Utopias e distopias soviéticas: 100 anos da Revolução Russa

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UTOPIAS E DISTOPIAS SOVIÉTICAS: 100 ANOS DA REVOLUÇÃO RUSSA

São Bernardo do Campo 2017


Revisão Grégory Rodrigues Teixeira Diagramação Thaís Vallim Castanheiro Arte da capa Gustavo Costa Geraldo

FICHA CATALOGRÁFICA Al25u

Alencar, Caíque Vicentini de Utopias e distopias soviéticas: 100 anos da revolução russa / Caíque Vicentini de Alencar, Giovana da Costa Rodrigues Alves, Girrana Rodrigues Teixeira. 2017. 134 p. Monografia (Graduação em Jornalismo) -Escola de Comunicação, Educação e Humanidades da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2017. Orientação de: Roberto Joaquim de Oliveira. 1. Rússia - História - Revolução, 1917 2. Revolução Bolchevique 3. História oral I. Alves, Giovana da Costa Rodrigues II. Teixeira, Girrana Rodrigues III. Título CDD 070.4


AGRADECIMENTOS

Caíque Vicentini de Alencar — à minha família, pelo suporte dado nesta trajetória, especialmente aos meus pais, pelo incentivo dado durante meus estudos, e ao meu irmão, por ceder parte de seu tempo e conhecimento para o desenvolvimento do projeto. Aos meus amigos e colegas de trabalho, pelas sugestões e observações valiosas que foram muito úteis para os detalhes do trabalho. Giovana da Costa Rodrigues Alves — aos meus pais, por tanto apoio, amor e carinho. À minha irmã, por me acolher e compartilhar dos meus dramas acadêmicos. Ao Giuliano Bonetti, por ser o melhor companheiro de todas as horas que eu poderia encontrar. A todos os amigos e familiares, que, de alguma forma, dedicaram um pouco de tempo à realização deste projeto. Girrana Rodrigues Teixeira — aos meus pais, pelo apoio dado. Um obrigado em especial à minha mãe, Riane Rodrigues Teixeira, que é um exemplo de mulher guer-


reira. Ao meu irmão Grégory Rodrigues Teixeira, por contribuir com o seu conhecimento ao revisar este projeto. Aos meus avós, Alzira Rodrigues Pereira e José Pereira, por terem ajudado a tecer a minha vida até aqui. Aos camaradas da Tribuna Metalúrgica: Adonis Guerra, Eduardo Guimarães, Luciana Yamashita, Olga Defavari, Rogério Bregaida, Rossana Lana e Thamara Marinho, e a todos os amigos do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, pelas lições de luta em momentos de crise. Ao meu companheiro de vida, Diego Borges Brito, pela paciência, cuidado e amor, e a sua família, pelo incentivo. A todos os amigos que de alguma forma colaboraram nessa jornada. Todos nós agrademos ao nosso orientador Roberto Joaquim de Oliveira pela paciência, sabedoria e amor ao nos guiar. Aos estudiosos do tema: Angelo Segrillo, Erick Reis Godliauskas Zen, Svetlana Aleksiévitch, Svetlana Ruseishvili, por terem escrito materiais de pesquisa que foram essenciais para este livro se concretizar.


“O que eu faço? Recolho sentimentos, pensamentos, palavras cotidianas. Reúno a vida do meu tempo. O que me interessa é a história da alma. A vida cotidiana da alma. Aquilo que a grande história geralmente deixa de lado, que trata com desdém. Eu me ocupo com a história omitida.” Svetlana Aleksiévitch Trecho de discurso proferido ao ganhar o prêmio Nobel de Literatura (2015)



SUMÁRIO Introdução

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Cronologia

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Carta para Olga e Prestes

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Revolução e Igreja Ortodoxa

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Monólogo 1: sobre novas perspectivas

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Klara, Cravo, Canela e KGB

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Não veio a utopia

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Confidência do moscovita

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Monólogo 2: sobre comunismo e sangue

83

Monólogo 3: sobre estar e (não) pertencer

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Monólogo 4: sobre equilíbrio ideológico

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As sombras de duas Marinas

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Monólogo 5: sobre a vida humana

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Bibliografia

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INTRODUÇÃO



Leitor, Pare por aqui se você busca um livro com abordagem histórica sobre os acontecimentos da Revolução Russa. As próximas páginas são de relatos, questionamentos e sentimentos humanos. Elas refletem a nossa busca por respostas sobre a influência que o maior evento histórico do século XX teve na vida das pessoas. Mostram a nossa paixão pela história da revolução presente no DNA dos soviéticos que vivem no Brasil. Descobrimos um gene contraditório: às vezes, carrega amor, outras vezes, ódio. Em alguns casos, traz utopias e, em outros, distopias. Por vezes, ambos. Os principais fundamentos do jornalismo são: noticiar um tema atual e de interesse público. Como graduandos de jornalismo, notamos que, apesar de ter 100 anos, a Revolução Russa é, como costumamos falar na gíria das 11


redações, uma “pauta quente”: questões de direito à terra, à alimentação, à paz e à igualdade continuam presentes nas nossas discussões. Tudo isso é, na verdade, luta de classes, que é mais que “pauta quente”, já virou “brasa”. Também acreditamos que essas pautas não são tratadas com a devida importância na sociedade. É preciso dar espaço para o eco das vozes de uma revolução que colocou, pela primeira vez, os trabalhadores no poder. Portanto, com este projeto, buscamos olhar o passado para projetar um futuro melhor. Existiram erros e acertos, mas a ideologia da Revolução Russa ainda reverbera no mundo, assim como as suas motivações. O saldo é positivo enquanto primeira experiência de uma sociedade menos desigual. No entanto, o experimento ruiu e ainda é necessário repensar uma alternativa ao capitalismo. A União Soviética é muito complexa para ser abordada com um padrão de visão e de estilo. Para respeitar essa diversidade, este livro é uma coletânea de textos, com estilos variados de escrita e entrevistados com visões diferentes sobre a Revolução Russa. É multifacetado como a União Soviética, só que vista do Brasil. Se você chegou até aqui, tenha uma boa leitura!

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CRONOLOGIA



Fatos importantes na Rússia e no mundo depois da Revolução Russa Fevereiro de 1917* — O czar Nicolau II é derrubado do poder. Instala-se um governo provisório na Rússia, comandado pelo parlamento russo e pelo soviete dos trabalhadores. Dentro do parlamento, os mencheviques, comandados por Julius Martov, defendem que a Rússia não está desenvolvida o suficiente para a eclosão socialista. Assim, propõem uma revolução democrático-burguesa, para, depois, seguir para o socialismo. Já os bolcheviques, liderados por Vladimir Ilyich Ulyanov, conhecido como Lênin, acreditam em uma revolução que instale diretamente o socialismo. *Na cronologia, até os eventos de outubro de 1917, utilizamos as datas de acordo com o calendário juliano. A partir de janeiro de 1918, nos baseamos no calendário gregoriano.

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Outubro de 1917 — Acontece a Revolução Russa. Comandados por Lênin, os bolcheviques cercam Moscou e dissolvem o governo provisório. Outubro de 1917 — Lênin assina decretos que aprovam a saída da Rússia da Primeira Guerra Mundial e proíbe os latifúndios. Janeiro de 1918 — Lênin publica o decreto “Sobre a separação entre a Igreja e o Estado e entre a Escola e a Igreja”. O documento priva a igreja do status de figura legal coletiva, do direito à propriedade e de ensinar religião nas escolas públicas e privadas, ou para qualquer grupo de menores de idade. 1920 — Começa o fluxo migratório pós-Primeira Guerra Mundial. Novembro de 1920 — Lênin emancipa as mulheres ao legalizar o aborto. 1922 — A poetisa e tradutora russa Marina Tsvetáieva é exilada na cidade de Praga, República Tcheca. Março de 1922 — O Partido Comunista do Brasil é fundado, seguindo as teses de Karl Marx, Friedrich Engels e Vladimir Lênin. Janeiro de 1924 — Vladimir Ilyich Ulyanov, Lênin, morre ao sofrer seu terceiro acidente vascular cerebral. Abril de 1924 — Josef Stálin se torna secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). 16


Julho de 1925 — Adolf Hitler publica o livro “Minha Luta”, no qual expõe ideias antissemitas e antissocialistas. Março de 1926 — Nasce o pintor, desenhista, ilustrador e artista gráfico Octávio Araújo, na cidade de Terra Roxa, em São Paulo. 1930 — São criados os gulags, campos de trabalho forçado da União Soviética para onde todos os inimigos do regime são enviados. 1930 — As políticas nacionalistas de Getúlio Vargas dificultam a entrada de imigrantes no Brasil. 1931 — A escritora e jornalista Patrícia Galvão, conhecida como Pagu, é presa pela polícia política de Getúlio Vargas. Janeiro de 1933 — Adolf Hitler, líder do Partido Nazista, se torna chanceler da Alemanha. Dezembro de 1934 — Inicia-se os expurgos realizados por Stálin. Todos os soviéticos passam a ser suspeitos. As principais perseguições são voltadas aos opositores do regime e aos bolcheviques. Antigos companheiros de Lênin são executados, além de altos funcionários do governo e comandantes da polícia. Também há grande perseguição aos civis. As pessoas são acusadas, mesmo sem provas, de crimes como espionagem, assassinato e posicionamentos capitalistas. Abril de 1935 — O tenente Luiz Carlos Prestes chega ao Brasil com Olga Benário, uma militante alemã do Partido Social-Democrata da Alemanha (sigla SPD, em alemão). 17


Ambos fingem ser um casal rico em lua de mel, mas, na verdade, cumprem uma missão da Internacional Comunista de liderar uma revolução no Brasil. Olga é a responsável pela segurança de Prestes. 1935 — Pagu é presa em Paris como comunista estrangeira, com identidade falsa, e é repatriada. Novembro de 1935 — No Brasil, ocorre o Levante Comunista, designado, de forma pejorativa, de Intentona Comunista, liderado por Luiz Carlos Prestes, líder da Aliança Nacional Libertadora (ANL). O movimento visa derrubar o governo de Getúlio Vargas e implementar mudanças sociais na economia e sociedade brasileira. No entanto, os levantes ocorrem apenas nos quartéis de Natal, Recife e Rio de Janeiro, e o movimento é reprimido pelo governo Vargas. Olga e Prestes se apaixonam durante a missão. Março de 1936 — Olga Benário e Luiz Carlos Prestes são presos pela polícia brasileira, sob o comando do militar Filinto Müller. Setembro de 1936 — Olga, grávida de sete meses, é extraditada para a Alemanha nazista pelo governo de Getúlio Vargas, apesar de ter direito de permanecer no Brasil, por estar grávida de uma criança brasileira. Novembro de 1936 — Olga dá à luz Anita Leocádia na prisão de Barnimstrasse, em Berlim. Janeiro de 1938 — Leocádia Prestes e Lygia Prestes fazem uma campanha pela libertação de Olga e Anita. A criança é retirada de Olga e entregue à avó Leocádia. 18


Setembro de 1939 — Inicia-se a Segunda Guerra Mundial. 1939 — Encerra-se os expurgos realizados por Stálin. 1940 — Pagu deixa a prisão, rompe com o Partido Comunista e passa a defender um socialismo de linha trotskista. 1942 — O escritor baiano Jorge Amado, integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), lança a biografia de Luiz Carlos Prestes, intitulada “O Cavaleiro da Esperança”. Abril de 1942 — Olga Benário é assassinada em uma câmara de gás em Bernburg, na Alemanha. Fevereiro de 1943 — O exército nazista é derrotado pelos soviéticos na Batalha de Stalingrado. Maio de 1943 — Getúlio Vargas sanciona a Consolidação das Leis de Trabalho. Setembro de 1945 — Encerra-se a Segunda Guerra Mundial. 1945 — Começam os fluxos migratórios do pós-Segunda Guerra Mundial e também a Guerra Fria. O termo define a disputa ideológica entre a União Soviética e os Estados Unidos pelo poder econômico, militar e político do mundo. 1949 — Mao Tsé-Tung funda a República Popular da China. Março de 1953 — Josef Stálin tem um derrame e morre após quatro dias. Gueorgui Malenkov assume a secretariageral do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética entre março e setembro do mesmo ano. 19


Setembro de 1953 — Nikita Khruschóv assume a secretaria-geral do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética. Março de 1954 — É criado o Comitê de Segurança do Estado (sigla KGB, em russo). Fevereiro de 1956 — No XX Congresso do PCUS, Khruschóv diz que Stálin executou 70% dos membros do Comitê Central do Partido Comunista, além de matar pessoas inocentes durante os expurgos na década de 1930. Abril de 1961 — O russo Yuri Gagarin se torna o primeiro homem a chegar ao espaço e diz: “A Terra é mesmo azul”. Agosto de 1961 — Inicia-se a construção do muro de Berlim, uma barreira física que separa a Berlim Ocidental (capitalista) da Berlim Oriental (comunista). Dezembro de 1962 — Patrícia Galvão morre. Março de 1964 — Começa a ditadura militar no Brasil. Outubro de 1964 — Khruschóv se aposenta, por decisão do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, e Leonid Brêjniev assume o comando. Julho de 1969 — O americano Neil Armstrong chega à lua e diz: “Este é um pequeno passo para um homem, mas um grande salto para a humanidade”. Abril de 1973 — O livro “Arquipélago Gulag”, do escritor russo Aleksandr Soljenítsin, é publicado no ocidente. A 20


obra, que aborda o funcionamento dos gulags do ponto de vista dos presos, já circulava clandestinamente pela União Soviética desde a década de 1960. Setembro de 1976 — Mao Tsé-Tung morre. Novembro de 1982 — Leonid Brêjniev morre, e Yuri Andrôpov, chefe do KGB, assume a secretaria-geral do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética. Fevereiro de 1984 — Com a morte de Andrôpov, Konstantin Tchernenko assume a secretaria-geral do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética. Janeiro de 1985 — A Ditadura Militar no Brasil chega ao fim. Março de 1985 — Konstantin Tchernenko morre. Mikhail Gorbatchóv assume a secretaria-geral do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética. 1985 — Inicia-se a perestroika, um conjunto de medidas reformistas de Gorbatchóv voltadas à modernização da economia soviética. Começa a glasnost, medida voltada à implantação da democracia no processo de abertura política. Abril de 1986 — Ocorre o acidente da usina nuclear de Tchernóbil, que contamina gravemente a Bielorrússia, Ucrânia e grande parte do território soviético. Agosto de 1987 — Morre o poeta, contista e cronista brasileiro Carlos Drummond de Andrade, considerado um dos receptores dos ideais revolucionários no Brasil.

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Novembro de 1989 — O muro de Berlim é derrubado. Dezembro de 1989 — É decretado o fim da Guerra Fria. Março de 1990 — Luiz Carlos Prestes morre. Maio de 1991 — Boris Iéltsin é eleito presidente da Rússia. Julho de 1991 — A União Soviética chega ao fim, e o mandato de Iéltsin se inicia. Novembro de 1991 — Encerra-se o KGB. Dezembro de 1999 — Boris Iéltsin renuncia. Vladimir Putin assume a presidência da Federação Russa após a renúncia. 2000 — Nas eleições, Putin derrota o comunista Guennádi Ziugánov e é eleito presidente. Outubro de 2002 — Luiz Inácio Lula da Silva, metalúrgico e presidente do movimento sindical, é eleito presidente do Brasil. Outubro de 2006 — Lula é reeleito. Maio de 2008 — Putin indica seu primeiro-ministro Dmitri Medvedev para sucessão da presidência e ele vence as eleições. Outubro de 2010 — Dilma Vana Rousseff se torna primeira mulher eleita presidenta do Brasil.

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Fevereiro de 2012 — Putin é reeleito presidente da Rússia com 63% dos votos. Fevereiro de 2014 — Ucranianos favoráveis e contrários à entrada do país na União Europeia entram em conflito. Maio de 2014 — Rússia desaprova a entrada da Ucrânia na União Europeia e anexa a Criméia ao território russo. Outubro 2014 — Dilma é reeleita. Junho de 2015 — Morre Octávio Araújo. Março de 2016 — 1 milhão de pessoas protestam na avenida Paulista e pedem o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Março de 2016 — 500 mil pessoas vão a protestos na avenida Paulista afirmando que a presidenta Dilma é vítima de um golpe institucional. Agosto de 2016 — Dilma é afastada da Presidência da República pelo Senado. Outubro de 2017 — A Revolução Russa completa 100 anos.

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CARTA PARA OLGA E PRESTES por Girrana Rodrigues



Bem unidos façamos, Nesta luta final, Uma terra sem amos A Internacional SBC, 06/10/2017

Para Olga, a Papalaranjas, e para Prestes, o Cavaleiro da Esperança. Essa mulher, essa mesma! Sua filha, Prestes! Anita, que divide agora, no século XXI, as buscas do Google com Anita Garibaldi — a quem o nome homenageia — e com uma cantora que, na verdade, se chama Larissa. Sua filha também, Olga Benário! Justo você, mulher de fibra. Vocês conceberam essa garota longe dessa geração high-tech. Ela nasceu quando a Revolução Russa ainda era uma adolescente de 19 anos governada por Josef Stálin. A Revolução Russa já vai completar 100 anos neste ano, acreditam? Olga, a carta que você escreveu para comunicar o nascimento de Anita na prisão de Barnimstrasse não foi entregue a Luiz Carlos Prestes, mas foi encontrada por ela nos arquivos da Gestapo dois anos atrás.

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Meu nome é Girrana, sou jornalista e resolvi escrever para vocês depois de conversar com Anita. Nesta carta, vou contar para vocês as visões de Anita Leocádia Prestes sobre a Revolução Russa. Prestes está mais atualizado que você, Olga, mas é sempre bom enfatizar as notícias. Olhem só que maravilha! Com a derrota do nazismo pelo Exército Vermelho, as cartas não precisam mais ser escritas em alemão como as mais de 900 correspondências que vocês trocaram durante a prisão. Anita tem agora 79 anos e está bem de saúde, como vocês gostavam de enfatizar nos escritos que trocavam. Ela mantém o respeito pela experiência da União Soviética, que eu sinto informá-los, mas acabou em 1991 com uma abertura feita por Mikhail Gorbatchóv. — Foi a primeira vez na humanidade que se criou uma sociedade que acabou com a exploração do homem pelo homem, a partir do ato de tornar todos os bens de produção públicos, acabar com a propriedade privada. Isso foi um avanço muito grande na história da humanidade. Agora, construir uma nova sociedade socialista não é fácil, muitos erros foram cometidos indiscutivelmente, e o inimigo utiliza bem os erros. Eu acho que o principal problema que existiu lá foi com todo esse processo de ter que se preparar para a guerra, de ter que industrializar o país, a coletivização forçada do campo. Toda essa violência e depois a guerra. A Segunda Guerra Mundial foi um negócio assim, foi um retrocesso enorme. A União Soviética ficou arrasada. A parte ocidental ficou realmente arrasada. Então, tudo isso contribuiu para que se acabasse com uma coisa que o Lênin dizia que é muito importante: “Não se constrói socialismo sem participação popular”. E a participação popular foi sendo eliminada pela burocracia e pelo autoritarismo. Acho que isso foi fundamental. 28


Ela me contou isso em um hotel em que estava hospedada pelo Sesc (Serviço Social do Comércio) para dar algumas palestras em um seminário sobre a Revolução Russa. Imagine, Olga! Ela é doutora em Filosofia pelo Instituto de Ciências Sociais de Moscou! Que orgulho você sentiria. — Eu já conhecia a União Soviética, porque eu fiz lá todo o curso secundário. Quer dizer, dos 14 aos 20 anos, eu morei lá, com a minha tia Lygia. Isso foi de 1950 até 1957. Quer dizer, boa parte da adolescência, eu passei lá. Por um lado, foi um choque muito grande, uma garota de 14 anos sair do convívio da família, dos amigos, do ambiente do Rio de Janeiro e cair em Moscou. Além do mais, eu não tenho facilidade para língua estrangeira. Foi difícil aprender o russo. É que tem pessoas que têm facilidade. Não era o meu caso, então eu tive que fazer um esforço grande, mas aprendi bem o russo... O próprio fato de você ter que ir à escola, estudar em russo, com os colegas. Quando eu voltei para o Brasil, no final de 1957, eu sabia russo melhor do que português, aí tive que estudar o português. Foi uma experiência, assim, interessante para mim, sem dúvida nenhuma. Apesar de ter sido difícil no início. Naquela época, ainda por cima, a União Soviética era muito isolada do resto do mundo. Não tinha nada disso, nem telefone. Telefone internacional era coisa que não se usava, não existia e raramente uma autoridade poderia usar. Então, correspondência era muito demorada, tudo era muito difícil. O meu pai estava na clandestinidade aqui no Brasil. A comunicação com ele era muito difícil também. O isolamento lá era muito grande, desse ponto de vista. Isolamento do Brasil, falta de notícias. Isso era bastante difícil, mas, por outro lado, eu tinha a oportunidade de estudar. Agora que já faz 100 anos da Revolução Russa e 26 anos do fim da União Soviética, as pessoas se esqueceram um pouco de como era lá. 29


— Como estrangeiro, a gente tinha uma visão meio ilusória, bastante ilusória, mas uma coisa, por exemplo, que era visível tanto naquela época quanto depois, quando eu voltei em 1970, é a questão dos direitos sociais. Realmente, isso era impressionante. Ninguém estava sem casa, todo mundo tinha moradia, embora moradia, principalmente nesse período dos anos 1950, depois da guerra, era uma situação muito difícil. A maioria das famílias, em Moscou, morava em apartamentos coletivos. Nós mesmos morávamos em apartamentos coletivos. Quer dizer, cada família tinha um quarto, ou dois. Nós até éramos privilegiadas porque tínhamos dois quartos. Era assim: três famílias morando no mesmo apartamento, cozinha e banheiro coletivo. Isso era bastante comum. Quando eu voltei, nos anos 1970, já tinha mudado bastante e cada família vivia em um apartamento. Moradia era toda do Estado e quase gratuita. Preços simbólicos: luz, gás, telefone… não onerava ninguém, todo mundo podia pagar. Não tinha ninguém desempregado, todo mundo empregado. A questão de saúde, também. Saúde e educação, realmente... Olha, saúde gratuita, totalmente gratuita para todo mundo. Isso realmente era direito fundamental. Outra coisa. Educação desde a creche até a universidade, todo mundo tinha direito do mesmo jeito, em condições iguais. As pessoas que chegavam lá, do Brasil e de outros países, ficavam impressionadas com as condições da infância. As crianças eram muito bonitas, muito bem tratadas. Você consegue acreditar que essa sociedade acabou, Olga? Na verdade, Stálin morreu e teve muitas denúncias de repressão, mas isso é melhor você saber por Anita. — Tanto eu quanto a minha tia (quanto a maioria das pessoas) tivemos um impacto muito grande. Todo mundo era grande admirador do Stálin. Não se sabia de muita coisa que se ficou sabendo depois da morte dele. 30


A gente não sabia, mas havia muita repressão, embora, hoje, se exagere nessa repressão. Fala-se até que Stálin matou 100 milhões. Isso é um absurdo, não tem cabimento! Mas havia repressão, sem dúvida. Tem que entender as causas dessa repressão. Não se justifica, mas se explica. Tem que entender o que foi o processo da União Soviética, que o país já era atrasado quando houve a revolução. Foi arrasado pela Guerra Civil, não pela revolução. Depois disso, era necessário industrializar o país, até porque se sabia que viria invasão estrangeira… sabíamos que viria invasão provavelmente da Alemanha. Era preciso industrializar o país, já que a pouca indústria que existia antes tinha sido arrasada. Para isso, era necessário garantir o abastecimento de alimentos na cidade para essa população que vinha do campo para trabalhar na indústria. Então, era necessário coletivizar a agricultura porque o camponês não estava a fim de colaborar. Aí, vocês veem a contradição séria. O Lênin mesmo, enquanto viveu, tinha escrito que a coletivização do campo tinha que ser feita aos poucos, convencendo o camponês. Só que, na prática, depois de 1925, 1926, 1927, não havia tempo para esperar isso. Resultado: foi na base da violência, e Stálin desempenhou um papel grande nesse sentido. Isso contribuiu para o autoritarismo, para que o estado se tornasse mais burocrático e para que as violências acabassem extrapolando. Sem falar que Stálin realmente tinha características pessoais que contribuíam para isso. Stálin também não agiu sozinho. Foi todo um contexto que contribuiu para essa violência no campo de concentração que existiu, o famoso gulag. Tudo isso são crimes que foram cometidos. Apesar de tudo isso, como diz o jornalista Miguel Urbano Rodrigues, aquele período chamado stalinista, que não é muito correto, mas que indiscutivelmente é a União Soviética, foi a sociedade mais igualitária que existiu até hoje. 31


Na escola em que eu estudava, fiquei sabendo até que o comportamento estranho que alguns colegas tinham era porque o pai tinha sido mandado para a Sibéria ou tinha sido fuzilado. As pessoas criaram coragem para falar. Vizinhos, enfim, gente que a gente conhecia. Eu e a minha tia começamos a tomar mais conhecimento das situações, mas a gente nunca colocou em questão os grandes avanços da União Soviética. Quantas novidades, não é? Ai se vocês conseguissem ver Anita hoje em dia. Os olhos dela não mudaram de cor e continuam da cor dos seus, Olga! Lembra-se da sua preocupação de ela se tornar uma criança mimada? Isso não aconteceu. Sua sogra Leocádia e sua cunhada Lygia a criaram maravilhosamente bem. Ela é de ferro e, aqui no Brasil, lutou contra uma ditadura. Tivemos uma ditadura militar de 21 anos, que amargou nossas vidas e nossas frutas tropicais, como as laranjas que você gostava de comer. Porém, não fique preocupada com antecedência, ela se saiu bem. — Eu me formei em química em 1964, exatamente no ano do golpe, e eu já tinha feito estágio na fábrica de borracha da Petrobras, que tinha no Rio de Janeiro… mas, aí, veio o golpe. Inclusive, quem era suspeito de ser subversivo foi posto para fora. Então, eu não tinha a menor oportunidade de trabalhar na Petrobras. Estava fora de cogitação. Eu ainda tentei, mas quando aparecia meu nome, era recusado. Então, nada feito, não conseguia realmente. Ainda fiz um curso de mestrado, química orgânica. Um professor me orientou nesse sentido. Foi uma maneira de ter uma bolsa da Capes. Quebrou meu galho durante dois anos, mas, depois, realmente não tinha nenhuma perspectiva. A repressão era cada vez maior, aí, eu fiquei mais dedicada. Já era militante do partido, do PCB, e fiquei cada vez mais dedicada a isso. Ainda fiz um curso de marxismo na União Soviética nesse meio tempo, 32


dois anos. Voltei e fui para a clandestinidade aqui em São Paulo. Por sinal, entrei em um trabalho para o partido, que era, principalmente, na área de educação do Comitê Estadual aqui de São Paulo, o Comitê Estadual do PCB. Só que foi um período difícil. Imagina que, em 1969, 1970, 1971, 1972, a repressão foi crescendo porque era, inclusive, a estratégia da ditadura. Primeiro, acabar com os que eles chamavam de “os terroristas”, o pessoal da luta armada, que era quem estava incomodando mais de perto, assaltando banco etc. Então, na medida em que eles tinham liquidado esse pessoal, vieram em cima do PCB e, aí, realmente a repressão era muito grande. No Brasil todo e, em particular, em São Paulo. Então, começou a cair gente. Com as torturas bárbaras, as pessoas acabavam falando... e o resultado foi: meu nome apareceu. Eles começaram a me procurar. Como eu tinha um bom esquema de clandestinidade, eu consegui driblar para que não me pegassem, mas o perigo era muito grande. Ali, ou morria, ou pelo menos ia ser muito torturado. Então, eu achei que eu devia sair do país. O partido e a direção concordaram e fui para a União Soviética. Aí, veio a campanha da anistia também. Com a anistia, a gente conseguiu voltar. Os exilados todos, basicamente, voltaram para a atividade legal. Esse período da ditadura você conhece bem, Prestes! Mas, para falar de coisas boas, vocês ficariam felizes em saber que ela criou o Instituto Luiz Carlos Prestes, para preservar a sua memória, e acredita no seu papel como revolucionário no Brasil e na influência da União Soviética. — O Prestes é a grande liderança no Brasil, a maior liderança. O Correio da Manhã, que era um jornal de oposição na época, fez, durante aquele período de 1929, uma pesquisa. Realmente, não são as pesquisas que se fazem hoje. O Correio da Manhã tinha sua sede no centro do Rio e colocou uma urna lá: todo mundo que quisesse 33


podia ir lá e botar um voto em quem achava que deveria ser o próximo presidente da República. No dia seguinte, botavam sempre o resultado da véspera... e o Prestes constantemente era eleito disparado em primeiro lugar. Quer dizer, crescia o prestígio do Cavaleiro da Esperança... um jornal à esquerda, que o Rio tinha na época, dá esse nome para ele... Então, ele só vai conseguir ser aceito no PCB em 1934, quando está em Moscou, por determinação da Internacional Comunista. Nesse período é que ele se aproxima do comunismo... No famoso manifesto de maio de 1930, em que, embora ele não se declare comunista, adota o programa do Partido Comunista, que era a revolução agrária e anti-imperialista. Isso foi um escândalo no Brasil. Você pega a imprensa da época, a partir de maio, junho de 1930, o Prestes, de grande herói, se torna o maior inimigo, o maior traidor. É muito interessante, eu faço essa análise. Você vê as classes dominantes do Brasil, aquelas oligarquias que estavam organizando a Revolução de 1930, as chamadas oligarquias dissidentes, apostavam no Prestes como uma liderança que ia ficar a serviço deles. Na hora em que o Prestes rompe, não aceita participar de 1930, ele se coloca ao lado do comunismo, ao lado, portanto, dos trabalhadores. Ele salta a trincheira da luta de classes, vai para o outro lado, torna-se o grande inimigo. Isso é imperdoável até hoje. Em 1930, essa liderança, como ele mesmo dizia, ficou um general sem soldados, porque a própria população urbana, que tinha algum peso na política do Brasil, ficou profundamente decepcionada. No Brasil, inclusive hoje, a gente fica esperando o salvador da pátria, o que, de repente, ele deixou de ser. Então, isso foi uma grande decepção. Até hoje, muita gente não entende porque o Prestes não assumiu, já que o poder estava sendo oferecido para ele na bandeja. Ele tinha muito mais prestígio que Getúlio. [Porém], ele percebeu uma 34


coisa que eu acho que é muito importante: que não tinha um movimento popular no Brasil que desse apoio. Então, se ele aceitasse ir para o governo, ia ser um peão na mão daquelas oligarquias que fizeram a Revolução de 1930. Olga, os olhos de Anita brilham quando ela fala de você. Imagine que, apesar de ter nascido na Alemanha e ter vivido na URSS, ela tem um leve sotaque carioca. Quando ela fala, o “s” faz chiadinho quase lusitano, mas acho que Prestes entenderá melhor essa questão do idioma. — Ela era uma pessoa muito decidida. Tinha um bom preparo físico, era esportista. Depois, na União Soviética, ela se aperfeiçoou nesse sentido. Pilotava avião, se lançava de paraquedas e andava a cavalo. Ela tinha essa saúde, tinha muita disposição, era uma pessoa muito dedicada. Uma revolucionária 100%, de acordo com o que eram os revolucionários da época, os comunistas da época. Eram 24 horas por dia para a causa. Era uma dedicação muito grande. Ainda mais alemã... os alemães eram muito disciplinados. Ela era uma pessoa muito humana, muito meiga, muito compreensiva, que tinha esse aspecto. As pessoas que a conheceram, eu já tive a oportunidade de conversar com algumas, inclusive na Alemanha, anos atrás… inclusive, com companheiras que tinham estado presas com ela no campo de concentração. Todo mundo destacava isso. Ela era uma pessoa muito solidária, que tinha liderança na prisão, no campo de concentração, mas não era uma líder do movimento comunista. Isso não era. Nem deu tempo para isso e nem sei se seria. Ela é admirada pela resistência. As novidades são muitas, mas vocês ficariam felizes em saber que ela ainda acredita no socialismo. — Eu acho que o processo vai ser demorado, longo. As nossas tradições no Brasil são muito ruins, de um país sempre com muita repressão que nunca deixou 35


o movimento popular realmente se organizar. Por isso, eu acho que é fundamental se voltar para a organização popular. Quer dizer, quem tem condições, quem pode contribuir para organizar os diferentes setores em torno das suas reivindicações. Porque ninguém se organiza diretamente pelo socialismo. Isso não existe. As pessoas se mobilizam, lutam, por aquilo que elas estão sentindo, e, aí, cabe o papel dos intelectuais, aqueles mais esclarecidos, que devem procurar esclarecer, dar uma formação para as pessoas, para as lideranças principalmente… é um processo difícil, longo, demorado e cansativo. O momento é muito adverso. Outro dia, ela me mandou um vídeo no WhatsApp, um programa que troca espécies de telegramas instantaneamente. Infelizmente, com a americanização dos hábitos, um programa russo com a mesma função, chamado Telegram, não é muito utilizado. O vídeo era sobre os filmes que vão ser exibidos em comemoração ao centenário da Revolução Russa. Ela pareceu animada com a data. “Todos fazemos parte do processo histórico”, relembrou-me. Com amor, De Anita e Girrana

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REVOLUÇÃO E IGREJA ORTODOXA por Giovana Alves



“Senhor, tende piedade e perdoai a nossa culpa. E perdoai a nossa culpa, porque nós somos vosso Povo, que vem pedir vosso perdão. Cristo, tende piedade e perdoai a nossa culpa. Senhor, tende piedade e perdoai a nossa culpa.” Cântico religioso popular cristão Senhor Tem Piedade.

Jorge Petrenko nem imaginava que se tornaria bispo quando entoava “Senhor Tem Piedade” nos primeiros anos de idade. Apesar da religiosidade familiar, Petrenko queria mesmo era seguir carreira nas disciplinas de exatas. Conhecido como bispo Gregório nos dias de hoje, ele nos recebeu de batina em uma das casas mais russas de São Paulo. A decoração de matrioskas, retratos da última família real e outros adornos da Rússia Imperial revelaram a saudade do que Jorge nem chegou a conhecer. Já na parede, uma foto enorme de família, dessa vez sem a batina, mais parecido com o estudante de física nuclear da USP que Petrenko já foi. Nascido na União Soviética de 1946, o bispo acredita que o czarismo foi um sistema de governo melhor em relação ao período revolucionário. “O czar Nicolau era um ungido de Deus. Isso significa que, além de um di39


rigente da nação, ele era o guardião da religião no país. Quando se derruba a unificação religiosa, todo o resto desmorona.” Tomando a Revolução de 1917 como o início de um período sombrio, Petrenko defende uma teoria popular entre os ortodoxos russos que vivem no Brasil: a ideia de que o processo revolucionário aconteceu devido ao afastamento das pessoas da religião, o que dá abertura à dominação do anticristo em um futuro próximo. Os pais vermelhos A relação de Jorge Petrenko com a Revolução Russa não foi direta, mas seus pais, pobres e analfabetos, foram soldados do Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial. — Vocês querem mesmo saber a minha história? A história da minha família? Mas minha história não é importante — ele resistiu, incomodado em falar sobre o assunto. — Queremos, queremos muito ouvir a sua história. — Bom, mas então é importante que vocês saibam que a vida dos ortodoxos no Brasil é espionada até hoje, somos observados em todos os passos... Assim, começou: “A União Soviética da Segunda Guerra Mundial não aceitava de volta os soldados vermelhos presos pelos inimigos. Após a prisão, essas pessoas automaticamente se tornavam desertoras, ou alguém que oferecia informações ao adversário. De qualquer forma, já era um inimigo do sistema. Se o soldado não foi capaz de matar, morria, era fuzilado, mandado para campo de trabalho forçado, para a Sibéria. Não tinha jeito”. Os pais do bispo se conheceram, casaram e tiveram filhos em algum campo de refugiados da Alemanha nazista. Apesar de serem soldados do exército comunista, 40


sabiam que não poderiam voltar para casa se quisessem viver. Por sorte, não foram repatriados compulsivamente. Como a maioria dos refugiados, sonhavam em emigrar para os Estados Unidos, a terra próspera da América. “Mas com vovô e vovó, os norte-americanos não aceitavam a nossa família. Só entrava no país quem fosse jovem para trabalhar.” Como segunda opção — não tão atrativa e muito mais desconhecida —, apareceu o Brasil, com uma política migratória bem mais receptiva no pós-Segunda Guerra. A família era formada pelos avós maternos analfabetos agricultores, a mãe analfabeta dona de casa, o pai analfabeto mecânico, a irmã mais velha e o próprio Jorge, uma criança de três anos em 1949. Todos foram morar e trabalhar em uma fazenda de alemães em Santa Catarina. A religião ortodoxa dos avós, porém, começou a ser um problema. “Eles foram perseguidos, tinham medo por estar em uma região rural afastada.” A família veio de maria-fumaça para a Vila Alpina (SP), bairro onde já existia cerca de 40 famílias e uma igreja. A adaptação não deixou de ser difícil, mas pelo menos eles contavam com o apoio de pessoas que falavam a mesma língua. Enquanto comunidade, era mais fácil encarar a desconfiança com a qual o governo brasileiro tratou os russos no Brasil. “A palavra “russa” era sinônimo de comunismo, eles não conseguiam entender que o pessoal todo que saiu da Rússia era contrário ao regime comunista e até, de certa forma, lutou contra o comunismo no movimento do Exército Branco. Até nossa igreja, eles não nos deixaram usar “russa” no nome.” Rússia de hoje — Você nunca quis voltar para a Rússia? Conhecer? 41


— Nunca tive vontade. Não sei o que dizer sobre a Rússia de hoje. O comunismo não foi extirpado de lá. O comunismo continua forte, mas o Putin colocou ordem naquilo. Porque o Iéltsin, antes dele, era um bêbado, mais ou menos do tipo do nosso Lula [risos]. É difícil colocar ordem lá, o povo é diferente, não é pacato como aqui no Brasil, não aguenta essas coisas que o Brasil tem aguentado. — E como você enxerga a relação entre a Revolução Russa e a Rússia de hoje? — É tudo sobre o afastamento da religião. Essa globalização, nova ordem mundial, vai reunir todas as pessoas do lado mau da história. A única forma de protelar o fim é a volta das pessoas para a religiosidade. Caso contrário, os anos estão cada vez mais curtos, os dias estão mais curtos, todo mundo percebe isso. Antigamente, só os velhos percebiam, hoje, qualquer criança sabe que os dias são... Nós já estamos em que mês? Quase no final do ano. O tempo está passando muito rápido. Já está comprovado, inclusive pela física, que 24 horas de hoje equivalem a 18 horas de 100 anos atrás. — Como assim? — O mundo está girando mais rápido, e isso é perfeitamente compreensível, eu posso explicar para vocês. O mundo todo, toda a matéria, qualquer que ela seja, é formada por átomos. E o que é um átomo? É um núcleo, que são os prótons e nêutrons, com os elétrons girando em torno dele. Esses elétrons formam diversos tipos de matéria. O nosso sistema solar é um átomo, um átomo na natureza. É o sol e os átomos girando em torno dele, que são os planetas… Por alguns minutos, ficamos sentados com o físico nuclear da foto na parede.

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MONÓLOGO 1: SOBRE NOVAS PERSPECTIVAS por Giovana Alves



Depoimento de Vera Gers, 27 anos, descendente de russos Formada em Direito, ela atua com ONGs para refugiados e imigrantes no Brasil

“Eu entendo a Revolução Russa de uma forma positiva. Sem a revolução, eu não veria perspectiva para a Rússia, considerando que era um país totalmente agrário, com polos industriais pequenos, uma população analfabeta absurda. Além disso, tinha uma influência forte da Igreja Ortodoxa, que pregava contra o aborto e defendia a questão da submissão da mulher ao homem. Acho que a revolução foi muito importante, principalmente para tirar as pessoas da miséria. Não estou falando que não tiveram muitos problemas. Tiveram, mas tirou as pessoas da miséria, conseguiu alfabetizar toda a população em tempo recorde, possibilitou a igualdade entre homem e mulher prevista na Constituição, e o divórcio previsto no Código Civil. Isso foi um avanço muito grande. Então, eu vejo a revolução como extremamente importante. Não estou falando que antes da revolução se vivia na idade das trevas. 45


Não estou falando isso do Império Russo, porque não é assim também, mas se criou acesso ao conhecimento, à cultura e à saúde para toda a população. Esse é um reflexo que você consegue enxergar ainda hoje. De volta à Rússia, você percebe: criaram o mínimo de igualdade, fizeram uma reforma agrária, acabaram com o latifúndio. Na Rússia, não tem latifúndio, gente! Tem campo, tem plantio, mas não tem o latifúndio que a gente tem aqui no Brasil. Lá, todo mundo tem acesso à moradia. Pode até ser precária, não estou entrando nesse mérito, mas tem o mínimo de acesso, porque isso perdura da época da União Soviética. O acesso básico é garantido, o imposto lá é muito baixo. Então, não estou falando que não tenha muita desigualdade. Tem, sim. Com o fim da União Soviética, a perestroika, toda a privatização. Quem era da alta cúpula do Partido Comunista se envolveu em muitos casos de corrupção, tipo, hoje são os bilionários russos, sabe? Então, sim, tiveram casos de corrupção, eles compraram, eles ganharam altos salários, eles tiveram trezentos milhões de benefícios, isso tudo é verdade. Eu não estou falando que é mentira. Só que, assim, entre a população, no geral, isso não era tão discrepante. Ficou muito discrepante após o fim da União Soviética. Tem os bilionários russos e o restante é basicamente homogêneo, não tem isso que a gente tem aqui no Brasil. Aqui, você percebe que a desigualdade é muito gritante. Estamos tão acostumados a achar que isso é normal que, quando os meus amigos russos vêm para cá, ou eu vou para lá, fico surpresa. Se não fosse a revolução, pensando em Rússia como Estado, a gente não teria o que a Rússia é hoje. Não teria de forma alguma. Então, isso foi muito importante até para equilibrar o jogo geopolítico, porque ela meio que arrefeceu o avanço do liberalismo dos Estados Unidos. Se você não tivesse a revolução, 46


e tinha que ser um povo muito louco para conseguir fazer isso, a Rússia não teria nada, nada, nada, nada do que tem hoje. Eu acho que o que sobrou da revolução foi muito importante, sabe? A herança da revolução é muito importante. Eu cresci ouvindo posicionamentos muito diferentes em relação à Revolução Russa. Minha bisavó materna achava a revolução um absurdo. Ela era super monarquista, czarista. Já um outro bisavô cresceu em um seminário para órfãos. Dentro desse seminário, ou ele virava padre, ou diretor de escola. Eram essas as opções de trabalho. Ele acabou virando diretor de escola na Manchúria, cidade chinesa onde existia uma colônia russa. Então, assim, ele teve uma educação muito religiosa, e a Igreja Ortodoxa Russa tem uma ligação muito forte com a monarquia. Respeita muito a monarquia. Enfim, ele era muito monarquista, assim, muito. Só que é muito engraçado porque ele acabou sendo diretor de escola durante a União Soviética, com o modelo soviético. Então, é muito engraçado tudo isso. Eles me passaram muito essa questão da monarquia e tal, mas, ao mesmo tempo, eram valores que não condiziam com a conduta deles. Eles tinham valores muito mais soviéticos do que cristãos. Por exemplo, a minha bisavó largou o noivo com a festa pronta para ficar com meu bisavô. Essa questão da monarquia foi muito incutida em quem cresceu na igreja. Eu cresci na igreja, sabe? Mas não concordo com essa visão. Porque, assim, a família do meu pai teve uma militância política muito ativa na juventude. Eles eram de grêmio, da UNE, na época da ditadura, e meu pai foi militante do PT. Nós morávamos próximos à região do ABC e, por isso, meu pai teve um envolvimento político muito grande, até pelo contexto familiar dele. A família paterna sempre foi mais ativa politicamente do que a família da minha mãe. Então, a revolução contada 47


pela família do meu pai é muito diferente da revolução contada pela família da minha mãe. Quando os nazistas invadiram a União Soviética, eles dizimaram a aldeia em que os meus bisavós maternos moravam. Aí, meus familiares foram capturados e presos nos campos de trabalho forçado da Alemanha. Eles ficaram mais de três anos em campos de trabalho forçado. Minha avó nasceu nesse período, e eles vieram como refugiados para o Brasil, porque, se eles voltassem para a União Soviética, o que acontecia? Era época dos expurgos de Stálin, e os soviéticos diziam: ‘Olha, como que você não morreu na Segunda Guerra Mundial na Alemanha?’. Era essa a lógica. Então, a alternativa deles foi vir para o Brasil. Mas, antes da Segunda Guerra, meus bisavós maternos viviam na União Soviética, lindos e felizes na terrinha deles, sabe? Eles não tinham muito do que reclamar da União Soviética. Eles não reclamavam de absolutamente nada. Eles só ficaram muito incomodados com o exército nazista matando todo mundo. Então, a história oral da família da minha mãe é muito mais sobre como o exército nazista chegou... Enfim, de tudo que aconteceu na Segunda Guerra Mundial. Isso foi muito forte no caso da minha avó, mas ela já nasceu no contexto da União Soviética, vivia feliz na terrinha dela, entendeu? Cultivando e tal. Para eles, estava super sussa até chegar a Segunda Guerra Mundial. O que se destaca no discurso deles é o caos da guerra, os horrores do nazismo, os horrores do exército. Afinal, eles quase foram mortos, fuzilados. O meu avô materno viveu na União Soviética, mas tem uma opinião política muito ponderada em relação à Revolução Russa. Não o comunismo em si, como o comunismo que acabou não sendo um comunismo, mas ele tem muitas críticas às formas de governo, às políticas 48


de governo e algumas políticas de Estado da época de Stálin, até mais ou menos a década de 1960. Tanto que, por exemplo, alguns amigos do meu avô chegaram a voltar para a União Soviética e depois migraram para o Brasil de novo. Não tem aquela coisa, aquele ranço, tipo, nossa, sabe? Não tem isso na família do meu avô, não tem mesmo. Tanto que eu e meu irmão militamos muito e meu avô não acha isso um absurdo. Assim, ele tem as ponderações dele, mas não são ponderações do tipo: ‘Nossa, não gosto de pessoas de esquerda’. Não, ele fala assim: ‘Olha, só não acredito no que você está fazendo porque isso e aquilo’. Ele vê as coisas de uma forma ampla, sabe? Na família do meu pai, o posicionamento já é contrário ao czarismo, porque é uma família que sofreu bastante com o czar, principalmente nas guerras. A guerra do Japão, depois a Primeira Guerra Mundial… e, assim, você ver uma população inteira negligenciada, foi uma forma de eles perceberem que a monarquia não tinha como ficar lá, não dava. Tanto que a família do meu pai nunca foi czarista, parte dela até lutou no Exército Vermelho. Eles não têm essa visão de que a revolução não deveria ter acontecido. Teria que ter acontecido, sim. Meu pai teve uma ligação forte com a Igreja Ortodoxa, apesar de ter frequentado muito mais a Igreja Batista. Ainda assim, ele acha um absurdo o czar ter virado um mártir. Ele fala: ‘O cara só fez cagada’. Ele ouviu as histórias do meu bisavô e do meu avô falando das cagadas da família real na Primeira Guerra Mundial. Por exemplo, meus familiares paternos juravam de pés juntos que a esposa do czar ajudava o exército alemão, porque as armas não chegavam, nem os mantimentos. Não chegava absolutamente nada para eles, apesar de confirmarem que tudo tinha sido enviado. Meu bisavô chegou a ser preso na Áustria, sabe? Assim… Como que pode ser? Por isso 49


que a minha família teve uma afinidade com a revolução. Eles estavam inteirados da situação de miséria na Rússia naquela época. Eu até tive um tio-bisavô paterno que militou no Partido Comunista aqui no Brasil. Ele era intelectual e escrevia peças de teatro. E, aí, ele casou e foi morar no Paraná, onde tinha muito russo. Ele era muito militante, tanto é que quando a Olga Benário e o Luiz Carlos Prestes vieram para o Brasil, ele acabou escondendo os dois na própria casa. Então, tem tudo isso, são visões e motivações migratórias diferentes. Temos a impressão de que a imigração russa para o Brasil foi majoritariamente branca, contrarrevolucionária, mas, na verdade, foi muito mista. Por exemplo, a família de um amigo, o pai dele que veio para cá pequenininho, era super revolucionária. Ele só migrou por questão de não ter o que comer, sabe? Porque teve uma guerra, teve onda de fome. Então, até que eles conseguissem se reorganizar… A situação estava difícil. Aquela coisa de achar que os imigrantes que vieram para o Brasil são nobres… Não. Existe uma porção de famílias nobres, mas não tem nem como comparar o número de famílias nobres que vieram para cá com as que foram para a França ou para os Estados Unidos. É minoria. Inclusive, existe uma questão política que explica o motivo de acharmos que a imigração russa para o Brasil foi de famílias nobres. Primeiro, houve o período de perseguição aos comunistas; depois, a ditadura militar. Os russos não conseguiram se organizar em grupos. Por exemplo, minha família tem uma associação cultural russa, que nasceu em 1974 como um grupo de dança. Só que o que acontece? A ditadura “convidou” o grupo a encerrar as atividades no começo. É, bem delicadamente. Enfim. A família, por exemplo, meu avô, por 50


mais que não fosse… ele teve uma educação soviética. No Brasil, ele nunca foi ativo politicamente, mas tinha muito medo. Então, a família se escondia disso. Tanto minha mãe quanto meu pai, se vocês perguntarem, vão contar que meus avós falavam de esconder disco, de esconder música, de esconder várias coisas. Principalmente na década de 70, quando a ditadura estava mais repressiva. Foram os anos mais duros. Então, era bem complicado. Aí, só quando abrandou um pouco na década de 80 que minha mãe conseguiu reabrir a associação, fazer um grupo de dança e um coral. No interior, quando meu pai nasceu, meu avô não conseguiu registrar ele com o nome que queria. Isso antes do golpe militar até. Meu avô queria registrar como Dimitri, mas teve que mudar para Demétrio, porque Dimitri era nome de comunista. Isso, em 1963, antes do golpe de 1964. *** Eu tenho uma preocupação grande com uma galera da nossa comunidade, que também cresceu na igreja, foi alfabetizado na igreja e ouviu esse discurso da monarquia. A gente cresceu num lugar de: ‘Nossa, o czar! Ai, a monarquia! Ai, o comunismo. Ai, isso e aquilo. O comunismo matou muita gente’. Só que isso não faz sentido para mim, por conta da narrativa da minha família. O que me dá muito medo é que tem muita gente que compra esse discurso ainda e não tem o contraponto. Gente da minha geração mesmo que acredita piamente que o comunismo matou muita gente. É uma galera que me dá muito medo, que politicamente compra a ideia do Jair Bolsonaro, sabe? Ou gente que compra a ideia de que a mulher precisa ser submissa ao homem. Eu acho muito importante manter esse vínculo com a comunidade, com a cultura, e a igreja tem um papel 51


importante nesse sentido. Até por conta de preservação mesmo, mas a gente tem que ter muito contraponto. Por exemplo, eu usava uma cartilha muito boa da União Soviética da década de 60 para estudar. Era um método pedagógico muito avançado. E, aí, o padre não deixava a gente usar essa cartilha, que muita criança da minha idade tinha, porque ele queria usar uma que fosse da época do czar, ou alguma outra que não tivesse nenhuma propaganda soviética. As cartilhas incentivavam ideias do tipo: ‘Os homens têm que ajudar nas tarefas domésticas’. Era uma foto de um menininho: ‘Ah, o pai tem que ajudar a mãe’, meio que colocando uma coisa de divisão de tarefa doméstica. Por mais que não fosse uma coisa super avançada para a questão de gênero e tal, já incutia uma ideia diferente. Então, você via essas coisas muito diferentes do que a gente estava acostumado, e o padre não deixava. Eu vejo muita gente da minha geração que vai à igreja e ainda compra esse discurso, que quase beira um fascismo, sabe? Eu fico muito preocupada.”

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KLARA, CRAVO, CANELA E KGB por Girrana Rodrigues



Jorge Amado. Amado. Sobrenome que expressa o sentimento que o homem carregava no que escrevia. Tão amado o Amado que seus escritos causavam histórias de amor de Ilhéus a Moscou. Nesta história, sua personagem é Klara Gourianova, e o pano de fundo do drama cotidiano é a Revolução Russa. Diferente de Gabriela, ela não tem a cor da canela e nem o cheiro do cravo, mas exibe na pele um branco rosado, saudável. “Eu sou russa”, explicou. Não com o “r” chamado na fonética de inicial – aquele que provoca uma vibraçãozinha na garganta quando pronunciado –, mas com o “r” intervocálico, nome complicado que, entre outras coisas, expressa quando o danado vibra a ponta da língua. “Eu trabalhava como tradutora na Associação de Pintores da União Soviética. O Jorge Amado escreveu uma carta para lá. Eu sabia espanhol, não sabia português ainda, mas entendi.” 55


Era o ano de 1959, governo de Nikita Khruschóv na União Soviética. A carta feita pelo escritor baiano, militante do Partido Comunista no Brasil, pedia que a Associação de Pintores da União Soviética convidasse os pintores brasileiros Octávio Araújo e Roberto de Lamonica para ficarem duas semanas no local. Ambos já viajariam à China como prêmio por terem vencido o Salão para Todos, realizado no Rio de Janeiro, e teriam uma bolsa de estudos no Instituto Répin, em Leningrado, e no Instituto Poligráfico, em Moscou. “O convite foi feito. Eu trabalhei com eles como intérprete. Andamos pela Rússia, fomos até Leningrado”, relembrou Klara. Octávio já havia estudado pintura na École National Supérieure dês Beaux-Arts, na França e trabalhado como auxiliar de Candido Portinari no Brasil. Na URSS, a estadia do pintor paulistano, que era filho de pais baianos, foi como pimenta em acarajé: deixou um gostinho de quero mais. “Na despedida, quando eles já estavam saindo, Octávio ficou olhando para mim e falou: ‘dentro de dois anos eu volto’. E começou a me escrever cartas de amor, incríveis, lindas, maravilhosas; e eu acabei me apaixonando assim: por correspondência.” Em uma reviravolta na história de amor, mais ao estilo de Soljenítsin do que de Jorge Amado, o KGB descobriu que Klara enviava cartas para estrangeiros. “Comunicaram a diretoria da Associação de Pintores da União Soviética que a empregada deles mantinha correspondência com o exterior. Eu recebia cartas, mas ninguém sabia que eu as respondia por meio de quem eu confiava. De qualquer maneira, a minha chefe me chamou. Era a União Soviética.” Assim como Gabriela tinha a gana dos baianos, Klara tinha a dos soviéticos. A censura não pôde detê-la. 56


“Eu falei: eu recebo cartas do exterior, vou traduzir e mostrar para a senhora que não é nenhuma espionagem.” A acusada de espionagem traduziu as cartas que trocava com Octávio e, após algum tempo, foi chamada pela chefe. “Ela estava com as cartas abertas, chorando, e me falou: ‘Klara, como ele te ama’.” Os sentimentos do pintor, até então expressionista, foram comprovados com seu retorno para a União Soviética em 1960, antes dos dois anos previstos. O KGB orquestrou o reencontro dos dois, que deveriam se encontrar no trem, o mesmo transporte que tem notoriedade nos romances de Tolstói, e seguir para um hotel. Klara foi acompanhada por um rapaz do KGB. “Eu pensei que o Octávio ia sair do trem, me ver e se jogar em cima de mim, me abraçando e beijando. Eu não queria que vissem isso. Então, eu falei que ia estar de casaco xadrez, branco e preto, e coloquei outro casaco. Assim, eu o encontrei primeiro.” Apesar do episódio, Klara, hoje aos 84 anos, relata que era bom viver na União Soviética. “Quem não era contra, quem não era perseguido, vivia normalmente. Mas tinham muitas piadas. Cada dia aparecia uma piada. A gente se comunicava e sabia o que podia e o que não podia.” Decidida como se mostrou desde o começo na entrevista, não negou quando questionada se lia a literatura clandestina. “A gente lia às escondidas. Eu me lembro de um rapaz. Ele foi preso porque descobriram que ele estava com o livro do Soljenítsin [Arquipélago Gulag]. Ficou lendo no ônibus, bobo. Aí alguém viu, denunciou. Foi assim.” *** Jasmin pula na mesa e pede carinho. Ela é uma gatinha vira-lata cinza que comprova que Klara não 57


abandonou o hábito dos russos de ter amor pelos felinos. Klara ri ao se lembrar de uma das anedotas que demonstrava que a religião era proibida na União Soviética. “As pessoas iam à igreja muito às escondidas. De qualquer maneira, os comunistas não podiam, os Komsomols não podiam. Tem uma piada. Dois vizinhos falando e um diz: — Você acredita em Deus? — Por que você acha isso? — Porque você faz o sinal da cruz quando sai. — É que eu coloco a mão na testa para me concentrar, embaixo para lembrar se eu fechei o zíper das calças, de um lado para ver se a carteira do partido está comigo e, do outro, para ver se a mulher não tirou o dinheiro do bolso.” As memórias da infância tomam conta da russa com “r” na ponta da língua quando ela relembra da guerra. “Era difícil. Era difícil comprar coisas, e a gente tinha racionamento. E tinha cartões de racionamento. Você podia comprar tanto de leite, tanto de farinha, tanto de carne. Minha mãe trabalhava de dia e de noite e era jurista do Instituto de Armas Modernas, na pesquisa de criação de armas. Meu pai também. Então, eu vivia sozinha. Quem fazia as compras era eu. Esses cartões de racionamento, eu guardava no bolso… guardei no bolso. Mas, mesmo assim, tinha neve no inverno. Não longe da minha casa, tinha um barranco, e a gente descia, não de trenó, mas de bunda mesmo... O que eu fiz? Nossa Senhora… Cadê os cartões, os cupõezinhos? Saíram do bolso. Perdi na neve. Como eu ia achar? Não dava. Eu tentei, mas não achei.” “Meus camaradas, eu nasci assim, eu cresci assim”, diz a canção “Modinha para Gabriela”, de Dorival Caymmi, feita para a abertura da novela baseada no romance homônimo de Jorge Amado. A música poderia muito bem se chamar “Modinha para Klara”. A educação 58


soviética e a Segunda Guerra Mundial fizeram dela uma criança que nasceu e cresceu assim: desconfiada. “Durante a guerra, minha mãe trabalhava saindo cedo e voltando à meia-noite. Eu não dormia. Eu sentia medo pela minha mãe. Eu ficava na janela porque o instituto estava a meio quilômetro, e ficava naqueles barrancos e campos brancos. Então, eu sempre esperava a minha mãe chegar. Enquanto ela não chegava, eu não dormia. Como tinha muita ladroagem e bandidos assaltavam gente, eu fantasiava enquanto ela não chegava, pensando que alguém podia imitar a voz dela e tentar entrar. E quando ela chegava, eu perguntava: ‘em que ano você nasceu?’. Minha mãe achava que eu tinha enlouquecido.” O exército alemão entrou em confronto perto de Moscou entre junho de 1941 e janeiro de 1942. Os nazistas queriam tomar o local como ponto estratégico. O episódio ficou conhecido como a Batalha de Moscou. Neste ponto da história, faz-se necessário pedir licença para Amado e usar o termo machadiano “olhos de ressaca” para expressar o azul celeste dos olhos de Klara, nos quais era possível enxergar o medo de uma menina de 7 anos diante da guerra. “As escolas, quando eles [os alemães] chegaram perto de Moscou, foram evacuadas. A escola foi mandada para uma aldeia, a alguns quilômetros de Moscou. E, assim, eu fiquei dormindo lá, a gente ocupou a escola, não tinha ducha. Dormíamos na escola. Habitávamos a escola. Aí, o que aconteceu? Eu fiquei cheia de piolho, porque não tínhamos como tomar banho. De dia, quando eu estava na carteira da sala de aula, eu via os piolhos caírem no meu caderno branco e eu os matava. Havia meses que eu não tomava banho.” A ideia popular de “baixinho valente” se confirma com Stálin. Apesar de ter 1,53 m de altura, ele não pediu “por favor” para os donos de propriedades rurais quando 59


a URSS passou a sofrer uma crise com a falta de alimentos. A solução foi obrigar os fazendeiros a criar colcozes, espécies de fazendas rurais coletivas, para acabar com a fome. O processo aconteceu entre 1929 e 1931 e, muitas vezes, se utilizava o exército soviético para que o colcoz entregasse à força parte da sua produção para a URSS. Mesmo assim, para fugir do exército nazista em Moscou, a mãe de Klara se mudou com a garota da escola para uma aldeia onde existiam diversos colcozes. “Tinha uma casa que deram para ela morar, estava vazia, desabitada, não sei o porquê. Não tinha móveis, não tinha nada, só tinha um banco perto das janelas... e tinha a estufa, aquela estufa russa grande. Então, a gente morava lá. A minha avó já estava doente. A gente sentia frio, não tínhamos direito de receber o que os colcozes recebiam: lenha, leite e outros produtos. Os colcozianos detestavam os moscovitas porque os colcozes eram roubados pela capital: eles tinham ódio. A minha mãe e eu saíamos de noite, quando todas as luzes se apagavam. A casa que nos deram ficava em uma estrada de barro, perto da floresta. A gente ia até a floresta e pegava galho seco, trazia para casa e, aí, que a gente acendia o forno. De noite. Para ninguém ver que a gente tinha conseguido lenha.” Para alguns, os baralhos surgiram na China nos anos 1300. Para outros, foram criados na Itália no mesmo período. Na Rússia, assim como na Bahia, o dom da previsão também era apreciado na aldeia em tempos de guerra. A mãe de Klara sabia ler cartas. “A minha mãe conseguiu ganhar a confiança das pessoas lá, porque, uma vez, uma mulher reclamou: ‘Meu marido não me escreve, eu não sei se ele está morto, se não está... não sei qual a situação dele no front’, e minha mãe abriu as cartas e disse: ‘Olha, as cartas dizem que logo você vai receber notícias dele. Ele está vivo, sim’. E ela realmente recebeu. Todo mundo 60


começou a querer que minha mãe abrisse as cartas e começaram a trazer [como pagamento] leite, ou frango... às vezes, já assado.” A entrevistada sempre fica feliz quando fala da mãe. Isso faz com que se lembre com carinho de como a mulher tinha espaço na União Soviética. “Era tratada como gente. Minha mãe, por exemplo... cresceu na aldeia e já estava na escola primária aos quatro anos. Minha mãe era ótima em matemática e, quando terminou a escola primária, a professora a levou para a cidade e a colocou no melhor colégio de São Petersburgo, de Moscou, não me lembro. Depois, ela ingressou na faculdade jurídica. Ela era a base e todo o progresso da família.” Com mais uma similaridade com a Gabriela de Jorge Amado, Klara morou no Nordeste, mas no Nordeste da Europa: a Alemanha. Mais especificamente, no lado comunista do muro, na Alemanha Oriental. “Minha mãe era jurista da Academia de Ciências, e meu pai era da Central de Uniões Profissionais. Então, eles ocupavam postos altos. Depois que a guerra terminou, precisavam de um jurista e um economista para cuidar das informações na Alemanha... e tinha que ser um casal. Então, eles foram mandados para lá. Fomos para a Alemanha e moramos em Berlim, no setor soviético.” A alma de tradutora de Klara transparece quando ela confessa que aprendeu alemão facilmente aos 9 anos. Como viajante do breve século XX, complementa com uma recordação: “Meu pai... ele lutou na guerra. Era tanquista e dirigia o carro do serviço. Ele dirigia muito mal, não sabia manejar. Ele entrou na zona ocidental e foi parado. Foi um escândalo internacional para ele. Depois disso, ele foi enviado para Moscou…”. ***

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Na juventude, Klara teve sua experiência no Komsomol, a organização da juventude do Partido Comunista. “Tinha que ser, senão você era visto como suspeito. Inclusive, fui escolhida para o Comitê do Komsomol.” Com a mesma consciência de gênero e lugar da mulher que a personagem literária que estabelecemos o comparativo desde o início do texto, lembrou de um caso que precisou julgar no Komsomol. “Uma moça na faculdade, que era muito bonita, foi acusada de ter um amante e seria expulsa do partido. Ela me explicou que o marido era cruel. Ela tinha um filho e uma pessoa que amava e, às vezes, tinha que faltar na faculdade para ficar com a criança. Eu fiquei com medo de votar contra [a sua expulsão], mas não queria votar a favor. Então, me abstive. Eu e uma amiga minha. Aprovaram a expulsão dela no Komsomol da faculdade, mas, no Komsomol da região, não aceitaram, não aprovaram. Se ela tinha um marido psicótico e tinha um amante, a vida era dela. É um exemplo muito cruel, mas demonstra como as pessoas dependiam umas das outras, do que iam pensar delas.” Hoje, a ex-pioneira tem suas críticas à Revolução Russa. “Eu não estava viva naquela época ainda. Ah, eu acho que… foi uma desgraça aquele socialismo comunista. Muitas mortes, campos de concentração… Com a perestroika, as coisas mudaram, lógico. Mas você tinha medo de tudo, de pensar, de falar… Passou, quando foi? Quando Stálin morreu. Bom, com a perestroika melhorou. Foi Gorbatchóv que fez… Aliás, a Raíssa, a mulher dele. A mulher do Gorbatchóv. Foi ela. Ela que queria o capitalismo. Era uma mulher grosseira, gananciosa.” Assim, o Brasil finalmente entra na história. “Eles, [Gorbatchóv e Raíssa], estiveram aqui. Eu trabalhei com eles como intérprete. Ela era muito prática, gananciosa, mal-educada. Por exemplo, às três da madrugada, ela 62


ligava para a administração do hotel e mandava que fizessem torta de chocolate para ela naquela hora... às três da madrugada! Ou então alguém vinha conversar com ela sobre essa mudança, sobre a perestroika. O cara queria perguntar qualquer coisa e ela não deixou… Eu falei: ‘Raíssa, ele quer fazer uma pergunta’ e ela respondeu: ‘Quando eu falo, ninguém mais fala’. Era grosseira. Quando ela morreu, eu mandei para o Gorbatchóv um telegrama, um e-mail, com minhas condolências. Ela morreu de câncer. Acho que era da maldade que ela tinha.” *** Klara se casou com Octávio no consulado do Brasil na Rússia. Viveram oito anos na União Soviética e vieram para o Brasil em 1968, com dois filhos, um de 2 e outro de 4 anos. O contato com o capitalismo não foi um susto para a tradutora. “Quando a gente chegou, aquele navio, italiano, branco, fantástico. Foi nesse navio. Lá que eu me apaixonei pela Coca-Cola. Porque a Coca-Cola era famosa [na União Soviética], mas não tínhamos. Então, o Octávio, de repente, viu que estavam vendendo Coca-Cola, ele pegou, trouxe para mim e disse: ‘Olha, experimenta’. Foi paixão ao primeiro gole. Sou viciada. A Coca-Cola vicia mesmo.” Após alguns anos, ela trouxe a irmã e a mãe para morarem no país tropical. A mãe nunca acreditou que Stálin era responsável pelos gulags e morreu com saudade da Rússia. Klara não perdeu o hábito de anedotas dos russos. “Eu tenho bisnetos. Pedro e Nicolau. São os imperadores russos…”, ela ri, enquanto compara o nome das crianças com o nome dos imperadores czaristas. Ela viveu com Octávio na casa dos sogros e chegou a alugar alguns locais até ter dinheiro para comprar a casa em que mora até hoje na zona oeste de São Paulo. 63


Octávio Araújo recebeu influências dos pintores europeus e passou a ser classificado como surrealista. Expôs no Masp em 1972. Quando voltou da Rússia, passou a pintar a figura da mulher. Um desses quadros assistia a nossa conversa na sala. Nele, uma mulher quase nua pisava em um livro, que era mantido aberto pelo peso de uma ampulheta. Ao fundo, o cenário era de uma natureza mais russa do que baiana. “Ele estava vendendo bem, estava tendo sucesso, então deu para viver normalmente. Agora, ninguém mais se interessa por arte”, lamentou. Octávio ficou doente, fraturou a perna, que depois gangrenou. Faleceu em junho de 2015 por complicações de uma infecção urinária. Klara, que trabalhou como tradutora de clássicos russos para grandes editoras brasileiras, sentada em frente a um samovar cor de prata, cem anos após Vladimir Ilych Ulyanov, ou apenas Lênin, realizar a Revolução Russa, analisa o cenário capitalista que a cultura vivencia. “Isso é rude. Ganância. Agora, todo mundo só pensa em dinheiro e procura a área mais fácil para ganhar mais. Essa área infelizmente não está ligada à cultura, ao ensino. É comércio.”

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NĂƒO VEIO A UTOPIA por Girrana Rodrigues



Um vaso sanguíneo se rompe na cabeça de José. “E agora, José?”, diria Carlos Drummond de Andrade. José cai da cama, se urina e é levado ao hospital. Quatro dias depois, o verso seria “seu ódio — e agora?”, pois, ao contrário do José de Drummond, José, Iosef em russo, o mais conhecido dos Josés na Rússia, Josef Stálin, morreu. Diferentemente dos versos do poeta mineiro, o povo não some. No enterro de José, uma multidão se empurra. Elena, uma menina moscovita de 12 anos, e Klara, sua irmã com 20 anos, seguram as mãos para não caírem no funeral. “Pelas ruas, você não tinha saída. Então, muita gente caía na rua. Morria. Foi um horror. Tinha a polícia, assim, que segurava as mãos e não abria para ninguém sair. Porque iam derrubar tudo. Não sei como... eu acho que a Klara me segurou com as mãos e nós nos olhamos com aqueles olhos de pavor… e um deles, de repente, [um policial] soltou e nós fomos embora.” 67


As pessoas sofreram pela morte de José. “Stálin, para nós, era Deus, pai, tudo. Era um sonho de vida. Ele que deu toda essa nossa vida, tão boa. E era boa mesmo. Gente, eu não sei como era nas outras cidades. A Rússia é muito grande. Em alguns lugares da Rússia poderia ser diferente, mas em Moscou e São Petersburgo, que se chamava Leningrado naquela época, a gente estudava de graça. A gente tinha livros por 50 centavos. Qualquer livro era baratíssimo. Você podia estudar o que queria, entrava na faculdade de graça e não precisava pagar. Ao contrário, eu recebia 400 dólares por mês. Recebia bolsa porque eu estudava bem”, contou Elena Nikitina, sentada na sua sala em São Paulo. Agora, aos 77 anos, ela já não defende José. *** A escritora Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Nobel de Literatura em 2015, conta no livro “O Fim do Homem Soviético” que a liberdade na Rússia morava na cozinha. “Na cozinha, onde por hábito continuavam a criticar o poder. Criticavam Iéltsin e Gorbatchóv. Iéltsin porque traíra a Rússia. E Gorbatchóv? Gorbatchóv porque traíra tudo.” Elena é da época em que as críticas ultrapassaram as paredes das copas. “A gente criticava e ninguém ia preso. Quem foi preso e perseguido era quem fazia alguma coisa contra. Mas era porque não dava mais para enviar para a cadeia, porque todo mundo falava e criticava abertamente. Isso, entre nós estudantes, quando eu estudava na faculdade, foi muito livre. A Klara, na juventude dela, viveu um pouco diferente, a repressão foi um pouco maior.” A adolescência de Elena data da década de 1950, quando, depois da morte de Stálin, Nikita Khruschóv vira secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética. Em um discurso para uma plateia de 1.500 delegados do partido, em fevereiro de 1956, Khruschóv critica Stálin. 68


Entre outras coisas, ele diz que o ex-líder da URSS executou 70% dos membros do Comitê Central e cometeu “expurgo” de pessoas inocentes. Elena define a situação política com uma anedota. “Uma menininha fica no colo da mamãe, querendo dormir, e ela não dorme. E a garota pergunta: — Mamãe, Lênin era bom? — Era bom, filha. Dorme. — Mamãe, e Stálin? Era bom? — Mas filha, tem que dormir. Era bom, era ótimo. — E Khruschóv? — Era bom. — E o Brêjniev? — Quando ele morrer, vamos saber — foi tudo isso, assim, um baú atrás do outro.” *** Um homem desce de um táxi em Moscou e toca a campainha do apartamento de Elena. Ele tem cabelos compridos e uma carta nas mãos. No Brasil, o futebol já foi usado em músicas para driblar a censura. Na canção “Geraldinos e Arquibaldos”, Gonzaguinha utiliza expressões do futebol para denunciar a repressão da ditadura. Gilberto Gil, em “Meio de Campo”, homenageia o jogador do Fluminense, Afonsinho, conhecido por lutar contra o regime militar. Na história de Elena, o futebol brasileiro também driblou a censura, mas dessa vez na União Soviética. Elena Nikitina é irmã de Klara Gourianova e, portanto, cunhada de Octávio Araújo. Octávio havia deixado a carta com um jogador da seleção brasileira. O jogador, que ninguém sabe o nome, passou a mensagem para um estudante brasileiro, o cabeludo misterioso, a fim de entregar para Elena. “A carta da minha irmã falava: ‘Vamos 69


juntar a família porque somos só nós. Venha para cá’. Eu li essa carta e ele falou que eu tinha 20 minutos. Eu tinha que, em 20 minutos, resolver a minha vida. Aí, eu escrevi na carta: ‘Eu vou’.” Elena lecionava artes na Universidade de Moscou e pediu licença para visitar o Brasil, mas foi surpreendida na volta. “Todo mundo olhava para mim porque pensava que eu tinha fugido. Naquela época, 1972, 1973, muita gente saía do país, fugia do país. Então começou aquela coisa. Todo mundo queria que eu saísse. E, assim, o meu chefe gostava muito [de mim]… A gente dava aula em par, sabe? Ele me ensinou a dar aula e tudo mais. Ele me defendia e um dia ele me chamou e falou: ‘Dona Elena, se a senhora não sair, então eu que vou’. Aí, eu falei: ‘Não, eu não quero problema para ninguém’. Eu já tinha resolvido que eu ia embora de qualquer maneira.” É na sede do KGB que Elena é chamada para explicar seus motivos para sair da União Soviética. O medo da censura ficou tão no passado que a entrevistada conta o episódio com uma anedota. “Um judeu está querendo sair da União Soviética e chamam ele para o KGB. Ele fala: ‘Poxa, eu tenho tio lá nos Estados Unidos. Ele é tão velhinho, tão doente. Ele precisa de mim. Eu tenho que cuidar dele’. Aí, o KGB fala: ‘Mas por que você não convida o seu tio para cá? Cuida dele aqui’. Aí, o judeu fala: ‘Não, vocês não entenderam. Ele não é louco, ele é doente’.” No depoimento, a declaração foi outra. “Eu falei que a gente ia juntar a família e, justo naquele ano, saiu uma lei nacional para poder juntar as famílias. Então, no fim, falamos e não tinha nada de assustador. Nós estávamos conversando muito tranquilos. ‘Então, vocês podem ir, mas lembrem-se de que, a qualquer momento, podem voltar’, mas eu sabia que a volta não existia, porque o apartamento não era nosso. Era do governo.” 70


Aos 36 anos, em 1976, Elena deixa a Rússia com sua mãe e seu filho de 4 anos, Vadim Nikitin. Ao contrário de Klara, que vem para o Brasil para ficar com o amor da sua vida, Elena deixa sua paixão na União Soviética. Trata-se do famoso ator Valetin Gaft, com quem ela tem um caso que resulta na criança. Cai o muro de Berlim, acontece o acidente de Tchernóbil, a União Soviética se dissolve e os três se reencontram em 2014 em um programa de auditório. *** Foi com as novelas da atriz Sônia Braga que Elena aprendeu português. “Eu ia pegando as palavras e, pela ação, dava para entender quem estava pegando quem e quem estava amando.” A adaptação no Brasil não foi difícil, Elena era a mais brasileira das moscovitas. Ainda na Rússia, ouvia discos de Caetano Veloso e Paulinho da Viola, que Octávio e Klara mandavam para ela. “Eu amava Ataulfo Alves. Eu dançava sem saber dançar porque naquela época não mostravam nada, como o Carnaval.”Apesar de ser uma imigrante, ela nunca se aproximou dos imigrantes que moravam nas colônias. “Quando eu não falava português e tinha uma conhecida que já morava aqui e falava português, ela me levou para a colônia russa. Em primeiro lugar, eu não sou religiosa. Eu sofri um preconceito tão forte. E eu não usava joias, nunca usei, não sou disso. E, aí, olharam para mim como se fosse um nada. Agora, já é a quarta ou quinta imigração, sei lá, mas, naquela época, era a terceira imigração. E tinha aqueles velhos da primeira, da pós-revolução. Depois, aqueles que vieram depois da guerra e eu. Eu? Da União Soviética? Imagina. ‘Ela é um lixo.’ Eu senti tanto ódio, tanto preconceito, que eu falei: ‘Não, eu vim para cá conscientemente para sempre e 71


eu não vou me fechar na colônia russa porque são russos. De jeito nenhum’.” A educação soviética ajudou Elena no Brasil. “Quando passou um ano nessa aprendizagem de ver novela, eu comecei a dar aula. Eu aluguei a casa e abri aulas de pintura e, naquela época, tinha muita sede de pessoas que queriam um ensinamento forte, base forte, e a gente lá na União Soviética tinha isso. Na Rússia, o estudo é muito, muito rígido. Então, você tem que aprender a base. Depois, você pode aprender o que quiser.” As cores do Brasil tropical, bem narrado por Gonçalves Dias, ganharam as telas de Elena. “Quando eu estudava lá na Rússia, a gente queria algo além dessa base, a gente amava Picasso, amava essas coisas. Edgar Degas, nossa, que coisa maravilhosa! Queria pintar assim. Quando eu cheguei aqui... a minha mudança foi muito longa. Porque não é tão fácil quebrar tudo e, de repente, virar outra coisa. Então, eu fiquei muito tempo nas cores mais europeias e agora estou descobrindo que ‘tinha medo’ de azul, por exemplo. Antes tudo tinha que ser daquela cor porque a gente estudava toda aquela história de arte, tudo meio marrom, meio escuro.” *** É setembro de 2014, no palco do programa sensacionalista Segodnya Vecherom, em frente a uma plateia ansiosa por conflitos, Elena e seu filho reencontram Valentin Gaft. Ambos aceitaram o convite de um canal russo para rever a antiga paixão de Elena e o pai de Vadim, já que o caso do filho “bastardo” se tornou conhecido pela imprensa russa só naquele ano. “Eu fui muito sincera. Falei o que de fato sentia por ele e sinto agora também, porque eu criei o filho dele. Como é que eu posso odiar ele? Ele me pediu perdão.” 72


Valentin Gaft é um dos mais famosos atores da Rússia. O caso ganhou repercussão no Brasil em uma coluna de José Miguel Wisnik, de 6 de dezembro de 2014. O autor comparou a fama do ator russo a do italiano Marcello Mastroianni. Com tamanho reconhecimento, o programa fez com que os dois ficassem famosos na Rússia. “Eu não esperava que alguém me parasse na rua: de repente, vem um casal na minha frente e uma mulher me sorri. Eu falei: ‘Meu Deus, ela me conhece, eu devo ter estudado com ela na escola. Ai, como é o nome dela? Eu não me lembro’. Aí, não, ela me abraçou e falou: ‘Elena, mas você é linda. Linda, maravilhosa. Como você falava bem [no programa]’”, lembrou Elena. Com a propriedade de quem quase foi pisoteada no enterro de Stálin e viveu para reencontrar um antigo amor em uma Rússia livre da censura — mas não do sensacionalismo nos meios de comunicação — Elena responde a mesma pergunta de José: “E agora?” E a Revolução Russa? “Foi a grande utopia. Eu já não acredito. Eu não tenho essa utopia mais. Quando eu cheguei aqui, eu já me via desacreditada. A gente criticava e via o que estava acontecendo. Quando eu fiquei aqui sabendo que a União Soviética caiu, eu levei um choque tão grande. Eu achava que com tudo de errado que tinha lá, isso tinha vindo para ficar e se transformar em alguma coisa boa. Para mim, aquilo não podia acabar. Nunca acabar. Nunca. E acabou. Quando começou essa onda de Lula, eu votei no Lula. Eu, de repente, falei: ‘Quem sabe? Vamos, no Brasil’, de repente, alguma coisa aconteceu. Aí, depois... é sempre um desencanto. Você acha que a décima vez eu vou acreditar em alguém? Não vou.” “Não veio a utopia”, diria Drummond.

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CONFIDÊNCIA DO MOSCOVITA por Caíque Alencar



Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. (Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo, trecho do poema “Confidência do Itabirano”)

Alguns anos ele viveu não em Itabira do Mato Dentro, no interior de Minas Gerais, mas em Moscou. Nem por isso é de ferro, como a cortina que delineou a zona de influência da antiga União Soviética durante a Guerra Fria, ou carrega a característica de um russo bruto em sua genética. Assim como Carlos Drummond de Andrade, Vadim Nikitin tem a herança do minério em sua vida, mas é triste e orgulhoso por um motivo diferente. A semelhança entre os dois fica evidente logo que as primeiras palavras saem da boca de Vadim. A diferença, no entanto, se mostra mais forte quando o ator e diretor de teatro fala sobre a Revolução Russa. — O Drummond foi um grande receptor da Revolução Russa no Brasil. Ele a recebeu primeiro de uma maneira um pouco eufórica, mineiramente eufórica. Ia devagar. Ele tem, na recepção da Revolução Russa no 77


Brasil, que é o nosso caso, uma melancolia. E é engraçada essa melancolia, porque a gente espera do Brasil uma Revolução Russa brasileira. Isso não é coisa de russo. Isso é coisa de todos nós. A gente espera isso. Espera com todas as forças possíveis e imagináveis e isso não acontece. A gente queria a revolução e queria que um super-herói vencesse. Acontece que, para Vadim, foi o reverso da medalha que se mostrou como resultado do sentimento utópico que ele tinha de uma sociedade melhor. A impressão inicial era que as mudanças após o fim do império czarista deram sinais de desenvolvimento. Porém, esse estado de bem-estar, para a frustração de Vadim, foi efêmero, tinha prazo de validade curto, o que o leva a questionar o caráter revolucionário de um movimento que propunha ruptura de paradigmas. — A revolução verdadeira é a revolução permanente, é a revolução que toda hora está presente. Não é a revolução que volta, dá a volta no quarteirão e para no mesmo ponto. Não. Não adianta fazer uma revolução que você comemora em 25 de outubro de 2017. “Ah, sim, então aconteceu, [há] 100 anos”. Foi, mas, e aí? E adiante? Continua no mesmo? Um século inteiro para acabar onde? Em um capitalismo mais aferrado, no preconceito aos gays, às lésbicas, aos estrangeiros e a tudo que você pode imaginar. Ou seja, que revolução é essa? Aconteceu algum tipo de revolução? Ou foi simplesmente uma volta no quarteirão? *** Filho de pais soviéticos e ligado à arte desde os primeiros anos de vida, Vadim nasceu em Moscou em 1972, mas veio para o Brasil com a mãe, a avó e dois cachorros antes mesmo de completar quatro anos. Construíram o 78


reinício de suas vidas na periferia de Veleiros, na zona sul de São Paulo, antes de mudarem para um pequeno apartamento no centro da cidade, onde dividem espaço com centenas de livros. Hoje, ele vive somente com a mãe em meio a um labirinto de obras raras em prateleiras empoeiradas que deixariam qualquer espião do governo soviético de olhos arregalados, mas guarda memórias saudosistas de quando a avó era viva. — Ela era stalinista. Era stalinista porque falava que tudo o que diziam sobre Stálin — aqueles horrores — era mentira. Só que aí é que a gente vê. Ela falava russo comigo, ela jogava xadrez comigo… O xadrez que eu jogo até hoje é por causa dela. O russo que eu falo é por causa dela. No que ela ficava comigo, me influenciava não só por meio da língua, mas como pessoa. Ela era uma russa que não conseguia sair da sua Rússia. E, aí, foi uma grande impregnação. A babushka [avó em russo] me envenenou de Rússia mais do que minha mãe até. Eu é que envenenei minha mãe de Brasil. A forte ligação com a arte foi causada principalmente pela influência da mãe artista plástica e da avó. Além disso, o seu tio e pintor brasileiro Octávio Araújo, a quem ele considera verdadeiramente seu pai, despertou ainda mais o interesse de Vadim pela arte e o fez entender a luta de classes. — Ele era preto, filho de baianos. Então, foi o primeiro preto que eu vi na minha vida, e, aí, eu entendi o que é luta de classes. Quer dizer, você entender o racismo é entender um pouco a luta de classes. Foi uma coisa louca, porque ele foi muito rigoroso comigo como pai e ele estava sempre feliz em me ver. É com essas influências artísticas e os anos vividos em terra tupiniquim, fundidos como em um manifesto 79


antropofágico ocorrido em suas entranhas, que o moscovita analisa um dos principais marcos históricos do século XX, sobretudo como um movimento artístico. — A Revolução Russa foi uma revolução artística. Foi essa tentativa de mexer com o lado social e, ao mesmo tempo, mexer com as estruturas artísticas e comportamentais. A Revolução Russa permanece reverberando no mundo nesse sentido. Não como ideologia, porque a ideologia eu acho que já se transformou em muitas outras coisas. Ela já partiu para um outro lado. Como ideologia original, ela já não vale. Ao meu ver, ela vale como instrumentadora de uma série de estruturas artísticas comportamentais e sociais. A Pagu, quando foi para a União Soviética, falou que o ideal é o retrato de uma época: “O ideal ruiu, na Rússia, diante da infância miserável das sarjetas, os pés descalços e os olhos agudos de fome”. Parece o retrato que a minha avó fez, só que a Pagu falou isso da União Soviética, e minha avó falou do Brasil. Como reflexo desse movimento transformador do ponto de vista artístico, Vadim cita vários nomes que simbolizam a faceta cultural da Revolução Russa. No Brasil, além de Patrícia Galvão, a Pagu, ele cita Oswald de Andrade e Graciliano Ramos. Na Rússia, dá o exemplo do teatrólogo Vladimir Maiakovski. — Todos estes artistas, apesar de serem conhecidos por seus fortes engajamentos, sucumbiram à morte ou à tristeza causada por uma revolução fracassada. Ela se transformou em arte. Ela não é exatamente a verdadeira revolução, é artística. Aqueles artistas sofrendo tudo aquilo que eles sofreram, se suicidando um atrás do outro: não teriam produzido tudo aquilo se não fosse a revolução. A revolução em si, eu acho que foi isso. Uma espécie de mito. E, como diz o Miceli, um mito de transformar a ilusão em estrutura. Ou seja, você tem uma grande ilusão 80


que você transforma em realidade, porque precisa disso. Como isso não se transforma em realidade, você transforma em utopia. Algo que não está em lugar nenhum, mas está em algum lugar.

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MONÓLOGO 2: SOBRE COMUNISMO E SANGUE por Caíque Alencar



Zlata Victorovna Hvanov, 75 anos Dentista aposentada e cuidadora da Igreja Ortodoxa São Nicolau

“Meus pais se conheceram em Harbin. Porque, até lá, já tinha população bem maior. Meu pai nasceu em 1915, a Revolução foi em 1917, mais tarde. Então, começou a forçar a fronteira e tudo mais. Harbin já existia lá, mas porque, antes disso, o pessoal já forçava e construiu essa cidadezinha. Minha mãe era cinco anos mais nova que o meu pai. Ela nasceu em 1920, depois da revolução. Ela era criança, e meu tio, que é o irmão dela, nasceu na época em que eles estavam se retirando, no meio do acampamento... porque a minha avó acompanhava o meu avô, que era coronel do Exército Branco. Ele estava perdendo, perdendo, perdendo até que chegou num ponto em que Harbin já não tinha mais exército nenhum. Eles viveram uma época difícil porque eles só sabiam ser militares. Passaram a ser soviéticos. É aquele tal negócio: ontem, você era chinês; amanhã, você é russo. 85


Eu nasci em 1943. Em 1950, eu saí de Harbin e fui para Tientsin e, em 1957, nós viemos para o Brasil. Fiquei em Harbin até os sete anos, mais ou menos. Quando eu terminei o primeiro ano. Depois, a gente foi para Tientsin e ficamos mais sete anos lá. É pertinho de Pequim. De Tientsin para Pequim, são duas horas de carro. Nós saímos simplesmente porque o regime comunista… ninguém mais queria ficar em Harbin. Porque tinha ocupação japonesa lá na época, na época da Segunda Guerra. Se eles ficassem somente na Manchúria, que era um pedaço da China... mas eles queriam avançar, avançar, avançar. Nisso, a Segunda Guerra foi acabando. No que o exército soviético vinha libertando todo mundo, ia passar na China... Os japoneses se mandaram rapidinho. Foi assim, aos trancos e barrancos. Inclusive, largaram algumas esposas, os generais… eles ficaram sabendo antes, lógico! Na guerra, você sabe como é. Era tudo tec, tec, tec, tec [faz mímica de telégrafo]. Em 1945, acabou a guerra. Eu fui para a escola em 1950. Acabou a guerra, mas estava com o regime soviético. Veio o exército soviético, depois eles só libertaram os irmãos chineses. Libertaram não sei de quê, porque saíram com bagagens de lá. Libertaram de bens. Meu pai é dentista, tinha consultório dentro de casa. Então, aí, o que acontece, chegou uma vez um soldado soviético: ‘Ah, eu quero por um dente de ouro aqui na frente’. ‘Mas o dente está saudável.’ ‘Não, mas é uma lembrança.’ ‘Eu não vou descascar o seu dente só porque…’ Naquela época, coroa era estampada, não era fundida. Mas, mesmo assim, poxa, você vai desgastar um dente bom para colocar… Olha a mentalidade do mocinho. Isso é glória? Dente de ouro é lembrança da China. Porque achava ouro, tirava o relógio, tirava o ouro do pessoal… Isso fazia. ‘Me 86


dá teu relógio.’ ‘Ah, mas... não.’ ‘Dá o relógio.’ Acabou. Casaco de pele? ‘Tira o casaco.’ Isso é o que existia. Infelizmente, o militar pediu, como falar não? Tudo bem. Um dia, chegou um cara com metralhadora, assim, e sentou na cadeira de dentista. Aí, meu pai: ‘O que eu vou fazer com esse negócio?’. ‘Se doer, eu te passo bala.’ ‘Tira essa porcaria que eu não vou te tratar desse jeito. Você está me atrapalhando.’ Pois bem. É porque, às vezes, quer mostrar o poder, mas não tem cabeça. Quando ele vê que realmente a coisa não vai funcionar do jeito que ele quer, que não fez o efeito de assustar a pessoa, então, graças a Deus… porque ele podia ter passado bala. Às vezes, passava, mas é que, com meu pai, não precisou. Os alemães também tinham bastante gente na China, mas era coisa do Hitler. Eles naturalmente apoiavam Hitler. Japão, Alemanha e Itália. Então, os japoneses largaram tudo porque os generais, tipo, maiorais, não sei o quê, podiam trazer as esposas. Eles largaram tudo e saíram correndo porque realmente a coisa estava feia, estava brava. Vocês não sabem o que era o exército soviético. O exército soviético… aquilo… não sobrava nada vivo. As mulheres, elas vão sendo estupradas, vão fazendo qualquer coisa assim. Então… Eles tinham em casa, assim, um vidro triturado… se tocasse a campainha, na época em que o exército soviético já tinha entrado na cidade, era mais fácil jogar o negócio pela janela na cabeça deles e sair fugindo, voando, porque senão acabavam com a sua vida. A cidade foi ocupada e distribuída aos maiorais. Quer dizer, os simplórios, os soldadinhos, estavam lá nos casebres. Mas, os maiorais, os tenentes, eles foram distribuídos nas casas. Na nossa casa, graças a Deus, não chegou ninguém. Mas tinha que aceitar. Ou hospeda, ou você simplesmente pode ir embora e a casa fica para eles. 87


Os japoneses não faziam tudo isso, mas eles faziam uma coisa assim quando estavam bêbados. Tinha, por exemplo, na China… existia isso na cidade de Harbin. Eu não lembro disso. É mais porque os meus pais falavam, era o que se escutava em casa. Depois da ocupação, em alguns lugares, por exemplo, os caçadores tinham medo de sair, isso independentemente da guerra. Se eles saíssem um pouco mais longe da cidade para caçar, não sei o quê, eles podiam ser sequestrados por um grupo de chineses que ocupavam. Uns chineses que, vamos dizer assim, eram Robin Hood, alguma coisa assim meio rebelde. Eles ocupavam uma aldeia, quer dizer, eles simplesmente mandavam os povos pagarem. Os próprios chineses. Queriam dinheiro e um certo poder. Então, eles podiam sequestrar, tanto faz, fosse russo, chinês, qualquer outra coisa assim. Exigiam dinheiro e não sei o quê. Não havia nem polícia nem ninguém na época, antes da Segunda Guerra, que pudesse se livrar. Ninguém conseguia se libertar deles porque a própria aldeia estava com medo e não delatava. O que acontece é que, quando chegou o exército, eles falavam assim: ‘Se aqui nessa aldeia a gente escutar um tiro, nós vamos simplesmente exterminar a aldeia inteira’. Eles não acreditaram. Exterminaram uma, duas... exterminaram duas aldeias. Acabou a confusão porque, aí, o camponês parou de esconder. Era assim: ‘Se eu esconder, eu vou morrer. Então, eu prefiro delatar’. Acharam esse grupinho que era bem pequeno, mas duas aldeias pagaram com a vida. *** As pessoas começaram a pedir para ir para a Austrália, os russos, principalmente. Alguns judeus que tinham 88


parentes em Israel podiam ir para lá, mas o país não era tão procurado, porque era sistema de kibutz. Você ia ficar trabalhando, era vida simples. Todo mundo queria ir para a Terra do Nunca, Estados Unidos. Mas os Estados Unidos não recebiam ninguém dos países comunistas diretamente para eles. Você tinha que fazer trampolim em algum outro país e, depois de dois anos, podia pedir licença. Então, a gente pretendia vir junto para o Brasil. Conseguimos o visto… mas, para sair da China, tinha que ter permissão dos chineses. Depois que recebemos a permissão do Brasil para entrar, levou quatro anos para receber permissão [para sair da China]. Nisso, morreu a minha mãe. Ela teve uma intoxicação e foi parar no hospital soviético. Quando o hospital soviético soube que ela estava indo para o Brasil, eles deixaram ela lá, sem dar muito cuidado. Depois de três dias, ela não estava nem urinando. Ela vomitava, ficava com diarreia, mas não estava melhorando. Aí, eu fui conversar com os médicos chineses, que, por acaso, estudaram nos Estados Unidos. Um dos médicos olhou a prancheta dela e falou: ‘Mas como assim ela não está urinando há três dias? Como é que ninguém falou nada?’. Aí, eles correram para cá e falaram assim: ‘Não, a gente vai levar para o nosso hospital’. Levaram para o hospital, mas era um pouco tarde e não tinha muitos recursos. Hoje em dia, você põe soro em qualquer lugar. Naquela época, você conseguia colocar em uma veia aqui [mostra o braço], uma em uma perna e outra na outra perna. Aí, colocou em um braço e ela falou: ‘Ai, está doendo muito’. Tiraram. Colocaram no outro braço. Entupiu. Puseram na perna. Entupiu. Aí, não passava mais soro. Não passava mais o soro, voltou para o braço que estava doendo. Entupiu também. Então, ficou sem soro. 89


Olha, em praticamente uma semana, dez dias, ela morreu. Eu tinha 10 e ela tinha 33 anos. Mas isso foi descuido do hospital. Nós saímos da China em 1957. Em 1953, minha mãe faleceu. Foi no ano em que Stálin morreu. Eles falaram para a gente ficar esperando, até que, um dia, disseram que a gente podia ir embora. Nisso, o que eles esperavam? Que a gente gastasse todos os bens que tinha para depois sair de mãos vazias. Praticamente a maioria que saiu de lá foi assim. Uma que não podia levar dinheiro, ouro, essas coisas assim. Joias eram proibidas. Era cota mínima. Em dólares, você podia comprar lá o que daria para você fazer um lanchinho. Era um lanche por pessoa ou então um almoço por pessoa. Era só isso que você podia levar em quantidade de dólares. Então, não adiantava nada. Você não podia levar nenhuma fortuna. Meu pai trabalhava com o consultório e chegou uma hora que não tinha mais população russa para atender. Porque pouquíssimas pessoas tratam os dentes. Aí, ele foi obrigado a sair. ‘Mas eu não tenho mais trabalho, como é que eu fico?’ ‘Ah, então o senhor vai trabalhar no hospital chinês.’ Não era aquela maravilha, mas ele podia sustentar a família. *** Quem não tinha parente nenhum aqui no Brasil, em São Paulo… Primeiro, o navio atracava em Santos, aí, fazia não sei o quê lá, via a papelada. Se o navio atracou nove horas da manhã, você saía quatro, cinco horas da tarde porque vinham as autoridades e verificavam os documentos. Aí, depois de Santos, quem não tinha parente tomava um trem para vir para São Paulo. Aqui em São Paulo, não sei se vocês conhecem, no Brás, a antiga hospedaria. É lá que a gente se hospedava, onde hoje é o Museu 90


da Imigração. Você tinha direito de ficar até 30 dias. Até arranjar emprego. Eu fiquei acho que dois ou três dias lá. *** Para aprender a falar qualquer língua, os meus pais... minha mãe, eu não sei se ela olhava muito, mas meu pai estudava, nos livrinhos de português, a minha tia-avó olhava, a minha tia olhava, meu irmão, de vez em quando, também olhava. A única preguiçosa era eu. Me puseram no internato, então não adiantava você ficar olhando no livrinho. Estava escrito lá: ‘O homem colocou dinheiro na algibeira’. O que é algibeira? Vocês usam a palavra algibeira? Era português de Portugal que eles aprendiam e não usavam a 2ª pessoa. Era ‘Eu’, ‘Você’, ‘Nós’ e ‘Eles’. ‘Vós’ não existia naquele livrinho. Eu não sabia o que era vírgula. Aprendi a falar com as freiras o que precisava, mas vírgula eu não... Quem falava de vírgula para mim? O professor olhou e falou: ‘Não, vírgula é esse aqui’. ‘Ah, isso não é vírgula, isso é comma. Em inglês, é comma.’ Eu fiquei cinco anos no internato. Até terminar o ginásio. Entrei com 14, saí com 19 anos. Aqui no Brasil, eu estudei odontologia na USP. Eu falei para o meu pai: ‘Ah, quero ser dentista’. ‘Não quer ser cabeleireira?.’ ‘Não.’ ‘Nem massagista?.’ ‘Não.’ ‘Mas eu não posso pagar os seus estudos.’ Então, para onde eu podia ir? Para a USP. Eu terminei o ginásio em 1962, depois trabalhei com as freiras. Depois, acho que fiquei dois anos sem fazer nada. Uma amiga minha falou: ‘Olha, você sabe que, para entrar para a faculdade, precisa fazer um cursinho? Cursinho custa caro, mas tem um lugar que dá bolsa de estudos’. Então, existia o cursinho do grêmio, que era sustentado pelo pessoal da USP mesmo. E eu fui lá e prestei 91


exame. Falaram assim: ‘Você foi aprovada, mas você não pode pagar alguma coisa?’. ‘Eu prestei exame para bolsa e eu vou pagar alguma coisa?’ ‘Ah, mas sabe como é que é. Um curso mais caro, para odontologia, tem umas experiências a mais que você gasta. Você não pode pagar nem um pouquinho?’ Eu falei: ‘É exatamente com esse pouquinho que eu vou ter que comprar um lanche porque eu saio do serviço às 16h30. Eu venho aqui, começo as aulas às 18h, 19h, mais ou menos. Eu tenho que ter condução a mais. Eu tenho que ter lanche a mais. Eu vou gastar mais roupa e sapato. Para isso, eu estou deixando esse restinho de dinheiro. Se vocês não podem me dar, tchau e benção. Eu vou procurar outro lugar’. ‘Não, não, não. Você pode fazer aqui 100%.’ Tudo bem, mas eu mostrei quem sou. A minha nota foi a mais alta no cursinho. E eles não gostavam porque eu falava mal dos comunistas. Eles faziam passeatas. Os estudantes, os meus professores, alunos da USP... eram todos vermelhinhos. Em junho de 1973, eu me formei. Eu já era monitora de um professor da faculdade e ele falou assim: ‘Olha, tem uma vaga aqui para contratação, mas você é estrangeira e eu não sei se pode’. Até então, eu era apátrida. Aí, ele falou assim: ‘Bom, eu não sei se é conveniente a senhora se naturalizar brasileira. Pode ser que vocês vão para os Estados Unidos’. Eu falei assim: ‘Não, não vou para os Estados Unidos, não. O Brasil me deu tudo. Eu sou profissional e agora posso ser contratada pela USP. Eu vou para os Estados Unidos? Não, eu vou ficar aqui mesmo’. Naturalizei. Sabe onde que pediram informação a meu respeito? Na Interpol. A Interpol fez uma pesquisa da minha vida, da China, dos meus pais e dos meus parentes. Assim que eu consegui minha naturalização, fui contratada na faculdade. 92


Um dia, o diretor me chamou e falou: ‘Seu salário foi cortado’. Eu perguntei o porquê. ‘Foi cortado porque você participou de movimento estudantil comunista.’ Eu falei assim: ‘Professor, eu fugi da China contra o comunismo, contra as escolas comunistas’. Mas eu já sofria essa perseguição de ser subversiva. Porque cheguei ao Brasil e vim de um país comunista. Naturalmente, é fácil para as pessoas julgarem, porque não entendem o que é sair de um país comunista por fugir ou sair de um país comunista para fazer propaganda. Essas são duas coisas diferentes. *** A Revolução Russa foi matança. Inclusive, traição contra a família do imperador. As más línguas têm essa coisa: ‘A imperatriz era amante dele. O czar tinha amante’. Isso é mentira, isso não existe. Outra coisa. Todas as pessoas em volta faziam um movimento para o czar não continuar. Era falso dizer que o povo estava sendo oprimido. Não estava, não. Quando existia alguma lista de condenação à morte, o imperador procurava fazer de tudo para explicar, queria saber e perdoava um monte de coisa. Eu acho que falta divulgação da realidade russa em português, nós temos muita coisa em russo. Bom, história russa. Nós tínhamos história, livro soviético de história, mas meus pais falavam: ‘Isso não é assim. Isso no livro é mentira. Você não precisa falar isso para ninguém, mas você sabe que isso é mentira. Você não pode falar nada para ninguém porque nós é que vamos pagar, porque, [para] quem é menor de idade, os pais é que pagam’. ‘O czar era inimigo do povo, um tirano’. Porque a gente tinha aula de russo, de literatura russa, mas pedaços 93


que não falavam nada… 50% dos livros didáticos eram propaganda comunista. Não existia nenhum livro nosso porque, assim, não se editava mais e alguns foram queimados, escondidos. Eu comecei a ter praticamente a história russa mesmo aqui no Brasil porque a gente podia importar dos Estados Unidos. Ah, a nossa correspondência que vinha para a China de outro país era aberta. Você não podia escrever nada. Você não podia… Na faculdade de odontologia, existia uma revista para os professores que estavam fazendo pós-graduação. Eles tinham que fazer levantamento bibliográfico de tudo que interessava. Às vezes, pediam para traduzir alguma coisa. Eu tinha vergonha, simplesmente vergonha de traduzir, porque, se um texto era desse tamanho, 50% era… ‘Porque no nosso país não tem mais czarismo, que o povo...’. Propaganda comunista [havia bastante], e de ciência era um tantinho assim. Eu falava que não ia traduzir aquilo. Na escola era igual. Inclusive, tinha, assim, por exemplo, criança que usava gravata vermelha. Gravata vermelha era para quem se dedicava mais, que ia às reuniões… eu nunca quis usar aquilo. Quem usava gravata vermelha não podia ir à igreja. Eu não sei como que Deus nos protegeu. Eles insistiam, mandavam até os alunos mais dos últimos anos para conversar com a pixotada. ‘Por que você não quer usar gravata vermelha? Por que seu pai não deixa?.’ Você tinha que delatar seu pai e sua mãe para não ser preso, mas como era na China e não na Rússia diretamente… Na Rússia, você teria que fuzilar. Só não podia dedurar a mãe, mas o pai podia. Você ganhava até medalha para o pai ser fuzilado. Porque ele era inimigo do povo e você dedurou. Isso era ideia comunista.” 94


MONÓLOGO 3: SOBRE ESTAR E (NÃO) PERTENCER por Giovana Alves



Daniela Mountian, 40 anos, descendente de moldávios Formada em História e fundadora de uma editora de literatura do leste europeu

“Tanto o meu pai quanto a minha mãe são de Chisinau [se pronuncia Kishinev]. Meus avós também. Na verdade, toda a família. O curioso é que esse é o jeito russo de falar o nome da capital da Moldávia, que foi como eu aprendi em casa, mas hoje se prefere falar em romeno. Como minha família teve educação soviética, só falam russo. Eles não falam o moldávio — que seria o romeno — e, por isso, é difícil definir o que eles são mesmo. Hoje, eles já seriam uma coisa diferente de quando saíram da União Soviética. Essa questão da identidade que eu acho interessante, porque acontece isso. Uma parcela da população das ex-repúblicas soviéticas é de origem russa, mas outra parcela, não. Então, eles têm as suas questões. Meus pais são de uma migração posterior à Segunda Guerra Mundial. Eles vieram para o Brasil em 1972 porque um tio-avô vivia aqui. Naquela época, existia uma brecha na lei que, se você tivesse um familiar fora da União 97


Soviética, poderia sair, mas perderia o passaporte. Então, eles eram jovens, minha mãe estava grávida da minha irmã, a vida na Moldávia era super difícil. Eles vieram legalmente, mas saíram apátridas. Vieram em 1972 sem conhecer nada do Brasil, não havia muita informação. Eu nasci em 1976. A decisão de sair da Moldávia era uma busca por mais liberdade. Tudo era complicado. A Moldávia era uma periferia da União Soviética. Até hoje, não é uma grande capital, não é São Petersburgo, não é Moscou. Eles queriam começar a vida de uma forma mais livre. Aqui tinha a ditadura, mas eles nem tinham muitas informações, só sabiam o que meu tio-avô contava. Era realmente bem complicado na Moldávia. Meus próprios avós já nem queriam continuar lá, os quatro vieram para o Brasil também. Não vieram juntos, primeiro vieram meus avós maternos e, depois, no ano em que eu nasci, os paternos. Se para os meus pais, jovens, era complicado mudar de país, se adaptar a outra cultura, imagina para os meus avós que estavam com mais de 50 anos. Eles se adaptaram assim... É... Eles eram judeus, bem tímidos, então não ficavam muito na comunidade. Ficavam mais entre eles, a família ficava sempre junta. Tudo o que sei sobre a Moldávia é da memória dos meus pais, uma memória contraditória. Na verdade, a memória de quase todo mundo que migrou nas mesmas condições que eles é ambígua. Meio de amor e ódio. Então, assim, a Moldávia é um país muito pequeno, acho que é o país mais pobre da Europa hoje. Era um país agrário na época dos meus pais e continua sendo. Então, era essa a condição, além de uma censura muito forte. O fato de ser judeu, além de soviético, complicou tudo. Não sei se vocês sabem como funcionavam as nacio98


nalidades lá, mas você tinha que colocar no passaporte se era judeu. Era como se você fosse um cidadão de segunda. Tinha todo um contexto complexo para viver lá. O judeu representava outra nacionalidade. Não só o judeu, mas também o georgiano, ucraniano, bielorrusso. E, aí, obviamente, isso sedimentou a sociedade. Eu acho que nada foi pior na relação do judeu com a Rússia do que o czarismo. Todos os czares eram muito antissemitas. Por exemplo, havia cota contrária na escola, ou seja, só podia aceitar até um número ‘x’ de judeus. Também havia os assentamentos judeus, que foram criados acho que na época de Catarina II, para que eles não entrassem nas grandes cidades. A condição especial do judeu existia no sentido de que todos os czares tinham uma relação religiosa e divina com o poder, uma coisa muito forte. Então, havia a ideia de que o judeu era aquele que matou o Cristo. Essa é a questão. Muitos judeus tiveram que mudar de nome e fugir. Já em 1917, não por acaso, muitos dos revolucionários eram judeus. Muitas pessoas enxergaram o início da Revolução Russa como um momento de liberdade, em que o judeu já não era um cidadão de segunda categoria, era um cidadão de primeira. Ele era um cidadão como qualquer outro, era um grande revolucionário, a começar por Trótski e tantos outros. Então, foi o momento que muitos voltaram para a Rússia. Em 1932, as coisas começaram a se transformar e entrou de novo a questão de declarar nacionalidade no passaporte. E, a partir deste momento, acho que a coisa voltou a ficar menos interessante. Parece que Stálin estava tramando algo bem grave contra as pessoas de ascendência judia. A Rússia tem essa relação complexa, como nos impérios modernos, que você está em um país ao qual não 99


pertence, ou ao qual não se considera pertencente. Então, é complicado. Acho que a coisa do ‘ser’ soviético é um pouco isso, você estar no lugar e não ser do lugar, não pertencer ao lugar, é uma questão sempre complexa. Difícil lidar com essa identidade. Toda a minha família é judia, portanto, eu também sou, apesar de não ser religiosa e não ter tido educação religiosa. Acho que isso tem a ver com a União Soviética, porque quase ninguém de lá teve educação religiosa. Então, as pessoas não vão me identificar tanto enquanto judia, a não ser que eu me dedique mais à comunidade judaica no Brasil. Meu sobrenome também não é judeu, então as pessoas não identificam muito. Mas, na Rússia, mesmo na Europa, isso não é uma questão de você decidir. Você simplesmente é e ponto [final], entendeu? Você pode estar na União Soviética, mas seu pai e sua mãe são judeus, não tem essa coisa de considerar o nível de religiosidade, ou o nível de identificação com a cultura judaica. Essa é uma leitura moderna. O que aconteceu em 1917 trouxe a possibilidade de igualar a população, de não haver diferenças, distinções. É verdade que muitos judeus saíram da União Soviética, mas também há muitos que continuaram. É tudo muito curioso porque eles falavam russo, eles faziam parte do mesmo lugar, mas também não faziam. Historicamente, é sempre complexo, mas não deixa de ser interessante. Na própria cultura, figuras como Dostoiévski tinham uma precaução grande contra judeus em particular. Então, é tudo isso, mas sendo brasileira, eu não me espanto, porque a gente também vive as nossas contradições. Eu não tenho uma marca de amargor em relação a isso, porque primeiro a gente está falando de forma genérica, individual. São as impressões de um indivíduo. 100


Essa ideia de adotar a cultura com a qual você se identifica não existia na União Soviética. E não era só na União Soviética. Eu tinha um amigo russo judeu que dizia que tiravam o sarro dele na escola, essas coisas. Enfim, aí é um testemunho que eu não posso dar, porque eu não passei por nada disso no Brasil. Pelo contrário, eu era a branquinha de classe média. São percepções muito diferentes da vida, coisas que meus pais falavam e eu não entendia. Só comecei a entender quando eu fui para a Rússia e, também, por meio dos livros. Eu e meu pai temos uma editora voltada para a literatura do leste europeu. Foi assim que eu comecei a entender essas questões. Ainda assim, eu não consigo julgar objetivamente o que a minha família me passou da Revolução Russa. Primeiro, porque há uma diferença de geração entre eles. Meus avós eram do Partido Comunista. Meu pai falou que a primeira lembrança dele, da mãe chorando, foi do dia em que Stálin morreu. Então, os avós são de outra geração, uma geração da guerra, e em uma geração da guerra, o nacionalismo é muito forte. Já o meu pai tem uma posição bastante crítica em relação à União Soviética, sobretudo em relação a Stálin, mas ele vive a cultura russa ao mesmo tempo. Minha mãe tem uma relação um pouco mais tranquila, mas, de qualquer forma, os dois são críticos em relação ao regime soviético. O que eles viveram nos anos 1960 e 1970 foi bem diferente do início da Revolução Russa. O período de 1917 em si foi uma coisa e depois dos anos 1930 foi algo totalmente diferente, e meus pais pegaram quase o fim do processo, já uma certa decadência. Então, eles são de gerações diferentes, tiveram experiências muito diferentes, e as memórias e as lembranças também são completamente diferentes. Mas a relação 101


é intensa. Eles nunca se desapegaram, muito pelo contrário. É um contrassenso, mas tudo na União Soviética é contrassenso. Acho isso fascinante, essa ambiguidade presente. Essa dor, assim, porque é uma dor. Você ter que sair da sua terra natal. Eu já não sinto isso, a relação conflitada ficou mais com os meus pais. Minha relação com a Rússia é meio de amor mesmo, pela língua, pela cultura. Eu, meus pais, meus avós: são três relatos totalmente diferentes de uma mesma família ao longo do tempo. De um ponto de vista menos familiar e mais histórico, acho que o czarismo era um horror. Não havia possibilidade de aquilo continuar, precisava de uma mudança e eu acho que o início da revolução foi muito rico. Houve muitos movimentos interessantes, muitas cabeças interessantes. O problema maior foi a ascensão de Stálin, que, para mim, desvirtuou o que teria sido a revolução. Não só a pessoa de Stálin, mas toda a engrenagem que ele comandou, porque ele começou a matar os revolucionários, os russos, sem falar que comandou basicamente metade da União Soviética. Ele ficou quase 30 anos no poder. Houve muitos avanços na vanguarda soviética. A mulher podia casar e ‘descasar’ facilmente, podia ir ao hospital: ‘Vou tirar o meu filho’, não tinha uma questão moral envolvida. Houve muitos avanços na sociedade, realmente houve uma alfabetização massiva. Então, eu acho que não dá para negar isso tudo. Mas houve problemas, até porque a Rússia era um país que estava em desenvolvimento, não tinha nenhuma estrutura para abarcar tudo isso. A saúde pública era para todo mundo, mas em uma condição bem terrível. Até hoje, você encontra bastante problema se vai a um hospital público russo. Acho que é pior que aqui no Brasil. Eu sei porque vivi lá entre 2013 e 2014, mas também sei que as coisas mudaram muito por lá. 102


A Rússia está muito capitalista, um capitalismo selvagem. É uma Rússia nova e em transição ao mesmo tempo. Então, tem muitos hábitos, algumas burocracias, que ainda são soviéticas. É uma coisa e outra. Quem morou na União Soviética sente muita diferença de como era e como é hoje. Ainda é um momento de transição, e, mesmo assim, tudo é contraditório, porque o Putin é uma pessoa contraditória. Ele mesmo está buscando um símbolo mais czarista, ele mesmo condenou a revolução, sendo que ele mesmo veio da KGB. É tudo muito curioso. Simultaneamente, algumas coisas persistem. É uma população que lê muito, que absorve muita cultura. O desnível social não é tão grande quanto no Brasil. Isso está mudando, mas ainda é perceptível. Eu acho muito bela essa relação tão forte com a sua própria cultura. O que eu quero dizer é que há problemas, mas aqui também há, entendeu? O Brasil é um país negro e racista ao mesmo tempo. A Rússia também tem problemas, mas, como somos brasileiros, não nos surpreendemos tanto com esse tipo de coisa, porque convivemos com isso. Mesmo que a gente tenha outro passado e outras marcas. São diferentes, mas a gente também convive cotidianamente com problemas ambíguos. A diferença é que o russo tem o extremo nacionalismo e o brasileiro é quase o contrário. Eu estou falando de alguns, viu? Tudo que eu falo é genérico, porque eu tenho muitos amigos e familiares russos. Normalmente, eles rejeitam o que não é deles, o que não faz parte deles, enquanto nós, brasileiros, rejeitamos o que faz parte de nós. Mas acho que tem uma noção de colônia e império implícita nisso. Enquanto eu vivi na Rússia, estava uma guerra. Lá, está sempre em guerra. Na verdade, o Putin incentiva 103


isso, mexe com a cabeça das pessoas. Seja lá qual a posição que você tenha, mexe com o nacionalismo do russo. Talvez vocês não entendam, porque não temos essa experiência no Brasil, mas o russo tem esse lado muito forte. A gente tem orgulho de ser brasileiro, mas o russo tem um prazer... e é bonito isso. Têm os dois lados sempre. Talvez, eu não sei, estou falando de forma genérica, mas talvez seja um dos casos mais extremos que eu já vi de amor. Isso não é necessariamente ruim. Então, a minha impressão da nova Rússia é essa. É ambígua. Eu vejo problemas e eu também não tenho muito com o que comparar, porque não estive lá antes. Então, eu comparo com a memória dos meus pais, que não sei se é um bom comparativo.”

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MONÓLOGO 4: SOBRE EQUILÍBRIO IDEOLÓGICO por Caíque Alencar



Helena Stepanof, nascida na China, 66 anos Socióloga formada pela Universidade de São Paulo

“Eu concordo que foi preciso ter revolução na Rússia, senão ela ia se esfacelar. Não ia ser a Rússia inteira, com pátria grande. Iam ser pedaços. O pessoal que passou as dificuldades todas na Rússia são quase heróis porque eles seguraram a Rússia. Na Europa, se qualquer país estivesse na situação da Rússia, ia se esfacelar. Economicamente, tudo. O pessoal estava na pindaíba lá na Rússia porque o governo já tinha sido quebrado pela Primeira Guerra Mundial com a má regência do czar. Eles [os soviéticos] tiveram mão firme. Mas acho que, no fundo, eles pecaram contra o povo russo que sofreu demais porque, durante muito tempo, eles não abriram a Rússia. O poder seduz! E eles ficaram. Na escola soviética, em geral, eles exaltavam o trabalhador. Aí, foi crescendo a burguesia soviética. Minha mãe, por exemplo, era uma boa professora, mas ela não ganhava em dinheiro. Como ela estava na universidade 107


chinesa, eles davam o busto em gesso do Mao Tsé-Tung, então a gente tinha pilhas dessas coisas em casa. Ela ganhava estrelinhas. O russo, realmente, se seduzia com ideias, não com bens. Por isso que chegou uma época em que a Rússia abriu as portas. Por quê? Porque aquilo lá já não seduzia mais. ‘Eu trabalho, trabalho e ganho uma estrelinha?’ Depois da Revolução Russa, vieram muitos interesses estrangeiros. Porque, no fundo, eles queriam fazer uma Revolução Russa e dividir a Rússia. Só que o pessoal conseguiu segurar o território. Aí, eles se fecharam. Aliás, fecharam ele. Ninguém queria comercializar, e não faziam nada com a Rússia. Por isso que eu falei. Quando você vê partido político, é ruim. Morre gente, mas foi preciso. Só que eu achei que eles demoraram muito para abrir. Agora, eles ainda estão desfrutando, só que as pessoas falam: ‘Putin isso, Putin aquilo’, mas o russo é danado. Se não tiver um cara com o pau na mão, aquilo vira uma bandidagem só. Você não sabe qual é o risco. Por que a Sibéria é russa? Porque o pessoal russo foi deslocado para a Sibéria para colonizar. E tem uma cidade para onde foram todas as pessoas que eram contra o regime. Se você não concordava com Stálin, você ia em cana. Eles não queriam saber dos seus motivos porque eles estavam com medo de terem uma ruptura do regime dele. Então, você não podia matar um cara desses. Aí, eles mandavam para essa cidade que era quase um gulag. Era inverno durante seis meses do ano. Dois meses de verão e dois meses de outono. É uma cidade no meio do nada, lá na Sibéria. Aí, o pessoal se retirou da Rússia depois da revolução. Quem conseguiu pagar, que morava mais perto de Moscou, se moveu para a Europa. Quem não conseguiu, foi para o leste, que pegava menos. Era assim. 108


E tem muito russo que foi para fora da Rússia, principalmente para a França. Só que era russo branco, não era russo vermelho, que era comunista. Os que se retiraram, a maioria era pró-czar. Meus avós saíram da região do mar Cáspio. Eles são de origem cossaca e vieram através do [rio] Ussuri, na parte da fronteira com a Manchúria. Agora, assim, quando meu avô estava voltando da guerra, que eles foram destroçados, tinha que atravessar quase toda a Rússia até chegar lá na Manchúria. Do outro lado. Ele foi convocado para dispersar os bolcheviques que já estavam fazendo levantes. Então, eles convocaram todo o pelotão deles e deram armas e cavalos. Eles tinham que entrar nas cidades onde eram requisitados. Só que meu avô, além de estar destroçado e cansado, ficou ferido na guerra. Mas ele falou que não ia lutar contra o próprio irmão russo dele só porque ele era vermelho. Eu acho que ele levou muita paulada depois disso quando voltou. Eu tenho certeza que os bolcheviques vermelhos já tinham conquistado toda a Transiberiana e eles que ajudaram meu avô a se deslocar até a Manchúria. Ele foi ajudado e, depois disso, nunca teve vontade de voltar para a Rússia. Ele achava que não tem regime bom nem ruim. Tem pessoas. Ele acreditava nas pessoas. Quando chegou em 1932, começou a ter aquela propaganda para voltar para a Rússia, para a pátria. Naquela época, não se cogitava nem a Segunda Guerra Mundial, mas a Europa já estava em burburinho. Os parentes dos meus avós falavam: “Ah, vamos, porque lá eles estão prometendo uns lugares bons para morar”. Só que as primeiras levas que chegaram lá nas fronteiras tiveram tudo o que tinham confiscado. Tinha gado, comércio e, às vezes, tinha até pequenas indústrias. A população tinha bens e o Estado russo confiscou tudo. 109


Depois disso, meu avô nunca mais conseguiu se conectar com os parentes, com os primos e até com os irmãos. Passado bastante tempo, ele ficou sabendo que os adultos foram até eliminados por Stálin e que os meninos pequenos, adolescentes, foram para casas de infância e orfanatos. Meu avô nunca mais quis ir para lá. Aí, teve a invasão japonesa na Manchúria. Eles foram muito cruéis com os chineses. O Japão invadiu porque precisava de território. Era um celeiro para os japoneses, porque eles tinham uma área muito pequena. Só que meu avô tinha uma profissão estratégica. Ele era técnico da parte de moinhos. Então, se o moinho parasse, parava de fabricar alimento. E minha mãe era professora, então, com esse tipo de pessoal, eles [os japoneses] não mexeram. Tinha uma facção lá que era de russos brancos, e eles tinham aquela ilusão de que iam restaurar o Império Russo de novo. Isso foi perigoso, porque eles, os japoneses, abraçavam essa turma. E como a facção falava que os japoneses tinham imperador, eles [os japoneses] iam restaurar o regime velho também na Rússia. A facção tinha destacamentos que pegavam os jovens para treinar como se fosse um exército paramilitar. Isso piorou muito quando entrou Hitler. Muitos rapazes e moças foram seduzidos por isso. Naquela época, minha mãe falava que apareceu muito destacamento nazista e que eles tinham uma ajuda incrível da Europa. Esses jovens eram tratados a pão de ló. Eles tinham clubes, iates, festas... Hoje, se você falar para alguém que na Manchúria teve células nazistas, ninguém vai acreditar. Quando veio o destacamento soviético, essa turma foi destroçada. Tem muitos generais que eram russos, que ainda tinham aquela ideia do Império Russo do czar, que foram fuzilados. Além 110


disso, todas as pessoas que participaram, jovens, foram todos levados para o gulag lá na Rússia. Todos. *** Em 1955, eu entrei para a escola no primeiro ano. Entrei na escola soviética. Estava tudo muito destroçado. Então, vocês já podem imaginar gente chegando com belas coisas, com bens, enquanto a turma lá estava na pindaíba realmente. A escola russa era ótima, só que, quando chegava na sétima, oitava série, você era doutrinado, já começava a doutrinação. Eu era super simpática a vários partidos. Mas, assim, você tem que estar com o pé e a mente na mão. Você tem que estudar, ver quem são, porque, quando tem “x” de posição, você pode até participar, mandar, mas, se está lá embaixo, é usado por qualquer partido. Não importa. Na minha casa, era coisa de louco. A minha avó era czarista. Ela tinha o cantinho lá de santos e tinha a família do czar. Ela ia à igreja, onde falavam que os comunistas eram todos assassinos. Aí, quando eu chegava na escola, a primeira coisa que faziam era negar isso totalmente. Em vez de você rezar, como nas escolas católicas, lá era [cantado] o hino nacional. Eu não podia ser pioneira, porque a família tinha que negar a religião: minha avó era muito religiosa, e minha mãe não era do partido. Aí, eu ficava assim. Quando eu chegava em casa, a minha avó estava lá rezando para o czar e o meu avô estava mandando cartas. *** Hoje, tenho só um irmão, mas a minha família é toda misturada com brasileiros. Eu sou casada com um português 111


e falava que queria ter os meus filhos aqui para eles terem pátria. Eu era uma criança sem pátria porque a China não era a Rússia. A minha pátria era a União Soviética. Só que, no fim, eles retiraram a minha nacionalidade, e minha mãe não chegou a receber a dela porque ela não era do partido. A gente ficou meio clandestino e apelamos para a ONU. A gente já tinha alguns parentes aqui no Brasil, mas não era bem para cá que a gente viria. A gente ia para a Austrália. Só que lá, como era posse inglesa, você tinha que ter uma pessoa responsável. É uma pessoa para quem você deposita o dinheiro. Cada pessoa tinha que ter 50 mil dólares ou 20 mil dólares para não ser mendiga. Aí, viemos para o Brasil. Minha mãe falava assim, meio nostálgica: ‘Se a gente fosse para lá [Rússia], a gente ia passar aperto. Só que, mesmo assim, a gente ia sobreviver’. Era uma visão soviética.”

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AS SOMBRAS DE DUAS MARINAS por Caíque Alencar



Sem tino ou rumo — urso perdido — patas entre placas dançantes — onde humilhar-me ainda, por uns tempos — pior que antes? (Marina Tsvetáieva, Marina, trecho do poema Saudade)

Grandes tiras de látex adornadas com nióbio formam uma peça que pode ser usada como colar ou como enfeite na parede de uma casa — com a condição de que o morador seja sofisticado. Bonitas e sombrias, as joias expressam o pesar com que a designer de joias Marina Sheetikoff se recorda do período de sombras que sua família viveu durante a Revolução Russa. Filha de pais russos e nascida em 1961, quando eles já estavam no Brasil, Marina não sentiu na pele os problemas enfrentados por seus parentes. As memórias ainda vívidas dos pais, no entanto, sobreviveram ao tempo, estão presentes até hoje no imaginário dela e influenciam, inclusive, seu trabalho artesanal. Uma das peças criadas por Marina Sheetikoff é inspirada em um episódio marcante vivido pelos pais que ela tem mais vivo na mente, além de toda a mão de obra ter sido feita com base na cultura russa que a família fez 115


questão de manter. Inspirada nos versos de uma poetisa homônima a ela, a russa Marina Tsvetáieva, a designer eternizou a fuga dos pais do território alemão. — O trabalho se chama “Sombras na Noite” [e é inspirado] na história que minha mãe conta de quando eles estavam na Alemanha e foram avisados que tinham que fugir. Ela falou que eles fugiram e passaram uma noite na floresta. Aí, eu fiz um trabalho pensando nessa noite. O que é uma noite na floresta, os medos que você tem de uma noite na floresta? Eu peguei uns poemas da Marina Tsvetáieva e os poemas dela são na floresta. O russo é muito ligado à natureza. Conhecida por sua extensa obra poética e grande contribuição para a literatura russa, Marina Tsvetáieva se suicidou aos 48 anos após o início da Grande Guerra Patriótica, nome dado pelos soviéticos à Segunda Guerra Mundial. Mas, antes da morte, uma série de tragédias aconteceram na vida da poetisa. Depois da Revolução Russa, a poetisa exilou-se em Praga em 1922 e, em 1925, mudou-se para a França. Permaneceu lá até 1939, quando retornou para a União Soviética para se juntar ao marido Sergei Efron, que retornara para a Rússia, e a sua filha Ariadna. Naquele mesmo ano, durante o governo de Stálin, Sergei e Ariadna foram presos e, dois anos depois, o marido foi fuzilado. Em 1955, Ariadna foi reabilitada, mas a outra filha, Irina, foi entregue a um orfanato, onde morreu de fome. Assim como sua conterrânea, Marina Sheetikoff teve vários membros da família que sofreram os horrores dos expurgos de Stálin. — Hoje em dia, eu percebi que realmente a coisa era um terror. Era tudo generalizado, tudo era proibido. O irmão do meu avô foi preso, ficou dez anos no gulag. Todas as pessoas da Rússia tiveram alguma pessoa da família que 116


foi presa. Ele foi com 18 anos e se enquadra naqueles que não sabem porque foi, sabe? Ele sobreviveu, mas eu acho que dez anos preso dá para matar muita coisa. Então, ele não conseguia falar mal do partido de jeito nenhum. Tudo era bom, legal. Na verdade, era isso. A realidade era o acaso. *** Quando saíram da Rússia, durante a Segunda Guerra Mundial, os avós de Marina Sheetikoff fugiam do exército alemão. Eles haviam decidido que nenhum membro da família voltaria a passar pelo mesmo tipo de sofrimento que eles viveram durante a Revolução Russa. Do lado materno, Marina conta que a família abandonou o território russo quando a mãe dela tinha 10 anos. Até eles chegarem ao Brasil, foram necessários cinco anos de exílio, período em que milhares, não somente a família de Marina, migraram para países como Ucrânia, Austrália, China, Argentina e Colômbia. — Um dia eles estavam — acho que era em Kiev, não sei exatamente — e teve uma irmã da minha mãe que morreu pequenininha. Morreu bebê porque a mãe dela trabalhava. O bebê ficou doente e ela não podia [cuidar]. Se ficasse cuidando do bebê sem trabalhar, ela ia para a prisão. Ou ela trabalhava, ou ficava com o bebê e imediatamente ia presa. Então, ela foi trabalhar e, quando voltou, o bebê já estava morto. Durante esses cinco anos, o lado materno da família de Marina viveu como um grupo de retirantes fugindo de uma guerra. Pingando de país em país, viviam a realidade de uma das mais famosas obras de Candido Portinari, “Os Retirantes”, em um cenário típico do quadro “Guernica”, de Pablo Picasso. — Um dia, eles estavam morando em uma casa e, quando acordaram, tinha um acampamento de pesso117


as que estava indo embora, que dormiam no jardim da casa deles. Então, quando eles viram que essas pessoas que passavam a noite estavam indo embora, falaram: “Ah, vamos junto”. Eram pessoas fugindo. Tipo, larga tudo e vai. Eles foram desse jeito. A oportunidade de vir ao Brasil só surgiu quando o país estava no ápice de seu processo de industrialização. Precisando de mão de obra, os empresários brasileiros começaram a procurar por estrangeiros com escolaridade suficiente para exercer trabalhos manufaturados. Foi então que o avô de Marina embarcou para o porto de Santos e veio parar em São Caetano do Sul, no ABC paulista, para trabalhar onde seria o futuro império das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo. Já do lado materno da família, os antepassados de Marina participaram mais ativamente dos principais núcleos que protagonizaram a Revolução Russa. Enquanto o avô era membro da ala menchevique do Partido Socialista Revolucionário russo, sua futura esposa era de origem nobre e bastante próxima à família imperial. Eles se conheceram no Japão e, juntos, viajaram para Xangai, onde o pai de Marina nasceu. — Então, eles vieram para o Brasil de navio. Eles tinham uma ideia de ir para os Estados Unidos, mas acabaram ficando aqui. O diploma do meu pai não era aceito aqui. Ele era engenheiro, mas o diploma dele não era reconhecido. Então, ele foi morar no Canadá, mas, quando voltou para ver a família e conhecer a minha mãe, acabou ficando [no Brasil]. E foi assim que a gente ficou. *** Após cem anos do evento que marcou não só a vida de sua família, mas do mundo inteiro, Marina vê a Revo-

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lução Russa como um fato histórico importante, mas que não valeu o preço pago para a situação em que a Rússia se encontra hoje. — Para o mundo foi uma experiência, mas, para os russos, eu acho que foi uma tragédia. Eu sinto que foi um aniquilamento. Quando acabou o czarismo, naquele momento de transição em que eram os mencheviques e os bolcheviques, os mencheviques propunham um socialismo que se compara bem aos moldes [do que foi] a comunidade europeia. É que é uma coisa que deu certo, que dá certo. E o comunismo tinha uma ambição que passava por cima dos valores humanos. A revolução focou justamente no contrário, focou tudo no ideal do comunismo, custe o que custar. Então, eu acho que, para o povo, foi devastador mesmo. E como é que está a Rússia agora? Agora, os ultra milionários estão na Rússia. Se tivesse pelo menos sido: “Não, tudo bem, a gente sofreu, mas agora existe um equilíbrio, está todo mundo bem, não tem bilionário”. Se tivesse sobrado alguma coisa da essência bacana do socialismo, de uma coisa que é a sociedade sem classes… Isso é um sonho para a gente, ter uma sociedade sem classes. Eu, pelo menos, acho uma ideia, um princípio utópico. É um ideal maravilhoso!

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MONÓLOGO 5: SOBRE A VIDA HUMANA por Girrana Rodrigues



Svetlana Ruseishvili, 31 anos Socióloga russa e autora da tese “Ser russo em São Paulo: os imigrantes russos e a (re)formulação de identidade após a Revolução Bolchevique de 1917”

“Na adolescência, tinha uma época em que eu era punk, outra época em que eu era hippie. Para os punks, era muito na moda usar aqueles broches de metal com a cara de Lênin. Aqueles de verdade, da União Soviética, super bem feitinhos, muito bonitinhos. A gente pegava o Lênin e desenhava um moicano, sabe? Aí, ele virava um punk, era muito divertido. A gente andava cheio daqueles broches com Lênin. Era essa a nossa visão de revolução, Lênin punk! [solta gargalhadas]. Pena que eu não guardei... quem poderia imaginar que eu gostaria de ver tudo aquilo hoje? Lá era comum nomes como Dazdraperma, que é uma frase em russo, dazdrávstvuet pérvoe maia, e significa ‘Viva o primeiro de maio!’. Tinham pais que colocavam o nome do filho de trator! Por causa da industrialização, ou porque achavam uma criação legal, sei lá. É difícil separar a análise do que foi a Revolução Russa como descendente de pessoas que moraram lá e 123


como socióloga. Eu acho que agora já não dá para separar, porque a gente cria uma visão crítica das coisas... O ponto, realmente, muito positivo da revolução e de toda a experiência soviética foi a redução de desigualdades. Com certeza! A Rússia entrou na revolução um país absolutamente desigual e com 90% das pessoas na maior miséria do mundo, analfabetas. Já nos anos 1930, 1940, em poucas décadas, todo mundo sabia ler e escrever e era mais ou menos igual. Mais ou menos. Nunca foi possível alcançar nenhuma igualdade. Mas esse lapso entre os mais ricos e os mais pobres, acho que foi bastante reduzido, durante muitas décadas. Assim, quando o capitalismo chegou na Rússia, você viu, realmente, a diferença. Com o capitalismo, a distância entre os mais ricos e os mais pobres começou a crescer numa velocidade absurda. Hoje, poucas décadas depois do fim da União Soviética, é uma coisa triste... Agora, o que a gente não pode esquecer nunca é o preço que foi pago para isso acontecer. Qualquer família na Rússia vai ter as suas histórias bem macabras sobre o desaparecimento dos parentes. Isso, além de coisas que a gente começa a descobrir hoje: sobre os gulags, sobre a dimensão daquilo tudo. Todo mundo sabia, mas não sabia a dimensão gigantesca… *** Eu nasci na Geórgia, em 1986, em Batumi. É uma grande cidade portuária. Meus pais foram embora da Geórgia no começo dos anos 1990. Por causa do fim da União Soviética, a Geórgia virou um país independente. Chegou ao poder um presidente nacionalista. Minha família sempre foi russofônica e, por isso, foi tranquilo durante a União Soviética, mas, na perestroika, começaram a fechar escolas russas, proibiram o [idioma] russo nas universi124


dades. Por isso, as pessoas de origem russa, russofônicas, começaram a sair de lá. A Geórgia era um lugar muito diferente dentro da União Soviética. Como fala a minha mãe, os georgianos eram um povo, uma nação antiga, com a língua diferente, a cultura diferente, tudo diferente. Foram conquistados pelo Império Russo lá no começo do século XVIII, eles até se separaram do ex-Império Russo, mas os bolcheviques vieram e reconquistaram a Geórgia. A Geórgia aceitou a União Soviética, as regras do jogo, mas ninguém levava isso a sério. Pelo que minha mãe conta, todo mundo jogava esse jogo e estava tudo bem. A regra era essa: vamos fingir que somos soviéticos, comunistas, marxistas-leninistas, mas, na verdade, era bem mais leve que na Rússia. Inclusive os produtos. Era escassez total na União Soviética, nas grandes cidades. A prima da minha mãe sempre morou em São Petersburgo e adorava a Geórgia porque ela não tinha nada em São Petersburgo na infância. Ela ia para a Geórgia para passar férias e tinha de tudo! Laranjas! Lá, é o sul do país, e frutas eram uma coisa rara no norte. Ao mesmo tempo, não tinham outros produtos. A minha mãe conta que o pessoal ia de Moscou para São Petersburgo visitar a família e trazia malas de salsicha! De linguiça! Bizarro! [ri alto]. Meu pai era marinheiro e meu avô era capitão de um grande navio petroleiro. Meu avô conheceu o mundo inteiro porque ele viajava para a África, para a Ásia e para qualquer lugar. Ele trazia roupas que ninguém nunca viu. Era coisa muito chique! E a gente morava, assim, onde tinha lojas de marinheiros que aceitavam dólar. Só podiam entrar lá pessoas estrangeiras ou marinheiros. A minha lembrança de infância é a minha primeira Barbie [ri]. Primeira infância, porque eu morei nessa cidade acho que até uns 4 anos. A gente foi naquela loja de dólar e 125


compramos uma Barbie. Foi muito louco! Eu lembro até a rua! Fiquei andando pela rua de tanta felicidade, com aquela Barbie na mão. Cheguei em casa e minha avó falou assim: ‘Nossa, essa que é a famosa Bárbara? Mas tão magrinha!’ [entre risos]. Eu não sei se eu lembro da minha avó falando isso. Minha mãe me contou, sei lá... mas eu lembro da Barbie, da Barbie eu lembro muito bem! Na perestroika, já mais no finalzinho, minha mãe lembra de filas quilométricas. De ficar na fila o dia inteiro para pegar... nem sabia o que era para pegar! Você ficava lá. ‘A fila é para o que mesmo?’; ‘Ah, sei lá, lentilha em conserva.’; ‘Poxa, preciso de lentilha em conserva. Me dá uma caixa que amanhã não vai ter lentilha. Nunca mais vai ter lentilha. Vai que um dia eu precise de lentilha!’. O período da perestroika na Geórgia foi bem mais complicado. Foi um racionamento mais pesado, um desequilíbrio econômico. Pesou bastante nas periferias da União Soviética. Não sei como foi nas grandes cidades, nas capitais. Minha família foi para Moscou. Depois, a gente foi para Kiev. Foi lá que a gente se estabeleceu. Eu nasci no ano em que aconteceu Tchernóbil: 1986. A Geórgia é muito longe... mas o meu primo que nasceu em 1987, em Kiev, ganhou um passaporte de criança de Tchernóbil! Um documentinho que davam para as crianças que nasciam logo depois de Tchernóbil. Para pessoas que participaram diretamente ou indiretamente da catástrofe. Ele pegou porque ainda estava tudo contaminado. Tem aquela coisa da Rússia... com o documentinho você tinha um monte de descontos, vários benefícios. O pessoal fazia o quê? Arranjava. Comprava aquele documento para pegar benefícios! *** Eu vim para o Brasil no final de 2008 porque meu marido é brasileiro e a gente se conheceu em 2006. A gen126


te namorou à distância. Eu vinha para o Brasil e ele ia para a Rússia. No fim das contas, decidimos que ele não iria para a Rússia, e eu vim para cá. Quando meu filho tinha um pouco mais de um ano, eu ainda não falava bem português. Eu ficava com ele em casa, e, aí, meu marido falou: ‘Eu não consigo te ver em casa. Você já fez mestrado na França, é uma coisa tão legal. Por que você não faz o doutorado?’. Ele deu esse impulso e fui pensar o que podia fazer. O Brasil, para mim, era uma incógnita. Aí, eu conheci essa história sobre os imigrantes aqui na igreja, porque, desde que era criança, a minha família é frequentadora de igreja. Eu também não sabia que tinha tanta história sobre os russos aqui. Comecei a conhecer essas pessoas na igreja e achei super legal. Eu pesquisei e vi que ninguém tinha feito nada muito extenso. Apresentei o projeto e passei em segundo lugar no doutorado na USP. Eu tentei mostrar na tese... que o porquê de o discurso oficial da comunidade [ser do jeito que é], o que foi construído desde os anos 1930, era porque a imigração era branca, contrarrevolucionária. De repente, eu fui descobrindo lá nos livros do batismo, em algumas referências nos próprios jornais dos emigrados brancos. Eu cito lá algumas coisas [na tese], como: ‘Ah, eles querem mudar a nossa igreja do centro para o subúrbio.’; ‘O que esses bessarábios desempregados podem contribuir?’. Eu pensei: ‘Ah, bessarábios desempregados lá no subúrbio?’. Fui tentando ver e percebi que não era só aquilo... pessoas no centro, de classes urbanas médias. Tinham outras pessoas! Aí, descobri os bessarábios. Eu fui puxando o fio dos bessarábios. Peguei os dados no boletim de imigração, que tem dados estatísticos da chegada deles. Mas é muito mais difícil. Eu queria falar mais, achar mais referências sobre esses russos que apoiavam de alguma maneira o regime 127


comunista. Eu acho que a maior dificuldade é que eles se inseriam nas associações de classe e não nas nacionais, ou seja, criavam uma associação de trabalhadores eslavos. Aí, tinha poloneses, tchecos, lituanos, russos e judeus. Como puxar só os russos daquilo para a pesquisa? Não consegui fazer isso com o tempo [que eu tinha]. O que eu consegui, tentei colocar lá. Outra coisa que eu acho grave é que muita coisa foi queimada por causa da ditadura, por causa da opressão que eles sofriam. Tinham medo. Até... quem sabe as pessoas escreveram alguma coisa, mas queimaram tudo? Ou os filhos queimaram? Ou a pessoa morria e os familiares falavam: ‘Eu não tenho nada a ver com isso, melhor queimar!’. Então, não se acha quase nada sobre isso. *** Agora, tem essa questão de Igreja Ortodoxa na Rússia, que é bem complicada. O patriarca está se tornando o braço direito de Putin. Estão lavando cérebros dentro das igrejas, e é um cristianismo intolerante, machista, autoritário. É esse o rumo que está tomando a igreja e ninguém apoia isso. Está tendo propaganda dentro da igreja, que, em troca, recebe favores do Estado. Eu sempre fiz parte da igreja e não concordo com o cristianismo intolerante. Lá, eles são homofóbicos ao extremo. Fala sério! A igreja cristã não pode ter isso. Igreja é amor. Igreja homofóbica? Deus me ajude! Um diretor super famoso fez um filme sobre um caso de amor do último czar, Nicolau II. Antes de se casar, antes de virar imperador, ele tinha um caso com uma bailarina de origem polonesa. O que a igreja fez? Foi lá organizadamente em protestos. Queimavam carros, jogavam ovos nos cinemas que iam exibir esse filme. Isso é a Igreja Cristã? Eu acho que essa abertura [menos conservadora] terminou com Stálin. Stálin foi muito conservador. Então, 128


acho que a homofobia voltou com ele, o antissemitismo voltou com ele. Lênin, realmente. Lênin foi super revolucionário. Primeiros decretos, um dos primeiros foi abolir o casamento na igreja... cada um que more com quem quiser, que se case com quem quiser! Mas Stálin acabou com tudo isso. Quem me falou isso?... que ‘Se Hitler não tivesse matado os judeus, Stálin mataria logo depois’. Stálin fez isso. Os expurgos tiveram várias levas e uma das levas era dos médicos judeus que queriam matar Stálin. Os judeus foram expulsos pouco a pouco, de grandes universidades e de centros de pesquisas. Só por serem judeus. Eu fiquei indignada com um curso sobre a história da Revolução Russa. Eles não convidaram nenhuma pessoa da Rússia! Eu só tenho uma explicação: convidar uma pessoa da Rússia é você ouvir algo que você não quer ouvir, que é a vida das pessoas... que não é pró ou contra, que é a vida. O ideal é lindo. Agora, a vida foi uma merda, a pessoa gastou a vida inteira para viver na miséria comunista, o paraíso, não é? Eu adoro os professores [que deram o curso], são professores excelentes, grandes pensadores marxistas, mas todos escolhidos a dedo. Marxistas franceses, italianos... o problema é esse! Porque, você falar sobre a experiência marxista sendo italiano, sendo francês, é diferente. Assim, se você pega um professor russo jovem que estuda o legado soviético na Rússia, ele não viveu a União Soviética, mas ele tem uma bagagem geracional acumulada... o que os pais viveram, o que os avós viveram... isso está na nossa cabeça. Como que você fala sobre a Revolução Russa sem nenhum professor russo? Eles poderiam achar um professor marxista russo, ainda tem bastante. Eles só querem marxistas.”

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BIBLIOGRAFIA



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