição sendo realizado pelas próprias socioeducandas. “É como se a limpeza fizesse parte do sistema socioeducativo delas. Isso jamais acontece com os meninos. Isso é naturalizado”, aponta Érica. Na instituição também há uma política de entrega de três unidades de cigarro por dia às garotas, e as que estão grávidas também recebem. Érica enfatiza que não há nenhuma formação, conscientização, educação sexual, nem orientação familiar. Para a pesquisadora, esta é uma política muito danosa e, ao mesmo tempo, um alívio para as meninas devido a pressão indescritível que elas vivem. A professora lembra de um diálogo com uma das socioeducandas: “Eu fiz: ‘Fulana, tu tá com 7 meses e tu tá fumando. Tu sabe que tá prejudicando o teu bebê.’ Ela fez: ‘não tia, o doutor disse que eu podia’”.
Segundo Marília, o perfil socioeconômico das socioeducandas reproduz o que o sistema prisional para adultos apresenta. “Elas possuem baixo grau de escolaridade, evasão escolar e pertencem às famílias com renda menor ou entre um e dois salários mínimos. Depende um pouco de região”, relata a coordenadora da pesquisa. Em Pernambuco, a média é de um salário mínimo. De acordo com Érica Babini, que conduziu a pesquisa no Estado de Pernambuco, as peculiaridades de gênero não são levadas em conta, tanto no sistema para adultos como para adolescentes. “A formatação do olhar da instituição para mulher é sempre um olhar carregado de estereótipos”, destaca Érica, que também é professora do curso de graduação de Direito da Unicap. Em Pernambuco, as adolescentes internas vivem no Case Santa Luzia, que atualmente se localiza próximo à Colônia Penal Feminina Bom Pastor.
O direito ao esporte e lazer, como garante o Estatuto da Criança e do Adolescente, não é uma realidade para as socioeducandas. Em Pernambuco, os recursos que deveriam existir para realização de propostas socioeducativas não são repassados pelo Governo Estadual, segundo Érica. “Não existe nenhuma atividade pedagógica no Case Santa Luzia. Não existia à época (da pesquisa) e hoje muito pior”, pontua. Quando existe, é por iniciativa pessoal da equipe técnica (psicólogo, pedagogo, assistente social...). Na instituição, havia uma piscina utilizada aos domingos, mas que agora está vetada.
Essa visão machista do sistema socioeducativo acarreta, por exemplo, na proibição de visita íntima às adolescentes. Legalmente, esse direito é previsto pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), mas não há a prática para as meninas, embora exista para os meni-
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Em relação à educação, na unidade anterior, as socioeducandas iam para escola localizada fora da instituição, havia uma interação socialexterna. “Por outro lado, a escola recusava a presença delas pelo rótulo de infratoras”, conta Érica. O Governo Estadual lançou um programa de valorização de professores em que eles recebem uma gratificação de 100% sob o salário quando ensinam em unidades da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Funase). Agora, a escola funciona dentro da unidade atual. Ou seja, o contato social
com outras adolescentes fora da instituição é cortado. “Já temos um primeiro problema, que é de comunicação integrativa com a comunidade, que ela já não existe mais”, ressalta a pesquisadora. Além disso, não há uma divisão por série na unidade, o que acarreta em problemas metodológicos visto que as adolescentes possuem diferentes níveis de escolaridades. Condicionadas a essas situações, como pode existir socioeducação? Na realidade, elas vivem em uma prisão disfarçada de instituição socioeducativa.
INTERNAR NÃO É O CAMINHO Por Marília Montenegro
O caminho é trabalhar com essas pessoas. Como é que o pressuposto é socializar ou ressocializar e eu tiro elas da sociabilização? Então para a gente privar o ser humano de liberdade, numa faixa de crescimento, não pode trazer bônus. Isso pode até ser aceito em casos excepcionais. Imagina você encarcerar alguém porque está envolvida com tráfico de drogas, na venda de pequenas quantidades de drogas, até para manter o próprio uso? Você privar essa pessoa de liberdade, de sua adolescência? Por que a gente não trabalha outras medidas com ela? O próprio estatuto oferece outras medidas, como liberdade assistida, a possibilidade de um acompanhamento, de um retorno à configuração escolar e não meramente uma retirada dessa pessoa de um convívio social. Isso aí vai contra a proposta do próprio estatuto. Se eu quero te socializar, eu te tiro do teu convívio social. Internar por desacato e até por tráfico de drogas é uma afronta ao estatuto. Para justificar uma internação, é preciso haver um crime com violência ou grave ameaça. Desacato, tráfico de drogas, eles não têm essa característica.
Leia a pesquisa publicada pelo CNJ na íntegra. Acesse o QR Code.
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Coluna
A representação do presídio feminino em Orange Is the New Black Por Maria Eduarda Barbosa
A produção traz o protagonismo para outras mulheres: negras, latinas, asiáticas, trans, gordas, magras, ricas, pobres, jovens, idosas. E através delas, são trabalhadas temáticas que, aqui no Brasil, pelo menos, geraria algum tipo de boicote de fundamentalistas. São algumas delas: feminismo, aborto, identidade de gênero, lugar de fala e sexualidade. Orange é uma série que entretém e, ao mesmo tempo, traz questões importantíssimas como estas à tona.
“Cada sentença é uma história”. Esse é um dos slogans da série Orange Is the New Black, sucesso da Netflix, serviço streaming de filmes e séries. Inspirada no livro homônimo de Piper Kerman, a história aborda a vida das prisioneiras da Penitenciária de Litchfield, nos Estados Unidos. Podese destacar, aqui, um avanço acerca da temática da série, já que não encontramos uma história ambientada em uma prisão feminina com frequência nos seriados. Aliás, atrevo-me a dizer que a criação Jenji Kohan é pioneira nisso.
A série possui três temporadas completas e a quarta já está confirmada para 2016. A produção também aborda problemas encontrados na administração da Penitenciária de Litchfield, como corrupção, e trabalha a forma com a qual os funcionários desempenham suas atitudes com as prisioneiras, sendo o abuso de poder algo recorrente.
A protagonista é Piper (Taylor Schilling), adulta de classe média alta que é condenada a 15 meses de prisão por participar do transporte de uma mala de dinheiro que teve origem no tráfico de drogas. O contraste entre o antigo estilo de vida de Piper e o novo, na prisão, é uma das abordagens que podemos encontrar na primeira temporada. Mas Orange is the new black vai muito além da protagonista de classe média alta, loira e magra, que encontramos na maioria das séries de televisão.
Voltando à referência ao slogan da série: “cada sentença é uma história”. Nos episódios, paralelamente ao enredo presente em Litch-
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field, o espectador também conhece o passado das prisioneiras, levando-o a descobrir o motivo pelo qual elas foram parar na prisão. No entanto, Orange não mostra a realidade de uma prisão federal feminina. É o que aborda um artigo publicado no portal Brasil Post, intitulado: Como ‘Orange Is the New Black’ deturpa os presídios femininos e por que isso importa. Uma das desconstruções feitas no artigo é a visão de que as mulheres, cumprindo pena em presídios federais, são as piores criminosas, quando, na realidade, a maioria delas cometeu crimes relacionados a drogas, considerados de pouca gravidade.
Confira o artigo publicado no Brasil Post. Acesse o QR Code.
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Entrevista
Entrevista com Juliana Serretti Por Maria Eduarda Barbosa
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presos como “mulheres”). De modo que o que acontece nessas unidades de internação é reflexo dessa forma de organização.
Juliana Serretti é graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e, no mestrado, estuda Gênero e Antiproibicionismo. Ela também foi voluntária na pesquisa realizada pelo Universidade Católica de Pernambuco UNICAP, intitulada “Dos espaços aos direitos: A realidade da ressocialização na aplicação das medidas socioeducativas de internação das adolescentes do sexo feminino em conflito com a lei nas cinco regiões”. Em entrevista, a pesquisadora fala sobre desigualdade de gênero, mulheres e a prisão, ressocialização, e relata uma das histórias que conheceu durante o período da pesquisa.
Essa maneira desigual sobre como a sociedade está organizada causa reflexo (sofrimento) para todas nós, mulheres, desde que nascemos, mas a depender dos diversos recortes de desigualdade que a sociedade também impõe para cada uma de nós (se somos pretas, se somos lésbicas, se somos pobres, etc) a vulnerabilidade à exploração e à opressão será maior. Um grande exemplo disso é o destaque visual que pode ser feito ao entrar numa unidade de internação - praticamente não há meninas brancas, definitivamente não há meninas ricas, este é um sintoma evidente de como a nossa sociedade é estruturalmente excludente para aquelas e aqueles que não se enquadram no arquétipo ideal de sujeito social, qual seja, o homem branco, cis, heterossexual, rico. Qualquer indivíduo que fuja a esta regra sofrerá, em maior ou menor grau, alguma forma de opressão. Para as mulheres e meninas, como se percebe, a opressão começa desde a infância, e juridicamente está permeada por todo arcabouço do Direito, das leis que regulam os nossos corpos (mesmo dentro desses como no caso da proibição do abortamento), ao Poder Judiciário em si e às sentenças permeadas de valores machistas propagadas pelos magistrados Brasil afora.
Ao ler a recente pesquisa realizada pelo edital do CNJ, algo que me chocou bastante foi saber, por exemplo, que as meninas precisam limpar a casa onde elas estão internadas, como uma obrigação, diferentemente dos meninos, que não precisam fazer isso. Além disso, elas não podem receber visitas íntimas (as adultas precisam enfrentar uma grande burocracia...). Há uma parte da pesquisa que diz algo como: “o sistema é feito por homens e para homens. A mulher é invisível”. Como essa imposição afeta no processo de construção das adolescentes? Por que isso é feito? O que pode ser feito para mudar essa estrutura? Muito precisa ser feito para mudar isso, porque a palavra “patriarcado” não é meramente um sinônimo de machismo, ela remete a uma forma de organização desigual da sociedade, onde estruturalmente esta se organiza de modo a refletir diferenças entre as implicações para cada gênero/sexo (coloco o “sexo” aqui porque o critério penal/infracional não é baseado no gênero, sendo, pois, um critério biológico. Uma grande consequência disso é que, atualmente, temos mulheres trans sendo presas como “homens” e homens trans sendo
Na prática, e no caso específico das unidades de internação, essa pesquisa em si já foi um passo importantíssimo, mas muito precisa ser feito, no sentido concreto, para mudar a vida dessas meninas. Um primeiro passo foi torná-las visíveis, o segundo talvez seja nos organizarmos, enquanto sociedade, para atuarmos em prol destas mudanças. O movimento feminista existe por/para isso.
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Qual é a causa mais frequente que leva as mulheres à prisão? Li em uma matéria no site do CNJ, na qual conta que uma socioeducanda está cumprindo pena por ter assassinado o padrasto que tentou assediá-la. Por que ela é vista como ré se antes ela sofreu com a tentativa de assédio? Há algo que possa mudar isso?
nossa sociedade. Vejamos: se o patriarcado é um traço estrutural que permeia nossa forma de organização em sociedade, e o Direito existe para regular essa forma de organização e manter a ordem ou o status quo existente, “pacificando” os conflitos que tentam ir de encontro a ele, qualquer mulher que tente se levantar contra o patriarcado de forma direta (como, no caso, matando seu algoz) necessariamente esbarrará nas estruturas jurídicas de manutenção dessa ordem social desigual. Se não esbarrar numa lei, como a do homicídio, esbarrará na mentalidade machista do juiz, que não considerará o instituto da “legítima defesa” para esta menina/mulher, tendo em vista que ele não percebe a dignidade/ liberdade sexual, além da sanidade mental/ emocional/psicológica dela enquanto potencial vítima de estupro, como um bem jurídico equivalente ou superior à vida de seu algoz (“Bem jurídico” é aquilo que o Direito tutela. O crime de homicídio pretende tutelar o bem jurídico da “vida”, o de furto pretende tutelar o da “propriedade privada”, etc).
Este é o meu tema de pesquisa no mestrado e na graduação. Atualmente, o crime no Brasil que mais encarcera mulheres é o tráfico de drogas, sem dúvidas. Os dados chegam a ser massacrantes, pois segundo informações recentes do Infopen (consulte o QR CODE para acesso à pesquisa), a proporção de homens encarcerados por tráfico em comparação com as mulheres é de 25% para 63% respectivamente! É extremamente evidente o quanto a mão de obra feminina, explorada de forma precária no tráfico de drogas, ocupa as funções de pior prestígio e, portanto, maior potencial de criminalização, já que são funções de baixo escalão. Aqui a gente percebe o quando as estruturas ditas patriarcais realmente estão presentes em toda a sociedade, porque até nesta expressão ilegal de trabalho, que é o tráfico de drogas, existe uma divisão sexual que coloca as mulheres nas funções mais baixas e, não à toa, de maior flagrante (como a “aviãozinho”, que é uma pequena varejista ou entregadora, precisa estar sempre portanto as drogas consigo; ou a mula, que é coisificada em “embalagem” (ou seja, vira uma mercadoria acessória) para transportar a droga (mercadoria principal).
Essa menina é vista como ré/condenada porque ousou se impor contra as estruturas. É muito comum culpabilizar a vítima quando esta é uma mulher, e o exemplo mais evidente neste aspecto é o próprio estupro - existem até marchas feministas no mundo inteiro, como a Marcha das Vadias, que se levantam contra isso - mas o que há por trás desses exemplos é uma mensagem que nós absorvemos de maneira tão profunda que isso afeta sobremaneira a construção da nossa própria personalidade: vocês, mulheres, não deveriam existir (no sentido cartesiano de “penso, logo, existo”), enquanto sujeitos. Porque ainda que a mulher não tenha feito absolutamente nada além de existir, a responsabilidade pela violência que sofreu será dela - ou, em sua ausência, das mulheres ao seu redor,
Tecnicamente, o fato da vítima de tentativa de estupro ser não apenas vista, mas efetivamente punida e condenada como autora de um crime evidencia o que eu estava falando no parágrafo acima sobre o Direito, por inteiro, refletir as estruturas patriarcais da
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campo, durante a pesquisa do CNJ. Uma das meninas internas de lá (a mais pobre entre todas, diga-se de passagem; e olhe que todas eram bem pobres, mas esta vivia em situação de miserabilidade completa, total e absoluta), oriunda da favela do Coque, fugiu de casa em decorrência dos abusos e da fome que passava aos oito anos de idade (onde estávamos nós com oito anos de idade? Esta menina preferiu estar na rua. Só de pensar sobre isso já podemos refletir muito sobre a vida da “clientela” do sistema penal/infracional). Uma vez na rua, ou se deixava ser sexualmente explorada por algum dinheiro, ou vendia crack. Preferiu vender crack (o que não a impediu de sofrer abusos sexuais na rua). Quando a encontrei ela tinha 15 anos, e era sua segunda passagem pela unidade de internação. Sua pele era muito marcada pelo sofrimento, seus cabelos maltratados, possuía poucos dentes na boca... Ela já não tinha mais família ou qualquer laço familiar, não sabia o que era uma casa. As roupas que tinha e os pertences que possuía pegava da lixeira, quando as outras meninas jogavam fora. Tinha uma voz muito meiga, mas não conseguia articular frases direito e se comunicava muito precariamente. Ao final da entrevista eu perguntei o que ela queria fazer quando saísse de lá não necessariamente o que ela ia fazer efetivamente. Ela me respondeu mais ou menos assim: “O que eu quero fazer? Eu queria ser uma adevogada (sic) que nem você, uma professora.... Mas você acha que eu vou fazer o que? Você acha que eu tenho opção?”
como no caso de estupros que acontecem dentro de casa em que a vítima morre. É extremamente comum que se culpe a mãe pelo ocorrido, por exemplo. Como ressocializar se as mulheres são privadas de liberdade? Como socioeducar se os recursos de lazer/esporte não são repassados pelo Estado e o sistema educacional não é bom? Existe alguma possibilidade da ressocialização e socioeducação realmente funcionar? A pergunta sobre a ressocialização talvez seja a mais difícil de ser respondida porque, antes dela, acho que o que nós temos que nos perguntar é: o que é “socialização”? Já não eram essas meninas “socializadas” antes de serem retiradas de seu meio? Ou ainda, será que este sistema de internação/cárcere efetivamente é capaz de “ressocializar” alguém? Será que ele não se vende como “ressocializador” de maneira demagógica para apenas cumprir a sua função principal, de “punição” das populações estigmatizadas que fogem ao controle do Estado muito mais por ausência de cuidados e oportunidades que por mera “maldade”? Enfim, são questões que precisamos pensar e construir juntas, não tenho a pretensão de ter todas as respostas, mas acredito que o caminho, talvez, seja uma mudança estruturalmente forte na sociedade. Há reeducandas que acabam sendo internadas mais de uma vez na instituição. Qual a causa para isso acontecer? A instituição e a sociedade são culpadas?
Nesta sociedade, estas meninas estão tendo opção? Ou será que o sistema infracional, tal qual a desigualdade social (pobreza), não é mais uma das facetas estruturais do patriarcado?
Para a tua última pergunta, vou responder com uma das histórias que vivi e ouvi em
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Reportagem
A deformação do macho Texto: Caio Castro Mello Fotografia: Élida Nascimento
Eram quinze horas de uma terça-feira quando a secretaria da Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, da comarca de Jaboatão dos Guararapes-PE, recebia as primeiras assinaturas em sua ata de presença. Do lado de fora, a cidade e o seu caos operavam normalmente: sol, engarrafamento, gritos e correria. Essa rua era diferente; vazia, silenciosa, arborizada. A casa em arquitetura antiga se camuflaria em meio às residências de um bairro à beira mar, exceto pelo letreiro que a denunciava, e o policial militar que recepcionava a cada um que se aproximasse.
trajeto que percorri da Zona Oeste do Recife à orla de Jaboatão dos Guararapes, ao sul da capital, me vinham à mente cenas de violência, relatadas pela repórter Fabiana Moraes em seu especial “Ave Maria” para o Jornal do Commercio. A jornalista resgatou histórias de Marias assassinadas pela violência doméstica e um de seus títulos “A violência cala o divino que há em nós” não saía da minha cabeça.
No andar de cima, a assistente social Élida Maria Nascimento terminava de organizar a sala do encontro que haveria em poucos minutos. Por mais acostumada que parecia estar com a rotina do trabalho, transparecia a espera pelo inusitado, certa ansiedade por uma recepção positiva. O grupo que Élida aguardava eram oito homens, todos condenados por violência doméstica que, após deixarem o presídio, como condição de suas liberdades, deveriam encontra-la mensalmente – alguns com menos frequência – para uma espécie de aula de Cidadania.
Enquanto eu aguardava na pequena sala do primeiro andar, onde se realizaria o encontro, Élida recepcionava aqueles que já haviam chegado e os guiava até o local preparado cuidadosamente por ela. Em cada cadeira, quadrinhos da Turma da Mônica, à frente, uma televisão com vídeos e canções selecionadas.
DO ENCONTRO À DANÇA
Hannah Arendt, filósofa alemã, publicou em 1963 sua grande cobertura do julgamento de Adolf Eichmann para a revista The New Yorker. Em cinco artigos, Arendt contava em detalhes suas percepções do processo até a condenação daquele que foi um dos líderes do movimento nazista, responsável pelo transporte de prisioneiros aos campos de concentração.
Como repórter, por vezes as perguntas e dúvidas não cabiam em mim. Era uma experiência que me instigava. Por um longo
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À polêmica cobertura da autora não faltaram críticas. Tudo porque Arendt, judia, não enxergava um monstro a sua frente. O que mais a assustava era a normalidade de Eichmann, não o sanguinário, apenas um funcionário de Estado. Na obra, a autora discorre sobre o poder do Estado Totalitário de gerenciar as mentes e naturalizar as violências.
era a primeira vez que ela participaria do grupo. Os outros três não foram ou se atrasaram.
Naquela sala em que eu estava enquanto entravam os homens, um a um pela porta lateral, me vinha à cabeça a banalidade do mal, aquela que Hannah Arendt descrevera. O primeiro, sorridente, entrou de mãos dadas com o filho, uma criança com idade entre um a dois anos. O segundo, cabisbaixo, em silencio se sentou. O terceiro usava óculos e uma camisa de botões, era o mais formal. O quarto, com um boné para trás e muitas piadas na ponta da língua, descontraía o clima. O quinto entrou acompanhado da esposa grávida,
Élida havia preparado uma aula sobre os direitos da criança e do adolescente. De acordo com a assistente social, diante da verificação de que a maioria dos homens que ali estavam possuíam filhos – estes, portanto, indivíduos localizados dentro do ciclo da violência – fazia-se necessário uma orientação para a importância de proteção às crianças e adolescentes.
A eles faltavam palavras. A dificuldade de se expressar e suas peles pretas envelhecidas, judiadas pelo sol, eram os mínimos sinais de suas degradações, exposições e vulnerabilidades.
Na televisão, dava-se o play em um videoclipe da canção “Bola de Meia, Bola de Gude”, na
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voz de Milton Nascimento. Enquanto a animação acompanhava a melodia alguns se divertiam, por vezes, dançavam. Ao fim do vídeo um pedido: “Dona Élida, na próxima vez, traz música pra gente dançar?”.
meio ao trabalho. De acordo com ela, o direcionamento político do Estado de Pernambuco, do Pacto Pela Vida em parceria com a Secretaria da Mulher, é pelo não atendimento ao homem. “Eles acham que o atendimento só deve ser feito pela prisão, uso de tornozeleiras ou abrigamento”. Atualmente, o estado possui cinquenta tornozeleiras para atender toda a sua população. Além de irrisória a quantidade, para a assistente social, o olhar sobre a violência vai muito além do controle dos corpos: “a violência é cíclica (ela vai e volta). Não existe um entendimento social da violência”.
Após explicações e outros vídeos instrutivos, Élida se preparava para concluir o encontro com a leitura da poesia Os Direitos das Crianças, de Ruth Rocha. Todos escutam atentamente. Ao final do último verso, um dos cinco homens se levanta e pergunta se poderia copiar o texto pra ler novamente em casa, Élida entrega-o sua cópia.
Sem esse atendimento que contemple os diversos atores envolvidos em uma situação de violência, o conceito de ressocialização perde o protagonismo na luta por direitos e segurança, dando lugar ao autoritarismo de um
UMA QUESTÃO ESTRUTURAL De volta ao escritório da Assistência Social, Élida fala de suas angústias e dificuldades em
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estado evasivo, que se torna, dentro desse contexto, mais um dos atores de violência. “Não existem políticas públicas para dar o enfrentamento devido à violência doméstica. O que existe é a Lei Maria da Penha, mas sem de fato um atendimento social”, relata. “Uma ameaça só são seis meses de pena. Então, se a pessoa for presa por ameaça, quando ela voltar à sociedade ela vai praticar que tipo de violência? Outro, certamente. Primeiro: ela não conseguiu entender porque foi presa – eles muitas vezes não sabem. Segundo: eles não entendem o machismo, simplesmente vivem numa sociedade patriarcal e machista e isso se torna estruturalmente normal. Assim, ser preso pra eles é culpa, simplesmente, da mulher”.
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