Enclave (Ann Aguirre) - amostra grátis

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Trilogia

best-seller do New York Times e USA Today

Tradu o: B rbara Menezes

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Um

La embaixo “Na tumba sem janelas de uma mãe cega, na calada da noite, sob os raios tênues de uma lamparina em um globo de alabastro, uma menina veio para a escuridão com um lamento.”

(George MacDonald, O Menino Dia e a Menina Noite)


Dois Eu nasci durante o segundo holocausto. As pessoas tinham nos contado lendas sobre uma época em que os seres humanos viviam mais tempo. Pensei que fossem apenas histórias. Ninguém chegava nem aos 40 anos no meu mundo. Naquele dia, era meu aniversário. Cada ano acrescentava uma camada de medo, e naquele era pior. Eu morava em um enclave cuja pessoa mais velha tinha visto se passarem 25 anos. Seu rosto estava murcho e seus dedos tremiam quando ele tentava realizar as tarefas mais simples. Alguns comentavam em segredo que seria uma gentileza matá-lo, mas o motivo real era que eles não queriam ver seu próprio futuro escrito na pele daquele homem. – Você está pronta? Trançado estava parado, esperando-me na escuridão. Ele já tinha suas marcas; era dois anos mais velho e, se havia sobrevivido ao ritual, eu poderia sobreviver também. Trançado era pequeno e frágil para qualquer padrão; a privação havia marcado riachos nas suas bochechas, envelhecendo-o. Eu examinei a palidez dos meus antebraços e, depois, fiz que sim com a cabeça. Estava na hora de eu virar mulher. Os túneis eram largos e cobertos por barras de metal. Nós tínhamos encontrado os restos daqueles que podiam ter sido meios de transporte, mas estavam tombados de lado como feras enormes e mortas. Nós os usávamos como abrigos de emergência às vezes. Se um grupo de caça era atacado antes de chegar a um lugar seguro, uma parede de metal pesada entre ele e os inimigos famintos era a diferença entre a vida e a morte. Eu nunca saíra do enclave, é claro. Aquele espaço compreendia o único mundo que conhecia, coberto de escuridão e espirais de fumaça. As paredes

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eram antigas, construídas com blocos retangulares. Em outra época, tinham exibido cores, mas os anos as desgastaram até ficarem cinza. Gotas de cores vinham de itens que havíamos encontrado ao revirar as profundezas da nossa colônia. Segui Trançado pelo labirinto, meu olhar pousando em objetos familiares. Meu item favorito era uma imagem de uma menina em uma nuvem branca. Eu não conseguia definir o que ela estava segurando, aquela parte havia sumido com o desgaste. Porém, as palavras “Presunto Divino”, em vermelho vivo, pareciam maravilhosas para mim. Eu não tinha certeza do que era, mas, pela expressão dela, devia ter sido uma coisa boa. Todos do enclave se reuniam no dia da nomeação; todos os que tinham sobrevivido para serem nomeados. Perdemos tantas pessoas ainda jovens que chamávamos todos os pirralhos apenas de Menino ou Menina junto com um número. Como nosso enclave era pequeno – e estava diminuindo –, eu reconheci cada rosto sombreado pela meia-luz. Era difícil não deixar a expectativa de sentir dor dar um nó no meu estômago, junto com o medo de que eu fosse acabar com um nome horrível que se prenderia a mim até a morte. “Por favor, que seja algo bom.” O mais velho, que carregava o fardo do nome “Muro Branco”, dirigiu-se para o centro do círculo. Parou diante do fogo, e as chamas trêmulas pintaram sua pele de tons aterrorizantes. Com uma mão, ele fez um gesto para eu avançar. Quando cheguei junto a ele, falou: – Que cada Caçador traga o seu presente. Os outros levaram suas lembranças e as empilharam aos meus pés. Uma pequena montanha de itens interessantes cresceu; e eu não fazia ideia para qual finalidade tinham servido alguns deles. “Decoração, talvez?” As pessoas do mundo anterior pareciam obcecadas com objetos que existiam simplesmente para ser bonitos. Eu não conseguia imaginar algo assim. Depois de eles terminarem, Muro Branco virou-se para mim. – Está na hora. Houve silêncio. Gritos ecoaram pelos túneis. Em algum lugar por perto, alguém estava sofrendo, mas não tinha idade suficiente para participar da minha nomeação. Poderíamos perder outro cidadão antes de finalizarmos a cerimônia. A doença e a febre nos devastavam, e nosso homem dos medicamentos causava mais mal do que bem, pelo que me parecia. Mas eu aprendera a não questionar os tratamentos dele. Ali, no enclave, ninguém prosperava ao demonstrar muitas ideias independentes.

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“Essas regras nos permitem sobreviver”, Muro Branco diria. “Se você não puder aceitá-las, então está livre para ver como consegue se virar no Topo.” O mais velho tinha um traço de crueldade; não sei se sempre fora assim ou se a idade o deixara desse jeito. E, naquele momento, ele estava diante de mim, pronto para tirar o meu sangue. Embora eu nunca tivesse testemunhado o ritual, sabia o que esperar. Estiquei os braços. A lâmina brilhou à luz do fogo. Era nosso bem mais precioso, e o mais velho a mantinha limpa e afiada. Ele fez três cortes irregulares no meu braço esquerdo, e eu aguentei a dor até ela se enrolar e formar um grito silencioso dentro de mim. Eu não envergonharia o enclave choramingando. Muro Branco talhou meu braço direito antes de eu poder fazer qualquer coisa além de me preparar. Cerrei os dentes enquanto o sangue quente caía pingando. Não muito. Os cortes eram rasos, simbólicos. – Feche os olhos – ele disse. Eu obedeci. Ele se curvou, espalhando os presentes em frente a mim, e depois agarrou minha mão. Seus dedos eram frios e finos. Do que quer que meu sangue atingisse, eu receberia meu nome. De olhos fechados, podia ouvir os outros respirando, mas estavam imóveis e reverentes. Movimentos soaram por perto. – Abra os olhos e cumprimente o mundo, Caçadora. Deste dia em diante, você se chamará Dois. Vi o mais velho segurando uma carta. Estava rasgada e com manchas, amarelada pelo tempo. A parte de trás tinha uma estampa vermelha bonita e a da frente, o que parecia ser uma pequena pá preta, junto com o número dois. Também estava salpicada com meu sangue, o que significava que eu deveria mantê-la comigo o tempo todo. Peguei-a da mão dele com um murmúrio de agradecimento. “Estranho”, refleti. Eu não seria mais conhecida como Menina15. Seria preciso um tempo para me acostumar com meu novo nome. O enclave se dispersou. As pessoas me lançaram acenos de respeito com a cabeça enquanto seguiam com suas tarefas. Agora que a cerimônia do dia da nomeação estava concluída, ainda havia comida a ser caçada e suprimentos a serem procurados. Nosso trabalho nunca acabava. – Você foi muito corajosa – Trançado disse. – Por ora, vamos cuidar dos seus braços. Nessa parte, era bom não termos plateia, porque minha coragem vacilou. Eu choraminguei quando ele colocou o metal quente na minha pele. Seis

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cicatrizes como prova de que eu era durona o bastante para me considerar uma Caçadora. Outros cidadãos recebiam menos; Construtores ficavam com três cicatrizes e Procriadores, com apenas uma. Desde que podíamos nos lembrar, o número de marcas nos braços identificava que papel um cidadão tinha. Não podíamos deixar que os cortes se curassem naturalmente por dois motivos: eles não criariam as cicatrizes certas e poderiam infeccionar. Ao longo dos anos, tínhamos perdido muitas pessoas no ritual do dia da nomea­ ção porque elas choravam e imploravam; não conseguiam aguentar a finalização quente como o fogo. Agora, Trançado não parava mais ao ver lágrimas, e eu fiquei feliz por ele não demonstrar que reparou nas minhas. “Sou Dois.” Lágrimas escorreram pelas minhas bochechas conforme as terminações nervosas morriam, mas as cicatrizes apareciam uma a uma, proclamando minha força e habilidade de aguentar o que quer que eu encontrasse nos túneis. Eu havia treinado para esse dia a vida toda; conseguia manejar uma faca ou uma clava com igual destreza. Cada pedaço de comida, fornecida por outra pessoa, que eu ingeria, era sabendo que, um dia, seria minha vez de trazer suprimentos para os pirralhos. Esse dia havia chegado. A Menina15 estava morta. Vida longa a Dois. ��� Depois da nomeação, dois amigos fizeram uma festa para mim. Eu os encontrei à espera na área comum. Nós havíamos crescido juntos, desde pirralhos, embora nossas personalidades e habilidades físicas nos tivessem colocado em caminhos diferentes. Ainda assim, Dedal e Pedregulho eram meus dois companheiros mais próximos. Dos três, eu era a mais nova, e eles tinham se divertido me chamando de Menina15 após os dois ganharem seus nomes. Dedal era uma menina pequena, um pouco mais velha do que eu, que servia como Construtora. Ela tinha cabelos escuros e olhos castanhos. Por causa do seu queixo pontudo e dos olhos arregalados, as pessoas às vezes questionavam se possuía idade suficiente para ter saído do treinamento de pirralhos. A garota odiava isso; não havia maneira mais garantida de irritá-la. A sujeira costumava manchar seus dedos, porque ela fazia trabalhos manuais, e achava caminho para dentro das roupas dela, além de borrar seu rosto. Tínhamos nos acostumado a vê-la coçar a bochecha e deixar um risco

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escuro. Porém, eu não a provocava mais porque ela era sensível. Uma das suas pernas era um pouco mais curta do que a outra, e Dedal andava levemente mancando, não devido a um machucado, mas pelo pequeno defeito. Do contrário, ela facilmente teria se tornado Procriadora. Como era forte e bonito, mas não particularmente inteligente, Pedregulho conseguiu ser Procriador. Muro Branco deduziu que ele tinha um bom material e, se acasalasse com uma fêmea esperta, geraria uma prole boa e saudável. Apenas cidadãos com traços que valiam a pena ser passados tinham permissão para contribuir com a geração seguinte, e os anciãos monitoravam os nascimentos com atenção. Não podíamos ter mais pirralhos do que conseguíamos sustentar. Dedal correu para examinar meus antebraços. – Doeu muito? – Muito – falei. – Duas vezes mais que o seu. Virei um olhar direto para Pedregulho. – Seis vezes mais que o seu. Ele sempre brincava dizendo que tinha o trabalho mais fácil do enclave, e talvez fosse verdade, mas eu não iria querer o fardo de garantir que nosso povo sobrevivesse até a próxima geração. Além de gerar os pequenos, ele também dividia a responsabilidade de cuidar deles. Eu não achava que poderia lidar com tantas mortes. Os pirralhos eram incrivelmente frágeis. Naquele ano, Pedregulho havia gerado um macho, e eu não sabia como ele lidava com o medo. Mal conseguia me lembrar da minha matriz, que morrera jovem até para os nossos padrões. Quando ela tinha 18 anos, uma doença varreu o enclave, provavelmente trazida pelo grupo de mercadores de Nassau. Matou muitas pessoas naquele ano. Alguns cidadãos achavam que a prole dos Procriadores deveria permanecer naquele papel. Havia uma movimentação discreta entre os Caçadores para gerarem os seus por conta própria; para que, quando um Caçador ficasse muito velho para as patrulhas, ele ou ela pudesse originar a safra seguinte de Caçadores. Eu lutei a vida toda contra essa ideia. Desde que aprendera a andar, havia observado os Caçadores entrarem nos túneis e já sabia que seria meu destino. – Não é culpa minha eu ser bonito – Pedregulho disse, sorrindo maliciosamente. – Parem, vocês dois. Dedal pegou um presente embalado em tecido desbotado.

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– Tome. Eu não esperava isso. Com a sobrancelha erguida, peguei o pacote dela, pesei-o e disse: – Você fez adagas novas para mim. Ela me olhou feio. – Odeio quando você faz assim. Para acalmá-la, eu desdobrei o tecido. – Elas são lindas. E eram. Apenas um Construtor poderia fazer um trabalho de tanta qualidade. Ela criara aquilo só para mim. Imaginei as longas horas sobre o fogo e o tempo no molde, e a têmpera, e o polimento, e a afiação depois. As adagas brilharam à luz das tochas. Eu as testei e vi que tinham equilíbrio perfeito. Executei alguns movimentos para mostrar a Dedal o quanto gostara delas, e Pedregulho pulou como se eu pudesse acertá-lo por acidente. Ele às vezes era um babaca. Uma Caçadora nunca apunhalava nada que não tivesse a intenção. – Eu queria que você tivesse as melhores lá fora. – Eu também – Pedregulho disse. Ele não se dera ao trabalho de embalar seu presente; era simplesmente grande demais. A clava não apresentava a qualidade de um trabalho feito por um Construtor, mas Pedregulho tinha uma boa mão para entalhar e havia pegado um pedaço de madeira sólido para o centro. Suspeitei que Dedal pudesse tê-lo ajudado com o metal que envolvia o topo e a parte de baixo, porém as figuras intrincadas entalhadas na madeira vinham dele, com certeza. Não reconheci todos os animais, mas era adorável e forte, e eu me sentiria mais segura com ela nas minhas costas. Ele havia esfregado algum tipo de tintura nos entalhes e, assim, eles se destacavam dos veios da madeira. As decorações, na verdade, tornariam mais difícil manter a arma limpa, mas Pedregulho era Procriador e não podíamos esperar que ele pensasse nessas coisas. Eu sorri em agradecimento. – É incrível. Os dois me abraçaram e, depois, mostraram um presente que estavam guardando para o meu dia da nomeação. Dedal havia feito uma troca por aquela lata muito tempo antes... Esperando essa ocasião. A embalagem em si oferecia um prazer incomum ao brilhar em vermelho vivo e branco, com mais cor do que a maioria das coisas que encontrávamos lá embaixo. Não sabíamos o que havia dentro dela; apenas que tinha sido selada tão completa-

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mente que precisamos de ferramentas como alavanca para abri-la. Um aroma delicioso saiu de seu interior. Eu nunca sentira nada como aquilo, era fresco e doce. Dentro, não vi nada além de poeira colorida. Era impossível dizer o que poderia ter sido um dia, mas o aroma por si só fez meu dia da nomeação ser especial. – O que é isso? – Dedal perguntou. Hesitante, encostei a ponta de um dedo no pó rosa. – Acho que pode ser para ficarmos com um cheiro melhor. – Colocamos isso nas nossas roupas? Pedregulho se inclinou para perto e deu uma fungada. Dedal pensou a respeito. – Apenas em ocasiões especiais. – Tem alguma coisa dentro? Eu mexi no pó até tocar no fundo. – Sim! Cheia de alegria, eu puxei um quadrado de papel duro. Era branco com letras douradas, mas elas tinham um formato engraçado e eu não conseguia lê-las. Algumas eram como deviam ser; outras, não. Elas enrolavam e desciam e se curvavam de maneiras que as deixavam confusas para o meu olho. – Coloque de volta – Dedal disse. – Pode ser importante. Era importante, nem que fosse apenas por ser um dos poucos documentos completos que tínhamos da época anterior. – Deveríamos levar isso para o Guardião das Palavras. Embora tivéssemos feito a troca por aquela lata de forma justa, se ela representasse um recurso valioso para o enclave e, mesmo assim, tentássemos ficar com ela para nós, poderíamos ter um problema sério. Problemas levavam ao exílio, e o exílio levava a coisas impronunciáveis. Por acordo mútuo, nós recolocamos o papel e fechamos a lata. Trocamos um olhar sério, cientes das possíveis consequências. Nenhum de nós queria ser acusado de acumular objetos. – Vamos resolver isso agora – Pedregulho disse. – Tenho que voltar logo para os pirralhos. – Dê um tempinho para mim. Correndo, eu fui procurar Trançado. Encontrei-o na cozinha, o que não era surpresa. Eu ainda não recebera um lugar de moradia privativo. Agora que havia sido nomeada, poderia ter um quarto para mim. Bastava do dormitório dos pirralhos. – O que você quer? – ele perguntou.

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Tentei não ficar ofendida. Só porque eu fora nomeada, não significava que a forma dele de me tratar mudaria do dia para a noite. Para algumas pessoas, eu seria pouco melhor que uma pirralha por alguns anos. Até começar a me aproximar do território dos anciãos. – Só me diga onde fica o meu espaço. Trançado suspirou, mas, atendendo ao pedido, ele me guiou pelo labirinto. No caminho, desviamos de muitos corpos e serpenteamos pelas camadas de divisórias e abrigos improvisados. O que eu recebi ficava entre outros dois, mas era 1,20 m para chamar de meu. Meu quarto tinha três paredes sem acabamento, feitas com metal antigo e um tecido rasgado para dar a ilusão de privacidade. Todos os outros apresentavam mais ou menos a mesma coisa, apenas variavam de acordo com as bugigangas que as pessoas guardavam. Eu tinha uma queda secreta por objetos brilhantes. Sempre estava fazendo trocas por algo que cintilava quando colocado na luz. – Isso é tudo? Antes de eu poder responder, ele voltou na direção da cozinha. Respirei fundo e afastei a cortina para passar. Eu possuía um colchãozinho de farrapos e um engradado para meus poucos pertences. Porém, mais ninguém tinha o direito de entrar ali sem eu convidar. Havia conquistado o meu lugar. Apesar da preocupação, sorri enquanto guardava minhas novas armas. Ninguém tocaria em nada ali, e era melhor não visitar o Guardião das Palavras armada até os dentes. Como Muro Branco, ele estava ficando velho e tinha a tendência de ser estranho. Eu não me sentia nem um pouco ansiosa por aquele interrogatório.

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No Enclave, apenas as pessoas que sobrevivem até os 15 anos ganham o direito de ter um nome. Nesse mundo subterrâneo, a corajosa Dois faz parte do grupo de Caçadores, responsável por garantir a comida e a segurança de todos. Os túneis ao redor estão lotados de Aberrações – criaturas terríveis que devoram tudo que encontram pela frente –, e o mundo na superfície é inabitável. Será? Dois nunca questionou as leis do enclave, mas tudo está prestes a mudar agora que ela conheceu Vago, um Caçador misterioso, indisciplinado e letal. Esse encontro vai alterar o delicado equilíbrio que rege o enclave, e o mundo que eles conhecem talvez esteja perdido para sempre.

Trilogia Razorland:

Enclave Ref gio Horda


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