Impressões Erráticas

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IMPRESSÕES

ERRÁTICAS


TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO CAIO HENRIQUE SENS ORIENTAÇÃO LUÍS ANTÔNIO JORGE FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO 2016



“A cidade não é apenas um espaço físico, mas uma forja de relações. É o centro de um tempo onde se fabricam e refabricam as identidades próprias.” Mia Couto


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CAPÍTULO UM


O ANDARILHO

A line made by walking, Richard Long, Inglaterra, 1967

Uma análise atenta deixa claro que o longa-metragem Gravidade ultrapassa a camada superficial das ficções científicas nos moldes atuais. O filme aborda, de maneira silenciosa e desapressada, questões psicológicas e existenciais como vistas nos roteiros do gênero dirigidos por Tarkovski ou Kubrick. Está em quadro a inescapável fragilidade do corpo humano, necessariamente conectado a elementos terrenos. A personagem central do filme, Ryan, ao se ver isolada num espaço absolutamente hostil – a apesar de silencioso e inerte –, entra em contato com o que há de mais primitivo nas suas células programadas evolutivamente para se desenvolver a partir de estímulos externos. Estamos frente a uma discussão que retoma a origem do ser humano; seja no sentido individual (do processo embriológico ao nascimento e desenvolvimento do corpo) seja no sentido evolutivo, como espécie taxonômica que habita o planeta Terra. Em dois momentos essas analogias ficam bastante claras. O primeiro logo após Ryan sobreviver ao acidente que motiva a tensão do filme. A protagonista flutua na estação espacial conectada ao tubo de alimentação de oxigênio do traje,

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1. CARERI, Francesco. Walkscapes: O caminhar como prática estética. São Paulo: Gustavo Gili, 2015.

2. Ibidem, p. 35.

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girando lentamente em posição fetal, de maneira similar a um embrião conectado ao cordão umbilical. O segundo momento acontece já na simbólica cena final, quando nos deparamos com a figura clássica da teoria darwiniana; Ryan emerge da água como um réptil se adaptando à condição terrestre. Rasteja, engatinha e finalmente caminha, elevando progressivamente sua postura como o primata que se diferencia até se levantar como um ser humano adulto. O ato de caminhar é aqui ressignificado como um processo simbólico da progressiva conquista do espaço terrestre. Historicamente essa relação figurativa tem diversos desdobramentos. Fecha parênteses. Uma vez em posição ortostática, o ser humano pôde interagir com o mundo de maneira inovadora; andar e assimilar o espaço a partir de uma perspectiva única. Francesco Careri, consciente da importância deste ato simbólico, nos traz em seu livro Walkscapes1 uma série de discussões essenciais para a compreensão do processo de construção do espaço a partir do enfrentamento físico do mundo que nos circunda. Historicamente essa relação antrópica do processo de andar sobre o solo tem desdobramentos simbólicos nos mais diversos mitos, contos e histórias. A religião e a própria construção da cultura parecem fazer menção ao ser humano errante. No cristianismo a história de Caim e Abel nos traz essa alegoria. O primeiro pertence à agricultura, à permanência. Adepto do sedentarismo e da rotina, Caim se relaciona com o ambiente de forma bastante distinta de seu irmão, que ao se ocupar do rebanho dedica seu tempo menos à transformação física do espaço e mais à contemplação e percepção do mundo. Abel, o Homo Ludens por definição, é o transeunte que interage com o mundo e utiliza a natureza a seu favor. Detém o tempo livre e com ele pode construir um universo simbólico. Abel caminha e ao caminhar fundamentalmente mapeia e constrói laços psicológicos com o espaço em sua volta. Enquanto isso Caim, o Homo Faber, intervém sobre o ambiente de forma tecnocrática, direta e possessiva. Assim, Adão e Eva deixaram para seus filhos uma justa divisão do mundo: para Caim a propriedade de toda a terra e para Abel, a de todos os seres viventes 2


Endless Column. Constantin Brancusi, Romênia, 1938

Entretanto Abel também, de maneira diferente, dependia da terra para sobreviver. E assim, no conflito original, fruto da inveja e da ira, foi morto por seu irmão. Caim então sofre severa repreensão divina e é fadado a buscar eternamente a terra fértil que uma vez possuiu de bom grado. A associação direta entre a arquitetura e a permanência de Caim ignora a jornada como uma experiência relacionada a uma construção da paisagem, que exige esforço de apropriação e assimilação do espaço. Caim, agora sentenciado a caminhar, reúne em si mesmo a parcela nômade de Abel e seu sedentarismo congênito. É condenado a errar, não da forma privilegiada de Abel, mas como um andarilho; não pertence ao nomadismo, nem se encontra na paisagem mutante; não pertence à terra, mas também não domina o mundo com o caminhar da mesma forma que seu irmão o fazia. E a errância parece mesmo ser o destino dos povos. Do mito simbólico da arca de Noé – o resgate da espécie pelo abandono da permanência em busca de um lugar seguro –

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às jornadas, perseguições e migrações forçadas, os hebreus se relacionam com Deus pela forma e maneira de alcançar a terra prometida, cruzando o espaço vazio, o deserto inabitado e hostil com o horizonte sempre distante, movidos pela esperança de alcançar algum lugar diferente. Por falar em deserto, na Austrália os walkabouts das populações aborígenes são uma experiência profunda de associação com o caminhar e o referenciamento geográfico. Cada elemento natural – cada lago, cada monte, cada cratera – está contido numa mitologia complexa, numa expressão cultural, na forma de conto ou música. A paisagem nômade não é permanente. É como se o sistema de mapeamento do mundo conhecido fosse reescrito e atualizado a cada temporada, a cada repetição do caminho; baseia-se em marcas sazonais. É justamente graças àquilo que foge ligeiramente de um padrão natural, graças às imperfeições, irregularidades e surpresas do percurso que o nômade domina o espaço. Em associação direta, surge o menir como marco simbólico de referência e intervenção incisiva sobre o percurso. O monolito representa o que existe de mais artificial dentro das possibilidades orgânicas da natureza. Traz a dimensão vertical para uma paisagem dominada pela linha do horizonte. A primeira intervenção humana com escala suficiente para ser relevante visualmente na paisagem distante. Aproxima-se do caminho do próprio sol, em movimento normal à terra, em direção ao céu. O menir funciona como um ponto de encontro, como um local de presença humana que potencializa trocas comerciais e intercâmbio de experiências de viagem, permitindo o surgimento de diferentes modos de expressão, promovendo cultura e auxiliando na difusão de conhecimento. Tamanha sua importância que os egípcios assimilam seu significado no benben; elemento de referência ao raio de luz solar essencial, ao deus Amon-Ra. Desdobramentos desta expressão vertical vão gerar o obelisco e a pirâmide. A forma de caminhar no plano horizontal faz o homem intervir no espaço para assimilar o elemento vertical de aproximação divina. Um parêntesis rápido. Careri não cita a incidência destas características em outras civilizações especificamente, mas me arrisco a dizer que essa tendência aparentemente natural de buscar o marco vertical e a conexão dos trajetos com marcos simbólicos é parte de um padrão, certamente presente, por exemplo, em civilizações pré-colombianas na América Andina e na Mesoamerica. Entre-

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tanto, de todas as civilizações que aqui no continente residiam antes da chegada dos ibéricos, talvez sejam os indígenas brasileiros uma das que guardam relação mais íntima com o caminhar. Sem pretensões de teorizar sobre um assunto além do alcance deste trabalho, penso na possibilidade do Macunaíma de Mário de Andrade ser aqui entendido simbolicamente. A identificação moderna com um passado negligenciado pela historiografia clássica que enxerga nos povos nômades em geral grupos que não atingiram o estágio posterior de sedentarização como avanço civilizatório. O herói, contrariando o senso comum, assimila vícios e características pejorativas, personificando uma identificação com uma babel de etnias, dialetos, gírias e paisagens que, na sua aglutinação, representariam uma cultura nacional. Macunaíma não cria intimidade excessiva com o local de permanência; é um aventureiro que caminha sem restrição; assimila o “tempo livre” e atravessa o país uma porção de vezes a pé, e nesse sentido talvez seja um descendente remanescente de Abel. A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

A identificação do processo de caminhar com a arquitetura, a arte e a experiência moderna como um todo atravessa diversos períodos da história. Quando Walter Benjamin descreve o flâneur parisiense do século XIX, está colocando em pauta para discussão uma mudança clara no comportamento de uma sociedade em rápida transformação. O flâneur é o personagem que perambula por hábito, que observa a cidade com um olhar apreciativo e investigativo. Sua percepção é um mosaico feito de flashes, embriagada pela efervescência da metrópole. Não está inserido na lógica produtiva do mundo capitalista: é um ocioso que caminha a esmo, que se perde propositadamente, seduzido por aquilo que a cidade pode lhe oferecer. O espectador urbano extasiado – apesar de sempre consciente – imerso na sua relação física com a escala das quadras, dos lotes, dos edifícios e da multidão. Seguindo a deixa, dadaístas organizam nos anos 1920 uma excursão que parte da igreja de Saint Julien le Pauvre. Para eles as ações, os registros e as fotos eram meros desdobramentos subsequentes da verdadeira interpreta-

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Guy Debord. Guide psycogeographique de Paris, 1957

3. CARERI, Francesco. Walkscapes: O caminhar como prática estética. São Paulo: Gustavo Gili, 2015.

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ção de natureza aplicada à vida; a própria concepção do ato de flanar era a obra. Três anos mais tarde, após uma deambulação de vários dias no interior da França, Breton escreve o primeiro Manifesto do Surrealismo descrevendo a experiência da deriva como o limiar entre a realidade e o sonho. Guy Debord e os situacionistas também descobrem no perder-se “uma possibilidade expressiva concreta da antiarte e o adotam como como meio estético e político para através dele subverter o sistema capitalista do pós-guerra” 3 . Se as motivações destes grupos são distintas, o objeto de estudo é um denominador comum. O ato de perambular desperta nesses artistas uma busca pela compreensão da condição moderna, do desafio de elevar a própria experiência ao patamar de expressão. Posteriormente, os desdobramentos do simbolismo do caminho como expressão vão então passar pela viagem de Tony Smith, pela arte minimalista de Carl Andre e pela land art de Richard Long. Avançando para além da deriva debordiana, essas experiências são fruto da insistência em questionar a própria arte e da vontade de desafiar seus limites definidos. Explorar a escultura que Rosalind Krauss classifica não como um objeto concreto, mas como como o negativo


Francis Alÿs. Paradox of praxis. Cidade do México, 1997

da arquitetura e da paisagem. Remover progressivamente o objeto até que ele se torne um rastro, que reposicione essa arte para além dos muros das galerias para torná-la invendável (anti-capitalista), aproximando-a das experiências literárias de Debord, Tzara e Breton. Em sua tese de mestrado, Jacopo Crivelli se propõe a investigar e delimitar as práticas artísticas que desde então explorem, de uma maneira ou de outra, a deriva como ferramenta. Experiências como a que Francis Alÿs propõe ao empurrar um bloco de gelo pelas ruas da Cidade do México são exemplos contemporâneos de novas abordagens deambulatórias. Obras que expandem seu significado para várias direções, mas fundamentalmente se afirmem como obras “não-vendáveis”, etéreas. Intervenções que atinjam o limiar da arte até desaparecerem como o bloco de gelo de Alÿs. Se vários aspectos das derivas realizadas nos anos 1960 e 1970 denotam de maneira bastante clara o contexto pesadamente ideológico da época, é importante salientar como, ao lidar com a questão do movimento, mesmo obras produzidas em anos recentes conti-

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4. CRIVELLI, Jacopo. Novas derivas. Dissertação de Mestrado, FAU USP. São Paulo, 2012, p.16.

nuem compartilhando das mesmas ambições e aspirações. É evidente que os últimos quarenta anos trouxeram mudanças radicais em vários contextos onde as derivas e as outras práticas (...) foram adotadas, principalmente por se tratar, em muitos casos, de países que viveram transformações e aberturas de seus regimes políticos, contudo, parece ter lícito afirmar que as premissas fundamentais permanecem as mesmas 4. De modo que hoje o caminhar se reafirma como um assunto relevante. Ressignificado e reinventado, o processo errático traz consigo uma simbologia essencial para a compreensão de uma condição humana essencial e primitiva. Uma proposta aparentemente inesgotável ao ser humano enquanto ser social sujeito a relações interpessoais em um espaço tridimensional. ESTAR NO ESPAÇO URBANO

5. DYER, Geoff. O Instante contínuo. Apud: GIBSON, David. Manual do Fotógrafo de Rua. São Paulo: Gustavo Gili, 2016.

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No posfácio de seu livro, Careri introduz pela primeira vez a presença de pessoas no espaço urbano. São os Outros; transeuntes, frequentadores e habitantes do bairro ou passantes ao acaso que, num contexto contemporâneo de neurose e consumo, cada vez mais representam uma ameaça no inconsciente coletivo. As cidades recentemente se construíam pelo isolamento seguro; se apresentando pouco receptivas ao ato de caminhar sem rumo, o que dirá perder-se propositadamente. “É preciso aprender a perder o tempo”, diz o autor; deixar-se levar, libertando-se dos temores e entrar num sistema não funcional e não produtivo. Estar à deriva, navegar “ao sabor do vento” e interagir com o Outro. Fato é que a exploração artística da rua só pode acontecer quando o espaço é efetivamente fértil para que acontecimentos se deem; um lugar onde as pessoas frequentem por hábito e não exclusivamente por necessidade. O crítico de arte britânico Geoff Dyer discutindo fotografia, aborda em seu livro O Instante Contínuo 5 que a rua se diferencia da estrada menos por um aspecto formal e mais por relações quase emocionais com os habitantes da cidade.


6. Ibidem, p. 8.

7. GEHL, Jan. Vida entre Edifícios. In. Revista Piseagrama. Belo Horizonte, n. 7, jan. 2015. 8. A jornalista critica o modelo urbanístico que apontava em meados do século XX. Rechaça as propostas de revitalização que, de maneira geral, ignoravam as potencialidades sociais dos bairros gerando espaços inócuos, afastando os próprios usuários do ambiente coletivo. Jacobs enxerga nas ruas e calçadas, espaços próximos da escala da vizinhança, do bairro, com potencialidade para atração de atividades que agreguem um importante valor social e consequente qualificação dos espaços coletivos. JACOBS, Jane. Morte e vida das grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 9. GEHL, Jan. op. cit., p. 18.

Não é uma questão de tamanho (algumas ruas urbanas são mais largas que estradas rurais). Uma estrada é a saída da cidade, enquanto uma rua fica lá, assim encontramos estradas no campo, mas não ruas. Se uma rua leva a uma estrada, estamos saindo da cidade. Se uma estrada se transforma em uma rua, estamos entrando na cidade. Mantenha-se nela tempo suficiente e uma estrada acabará tonando-se uma rua, mas não necessariamente o oposto (uma rua pode ser um fim por si só). Ruas devem ter casas dos dois lados para que sejam ruas. As melhores ruas nos estimulam a ficar; a estrada é um contínuo incentivo a sair 6 Assim, a rua é talvez dentre todos os espaços da cidade, aquele que mais frequentemente é alvo de atenção do arquiteto urbanista contemporâneo. Em seu livro Life Between Buildings 7, Jan Gehl celebra aquele que, aos olhos do urbanista contemporâneo, é o espaço urbano qualificado. A crítica de Jane Jacobs à cidade modernista segregada e funcional8 encontra alguns respiros esperançosos na descrição de Gehl da vida urbana capaz de promover encontros ocasionais. O urbanista descreve e esmiúça esse espaço público de qualidade, dotado de aptidão para promover os mais diferentes níveis de interações interpessoais. Oportunidades para encontros e atividades diárias nos espaços públicos de uma cidade ou área residencial permitem que estejamos entre pessoas, que possamos ver e ouvir os outros, a fim de vivenciar modos de vida diferentes manifestando-se em várias situações 9 Assim, pessoas habitam as ruas e calçadas justamente quando elas veem outras pessoas frequentando estes espaços convidativos. Essas interações são classificadas por Gehl entre necessárias, opcionais ou sociais, e cada uma conclui características diferentes e níveis de abertura ao contato espontâneo com o outro. Nesses encontros (e principalmente nas interações opcionais), situações inesperadas e

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não programadas acontecem – alguém observando um mecânico trabalhar na oficina da esquina, uma criança avistando o pipoqueiro, uma moça interrompendo seu trajeto para sentar e ajeitar o sapato – e é aí que a rua se apresenta como um fenômeno observável. Li em mais de um lugar um excerto atribuído a Cartier Bresson que considero útil para essa discussão: “Of course it’s all luck”. Não tenho certeza do contexto no qual o fotógrafo supostamente fez a afirmação, mas fato é que certamente há uma significativa parcela de sorte no clique. Afinal, muitas vezes a fotografia de rua acontece justamente nesses eventos ocasionais imprevisíveis. Eles definem o “momento decisivo”. Em suma, nesses casos, seja antecipando e aguardando seja, agindo com presteza, invariavelmente o papel do fotógrafo é escolher o melhor dentre tantos acontecimentos simultâneos à sua volta. O fotógrafo deve viver as ruas. A CONSTRUÇÃO DO IDEOGRAMA

Na introdução de Jack Kerouac para o livro The Americans, publicado pela primeira vez em 1958, há uma tradução literária das fotografias de Robert Frank. Situados em um período em que os Estados Unidos da América afirmavam gradativamente a sua hegemonia no contexto internacional, ambos os relatos (fotográfico de Robert Frank e literário de Kerouac) interpretam à sua maneira um momento chave na contracultura norte-americana. The humor, the sadness, the EVERYTHING-ness and American-ness of these pictures! Tall thin cowboy rolling butt outside Madison Square Garden New York for rodeo season, sad spindly, unebelievable – Long show of night road arrowing forlorn into immensities and flat of impossible-to-believe America in New Mexico under the prisioner’s moon – under the whang guitar star – Haggard old frowsy dames of Los Angeles leaning peering out the right front window of Old Paw’s car on a Sundaygawking and criticizing to explain Ameikay to little children in the spatteed back seas

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10. KEROUAC, Jack. In FRANK, Robert. The Americans. Paris: Robert Delpire, Grove Press, Steidl, 1958.

– tattoed guy sleeping on grass in park in Cleveland, snoring dead to the world aon a Sunday afternoon with too many balloons and sail boats – Hoboken in the winter, platform full of politicians all ordinary looking till suddenly at the far end to the right you see one of them pursing his lips in prayer politico (yawning probably) not a soul cares – Old man standing hesitant with Oldman cane under old steps long since torn down – Madman restind under American flag canopy in old busted car seat in fantastic Venice California backyard, I could sit in it and sketch 30,000 words (as a railreal brakeman I rode by such backyards leaning out of the old steam pot) (empty tokay bottles in the palm weeds) 10. Cada retrato de Robert Frank permite a expansão de seu significado individual a partir do campo imaginário. Cada pequeno relato fotográfico cumpre um papel coletivo fundamental ao nos dizer um pouco mais a respeito de uma cultura complexa. Representando peças em livre associação, em conjunto as imagens compõem, efetivamente, uma leitura da ambiência de um período; retratam um país norteamericano contraditório e autoconfiante. Estão presentes aqui elementos simbólicos como a rodovia, o jukebox e o automóvel, característicos de uma paisagem conceitual do american way of life em formação. De maneira bastante distinta e em um período posterior a Robert Frank, o fotógrafo italiano Luigi Ghirri aborda o cotidiano de uma paisagem mediterrânea pós-industrial. Suas imagens trazem uma narrativa do lugar anônimo, na escala do bairro, evitando dar importância excessiva aos marcos arquitetônicos. Fotografa em cores em um período em que o rigor formal da fotografia era em preto e branco, aproximando seu trabalho da produção popular, da “foto de turista”. Ao transportar os assuntos mais banais em sensações e principalmente ao fazer isso repetidamente, o fotógrafo aborda um assunto essencial. A repetição e principalmente o processo comparativo entre uma imagem, a que a precede e a que a sucede, nos mostra que a edição das

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imagens em um livro ou exposição é um trabalho extenso na produção de Ghirri. Essa atenção às imagens em séries (acima de fotografias únicas com um significado fechado em si mesmas) fez com que o italiano organizasse sua produção em exposições e livros, levando sempre em conta o contexto em que elas estão inseridas. A interferência que ocorre ao confrontarmos duas imagens em uma página dupla gera uma interpretação mental que altera a percepção inicial sobre cada fotografia individualmente; gera uma terceira interpretação que leve em conta o contexto das imagens. No livro Curadoria em Fotografia, Eder Chiodetto discorre sobre o processo de edição de uma série de fotografias. O curador afirma que um conjunto de imagens se forma a partir de um núcleo estabelecido. A partir dele, um caminho vai se delimitando e obras vão sendo organizadas, inseridas ou removidas. Essa função do curador (que por vezes é exercida pelo próprio fotógrafo) é a de conferir um certo vigor ao produto final:

11. CHIODETTO, Eder. Curadoria em fotografia: da pesquisa à exposição. São Paulo: Prata Design, 2013.

Fragmentos do livro The Americans. Robert Frank, 1958.

É no processo de edição que se estabelecem narrativas, se criam ritmos por contiguidades e quebras, se reforçam determinadas atmosferas e se salientam o estilo do autor e a pluralidade das interpretações. Além disso, a edição deve objetivar encontrar o tom e a métrica mais adequada para que a poética e a dialética do projeto fiquem em evidência 11 O trabalho do fotógrafo australiano Trent Parke também é bastante fundamentado nesse pensamento da fotografia em séries. As fotografias justapostas e sequenciadas dos livros Dream Life e Minutes to Midnight, de Trent se consolidam em narrativas complexas e profundas. Respeito inteiramente a arte e o tempo que se levam para criar essas grandes imagens únicas, mas essas fotografias isoladas são difíceis de transformar em narrativas. Elas se tornam coleções de fotografias, de um lugar ou uma cidade, que obviamente são importantes. Mas eu estou interessado na emoção. Como você pode mudar o contexto

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de digamos quarenta fotografias que não têm nenhuma relação real entre si, mas quando sequenciadas de uma maneira particular podem contar uma história muito diferente. Para mim esse é o maior desafio12

12. PARKE, Trent. Dream Life. Sydney: Hot Chili, 1999.

13. AVELLAR, José. E=MC². In: EISENSTEIN, Serguei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

Parke – assim como David Gibson, Martin Parr, Elliot Erwitt, Bruce Guilden entre tantos outros – tem um extenso trabalho que se se baseia fundamentalmente na fotografia de rua. A fotografia livre, espontânea e geralmente não autorizada, herdeira de um legado deixado por nomes como Robert Frank, William Klein ou ainda Henri Cartier Bresson. Perder-se é tão importante para estes fotógrafos quanto para os situacionistas ou dadaístas. Buscam perceber e compreender as coincidências; capturar tanto os “momentos decisivos” de Cartier Bresson, quanto o banal e cotidiano potencialmente ressignificado através de um raciocínio seriado, explorando a justaposição e a montagem que Trent Parke sugere. Pelas ruas de São Paulo também passaram alguns bons pares de olhos. A fotografia de alma concretista de Geraldo de Barros e o formalismo de Thomaz Farkas são essenciais para compreendermos a construção de um pensamento racional vigente no período de suas produções. Ambos partem de estratégias diferentes que resultam em trabalhos bastante distintos; entretanto, fica clara em suas produções uma ambiência comum. Uma São Paulo com aptidão para a promessa modernista, uma sociedade que em processo de industrialização se massifica e racionaliza. Para Geraldo, a cidade é um emaranhado; as linhas, os cruzamentos, os planos limpos e as formas rígidas. Farkas, por sua vez, parece buscar esse excesso e esse conflito na repetição, na seriação e na organização. E esse embate de formas, direções, repetições e quebras é assunto que Sergei Eisenstein teorizou ainda no início do século. O cineasta classifica a arte, grosso modo, como o “conflito entre a representação de um fenômeno e a compreensão e o sentimento que temos do fenômeno representado”13 . Eisenstein exemplifica o processo de construção do ideograma japonês para explicar a sua teoria da montagem cinematográfica. Na escrita japonesa, o elemento figurativo – hieróglifo – é o ponto de partida para um elemento mais »p. 49.

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INSPIRAÇÕES

REPERTÓRIO RESUMIDO

Embora as imagens de Cartier Breson e Robert Frank sejam tão afamadas quanto os próprios fotógrafos, talvez nomes como Luigi Ghirri, Martin Parr ou Trent Parke passem mais sorrateiramente, o que não significa de maneira alguma que seja perdoável citar esses nomes sem situar minimamente seus trabalhos. Por isso, reuni nessa concisa digressão um repertório mínimo acerca destes e outros nomes que tiveram relevância incontestável para a fotografia nos espaços públicos das cidades


ELLIOTT ERWITT Paris, 1928 Erwitt, apesar de ser um fotógrafo bem sucedido no mercado comercial, talvez seja ainda mais conhecido por seu trabalho pessoal, nas ruas. Suas imagens (sempre em preto e branco) reforçam o caráter imprevisível da vida no espaço urbano. Membro da agência de fotógrafos Magnum, Elliott produziu fotografias icônicas que atravessam gerações. Procura as coincidências e os encontros cômicos na cidade em trocadilhos óbvios, a partir de pontos de vista inovadores e muito particulares.



BRUCE GILDEN Nova Iorque, 1946 Também membro da Magnum, Bruce se apropria de uma técnica agressiva. O fotógrafo é incisivo, aponta a câmera no rosto dos passantes em closes flagrantes e constrangedores. O resultado são fotografias dinâmicas, entre o espontâneo e o teatral. A adoção do flash isola o assunto do fundo, chamando ainda mais atenção para a fisionomia natural dos seus personagens. Gilden não nega a influência de Klei, mas seus personagens são visivelmente diferentes, desavisados, tomados de assalto sem autorização. A beleza de seus retratos não está de maneira alguma no equilíbrio ou na simetria, e sim na credibilidade de suas expressões



TRENT PARKE Australia, 1971 Parke talvez seja a minha referência máxima entre fotógrafos ativos. Demonstra uma relação emocional intensa com a cidade retratada em suas fotografias imersivas. Interpreta-las nos toma algum tempo: sua técnica e sua composição são pouco ortodoxas. O viés psicológico das imagens parece sempre nos contar mais sobre o estado de espírito do fotógrafo que propriamente da metrópole convencional. Parke considera-se principalmente um contador de histórias através de imagens. Está mais interessado na criação de uma boa série de fotografias que no reconhecimento público da autoria de uma única imagem icônica isolada, sem contexto.



WILLIAM KLEIN Nova Iorque, 1928 Cineasta, pintor e fotógrafo, William Klein nasceu em uma família húngara residente em Nova Iorque, mas produziu grande parte de sua obra em Paris. Foi fotógrafo da revista Vogue, onde realizou ensaios de moda com a influência moderna adquirida no período em que trabalhou para o artista plástico Fernand Leger. Entretanto, sua fotografia de rua é bem menos formal. Seus retratos no espaço urbano nos mostram uma cidade crua, repleta de pessoas emocionalmente complexas. Klein por vezes interage com as figuras que encontra, buscando talvez atingir a expectativa cênica de sua parcela cineasta



MARTIN PARR Inglaterra, 1952 As cores saturadas de Parr tornam seu trabalho bastante reconhecível em exposições e galerias. O humor de Elliott Erwitt está aqui presente, repaginado para uma sociedade que se comporta de maneira nova no espaço. A intimidade compartilhada, o consumo, a publicidade, o turismo, tudo isso é retratado pelas lentes de Parr e reunido em infindáveis exposições ao redor do mundo. Atuando muitas vezes como curador das próprias fotografias, Martin também reconhece em seu trabalho um potencial narrativo, discutindo e organizando imagens em um contexto amplo.



LUIGI GHIRRI Itália, 1943 Diferentemente dos fotógrafos apresentados até agora, Ghirri é busca com seu trabalho investigar a pequena cidade. Não está interessado na multidão, no excesso, na comicidade explícita, mas no arranjo de imagens em uma série que sintetize uma paisagem. A fotografia a cores explorada à exaustão pelo artista em séries como Kodachrome, era então tida por alguns profissionais como uma arte menor, como “fotografia de turista”. Mas talvez o desejo de Ghirri seja realmente se tornar um eterno turista dentro de seu bairro, sempre descobrindo imagens novas, diariamente se surpreendendo com as potencialidades latentes que a cidade lhe apresenta.



GERALDO DE BARROS Chavantes, SP, 1923 Iniciou seus trabalhos como artista plástico dedicando-se à pintura de paisagens, mas logo entrou em contato com a arte moderna e a fotografia abstrata. As formas geométricas marcam a produção de Geraldo tanto na fotografia quanto na pintura ou na gravura. Profundamente interessado no desenho industrial, suas obras demonstram o mesmo rigor das influências construtivistas e concretistas que acompanharam o artista em seu período mais produtivo. Geraldo era também foi um dos principais membros do Foto Cine Clube Bandeirante, associação fundada em 1939 e que reuniu alguns dos maiores nomes da fotografia paulistana além de organizar durante anos eventos como o Salão Brasileiro de Arte Fotográfica e a Bienal Brasileira de Fotografia.



Foto Geraldo de Barros



THOMAZ FARKAS Budapeste, Hungria, 1924 Farkas chegou ainda com seis anos de idade ao Brasil, onde seu pai abriu a primeira loja Fotótica no país. Isso permitiu a Thomaz que crescer imerso no mundo da fotografia. Aos dezoito, já era um sócio influente do Foto Cine Clube Bandeirante. Sua produção é marcada num primeiro momento pelo interesse no movimento norte-americano de Paul Strand (18901976), Anselm Adams (1902-1984) e Edward Weston (1886-1964) . Progressivamente. Farkas começou a explorar o abstracionismo geométrico e a arte construtivistivista em suas imagens que se aproximaram cada vez mais de uma visão mais humanista da cidade em processo de modernização.



GERMAN LORCA São Paulo, SP, 1922 Outro um membro do Foto Cine Clube Bandeirante, Lorca inicialmente trabalhava como contador. Foi desenvolvendo seu interesse pela fotografia progressivamente até que em 1952 fechou seu escritório de contabilidade para se dedicar exclusivamente ao estúdio. A cidade de Lorca é repleta de vida. Suas imagens ambientam uma São Paulo dos anos 1940 e 1950 carregada de elementos poéticos. Os icônicos personagens de Lorca se apresentam como metáforas da metrópole paulistana.



CRISTIANO MASCARO Catanduva, SP, 1944 Mascaro cursou a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Universidade de São Paulo e após formado trabalhou inicialmente como fotógrafo da revista Veja. Talvez em parte graças a esse primeiro emprego, em suas fotografias é notável a presença de um certo entrelaçamento entre a arquitetura racional e o fotojornalismo humanizado. Os livros A Cidade, de 1979, e Luzes da Cidade, de 1996, são duas publicações do fotógrafo que sintetizam bem a sua produção. Cristiano se vale de personagens para povoarem suas fotografias, inserindo a escala humana na paisagem metropolitana. As pessoas estão presentes na fotografia como um elemento urbano imprevisível, que carrega a fotografia de subjetividade na relação bilateral entre corpo arquitetura.




complexo e significativo: o ideograma. Resumidamente, o hieróglifo representa um objeto; já a aglutinação de dois ou mais hieróglifos resulta em um ideograma, capaz de representar um conceito abstrato, imaginário ou sensitivo. Desse modo, a representação de uma ideia subjetiva pode ser exprimida pela justaposição de quadros que, carregados de significados próprios individualmente, transpareçam uma ideia mais complexa em conjunto. E se, como Eisenstein diz, montagem – como toda arte – é conflito, então é na relação interna ou externa entre esses elementos que surgem leituras interessantes. Sobre os conflitos cinematográficos, Eisenstein desenvolve: São os seguintes os conflitos ‘cinematográficos’ dentro da composição (enquadramento): • Conflito de direções gráficas (linhas estáticas ou dinâmicas) • Conflito de escalas • Conflito de volumes • Conflito de massas (linhas – estáticas ou dinâmicas) (volumes preenchidos com diversas intensidades de luz) • Conflito de profundidade E os conflitos seguintes, cuja intensificação exige apenas mais um impulso, antes da irrupção em pares de fragmentos antagônicos:

Foto Cristiano Mascaro 14. EISENSTEIN, Serguei. O princípio cinematográfico e o ideograma. In: CAMPOS, Haroldo (org.). Ideograma: lógica poesia e linguagem. São Paulo: Cultrix, 1977

• Tomadas de primeiro plano e tomadas de planos de conjunto • Fragmentos com direções graficamente diversificadas • Fragmentos que se resolvem em volumes em relação a fragmentos que se resolvem em áreas. • Fragmentos escuros e Fragmentos claros14 Quando o diretor escreve a teoria da montagem – ainda em um período de ausência de cores na sétima arte

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que possivelmente acrescentariam mais possibilidades aos conflitos citados –, está dialogando com o desenvolvimento da experiência prévia da cultura oriental com o símbolo representativo. Está contando uma história a partir fragmentos que, sobrepostos, podem conter mais significado que um elemento figurativo isolado. O hieróglifo é uma busca constante, típica da linguagem humana, e válido nos mais diversos sistemas da semiótica. Um meio de exprimir pela imagem aquilo que, a princípio, é característico de um suporte linguístico diferente. A ILUSÃO ESPECULAR

15. MACHADO, Arlindo. A ilusão Especular. São Paulo : Brasiliense, 1984.

Fotogramas extraídos de Encouraçado Potemkin. Sergei Eisenstein, 1925

Se etimologicamente a fotografia é o registro pela luz e se a arquitetura é – na frase atribuída a Le Corbusier – “o jogo sábio, correto e magnífico dos volumes dispostos sob a luz”, então a relação entre ambas as artes é das mais fundamentais. A luz que em um jogo de espelhos se fixa no sal de prata do filme da máquina fotográfica é a mesma que faz da arquitetura essencialmente habitável ou sensorialmente percebida. O manejo preciso da luz natural é uma das grandes virtudes da boa arquitetura. Provocar sensações de acolhimento e expansão, abrir ou encerrar ambientes, torná-los públicos ou íntimos pela sua proporção e sua relação com a luz. Com a câmera também estamos em busca de domar a luz de modo análogo. E a luz não mente à câmera. A fotografia é, ao menos à primeira vista, o retrato perfeitamente verídico e imparcial; a captação indiscriminada de toda a luz que atinge um objeto fotossensível no fundo do equipamento. Porém procuro com o título do subcapítulo – emprestado do livro de Arlindo Machado15 – fazer referência à relação dúbia da fotografia com a realidade. Para Arlindo a viabilidade da fotografia se diferencia das artes plásticas ao fixar um momento com variáveis impensadas. Se por um lado a Santa Ceia de Da Vinci é a soma de gestos, intenções sobre os quais o artista teve total controle, por outro a conhecida fotografia de Margareth Tatcher por Peter Marlow não pôde ser construída à invenção do fotógrafo. Foi resultado de uma sequência de cliques, entre os quais um resultou em uma imagem icônica, selecionada entre as outras por seu valor simbólico ou suas características metafóricas. Porém, por mais verídica que seja, a representação de algo é, por definição, uma tradução da realidade e não pode

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ser confundida com a mesma. A discussão popularizada por Magritte no quadro “A traição das imagens” não pode ser excluída do campo da fotografia. Arlindo Machado diz que o signo existe, groso modo, para representar algo que não é ele próprio. Citando Volochinov, Arlindo nos diz que “os signos, ao mesmo tempo, refletem e refratam”; ou seja, tanto o próprio processo de captação de imagem pela câmera (a refração da luz no vidro da lente) transfigura o objeto quanto o próprio signo resultante é conceitualmente uma aproximação representativa e não perfeitamente fiel. Na realidade o termo russo que Volochinov utiliza (prelomit) é também utilizado como “dar novo sentido a”, ou “atribuir outro significado”. Assim fica claro que o reflexo e a refração; o espelho, a água e a lente são, na realidade, instrumentos modificantes que invariavelmente alteram e interpretam algo. O artista chinês Ai Weiwei atribui à fotografia uma natureza dualista, entre a representação fiel e a ilusão:

Fotogramas extraídos de Blow Up. Michelangelo Antonionni, Inglaterra/ França, 1956 16. WEIWEI, Ai. Sobre fotografia. Zum, São Paulo, nº9, out. 2015.

17. Blow Up, direção de Michelangelo Antonioni, 1966, Itália/Inglaterra/ EUA, Bridge Films, Carlo Ponti Films e MGM, DVD, cor, 111min. Com David Hemmings, Vanessa Redgrave, Sarah Miles, Jane Birkin, Veruschka. 18. CORTÁZAR, Julio. Las babas del diablo. In Las armas secretas. Madri, Cátedra, 1999.

A fotografia é um meio enganoso e perigoso; e o meio é método, é significância, um festim onipresente de esperança ou um fosso de impossível transposição. No fim, a fotografia não é capaz nem de registrar nem de expressar a realidade; ela rejeita a autenticidade da realidade que apresenta, tornando a realidade ainda mais remora e distante de nós16 Essa aparente contradição revela a complexidade da técnica. Citado por em infindáveis textos acerca do assunto, longa-metragem Blow Up17 do diretor italiano Michelangelo Antonioni – filmado em coprodução inglesa e inspirado no conto Las babas del diablo de Julio Cortázar18 – expande essa discussão. No enredo do filme, logo de início nos é apresentada o personagem Thomas, protagonizado pelo ator David Hemmings. Veste roupas desajeitadas e aparentemente sujas quando sai por um portão após – como descobriremos mais à frente – fotografar uma série de retratos dos frequentadores de um cortiço. Thomas entra em seu carro e se dirige ao seu estúdio onde, com as mesmas roupas encardidas, apanha outra câmera para fotografar uma modelo (Veruschka von

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Lehndorff interpretando ela mesma) já posicionada no fundo escuro. As instruções do protagonista e as movimentações entre fotógrafo e modelo sugerem um clima sexual que cresce e culmina em gritos de êxtase, que se assemelham a um orgasmo “Assim, continue! Isso! Isso! ”. A fotografia é, neste ponto, tão intimamente conectada à realidade que se assemelha até mesmo em processo a ela. A representação do ato sexualizado, coordenado, instintivo, relaciona-se de forma dependente à vivência concreta do êxtase. Na cena seguinte, ocorre justamente o contraponto. Já vestindo suas roupas usuais, Thomas parte para um ensaio com um grupo de modelos em outra sala. O cenário inclui alguns vidros semitransparentes. Aqui o glamour das fotografias de revistas de moda desaparece em gritos mal-educados e movimentos bruscos do fotógrafo na busca por orientar a melhor pose das modelos. Falta sensualidade, sobra factilidade. O vestido excessivamente largo de uma modelo é “consertado” com um alfinete na parte de trás, o chiclete que outra mascava é guardado atrás da orelha e a etiqueta das roupas de uma terceira é negligentemente dobrado para dentro da gola para o ensaio seguir em frente. O resultado é, agora, o único ponto de interesse. O processo se aproxima mais de um empecilho que de uma solução; algo a ser contornado, domado. Resume-se em apagar qualquer traço dele mesmo no produto final afim de convencer o público de uma beleza sintética, idealizada, inalcançável e antinatural. Pulando para a cena central do filme, Thomas despretensiosamente fotografa um casal num parque. A mulher o segue e exige as fotos, mas o protagonista não está disposto a cooperar. Perseguido até seu estúdio, Thomas vai seduzi-la e lhe entregar um rolo de filme virgem dizendo ser o que ela pedia. A excessiva preocupação da mulher o motiva a ampliar as fotos do rolo. Aqui é levantado o suspense Hitchcockiano da história. As fotografias revelam algo que seus olhos originalmente haviam falhado em notar na cena. Atrás de um arbusto há algo que lembra...uma mão empunhando uma arma. As sequenciais ampliações das fotografias de Thomas o levam a acreditar que um homicídio tomou lugar no parque aquele dia. Entretanto, o desfecho do filme não dá muita esperança à solução do crime. Ao invés disso, se concentra na ineficácia da busca do protagonista por respostas. As cenas finais são uma somatória de situações fantás-

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ticas que parecem conspirar para uma inércia improdutiva de Thomas. A realidade parece ficar em segundo plano no mundo concreto enquanto a fotografia talvez seja a única fonte objetiva e confiável de fatos. Assim a fotografia pode ser tanto seu processo (uma obra que passa pela sua produção e contrai invariavelmente uma dimensão temporal), quanto o seu fim; o fato consumado, o crime cometido, imediato, pontual, definitivo, irremediável. A realidade que muitas vezes ultrapassa aquilo que nossos olhos negligentes enxergam, mas ao mesmo tempo, a fotografia é o jogo de tênis imaginário da cena que encerra o filme. É um fingir a ação, é alterar a realidade com as próprias mãos de mímico. Tomar um partido, afirmando-se deliberadamente parcial ao escolher um objeto e uma narrativa, congelando-os entre todos os objetos e narrativas possíveis e concomitantes.

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CAPÍTULO DOIS


O INDIVÍDUO SOCIAL

A intenção deste trabalho é somar estas referências apresentadas em um ensaio que discuta a hipótese de reconhecer no habitante da cidade um ser primordialmente errático, construtor do espaço enquanto participante do trajeto. Como se dá visualmente essa relação entre a paisagem urbana e o indivíduo? Como São Paulo se apresenta para o pedestre comum e como ele reage aos estímulos da cidade? Uma busca por compreender e interpretar uma narrativa através de padrões, cores, linhas e formas no diálogo entre esses dois elementos chave. O olhar fotográfico como ferramenta para apresentar uma visão da rua, na prática do percurso como intervenção e construção de significados. Buscar efetivamente o menir e o ideograma total. Observar os padrões e as formas da cidade na relação entre o espaço e o homem na construção de uma nova paisagem. Eisenstein levanta uma questão relevante: “Um acorde – ou mesmo três notas sucessivas – parece uma unidade orgânica. Por que deveria a combinação de três pedaços de filme, na montagem, ser considerada uma colisão tripla, impulsos de três imagens sucessivas? Um tom azul é misturado a um tom vermelho e

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19. EISENSTEIN, Serguei. O princípio cinematográfico e o ideograma. In: CAMPOS, Haroldo (org.). Ideograma: lógica poesia e linguagem. São Paulo: Cultrix, 1977.

20. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987.

o resultado se chama de violeta, e não de uma ‘dupla exposição’ de vermelho e azul. ”19 Caminhar pela cidade e perceber o ambiente que nos cerca é misturar o azul e o vermelho; é atingir um novo produto a partir da montagem de enquadramentos em sequência, reunindo padrões consonantes ou conflitantes. Somos reféns de forças que nos prendem a padrões e regras definidas, e nossa vida em sociedade está condicionada seguir essas deliberações. Somos orientados por acordos regimentais de comportamento com os quais concordamos presumidamente e que nos moldam para a sua adequação. Foucault nos diz que a sociedade moderna criou suas próprias ‘instituições de sequestro’20 , entre a escola, a prisão e o hospital psiquiátrico. São meios de suprimir atitudes inadequadas e orientar o comportamento geral. Adaptar-se a essas entidades reguladoras é condição sine qua non para viver em uma sociedade civil. É na cidade – e principalmente no espaço público – que os conflitos afloram. A iminência da punição é o que deve direcionar a resposta individual perante o que é público. Enxerga-se um grande embate entre o interesse individual e a liberdade coletiva, e essa discussão atinge de maneira contundente as políticas públicas do Estado. O progressivo encarceramento voluntário que acontece nas últimas décadas – principalmente da classe média, mas que vem recentemente atingindo também as camadas mais baixas – em condomínios fechados e shopping centers é um descrédito deliberado da cidade convidativa. Uma afronta ao pedestre como indutor de potencialidade no ambiente urbano, que é visto mais como um empecilho que como solução para uma questão tão complexa quanto a segurança pública. O EXCESSO E A SÍNTESE

Certa vez, durante o curso de arquitetura, disseram-me que um dos maiores problemas das grandes cidades reside no fato de o homem contemporâneo habitar o mundo em três dimensões, mas (ainda) se deslocar bidimensionalmente. Essa afirmação é tão simples quanto precisa, e para mim se expande em leituras muito além de um embaraço urbanístico ou da gestão do transporte em metrópoles. A fotografia, apesar de uma representação plana, é uma leitura subjetiva e distorcida de um universo percep-

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tivelmente tridimensional. Interagimos com aquilo que é exterior a nós desta maneira. Entretanto os estímulos do mundo – ou o os meios pelos quais o percebemos – são, assim como na fotografia, fundamentalmente subjetivos, pois só podemos perceber parte do universo que nos cerca de cada vez. Recortamos a realidade em percepções parciais a cada curto intervalo de tempo. Por isso, apesar da dimensionalidade complexa do mundo, compreendemos a totalidade por associação de elementos mais simples. O mundo perceptível, tridimensional, nas fotografias está achatado numa relação direta entre personagem e fundo, reforçando uma estratégia de abordagem. A fotografia, grosso modo, nos reduz a elementos bidimensionais e nos torna pequenos o bastante para cabermos numa folha de papel. Quando escrevo sobre a teoria da montagem de Eisenstein estou apostando que essa redução da realidade tem a capacidade de evidenciar os conflitos que são também um elemento natural na interação entre a sociedade e o espaço. Brancusi certa vez afirmou que “a simplicidade é a complexidade resolvida” e provavelmente uma das principais aptidões da arte é justamente trazer à tona essas soluções parciais lapidadas. Eisenstein aborda o tema ao descrever o hieróglifo e o ideograma. O primeiro é um elemento neutro, simples, que volta a ganhar uma leitura mais complexa ao ser composto em um ideograma que, por sua vez, representa não um objeto, mas um conceito. Assim também as obras de Brancusi são a redução que só fazem sentido em um contexto comparativo. Uma paisagem estéril, afastada das distrações e do ambiente cotidiano repleto dos excessos diários contemporâneos. Remete ao monolito primitivo e conecta o presente a uma condição humana mais frágil. As metrópoles são notadamente o espaço do excesso, da massificação, onde tudo acontece o tempo todo; mas há no cotidiano urbano algo de padronizado, repetitivo, expresso por representações minimalistas. Obras concretistas de um mundo em crise existencial. Susan Sontag afirma em seu livro Ensaios sobre fotografia, que no mundo atual, tudo existe para se tornar em algum momento fotografia. O mundo à nossa volta se transformou para se adaptar à massacrante quantidade de estímulos visuais que recebemos diariamente. Se os espaços publicitários, privados, foram os primeiros a mudar, hoje os espaços públicos difusores de cultura também

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Fuck Of. Ai Weiwei, 2000

estão se expandindo para esta dimensão contemporânea. Aparentemente a experiência efêmera, real, sensorial, não é mais suficiente. As facilidades trazidas pelas câmeras de celular aliadas às redes sociais são a prova concreta de que a carência por aprovação constantemente se sobrepõe à vontade de efetivamente estar sensorialmente envolvido em algo. Nessas fotografias, a mensagem fática se sobrepõe à experiência introspectiva. São imagens com data de fabricação e validade, feitas para se esvaziarem de sentido na velocidade do scroll da internet. Se uma fotografia diz mais a respeito do observador que do objeto, fica evidente que a sociedade que produz essas imagens está retratada nelas por simetria. Dispersa, acelerada, imediatista; carente justamente dos atributos de Abel. Incapaz de aguçar a percepção, incapaz de pertencer efetivamente ao espaço não se relacionando com ele, incapaz de refletir, de apropriar-se do tempo livre. Discorrendo sobre o artista Ai Weiwei, citado no capítulo anterior, Urs Stahel discorre sobre como o chinês aborda em seu trabalho questões relacionadas à sociedade de consumo e à banalização da imagem como estímulo que tende ao esgotamento nos dias atuais.

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21. STAHEL, Urs. Ai Weiwei sem filtro. Zum, São Paulo, nº9, out. 2015.

Que funções afinal, essas imagens desempenham? O que pretendem, deveriam, poderiam ser? Grande parte delas parece não possuir mais quease nenhuma função estética; são imagens que atuam como estímulos sociais e psico-individuais com duração de, no máximo, conci segundos. Em vez de lembrar, fotografamos e vez de pensar, fotografamos; em vez dever e aprender, fotografamos; em vez de falar, fotografamos; em vez de amar, fotografamos; em vez de ler, fotografamos. É típica a situação do visitante de uma exposição que fotografa os textos explicativos, pensando em lê-los depois, em casa. A fotografia parece substtuir a experiência original, vivida. 21 Ai Weiwei é um artista conceitual. Utilizando-se de um blog, o artista desafia a censura em seu país para expor sua vida em infindáveis imagens publicadas diariamente. Sua obra se estende além da fotografia, para intalações e montagens evidenciando por um lado certa admiração pelo processo produtivo, pelo produto industrial, mas por outro uma crítica

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clara ao sistema produtivo e à mão de obra barata semi escrava das indústrias chinesas. A quantidade de imagens no blog de Ai Weiwei é massacrante. Cada ato do artista é acompanhado de dezenas e dezenas de fotografias. Um fluxo cinematográfico bombardeando a internet constantemente com registros pouco significativos individualmente, mas com a intenção de discutir entre outras coisas a própria exaustão visual do mundo contemporâneo. As imagens acompanhadas de textos do artista causaram tamanho impacto que o blog foi fechado repentinamente na China. A página, aliada ao twitter, fazem o papel de praça pública; ali, Ai Weiwei divulga suas opiniões políticas, discute arte e gastronomia, mas também frequentemente denuncia atos de repressão e censura no país; um espaço coletivo criado no ambiente restritivo do autoritarismo chinês. A intenção do artista é tirar da zona de conforto as instituições de controle; lograr-se cidadão através de sua produção artística, a partir do bombardeamento constante de informações no próprio suporte que nos mantém reféns do imediatismo contemporâneo, explorando suas contradições. A redução da compreensão aprofundada, causada pelo excesso de informações, não precisa ser uma generalização, mas é essencialmente a leitura de um denominador comum da vida em grandes cidades do século XXI. Somos todos construções instantâneas de percepções alheias. Participamos do mundo existente das pessoas à nossa volta. Causamos um ruído pela nossa presença e estamos cercados por nossos próprios limites perceptivos do mundo. Afinal, entendemos o nosso entorno a partir das sensações que nosso próprio corpo nos envia num acordo químico. Tudo o que acontece à nossa volta é uma montagem que muitas vezes ignoramos pela anestesia do excesso; mas fato é que as cores das vitrines e da publicidade, a arquitetura e o espaço em si, são todas justaposições passíveis de interpretação. Um processo mecânico de comparação e relação assim como as fotografias colocadas lado a lado, gerando um conflito, resultando em ideogramas. A lente 35mm majoritariamente utilizada para as saídas fotográficas me permitiu adquirir posicionamentos e enquadramentos recorrentes nas imagens. Por ser relativamente bem aberta acabou de certa forma definindo a estética e o discurso do ensaio. Um ponto de vista que, acima de retratos que isolem o objeto – que foque nos possíveis personagens por suas peculiaridades fisionômicas – enquadra essas pessoas

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inseridas na paisagem. Retratos contextualizados que revelam modos do ser humano se relacionar com o espaço e a arquitetura no nível da calçada. A ESTRANHEZA CÔMICA DO CORPO

Certo dia o desenhista Saul Steinberg se deparou com uma nota em um livro de W. H. Auden fazendo referência à simetria do corpo humano de acordo com Pascal. Segundo o autor, o homem, em sua aparência externa, é uma simetria horizontal. A natureza em geral replica o padrão da simetria horizontal, e esse padrão de acordo com Saul só é quebrado por fenômenos de reflexão e refração. A água como primeiro espelho da humanidade nos revelou um universo paralelo, uma realidade invertida. O artista que se auto intitulava ‘um escritor que desenhava ao invés de escrever’ passou então a explorar o universo simétrico em suas criações.

22. STEINBERG, Saul. Reflexos e sombras. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011, p. 154.

esses reflexos encantam pela estranheza de sua existência (a estranheza é um traço dos milagres). Siniavinski diz que os versos e as rimas são instrumentos muito apropriados para dizer estranhezas por causa de sua própria estranheza. Assim podemos dizer coisas de que nos envergonharíamos se as disséssemos de maneira natural. A poesia, quando não se reveste da estranheza dos versos, parece presunçosa. Como certas danças que se deve dançar com máscara ou com fantasia. (...) Vestir a realidade para que ela possa “ser perdoada”. Sei que não me explico bem, mas essa me parece ser a verdadeira essência do humor. Mas perdoada por quem, afinal? Por quem o julgaria presunçoso se você dissesse ceras coisas de um jeito mais direto. Até você deve ser perdoado e aceito por você mesmo. 22 A estranheza e o surpreendente, responsáveis pela dimensão cômica na arte, são recursos presentes também nos retratos de Impressões Erráticas. A relação do homem com o espaço na fotografia é flagrada de forma imperdoável com as imprecisões e as incongruências – que podem se tornar também congruências

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Reflexions. Saul Steinberg, 1977

num dado instante preciso – do corpo humano no fundo urbano racional. O humor é uma ferramenta simbólica como qualquer outra; expandindo o significado para essas dimensões constrangedoras que Steinberg cita. As sombras também pertencem ao universo dos reflexos. Partem dos pés e se alongam pelo chão e pela parede desenhando visualidades alternativas, em uma “realidade negativa” na qual só reparamos quando estamos dispostos a enxergar; dispostos e treinados. As sombras e silhuetas são elementos frequentes na paisagem paulistana dos registros de Geraldo de Barros e Thomaz Farkas. O mundo contemporâneo certamente ainda guarda consigo essas formas bidimensionais exploráveis, mas talvez com uma nova estética, da fotografia colorida, menos rígida.

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O LUGAR

23. FARIAS, Agnaldo. Tuca Vieira mostra levantamento de imagens para mapear São Paulo. Folha de São Paulo, 11 set. 2016. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ ilustrissima/2016/09/1811714-tuca-vieiramostra-levantamento-de-imagens-paramapear-sao-paulo.shtml>.

24. Militão Augusto de Azevedo (1837-1905) foi um dos maiores nomes da fotografia brasileira da segunda metade do século XIX, notável pela documentação das esquinas, ruas e tipologias de São Paulo entre 1860 e 1880, quando a fotografia ainda era um registro bastante escasso na cidade.

Tuca Vieira em seu trabalho Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e seus arredores (exposto em 2016 no Museu da Cidade, em São Paulo) propõe um olhar aparentemente anacrônico sobre a metrópole paulistana. O fotógrafo se valeu de dois instrumentos obsoletos: o guia de ruas de São Paulo e a máquina fotográfica analógica de grande formato. O crítico de arte Agnaldo Farias cita 23 que o projeto de Tuca nasce de uma crítica à cresça exacerbada que se atribui aos (ineficazes) mapas, guias e gps’s. Ineficazes justamente pelo princípio semiótico, pois como já tratamos, a representação não substitui o objeto, uma tradução é sempre uma interpretação subjetiva. Os mapas não dão conta de exprimir particularidades, tipologias e identidades do contexto. São meras reduções que podem nos orientar erroneamente para onde não queremos estar; simbólicas da maneira contemporânea de nos relacionarmos com o mundo real, de maneira indireta, superficial, virtual. Num trabalho estafante e interminável, Tuca se propôs a visitar os duzentos e três quadrantes da retícula da área metropolitana de São Paulo no Guia Quatro Rodas. Em cada um deles escolheu uma esquina, um marco na paisagem, um mirante acidental ou algo que o valha, posicionou seu tripé e sua câmera, mirou, focou, enquadrou, repensou, focou novamente...e fotografou. O resultado foi uma exposição onde se via, no mínimo, uma busca por exemplificar metonimicamente São Paulo para além das regiões centrais, sem virar completamente as costas para o centro paulistano. Uma leitura contemporânea da atual inviabilidade de trabalhos como o de Militão Augusto de Azevedo24 , de registro fotográfico efetivamente. Uma série que demandou tempo, planejamento, e longos percursos para ser realizada, quebrando o protocolo do modus operandi na sociedade atual. A seleção de uma rota ou um recorte dentro das possibilidades que a deriva traria não foi um partido de Impressões Erráticas. Os lugares fotografados variam de áreas próximas ao meu trajeto habitual de casa ao trabalho, esticando alguns tentáculos que se expandiram pelas linhas de metrô e rotas de ônibus e longos caminhos a pé. Busquei dedicar tempo suficiente ao caminhar acima do tempo de programar e traçar destinos.

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Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores. Tuca Vieira, Catálogo da exposição, design de Marise de Chirico

Se a paisagem paulistana em sua pluralidade é o foco do trabalho de Tuca, aqui a intenção é observar e registrar o comportamento; recortar realidades efêmeras indistintamente do lugar específico. Tratar a cidade não como um ovjeto estéril ou alheio, mas me inserir no espaço em uma troca. Seguir o fluxo de pessoas em espaços onde ele seja mais abundante, onde o “ver e ser visto” e, portanto, o espelhamento com o “outro”, é mais favorável. Como as pessoas se relacionam com esse espaço funcionalista? Numa cidade que foi derrubada e reerguida por três vezes em um século (não por forças imprevisíveis da história ou catástrofes naturais, mas pelo ciclo constante de reformulação de um mercado imobiliário agressivo que tornou parte do espaço público em um ambiente inócuo) quais são os lugares que ainda são receptivos o suficiente para que as pessoas queiram meramente estar neles sem um objetivo claro?

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Retratos que individualmente não identifiquem um marco urbano ou uma potência formal, mas que na soma de suas realidades subjetivas, de suas cores e formas, gestos e caminhos, constituam uma visão da identidade no processo errático urbano. E são realmente instantes que significaram algo em determinado ponto no tempo e no espaço, pois o que se descobriu ontem, talvez já não tenha tanta validade hoje. Instantes que exprimam de alguma maneira a relação de cumplicidade que travamos com os lugares e a cidade a cada momento em que estamos imersos no ambiente urbano. Afinal, se “o que acontece em Vegas, fica em Vegas”, é porque encontramos na cidade o testemunho absoluto. Não conseguimos mentir convincentemente no modo como nos relacionamos em público. Nossas reações, nossos gestos, nossa postura, tudo isso está invariavelmente visível no espaço comunitário. Se vivemos em sociedade de modo condicionado e restritivo, é porque estamos constantemente sob tutela da própria cidade, que está perpetuamente alerta, observando e rastreando o corpo humano no espaço.

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IMPRESSÕES

ERRÁTICAS Este ensaio fotográfico é parte de uma tentativa de compreensão das reflexões expostas até aqui. Durante o processo de edição dessa seleção entre as centenas de imagens captadas, busquei organizar as fotografias a partir de capítulos narrativos que sintetizassem o encaminhamento daquela imagem específica dentro de um contexto global. Os capítulos são: CONFLITOS EXTERNOS O INSTANTE CONTÍNUO PERFIS URBANOS RECIPROCIDADES



CONFLITOS EXTERNOS

















O INSTANTE CONTÍNUO













PERFIS URBANOS





















RECIPROCIDADES












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AVELLAR, José. E=MC². In: EISENSTEIN, Serguei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. CARERI, Francesco. Walkscapes: O caminhar como prática estética. São Paulo: Gustavo Gili, 2015. CHIODETTO, Eder. Curadoria em fotografia. São Paulo: Prata design, 2013. Livro eletrônico.

BIBLIOGRAFIA

CRIVELLI, Jacopo. Novas derivas. Dissertação de Mestrado, FAU USP. São Paulo, 2012.

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EISENSTEIN, Serguei. O princípio cinematográfico e o ideograma. In: CAMPOS, Haroldo (org.). Ideograma: lógica poesia e linguagem. São Paulo: Cultrix, 1977. FARIAS, Agnaldo. Tuca Vieira mostra levantamento de imagens para mapear São Paulo. Folha de São Paulo, São Paulo, 11 set. 2016. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ ilustrissima/2016/09/1811714-tuca-vieira-mostra-levantamento-de-imagens-para-mapear-sao-paulo.shtml>.


FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. GEHL, Jan. Vida entre edifícios. In. Piseagrama. Belo Horizonte, n. 7, jan. 2015. GHIRRI, Luigi. Pensar por imagens. São Paulo: IMS, 2013. GIBSON, David. Manual do fotógrafo de rua. São Paulo: Gustavo Gili, 2016. JACOBS, Jane. Morte e vida das grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000. KEROUAC, Jack. In FRANK, Robert. The Americans. Paris: Robert Delpire, Grove Press, Steidl, 1958. LUBBEN, Cristen (org.). Magnum contact sheets. London: Thames & Hudson, 2014. MACHADO, Arlindo. A ilusão especular.São Paulo: Brasiliense, 1984. SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. STAHEL, Urs. Ai Weiwei sem filtro. Zum, São Paulo, nº9, out. 2015. STEINBERG, Saul. Reflexos e sombras. São Paulo: IMS, 2011. TRENT, Parke. Dream Life. Australia: Hot Chili, 1999. WEIWEI, Ai. Sobre fotografia. Zum, São Paulo, nº9, out. 2015. WISNIK, Guilherme. Cidade Inacabada. São Paulo, Secretaria de Cultura de São Paulo, 2016. Catálogo de exposição.

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Ao Luís, pelos infindáveis momentos de brilho nos olhos proporcionados durante a graduação. Ao Abilio e a todo o coletivo do conjunto 32, por me ajudarem a esticar na ponta dos pés e enxergar um pouco além no horizonte. À Ciça, por me instigar ainda nos primeiros dias de aula a mergulhar avidamente no mundo da arte.

AGRADECIMENTOS

Aos meu pais, pelo apoio irrestrito nas difíceis decisões que tomei e não tomei.

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Aos integrantes da Turma do Supremo, por me acompanharem durante todo esse longo caminho até aqui. Sem vocês não seria possível. Ao Léo, à Dani, por me trazerem preciosas devolutivas no desenvolvimento das fotografias. Aos membros da revista Contraste, novos e antigos, pelo esforço além da conta por um projeto que carrego com muito carinho na memória. Ao Pedro e à Inês, por, no finalzinho, me fazerem acreditar que a fotografia ainda respira.


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Fotografias do ensaio realizadas por mim com uma Canon 550D, em sua maioria com lente 35mm. As fotos que não fazem parte do ensaio e não contém legenda nem estão no trecho “inspirações” são de minha autoria, em sua maioria em filme analógico preto e branco Fujifilm. Impresso em pólen bold 90g e offset 150g Fontes utilizadas são Avant Garde Gothic Std e Garamond Premier Pro



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