Revista Pulso

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PULSO|DEZEMBRO

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Nasce a PULSO PLANO DAS MINORIAS pág.

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O VIOLENTO SILÊNCIO DAS RUAS pág. 9 NA NOITE E NAS REDES: POUCO SILÊNCIO, MUITAS HISTÓRIAS pág. 12 BOHEMIAN RHAPSODY: QUEEN COMO VOCÊ NUNCA VIU pág. 22 VILÕES PARA O ESTADO, HERÓIS DE SUAS FAMÍLIAS: A VIDA DOS “MARRETEIROS” DOS TRILHOS DE SP pág. 24

HUMOR pág. 28

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asta encontrar alguém desmaiado ou aparentemente sem os sentidos para a primeira iniciativa ser verificar a sua pulsação, principal indicativo de que a pessoa está ou não viva. O pulso é a resposta dos batimentos do coração, desde a calmaria até a aceleração desmedida. É por meio dele que se observa, por exemplo, o caos atribuído à adrenalina de se estar diante de um perigo qualquer ou a serenidade apontada pela paz de se estar em situação confortável. Isso tudo percorre as veias do corpo humano e carrega aquilo que o corpo precisa: a vida. O pulso revela a vida e é isso que a esta publicação quer abordar: tudo o que faz o mundo pulsar. Como nem sempre tudo o que circula pelo sangue é saudável, os bons nutrientes acabam por dividir espaço com os maus, muitas vezes imperceptíveis. É necessário distinguir o que faz bem e o que faz mal. Para isso é preciso conhecer na intimidade cada um dos ingredientes. E quem anda pelas ruas está a meio caminho de conhecê-los e pulsar definitivamente com o cotidiano sem máscaras. O leitor está convidado a saborear os ingredientes que percorrem as veias do mundo real paulistano, de casas e mentes.

Sem preconceitos e lidando apenas com os fatos, esta edição de Pulso revela as intimidades e as técnicas de garotas de programa que refundam a prostituição a partir das redes sociais; traça uma radiografia das propostas econômicas do ativista social que pleiteou ser presidente do Brasil; conta histórias de marreteiros que se sustentam dos trens da CPTM; articula defesa aos direitos de moradores em situação de rua; e publica resenha sobre o filme Bohemian Rhapsody e os encontros de Freddie Mercury. Convite feito. Vem pulsar.

REDAÇÃO Adriano Garcia

Caio Rogério

Claudio Porto

Gervásio Henrique

Victor Ricardo


Plano das minorias Plataforma econômica de presidenciável ativista apontava caminhos para o combate aos privilégios da classe dominante

Por: Gervásio Henrique

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andidato à Presidência da República pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL nas eleições deste ano, Guilherme Boulos priorizava, em seu plano de governo, o combate às desigualdades sociais no Brasil por meio de intervenções econômicas. Como confirmação da luta que trava neste campo, ele lidera o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST, que reivindica moradia popular para quem não tem.

do Estado, de modo a atuar na política monetária e fiscal, além de se voltar principalmente para a proteção dos direitos sociais.

Seguindo os ideais do teórico econômico John Maynard Keynes (1883-1946), que enxerga o Estado com a função de controlar parte da macroeconomia, os economistas Marco Antonio Rocha e Laura Carvalho lideraram as medidas que estruturaram a plataforma econômica do candidato.

Vicente Filho, Mestre em Economia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, explica que eram levantadas, no programa de Boulos, questões como a necessidade de uma reforma tributária, com a criação de impostos sobre grandes fortunas e o estabelecimento de uma carga tributária progressiva, para frear as políticas anticíclicas de isenção fiscal para as empresas e buscar a redução dos indicadores de desigualdade. Assim, parte da retomada do crescimento econômico viria de seria os investimentos públicos.

Plano Econômico de Governo A proposta econômica de Boulos, com preceitos do socialismo, assim como a ideologia do projeto em si, hasteia a bandeira de nação soberana, democrática e igualitária. As ideias do ex-candidato não atendiam aos interesses da classe dominante, além de ser contra o conservadorismo. Defensor de planos emergenciais para recuperar a economia, com a intervenção da Máquina Pública, o plano econômico de Boulos também se colocava contra as privatizações e dava relevância ao papel 6

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Boulos acredita que o liberalismo comprometerá os direitos dos trabalhadores, com as reformas da Previdência e Trabalhista. Além disso, entende que esse tipo de conduta propiciará o aumento das riquezas das classes mais poderosas.

Robusto, o plano de governo de Boulos destacava: revogação da reforma trabalhista e reconstrução da seguridade social, reforma no sistema tributário, alíquota de 35¨% de IR para rendimentos maiores que R$ 325 mil por ano e o fortalecimento de empresas públicas.

“As consequências das propostas com certeza


seriam positivas no que diz respeito à autonomia econômica nacional, geração de emprego e renda. Tendo como base uma política industrial que sirva os anseios da classe trabalhadora e não ao contrário”, conclui Vicente. Polêmicas e desafios A descrença da opinião pública com ideias mais à esquerda do espectro político leva os opositores a usarem a crise humanitária na Venezuela como exemplo pontual de que políticas econômicas desse campo não seriam boas para o Brasil. No entanto, o momento venezuelano é consequência da deflagração da crise do petróleo local, segundo Boulos. Portugal, por outro lado, serve como “exemplo positivo”por ter uma plataforma governista baseada na democracia e na política de bem-estar social. O atual governo português tem priorizado repasses econômicos ao campo social, como, por exemplo, a reposição de salários e o descongelamento de carreiras (caso da classe dos professores), em busca do desenvolvimento da população. Os resultados de tais práticas surgem na forma de crescimento do PIB nos últimos anos.

Portugal é ‘exemplo positivo’ graças a sua plataforma governista baseada na democracia e na política de bem-estar social

Plataforma econômica de Boulos: > revogação da reforma trabalhista; > processo de reconstrução da seguridade social; > reforma no sistema tributário, com alíquota de 35¨% de IR para rendimentos maiores que R$ 325 mil por ano; > fortalecimento de empresas públicas.

Por aqui, Guilherme Boulos pretendia revogar medidas do governo Michel Temer, como a Emenda Constitucional 95 – ou “Teto dos Gastos”, e as reformas trabalhista e da previdência, por entender que o congelamento nos investimentos por 20 anos compromete os serviços públicos fundamentais e as mudanças nas relações de trabalho e no sistema previdenciário influenciam, para pior, a qualidade de vida dos brasileiros. Vicente, porém, acredita que o Plano de Boulos teria dificuldades em se estabelecer, de acordo com a situação político econômica do país. Radical Chamado de “radical” por muitos, o ex-candidato se defende dizendo que o atual momento do país, economicamente estagnado e pós-recessão – resultado de uma das maiores crises econômicas da história –, requer atitudes corajosas que há muito tempo não são realizadas, sobretudo no incentivo à “desconcentração de renda”, o oposto PULSO|DEZEMBRO

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Guilherme Boulos: radical ou defensor das minorias? /CAMPANHA GUILHERME BOULOS - DIVULGAÇÃO

ao que acontece atualmente. No Brasil, seis pessoas concentram a mesma riqueza que cem milhões de brasileiros, segundo recente levantamento da ONG britânica Oxfam. Para Vicente, o eixo do programa de Boulos seria a alteração dos pilares atuais de funcionamento da economia brasileira, que foram estabelecidos a partir dos anos 1990, como, por exemplo, o tripé macroeconômico – inflação, juros e câmbio. Na visão do ex-candidato, os mecanismos colocados impedem políticas econômicas baseadas no bemestar social e o motor propulsor para atender as demandas da sociedade seriam os bancos públicos e nacionais, por possibilitarem investimentos em longo prazo. Boulos Guilherme Castro Boulos é paulistano e tem 36 anos. Foi o candidato a presidente do Brasil mais 8

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novo desde a redemocratização e tem vida marcada pela luta por moradia à frente do MTST, do qual é coordenador nacional. Boulos é filho de médicos e professores da Universidade de São Paulo – USP e vem de uma família de classe média de São Paulo. Ele é formado em Filosofia pela USP e atua como psicanalista e escritor, e, com passagem por escolas da rede pública de ensino em São Paulo, hoje leciona em uma escola de especialização. A guinada à esquerda de Boulos o levou a deixar a casa dos pais para morar em uma ocupação do MTST, em Osasco, na Grande SP. Boulos iniciou sua militância junto aos movimentos sociais, principalmente de esquerda, em 1997, quando entrou para a União da Juventude Comunista – UJC, coletivo ligado ao Partido Comunista Brasileiro – PCB, e em seguida no Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra – MST e MTST, onde permanece até hoje.


opinião | pulso

Moradora em situação de rua desolada na região da estação da Luz, centro de SP /CLAUDIO PORTO

O violento silêncio das ruas Em grandes metrópoles, pessoas em situação de rua são vítimas das mais diversas formas de violência, que vão da indiferença ao assassinato; como mudar tal cenário? Por: Adriano Garcia

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m dos maiores dramas das grandes metrópoles é o das pessoas em situação de rua. Exposto a situações adversas e em condição de vulnerabilidade, o grupo sofre com a falta de mínimas condições de sobrevivência, desde a possibilidade de alimentação, higiene e locais seguros para dormir, a casos de violência explícita – a falta de moradia por si só já é uma grave violência. Trata-se de pessoas que, salvo alguns esforços públicos de assistência social, estão amplamente desamparadas e se tornaram invisíveis para a maioria da sociedade, ainda que saltem aos olhos de todos.

É muito difícil aferir qual o real número de moradores de rua, ainda mais em uma cidade como São Paulo. A Prefeitura estima que hoje o número esteja entre 20 e 25 mil pessoas. Já o Movimento Estadual da População de Rua de São Paulo questiona a metodologia do censo e calcula que já são mais de 32 mil pessoas vivendo nas ruas e avenidas da cidade, com crescimento de mais de 1,5 mil moradores de rua aoano. É uma situação alarmante. As estimativas apontam que, enquanto a população total da cidade cresce 0.7% ao ano, o número de pessoas nessas condições aumentaquatro vezes mais, alcançando 4.1% no PULSO|DEZEMBRO

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Morador em situação de rua dorme em meio aos pertences próximo ao Theatro Municipal /CLAUDIO PORTO

mesmo período. Os levantamentos indicam ainda que cerca de 3% das pessoas em condição de rua sejam crianças e em torno de 15% são mulheres. Grande drama que recaí sobre essas pessoas, a violência direta se revela de inúmeras formas, seja na naturalização e indiferença com o fato de pessoas viverem em situação tão precária, passando pela omissão do Poder Público quantoao

Prefeitura estima que entre 20 e 25 mil pessoas estejam morando nas ruas 10

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tema, chegando a casos concretos de agressões e assassinatos. No campo da violência indireta: falemos das milhares de pessoas que acabam por encontrar moradia em imóveis abandonados e, de certa forma, assumem o risco de tragédias como a queda do edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, em maio passado. O prédio havia sido ocupado por pessoas que não têm onde morar, relegados ao total descaso. Nada foi feito para dar moradia digna a elas e o desfecho, neste caso, foi uma tragédia que deixou sete mortos e 146 famílias desabrigadas e sem o pouco dos pertences que tinham. Como não dizer que isto é uma violência? O caminho para amenizar o sofrimento da população de rua passa por um dispositivo legal que já existe: épreciso que se siga de forma urgente o queprevêo Estatuto das cidades, que


Moradores deitados sobre colchões e enrolados em cobertores próximo a uma das entradas da estação República do Metrô /CLAUDIO PORTO

População de rua cresce 4 vezes mais que o restante dos moradores de SP

Não é possível mais conviver com este problema de forma passiva. A reflexão aí está e deve ocorrer em todos os setores da sociedade, para pressionar as instituições competentes, que detêm os mecanismos para colocar as mudanças necessárias em prática e, com isso, devolver a dignidade e a cidadania a milhões de brasileiros, que merecem no mínimo tanto respeito como todos os outros.

trata, além da regularização fundiária, dessa situação de imóveis com dívidas e abandonados, que acabam ocupados por pessoas desabrigadas. Caso não haja negociação, os espaços devem ser incluídos em um grande programa habitacional, subsidiado pelas esferas do Poder Público, como instrumento para redução do déficit.

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Na noite e nas redes: pouco silêncio, muitas histórias Discussão sobre o papel e a origem da prostituição remonta às origens do ser humano; no Brasil, debate está travado enquanto a prática sofre mudanças a partir das páginas da internet

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Por: Claudio Porto com colaboração de Caio Rogério

uero conhecer a puta. A puta da cidade. A única. A fornecedora. Na rua de baixo, onde é proibido passar. Onde o ar é vidro ardendo. E labaredas torram a língua de quem disser: Eu quero a puta. Quero a puta, quero a puta[...]”, assim, como em um canto lírico carregado de contundência, o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade fez

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referência a figura da “puta” no poema “A Puta”. Ao lado de “prostituta”, “garota de programa” e “acompanhante”, o termo é uma das formas de nominar as mulheres, de faixas etárias distintas, que sobrevivem financeiramente da prática sexual. A vida de Drummond marcou o século XX. Já o debate


sobre o papel e a origem da prostituição, sobretudo quanto ao status de profissão mais antiga do mundo, remonta às origens do ser humano. Ao menos é o que afirma o escritor inglês Rudyard Kipling (18651936), autor de “O Livro da Selva” – obra que deu origem à animação “Mogli: O Menino Lobo” –, no conto “On The City Wall” – “Na Muralha da Cidade”, em tradução livre –, de 1889. Bastou Kipling relatar que Lalun, uma das personagens do conto, era membra da “profissão mais antiga do mundo”, para a sabedoria popular tomar a expressão como um tipo de eufemismo – ato de suavizar – para a palavra cortesã, como eram chamadas as mulheres que trocavam sexo por dinheiro ou qualquer outro

trocavam sexo por comida. PROSTITUIÇÃO PELO MUNDO E NO BRASIL Para além da discussão sobre as origens, a prostituição tem servido de base para políticas públicas em países pelo mundo, sobretudo na Europa. Enquanto em países como a Suécia, França, Islândia, Canadá, Cingapura, África do Sul, Coreia do Sul, Irlanda do Norte e Noruega a prática é proibida, com penalidades aplicadas não às prostitutas, mas aos clientes, na Holanda, Dinamarca e Alemanha, os poderes públicos locais hastearam, com certo sucesso, a bandeira da regulamentação da

Frequentemente, a visão preconcebida da prostituta como ‘mulher de vida fácil’ tem legitimado ações de violência, tanto física como simbólica, contra ela. Sendo assim, negar a essas mulheres o status de trabalhadora, acaba reforçando o estigma que recai sobre elas, impelindo-as à marginalização social e dificultando, ainda mais, a negação de seus direitos. Nesse sentido, a regulamentação é importante sim, ao passo que traz à tona a discussão acerca das mais diversas condições de trabalho e existenciais vivenciadas pelas pessoas que se ocupam dessa atividade Fabiana Rodrigues de Sousa, Doutora em Educação e professora no UNISAL

benefício naquela época. A máxima deixou de ter validade quando três pesquisadores da Universidade de Havard, nos EUA, afirmaram que cozinheiro seria a profissão mais antiga do mundo. No artigo “Energetic Consequences of Thermal and Nonthermal Food Processing” – Consequências energéticas do processamento de alimentos térmicos e não-térmicos –, publicado em 2011 pela revista acadêmica Proceedings of the National Academy of Sciences, eles lembram que o chef, enquanto ocupação, surgiu com a descoberta do fogo há mais 300 mil anos. Para os menos apegados às descobertas acadêmicas, a lógica desmente a máxima de Kipling: havia mulheres que

prática, com a criação de impostos específicos aos estabelecimentos e às profissionais em troca de uma rede de seguridade social com direito à Previdência Social e seguro-desemprego. No Brasil, apesar de não regulamentada, a prática é reconhecida como ocupação profissional pelo Ministério do Trabalho desde 2002. A Doutora em Educação e professora do Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL, Fabiana Rodrigues de Sousa, coordena pesquisas sobre o tema ao longo de 15 anos e afirma que o reconhecimento foi uma das maiores conquistas do movimento social de prostitutas brasileiras. “No entanto, a prática não é considerada uma profissão, o que tem dificultado PULSO|DEZEMBRO

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a ampliação do debate acerca dos direitos e das condições vividas pelas pessoas que se dedicam a essa atividade. O preconceito e o estigma associados a essa prática se configuram como os principais obstáculos à garantia de proteção e direitos sociais às prostitutas”, relata. Em uma pesquisa rápida no portal de transparência pública da Câmara Federal, o termo “prostituição” gera 107 resultados entre Proposta de Emenda à Constituição – PEC, Projeto de Lei Complementar – PLP e Projeto de Lei – PL que em algum momento tramitaram na Casa. SP SEGUE O MAU EXEMPLO A exemplo da Câmara dos deputados, a maior cidade da América do Sul, São Paulo, acumula projetos arquivados ou com tramitação parada, o que trava a discussão sobre pontos do frágil resguardo legal das garotas de programa. Nas poucas vezes em que a Câmara Municipal se posicionou o debate seguiu pelo caminho não da regulamentação da profissão, mas sim pela criação de áreas exclusivas para a prática sexual no centro expandido da cidade ou, com base em um discurso econômico e em parte defensor de costumes tradicionais, na defesa do fechamento de estabelecimentos como boates e hotéis. De acordo com o portal de transparência da Câmara Municipal, há na Casa 13 PLs que tratam de prostituição na condição de objeto – base – ou como parte do projeto, sendo o primeiro de 1992 e o mais recente de agosto de 2015. Todas as iniciativas partiram dos próprios vereadores e apenas uma, que tratava de suspensão de alvará de estabelecimentos com atividade ilegal – no qual a prostituição se encaixa –, logrou o êxito da sanção e posterior promulgação – quando a lei começa a vigorar. A primeira deu entrada na Câmara em 1992 sob a numeração 396/92. O autor, o então vereador José Índio Ferreira do Nascimento, do 14

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Professora Fabiana em frente a um painel com Paulo Freire desenhado /ARQUIVO PESSOAL

PROSTITUIÇÃO COMO PROCESSOS EDUCATIVOS Para Fabiana Rodrigues de Sousa, em sua tese “A noite também educa: compreensões e significados atribuídos por prostitutas à prática da prostituição”, a relação entre garotas de programa, sobretudo as de ruas e de casas noturnas, e a clientela vai além da questão profissional e se comporta como “processos educativos” – termo técnico dado por ela aos pontos em comum detectados entre as prostitutas. No estudo, que se baseou na corrente teórica da Educação Popular – método lançado em meados do século XX e defendia pelo educador Paulo Freire (1921-1997) com o objetivo de priorizar os saberes e culturas populares em sua construção –, a Doutora descreve que “na prostituição são consolidados diferentes processos educativos tais como aprender a ouvir, a conversar, a representar papéis, a seduzir e a identificar as fantasias do cliente. Também são adquiridas algumas habilidades como ser simpática, aprender a extrair informações e traçar o perfil do cliente, respeitar o estilo de cada cliente, saber conviver e relacionar-


extinto Partido do Povo Brasileiro – PPB, pretendia implantar “zonas especiais de livre frequência” para a “prática saudável do sexo” na Capital. Tais zonas seriam fiscalizadas por profissionais especializados em Sociologia, Psicologia, Pedagogia e Saúde Pública. O projeto teve cinco comissões designadas para seu trâmite, porém, não ultrapassou a barreira da primeira comissão pela qual passa boa parte das propostas de leis, a Comissão de Constituição e Justiça – CCJ, e seguiu para o arquivamento definitivo em 2001. Em 1997 o então vereador Carlos Neder (PT) apresentou o PL 122/97 propondo a criação, ao menos no papel, do programa assistencial ProMeninas, “destinado a adolescentes do sexo feminino com vivência de rua ou na prostituição”. A proposta passou por um processo de aprovação que se arrastou por 14 anos, sendo aprovada em duas votações – a primeira ainda em 1997 e a segunda em 2011, ano em que o então prefeito Gilberto Kassab (DEM) a vetou por completo.

PROJETOS DE LEI

PROSTITUIÇÃO CÂMARA MUNICIPAL 13 PLs tratam de prostituição na condição de objeto ou como parte do projeto, sendo o primeiro de 1992 e o mais recente de agosto de 2015

Também são adquiridas algumas habilidades como ser simpática, aprender a extrair informações e traçar o perfil do cliente se com pessoas e costumes diversos, já que as prostitutas, comumente, viajam para diferentes cidades e boates”. Sousa diz ainda que “esses processos educativos não são desenvolvidos somente visando a obter maiores ganhos financeiros, mas também são empregados pelas prostitutas no sentido de ampliar a leitura do mundo e a compreensão de sua realidade”. Apesar de a pesquisa ter sido feita em São Carlos, município do interior de São Paulo, as descobertas apontadas por ela puderam ser percebidas pela equipe de Pulso no contato com profissionais da cidade de São Paulo.

*1 2 6 4 APROVADOS

O único projeto aprovado e, por conseguinte, promulgado data de 2003 e estabelecie a “suspensão e a cassação do alvará de funcionament o dos esta belecimentos que comete m atividades ilegai s”

EM TRAMITAÇÃO

ARQUIVADOS

OUTROS ENCAMINHAMENTOS

Fonte: Portal de Transparência Pública da Câmara Municipal de São Paulo

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O ano de 1997 foi ainda o que mais recebeu PLs com propostas de intervenção à prostituição. Além de Neder, outros dois vereadores entraram com projetos naquele ano – um retirado de pauta pelo próprio autor e outro arquivado em 2001. As iniciativas municipais, à época, acompanhavam o debate sobre o tema lançado pela Câmara dos Deputados na forma do PL 3436/97, do então deputado Wigberto Tartuce (PPB). O PL, arquivado em meados de 1999, buscava a “regulamentação das atividades exercidas por pessoas que praticam a prostituição em desacordo com os costumes morais

e atentatórios ao pudor”. Nos 23 anos que separam o primeiro e último projetos – 1992 e 2015 –, há muitas idas e vindas de propostas focadas em cassar alvarás de funcionamento de casas noturnas e aplicação de sanções a estabelecimentos que comercializam prostituição ou tráfico de pessoas, como o PL 382/15, do vereador Quito Formiga (PSDB). Apesar de ter sido arquivado em janeiro de 2017, o PL voltou à tramitação na Câmara em abril do mesmo ano e, hoje, consta como “em andamento” na Casa. A última deliberação data de 11/10 passado.

O SEXO NA NOITE PAULISTANA PERDE ESPAÇO PARA AS REDES Não há hora nem lugar. São Paulo não para, e elas conhecem a máxima. Expostas como produtos prontos ao consumo, garotas de programa ainda ocupam as calçadas da região central da capital paulista, numa das atividades mais conhecidas da cidade. Todos sabem que elas estão ali. A roupa, por vezes um vestido ou shorts jeans relativamente curtos, e a bolsa como acessório indispensável dão a letra de que, ao cair da noite, estão a serviço nos arredores da estação da Luz ou em ruas da República e Princesa Isabel.

Estar nas ruas tem seus riscos, mas há um tipo de aprendizado que só adquire quem está lá. Elas, por exemplo, abordam apenas um cliente por vez. Não são de desprender atenção a duplas ou grupos com dois ou mais homens. Isso, claro, aquelas que não esperam para serem abordadas.

As que preferem ser abordadas: algumas ainda estão nas ruas, outras migraram ou já iniciam suas carreiras no universo do entretenimento sexual a partir das páginas da internet. Dos tradicionais blogs aos perfis e contas nas redes sociais e plataformas de relacionamento, as chamadas “acompanhantes” oferecem seus serviços com a praticidade de um toque na tela e exibem-se com a liberdade de quem não corre o risco de ser atacada com a violência gratuita de clientes hostis. Não que eles tenham deixado de

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existir. Os hostis uma vez ou outra aparecem, porém, agora, com menos frequência. Na nova versão da prostituição, que está longe de substituir a milenar, a noite paulistana mantém seu charme, mas deixa de servir como o único espaço para a comercialização da prática. Na internet, as garotas determinam quem e onde atender e o maior temor são os comentários desrespeitosos e os perfis falsos. As mudanças no mercado da prostituição não influenciaram nas razões expostas por boa parte das garotas para estarem ali: quando não afirmam que gostam do que fazem, o alto retorno financeiro julgado como “fácil” é a principal explicação para a prática sexual em troca de benefícios. Gabriela Stokweel – nome fictício –, que prefere não se identificar, faz parte do grupo de garotas que descobriu que podia ganhar dinheiro fazendo o que gosta. Saída da casa dos pais aos 18 anos, a loira Gabriela tem 25 anos e muitos fãs na internet – são mais

de 42 mil seguidores em apenas uma rede social. “Gosto muito de sexo”, confessa Stokweel, que recorda ter iniciado a vida de garota de programa com 17 anos, quando saiu com um “cara [Sic] que conheci em uma sala de bate papo, deixei uma breve mensagem falando sobre meu trabalho de acompanhante, e ele me chamou no MSN”. Em troca recebeu 70 reais de cachê.

econômica materializada na troca de sexo por dinheiro, pois, para além dela, podemos observar relações educativas, de amizade e solidariedade – entre prostitutas, clientela e demais pessoas que interagem em contextos de prostituição – e de cuidado e proteção – entre elas e seus filhos e filhas –”.

Fui tirada de vadia, inclusive com a minha família me desrespeitando Gabriela Stokweel, garota de programa

Garota de programa, Gabriela Stokweel em série de fotos de perfil /ARQUIVO PESSOAL

Mesmo sendo integrante de uma família de classe média alta, Stokweel diz que a prática a permitiu unir o “útil ao maravilhoso”, por envolver dinheiro e abrir espaço para que explorasse seus desejos. O relato de Stokweel contraria uma recomendação da Doutora Fabiana Rodrigues. A professora diz que é “preciso evitar abordagens reducionistas que limitam a prostituição à sua dimensão

Stokweel só passou a pensar de tal forma, conta, quando “fui tirada de vadia, inclusive com a minha família me desrespeitando”. Esse tipo de “explosão”, segundo a professora Fabiana Rodrigues, está entre os processos educativos estudados por ela. “Tive a oportunidade de identificar e discutir alguns processos educativos, como desenvolver a autoestima, erguer a cabeça e não ter vergonha de ser prostituta”, explica. PULSO|DEZEMBRO

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Já a paranaense de nome fictício Sara Müller, de 27 anos e com aproximadamente 66 mil seguidores em apenas uma rede social, deixou a casa em que vivia com a mãe – única integrante de sua família – em 2015, para conquistar não somente a independência financeira, até porque trabalhava em uma agência de viagens, mas a privacidade de morar sozinha. Em janeiro daquele ano, o primeiro e único namorado, com quem

manteve relacionamento até março passado, apresentou uma maneira de conseguir dinheiro mais rápido e, de quebra, realizar um fetiche sexual seu. Müller explica que “estava com muita vontade de sair de casa e pensei em como eu poderia fazer para conseguir dinheiro mais rápido. Na época eu namorava e ele tinha o fetiche de ‘se fingir de corno’, que sente prazer em ver ou saber que a mulher

está com outro parceiro sexual. Então conversamos sobre essa decisão e ele deu o maior apoio”, ressaltando que a decisão de entrar para o universo do entretenimento sexual não levou em conta apenas o desejo do então namorado, mas o aspecto financeiro favorável e o desgaste do convívio familiar de muitas brigas com a mãe. Enquanto Stokweel chegou a trabalhar nas ruas antes de

Com o trabalho eu pagava as minhas contas, minha faculdade e o dinheiro dos programas eu colocava na poupança. E tem mais, os pais acham que, por morarmos com eles, vão mandar na gente o tempo inteiro, e isso estava me Sara Müller, incomodando acompanhante de luxo

Acompanhante de luxo, autora e blogueira, Sara Müller prefere não mostrar o rosto /ARQUIVO PESSOAL E CLAUDIO PORTO

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oferecer seus serviços apenas por meio de aplicativo de relacionamento, Sara Müller iniciou e segue sua trajetória na internet, com perfis em redes sociais e administrando um blog, o “Diário de Sara Müller”, em que escreve sobre os encontros. Müller lançou um e-book no início deste ano e Stokweel é proprietária de um canal de vídeos em um dos maiores websites de conteúdo pornográfico do mundo. A exposição, não somente do

corpo, parece acompanhar a nova geração de garotas de programa que se apoiam na internet. Tanto Müller quanto Stokweel classificam suas atividades como satisfatórias e caminho relativamente fácil para alcançar objetivos que vão além dos prazeres do sexo. Na mesma linha, a Doutora Fabiana Rodrigues também acredita que o significado da prostituição supera a relação profissional

em troca de remuneração ou apenas serve de meio para a independência financeira. Ela diz que “há também outros motivos, como a possibilidade de viajar, de conhecer novos lugares, pessoas e culturas, de ter horários flexíveis e sem jornada preestabelecida e fixa”, assim como a simples identificação com o “estilo de vida boêmio, no qual é possível beber, conversar e aproveitar a noite”.

OLHAR ACADÊMICO Ao longo de 15 anos de pesquisa junto às garotas, Rodrigues analisou as duas correntes teóricas sobre a temática prostituição: a abolicionista, que percebe a prostituta como vítima destituída de voz e da capacidade de falar por si, e a regulamentarista que afirma a autodeterminação da garota de programa, percebendo-a como sujeito capaz de realizar escolhas, ainda que tais escolhas sejam feitas em um contexto de poucas oportunidades sociais, como, por exemplo, o difícil acesso à educação, moradia e trabalho. A Doutora explica que, na regulamentarista, “é reconhecida a possibilidade de exercício voluntário da prostituição e entende-se que a prostituta, além de realizar escolhas, é capaz de identificar os problemas que a desafiam cotidianamente – machismo, racismo, neoliberalismo, sexismo, putafobia, entre outros – dentro e fora dos contextos de exercício de prostituição e, como mulher, é capaz de engajarse na busca pela transformação de sua realidade, criando estratégias e ações voltadas à superação de tais problemas”.

Já a primeira, a abolicionista, “o ingresso e a permanência são considerados como frutos da coação de outra pessoa, nunca resultado de ação voluntária ou escolha da mulher”, define, destacando que, nessa perspectiva, a prostituta foi levada pelas vicissitudes da vida a “cair” na prostituição, reforçando os riscos e vulnerabilidades da prática e tornando a prostituta em alguém que precisa ser “resgatada” e “salva”. Rodrigues vai além e afirma que as garotas sabem as diferentes formas de percebê-las e têm se organizado para reprovar qualquer aspecto da teoria abolicionista, que as reduzem à condição de vítima. A movimentação, segundo a pesquisadora, dar-se porque a figura da “puta coitadinha”, historicamente, não tem colaborado na luta por direitos. Ao contrário, tem reforçado o processo de coisificação e desumanização das mulheres prostitutas, alimentando a violência e o estigma sobre esse grupo social.

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SEGURANÇA E APOSENTADORIA Os perigos da atividade foram sendo extintos à medida que as garotas vão aderindo protocolos de segurança e experiência. Entre as ações, segundo Fabiana Rodrigues, está a “criação de redes de solidariedade, nas quais partilham informações sobre clientela, proprietárias/ os de casas noturnas, locais bons, seguros e com as melhores condições para prestar os serviços”.

“A vulnerabilidade e os riscos da atividade nem sempre se constituem como tema central que define o seu fazer e sua ocupação”, afirma a professora, que lembra como a discussão 20

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sobre prostituição foi deturpada, sendo “possível observar que justamente essas questões têm sido destacadas e veiculadas nos mais diversos meios de comunicação, sobretudo, por grupos abolicionistas que querem perpetuar a imagem da prostituta como vítima, uma vez que nutrem a intenção política de erradicar a prática da prostituição”.

COM A PALAVRA

Por ora, tanto Gabriela Stokweel como Sara Müller não têm o desejo de deixar a vida de garota de programa. Ambas afirmam que o tempo as tornaram mais profissionais e que ainda há sonhos a se realizar antes da aposentadoria.

NOTA

A equipe de Pulso entrou em contato, por e-mail, com a assessoria de comunicação da Câmara Municipal de São Paulo, com o objetivo de obter algum posicionamento sobre os projetos de lei citados na reportagem. A assessoria da Câmara não respondeu o contato.

A íntegra das entrevistas com a Doutora e Mestra em Educação Fabiana Rodrigues de Sousa e com a garota de programa Sara Müller estão disponíveis no website jcronistas.com


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resenha | pulso Bohemian Rhapsody: Queen como você nunca viu Com atuação sensacional de Remi Malek, filme transporta o telespectador para dentro da história

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Por: Caio Rogério

streou esta semana em todos os cinemas do Brasil e do mundo o filme Bohemian Rhapsody, contando a história de Freddie Mercury e da banda Queen. O filme busca retratar o encontro de Freddie e os outros integrantes da banda, até o fim do período em que tocaram juntos e a história está sensacional. Cuidado com os spoilers. Como todos os fãs de cinema e música tive minhas ressalvas. Na maioria das vezes quando há uma transição, seja dos quadrinhos pra tela, ou da vida real pro cinema, a história é alterada para que fique mais chamativa, o que faz com que fuja da realidade dos fatos e desanime quem foi com alta expectativa ao cinema. Bohemian Raphsody parece ser a grande exceção. O ator Rami Malek conseguiu, numa atuação maestral, trazer a nós uma verdadeira reencarnação de Farrokh Bulsara, ou, conhecido pelo seu nome artístico, Freddie Mercury. O vocalista do Queen era um rapaz ingllês que gostava de música e começou sua vida sendo carregador de malas no aeroporto. Até que em um dos momentos que tira pra descontrair, indo a shows de rock, conhece os outros integrantes do que viria a ser a banda inglesa Queen no futuro: Brian May, John Deacon e Roger Taylor. Malek, ator americano de origem egípcia, vinha ganhando espaço e construindo sua carreira, sendo chamado e cotado para series e participações em filmes. Havia participado do filme “Uma noite no Museu”, interpretando o Faraó Ahkemenrah, onde adotou um sotaque Inglês para o papel (o faraó adquire o sotaque devido a contato 22

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com arqueólogos). Talvez isso tenha chamado atenção para ser escolhido para o papel e também o físico muito parecido com o cantor. Fez participação em diversos episódios de series e filmes e atualmente ele interpreta o protagonista Elliot, na série de TV americana Mr. Robot, atualmente em sua 3.ª temporada. Nela ele faz o papel de um hacker que derruba o sistema financeiro mundial, derrubando assim o capitalismo. E em setembro de 2016 conquistou o Emmy por melhor ator da mesma série. Mas como Freddie Mercury, ele se superou. Apesar de, à primeira vista não se parecer muito com o cantor, Malik usou e abusou de trejeitos, poses e falas originais, adotando até mesmo o uso de próteses dentárias para uma melhor performance. Parece revisitar as memórias de Mercury enquanto caminha pelas cenas. Vemos cenas épicas de seus relacionamentos, os duradouros e os efêmeros, passageiros e boêmios. Vemos suas festas

/REPRODUÇÃO


excêntricas e a sua busca pelo diferente. Seu amor por gatos e sua paixão pela melhor amiga Mary Austin, com quem teve um realinhamento de 6 anos e deixou a maior parte de sua fortuna após sua morte. Temos uma clássica cena onde Freddie, que nasceu com quatro incisivos a mais na boca, teve sua aparência questionada numa coletiva de imprensa. Em uma das cenas, um repórter pergunta: “Por que não conserta seus dentes? ” Ele responde: “Porque com minha boca assim consigo atingir notas que nenhuma outra pessoa consegue”. Não parece que estamos diante de um filme, a impressão que temos é que estamos lá, na época em que ocorreram os fatos, ali, como um integrante da banda, ou um figurante da cena. O coração dispara, você quer conversar com aquele Freddie, entender suas angustias, abraçá-lo, sorrir com ele, chorar. Transmite uma empatia que poucas vezes vi um filme me despertar. E olha que, como disse, eu tinha minhas dúvidas. Depois da troca de Sacha Baron Cohen, comediante e ator, que se parece demais com Freddie, achei que Remi não fosse dar conta, que talvez tivesse sido escolhido apenas por estar em alta, como ocorre muito com atores de Hollywood, sabe quando sai muitos filmes seguidos com o mesmo ator porque ele está famosinho? Ele rouba a cena, faz e faz bem feito. Sem falar nos figurinos, que estão totalmente fieis aos originais. Podemos ver praticamente todas as roupas que já foram vistas sendo usadas pelo vocalista, em shows, entrevistas, programas de televisão. A atuação nos convence e não falo só do protagonista. Todos os integrantes, parecem se dedicar de corpo e alma, entre músicos, advogados

e coadjuvantes da história. Se você chega até as cenas finais do filme e vê as imagens dos músicos na época, toma um susto tamanha a semelhança deles com os originais. Toda a excentricidade e genialidade de Mercury chega até nós de forma natural, pura, honesta, longe de qualquer caricatura forçada e preconceituosa. Vemos sua sexualidade bilateral sem qualquer preconceito, apesar de muitas vaias de pessoas conservadoras que dominam o nosso atual cenário político e também os cinemas. Um filme que parece agradar a gregos e troianos. Críticos ao redor do mundo dizem que é uma biografia Nutella, que pega leve nos fatos, como a homossexualidade e as drogas, para não chocar a família tradicional, aborda a AIDS de forma cruel e como se Freddie fosse o vilão da história toda. Ao meu ver, são pessoas que não gostam que se toquem em ídolos e seus altares, que mexam em suas memorias. Se você é fã sai extasiado da sessão, quem não conhecia antes, passa a gostar. Lembro-me na infância de ouvir de adultos conservadores e extremamente machistas que, ao passar músicas da banda Queen na televisão diziam: “Esse viado era mais macho que muito homem. Esse tem o meu respeito”. Antes desse filme, Mercury já era respeitado, pela sua música acima de tudo, pela emoção que transmitia quando seu som ecoava nos ouvidos das pessoas, e de gerações mais novas, como a minha, que não puderam presenciar enquanto ele ainda era vivo. Se restava alguma dúvida de seu talento e obra, o filme vem pra por um ponto final em tudo isso. Como diria o cartaz do filme: “A única coisa mais impactante que a sua obra era a sua música”. Amém, Freddie, amém. /REPRODUÇÃO

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Vilões para o Estado, heróis de suas famílias: a vida dos “Marreteiros” dos trilhos de SP

Acompanhamos a jornada dos ambulantes que se arriscam física e financeiramente todos os dias para sobreviver, em meio a uma guerra contra a segurança da CPTM

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Por: Adriano Garcia Victor Ricardo

les são reservados, por vezes arredios. Foram necessários meses para ganhar a confiança de grande parte dos vendedores ambulantes que trabalham na mais movimentada linha da CPTM em São Paulo, a 11 Coral, que liga a estação da Luz, no Centro, ao extremo Leste da região metropolitana – primeiramente até Guaianases e com final na

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estação Estudantes, em Mogi das Cruzes. Uma aproximação cautelosa, pois o ambiente é hostil. Estes trabalhadores temem tudo. Regra básica: sem imagens que possam os identificar. Nem mesmo fotos sem o rosto tem consentimento, já que, segundo eles, suas vestes podem gerar uma identificação por parte dos Policiais Ferroviários.

E são os Policiais Ferroviários, na visão desse grupo de trabalhadores, os grandes adversários na luta pelo ganhapão. Para T.S.R, 26 anos – vamos identificar assim os ambulantes, com suas iniciais –, há abuso de poder na atuação dos agentes. “É do humor deles, se o dia tá bom ou não. Se eles sentirem vontade de pegar só a sua mercadoria e


te botar pra fora é essas. Se eles sentirem vontade de te passar uma rasteira e te encher de bica fazem. A gente vai fazer o quê?”, relata. Isso revolta A.A, de 30 anos, que afirma: “cara, nem contravenção é, não existe uma lei que proíba a gente de atuar. A gente vende pra policial inclusive. É que o Estado quer que pobre se lasque”. São muitos os relatos de casos de violência, a maioria prefere não declarar nada formalmente, mas as histórias surgem. “Ah cara, acontece muito, eles são as ‘autoridades’ aqui dentro, se você é abordado tem que ficar ‘pianinho’, se eles acharem que você ta achando ruim ou tá resistindo, você pode ir pra

paga imposto, tá embutido no produto”, conta S.S.R, de 38 anos. Outro vendedor, R.R de 22 anos, comenta sobre como despista os rivais: “o negócio é ser mais esperto que eles. A gente tem que ver eles antes deles verem a gente. A gente não entra aqui pra perder, a gente quer estourar, ganhar dinheiro. Cada vez que a gente dá nossa mercadoria de graça pra esses mer*** a gente fica na neurose”. Em meio a este cenário surgem histórias de pessoas comuns, que acabaram sendo levadas a essa rotina, por falta de oportunidades, o que é gerado pelas mais diversas situações. “Aqui tem de tudo cara. Tem cara que tá processando a firma e por

E como você vai ‘gostar’ de perder a mercadoria? A gente compra no atacadista como deS.S.R, 38 qualquer comerciante. Quem anos disse que a gente não paga imposto, tá embutido no produto salinha e ser agredido. Tem cara que já foi parar no hospital, já teve traumatismo craniano. Principalmente se eles acharem que o cara não tem orientação, eles agridem mesmo, te tem na mão. E como você vai ‘gostar’ de perder a mercadoria? A gente compra no atacadista como qualquer comerciante. Quem disse que a gente não

isso não consegue mais emprego. Tem aposentado por invalidez que não consegue se sustentar com o que ganha. Tem sim ex-presidiário que não consegue emprego, mas quer viver honestamente e por isso tá aqui. Tem muito casal que deixa os filhos com as avós e vem pra cá, casais jovens. Tem até quem vem só pra fazer o ‘do baile’ e é assim que tem que ser

cara, aqui é livre entre a gente, se chegar com respeito, pode trampar à vontade”, descreve S.S.R. E realmente comprovamos que, como disse o ambulante, “há de tudo”. Uma dessas histórias é a da senhora M.S.R, de 58 anos: “Eu trabalhava com costura, mas não consegui mais trabalho por conta da artrite e nem consigo o atestado médico. Tenho dois filhos, o mais velho casou e saiu de casa e o outro sofre de depressão e não trabalha, nem sai do quarto. Eu trabalho sem folga, sete dias por semana, não tenho o que fazer. Bate um desespero às vezes. Mas eu não posso deixar ele desamparado, às vezes não tenho nenhuma vontade, mas tenho que vir”. Ela fala ainda da relação das mulheres com os guardas. “Olha, eu sinto que por a gente ser mais velha – há outras senhoras de mais idade trabalhando como ambulantes – às vezes eles PULSO|DEZEMBRO

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deixam a gente passar, tem algum respeito. Lógico que a gente não pode mostrar pra eles, a gente tem que fazer bem escondidinho, mas eu to aqui todo dia meu filho, se eles quiserem eles tomam”, narra. No período que passamos junto aos vendedores ambulantes vimos muitas situações. Na propaganda institucional da CPTM falase em “procedência duvidosa” das mercadorias e que se “não comprar, ambulante vai acabar”, o que revolta A.A: “como assim a gente vai acabar? A gente vai perder o sustento e vai morrer? Querem fazer a atividade que eles acham que é ilegal acabar? Regulamentem ou cadastrem para emprego ou até mesmo para empreendedorismo, deem alguma chance”.

Como assim a gente vai acabar? A gente vai perder o sustento e vai morrer?

A.A, de 30 anos

Em várias oportunidades, os ambulantes são muito mais do que “ilegais que atrapalham e sujam a viagem”, como coloca a CPTM. Há vezes em que eles fazem o papel de “zeladores do trem”, apartando brigas, interceptando batedores de carteira e até mesmo clamando 26

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Marreteiro em um dos trens da Linha 11 - Coral da CPTM /CLAUDIO PORTO

pelo bom-senso das pessoas, pedindo lugares para mães com crianças de colo e idosos. Há um bordão com o qual eles brincam que diz: “alguém pode dar o lugar para a criança com a mãe no colo’?”. Uma forma divertida de lutar contra a falta de cidadania de alguns. “É cara, tem isso – a frase –, a gente brinca né cara, a gente faz disso uma forma de amenizar uma situação que dá uma puta neurose. O país tá desse jeito aí que a gente tá vendo e vai piorar agora com Bolsonaro por causa disso. Cada um pensa só em si mesmo e foda-se o outro. Cara, eu conheço meus direitos, eu tô em toda sessão aberta da Câmara, orçamento participativo, o não cumprimento de Estatutos, que faz com que muita coisa não aconteça pro pobre, pro pessoal da periferia. A falta de investimento em cultura, eu tô lá, junto com o movimento hiphop. Eu conheço os meus direitos, sempre que um cara desses que nem polícia é, ameaça pôr a mão em mim é isso que eu falo: ‘eu

conheço os meus direitos hein’. Eles recuam na hora. Acho que é isso que falta pra nossa classe também, se organizar, saber os direitos. A gente sofre abuso porque a maioria é de moleque desinformado, bitolado. Já teve processo aqui, já teve cara sendo exonerado, já pararam de colocar os caras à paisana um tempo atrás, mas passou, pessoal esqueceu e agora ta acontecendo tudo de novo”, diz S.S.R. De acordo com a CPTM, 90% dos passageiros são contra a atividade dos vendedores ambulantes, porém não há na peça publicitária qualquer informação sobre a metodologia do levantamento. A equipe de Pulso conversou informalmente com usuários dos trens e a opinião, claro que cada aspa dita de uma maneira, seguiu uma mesma linha: a de que são pessoas que estão trabalhando honestamente para sobreviver e que ninguém deveria ter direito de tomar suas coisas. Inclusive, a


frase “por que não correm atrás de bandido” pôde ser ouvida algumas vezes. A também experiente V.L.S, de 55 anos, acredita que deve ficar ainda por muito tempo trabalhando sobre os trilhos da CPTM. “Meu filho, eu vivi a vida inteira aqui dentro, vai ser agora que vou sair? Eu já tive um quiosque aí na estação, mas

quando a gente não faz RM – Documento de Recolhimento de Mercadorias –. Esse negócio de que passageiro reprova a gente trabalhar aqui é tudo mentira rapaz. É porque eles são contra o povo mesmo”. Muitos dos vendedores ambulantes não quiseram se pronunciar, assim como não pudemos registrar situações

engolem o choro e, com o olhar ainda marejado, transformamse em pedintes com o RM na mão em busca da colaboração das pessoas. Tais relatos sustentam algumas questões: alguém realmente lucra com a repressão aos vendedores ambulantes? A população realmente reprova a atividade desses trabalhadores? A regulamentação da atividade geraria prejuízos a algum setor?

Vendedor ambulante com sacola de produtos na plataforma central da estação da Luz /CLAUDIO PORTO

o mundo gira, tive de voltar pra cá e voltei com orgulho, porque é o que eu sei fazer. A gente vive daqui, a gente zela por aqui, somos tratados como lixo, mas é a gente que repreende quando alguém vem fazer bagunça aqui dentro, vem roubar. Guarda tá nem aí, quer mais é comer de graça o que a gente pagou pra comprar e revender. Eles comemoram

como alguns vendedores correndo para os trilhos na tentativa de escapar de guardas fardados ou não; ambulantes feridos após a abordagem de agentes de segurança; pessoas desoladas por terem perdido a mercadoria comprada com o único dinheiro que tinham; e vendedores que, após perderem vão por um momento às lágrimas

Enfim, são perguntas que ficam no ar e que talvez você que esteja lendo já imagine as respostas. COM A PALAVRA A equipe de Pulso entrou em contato, por e-mail, com a assessoria de comunicação da CPTM e não obteve resposta até o fechamento desta reportagem. PULSO|DEZEMBRO

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humor | pulso

Pulse

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