Livro Bordei

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Mostra de Bordados & Memórias de Burarama

Crônicas por André Fachetti 2021


Burarama Os talentos que bordam as histórias deste livro estão guardados em Burarama, um pequeno distrito de Cachoeiro de Itapemirim, no sul do Espírito Santo. Localizada a 42 quilômetros do centro do município, Burarama tem cerca de de 1.500 habitantes e ainda conserva o clima bucólico do interior e uma natureza exuberante, marcada por formações rochosas e cachoeiras. A região está incluída no programa do governo estadual “Caminhos do Campo” e possui diversas cachoeiras, sendo ponto certo da visitação de turistas durante o verão para aproveitar as belezas naturais. No inverno, o clima mais ameno é um atrativo, aliado à culinária local. Burarama fica situada ao pé da “Pedra da Ema”, uma formação rochosa que, nos dias ensolarados, gera um jogo de luzes e sombras projetando uma imagem negra da famosa ave. Geralmente, entre 13h30 e 15h30, é possível avistar a ave formada na sombra de uma saliência da pedra com bico, patas e asas, o que virou um marco da paisagem da região. O clima tranquilo do local, a igreja na praça, a Ema na rocha, entre tantos outros pontos fazem parte do imaginário coletivo que permeia os bordados. Entre o passar das linhas, as histórias de cada bordadeira se ligam às origens de Burarama e transformam a técnica em verdadeiras obras de arte. Fernando Madeira/Acervo Cine.Ema 2019


O que é o Bordei? As linhas coloridas que formam desenhos e contam histórias. Esse trabalho de entrelaçar a agulha e as linhas, exercido há gerações pelas bordadeiras de Burarama, foi transformado neste livro e numa exposição online pelas mãos do projeto Bordei, realizado pela Caju Produções em parceria com a Associação de Moradores de Burarama, sediada em Cachoeiro de Itapemirim (ES). A 1ª Mostra de Bordados & Memórias de Burarama foi promovida por meio do Instagram das Meninas Bordadeiras de Burarama no endereço @bordadeirasdeburarama, entre 5 de abril e 6 de maio. A mostra trouxe 38 bordados feitos pelas Meninas Bordadeiras de Burarama, que foram selecionados para o Bordei. Neste livro, você conhece os 38 bordados e histórias de 34 bordadadeiras, escritas em formato de crônica pelo fotógrafo e escritor André Fachetti. O processo de escrita envolveu uma imersão, por meio de entrevistas, nas histórias, sentimentos e emoções das bordadeiras, linhas da vida que coloriram cada bordado. O entrelaçar silencioso das linhas com a agulha é um verdadeiro retrato da identidade cultural dessas mulheres que, por meio dos tecidos, comunicam, registram e representam suas memórias, vivências e cenas do cotidiano, tão importantes para a preservação e valorização da cultura local. Os bordados retratam cenas marcantes da vida dessas moradoras, como início de namoro, piqueniques em família, encontros da comunidade, retratos da fé, entre outros temas. O distrito de Burarama abriga as lembranças e histórias das personagens, que dialogam diretamente com as tradições, hábitos e cultura local. É uma valorização daquilo que há de mais genuíno e humano no seu processo de territorialização. O grupo Meninas Bordadeiras de Burarama, sob esse nome, completa 16 anos em 2021, mas o projeto que ensina bordados à comunidade já existe desde 1973, cultura local que atravessa gerações. Hoje, o grupo conta com mulheres de todas as idades, identidades e realidades. Segundo a bordadeira Mariangela Grillo Fassarella, uma das criadoras do grupo, esta é a primeira vez que as Meninas Bordadeiras de Burarama expuseram os trabalhos online. “Os bordados contam sobre nossas vidas, de cada particularidade nossa. São memórias e lembranças de momentos que vivemos entre risadas e choros. Eternizar isso na mostra online e no livro é um marco no coração das pessoas”, afirmou Mariangela. “Bordei” recebe apoio da Lei Aldir Blanc, por meio da Secretaria da Cultura do Espírito Santo (Secult) e da Secretaria Especial da Cultura via Ministério do Turismo do Governo Federal.

Bordados e Memórias de Burarama

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Meninas Bordadeiras de Burarama Ponto a ponto, num trabalho minucioso de passar a agulha em meio aos panos, as Meninas Bordadeiras de Burarama foram construindo sua(s) história(s). Em casa, Anna Perim Grillo e a filha Mariangela Grillo Fassarella iniciavam o delicado trabalho de manusear as agulhas e linhas para as crianças da comunidade, o que ficou registrado numa carta de setembro de 1973. Com esse projeto, as linhas coloridas ganhavam formas simples nas mãos ainda infantis. Eram maçãs, flores, corações e tantas outras representações. Cada criança recebia um kit com materiais usados para os bordados: linhas, agulha e tecido. Por décadas, a ação recebeu crianças que aprendiam a bordar, mas foi só em 2005, que ganhou um nome oficial de Meninas Bordadeiras de Burarama. Apesar do gênero feminino no nome, qualquer pessoa é bem-vinda a se integrar ao grupo. A inspiração do nome veio de um jornal católico que Mariangela assinava: Jornal de Opinião. Lá, a notícia era sobre um grupo de senhoras bordadeiras, as *Bordadeiras Mariquinhas*, da região de Belo Horizonte que bordavam inspiradas em suas próprias vidas. Em 2015, durante a realização da primeira edição do Cine.Ema, a Caju Produções conheceu o trabalho das Meninas Bordadeiras de Burarama. Mariangela mostrou os bordados, contou sobre o projeto e as dificuldades em conseguir materiais para os bordados. Foi aí que surgiu a parceria com a produtora. Pouco tempo depois, com a ajuda da Caju Produções, por meio de um edital da Secretaria da Cultura do Espírito Santo (Secult), as Meninas Bordadeiras de Burarama transformaram-se em um Ponto de Memória. Na reunião, realizada em janeiro de 2016, os diretores da produtora, Tania Silva e Léo Alves, explicaram que elas precisariam produzir bordados para uma exposição que seria realizada em maio. Contariam ainda com algumas oficinas com a consultora Fabiane Salume. “A Fabiane disse pra gente: ‘Cada pessoa vem e traz um objeto, alguma coisa de sua lembrança. Vamos bordar nossas memórias, nossos sentimentos. Ninguém vai usar régua. Vocês vão inventar pontos’. Eu pensei comigo: ‘Essa mulher é doida. Como é que a gente vai inventar ponto?’”, conta Mariangela sobre o estranhamento no primeiro contato.

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As revistas deram lugar à imaginação, às memórias, aos sentimentos e às emoções, muitas vezes ainda incompreendidos, mas que no bordar das linhas, materializavam-se como obra de arte. As linhas passaram a contar as histórias de cada bordadeira. “Foi muito gratificante e muito livre. Liberdade de não ficar fazendo desenhinho. Cada uma bordava o que queria”, explicou Mariangela. Dali em diante, começaram a registrar a cultura local, o lugar, a situar Burarama na arte do Bordado. Desde o dia 12 de março de 2020, as bordadeiras de Burarama não se reúnem presencialmente devido à pandemia do novo coronavírus. Os encontros, antes das medidas de distanciamento ocorriam toda quinta-feira. O trabalho, entretanto, não para. No lento entrelaçar da agulha com as linhas, cada bordadeira continua a tecer suas histórias de dentro de casa. Em 2021, uma nova parceria da Caju Produções com as Meninas Bordadeiras de Burarama, por intermédio da Associação dos Moradores de Burarama, transformou o trabalho feito em 2016 numa exposição virtual e neste livro, Bordei, eternizando os bordados e histórias dessas mulheres e levando ao mundo a arte produzida dentro de suas casas.

Fernando Madeira/Acervo Cine.Ema 2019


Bordando a Vida: A crônica em linha, agulha e pontos Em arte não existem certezas. Quando existem, importam menos que o resto. (Armindo Trevisan) Os homens resolveram contar a história da humanidade por tempos e marcos cravados no seu conhecimento e (pseudo) controle de elementos ou circunstâncias que encantaram, desafiaram, assustaram, oprimiram, dominaram. A descoberta e o controle do fogo; a Antiga e a Nova Idade da Pedra; Idade do Bronze; Idade das Trevas; Iluminismo; Renascimento; Reforma; Revolução Industrial; Era da Informação. Entre a pedra que aprendeu a afiar e os supercomputadores que aprendeu a programar (até que se programem e se reprogramem sozinhos...), o ser humano (quase) se esqueceu de se identificar com o momento sublime em que aprendeu a fiar, a tecer, a costurar, a bordar: os ancestrais aprenderam a usar a pele inteira dos animais para se proteger, depois aprenderam a unir os pedaços de peles diferentes; aprenderam a trançar ramos e fibras, a tecer redes para se afastar do chão à noite, a montar cestos de pesca, armadilhas para os animais; construíram telhados de galhos tramados e descobriram que do casulo da lagarta poderiam puxar centenas de metros de fio suave e resistente; uniram os fios até abrir as velas que atravessaram as baías, os lagos, os oceanos; entenderam o processo de tosquiar, e dos pelos macios dos animais, fiar e colorir os panos que cobririam o corpo, a mesa, o berço e o túmulo. Deveríamos ter grafado o tempo ancestral, sagrado, antológico, antigo e sempre novo, no qual a habilidade de nossos dedos, a ação de nosso polegar (o maior sinal da nossa evolução) dera origem ao ato de tecer e, daí, de bordar. Do rústico ao simples, do simples ao delicado; das cordas ao cesto de colheita; do cesto à roupa. Da costura da roupa ao bordado que identifica, que marca, que difere, que grava, que registra, que expressa, que embeleza, que recorda. Entenderam sabiamente sobre isso os gregos, que nas suas mitologias desvelaram, logo, três mulheres que teciam o fio da vida: na mão e no tear das Moiras, as tramas de vida longa e o nó final com o corte da morte foram a melhor representação daquele fazer tão arraigado na história da humanidade, que esteve sempre presente em nossa evolução, e que permaneceu veladamente repousado em um lugar de meditação e observação.

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Um lugar de meditação e observação ali, sempre atento, mesmo que num canto. Como alguém que estica a linha, passa pelas agulhas, recomeça a bordar o tecido cru com suas impressões da vida, mais uma vez. E uma vez mais. Com o olhar em tudo. ________________________________________________________________________________________________ — Você se recorda de quando a convidaram especificamente para este projeto, do Meninas Bordadeiras de Burarama, o Ponto de Memória? — Sim, com certeza eu me lembro. Invariavelmente era essa a resposta em todas as mais de 30 vezes que as entrevistas começavam ou quando tocavam nesse ponto em algum momento dos diálogos. O que vinha depois disso era uma incógnita: um baú do tesouro; um balanço voando alto com frio na barriga; um cenário sempre impressionante de se ver, de se ouvir, de se interrogar. De se aprender. O que vinha podia ser tão inesperado e surpreendente quanto a surpresa das próprias bordadeiras, ao final dos seus bordados em 2016, ao perceberem as histórias inconscientes que contavam; como a surpresa de agora, ao final dos bate-papos deste 2021, quando iam se dando conta do sentido e de mais um sentido dos pontos que deram por volta de cinco anos atrás. O que aconteceu em determinado momento foi a descoberta de que a cultura local do bordado, que ia de família a família, de casa em casa como coisa de tradição, corrente fantasia, cruz duplo, nó francês, alinhavo, renascença, havia se transformado numa cultura curativa, numa expressão que podia e devia se libertar do bordado métrico, copiado, repetição-de-algo-que-outro-alguém-fez para um

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Os bordados que aqui se apresentam com relativa simplicidade, em panos aquadradados, são uma re-present-ação de alguns dos momentos culminantes da arte universal pelos tempos: são herdeiros da mesma aura do momento em que se começou a conceber arte como produto da imaginação e não mais da razão ou da imitação1; quando os artistas começaram a compreender-se como autores e não mais como meros executores, e puderam fazer seus autorretratos (cada um desses bordados é um autorretrato), e passaram a trabalhar sobre suas próprias escolhas, tanto em matéria de técnica quanto de tema (aqui, cada peça é, objetiva e subjetivamente, uma tela em branco e porta livre para o ir e vir das experiências pessoais de cada um).2

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Cada bordadeira tomou para si seu pano e falou firmemente em determinado momento, como Arthur Bispo do Rosário3, o bordador-mor do Brasil: “O único que vai mandar sou eu. Mais nada”. A teia de Pontos de Memória fez o Meninas Bordadeiras de Burarama ser a melhor versão do que jamais vislumbrou ser. Mas não havia como algo ser mais adequado para o jovem grupo de jovens jovens e de jovens senhoras: de seus pontos, a memória. Dos pontos à memória! Memórias pessoais, cheiro e sabor, ruídos e visões que às vezes estavam à pele; às vezes, às entranhas; por vezes dominados, por vezes escapando a quase não se pegar mais; por vezes, um preparativo aqui para um recomeço de vida acolá. No fim, cada ponto e cada relato, cada mobilização para os riscos dos desenhos em 2016 e cada sentar-se para relembrar agora em 2021, desvelaram situações sem disfarces nem maquiagem, em que a condição puramente humana ficou exposta, crua, forte e cheia de textura como os recortes do algodão cru em que passaram agulha e linha para fazer, cada uma, sua crônica bordada da vida. Não se borda sem arriscar furar a ponta dos dedos; não se borda sem cansar os olhos; não há bordado que não exija que se tire a linha mais uma vez, se mude a cor mais uma vez, se atravesse o buraco de agulha uma vez mais. Ao fim, o que está registrado aqui, nestas imagens e textos, não é só o que está destacado, alinhavado, explicitado, mas também e, sobretudo, o que ainda está por ser criado: as bordadeiras aceitaram usar a arte para se ver, se interpretar, se expor, se recriar: todo bordado é um tempo dado. Mas o artista, opere ele pincéis, câmeras, blocos de granito, caneta ou linha e agulha, sabe que a arte se complementa com o olhar do outro, com o próximo comentário, com o ponto trançado que o próximo observador lhe emprestará. Pegue, aí, sua linha e agulha: aprenda o que é bordar o pano da vida. | ..... nó.... corta..... outro lado... |

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GREFFE, Xavier. Arte e Mercado. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2013, p. 41. Idem, p.43. 3 Arthur Bispo do Rosário (Japaratuba, Sergipe, 1911 - Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1989). Artista visual. Destaca-se por ter desenvolvido, com objetos cotidianos da instituição em que viveu internado, uma produção em artes visuais reconhecida nacional e internacionalmente. Disponível em https:// enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa10811/arthur-bispo-do-rosario, em 22 de março de 2021. 4 PRISIONEIRO da Passagem, O. Direção de Hugo Denizart. 1982. (30:26 min). Disponível em https:// www.youtube.com/watch?v=8MzFTaOvsCQ, acesso em 22 de março de 2021. 2

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André Fachetti Lustosa (1978) é natural de Cachoeiro de ItapemirimES e morador daquela cidade ao sul do ES. Casado (2004) com Nívia Pastore. Formado em Direito, após 20 anos de carreira jurídica como advogado e alguns como professor de Direito, passou a estudar e dedicar-se profissionalmente à fotografia. Desde 2011, fez da fotografia e da escrita os seus trabalhos exclusivos, atuando na fotografia publicitária (retratos, gastronomia, still) e na venda de suas fotografias artísticas. Também mantém constante envolvimento com projetos autorais de valorização da arte e cultura regionais e projetos culturais de terceiros, em que participa como fotógrafo e escritor contratado ou em caráter voluntário, além de projetos fotográficos humanitários.

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ANNA

“IRMÃS” PERIM GRILLO (in memoriam)

Por excelência, a árvore é a representação da vida. A raiz que nutre e segura, o tronco que estrutura e estabiliza, os galhos que ampliam e enobrecem, as folhas que recolhem a luz e sombreiam, os frutos que nascem do conjunto perfeito e lançarão sementes pelos campos afora. Depois de décadas de bordados infinitos, aos 87 anos de idade e já em condições delicadas de saúde, Anna Perim Grillo não tinha maiores ânimos de retomar um algodão cru para bordar novamente. Já havia transmitido muito, se não tudo, o que os dedos habilidosos e os olhos atentos na contagem dos pontos teriam para partilhar. Mas ela era raiz, tronco e galhos da história das Meninas Bordadeiras de Burarama. E a pedido da filha que já fora feita borda-herdeira de uma tradição tão simples, aceitou bordar novamente. A história que começou em 1973, dando lições de bordado para as meninas da comunidade, se perpetuava. E disse à filha Mariangela: “Risque uma árvore com as minhas irmãs”. E pediu cada uma das seis filhas meninas de seus pais espalhadas na grande árvore que toma o centro do pano, iluminada pelo sol da própria história, do trabalho doméstico, da força da oração. E os irmãos? E os filhos meninos de seus pais? As seis garotinhas foram uma dura provação para o pai italiano, encravado naquele interior do Espírito Santo com as roças a cuidar... Foi preciso seis meninas para o pai realmente explodir de alegria com a vinda do primeiro filho. Só aí, houve festa e fogos na casa do interior. Na árvore – que é feminino por natureza – ela reconstrói a história pessoal e familiar feminina, quando reúne as mulheres pelos galhos amplos, a brincar e se divertir, a exercer plenamente a sua essência feminina; galhos que não só se espalham, mas também sobem céu afora. E carregam as meninas que souberam ser Irmãs. O bordado, porém, ficou em risco: Dona Anna, que tinha o coração já mais cuidadoso havia algum tempo, não entregara à Mariangela aquele que deveria ser o primeiro trabalho do Ponto de Memória. Com sua morte repentina, de um momento para outro, houve o choque: “Mamãe não terminou o bordado dela”. Mas Bordadeiras não descumprem prazo de entrega: horas antes de falecer, a mulher que nasceu e morreu menina com muito orgulho entregava seu último bordado para a neta Renata, a quem confiara a encomenda prestimosa, a arte que fora uma das alegrias de seu feminino viver e morrer. Anna nasceu menina em maio de 1928. Viveu família serviço agulhas linhas orações Foi para o céu menina em março de 2016 após terminar este bordado. (do texto-bordado acrescido pela filha Mariangela ao trabalho original da mãe, após o falecimento)

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Crédito: Acervo pessoal

ANNA PERIM GRILLO Bordado Irmãs Ano 2016 Data de nascimento 15/05/1928 Data de falecimento 29/03/2016




MARIANGELA

“VIDA” GRILLO FASSARELLA

É uma tela pungente de linhas, traços, pontos, letras e desenhos que saem do centro do tecido e espalham informações coloridas por todo lado. Demanda um momento de silêncio e um suspiro para entrar em sintonia com a frequência de Mariangela. 3, 2, 1... Pronto, você está mergulhado em décadas de memórias claras e intensas da borda-herdeira que segue espalhando a herança por todos os cantos. Apreciar a arte demanda tempo. Tomar a própria história, também. Bordar a técnica, a história e a arte demanda paciência, tempo e coragem. Cada desenho de uma fase da vida de Mariangela parte do centro exato de uma espiral maior, de traços em alinhavo, vermelhos como o coração pulsante que mostra DEUS no centro dos seus acontecimentos. Dali, um fio ininterrupto reúne todos os momentos que guarda na memória e que depositou por todo o pano. Mas que margem infinita é esta que conduz cada fase na peça? Para começar a bordar, Mariangela resgatou o primeiro rabisco que guarda na memória: a espiral quadrada que a própria mãe traçava para que a filha aprendesse a costurar. A mãe rabiscava, a menina alinhavava. É belo e curioso como a primeira referência da costura, do bordado, da relação de mãe e filha, do ser menina, reúne ao longo da linha-avenida as imagens da grande família, o arco-íris do qual tanto gostava, o Saci-Pererê que morava nas matas ao redor da casa e mantinha as crianças dentro de casa; é ao longo dos tracinhos vermelhos que se reúnem a Igreja de São João Batista e a Pedra da Ema, o estudo em Cachoeiro, o som do rock, as festas nos clubes, trabalho, a própria família, as Meninas Bordadeiras... Há até uma pequena Mariangela vestida com a saia plissada que não pudera ter. No bordado, podemos ter e fazer tudo. O melhor quadrinhista do mundo, desses que criam heróis e vilões de capa e raios, não conseguiria espalhar tão bem, nem em duas nem em dez páginas de seu gibi, tantos detalhes e tamanha riqueza de eventos. Só a alma de uma jovem há mais tempo (“Vivi sempre com intensidade... quantos anos a mais eu já vivi?”) poderia juntar na mesma arte Teologia com lamparina, meleca com banho de chuva, Salmo 50 com carrapicho. A segurança de traçar a própria vida permite a Mariangela confidenciar: “Não encontrei sentido nisso tudo quando ia fazendo. Mas criei sentido para tudo que fiz”. E é por isso que se tem aqui um bordado todo dia ainda a terminar. Recentemente percebeu que não tinha incluído o irmão recém-nascido que falecera ainda bebê. Teve tempo e coragem de incluir o bordadinho ali, junto da família reunida. E lá na frente, onde a espiral infinita se abre para fora das margens do tecido, há uma bicicleta veloz, com a herdeira de cabelos ao vento: Porque sempre há paciência, tempo e coragem para ensinar mais alguém a bordar a vida. Sempre se pode espalhar por aí um pouco mais de herança boa no ar.

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MARIANGELA GRILLO FASSARELLA Bordado Vida Ano 2016 Data de nascimento 05/03/1954


LUIZA

“EMOÇÕES” GAVA

“O que significa protestar contra o sofrimento como algo distinto de reconhecer sua existência?” (Susan Sontag)1. Luiza discerniu, entrou nos recantos mais densos de seu coração e abriu janelas onde havia escuridão. A dor que a acompanhava havia algum tempo lhe encerrava na certeza de que “não estava pensando em nada”, ou seja, não conseguia pensar em nada para criar, quando Mariangela insistia: “Pensa numa coisa”. Mas foi aí que o bordado cheio de brisa começou a ganhar traços. Ela testemunha: “Eu subi o primeiro degrau”. O desenho largo, de proporções generosas como generosa é a partilha de quem se expõe diante do outro, quase faz ventar pela casa, pelo olhar. Ela sabe, e nós sabemos, porque está cuidadosamente bordado e ornado, que “o pé de lima é ali, ´tá vendo?, onde estava nossa antiga casa...”. E a cerca com as roupas penduradas, até o pano de prato antigo que a própria mãe ensinava a fazer e o uniforme escolar. O banco por debaixo da árvore feito pelo pai, local das conversas de fim de tarde, das brincadeiras, de histórias; as flores, o caminho. Tudo que está ali existia lá. Até a porteira. Mas ela não conseguia fazer a porteira: Depois de momentos trágicos em família, aquela que foi a mais recente das Meninas a entrar para o grupo (e que foi a professora de Matemática da Mariangela na escola, reencontros da história) precisou sentar nas cadeiras de aula da vida para se reaprender. Para protestar contra o sofrimento. Precisava conseguir fazer a porteira. Precisava avançar pela estrada e deixar as memórias de dor no lugar que lhes era devido. E só lá. Porteiras são portas largas onde se passa o que quer e se limita o que não quer que avance. Abrir uma porteira é uma habilidade. E a porteira foi bordada. Com esforço, com lágrima, mas se completou. Era a oportunidade de deixar algumas coisas de um lado, outras, de outro. E o que há do lado de lá da porteira? O que o desenho largo, de proporções generosas, nos convida a enxergar? Quando avançou para além dos espaços de dor, o cruzeiro no morro apareceu – sinal da capacidade de olhar além, de escalar, de se programar e ir. O sol foi ganhando espaço para iluminar de novo, talvez ainda pequeno, mas existe sol que não brilhe? E a brisa... ah, a brisa fresca... Você não sente esta brisa soprando, agora? A mais recente das Meninas confidencia: “Apesar de tudo, apesar de ter conseguido fazer, eu não acho ele bonito. Mas... tantas vezes a gente mesmo precisa olhar de novo a nossa história...”. Luiza subiu o primeiro degrau. Ela soube construir em si a diferença entre apenas reconhecer a existência do sofrimento e o ato glorioso de protestar contra o sofrimento.

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SONTAG, Susan. Diante da Dor dos Outros. 2003. 5ª reimpressão (2020). São Paulo: Companhia das Letras. p.37

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LUIZA GAVA DE ARAÚJO Bordado Emoções Ano 2016 Data de nascimento 21/09/1944


MARIA APARECIDA

“VIDA NA ROÇA” DALARME DA SILVA

Não é apenas um acaso o fato de a peça de bordado pensada por Maria Aparecida ser uma fotografia que retrata seu pai... bordando. A casa grande com chaminé e fumaça (porque não há alegria numa chaminé cujo fogão não esteja crepitando), o terreiro farto, árvores que preenchem toda a parte superior do tecido como que fazendo dois planos, dois andares, mil dimensões de tempo-espaço. São elementos estéticos da plenitude vivencial. Um sol enorme que invade casa, plantação, pano, olhos. Mas a Vida na Roça dava, entre tantas alegrias, a de ver o pai tecer, tramar, bordar todo tipo de material que o taquaruçu (“Não é bambu!”) permitia: cestos, redes, balaios; peneira pra catar peixinho na beira do rio, peneira grande pra levantar o café na colheita. “Já viu uma peneira trançada pelo meu pai? Pois vou lá e volto com uma pra você ver depois.” Lá nos afazeres que o pai tinha, sempre aos olhos atentos e cuidadores da mãe, havia capricho. Era reconhecido pelo trabalho, era reconhecido pela habilidade. Quantas colheitas de café não se fizeram nessas roças com uma daquelas peneiras que estão ali no chão deste pano trançado de linhas? Quantas plantações de milho não se tornaram papa e fubá a partir de um desses cestos que vemos agora? Não é por um acaso que, também na tela da bordadeira, há capricho e orgulho. Isso demandou esforço físico de ir buscar uma imagem da memória, uma imagem que inspirasse a memória, e buscou até encontrar a fotografia que dá as bases deste trabalho. Caprichou tanto que riscou o algodão para revelar novamente a fotografia da família, transpondo do papel ao pano, da química à linha, os traços que preenchem sua memória. “Olha, que bom que deu tempo! Veja aqui, uma peneirinha feita pelo meu pai que eu guardo até hoje.”

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MARIA APARECIDA DALARME DA SILVA Bordado Vida na Roça Ano 2016 Data de nascimento 24/02/1963


DANIELI

“LEMBRANÇAS” SANTOS

Os panos, no geral, ocupam apenas altura e largura no plano dimensional. São bem fininhos e a profundidade que têm, apenas com a altura do algodão e das linhas é... É “ínfimo”?! Alguém pode dizer que estes panos não são tridimensionais? Polidimensionais? Pandimensionais? No bordado de Danieli, que lá pelos 16 anos já tinha memória suficiente para riscar e bordar Lembranças, o fogão a lenha transcendeu a casa grande (de chaminé fumegante) e veio ganhar novo espaço debaixo da árvore, na área aberta e com destaque, que é onde correm as melhores lembranças e se fazem as coisas mais legais da vida. Alguém que tira o fogão a lenha de dentro da casa para ligar o interno ao externo, para reprogramar uma lógica cartesiana que deveria lhe ditar “Isso é aqui, aquilo é lá, nada pode se alterar, o que você pensa que vai mostrar?”, e mostra com tamanho carinho um fogão a lenha... Alguém que com 16 anos transcende os espaços e a forma através do bordado é artista. Ali perto, a pipa do irmão sobe alto, altíssimo, uma alegria explícita que quase faz um desavisado passar a mão para não deixar o desenho escapar pelo ar. É ele que toma o centro do conjunto de traços finos, mas bem definidos, claros na certeza do que sua autora queria: “Resolvi fazer a minha família. Eu escolhi o sentimento de família”. Hoje ela colocaria mais alguém: colocaria os sobrinhos que vieram depois. Cada um com seu jeito, como tem um jeito próprio expressado em linha e cor, cada personagem da família. Para alguém que tem um sol brilhando daquele jeito, que tem pipa no ar e fogão pra fora de casa, como um convite a tomar café e comer broa de forno a lenha, o pano certamente não tem espaços vazios: espaços em branco são apenas espaços para contar mais.

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DANIELI DOS SANTOS Bordado Lembranças Ano 2016 Data de nascimento 16/02/2000




EUNICE

“FELICIDADE” DARDENGO FASSARELLA

Oi, desculpa! Eu estava aqui tomando mais um gole de café de garapa com um pedaço de pão caseiro. Delícia. Quer também? Pega aí. ´Tá vendo a mesa grande, enorme mesmo, ali, de bordas vermelhas, num lugar de destaque do quadro? Está cheia de tudo que a gente gosta de comer quando o povo se junta, quase que todo dia, ao final da tarde, pra conversar e as crianças brincarem. E brincam mesmo: de peteca, de bola de gude, canta música alegre, os meninos jogam futebol... A mesa é tão boa e tão farta que fiz duas dela: uma dentro da casa, outra aqui do lado de fora porque aquela primeira eu achei que não representava o quanto este lugar, estas comidas, estes artefatos são fundamentais na minha vida. Tem doce de coco hoje, quer? Cada dia a gente escolhe alguma coisa para fazer. Tem um mestre doceiro aqui na vizinhança. Vê o panelão ali, com muito fogo embaixo? A gente faz de tudo! E papa de milho? Ah, faz de tudo no panelão. Sabe dessas coisas que dão Felicidade? Bem, felicidade não é só ter tudo certinho ajustadinho: a gente escolhe a felicidade, olha pra ela, pega, corre atrás, não deixa escapar. O bordado da nossa vida é todo feito de escolhas de ser feliz! Neste pano, tudo que aparece foi desenhando em torno do terreiro. Minha vida foi aqui: aqui, oh! A casa grande é grande e aberta. A mesa grande é grande e farta. Viu aqui o radinho? Era um rádio novinho que alguém trouxe e a gente aprendeu a ouvir a Rádio Nacional com o Edgar de Souza, de noite. Meu pai adorava. Era difícil? Quem disse que não? Mas a gente escolhe o que valorizar, o que lembrar... Quem diria que eu, menina assim, iria montar a cavalo e meu pai iria deixar eu subir e descer morro ajudando com colheita de café? Tá vendo aqui o cavalo? Era nesses morros todos aí, por entre esses cafezais que eu ia... Quase caía do cavalo. Um dia os vizinhos me pegaram na anca do bicho e me empurraram pra cima – mansinho o cavalo era, nem fez maldade. E sobe e desce levando o café colhido. A Pedra da Ema está lá, está tudo aqui, juntinho, cheio, ligado, tudo com cuidado, tudo e todo mundo. Mas eu quis muito colocar sobre a mesa as coisas que me marcaram e me trouxeram tanta felicidade na vida: eu me encontrei no meu afazer, aprendi e exerci a costura, porque via minha mãe cortando, e eu observando. Estão ali, olha só, uma máquina, um ferro em brasa de passar e uma roupa estendida, representando a minha escola e a minha profissão. E, olha, já que a arte aceita uns sonhos bons e o bordado liberta... aqueles ipês ali no meio da mata, nos dois lados da figura, não existem em Burarama, não. Mas que eu tenho o sonho de ver uns belos de uns ipês-amarelos por aqui, ah, eu tenho! Adoro ipê-amarelo. Então eles podem entrar no meu bordado. Mas não quer um pedacinho de doce, não? E papa, hoje tem papa de milho...

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EUNICE LEOPOLDINO DARDENGO FASSARELLA Bordado Felicidade Ano 2016 Data de nascimento 01/10/1959


GEANI

“MEU SÍTIO” DORIGHETO

Então, o que define se uma história é simples ou intrincada? O que define se uma memória merece ser bordada? Como escolher entre esta ou aquela situação como mais importante? Geani assumiu o amor pela sua obra, pensada, meditada, vivida, e soube defender como ninguém o que havia esculpido com linha e agulha: “Tem gente com bordados enormes, tem meninas com tantas coisas juntas... Mas esta, esta é a minha história”. E tem cachorro bravo mansinho com a família – marrom era na cor e no nome, não podia ter linha de outra cor. E tem Fusca azul novinho e orgulhoso que levou a família toda para tanto passeio bom (“Povo reclama de porta-malas de carro novo, você sabe quanta coisa que cabia dentro do Fusca?!”). Olhe o Fusca, não é um Fusca qualquer, não é como um outro carro: este carro tem para-choque, tem para-lama, e é azul como nenhum outro nunca foi nem será. Tem a casa em Forquilha com crianças brincando à vontade. Mas foi na enorme pedra do cruzeiro de Cantagalo que todo o bordado-vida ganhou o primeiro fôlego: é ali que mora sua pedra fundamental, sua família. O caminho aberto que leva ao cruzeiro, assim como a estrada de bordas amarelas por onde passam carros e desfilam idas e vindas, são vias de acesso à memória, ao ontem, ao hoje, que já se encaminha para um novo amanhã. A anteninha parabólica do alto da casa capta ondas largas de alegria e certeza de que tudo tem valido a pena.

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GEANI APARECIDA DORIGHETO Bordado Meu Sítio Ano 2016 Data de nascimento 30/07/1970


GABRIELA

“MATERNIDADE” DOS SANTOS

Estenda este pano ao vento. Tem cheiro de sabonete de criança, pimpão passadinho, sapatinho que a gente quase que calça com o indicador. Tem cheiro de papinha de fruta, de talco que a mãe da mãe da gente passava, de água de banheira fresquinha após o banho apoiado no antebraço, de bruços. Olhe para este bordado. Ele só pode ter sido feito por uma mãe. Mãe de sangue, mãe por adoção, mãe por escolha, mãe por destino. Só pode ter sido feito por alguém que escolheu um ser humano para chamar de filho. A estrada verde-esperança corta o pano não só na vertical, mas também na horizontal. É a perpendicular que liga norte e sul, leste e oeste. Liga o céu à terra e a terra ao céu. É coisa própria do milagre de gerar a vida. No caso, “as vidas”. Porque, bem: no caso a Gabriela já tinha escolhido dois seres humanos para chamar de “filhos”. Tinha dito e confirmado que queria dois. Encomendou, marcou lugar, sacramentou: “Dois, por favor”. “Preferência, senhora?”. “Menina e menino”. Ao tempo do bordado, uma já estava em suas mãos. Ali, na base de tudo, envolta em corações de amor, na porta de casa, cuidada e apertada no cueiro rosinha. Olhe bem... dá pra ver mãe e criança rindo. Não tem ninguém que não ria. E a encomenda de dois? Como nas melhores histórias, nos melhores filmes, nos melhores quadrinhos, nas melhores pinturas, nas melhores esculturas da humanidade... tem por ali no bordado materno da Gabriela, assim como deixaram os grandes mestres clássicos, como plantaram curiosamente os grandes artistas, um sinal. Há uma mensagem subliminar. Há uma “cena pós-créditos”, há uma pegadinha. Veja, subindo a estrada a caminho da maternidade. Quantos patinhos amarelinhos estão a caminho? Quantos filhotes tem o casal de patos estrada afora rumo à maternidade? Estenda este pano ao vento. Ele tem cheiro de esperança. Esperança que só mãe pode aspergir e bordar. E sim. Os patinhos (que cegonha, o quê! De onde tiraram isso?) mandaram entregar o menino que Gabriela tinha solicitado para fazer par com a filhinha. Amém.

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GABRIELA DOS SANTOS REGINI Bordado Maternidade Ano 2016 Data de nascimento 15/10/1994


SHAENE

“HISTÓRIAS” COSTA AGUIAR

Histórias a gente aprende a contar, primeiro, ouvindo. A caçula do projeto se misturava a moças de todas as idades no meio das linhas, do café, dos bolos partilhados; no meio de lágrimas e sorrisos, de lembranças boas e outras nem tão boas. Via traços, rabiscos, pontinhos coloridos que se ligavam, e preenchiam mais ou menos o algodão quadrado. Entendia no coração o que era pertencer a uma comunidade: A comunidade das crianças, a comunidade de Burarama, a comunidade das meninas, a comunidade das Bordadeiras. O bordado da menina que depois cresceu (cresceu e manteve um sorriso tão largo quanto o da menina bordada) é todo grandão: a pedra grandona, o sol grandão, a nuvem grandona. A menina enorme de grandona. A menina é grande maior que a pedra. Porque a pedra é dela, a pedra é seu brinquedo, é sua comunidade. É como quem diz confiante e sorrindo sem temor: “Eu pertenço a este lugar e ele me pertence”. Simples assim. É a inspiração que mede a proporção das nossas certezas. E aí, a menina foi um pouco mais adiante. Ela olha um pouquinho para trás e olha um pouquinho para o espelho; olha um pouquinho para o pano e olha um pouquinho pra si mesma. Hoje ela sabe se enxergar ainda melhor. A boneca-menina sorridente manteria o mesmo sorriso, mas hoje ganharia cabelo encaracolado e cheio, bem cheio, bem lindo, com lenço bonito a ornar as madeixas que a adornam o olho brilhante. Pertencer a um lugar, tomar para si a própria história, mesmo as histórias mais recentes. Histórias a gente aprende a contar, primeiro, ouvindo.

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SHAENE COSTA AGUIAR Bordado Histórias Ano 2016 Data de nascimento 04/04/2004




SAND VITÓRIA

“CORES” COSTA AGUIAR

Como é lindo a juventude bordar com um santo descompromisso! É um bordado de passeio domingo de tarde, daqueles que você espera algum amigo passar pelo caminho, vai indo sozinho, passa por uma árvore, dá boa-tarde a uma borboleta que passou pelo chafariz da pracinha... É tarde de caminhada assim a esmo, mas nem tão a esmo assim. A Igreja ainda é centro de referência, do jeitinho que os construtores de Igreja faziam ao colocar as capelas no ponto alto e no ponto central. E há padaria, porque padaria da nossa cidade com pão bem fofinho e cobertura doce é muito bom. E aquela cereja bem vermelhinha... é cor que não cabe na cereja, extravasa para o desenho. Um desenho que se chama “Cores” tinha que ter casa amarela com janela azul – já viu artesão das cores não combinar amarelo com azul, que é coisa mais linda de combinar? E se tem chaminé numa casa acolhedora, o fogão ´ta sempre aceso e a fumaça sempre subindo. É bem verdade que tem tempos que as cores ficam pálidas. Quem gosta de cor se pergunta: “Onde estava a nuvem azul que passou aqui agora?! Cadê o povo gritando e jogando bola e tomando sorvete de morango vermelhinho no meu desenho colorido?!” É que lápis de cor e linha colorida nova não tem jeito: tem que apontar pra desenhar, tem que passar na língua assim rapidinho pra molhar e enfiar na agulha, pra voltar a colorir e extravasar um pouco mais. Ei, me dá um punhado de azul com lembrança engraçada e verde de mata de cidade do interior, por favor?

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SAND VITÓRIA COSTA AGUIAR Bordado Cores Ano 2016 Data de nascimento 01/01/2001


CAROLINE

“INFÂNCIA” DA SILVA

Sempre tem espaço pra mais alguma coisa boa na infância. Não basta ter peteca, bola, pular corda, árvore com maçã - que não é maçã de verdade, é jabuticaba; queimada, pique-esconde, pique-pega, banho de rio. Não basta ter casa grande de avó onde moram seis pessoas juntas - casa grande mesmo, família grande. Não basta ter todo mundo festejando, lado de fora, tomando fresca de fim de tarde ou começo da manhã. Infância é lugar inesgotável no coração! Quem põe cerca em infância não teve infância ou não terá! Ainda caberia aqui... ali talvez... hum... “Eu faria um girassol bem grande! É que eu gosto de girassol, né?”. Isso, um girassol é uma coisa boa de caber sempre numa infância. Como? Não tem girassol no bordado? Então eu não posso falar de girassol neste bordado de uma jovem que o fez quando era criança e chamou de “Infância”? E quem colocou cerca no bordado, ora bolas? E quem é que olha um bordado bonito desses sem virar do avesso para encontrar girassol grandão e amarelo com sabiá beliscando semente e levando pra semear no vento? Tá vendo a porta grande da casa, ali em cima? Entra lá, olha na mesa, repara o tanto de coisa gostosa pra gente comer e que você ainda nem percebeu. Vai ficar aí parado? Vai ficar amarrado? Passa a linha e borda outro ponto! Entra lá! Infância boa é aquela que faz aprender a lembrar o antes e sonhar para o depois.



CAROLINE DA SILVA Bordado Infância Ano 2016 Data de nascimento 09/08/2004


ANA LÚCIA

“RECORDAÇÕES” FAGUNDES DE ASSIS

Ocupar os espaços do algodão quadrado é o primeiro desafio da artista bordadeira. É o mesmo sofrer de parto técnico e emotivo do pintor diante da tela nua, do escultor com o bloco de granito quadrado, do fotógrafo com o mundo passando ligeiro no visor apertado da câmera, do poeta com caneta cheia de tinta e papel branco silencioso. Aí, você, observador cuidadoso, pega um pano desses, charmoso assim, que vê de cima, vê de lado, gira para a esquerda, volta para a direita e enxerga um mundo girando inteiro, como a Terra no Sistema Solar ou o catavento na mão de criança em dia de brisa. E você agradece cada Recordação que uma pessoa normal, comum, simples como cada um de nós aceitou alinhavar em partilha sincera. Um pano que gira e faz quem observar girar-mundo. Esta peça começa muito antes, anos antes, quando a criança de 9 anos já trabalhava em casa de família e foi levar duas (outras) crianças para aprender as magias de trabalhar linha e agulha. Era apenas para levar e cuidar das (outras) crianças. E aí foi que Dona Anna olhou para esta criança cuidadora de crianças e disse: “Sim, você também vem aqui para aprender!”. E a menina cuidadora é que passou a ser cuidada pelas linhas e agulhas. Esta peça começa quando a criança foi instruída no crochê. Foi do crochê que veio o bordado. E, agora, foi começando a esculpir o crochê – e não o bordado – que este pano ultralados bordado foi se abrindo. Os pés de sapota de crochê deram as fagulhas de lembranças, rasgaram o véu das recordações e permitiram a Ana Lúcia revisitar, resignificar e recontar sua história, que misturou dificuldades e descobertas, angústias e libertações. Quanto pesar se costura por debaixo do ponto brilhoso e bem acabado? Memória boa: trouxe lá do fundo a escadaria original da Igreja Matriz. Memória de afetos: o baú que não tinha nada para ser posto dentro, trocado com uma amiga e que tem até hoje, encheu de palavras fortes, motivadoras, história da sua história. Tem o balanço que o pai fez pras crianças, e a irmã que balançou tão forte que voou alto e passou susto, mas não perdeu o sorriso: ufa! Tem banco que faz parte de todas as recordações, banco de praça que acolhia a família cansada antes de entrar na Igreja depois de chegar de longe para as obrigações religiosas. Tem bicicleta de liberdade, de menina-mulher que foi longe, viu tanta coisa e voltou para se rever. E ganhou sustento e independência ensinando a outros o bordado que um dia lhe ensinaram, menina-cuidadora. Vira este bordado, vira de novo, e mais uma vez. Que artista imaginaria criar um caleidoscópio de agulha e linha? “Mas eu tenho tanta vontade conhecer o mundo... colocar mochila nas costas e ir ajudar os outros”... Tuas linhas e pontos já viajaram o mundo, Professora Ana Lúcia. Tua bicicleta está indo mais longe do que você pode imaginar. Prepare sempre espaço no baú para novas Recordações.

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ANA LÚCIA FAGUNDES DE ASSIS Bordado Recordações Ano 2016 Data de nascimento 03/11/1963


BIANCA

“QUEIMADA” DINIZ

Queimada, no dicionário:

jogo infantil, com bola lançada por dois grupos opostos sobre um campo riscado no chão, para afastar os integrantes de cada um dos grupos através do toque da bola no corpo dos integrantes, até um grupo ser totalmente atingido e “preso”. Queimada, no dicionário Bordados:

Amanhã de novo, hein! Lá no campinho debaixo do Cruzeiro! Na frente da casa de novo, sim, do casario! Chama todo mundo! Chama Lara e Thaina, Karol, Helen, Laiana (lá vem Laiana com aquela saia rosa de novo!), Rony e o restante! O campo tá pequeno, aumenta, aumenta que cabe mais gente e brinca melhor. Aumenta que o campo bom é quando fica um campo grandão assim que toma a rua toda! Pula, corre! Ah, tocou sim! SAAAAAI! Pode ir, pode ir, pro outro lado, tá presa! Soltou! Amanhã, então, depois da escola, a gente faz o dever de casa mais tarde, pega a bola – para de gritar tanto, menina, que bagunça! Queimada, neste dicionário, precisava de umas três páginas para ser corretamente descrita. Mas nem tudo precisa ser perfeitamente descrito: importante mesmo é ser profundamente vivido. Nem toda referência é geodésica-geográfica-cardinalmente exata: muitas referências trançadas não são a própria localização física, mas a fusão de pontos e elementos de outras praças, outras ruas. Bordado bom é que liga um lado da vila a outro, uma ponta de morro a uma árvore do lado oposto. E Queimada boa no dicionário Bordados é

a que mistura time, hoje um, outro amanhã, que rala o dedão, esfola o joelho, a bola murchou, pega outra de Ricardo emprestada, cuidado com a janela e o Fusca estacionado! Bum!

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Pegou aí que eu vi!

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Pegou na perna!

Não pegou!

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| É, tô presa. Alguém me solta!

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BIANCA DINIZ CARVALHO Bordado Queimada Ano 2016 Data de nascimento 01/04/1995




KAROLINE

“TEMPO BOM”

PELLANDA

Esta casa é tão livre que tem janela e nem precisa ter parede. É que no coração da jovem bordadeira não tem lá e aqui: dentro-fora é a memória do coração. Esta casa é tão livre que irmãs ficam de mãos dadas e sorrindo sem brigar (bem...algumas vezes até sim, vá lá, quem dirá...); e as roupas a mãe já resolveu: vão ser iguais também, para não se estranharem e ninguém reclamar. Se o pai tem Fusca azul (olha aquele Fusca, não é um Fusca qualquer), as meninas têm motoca de criança festeira e ligeirinha, carcaça vermelha e rodinha azul em homenagem ao carrão da família. E pra competir com a lembrança do riacho, aquele ali que se vê da janela sem parede, tem que fazer força, e força mesmo era a que a mãe sempre fez para cuidar do Natal: tem árvore enfeitada, tem presente embrulhado (“Pode esperar para abrir depois de rezar!”), tem memórias para construir um Tempo Bom. Mas vamos olhar de novo. O centro, o núcleo, o miolo, mesmo, de verdade, não é riacho, não é motoca nem árvore de Natal: é a dupla de irmãs que viviam quase que só elas de criança antes de chegarem em Burarama. Nos espaços do desenho é que as duas brincavam de tudo, no barro, na motoca, na bicicleta, de bola, de boneca. Foi em cada canto desse pano que não é de uma, mas de duas, arejado e sorridente, que se deu a construção de amizade que une até hoje, amiga, comadre, apoio, alavanca, amparo. Amizade de irmã é coisa tão bonita e vai pela vida toda. Mas, por via das dúvidas, põe aí roupa igual gêmeas que é para ninguém se lamuriar daqui a pouco: “A roupa dela é mais bonita do que a minha!”.

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KAROLINE PELLANDA Bordado Tempo Bom Ano 2016 Data de nascimento 18/11/1996


LAIANA “DOCE

MENINA” BERMUTE DA SILVA (in memoriam)

Que nome gostaria que alguém lhe desse após tê-lo conhecido e passado a conviver com você? Chame epíteto, chame apelido, chame do que quiser: como você gostaria de ser chamado se precisasse que alguém assinasse por você? ___________________________________________________ Na cama do hospital; depois de ser convidada para bordar um pano especial. A jovem que fora surpreendida com a doença grave e enfrentou com coragem o que precisava ser feito também aceitou iniciar os traços e os pontos da memória que lhe tocavam tão forte, mesmo em meio aos percalços do tratamento. Não iria bordar a dança que lhe tomava o corpo e o coração quando ouvia uma música; nem iria bordar os jogos da infância com Karol e uma dúzia de outras meninas pelas ruas de pedra e de terra. Não iria bordar sorvete de casquinha, nem carambola no pé, nem canto de passarinho, nem Pedra da Ema ou Cruzeiro. Queria bordar a memória mais engraçada e barulhenta, mais coletiva e familiar que experimentara: queria mostrar a mesa cheia do Barracão nas aulas de bordado, com agulhas sumindo, linha cheia de nó, briga na fila pra saber quem ia ter a ideia desenhada primeiro. Queria bordar suco de caixinha, bolo de padaria. Queria bordar e fazer homenagem pra Mari-mulher-menina-mãe-tia-avó-Angela, borda-herdeira que recebera um dom e transmitia a todos. E que lhe convidara a rebordar a história enquanto a história da vida se bordava. O bordado já cansadinho da menina que usava linha e agulha sobre a cama do hospital foi ficando mais delicado, mais suave, quase um sopro, quase a linha saindo da agulha, mas deu tempo de aceitar o desafio e combater um bom combate. O tecido é igual para todos, mas se deixa bordar diferente nos dedos de cada um. Laiana tinha sorriso, tinha beleza, tinha frescor e disposição. Mesmo na dor, sorria de quem chorava por ela e dizia: “Vai passar”. Passou ela fazendo baile e bordado. “Doce Menina” é um nome bom demais para ser escrito por alguém que precisasse assinar por você.

Laiana doce menina... Bordadeira desde 2005... Bordava neste tecido quando fazia tratamento contra leucemia... Não concluiu... Foi para o céu em setembro de 2017 com a idade de 21 anos.

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Crédito: Acervo pessoal

LAIANA BERMUTE DA SILVA Bordado Doce Menina Ano 2016 Data de nascimento 21/09/1994 Data de falecimento 07/09/2017


MICHELLI

“NATUREZA” PAIVA DA SILVA

O que conversam as duas meninas sentadas nos banquinhos, debaixo do sol-rridente, aos pés do cruzeiro? O que já houve atrás daquele caminho, do outro lado daquele morro, o que se passou por este outro campo aqui na frente? Meninas comportadas, assim, devem estar aprontando alguma coisa nova. Falando baixinho, organizando a estripulia. “Que história é essa de subir a Pedra da Ema com sua prima, criatura, lá naquela lonjura?!”. Mas prima-amiga também briga, fala palavrão, tem ciúme e quebra planos. A caixa de recordações que iriam criar ficou enterrada só na ideia, porque quem vai querer criar uma caixa de memória com quem a gente nem gosta mais? Mas amizade, carinho, lembrança boa, família... história de vida é a m_e*s-M_a coisa que bordado bonito: três passadinhas aqui, puxa o fio, endireita...errou de novo, volta e desfaz, passa de novo, conta direito, olha - AI! Furou o dedo! - passa com calma, vira do avesso. Agora sim! Quando volta e faz de novo tudo se apruma e ganha cor. Eu acho que as primas estavam sentadas voltando a conversar, reconciliação é coisa boa pra fazer assim, com calma, esquecendo o que passou e aprumando o que virá. Quem sabe, agora sim, subir lá na Pedra da Ema pra ver Burarama de cima? – Que história é essa de subir a Pedra da Ema com sua prima, criatura, lá naquela lonjura?! Bem, talvez as primas reconciliadas não tenham mesmo subido juntas a Pedra da Ema, mas bordaram juntas o coração da amizade e do recomeço, num pano tão firme quanto uma rocha ancestral.

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MICHELLI PAIVA DA SILVA Bordado Natureza Ano 2016 Data de nascimento 16/12/2002


PALOMA

“CIRANDA”

AGUIAR MINARINI

No bordado chamado Ciranda, todo o desenho é uma roda a girar. Tem ritmo de ciranda, tem toada de ciranda, dá para ouvir molecada gritando enquanto se ouve-vê este pano tremulante. É circular, circulante, brilhante e sonoro. Brincadeira no parque da escola na hora do recreio. As palavras-cantiga embalam o bordado cheio de ritmo. A criança bordadeira, cirandeira, é sua própria memória e curtição. Olha a si mesma e se envolve com orgulho. Há uma memória-brincadeira de absoluta inclusão. Interessante: a Paloma bordou sua ciranda de infância agora, aos 23 anos, ou seja: guardou e reproduziu com tanto zelo algo que já tinha ido há um certo tempo. Mas foi no embalo da ciranda que resolveu ciran-bordar. Bom sinal das cirandas da infância. Terapia mais colorida essa de bordar, essa de brincar, de rodar na roda do pátio da escola: reconhecendo sua questão física, estampa no algodão que nada disso jamais foi impedimento para se realizar. Um pano assim, rodado e esvoaçante; umas linhas assim, num sobe e desce cativante; um ritmo assim, de ciranda que quem ficar até o final ganha o dia de alegria... Quem ganha alegria, mesmo, é quem vê um pano bonito desses, com criança sorridente, com Igreja, com casa, com Ema e Cantina de Mariangela servindo sorrisos desempacotados. Tudo junto, tudo misturado, e tudo ali no coração, estampado. Não é fácil ocupar o pano desse jeito: tem gente que faz quadro, tem gente que faz estante, tem gente que faz fotografia. Tem gente que faz ciranda colorida e bailantemente distribuída. E com tanta beleza e barulho bom juntos... aquele laranja escrivinhado, redondo e cantarolado... ah, não há ciranda nem observador que resista a um belo laranja-festivo assim, bordado.

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PALOMA DE AGUIAR MINARINI Bordado Ciranda Ano 2016 Data de nascimento 14/08/1992




MARINA

“APEGO” GAVA PEREIRA

Tem uma rapagão traiado ali, sorridente e orgulhoso. Carrega no seu pano-santuário, o canivete na capa de couro, o chapéu e o cordão com cruz pelos quais era apaixonado. Trajado assim, country, caipira, sertanejo, bota de couro, camisa estampada que dá orgulho ver desse jeito tão bem bordada, parece que a gente pode ir logo chamando para um tira-gosto e ouvir uma moda de viola bem cantada. Mas agora o menino é eterno. Nas lembranças da irmã e no pano bordado com saudade, tem sua história, seu sorriso e sua memória marcados. Apego de irmã orgulhosa do irmão faz dessas coisas: saudade que não termina, lembrança que não suaviza, bordado que não se desfaz. Os irmãos tão ligados (“Carne e osso, a gente era!”) se separaram na pele quando ele se acidentou. Nas memórias que as bordadeiras foram remexendo para escolher e trazer à vida de novo, a menina trouxe o irmão. “Não deixa essa mancha aqui não, quando forem fotografar. Cuidem bem do pano dele, tá bom?”, disse a menina jovem na praça da cidade, com os cabelos fininhos colando no rosto molhado de lágrima de saudade. Amor grande faz um irmãozão que abraça o pano todo. Cada ponto puxado, cada ideia de cor e de material incrustado, é sinal do que a família lhe pode representar. Cada peça bordada com cuidado: a cadeira de linha-madeira tão firme, tão forte, é um bom lugar para a irmã, nos dias de luta, sentar e pensar. O irmão não perdeu o sorriso. Vermelho. Largo e expansivo. Espero que você, bordadeira apegada de amor, recupere logo o seu sorrir. Vamos bordar o caminho que segue adiante, de chapéu com aba, de blusa xadrez e bota envernizada. Bonita, assim, traiada.

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MARINA GAVA PEREIRA Bordado Apego Ano 2016 Data de nascimento 19/12/1998


REGINA CÉLIA

“DOÇURA” ROCHA

Doceira boa não louva o doce pronto: sempre tem um pontinho a mais ou a menos para a próxima mistura, um pauzinho de canela que cabe, um grão de carinho para a próxima fornada. Aqui mesmo, a doceira que faz bordado tão lindo, a bordadeira que faz doce tão gostoso (“Tem geleia de hibisco e doce de laranja pra você levar”), fica assim meio sem graça e diz que não sabe bordar: “Isso não entra na minha cabeça...”. Mas eita! Que tecido docemente pensado! Ele mistura tanta cor gostosa, bordado tão cuidadoso que parece bolo com chantilly, cupcake de morango, pirulito com caramelo docinho; bolinho Floresta Negra, fatia de torta de limão... E não existe doce se não existir criança lambuzada; não tem confeiteira, doceira, cozinheira, merendeira, mulher festeira que se preze, se não houver criança pidona com olhar de “por favor”; não tem doce que valha o açúcar se não for pra lambuzar a boquinha voraz e o olhar guloso de quem nem terminou um pedaço e quer um a mais. Por isso, um bordado docemente pensado assim tem que trazer açúcar e criança, cor com meninada, tudo ligado e reunido assim, um dentro do outro. A bordadeira gostava tanto de tudo isso que trabalhava na cantina da escola só para ouvir o zunzunzum da meninada. Enchia o coração de alegria e devolvia alegria enchendo outros corações. E barriguinhas, e bocas e olhares pidões. Bordar como cozinhar, dar pontos com linha como dar calor em açúcar... o que a gente espera, mesmo, não é o que entra, é o que sai de gostosura. Olhe este bordado: não dá vontade tascar uma mordida nesse bolinho enorme e doce que ele ficou?

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REGINA CÉLIA ROCHA Bordado Doçura Ano 2016 Data de nascimento 19/09/1948


CLEMILDA “BONS

TEMPOS” DOS SANTOS

É um bordado de rica habilidade. Dir-se-ia: um bordado de carinho e cuidado com o passado. Tem nome bom, Bons Tempos; tem narrativa, cor, preenchimento; traz a chama de orgulho do que viu ser construído à sua volta: A charmosa casa de pau-a-pique está lá. Tem uma nobreza, tem um cuidado que vai de quadrinho a quadrinho do barro amassado entre as estacas, e tem portas e janelas abertas com aduelas grossas de ponto largo. Tem chaminé fumegando com o fogão sempre aceso de casa na roça. Está lá a árvore frondosa, que resgata a mangueira sob a qual a mãe sentava para fazer as esperadas bonecas de sabugo de milho. As bonecas de sabugo de milho! Não tem boneca de plástico, nem de louça ou de borracha que se compare em refinamento às orgulhosas bonecas de sabugo de milho que mamãe fazia debaixo da mangueira frondosa. Veja essa mãe caprichosamente bordada, criando caprichosamente bonecas tão lindas de sabugo de milho! Tem irmã cuidando da criação logo ali acima, tem irmãs esperando a bonecaria abrir no terreiro da família. Mas... para alguém com habilidade no bordado, qual o motivo dessas crianças todas de rosto escondido? Por que tanto cabelo a sumir com as expressões de nossas meninas felizes no terreiro de casa, à espera das bonecas? Os Bons Tempos têm dor, também: é verdade que a obra prefere (como muitos bordados expressam) destacar a felicidade escolhida mesmo quando admite a dificuldade vivida. É por isso que um detalhe assim, quase que passado sem nota, denota tamanha reflexão. Eis aí a questão: como a bordadeira desenharia a sua pele negra no pano? Como criar formas de se representar? É possível se mostrar como se é, naturalmente? E como mostrar quem se é se, tantas vezes, o que precisou, mesmo, foi esconder quem se era? As meninas ganharam cabelo enorme, que assim lhes retirava o trauma de reconhecer a pele negra nos tempos de criança. E se bordasse sua negritude saudável e forte, agora? Iriam rir e fazer troça como outrora? Dessa vez, ainda, precisou calar-se. Mas as novas bonecas de pano bordado ajudaram a mulher a refazer suas brincadeiras de vida. Porque cada ponto que se erra, cada nó que se desmancha, é algo que se liberta dentro de uma bordadeira. Sentimentos bloqueados que a linha ajudar a desbloquear. Os Bons Tempos abriram a cura da alma da bordadeira. O bordado seguinte, noutro projeto, virou a página: pegou as linhas que o representava dignamente e fez toda a família negra, orgulhosa, destinada a lutar para sempre contra o preconceito de um tempo que, queiram Deus e o bordado, não volte mais. São estes os Bons Tempos que curaram o coração desbordado da bordadeira. Hoje mais que antes, mas como sempre e felizmente, negra de linhas e linda de cores na sua cor favorita: preta de todas as cores e amores.

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CLEMILDA DOS SANTOS Bordado Bons Tempos Ano 2016 Data de nascimento 06/01/1966


ANA “ADOLESCÊNCIA” DORIGHETTO Adolescência é assim: a gente não é nem adulto nem criança. Fica tudo meio solto por ali. A gente tem medo de escuro, mas quer ser forte e destemido. A gente chora de saudade da mãe, mas quer ter autoridade diante da irmã mais velha que cuida da gente. Adolescência é bem por aí: esses horizontes todos como histórias recortadas, caminhos estancados, destacados. Um pano cheio de memórias boas, cheio de recordações, mas lá se vão todas assim, um tanto quanto horizontes separados. Difícil olhar diretamente o sentimento dos outros, né? Vida longa e sentimentos sem fim àquelas que permitiram entrarmos em seu coração, suas memórias, em sua adolescência. Precisa nobreza para mostrar e nobreza para olhar. Mas, enfim, tinha lá a porteira com o pasto dos cavalos e burricos; tinha lá a casa grande da família misturada; casa bem de roça, com banheiro do lado de fora e criançada a bagunçar tudo ao redor. E tinha criação, açude com peixe de pescar, roupa no varal que nem de pregador precisava, porque varal tinha o farpado, que já deixava a roupa presa ali sem voar. E tinha a mula preta Lustrosa do pai orgulhoso – mesmo que a mula agora, neste exato momento bordado, esteja ali sem querer, empacada que só ela. E tem fila indo para a Igreja no domingo e tem sol... E tem um sol pequenininho... Quase escondidinho... “Queria tanto ficar com a minha mãe... fui criando um monte de medos na adolescência: medo da morte, medo de errar, medo do pecado, de solidão...”. Quando a tarde chegava e o vermelhão no céu avisava que o sol iria raiar forte no dia seguinte, a menina adolescente sofria de medo. Dia de sol era dia da mãe longe de casa, dia de lida na roça, dias fora, quem sabe se iria voltar? Um sol pequenino, ali no cantinho, assim, escondidinho, quem sabe, não segura a ida da mãe para a roça amanhã? “Mas tem alguma frase que você gostaria que eu dissesse, que eu fizesse registrar junto com seu bordado?” “Tem sim: falar aí que tudo vale a pena. Viver vale muito a pena.” Quem sabe não é o bordado que alinhava os caminhos todos, que ficaram meio espalhados, por ali?

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ANA DORIGHETTO PELLANDA Bordado Adolescência Ano 2016 Data de nascimento 20/08/1964




CAROLINE

“RECANTO FELIZ”

PIMENTA

Vô e vó: tem espaço para os dois no bordado da menina-criança-adulta-mãe. Bem que merecem um pano inteiro, mesmo, um caminhão de panos de algodão, um campo de algodão cru que é para bordar até o fim de mais uma vida inteira com eles. A neta menina-mulher que deu à luz há um mês reverenciou em 2016 o vô com a lembrança do balanço na árvore: nos voos dos balanços que o velho fazia, o coração da neta aprendeu o sabor da alegria e o sentido de brincar. Vo-os: tinha como ser mais adequado um vô que faz balanços para voar? A vó cuidadosa, que sempre ficava no pé e não deixava sair nem namorar, foi lembrada e bordada na casa bem cuidada e limpinha, no terreiro arrumado e varridinho. Morar com vó e com vô, com balanço em árvore e casa aconchegante: não dá pra ser melhor – melhor só se tiver riacho pra pescar e tomar banho em dia de calor. Olha! Tem riacho grande e com peixinhos, que é pra pescar e soltar, e tomar banho em dia quente. Num bordado de vô e vó assim, como escolhe os pontos, como pensa o estilo? Vai do estilo de cada local, de cada memória, do jeitinho de cada um. A telha caprichosa tem um ponto e um desenho. O campinho tem um ponto e um desenho, as mangas bem maduras, de um amarelo quase alaranjado, tem outro ponto e outro desenho. No ponto bem tramado dá pra ver um campinho tão bonito, desses que a comunidade inteira cuida com carinho, pra menino-homem correr atrás de bola, pra menina-mulher entrar e fazer festa, e a molecada gritar chamando um e outro que não chegou ainda. Você me desculpa, um instante, que não dá mais pra aguentar neste calor: vou ali no riacho dar um mergulho, esfriar a cabeça debaixo da água que desce pela encosta da pedra lá em cima; depois vou correr ali no balanço para subir alto num voo rápido; daqui a pouco tô de volta pra mais um bocado de papo. Quer ir também, ali, rapidinho?

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CAROLINE PIMENTA DOS SANTOS DARDENGO Bordado Recanto Feliz Ano 2016 Data de nascimento 17/06/1993


MARIA IDALINA

“AMOR” SANTOLIN FRISSO

Este é um pano que poderia ter assinatura dobrada: igual aos apelidos entre namorados riscados na árvore; ou coração marcado na areia da praia; e serenata composta com nome de casal apaixonado. “Ass.: Maria Idalina e Osmar.” É bem verdade que o pano é arte dela. Todinho: banco de madeira caprichoso, debaixo do jirau florido e com céu cheio de estrelas, lua carinhosa, do jeito que era lá, aqui está. E, repito: banco de madeira debaixo de girau florido, montado assim como se fosse produção de novela chique ou filme em preto e branco. Para invejar! Mas o amor conquistado... o amor que hoje vira bordado foi um pedido dele. É um baita bordador esse Osmar. Bordou direitinho, fez Maria Idalina até lhes bordar depois de quase cinco décadas de casados! É bordado que não se acaba mais. Hoje, olhar o pano, olhar o casal estampado no pano, olhar os dois amorzinhos de mãos dadas na praça, os cabelos já nem tão castanho nem tão pretos assim: construir um amor dá trabalho! Mas ter a certeza de um amor bem construído: ô, trabalho que compensa. Trabalha e Confia, já dizia o lema desta terra! Mas esse trabalho até que é moleza: quero mesmo é ver o trabalho de despistar o danado do poste. A Maria Idalina agora confessa, com a autoridade que os “quase 80” lhe concedem: “Era tudo tão lindo, tão romântico. Mas aquela luz, aquele poste, bendito poste! Quanto eu pensei em pedir aos molecotes da rua para tacarem uma pedra naquele poste!”. Namoro formal e certinho, né? Tem família indo ver se vai chover, tem sobrinho pequeno passeando ao redor. Se tiver um poste iluminado a fiscalizar o casal cheio de sonhos, ainda melhor. Se tem luz de mais, tem uns beijinhos a menos, mas, assim, aprende-se a namorar com aquilo que se tem: um bordado que mostra um casal de mãos dadas não é um sinal qualquer, é sinal de amor bordado ao seu tempo, do seu jeito. Porque segurar na mão é um já estar no céu. Psiu, silêncio... deixa o casal namorar sossegado, faça silêncio para o amor se iluminar...

* RECEITA PARA AMOR DE VIDA TODA * Um bom punhado de confiança Uma dose de coração disposto Um banco de madeira com jirau florido Um poste a clarear casal novo e ansioso

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MARIA IDALINA SANTOLIN FRISSO Bordado Amor Ano 2016 Data de nascimento 21/06/1942


JULIETA

“SAUDADES”

RABBI COSTALONGA

Ouça bem o que o poeta escreveu: não é propriamente a saudade que é a palavra triste. Triste ela é, apenas, quando se perde um grande amor. Agora, um pano chamado Saudade, com essa quantidade de traços, de caminhos, de volume; essa quantidade de cores, de pontos infinitos... Saudade tem que ser coisa triste? Abre a porteira e vem subindo: Bem-Vindo. Porteira larga, com Bem-Vindo em vermelho e galo altaneiro na ponta. É um convite a passear. Parece aquelas visitas que a gente faz para ser rapidinho, visita de médico, e aquilo vira uma tarde inteira e ainda falta espaço para mais conversa, e mais uma coisa a se mostrar. Já viu a criação, que maravilha que tá? A galinha caipira teve cria anteontem, os bichinhos estão uma coisa rica, amarelinhos ali debaixo do pomar. O cachorro sem-vergonha é que perturba os pintinhos até a mãe dar um chega-pra-lá nele que sobe poeira no terreiro todo! Mas vai entrando que a casa tá limpinha, hoje, lustrou o chão, e o cheiro de cera ainda passeia com o vento. Ah, esse casarão sempre dá satisfação de ver, né? O dia tá uma lindeza, essas plantas todas ajudam tanto a refrescar... O pomar aqui atrás vai ficar carregadinho este ano. Já passou lá naquele canto? E a hortinha que regou agora? E esse tanto de borboleta por causa do açude ali do lado? Ah, é tudo colorido assim, nesta época do ano. Mas você se cuide, viu? Volta logo, não demora esse tempo todo a vir para ver tudo por aqui, não. Tira um tempo, vem para cá. Fica um pouco mais que faz bem pra vista, pro coração. Você olha o casal aprumadinho na chegada, roupa colorida e botinha lustrada, parece até que receber amigo é coisa de festa. E num é? E você vai-se embora bem depois do que esperava e já sai com o coração querendo voltar, o olhar espichado para trás, e tá lá o casal orgulhoso já aguardando sua volta... Qualquer um quer se encher de Saudades desse jeito.

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JULIETA RABBI COSTALONGA Bordado Saudade Ano 2016 Data de nascimento 28/01/1963


MAYZA

“CRUZEIRO” SILVA

Pedir para uma criança bordar a própria história é coragem para quem pede e desafio para quem borda. Coragem de pedir a alguém que está construindo a própria história que se debruce sobre um baú ainda leve de memórias e busque o que deseja apresentar ao mundo. Desafio de aceitar vasculhar o que é ainda tão recente em si e já lhe dar um valor desses, se expor assim, contar história da história, assim. Se vai marcar uma lembrança, então que seja uma lembrança alta: Cruzeiro é sempre um ponto tão alto, mas tão alto além da nossa casa, que a gente se acha herói de filme, conquistador de história, repórter de programa de aventura, quando chega lá em cima e tem história para contar para os outros. Cruzeiros são, geralmente, locais de difícil acesso, e que a fé da comunidade estimula, por ato de devoção, que se suba até o ponto mais alto e se finque uma bela cruz para marcar a força do devoto e o poder do Devotado. É por isso que memória de criança tem prazer em trazer Cruzeiro e morro alto para o pano: é um lugar que, se não subiu, tem o sonho de subir; se já subiu, tem a marca para sempre de que lá em cima já chegou. E no pano, como na vida, não importa muito se tem um monte de pano a mais para bordar, um tanto de espaço para ocupar. O que importa - foco no que interessa! - é o Cruzeiro alto a que eu consegui chegar. Tem casa no sopé, tem árvore e morrete, tem sol em meio a nuvens (porque subir morro com tempo mais fresco é dádiva total). Mas o que tem, e o que interessa, é o Cruzeiro aonde nós fomos com a turma, onde fizemos piquenique e descemos quase entrando noite. Já que é pra marcar alguma coisa, borda logo a memória do Cruzeiro.

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MAYZA SILVA Bordado Cruzeiro Ano 2016 Data de nascimento 18/05/2002




MANUELA

“AMIZADE” BRAVIM

Chamar um bordado de Amizade é como escrever uma dedicatória charmosa na primeira página do livro que você dá de presente para alguém. É para ela. Melhor ainda: é colocar uma dedicatória charmosa na primeira página do livro que você mesmo escreveu e ofertou a alguém. Nesta Amizade tem um sol bem redondo e preenchidinho que ilumina o cenário como de dia. Tem nuvem azul porque céu e sol são coisas que combinam muito bem com nuvem desenhada pelo sopro do vento. Tem banco de madeira para marcar a memória, dar a pista certa e jamais se esquecer da praça onde nasce papo, nasce jogo, nasce plano, nascem briga e reconciliação; banco de praça onde nascem música, gritaria, jogo de dama, projeto de arte e oração. Tem chafariz todo trabalhado, costurado de pedra em pedra, que refresca a pele, o ar e a memória, e conta tudo sobre os espaços que se frequenta. E tem ali, quase no canto direito, um pouquinho mais pra cima, um tiquinho mais para o centro, naquele local tão especial que os mestres chamam de Ponto de Ouro, no cruzamento das linhas da Regra dos Terços, a coisa que é mais importante, o elemento que você deseja que o observador alcance inconscientemente, que os olhos busquem mesmo que você nem sequer perceba para onde os neurônios te levam... A Amizade. O restante é complemento. Sol, nuvem, chafariz, banco de madeira. Até aquela florzinha que brotou teimosa no jardim da pracinha. Isso é só alegoria. O que importa, o que merece ponto e reponto, cor e correção, papo e reconciliação, é a amizade das primas-amigas. Se elas moram tão distantes hoje, cidade grande, cidade pequena, isso tem menos atenção. O que importa é o ponto de ouro onde se crava o coração.

Pois seja o que vier Venha o que vier Qualquer dia, amig[a], eu volto a te encontrar Qualquer dia, amig[a], a gente vai se encontrar (Milton Nascimento, “Canção da América”)

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MANUELA BRAVIM GOMES Bordado Amizade Ano 2016 Data de nascimento 06/06/2003


RENATA

“SIMPLICIDADE” PANCINI GRILLO

Nas orações recitadas, nada há de mais simples e devoto que a reza do Terço. Nas contas que se sucedem, o dedo pausado vai atravessando as dores e as alegrias no coração, riscando o céu da cor que a alma está naquele dia. Nas contas que se sucedem, como se sucedem os pontos do bordado. Dentre as artes de linha e agulha, qual há de mais natural e lúdica que o bordado? Dentre as memórias da juventude, quantas há mais fortes que oração e bordado? Para Renata, a história é toda familiar; da avó para a tia, para ela. Oração e Bordado. Está lá, ancorando o centro de suas histórias, o terço que Vó Anna deu e com o qual ensinou o valor da vida cristã. Está também a capela de São João Batista, amarelinha como ainda agora se passar lá na praça. E tem a Ema que é sinal sagrado da vida bonita que a criança aprendeu a viver jovem e crescer menina. Tinha tanto tudo isso na memória que fez seu bordado nos fins de dia, já em Alegre, cursando faculdade. Foi completando fase por fase, mesmo com medo de não fazer sentido. E foi assim que todo o sentido se fez: simples como abrir uma gaiola de passarinho. Veja lá, voando e satisfeitos. Abriu as gaiolas de passarinho, deixou-lhes irem fazer festa no ar, festa no céu junto com o pai, tão amado, falecido. Que gostava de passarinho comendo bem pertinho, nas gaiolas. Mas a menina crescida precisou aceitar o voo do pai e deu voo também aos passarinhos, como quem deixa ir e diz: “Vai em paz”. Há bordados que só se fecharam agora. Há nós de fechamento que só agora foram dados. O que há de mais simples e devoto que um terço e um bordado?

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RENATA PANCINI GRILLO Bordado Simplicidade Ano 2016 Data de nascimento 16/12/1995


IZABEL

“DOCES RECORDAÇÕES” SILLIS FASSARELLA

Há bordados assim, tão devotados, tão luminosos, tão reverentes, que merecem um silêncio meditativo, desses de entrar em capela, antes de começar a ser esmiuçado e compartilhado.

Shhhhh... Há bordados assim, tão enormes, tão construídos, arranha-céu de emoções, um prédio de 10 andares de memórias, gigante, gigante. Peça bênção a Vô Santolin e Vó Luiza, que criaram Bel como quem recebe uma dádiva nas mãos – criaram Bel e mais um sem-conta de meninos e meninas que precisavam de um renovado olhar de pai e mãe por suas vidas. Se você não sabe das histórias de Bel e do casal que lhe acolheu assim, olhe o pano e perceba se não há amor. É um pano de recordações sem fim, doce como cocada quente, como banana cozida com canela. Do vô, o Jogo Caipira com aquele copinho engraçado de couro tão certinho que ele mesmo fez, o dado pequenininho e o desejo de ter pra si: “Dá pra mim, Vô?”. Da vó silenciosa, que ensinou a rezar, o terço contado que traça o céu com o salmo da sua própria meditação: “Adote uma criança e faça ela feliz”. E uma medalhinha do Rosário que encontrou espaço certo para compor a nuvem de oração em contas, que preenche o céu e a alma de quem borda e de quem reza. Se você não sabe por que tem um Fusca no bordado, pois se acalme, vou contar: já com apenas 12 anos, a magrela Izabel recebeu missão de honra. Foi aprender a dirigir para levar o Vô e a Vó a passear. Pensa bem o que se faz, uma menina a pilotar! Mas quem sabe rezar, jogar e dirigir talvez tenha dentro de si uns bordados a completar: “Bel, larga os pintinhos com a galinha que eles tem que ficar é com a mãe.” “Bel, não tira os pintinhos da galinha que ela fica brava e eles morrem!” “Como morrem os pintinhos, Vô Santolin, se eu fui separada de minha mãe e estou muito bem aqui?” Pois foi na oração, no cuidado e na nova criação que a Bel reencontrou o perdão para a mãe natural: menina adotada pelo casal, foi a Bel quem hoje adotou a mãe que lhe deu a alegria do viver. Resgatada graças ao Vô e à Vó que lhe deram a alegria de crescer. Um bordado desses, festivo, sarado, abençoado. Um bordado da filha das curas d´alma. Faça uma reverência e um pequeno silêncio meditativo ao sair.

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IZABEL SILLIS FASSARELLA Bordado Doces Recordações Ano 2016 Data de nascimento 23/08/1964


MARIA LÚCIA

“A FESTA” RIBEIRO GAVA

Pensa que gostoso é ouvir uma bordadeira pegar seu pano, apertar no peito e dizer sorrindo: “Ah, mas eu estava com uma saudade do meu pano!” Do que você tem saudade? E do que gosta de se recordar? A Maria Lúcia tinha saudade do pano onde bordara a alegria de recordar A Festa: Talvez não se recorde, exatamente. Da festa. Festa para menina, apenas 1 ano de idade. Mas a mãe garantia: só teve festa para ela, depois não teve mais. E os irmãos enciumados falam até hoje: “A preferida!”. A mãe garante e reafirma: “Fizemos cajuzinho! Comadre, prima, amiga, todo mundo participou!”. Mas quem garante que a mãe não estava aumentando? Talvez quisesse só marcar uma alegria na menina nascida na roça... Enfim, a memória a bordar foi a festa, sim. Porque as histórias estão aí, e no fundo do coração... como não amar a festa que a mãe fizera? Festa gostosa, com o povo no terreiro. Nessa festa de agora tem balão – sabe-se lá se tinha balão naquele tempo, menina?! Tinha sim, que isso foi até assunto de conferir! E tem mesa enorme nesta festa re-contada, com pano e bordado feito só para ela pela mãe; e tem o cajuzinho bem representado, e docinho que não se acaba mais, e bolo grande com vela de assoprar “1 ano”. E tem os filhos que vieram depois, e tem os netos bordados também... É festa para garantir a presença de todos! Agora: quem lá iria se lembrar de festa de criança na roça com um ano? Se nem foto tem... Mas eis que, pouco tempo atrás, um dia o esposo chegou em casa com um papeletozinho pequenino, quase sumindo na mão de homem feito. Era um envio feito pelo conhecido lá de outras bandas, um pedacinho de papel marcado assim:

Obrigada, amiguinhos que vieram me felicitar... Faz hoje um aninho que cheguei neste lar “Entregue para sua esposa: é uma lembrancinha que deram na festinha de 1 aninho dela e que eu fui convidado, tanto tempo faz. Como é que pode, né? A lembrancinha da festa de 1 aninho daquela menininha! E foi tudo tão bonito... Tinha até cajuzinho, acredita?”.

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MARIA LÚCIA RIBEIRO GAVA Bordado A Festa Ano 2016 Data de nascimento 16/11/1954


bordado “VIDA”



VERÔNICA

“HARMONIA”

PAIVA DA SILVA

“Tenho tudo na mente.” A neta foi criando seu bordado de frente: eis aí uma olhadela pela janela para conferir se o sol ainda está quente, porque o avô cego pedia para só sair de casa com o sol já baixo. Era a neta quem levava o avô aonde ele queria. As linhas de lembranças vão se sucedendo em camadas, assim como quem lê a vida em linhas de Braille, como quem toca a vida pela pauta em Clave de Sol, no grupo de violões que alguém especial organizara e que a menina se orgulhava de tocar. Burarama Terra Querida. Eis aí uma história boa para se chamar Harmonia. Era nas pautas musicais que o avô se deleitava ouvindo a neta, alegremente dedilhando o “Alegra-te, como o raiar do sol...” Hoje há um desafino pela passagem do vovô. Mas é corda que logo, logo volta a afinar. Está tudo na memória, está tudo bem bordado: A visão do velho amado, que sem visão amava ser cuidado. Bom de ouvido e de sorriso, passos curtos, mas sem nada reclamar. Há uma neta, bordadeira-violeira, que entregou os seus ouvidos, os seus olhos e a memória para poder bordar a vida de alguém que lhe ensinou o que é cuidar e, por isso mesmo, o que é amar. Harmonia gloriosa escrever a vida em linhas, pelas pautas, a bordar.

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Bordados e Memórias de Burarama



VERÔNICA PAIVA DA SILVA Bordado Harmonia Ano 2016 Data de nascimento 18/11/2001


ANA CLARA

“COMPANHEIRAS” MORAES

Não estranhe: você já viu essas duas menininhas por aí, algumas páginas atrás. Para elas, antes como agora, o que importa é a amizade. “Eu bordo você e você borda a mim”, combinaram as primas-mais-que-irmãs. Fizeram direitinho. É isto: do que mais precisa o pano das Companheiras que representar duas companheiras? Do que duas companheiras precisam a mais, nesta vida e neste pano, que duas árvores frondosas, um céu de nuvem pespontada e um balanço para voar alto, e depois sentar pra conversar sobre os dias seguintes? Panos assim, de meninas que ainda estão crescendo, precisam de concentração e disciplina, porque um ponto dado aqui é uma arte que não se está fazendo lá do lado de fora do Barracão, você há de concordar. Bordados assim estão tão cheios de futuro, porque olhar o presente e o passado é um exercício duro para as meninas ainda tão meninas! Mas cada vez que se pega na agulha, cada vez que se faz e se desmancha um pontinho desses, é uma lição que se aprende para o resto da vida que se tem pela frente. Quem disse que um ponto é só um ponto? Quem só enxerga linha e agulha, algodão e costura, está fechando os olhos para a magia que se apresenta, para o impossível que se transmuda. Um pano desse jeito é um pacto de arte, um juramento de fidelidade, é como dedicatória carinhosa em livro novo para presente... Um pano assim, jovial e pensativo, é a garantia de que a herança está sendo semeada onde há de frutificar para o agora e o sempre. Por isso, fazer os balanços e os caminhos para o amanhã é missão que se faz melhor entre Companheiras.

Bordados e Memórias de Burarama

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ANA CLARA MORAES DE OLIVEIRA Bordado Companheiras Ano 2016 Data de nascimento 20/07/2002


LAIZA

“VENTANIA” BARCELOS

Muitas vezes a maior habilidade floresce entre lágrimas. Tem uma menina bonita neste pano. Tem uma menina triste neste bordado. Tem uma menina afetuosa neste pano. Tem uma menina chorosa neste bordado. Como é que se expressam sentimentos com um tiquinho assim de linha e agulha? Você olha para a menininha e dá uma dó, um apertinho aqui no peito. Braços cruzados, boquinha contorcida, olhar marejado. Tem um alazão no céu chorando, neste pano. Ele faz par com a tristeza da menininha com chapéu de aba larga, que chora neste bordado. Ventania voou um tempo bom, deu para a menina feliz cavalgar e fazer passeio com ele. Mas ventania boa, assim, refresca e levanta a poeira, e depois de um tempo passa e vai-se embora. Ventania soprou um bocado de alegria para a menina que gostava dele. Tanta alegria que, quando a deixou e foi cavalgar no céu, deixou assim: tem uma menina triste neste pano. Falecer é só uma parte do estar vivendo. Aos amigos queridos a gente dedica até o último momento, faz velório com carinho, e enterra com emoção. E amigo bom também sofre junto com a gente. Esteja ele onde estiver. Lá do céu o Ventania olhou carinhoso para a menina e, chorando como choram os animais de estimação, contou chateado a São Francisco: “Tem uma menina bonita neste campo. Mas hoje tem uma menina triste neste bordado”.

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LAIZA BARCELOS COSTA Bordado Ventania Ano 2016 Data de nascimento 07/07/2003


MARGARET

“SONHOS” GAVA (in memoriam)

Acordei lembrando o sonho desta noite. Era engraçado e colorido, juntava tanta ponta que estava perdida dentro de mim, tanto sorriso e tanto lugar. Fui conectando passado antigo com passado recente; fui revendo morro de um canto, casa de outro – toda mimosa, em meio ao jardim. Tudo era ligado pelas cores, muita cor, um sonho colorido. Era tanta coisa boa junta que não era um sonho. Eram Sonhos, vários, juntos. Fui sonhando os animais da roça, peixe, lago, criação. Até o burrico e a charrete eu vi de novo! E era tanta flor, tanto chão, tanto capim! Mas as árvores eram árvores de sonho mesmo, de sonho de cinema, de sonho de artista. De sonho de emoção. Eram tão diferentes e tão graciosas; tão emotivas, tão cuidadosas. Eram altas e redondas, e tão densas que pareciam um crochê enorme da natureza. E tinha coqueiro com coco pedindo pra ser tirado e bebido, e a carne molinha cortada com colher de casca feita a facão. Eu olhava para um lado e outro, dormindo e sonhando, e sentia até o cheiro, até o ventinho quando o sol ia se pondo e refrescava um pouco o lugar. Dizem que em sonho a gente não consegue se ver, é só nosso olhar olhando direto pra vocês, né? Mas eu olhei bem no rosto do sonho, eu procurei bem direitinho quem é que estava lá: eu me vi, e eu estava onde sempre quis estar. O sonho era tão lindo, ele era todo emoldurado, não tinha um canto sem estar marcado... Olha, eu não sei, não: eu acho até que esse sonho era tecido, eu acho que esse sonho era bordado.

Bordados e Memórias de Burarama

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Crédito: Acervo pessoal

MARGARET GAVA Bordado Sonhos Ano 2016 Data de nascimento 03/04/1957 Data de falecimento 07/04/2020




LOUDINA

“IDAS... VINDAS” PENHA GAVA (in memoriam)

A Loudina vivia no ritmo das Idas e Vindas. Veja lá: Ligada ao campo e à praia, fazia do caminho entre o mar e a terra a passarela por onde desfilava seu amor com a mesma grandeza: sentir o vento com maresia da Praia da Costa, sentir o vento com cheiro de mato e chuva que vai chegar à Fazenda Petrópolis, em Burarama. Quem borda o próprio caminho, quem se reconhece e se alegra de estar ali, indo e vindo, é gente que sabe o que quer: porque quer tudo o que quer. Quem se enxerga sempre a caminho traz ao seu lado alguém para nunca caminhar sozinho. Ei-lo, Flamínio, caminheiro e companheiro, esposo e, agora, um bordado nos panos da Loudina. O bordado livre tem essa magia que só os grandes artistas alcançam, digo e repito: não há fronteiras ao longo de um pano sonhado; não há limites nem geografia que amarrem quem deseja reinventar a vida no bordado! A casa linda e espaçosa, pintada de amarelo e azul com tanta coisa feita pelo próprio pai, agora olha altaneira para o litoral charmoso de Vila Velha, com direito a navios transatlânticos, petroleiros e barco à vela se cruzando, entrando e saindo de um cais. Nas idas e vindas da Loudina, caminha-se pelas estradas de chão rumo às cachoeiras do interior com o mesmo prazer que se caminha pelo calçadão à beira-mar. Quem sabe para onde quer ir e avisa direitinho quando quer voltar usa linha e agulha para contar as histórias com a mesma desenvoltura que recebe e manda foto e mensagem de amor pelo WhatsApp, que é para alegrar o coração de todo mundo e também para se alegrar. Família, Paz, Dedicação: tem alguma coisa a mais nesse caminho, nesse mapa do tesouro, para se adicionar?

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Bordados e Memórias de Burarama



Crédito: Acervo pessoal

LOUDINA PENHA GAVA Bordado Idas... Vindas Ano 2016 Data de nascimento 11/04/1943 Data de falecimento 12/05/2020




REALIZAÇÃO Associação dos Moradores de Burarama Ponto de Memória – Meninas Bordadeiras de Burarama - @bordadeirasdeburarama Caju Produções - @caju_producoes Criação do Projeto “Bordei” Léo Alves Autor (crônicas e fotografias) André Fachetti Fotografias das bordadeiras Eliane Grillo Diretora de Produção Tania Silva Produtora Executiva Paula Vieira Moura Cordeiro Coordenador Administrativo Matheus T. Moretti

Coordenadora de Programação e Produção Julyana Gobbi

Identidade Visual e Projeto Gráfico Wilson Ferreira

Assistente de Produção Jamile Marriel

Diagramador Elielton Souza

Diretora de Comunicação Luísa Costa

Designer Julia Patternostro

Coordenador de Comunicação Ricardo Aiolfi

Impressão Gráfica Grafitusa

Social Media Tereza Dantas

Tiragem 100 exemplares

Os bordados apresentados neste livro foram inscritos pelas Meninas Bordadeiras de Burarama na Mostra “Bordei”, viabilizada com recursos da Lei Aldir Blanc 2020-2021 – Secretaria da Cultura do Espírito Santo e Governo Federal. As obras foram produzidas durante a realização do projeto “Memorial do Bordado”, com oficinas de memória estimuladas pela artista Fabiane Salume em 2016, no distrito de Burarama, Cachoeiro de Itapemirim (ES). Agradecimentos: Evaldo Lunz Gomes Presidente da Associação dos Moradores de Burarama Mariangela Grillo Fassarella Coordenadora do Ponto de Memória – Meninas Bordadeiras de Burarama







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