Esposas das terras altas vol 4 5 canção das terras altas

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TABLE OF CONTENTS

Title Page Direitos Autorais Dedicação Menções a Tanya Anne Crosby Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Epilogue Sobre a Autora


CANÇÃO DAS TERRAS ALTAS TANYA ANNE CROSBY Translated by

TAÍS PAULILO BLAUTH


Canção das Terras Altas Menções a Tanya Anne Crosby Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Epilogue Sobre a Autora


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PUBLISHER'S NOTE: This is a work of fiction. Names, characters, places, and incidents either are the product of the author's imagination or are used fictitiously. Any resemblance to actual persons, living or dead, business establishments, events, or locales is entirely coincidental.

COPYRIGHT Š Tanya Anne Crosby 2013 Created with Vellum


A vocês, meus leitores, que abraçaram esta série de coração aberto.


MENÇÕES A TANYA ANNE CROSBY “Os personagens de Crosby prendem o leitor...” PUBLISHERS WEEKLY “Tanya Anne Crosby se propõe a entreter o leitor e o faz com humor, um enredo dinâmico e a quantidade certa de romance." THE OAKLAND PRESS “Romance permeado de charme, paixão e intriga...” Affaire de Coeur

“A srta. Crosby mistura a quantidade certa de humor... Fantástico, intrigante!” Rendezvous

“Tanya Anne Crosby cria uma história que toca nossa alma e vive para sempre em nosso coração.” Sherrilyn Kenyon #1 NYT Bestselling Author


CAPÍTULO 1

TERRAS ALTAS DA SCOTIA, 1125

G

avin Mac Brodie podia apostar que havia algo de diferente no whisky de Seana. A mulher conseguira enlaçar o último homem das Terras Altas que ele imaginaria casado. Ao longo dos seus vinte e sete anos de vida, o irmão passara pela cama de mais mulheres do que a soma de todos os dedos da família Brodie juntos. Porém, ainda mais surpreendente era o fato de que Colin, o irmão, estava simplesmente extasiado com o fim de sua promiscuidade. Seu olhar acompanhava a nova esposa aonde quer que ela fosse, adorando-a de uma forma que Gavin considerava bastante ridícula. Ainda bem que Gavin não era chegado em bebida, pois definitivamente não precisava de uma mulher mandando e desmandando em sua vida. Por onde olhava, deparava-se com uma nova noiva: o suserano MacKinnon com sua nova patroa inglesa, o irmão de Gavin, Leith, com Alison MacLean, a irmã Meghan com Piers de Montgomerie. E agora a prima de Montgomerie, Elizabet, com Broc Ceannfhionn (outro que Gavin jamais imaginaria suscetível às artimanhas femininas). Chegando ao limite de sua tolerância a tantos suspiros apaixonados, Gavin sentiu que precisava refugiar-se na floresta, local onde Seana fincara raízes com o pai muitos anos antes. O alambique ainda estava lá, a pouca distância, pois Seana recusava-


se a movê-lo apesar da insistência de seu marido Colin. Para ela, o local tinha a magia necessária a uma boa fermentação. Todos os dias, ia até lá verificar o whisky. Mas isso não era problema para Gavin, que se dava bem com Seana, mesmo considerando sua inclinação ao misticismo uma grande bobagem. Gavin ouvira contos de fada o suficiente para uma vida inteira. Assim como Seana, vovó Fia fora bastante ligada aos antigos costumes. Também vivera em meio à natureza, amando a floresta e levando a pequena Meggie consigo sempre que podia. Juntas, preparavam poções de ulmária, sanguinária e urze que volta e meia empurravam goela abaixo em Gavin e os demais irmãos, quando estavam doentes. Até aí tudo bem, mas, na opinião de Gavin, coisas como o fogo-fátuo não passavam de baboseira. Fadas não passavam lendas e as banshees eram apenas personagens de histórias contadas pelas anciãs para fazerem os pequenos se comportarem. Todas aquelas mulheres e seus folclores... De fato, aquilo bastava para levar um homem à bebida, mas cair de boca no líquido bruxesco de Seana não faria a casa de Gavin ser construída mais rápido e, além disso, ele estava determinado a se manter longe dos pombinhos enamorados, mesmo que às custas de um esforço dantesco. Assim que a casa estivesse finalizada, ninguém o impediria de partir. Mesmo assim, não queria correr o risco de que viessem a tentar. Não queria mais viver com os irmãos e, definitivamente, não fazia questão de ouvir os ruídos de amor que ecoavam pelos cômodos noite adentro. Sozinho em sua cama, pensava consigo mesmo que nada poderia ser mais perturbador. Não, já passava da hora de ele ter sua própria casa, um lar do


qual fosse o mestre. E isso ele faria ali mesmo. Ali na Terra de Ninguém, região acidentada à sombra de Chreagach Mhor, antiga residência do suserano MacKinnon. A terra abaixo do costão era pontuada por dólmens, agrupamentos rústicos de pedra quais sentinelas vigiando a paisagem. Gavin projetara sua propriedade com cuidado, de modo a não perturbar os antigos túmulos. Afinal, fosse qual fosse a crença de um homem, jamais seria prudente incomodar as almas dos mortos. Não, a área tinha pedras o suficiente, por isso Gavin simplesmente teve o cuidado de não retirar nenhuma dos agrupamentos que ali se encontravam. No ponto em que se encontrava, após semanas trabalhando na casa conforme lhe era possível, as paredes já estavam de pé e logo ele colocaria o telhado. Um pouco ofegante, Gavin sentou-se em um tronco caído e contemplou o potencial da sua nova vida. Não sabia o que estava procurando, mas, por algum motivo, sabia que o encontraria ali. Sentado, aproveitou para descansar um pouco. Examinou as paredes e inspecionou a argamassa aplicada uma semana antes para averiguar possíveis rachaduras. Isso mesmo, seria uma bela casa de fato. E próxima do clã, caso sentisse necessidade de companhia. A distância, o lago cintilava como uma pedra azul sob a luz do sol. Gavin ergueu o frasco que se encontrava aos seus pés e bebeu avidamente da água de poço que trouxera consigo. O próximo passo seria cavar seu próprio poço, mas, para isso, pediria ajuda aos irmãos e a Piers, marido da irmã, se é que ele aceitaria. Gavin criava imagens mentais do jardim no qual plantaria repolho, ervilhas e couve, além dos grãos de que sua nova cunhada


precisava para a preparação da bebida. Fizera um trato com Seana, que lhe concedeu o pedaço de terra onde vivera com o pai. Não era exatamente dela, a terra. Mesmo assim, Gavin achava importante ter um trato honesto com qualquer ser humano e Seana acreditava do fundo do coração que aquele era de fato seu lar. Em troca, Gavin produziria os grãos de que ela precisava e, juntos, proveriam whisky do bom para os clãs da vizinhança. Isso mesmo, era um ótimo plano. Um ótimo plano de fato. Gavin tomou mais um gole da água. O aroma de urze penetrou suas narinas. Era uma tarde agradável para um verão nas Terras Altas, o ar parado e adocicado, mas, com o fim do verão, a noite traria um gelado de doer os ossos. Quando chegasse a hora, precisaria de vários cobertores... e tinha seu cão Brownie para lhe fazer companhia, desde que conseguisse manter longe dali os malditos gatos. Gavin viu passar mais um par de olhos amarelados na entrada da floresta — o quarto felino a dar o ar da graça naquele dia. Havia centenas deles em meio às árvores. Vovó Fia tentaria convencê-lo de que os gatos são encarnações de elfos, tão mutáveis que são. Mas ele via apenas um bando de gatunos safados acocorados na sombra das árvores. Gotas de suor escorreram pelo seu rosto quando ele se pôs a mensurar o posicionamento do sol no céu. Tinha apenas cerca de mais uma hora até que o calor abafado desse lugar a uma brisa fresca. Se continuasse trabalhando, perderia a refeição da noite novamente, mas preferia usar o crepúsculo para trabalhar. Quanto antes terminasse a obra, antes poderia usufruir daquele silêncio


abençoado. Um gato amarelo malhado cruzou seu olhar, deu-lhe um sorriso (ou assim lhe pareceu) e saiu em disparada. Gavin limpou a testa com o braço e fez cara feia para o animal, mas uma rajada de vento jogou poeira em seus olhos. Pego de surpresa, vociferou: — Mas que diabos! E largou o frasco para esfregar os olhos com o dedo. — Não vai conseguir nada com essa boca suja! — declarou uma voz feminina a pouca distância. Gavin rapidamente limpou a terra dos olhos e reabriu-os. Avistou uma mulher parada exatamente onde antes estivera o gato. Piscou repetidas vezes. Estava sem palavras. Conhecia muito bem todos os moradores daquelas paragens, mas nunca vira aquela moça em toda a sua vida. De onde vinha era uma incógnita, mas o fato é que não se parecia com nenhum conhecido seu. Era pequena de porte, devia bater na altura do seu peito, e tinha os cabelos vermelhos cor de fogo, os olhos verdes como a mais pura esmeralda. E estava com o corpo pintado. E nua. A parte da nudez é que o deixou sem voz. Com o ar mais despreocupado do mundo, a desconhecida deu alguns passos à frente, sem se incomodar com a sua própria falta de vestimentas. Apoiou as mãos nos quadris torneados: — O que está fazendo? — perguntou, como se tivesse o direito de saber. Gavin apertou os olhos, apoiando também as mãos nos quadris. Não estava acostumado com estranhas nuas o enfrentando.


— Quem lhe deu o direito de perguntar? Ela o encarou indignada, sem desviar o olhar. — MacAlpin! — declarou. Mulher louca. Que tipo de pessoa saía por aí se intrometendo na vida dos outros, invocando o nome de reis falecidos? Gavin olhou para o lado, incapaz de manter o olhar acima dos ombros da moça. Apesar da pintura corporal em belos traços azuis, os seios estavam nus. — Está perdida, por acaso? — Não — disse ela —, mas você parece estar! — Não mesmo, dona, conheço estas terras como a palma da minha mão. — Tão bem assim? Não parece! A estranha bateu o pé delicadamente, o que fez com que seus seios balançassem de leve. Gavin notou que os fitava novamente. Apontando para os seios desenhados, de onde, justamente, ele tentava tirar os olhos, ela disse: — Até eu reconheço locais sagrados quando estou diante deles! Não tem medo de invocar os espíritos? Arre, que Gavin não conseguia pensar direito com aquela dona ali parada daquele jeito. Sua proximidade o deixava tonto. Ela continuava o encarando de cara amarrada. Ele, por sua vez, prendeu a respiração por tanto tempo que só se deu conta quando caiu de fuça no chão.


CAPÍTULO 2

Desmaiara. Como um fracote paspalhão. O que seus irmãos diriam? Com um grunhido de surpresa, Gavin piscou ao ver o par de pernas esbeltas diante do seu rosto. Zonzo, seguiu com os olhos a linha graciosa daqueles membros até o “V” no centro do tronco, gemeu mais uma vez e elevou rapidamente o olhar, passando pelos cachos rubros até o rosto que o fitava com incontida curiosidade. A moça tinha os braços cruzados em frente aos adoráveis seios, escondendo-os por um momento. — Nunca vi um homem fazer isso — disse ela. — Arre, eu também não — confessou Gavin.— Deve ter me lançado um feitiço, mulher! Balbuciando um palavrão, Gavin ergueu-se e sentou-se, receoso de olhar para cima novamente e dar de cara com as partes íntimas da moça. Ela bateu o pé: — Pois então, bem feito, é nisso que dá provocar a ira dos mortos. E com a voz repleta de ira: — Está me acusando de bruxaria? — Estou, sim! — disse ele petulante, pois tinha certeza de que ela era realmente uma bruxa, apesar de não acreditar no sobrenatural. Não, a feitiçaria dela era de um tipo puramente


feminino, e o deixara rígido como as pedras que utilizava para levantar sua casa. Gavin moveu-se ligeiramente, escondendo a ereção do olhar atento da estranha, aproveitando para lançar-lhe mais uma olhadela discreta. Apesar de ela estar ali em carne e osso (em carne, certamente), seu aspecto se assemelhava ao de um fantasma de algum antepassado. Teria ele a invocado de alguma forma? Não, não podia ser. Seu cérebro ainda estava lerdo. Ele não acreditava no sobrenatural. Ela se curvou para inspecioná-lo. Gavin se afastou de um sobressalto, assustado com a inesperada intimidade. Por Deus, se precisava de uma prova de que a aparição tinha sangue correndo nas veias, lá estava, pois sentia o calor do seu corpo intensamente. — Arre, dona, não tem vergonha não? Ela pareceu confusa, o cenho franzido: — Vergonha? Gavin agitou uma mão em direção ao corpo nu. — Não está vestindo nem um pano! — disse, ressaltando o que qualquer criatura dotada de olhos poderia ver. — Não, não estou — declarou a moça, completamente estarrecida. E, arqueando as sobrancelhas, acrescentou: — Está incomodado? Sem parar para pensar a respeito, Gavin arrancou a própria túnica, desesperado para que ela se cobrisse. — Pois sim, estou! — confessou, atirando a vestimenta aos pés dela. — Por favor, pelo amor de Deus, vista isso aí! Em um ato de cavalheirismo (não que já não tivesse examinado cada pedaço daquele corpo exuberante), Gavin desviou o olhar para


dar privacidade à moça enquanto ela se vestia. Em sua visão periférica, pôde ver que ela deu de ombros e se abaixou para pegar a túnica verde. — Pois bem — disse ela, mais calma. — Onde estão suas roupas? — Por que a preocupação? — perguntou ela, erguendo os braços para pôr o vestido por sobre a cabeça. Gavin não pôde evitar de contemplar mais uma vez a curvatura dos seus seios enquanto ela se ajeitava dentro da túnica, que provavelmente ainda carregava o calor do corpo dele. Os quadris esguios sacudiram quando ela puxou o vestido para baixo, por sobre o corpo curvilíneo... a cintura delicada e fina... quadris projetados para dar à luz as crias de um homem. Engolindo em seco com força, Gavin percebeu-se novamente zonzo. Arre, por Deus, o que estava errado com ele? Ele não era da mesma laia do pai, era? Agora que Colin estava devidamente casado, parecia que a praga do pai passara para Gavin. De repente ele desejava aquele corpo de mulher com voracidade. Gavin lembrou a si mesmo de respirar. — Estou vestida — disse ela. Como se ele não soubesse. A despeito das suas mais nobres intenções, Gavin observava cada um dos movimentos que ela fazia. — De onde vem, moça? — inquiriu. Um olhar malicioso fitou-o, olhos verdes ainda mais verdes em contraste com a túnica. Gavin também tinha olhos verdes, mas de um tom não tão vivo quanto o dela. — Por aí — respondeu ela. — Meu povo tem andado por aí.


Gavin franziu a testa diante de tão lacônica resposta. Talvez ela fosse pobre e tivesse vergonha de sua situação? Seana, por exemplo, sobrevivera quase a vida toda naquela área da floresta praticamente sozinha, sem jamais pedir ajuda. Cuidara do pai doente sem ninguém em quem se apoiar. — E seu pai? — perguntou, enquanto a moça alisava a túnica sobre os quadris e erguia a barra para admirar os bordados feitos pela irmã de Gavin. Se erguesse mais um pouco, lá estariam os cachos avermelhados de novo. — Não conheço meu pai — admitiu ela, ainda inspecionando os intrincados adornos. — E sua mãe? Ela fez que não com a cabeça e olhou para ele, parecendo não se incomodar com a revelação que acabava de fazer. Gavin examinou-a com maior atenção. Por Deus, todo mundo tem uma mãe e um pai! O que ela estaria tentando dizer? Que tinha simplesmente se materializado naquele local? — E irmãos? Irmãs? Primos? Apenas aí ela assentiu com a cabeça: — Ah, sim, tenho muitos — revelou, com um sorriso cativante. — Se bem que, de certa forma, somos todos irmãos e irmãs, não? Gavin negou com a cabeça, rejeitando a ideia até o fundo da alma. Por Deus, os pensamentos que se agitavam em sua mente naquele momento não eram minimamente do tipo “família” (pelo menos não eram como os que um irmão tem a respeito da irmã). Certamente nada tinham em comum com a forma como ele pensava em sua querida irmã Meggie. As sombras do arvoredo se alongavam com o avançar do crepúsculo, e multiplicava-se o número de olhos amarelos ao redor.


Lá em cima, o céu tinha cor de pêssego maduro e o prado era todo lilás de urze em flor. Uma revoada de melros-pretos se espalhou a partir de um ponto no meio das árvores. O vento soprava suave, agitando os cabelos da desconhecida. Gavin resistiu à vontade de fazer o sinal da cruz ao contemplála. Com a luz que ainda restava, sua pele, de tão pura, era quase translúcida. Os olhos verdes pareciam reluzir com um brilho interno. Os cabelos balançavam com a graça de uma chama. Tudo imaginação, percebeu Gavin, porque claramente era pura carne e osso o que ele via à sua frente. Suspirou. — Se não deixar, não posso ajudá-la — ponderou ele. Um sorriso astuto refletiu-se nos olhos da moça, como se ela soubesse exatamente o que ele estava pensando, e que, na verdade, não tinha nada a ver com ajudá-la a voltar para casa. — Nem toda mulher é uma dama em apuros — explicou ela. — Sei cuidar muito bem de mim mesma, obrigada. Aparentemente não tão bem assim, já que não conseguira nem manter as próprias roupas sob controle, pensou Gavin, mas segurou a língua. Na realidade, nada naquela mulher indicava desconforto; ele é que estava desconfortável na presença dela! Em redor, as árvores começaram se agitar e faíscas cintilantes surgiram em meio às árvores. Nada além de insetos, lembrou Gavin a si mesmo. Não havia nada de mágico naquele momento, nem naquela mulher. Era apenas uma jovem comum. Com olhos verdes estonteantes, que pareciam penetrá-lo até a alma. E que aparecera nuinha em pelo, e sem pudor algum. Ao longe, o som de um berrante a fez enrijecer-se e virar a


cabeça como uma corça para ouvir melhor. Seria imaginação... ou suas orelhas se assemelhavam às de um elfo... pequenas e delicadas? Arre, elfos e duendes não existiam. E, mesmo que existissem, como saber o formato de suas orelhas? Tudo o que ouvira sobre fadas e brownies e banshees, ouvira de vovó Fia e não havia explicação para nenhuma daquelas histórias. Outro berrante soou, desta vez mais perto, e a expressão da moça tornou-se apreensiva. — Arre! Preciso ir! — disse ela e, antes que Gavin pudesse interrompê–la, saiu em disparada em direção ao santuário, membros ágeis e graciosos como os de um veado. No limiar do bosque, ela voltou-se para trás e acenou: — Muito agradecida pelo lindo vestido! — gritou, e em seguida abençoou no dizer local a casa em construção. E então desapareceu, sem ter ao menos dito seu nome. Gavin observou, inclusive, que todos os gatos pareciam ter ido embora com ela. Que curioso! De repente não se via mais nenhum, embora tivessem passado o dia todo por ali, brincando de escondeesconde. Gavin coçou a cabeça alguns instantes, mirando o local de onde ela surgira e por onde desparecera. Que menina boba: não sabia distinguir um vestido de uma túnica inglesa? Ele não sairia por aí usando vestidos de mulher. Em todos os seus dias de vida, nunca conhecera pessoa mais estranha. Mas agora ela não estava mais lá, e ele não estava mais com vontade de trabalhar. Hora de esquecer mulheres e fadas e gatos, disse a si mesmo. Talvez, se se apressasse, ainda conseguiria chegar em casa a tempo de jantar com a família.


Estava na metade do caminho quando percebeu que tinha o torso nu e que deixara para trás o frasco d’água, o machado e o facão que ganhara do pai. Franziu as sobrancelhas, culpando internamente a moça, que o deixara perfeitamente abestalhado. Era melhor não comentar sobre o encontro com ninguém, ou pensariam que ele andava se refastelando no whisky de Seana. Ao chegar em casa, Gavin ouviu o burburinho da família se reunindo para jantar no saguão. Aproveitou para passar rapidamente em seus aposentos e buscar outra túnica, antes que alguém o visse circulando quase nu. Por sorte, sua irmã Meggie não lavava mais suas roupas, então provavelmente não perceberia o sumiço súbito da túnica verde que ela bordara e lhe dera no ano anterior. Alison, esposa recente do irmão mais velho, era dócil demais para abrir a boca, mesmo que percebesse alguma coisa. Mas não perceberia. Estava ocupada demais tentando organizar um lar decente para Leith (não que Meggie não fosse meticulosa). Na verdade, Gavin se perguntava como Piers de Montgomerie estaria lidando com aquela mulhergeneral que era sua irmã. Como vovó, Meghan era um furacão. Como o pai deles, tinha um temperamento imprevisível como o vento das montanhas. Infelizmente, todos os filhos acabaram herdando os demônios do pai, até mesmo a doce Meggie. Os pensamentos de Gavin se concentraram morosamente na figura do pai. O velho só exibia um sorriso quando tinha o pênis enfiado entre duas coxas ou a língua em uma jarra de whisky. Pouca coisa além dessas o agradava. Gavin e Meghan, os mais novos, eram na maior parte das vezes poupados da mão pesada,


mas Leith sentira na pele a ira do pai. Quanto ao pobre do Colin... o pai o arrastava pela gola sempre que saía para a farra. O resultado disso foi que o irmão do meio conhecera o mundo das mulheres muito antes de a maior parte dos seus amigos saírem de baixo da saia da mãe. O que poderia ter feito dele um péssimo marido, mas seu relacionamento com Seana estava surpreendendo a todos. Já Leith levava a si mesmo e a todo mundo à beira do desespero com sua busca pela perfeição. Alison MacLean, com seus olhos vesgos, era a última mulher na Terra pela qual a família imaginaria vê-lo apaixonado. E, no entanto, apaixonado ele estava. Na verdade, os dois irmãos de Gavin haviam-se casado com mulheres que, apesar de belas, teriam sido consideradas pelos padrões do pai como bem aquém da perfeição. Gavin não se atraía necessariamente pela beleza, e, inclusive, achava que ela alimentava demônios de outros tipos. A própria Meggie não sofrera o bastante? Assim como a mãe e a avó, a irmã tivera de suportar a língua cortante de outras mulheres a quilômetros de distância. “Meghan Maluca Brodie”, chamavam-na, e apenas Montgomerie (um ingleseco Sassenach) teve a coragem de medir forças com a esperta irmã de Gavin. Esse pensamento o fez rir, pois lhe parecia que, apesar da fama de Montgomerie de ser um leão no campo de batalha, na presença da esposa ele não passava de um gatinho medroso. Aliás, perguntou-se, por onde andariam os gatos? Haviam simplesmente desaparecido. Como se tivessem vida própria, seus pensamentos retornaram à mulher pintada... Era certamente uma bela mulher, embora não do modo convencional. Mas não lhe pertencia, lembrou-se. E ele não estava


à procura de alguém para esquentar a cama. Não, tinha coisas demais com as quais se preocupar no momento. Não passara a vida lutando contra o legado paterno de luxúria para sucumbir justo agora. Se algum dia de fato viesse a se casar, que fosse com uma dócil moça das Terras Altas, não bonita demais, mas agradável aos olhos: uma moça fiel, apaixonada e cheia de amor para dar. Alguém que tivesse um coração delicado e humilde, mas que fosse forte fisicamente e emanasse alegria de viver. De qualquer forma, ele nunca veria aquela mulher novamente. Ela fugira sem nem dizer o nome e ele duvidava, apesar de suas alegações, que fosse da região. Vozes e risos chegaram aos seus ouvidos vindos do saguão, sendo que os femininos eram novidade na casa. O que lhe causava um estranho vazio. Suspirou, contemplando seus aposentos. A casa em que vivera a vida toda estava agora bastante movimentada. Tudo estava mudando. Sentia falta das flores recém-colhidas que Meggie punha em seu quarto... de como ela afofava seu travesseiro e mantinha o braseiro aceso enquanto aguardava seu retorno. Agora os dois irmãos tinham esposas aquecendo suas camas e colos nos quais deitarem a cabeça; enquanto isso, seu quarto continuava escuro e frio. Uma imagem súbita da jovem pintada lhe veio à mente... viu-a parada na casa em construção... os dois se preparando para o jantar... o rosto dela iluminado pelo fogo da lareira e os cabelos ondulados amarrados na nuca, como uma chama presa por um fio mágico. Lábios curvados delicadamente para cima, ela ria de forma musical e livre. Gavin piscou e a imagem desapareceu. Arre, ele não queria uma esposa, pensou e, dando as costas


para os aposentos e a visão, dirigiu-se para o saguão. O aroma picante de haggis, prato à base de miúdos de carneiro, flutuava no ar, vindo do mesmo local das vozes. Gavin seguiu o aroma, pronto para uma refeição farta após um longo dia de trabalho. Na realidade, esta era a única coisa que realmente lhe fazia falta desde o casamento de Meggie, e a única coisa de que teria saudades quando deixasse a propriedade: a hora do jantar. Durante todos aqueles anos, a mesa da família estivera sempre coberta de amor (ao menos desde que o pai falecera, o desgraçado malhumorado; Gavin estava determinado a não se parecer em nada com o homem que lhe dera a vida). Com a barriga roncando, entrou no salão e encontrou os irmãos já à mesa, observando mudos seus pratos, enquanto Alison e Seana papeavam incessantemente. As duas esposas pareciam ter feito rápida amizade, e a afeição que nutriam uma pela outra parecia genuína. Pelo menos não sairiam arrancando os cabelos uma da outra por questões de administração da casa, pensou Gavin. — Opa! —disse Seana quando o viu. — Gavin! — exclamou Alison. Levantando-se de um pulo do assento ao lado de Leith, disse: — Deixe-me pegar um prato para você. Os dois irmãos de Gavin ergueram a cabeça, balançando-a negativamente juntos, parecendo horrorizados ante a perspectiva de que Gavin se juntasse a eles. Sem entender a mensagem, Gavin sentou-se ao lado de Colin, confuso, até que acidentalmente avistou o prato de Colin. Na mesma hora, Alison empurrou para baixo do seu nariz um prato cheio de miúdos de carneiro moídos. Um aroma cru o


alcançou, um cheiro azedo e apimentado, que lhe atiçou os pelos do nariz. Deus do céu, não lembrava em nada o haggis de Meggie. Ao cruzar o olhar com Leith, do outro lado da mesa, percebeu o terror em seu rosto. A esposa, novamente sentada à esquerdo de Leith, parecia não notar. — Estamos tão contentes que tenha finalmente chegado! — declarou Alison. Seana concordou enfaticamente com a cabeça, passando uma colher para Gavin. Quanto a Colin... pela primeira vez em sabe Deus quanto tempo, o irmão não parecia minimamente inclinado a trocar olhares com a esposa. Gavin tentava não rir, mas uma olhadela para o prato bastava para deixá-lo sério novamente. Seana olhava para Gavin por cima dos ombros de Colin. — Alison me ensinou a fazer haggis! — contou-lhe, animada. Leith limpou a garganta e Gavin sentiu subir pela sua uma sensação próxima ao pavor. Os olhares incessantes de medo dos dois irmãos só fizeram piorá-la. Todos fitavam Gavin com expectativa. — Como foi seu dia? — perguntou ele a todos, tentando esquivar-se. — Ah, foi maravilhoso! — respondeu Seana. — Muito bom — disse Alison. — E o seu? Tanto Colin quanto Leith permaneceram calados e Gavin teve a impressão de que a gororoba que mastigavam tinha colado seus lábios. Essa ideia lhe provocou uma careta. — Meu Deus! — disse Alison subitamente, interrompendo o que quer que Gavin estivesse prestes a dizer, se é que diria alguma coisa, e pulou da cadeira, exclamando:


— Esqueci o pão! — Eu ajudo! — anunciou Seana, levantando-se para segui-la. No exato instante em que as duas deixaram a sala, Colin e Leith cuspiram pedaços de uma pasta cinzenta no prato e puseramse rapidamente de pé. Com os pratos na mão, correram juntos até a lareira para jogar às chamas o conteúdo, retornando então aos seus assentos antes que as esposas voltassem com uma travessa cheia de pães recém-assados. Percebendo vestígios comprometedores no prato, Leith rapidamente pôs-se a lamber as laterais. Colin pegou um pedaço de pão assim que a esposa se sentou e começou a recolher com ele as evidências que restavam nas bordas do prato. Gavin ainda não dissera uma palavra; estava estupefato. Vovó havia sido uma cozinheira de mão cheia, e Meggie era ainda melhor. Será que o haggis estava tão terrível? — Leith! — admoestou Alison, franzindo o cenho para o marido. — Fico feliz que aprecie a receita da minha avó, mas seus modos estão bem chucros, marido. As bochechas de Leith arderam. Com a repreensão, parou de lamber o prato e o recolocou na mesa, envergonhado. Estava tinindo de tão limpo — Brownie, o cachorro, não teria feito melhor. Erguendo as sobrancelhas, Leith arriscou uma olhadela para Gavin, que quase se engasgou para não rir. Ao seu lado, Colin passava o pão avidamente no prato, removendo todos os traços de haggis e tascando as evidências na boca como se não conseguisse parar de comer. Tentou sorrir, mas, com a massa dura que tinha na boca, não conseguiu. Seana piscou para o marido e sorriu com meiguice. Aparentemente satisfeita por ele ter devorado o jantar com tanta


rapidez, pegou uma colher e a enfiou no haggis, erguendo mais uma porção. — Quer mais um pouco? — perguntou a Colin. Com a boca ainda cheia, Colin rapidamente ergueu uma mão em recusa, mas, incapaz de falar, foi tarde demais. Uma bola cinzenta foi arremessada no prato que já estava impecavelmente limpo. — Obrigado — disse, assim que pôde. Mas seu olhar era de desalento. Claramente, Gavin viera jantar na noite errada. Estendeu a mão para pegar um pedaço de pão, refletindo sobre a bênção que era ter acesso a uma fartura de comida, independentemente do gosto que tinha. Novamente, seus pensamentos se voltaram para a jovem que conhecera na entrada da floresta. Onde estaria naquele momento? Teria o suficiente para comer? Agora que o verão estava indo embora, a noite seria fria. Estaria suficientemente aquecida na túnica verde? Gavin franziu a testa, conjecturando que provavelmente não. Ela não tinha nem mesmo um poncho. — Vai precisar de muita cerveja com isso daí — murmurou Colin assim que terminou de mastigar um pedaço de pão. Desconfortável com tantos olhares em cima dele, Gavin olhou em volta. O casarão nunca estivera tão alegre, mesmo encerradas as festividades. O fogo da fornalha queimava brilhante, apesar de cheirar a haggis queimado. Por sorte, as velas tinham aroma de cera dos MacKinnon e não de resina ou sebo, e as chamas eram brilhantes e amareladas, sem a fumaça espiralada que geralmente formava manchas escuras nas paredes. Os juncos do chão eram


novos e os cães se comportavam primorosamente, esperando no canto da sala como Gavin nunca havia visto: sentadinhos no tapete. Tapete, aliás, que Gavin nunca vira antes. No entanto, Brownie, sua cadela vira-latas, tinha um ar triste e o fitava nostalgicamente com as patas estendidas, gemendo que dava dó. Por alguma razão bizarra, Gavin também tinha vontade de ganir. E não tinha nada a ver com a perspectiva de encarar a sua porção de haggis. Ou com o fato de que ele não tinha ideia de como encontrar aquela mulher novamente. Não, era um sentimento de solidão lá no fundo, que vinha se tornando mais intenso de uns meses para lá, uma sensação que só encontrava alívio quando ele pensava nela. Indagava-se aonde ela teria ido quando, de repente, lembrouse de não ter visto sinais das patas sujas de Brownie em sua cama. Concluiu que Seana ou Alison deviam ter impedido o cachorro de entrar em seus aposentos. Franziu o cenho, pensando no inverno que se aproximava. Ainda bem que logo se mudaria. As esposas dos irmãos ainda o olhavam com ar de expectativa, sorrindo com formosura. Sentindo intensamente a pressão, Gavin se aventurou e pegou um pedaço pequeno de pão, certo de que seria dos males o menor. Raspou a superfície com os dentes. — Conheci uma moça — disse casualmente, apesar da decisão prévia de não mencionar o fato. As duas mulheres se ouriçaram, direcionando a atenção para Gavin. Colin parou de empurrar o haggis para as bordas do prato e Leith largou o caneco de cerveja.


— Foi mesmo? — perguntou Leith. Gavin lançou um olhar para Seana na esperança de que ela soubesse quem era a tal moça e disse: — Sim. Pequena e bonita, com cabelos ruivos e olhos verdes brilhantes. Seana riu: — Talvez seja uma fada — brincou, com uma piscadela. Gavin tentou novamente: — Não... mas ela estava... bem, estava pintada. Seana franziu o cenho: — Pintada? — Com tatuagens — esclareceu Gavin, passando uma mão pelo peito. — Para tudo que é lado. Seana acompanhou com o olhar o movimento circular desenhado pelos dedos de Gavin sobre o peito e franziu ainda mais as sobrancelhas. — Para tudo que é lado?.. Percebendo subitamente para onde estava apontando, Gavin fez um sinal na direção dos braços. — Isso, isso mesmo, sabe... braços, pernas, rosto... — seios também, é claro, e a lembrança o deixou de faces vermelhas. — Ela era azul — completou desconfortável, limpando a garganta. Alison fez uma cara feia e repetiu, meio pasma: — Ela era azul? Gavin contraiu a testa. — Não, ela não... as tatuagens. — Está me parecendo uma picta — sugeriu Leith — apesar de que esse tipo de gente não é visto há muito tempo. — Que feio o que estão fazendo, vocês dois... Pictos e fadas! —


repreendeu Alison. E, voltando-se para Gavin com total atenção: — Me diga, onde você conheceu essa moça... pintada de azul? — perguntou, puxando o assunto educadamente. Gavin piscou para Seana. — Lá perto de onde Seana vivia com o pai dela. Apenas Seana sabia o que ele andava fazendo por lá, e jurara manter segredo, ao menos até que ele estivesse pronto a revelá-lo. — Ah... — disse Alison, tentando arrancar um pedaço de pão. Suas unhas não foram suficientes e ela inspecionou o objeto em sua mão, carrancuda. — O que estava fazendo lá longe? — perguntou, agora distraída, batendo discretamente com o pão na mesa e olhando com cautela para Seana. Gavin tinha a nítida impressão de que Seana era responsável pelo pão também, a pobre. Estava acostumada a cozinhar em um fogareiro aberto, já que ela e o pai nunca haviam tido muitos confortos. Gavin olhou para Seana e Alison, depois para Alison e Seana. Não estava preparado para contar a ninguém sobre a casa ainda. Por enquanto não. Assim, mentiu: — Estava dando uma olhada no alambique. Alison pareceu ainda mais perplexa. Parou de inspecionar o pedaço de pão-pedra. — Pensei que não aprovava o whisky de Seana. Gavin lançou para Seana um olhar de padecimento, na esperança de que ela não se ofendesse. — Não o desaprovo, só não quero beber dele. Como estava dizendo, eu estava lá perto... e resolvi dar uma verificada para


Seana. Foi só isso. Seana fitava o prato, desconfortável. Permaneceu em silêncio, evitando cruzar o olhar com quem quer que fosse, e Gavin pensou que talvez ela se sentisse incomodada por ser cúmplice de uma mentira. Agora parecia ser a vez de Colin ficar confuso. Esquecendo de uma vez o haggis, ele examinou o rosto de Gavin. — O que estava fazendo lá na Terra de Ninguém, irmão? — Arre, Colin! Não é terra de ninguém! — Seana respondeu imediatamente.— É a minha terra! Espero que parem de falar dela desse jeito! Se querem saber, eu pedi a Gavin que checasse o alambique para mim — mentiu. — De qualquer forma... — continuou Gavin, sentindo-se culpado por Seana, e olhando para Leith, que também o estudava — foi lá que a vi. — Quem? —indagou Alison distraidamente, batendo novamente o pão contra a mesa. Aquile negócio parecia um martelo. Jesus, dava pra quebrar um dente. Gavin largou seu pão no prato, deixando-o de lado. — É isso que eu estava na esperança de que Seana soubesse... — Sabe pelo menos o nome dela? — urgiu Seana. — Talvez seja uma MacKinnon? Ou então alguma prima de Broc Ceannfhionn; elas costumam passar por ali para subir a costa. — Não, não. Colin franziu o cenho: — Não, ela não era uma MacKinnon? Ou não, não sabe o nome dela? — insistiu. Frustrado, Gavin encarou o irmão.


— E por que eu estaria perguntando se soubesse de onde ela veio? Ñão, eu não sei o nome dela! — disse, perdendo a paciência. — Por que não? — persistiu Leith. Gavin começava a se sentir como o réu de uma inquisição. — Porque não perguntei, oras bolas! — Por que não? — Arre, porque estava distraído! Colin lançou-lhe um olhar de compreensão. Conhecia-o bem demais. Ainda assim, perguntou: — Distraído por quê? Gavin corou e respondeu na defensiva: — Pelo alambique, é claro! — É claro... — concordou Colin, sarcástico. Seana continuou com a mentira. — E então... como estava? Gavin piscou, sentindo-se ainda mais zonzo agora do que mais cedo, na presença da moça pintada. — Como estava o que, diabos? Nesse ponto, até Seana apertou os olhos. — O whisky, Gavin! O whisky! De repente, Alison derrubou o biscoito e levou a mão à testa: — Estou confusa! Leith passou um braço sobre seus ombros e beijou-a no rosto. — Somos dois, querida. Colin, o covarde, simplesmente ergueu uma sobrancelha e abriu ainda mais o sorriso maldoso. — Parece que alguém tomou sol demais, hein, irmãozinho? — Tomou mesmo — Seana se apressou em acrescentar. — Seu rosto está cor de beterraba!


Colin deu-lhe um peteleco carinhoso no nariz e disse: — Isso, minha amada esposa, é o rubor dos virgens. E piscou, matreiro, para Gavin. Pela piada e pela piscadela, Gavin olhou feio para Colin. De saco cheio das provocações, puxou a cadeira, certo de que a conversa não iria a lugar algum que prestasse. — No final das contas, acho que estou sem fome — disse, em seguida assoviou para Brownie e abandonou o saguão. O cão disparou atrás dele. — Besta — xingou Leith, mas sem maldade. — O que acham que deu nele? — perguntou Alison assim que Gavin saiu. Colin olhou para a porta, pensativo. — Não fossem aqueles votos dele, eu diria que nosso irmão caiu nas garras da luxúria. Alison contorceu o rosto. — Não, Gavin, não... — disse, categórica. — Arre — exclamou Colin. — Posso jurar que o sangue desse menino é vermelho como o meu. — Bem, ele pode ser seu irmão mais novo — retrucou Alison com uma sobrancelha erguida —, mas Gavin já não é mais menino há um bom tempo, caso não tenha notado. Seana sorriu para todos com ar de quem sabe das coisas e deu de ombros. — Pode ser que tenha caído nas garras do whisky — disse, suavemente.


CAPÍTULO 3

L

á fora, a lua estava alta e cheia. Iluminava o pátio o suficiente para que Gavin conseguisse enxergar a área atrás da pequena capela, onde casaizinhos namoravam sob a luz da lua, seus membros obscurecidos pela neblina que só engrossava. À distância em que se encontrava, via apenas silhuetas que não conseguia identificar. Não importava; parecia que todo mundo tinha encontrado alguém, menos ele. Sentou-se com as costas apoiadas em uma pilha de troncos, Brownie aconchegando-se obediente aos seus pés. Acariciando o cão, absorto, tentava não pensar em nada. De tempos em tempos um homem precisava clarear a mente e alimentar a alma, mesmo com a barriga roncando. Permaneceu sentado por não sabe quanto tempo. Após alguns minutos, Seana apareceu ao seu lado: — Deve estar faminto — disse em voz baixa, pegando-o de surpresa. Às vezes ela parecia ser feita de névoa, de tão silenciosa. Devia ser consequência da vida na floresta, sem proteção e tendo que se virar sem ajuda, pensou Gavin. Ajeitando o poncho de Colin sobre os ombros, ela sentou-se com cuidado sobre a pilha de troncos, ao lado dele. Gavin deu de ombros. Estava de fato faminto, mas planejava esgueirar-se até a cozinha quando todos estivessem dormindo para não magoar ninguém, principalmente Seana, por quem


desenvolvera uma afeição. — As cores dos Brodie lhe caem bem — disse-lhe Gavin com sinceridade. —Combinam com você. Seana ergueu os ombros, abraçando a lã e sorrindo com ternura. — Obrigada, Gavin, querido. Lançando-lhe um olhar de lado, confessou: — O haggis estava ruim, eu sei. Mas, fazer o quê, meu pai e eu nos virávamos com coisas mais simples. Ele a fitou com empatia. — Ainda sente falta dele? Ela assentiu. — Não passo um dia sem sentir saudades, mas sei que ele está por aí, em algum lugar... cuidando de mim. — É bom ter fé — disse Gavin, embora ele próprio estivesse bem mal naquele departamento. — Não se preocupe, moça. Por um bom tempo após a morte da vovó Fia, até Meggie queimava a comida. Seana respondeu, esperançosa: — De verdade? — Sim, eu e meus irmãos passamos semanas com dor de estômago de tanta fome. Trabalhávamos até depois do jantar e depois dávamos um jeito de entrar na cozinha quando a lua já ia alta. E Colin, o bandido, guardava o pão inteiro, a única coisa que Meggie sabia fazer direito. Seana riu ao imaginar a cena: os três irmãos pé ante pé no meio da noite, atrás de comida. — O Colin que eu conheço sempre foi um menino meio mimado.


Gavin ergueu as sobrancelhas: — Meio? Seana riu outra vez. — Onde é que eles estão agora? — Colin e Leith? Ela adotou um olhar astuto: — Alison colocou os dois para limpar a fornalha. Gavin soltou uma gargalhada. — Garota esperta! — disse, mas não prolongou o assunto. No céu, estrelas piscavam como joias brilhantes em um céu claro de ébano, apesar da neblina grossa e espiralada que descia até o solo. Era uma daquelas noites em que a floresta parecia quase sobrenatural, cheia de olhos piscando e galhos quebrando, passos e sussurros invisíveis. O tipo de noite em que seria possível acreditar em fadas e aparições. Vovó Fia certamente acreditara na existência desses seres, e costumava andar por ali conversando com eles inclusive durante o dia. Infelizmente, isso lhe rendera o primeiro dos apelidos de “Brodie Louca”. Gavin ergueu os olhos para Seana, indagando se ela e Alison finalmente quebrariam aquela maldição das mulheres Brodie. Seana ajeitou o poncho, enrolando-o ainda mais em volta do corpo por causa da noite fria, e disse subitamente: — Conte-me sobre a mulher que conheceu hoje, Gavin. Gavin fitou-a. Era muito bela, a mulher do irmão. Não era à toa que Colin estava apaixonado. E, ainda por cima, tinha um coração de ouro. Embora não fosse nada parecida com a mulher pintada. Ele deu de ombros. — Não tenho muito pra contar. Só estava me pergunando se alguém já a tinha visto — explicou, mirando-a de relance para


averiguar sua expressão. — Talvez ela estivesse procurando um marido? — disse Seana, com uma piscadela. — Afinal de contas, não existe uma mulher por estas partes que não deseje ser noiva de um Brodie. — Que nada. Elas não me querem — assegurou-lhe Gavin. — Leith é o chefe do clã. É natural ser desejado. E Colin... bem, não é mistério nenhum o que as mulheres veem no bonitão... Mas eu não. Seana gargalhou. — Colin não gostaria nem um pouco de ser chamado de “bonitão”, creio eu. Mas eu lhe garanto que nenhuma mulher nestas Terras Altas não arrancaria os próprios olhos para ser sua noiva, Gavin. Ele sorriu sem muita convicção. — Se a mulher arrancasse os olhos, não precisaria me ver. É essa a ideia? Os dois riram e Brownie começou a lamber a pata, limpando as unhas com os dentes. — Não tenho muito a oferecer — disse Gavin, desta vez sem ironia. — Hmmm — respondeu Seana, examinando-o com o cenho franzido. Após uns bons instantes de contemplação, acrescentou: — Meu pai achava que aquela parte da floresta era cheia de magia. Tinha certeza de que minha mãe era uma fada... e que se uniria a ela quando passasse desta vida para a próxima. Na verdade, nos últimos anos de vida, ele jurava que ela era uma gata. Ele a chamava de Meu Amor. — Uma gata?


Seana revirou os olhos. — E eu de certa forma acreditei, porque parecia que aquele raio daquela gata estava sempre por perto. — E no que acredita agora? — perguntou Gavin. Seana deu de ombros. — Bem... Acredito que há coisas que não podemos explicar — confessou. — Tipo o quê? Ela abriu um sorriso e baixou os olhos na direção de Gavin. — Tipo o amor, Gavin Mac Brodie. Se o amor não é um tipo de magia, então não sei o que é. Ela então se levantou e, tremendo de frio, agarrou-se ainda mais ao poncho. — Devia entrar logo — disse ela. — Vou dar um jeito de tirar Alison da cozinha para que possa roubar um lanche. E não se preocupe com os meus sentimentos. Seana então partiu, com um sorriso no rosto e outra piscadela. Gavin permaneceu ali sentado, meditando sobre as palavras de Seana e o sentido da vida. Olhava fixamente para o pequeno templo que haviam construído anos antes, para decepção da avó. A estrutura era remanescente de um antigo monumento de pedra, bastante grande, que fora saqueado muito tempo antes. Gavin construíra sólidas paredes com vigas grossas e um telhado de madeira. “Vai irritar os deuses!”, ralhava Fia. “Onde este mundo foi parar!" E ia embora, murmurando com seus botões sobre a prepotência da juventude. Ao contrário da capela que Meggie estava começando a construir para Gavin na terra dos Montgomerie, aquele era


simplesmente um local privado para ficar de joelhos e rezar, algo aliás que Gavin agora raramente fazia, pois parecia ter perdido o rumo. Exatamente como a moça pintada apontara mais cedo, mas como ela podia saber? Acertara sem querer, não havia outra explicação. Gavin suspirou, ciente de que, no passado, chegava a irritar os irmãos com sua paixão pelas escrituras. E mesmo assim eles o deixavam expressar seus pensamentos. Olhando em retrospecto, percebia que não compreendia bem o desespero por trás de seus estudos, mas parecia-lhe que pudesse ter algo a ver com a agitação que trazia na alma, com o vazio que não conseguia preencher a despeito de suas boas ações. Ou talvez as boas ações fossem apenas uma distração segura... Do amor? Da magia? Humpf! Gavin permaneceu parado com uma pedra na mão, assistindo aos amantes atrás da igreja, alguns dos quais se apressavam em direção à privacidade da mata. Sentiu uma pontada inesperada de inveja. Atirou a pedra, sem força, em direção ao novo armazém em construção e voltou para a casa, determinado a terminar a obra da sua casa ainda naquela semana. De uns tempos para lá, aquela era a única coisa que lhe trazia algum senso de satisfação. Após semanas de trabalho, a obra estava chegando ao fim. Faltava apenas levantar o telhado e depois começar o poço. Uma vez finalizada essa parte, poderia então arar a terra. E pediria a Leith, seu irmão, algumas ovelhas e cabras em troca de parte da colheita


da primavera. Era isso mesmo que faria, e a ideia lhe trazia um calor ao peito que nem o whisky de Seana chegava perto de proporcionar. Quanto ao amor... algumas coisas não eram para todos, pensou. E quanto à moça pintada, já se fora faz tempo, e era melhor afastar sua imagem da mente de uma vez por todas. Não lhe faria bem perder a cabeça por uma mulher que, para todos os efeitos, não existia (mesmo com aqueles maravilhosos seios adornados). Gavin passou os dois dias seguintes ajudando os irmãos na construção do novo armazém. Nem os MacLeans nem os Brodies eram prósperos como Iain MacKinnon, mas seus negócios também não eram nada insignificantes e cada homem e mulher tinha um papel a cumprir. Uma vez pronta, seu novo lar seria uma construção modesta em sólidas pedras argamassadas, pouco maior que uma cabana comum. Mas, para Gavin, era mais do que suficiente. Naquela região, apenas o sr. MacKinnon possuía algo como uma fortaleza. Situada no topo do costão, Chreagach Mhor era invejada por todos os clãs da vizinhança, pois se equiparava até mesmo às propriedades dos filhos de Malcom Ceann Mór. Para sorte de David, filho mais novo de Malcom, Iain MacKinnon não tinha pretensão alguma ao trono de Scotia. David andava numa tal bajulação ao rei da Inglaterra que não seria difícil incitar o povo contra ele. Já Iain, vindo de uma linhagem que remontava a Kenneth MacAlpin, certamente seria apoiado por todos os habitantes das Terras Altas se quisesse. Assim, não foi surpresa para ninguém quando David de repente passou a ser o aliado mais ferrenho de Iain. Qualquer decreto que MacKinnon proferisse, David


ecoava de cima do costão — o que certamente não fazia com todos os aspirantes ao trono. Alguns haviam tido outros destinos. Tentando apagar da mente a imagem da jovem adorável de corpo desenhado, Gavin assentou mais pedras naqueles dois dias do que em todas as semanas que vinha trabalhando na construção. Os três irmãos trabalhavam juntos para levantar o novo armazém, já que, finalmente, o antigo ficara totalmente cheio bem antes da chegada do inverno — em parte, porque os clãs vizinhos se uniram para negociar mantimentos. Os MacKinnons tinham um exímio fabricante de velas, cuja cera queimava com força e brilho. Os MacLeans conseguiam cultivar batatas em qualquer canto ou greta. Os Brodies eram excelentes agricultores e pastores. E Piers de Montgomerie tinha parentes com quem fazia negócios na Inglaterra. A irmã de Gavin, Meghan, era uma tecelã de primeira, e seus tecidos eram firmes e macios. Finalmente, os Brodies também tinham Seana, com seu whisky que era dos melhores das Terras Altas. Com tudo isso, parecia que aquele seria o inverno mais próspero havia muito tempo, desde antes de o pai dos Brodie abandonar o clã (o patriarca, apesar de mulherengo, fora um excelente senhor de terras). Gavin estava apenas um pouco preocupado com a reivindicação de Seana para que parte de sua terra fosse concedida aos Brodies, uma extensão que não lhes pertencia anteriormente. Ainda assim, agora que a paz reinava entre os clãs e o marido de Seana era dono da propriedade adjacente ao sul, sendo os Brodies proprietários da terra adjacente a oeste, Gavin estava certo de que os conselheiros do clã não se oporiam, principalmente se ele


conseguisse o favorecimento dos MacKinnon, o que pretendia tentar brevemente. Não achava que o senhor MacKinnon fosse ter algum problema com a demanda, já que o pai de Seana ocupara as terras abaixo do rochedo de Chreagach Mhor a vida toda, e Seana estava agora casada com o senhor do clã Brodie, irmão mais velho de Gavin. De qualquer forma, todos os clãs viam aquela área como Terra de Ninguém, já que o solo não era lá muito fértil. Ou seja, a chave para o sucesso de Gavin como senhor de terras estava em cavar um novo poço, atividade que não o deixava particularmente empolgado. Gavin não conhecia nenhuma vidente confiável além da falecida vovó Fia, e a ideia de sair cavando buracos naquela argila escarpada às cegas, até por acaso encontrar uma fonte abundante, não lhe era particularmente atraente. Apesar de ter trabalhado o dia todo ao lado dos irmãos, de alguma forma Gavin conseguiu chegar ao fim do dia sem que lhe fizessem perguntas sobre suas visitas à Terra de Ninguém ou sobre a mulher misteriosa. Infelizmente a razão para isso fora, em parte, o fato de que uma seção inteira do novo armazém desmoronara. Para sorte de Gavin, a parede em questão fora levantada por Colin — mesmo ali, o irmão não conseguia tirar os olhos da bela esposa. Bestalhão apaixonado. Assim que os primeiros raios de sol irromperam na manhã seguinte, enquanto Colin consertava a parede, Gavin partiu atrás do senhor MacKinnon para uma conversa. Encontrou todos os habitantes da casa em polvorosa por conta da fuga de uma prisioneira do rei David; uma mulher, disseram-lhe, e Gavin não pôde evitar de pensar na moça pintada. A prisioneira, aparentemente, era irmã de um líder rebelde do


interior do Mounth. Deveria tornar-se tutelada do rei da Inglaterra, assim como anos antes haviam tentado fazer com o primeiro filho de Iain. Iain se recusou a colaborar com as buscas à fugitiva supostamente porque sua esposa estava prestes a dar à luz, mas Gavin sabia que aquela era apenas parte do motivo. Gavin teve a sensação de que não poderia ter escolhido horário pior. Dado o que ocorrera com a primeira mulher de Iain em situação semelhante, pensou que talvez não fosse sábio esperar para ter com o suserano naquele dia. Se o parto não fosse bemsucedido, Iain não estaria apto a conversar. Por outro lado, se tudo desse certo e o senhor MacKinnon fosse presenteado com uma criança saudável — e sua nova esposa não cometesse suicídio como a primeira —, então certamente ele surgiria alegre e com espírito generoso. Um pouco sem fôlego, Gavin esperou ao lado de Broc Ceannfhionn pelas notícias. Broc e a esposa Elizabet discutiam incessantemente o nome do próprio filho. Gavin foi obrigado a considerar a questão, já que o lindo bebezinho já tinha quase seis meses de vida. — Do que o chamam agora? — perguntou a Broc. Broc franziu o cenho: — De “bebê”. A esposa trouxe uma bandeja de doces e colocou-a sobre a mesa, incentivando Gavin a pegar um. Ele não hesitou. Estava faminto, já que naquele momento não tinham uma cozinheira decente em casa. — Quero que ela se chame Susan — disse a esposa, com seu delicado sotaque inglês. — É um lindo nome, não acha? — perguntou a Gavin.


Desejando não tomar partido, Gavin deu uma mordida na torta e olhou de relance para Broc, que tinha agora a testa ainda mais franzida. O nariz, que uma vez fora quebrado por sua cadela Merry, fungou com ar de desaprovação. — Gavin é meu amigo — assinalou Broc para a esposa. — Não pode querer que ele fique do seu lado. Não é assim que funciona! A expressão de Elizabet era bastante inocente, embora o sorriso fosse calculado. Broc parecia não perceber nenhum dos dois. — É um nome perfeitamente adorável — argumentou ela, ignorando o que ele dissera. Broc teve a dignidade de negar com a cabeça, mantendo-se firme (ao contrário do que fariam os irmãos de Gavin, que teriam capitulado imediatamente). Talvez ainda houvesse alguma esperança para aqueles seres apaixonados? Talvez dentro de algum tempo os irmãos sossegassem um pouco? Gavin abocanhou outro doce e aproveitou para mastigar vigorosamente, esquivando-se assim de ter de responder a um ou outro membro do casal. Ainda sorrindo, Elizabet se aproximou do marido e sentou-se em seu colo. As bochechas de Gavin ferveram ao vê-los cochichar e trocar beijinhos no rosto. Levantando-se para contemplar pela janela a imensa fortaleza dos MacKinnon, Gavin indagou-se quanto tempo demoraria até que alguém enviasse alguma notícia da torre de cima. Torre que, por sinal, era a mesma de onde a primeira mulher de MacKinnon se jogara. — Arre, muito bem — ouviu Broc dizer. Balançou a cabeça, pensando na futilidade dos homens enamorados. Pelo amor dos santos, para se conquistar essas Terras


Altas bastava um punhado de mulheres Sassenach. O senhor MacKinnon já tinha duas ao seu redor: a esposa e agora Elizabet. Já eram quase Sassenachs eles próprios, os MacKinnon. Mas isso não era da sua conta; o que precisava no momento era garantir para si as terras abaixo do costão, para que pudesse começar a cultivar nelas. Subitamente, ouviu-se um grito vindo da janela da torre: um grito de alegria. Gavin saiu correndo para ouvir o que estavam anunciando. Aparentemente, todos na redondeza aguardavam as notícias, pois as casas se esvaziaram e o pátio se encheu de gente. — Uma menina! — gritou a parteira da janela alta. — Uma bebezinha! E desapareceu novamente. Gavin esperou e, para sua alegria, o senhor MacKinnon quase não apresentou objeções à sua solicitação. Liberou-o com bênçãos e com a marca de sua enorme mão na região lombar de Gavin. Gavin não pôde evitar de se perguntar como alguém ousaria desafiar o senhor MacKinnon, fosse qual fosse o motivo. Como o pai, ele emanava poder e autoridade. Assim que o grupo de busca deixou a floresta, Catrìona retornou à pequena casa na expectativa de lá se esconder, raciocinando que, mesmo que o proprietário retornasse, ele fora gentil o suficiente ao lhe oferecer algo com que se cobrir. Talvez lhe oferecesse também um abrigo seguro? Em troca, estaria disposta a ajudá-lo a finalizar o telhado da casa, algo que toda mulher do seu clã sabia fazer, já que ninguém era tratado de forma diferente simplesmente por ter um apêndice balangando entre as pernas. Fora educada para ganhar a vida e a


situação ali não era diferente. Tinha esperança de que, pelo fato de o montanhês viver sozinho (ao menos era o que lhe parecia), talvez não estivesse a par de que ela estava sendo procurada. Aqueles demônios a haviam prendido e desnudado, mas ela conseguira fugir. Arre, que ela preferia morrer a se tornar um fantoche usado para subjugar os remanescentes do seu povo! Tinha muito pouca fé nos líderes da Scotia. Mas também não podia voltar para casa, pelo menos até aquele momento. Até que tudo estava fluindo melhor do que ela imaginara. O dono da casa ainda não retornara, e quando chegasse ela nem precisaria consultá-lo ou aguentar suas expressões de dúvida, já que já estava praticamente terminando. E ele certamente não se oporia a deixá-la dormir ali quando visse todo o trabalho a que ela se dera para ajudá-lo. O sapê estava bem apertado, do jeito que ela aprendera, e a água da chuva não passaria nem mesmo na pior tempestade. Era bastante gentil, o montanhês. E bonito; o tipo de homem com quem poderia querer se casar algum dia. Tinha cabelos loiros, grossos e limpos. O queijo era bem-definido, com um furinho muito suave. Tinha olhos verdes profundos e escuros como o musgo, mas que, acima de tudo, emanavam bondade. Porém visivelmente não sabia se vestir como um homem. A túnica que ele lhe dera era bonita, mas era-lhe estranho ver homens em vestidos bordados. Por outro lado, também não estava acostumada a sair correndo por aí como veio ao mundo. Se bem que não tinha vergonha do corpo — quem devia ter vergonha eram eles, que haviam arrancado


suas roupas! Como se ela não fosse fazer de tudo para escapar daquelas garras gosmentas! Quanto ao montanhês... mal conseguira tirar os olhos do seu busto. A lembrança a fez sorrir. Na verdade ela nunca teria pintado o próprio corpo, mas aquele fora um ato de desafio. Era o seu modo de mostrar àqueles cães arrogantes que nunca, nem ela nem seu povo, se dobrariam à vontade deles. Haviam sobrevivido a todas as ondas de pilhagem vindas do norte e à infindável politicagem das tribos das Terras Altas desde que os filhos de Áed e Constantino retornaram da Irlanda dois séculos antes. Não, seu povo era de sobreviventes e nunca abandonaria os antigos costumes. Ela manteria sua fé até o último suspiro, pois era filha de Alba, irmã do vento e filha da mata. Cantarolando enquanto trabalhava, inspecionou o punhal deixado pelo rapaz. Era dos bons, parecido com o que o irmão lhe dera no seu aniversário de dez anos. E que os canalhas tiraram dela. Queria-o de volta. Suspirou e largou o punhal, que caiu exatamente onde ela previu: bem no meio do tronco, no local onde o montanhês estava sentado, bebendo água do frasco, quando ela o encontrou pela primeira vez. Diabos, era um homem bonito! Um homem de saias, porém bonito. Riu do próprio pensamento e voltou ao trabalho, ajeitando o sapê que afanara de uma fazenda vizinha.


CAPÍTULO 4

E

scurecia na hora em que Gavin partiu da propriedade dos MacKinnon, por isso resolveu ir direto para a casa da família em vez de se embrenhar pela mata à noite. Vovó costumava lhe contar a história de um homem amaldiçoado e condenado a vagar pelo mundo eternamente por causa de seus crimes. O homem tivera direito a uma única graça, segundo a história: um pedaço de carvão em brasa para iluminar e aquecer seu caminho. Mas usara-o, em vez disso, para guiar os viajantes que percorriam trajetos perigosos. Esse homem, segundo vovó, era o criador do fogo-fátuo. Segundo o pai, por outro lado, as misteriosas luzes eram devidas aos gases dos pântanos, não a espíritos ou seres do além. Fosse qual fosse a verdade, qualquer pessoa em sã consciência ficaria longe da mata à noite, naquela região. Principalmente sozinho e em dias tão tensos. A nova casa poderia esperar mais um dia. Naquela noite Gavin dormiu como um patrão, contente porque tudo correra bem. De manhã, ao constatar que os irmãos ainda não estavam prontos para recomeçar a labuta no armazém, passou rapidamente pelo alambique para checar o whisky. Na verdade, não fazia a menor ideia do que faria se visse algo de errado, a não ser correr de volta e contar a Seana. O alambique era um mistério completo para ele. Fora contruído pelo falecido pai de Seana e a única pessoa que sabia mexer no bendito era ela. Por sorte, tudo


parecia estar funcionando normalmente. Os mesmos barulhos de sempre, que lembravam um velho cheio de muco na garganta, tossindo, cuspindo e fumegando como vovó com seu charuto. Gavin contorceu o rosto diante do aroma e abanou o nariz. Não era de surpreender que, naquela manhã, houvesse uma cambada de gatos circulando em volta do destilador. Pretos, brancos e rajados, eram tantos que nem adiantava balançar o cajado para espantá-los. Deus do céu, nunca vira tantos gatos juntos. Se não fosse absurdo, poderia pensar que estavam fazendo uma festa regada a whisky. A cada dia, mais e mais felinos apareciam em volta do destilador. Não era uma boa notícia para Brownie. O pobre cão ficaria louco naquele lugar. Resignado com o fato de que o cão provavelmente passaria o resto dos seus dias envolvido com a tarefa de perseguir gatos, Gavin continuou andando pela beirada da mata, cantando uma rima que a avó lhe ensinara na infância. Ó, vento do oeste, quando virás

Trazendo a chuva a cair de jeito? Quisera, Deus, meu amor nos braços E eu de novo deitado em meu leito! Não sabia os demais versos, mas não se importava. Logo a casa estaria pronta e mal podia esperar para compartilhar a boa


notícia. Três homens feitos sob um mesmo teto, além de suas esposas, era mais do que podia suportar. Ainda cantando, cruzou a barreira de árvores e chegou ao clarão. A cena que surgiu à sua frente demorou alguns segundos para fazer sentido. Até que fez. Titubeando e piscando, Gavin avançou lentamente. A casa estava quase acabada. O telhado estava feito! E sobre ele estava sentada a moça pintada, ajeitando a última amarra. — Bom dia! — ela o cumprimentou, acenando. Gavin não encontrou voz com que falar. Por um instante, pensou que talvez a fumaça do alambique tivesse afetado seu cérebro, porque só podia estar tendo alucinações. Continuou dando passos cautelosos, o queixo caído. O telhado era dos bons, tal como os que ele próprio já construíra anteriormente... Não, era melhor, até! Mas aquilo não era remotamente possível. Mesmo que ela não fosse uma mulher, um telhado daquele tamanho levaria quase uma semana de trabalho. Não, não era possível. — O que é isto? — perguntou, erguendo os olhos na direção da moça e agitando uma mão para o telhado. Sem se intimidar, ela o fitou de volta, sorrindo largamente, as bochechas revelando pequenas covinhas. — Bom, creio que isto se chama “telhado” — disse. — Gostou? Gostou? Mas é claro que tinha gostado, embora fosse fisicamente impossível ela ter levantado o telhado no período em que ele


estivera ausente, principalmente considerando-se que ela teria de ter coletado a palha e feito toda a amarração sozinha. Gavin ficou em pé, parado, encarando-a como um bobalhão (tinha ciência disso). — Arre, mas de onde diabos veio isso? Ela piscou para ele. — Mágica das fadas — brincou e riu, um riso musical como uma canção. E em seguida acrescentou, mais séria: — É meu agradecimento por este lindo vestido. — É uma túnica — explicou ele, irritadiço. — Não um maldito vestido! Espera que eu acredite que simplesmente piscou seus lindos olhinhos e pronto, lá estava o telhado? Ela deu de ombros e deslizou até a beira do telhado, sentando na beirada para balançar as pernas. Olhando para baixo na direção de Gavin, pareceu-lhe tão completamente bela, com as pernas (perfeitamente longas e torneadas) expostas e em movimento... Gavin desviou o olhar, sem coragem de levá-lo até acima dos joelhos da moça. Ainda assim, apesar da resolução de ser um cavalheiro, sentiu seu membro acordar sob o kilt que vestia. — Por Deus! — disse. — Desça daí! Desça agora! A pintura das pernas dela havia desaparecido, como se ela tivesse se lavado em algum lugar. Gavin tentou não pensar em sua figura, nua em pelo, lavando-se no lago, dedos longos e graciosos acariciando os seios empinados. Sentiu o corpo enrijecer-se e o sangue começar a cantar pelas veias. — Não — ela se recusou. — Não desço até que me agradeça com o go raibh maith agat da nossa língua — advertiu ela, ainda sorrindo.


Gavin fez que não com a cabeça, não para recusar o pedido, mas porque ainda não conseguia acreditar no que via. — Fez tudo isto sozinha? — indagou, confuso, incapaz de processar o aparecimento súbito de um telhado. As sobrancelhas claras se aproximaram. — Arre, mas ora, quem mais poderia ter me ajudado? — disse ela, e fazendo um gesto com a mão: — Esse bando de gatos? — Não, mas não é possível! — insistiu Gavin, levantando a vista e deparando-se com nádegas torneadas, que fizeram uma aparição em meio ao movimento da jovem para descer do telhado. — Pelo amor dos santos, dona, sua mãe nunca lhe ensinou a manter suas partes guardadas e escondidas? É falta de educação! Ela parou na metade do caminho, pernas no ar, sustentando-se pelos braços — braços firmes que, como as pernas, pareciam não estar acostumados ao trabalho pesado. Do ponto em que estava, Gavin poderia perfeitamente estender a mão e acariciar aquele pequeno traseiro para ver se era mesmo tão rígido e macio quanto aparentava. — Minhas partes? Gavin fez um gesto com as mãos para que ela terminasse de descer, tentando desesperadamente evitar a tentação. — Deixe pra lá. Desça agora! — ordenou. — Desça daí! Aterrissando à sua frente, ela o fitou atravessada: — Se quer saber minha opinião, falta de educação é um homem não saber agradecer por um simples presente! O verde estonteante daqueles olhos deixaria qualquer um zonzo, pensou Gavin. Balançando a cabeça para se libertar do encanto, disse finalmente:


— Obrigado. Porém ainda não conseguia acreditar no que via. Após verificar mais uma vez o trabalho externo, arriscou-se a entrar na casa e inspecionou o trabalho meticuloso da parte interna. Ela o seguiu, observando-o. — Gostou? — perguntou, cheia de expectativa. Era verdadeiramente incrível, embora igualmente impossível. Gavin virou-se em sua direção, coçando a cabeça, confuso. — Fez isto sozinha? — perguntou novamente, enfatizando o “sozinha”, para que não houvesse dúvida quanto ao que ele estava querendo saber. Ela assentiu com um sorriso. — É incrível! — admitiu ele. — Eu teria levado uma semana para fazer isto sozinho! Ela deu de ombros. — Mas você fez isto sozinha, sem ajuda nenhuma! Ela franziu a testa e novamente deu de ombros, como se não entendesse o porquê de ele estar tão impressionado com o feito. Além disso, já estava começando a ficar incomodada com aquele questionamento insistente. Gavin observou que grande parte da pintura corporal tinha sumido. Restava apenas um azul desbotado no rosto e nos braços, um pouco no pescoço longo e gracioso, embora a pele continuasse tão perfeita como em sua memória. E a túnica certamente estava muito mais bonita nela do que jamais estivera nele. Nela, ficava justa, mas não demais, revelando curvas delicadas. Descia até logo abaixo dos joelhos, flutuando sobre pernas esbeltas. — Não consigo acreditar — disse ele, virando-se para examinar


o interior da pequena cabana. Do dia para a noite, tinha-se tornado um lar. Uma luz suave e fosca entrava pelas duas pequenas janelas. Agora faltavam apenas as cortinas e uma porta... e uma cama. Voltando os olhos para a misteriosa mulher, visualizou-a estendida no leito que pretendia trazer da casa da família. Não era grande como a enorme cama de Colin, mas tinha espaço suficiente para duas pessoas — e para uma ação entre os lençóis, se assim desejassem. Ela ainda o observava com o cenho franzido, e Gavin sentiu as faces enrubescerem. Esforçou-se para expulsar as imagens carnais que pululavam em sua mente. Diabos, aquela casa era dele, não dela, apesar de ela ter ajudado a finalizá-la. De qualquer forma, os pensamentos que lhe cruzavam a mente eram as ideias mais ridículas que jamais tivera, simplesmente porque a jovem não tinha pedido para se tornar sua esposa. Apenas lhe concedera a dádiva de um teto, por mais que parecesse impossível. Gavin olhou-a, desconfiado. — O que quer? Mais uma vez ela franziu o cenho e repetiu, como se não tivesse entendido: — O que quero? — Isso — disse ele. — Ninguém faz este tipo de trabalho por nada. Que tipo de pagamento está procurando, dona? Porque não tenho muita coisa para dar — acrescentou apressadamente. Ela examinou a saca que ele trouxera consigo, e que continha provisões suficientes para um dia inteiro. — Talvez só algo de comer — sugeriu ela — se tiver o bastante para dois?


Gavin estreitou o olhar com suspeita. — Se a dona tivesse algum poder mágico, penso eu, conseguiria arranjar seu próprio café da manhã — disse, irritado, em um tom recheado de sarcasmo. — Ora, consegue levantar um baita de um telhado, mas não consegue encher essa pancinha? Ela apoiou as mãos nos quadris e seus olhos emitiram faíscas esverdeadas. — Não preciso de nada que venha de um patife! — disse, virando-se e saindo da cabana para marchar rumo à mata. Gavin a seguiu, vivenciando um instante de medo ao imaginar que ela pudesse desaparecer novamente. — Espere! De fato ele trazia na saca mais do que o suficiente, o que só podia indicar que estivesse de alguma forma esperando, até mesmo desejando, encontrá-la novamente. E era exatamente isso o que explicava seu humor subitamente azedo: pela primeira vez na vida ansiava por algo que, de fato, não esperava conseguir. Algo naquela moça o fazia arder por coisas que não conseguia nomear. Ela parou e olhou para trás por sobre o ombro, os olhos verdes cheios de incerteza. Gavin acenou com a cabeça, levantando a saca. — É isso mesmo, tem comida que chegue — garantiu. — Volte, dona. Está certa. Sou um babaca mal-agradecido e aqui está meu mais sincero agradecimento. Ainda assim, ela hesitou. — Peço desculpas — disse ele. — Não vá. Levantou a saca ainda mais alto, oferecendo-a a ela, e acrescentou:


— Tenho pão, queijo e biscoitos de aveia. — Biscoitos de aveia? Um sorriso tímido retornou aos lábios da jovem e ela se apressou em voltar. Gavin sentiu algo como um bando de pássaros levantando voo em seu peito. — Qual o seu nome? — perguntou, observando-a no caminho de volta e sentindo a pele formigar levemente diante daquelas pernas bem-desenhadas que a traziam até ele. — Meus amigos me chamam de Cat — disse ela, e Gavin ergueu uma sobrancelha. Piers de Montgomerie, parado em frente ao celeiro, coçava a cabeça ao contemplar o espaço, agora vazio, em que antes armazenava sua palha. A carreta, que continuava ali, parecia ter carregado montes de feixes de palha recentemente, mas agora estava vazia exceto por alguns ramos soltos. Piers planejava em breve trocar o teto da pequena capela que sua esposa estava construindo para o irmão Gavin, mas agora o material da obra havia desaparecido. Meggie certamente pensaria se tratar de apenas mais um atraso, mas não era o caso. Verdade seja dita, construir um templo para o irmão mais novo ficar vomitando sermões que Piers não queria ouvir era, por certo, muito menos uma prioridade do que, por exemplo, reconstruir um celeiro ou consertar o diabo da cerca que os irmãos de Meggie haviam destruído durante uma briga. Fora que, nos últimos tempos, Gavin realmente não parecia lá muito interessado nos seus sermões. Piers não se lembrava da última vez que o rapaz lhe fizera uma visita. Andava sempre


ensimesmado, matutando com seus botões. — Estava tudo aqui — disse Baldwin. — E de repente sumiu. Juro, Lyon! Piers balançou a cabeça, e não apenas por causa da obviedade do comentário. Não via a hora de o amigo de longa data parar de usar aquele epitáfio bobo. O nome Lyon lhe fora dado por seus homens após uma batalha particularmente sangrenta, após a qual relataram tê-lo visto saindo do campo de batalhas com os cabelos longos e dourados como uma juba e o rosto sangrando como um leão após aniquilar uma presa. Não era uma honra que o deixasse particularmente orgulhoso, principalmente agora que aspirava tão somente a ser um bom esposo e dedicar-se ao trabalho rural. Acostumara-se a uma vida tranquila e não tinha mais estômago para a luta. Baldwin lançou-lhe um olhar de soslaio. — Se eu não fosse macaco velho, me perguntaria se os Brodies não estariam de volta a seus hábitos de larápios. Novamente, Piers balançou a cabeça. — Meghan acabaria com eles. Eles podem não ter medo de uma represália da minha parte, mas não contrariariam a irmã por nenhuma mercadoria. Baldwin riu do comentário, reconhecendo que era verdadeiro. Até Piers se borrava de medo da ira da esposa, pois a língua de Meghan era mais afiada que uma faca e a cabeça duas vezes mais ágil. — E agora? —perguntou Baldwin. Piers emitiu um suspiro, fazendo-se a mesma pergunta. Na verdade, nunca tivera a intenção de trabalhar para um senhor de terras e estava aprendendo na prática como lidar com os


astutos escoceses. Passara realmente a admirá-los, porque lutavam com base em um estranho código de honra que o fascinava. Roubavam sua cabra, então você lhes roubava algumas ovelhas e assim por diante. Tudo era feito abertamente, como se passar a mão nos bens do vizinho fosse a coisa mais natural e honrosa a fazer. No entanto, aprendera a nunca acusar sem provas, pois defendiam os seus até o último suspiro. Mas os Brodie já o tinham como parte da família e não acreditava que voltassem a roubar, principalmente porque a mercadoria em questão destinava-se a beneficiar o irmão mais novo. Não, era outra coisa que estava acontecendo ali. Coçando a cabeça, Piers deixou o celeiro e caminhou até o clarão do sol, de onde avistou alguns homens a cavalo se aproximando ao longe. Apertou os olhos e divisou o estandarte, na cor dourada e com o leão real vermelho-sangue, rampante, ao centro. Era o rei David. Apesar da parca aceitação de que gozava naquelas redondezas, vinha cercado apenas de poucos homens. Baldwin voltou-se inquieto para Piers, pois, a despeito da amizade de Piers com David, ambos sabiam que a presença deste por ali era sinônimo de problemas. Juntos, aguardaram no campo aberto até que os cavalos desaceleraram à sua frente. Piers imediatamente percebeu os olhares tensos dos homens. — Vossa Alteza, o que o traz a estas partes novamente e em tão curto espaço de tempo? — perguntou. Nervoso como o dono, o cavalo de David se agitou e o rei desceu ansioso. Adiantou-se para beijar Piers rapidamente e postou-se a sua frente, mãos nos quadris. Os demais homens permaneeram montados, com os rostos azedos e suados.


— Trouxemos uma prisioneira do Mounth — disse sem preâmbulos. — Uma mulher. Piers franziu a testa, pois não havia nenhuma mulher entre eles. — Mas a perdemos — disse David irritado, evidentemente adivinhando os pensamentos de Piers. — A bruxa ardilosa conseguiu se desamarrar quando ninguém estava olhando e deu um cascudo em Dùghall, bem na testa. Acenou com a cabeça na direção de um dos homens que, retesado sobre a cela, trazia na fronte um calombo do tamanho de um testículo. — Deus do céu — disse Piers, mais como reação ao tamanho do galo. — Quem é ela? Teria de ser uma mulher bastante bruta para deixar uma marca daquelas. — É irmã de um líder rebelde do norte. Estava arranjado que ficaria sob a tutela da corte inglesa até ter idade suficiente para se casar. Infelizmente, escapou antes que pudéssemos chegar a Chreagach Mhor. Piers ficou genuinamente pasmo. — MacKinnon concordou com isso? O senhor MacKinnon que ele conhecia não estaria disposto a fazer parte de tal esquema, assim como não deixara o próprio filho ser um fantoche político. Na verdade, fizera das tripas coração para garantir o retorno do filho, inclusive roubando a filha do seu inimigo para negociar a troca. O fato de ter feito as pazes com David logo na sequência apenas atestava o temperamento de MacKinnon, e o fato de que, pura e simplesmente, se apaixonara profundamente por sua noiva inglesa. Mas o bom gênio de Iain MacKinnon ia só até


certo ponto, e Piers ficou chocado com o fato de David se arriscar novamente, sendo que, rei ou não, seu governo não era favorecido por aquelas bandas. Uma névoa cobriu o olhar de David. Eram amigos, mas não gostava que seus decretos fossem questionados. — Ainda não contamos a Iain quem ela é exatamente — confessou. E, percebendo que Piers questionaria o motivo de ele estar arriscando provocar a ira de Iain quando Piers era seu aliado mais forte naquelas partes, acrescentou: — A fortaleza de Chreagach Mhor era o único local confiável para prendermos a moça até que um acompanhante chegasse de Londres. Piers preferiu não cair na gargalhada. — Precisam de uma fortaleza para conter uma moça? Vislumbrando novamente a protuberância na testa de Dùghall, Piers chegou às próprias conclusões e sabiamente as manteve para si. As sobrancelhas de David se chocaram: — Suponho que não a tenha visto? Piers negou com a cabeça. — Nem um fio do seu cabelo. — Maldição! Bem, procuramos por toda parte. Embora eu não acredite que ela tenha se embrenhado para os lados de cá. Acho mais provável que tenha tentado voltar para casa. Claramente, como haviam chegado sozinhos, MacKinnon não se sentira obrigado a colaborar com a busca empreendida por David. Piers ponderou se deveria oferecer ajuda e sentiu-se na obrigação de oferecer ao soberano ao menos um local para ficar.


— Infelizmente, não podemos — recusou David. — Se a encontrarmos, precisaremos da carceragem de MacKinnon. Virou-se para acalmar o cavalo, acariciando sua cernelha. — Já estou me vendo com o braço doído de tanto puxar saco... tudo por causa dessa mocinha atrevida! Piers pensou nos irmãos de Meghan e em como haviam lutado, com qual desespero, para trazerem a irmã de volta para casa. Pensou na família da desaparecida. Apesar de a situação toda ter sido vantajosa para ele, não podia mais perdoar uma tática tão escabrosa quanto roubar uma jovem do seu clã, pois eram pessoas de carne e osso e não peças de um jogo de xadrez. — Manterei os olhos abertos — prometeu enquanto David remontava no cavalo, embora desejasse sinceramente não a ver. David acenou com a cabeça assim que se viu devidamente assentado e repetiu: — Mocinha atrevida! E então, com um sinal aos seus homens, partiram apressados, deixando Piers e Baldwin para trás a observá-los cavalgar para longe. — Odeio dizer isto — aventurou-se Baldwin, sabendo que podia conversar livremente com Piers —, mas talvez ele tenha dado um passo maior do que a perna quando assumiu o trono de Scotia. A paz entre os clãs não virá facilmente. Piers observou o amigo e soberano desaparecer no horizonte e suspirou pesadamente. — Não sei... — disse, dividido. — A terra que possuo costumava ser a área mais instável de todas e, no entanto, agora temos paz entre os habitantes mais ferozes. — Não precisava perdoar o fato para admiti-lo. — A estratégia dele é brilhante, na verdade. Se


conseguir casar todo mundo, nunca terá de levantar a espada para ninguém. — Fato — concordou Baldwin. — No entanto... — acrescentou Piers com seriedade — rezo para que ele saiba agir com cautela, já que esses homens não são do tipo com quem se queira brigar.

Cat. O nome fez erguerem-se as sobrancelhas de Gavin. Era apenas uma coincidência, raciocinou. Só porque ela aparecera do nada, exatamente como um felino gracioso, não queria dizer que fosse algum tipo de fada modificada a partir de um gato. E só porque erguera o teto da casa dele com mais rapidez do que qualquer homem, não queria dizer que realizara algum tipo de mágica (ou que tivesse ela própria amarrado os cipós, surgidos tão misteriosamente quanto a própria). Não era um ser sobrenatural. Gavin não acreditava em coisas do tipo. Estava achando difícil manter a própria fé, ultimamente. De qualquer forma, os seres da floresta não comiam tanto quanto ela (o suficiente para um homem com duas vezes seu tamanho). Bom, era o que achava, pelo menos. Dividiram o almoço, ele e Cat, sentados sobre o mesmo tronco. Quer dizer, ele deu algumas mordidelas no queijo enquanto ela devorou o resto. Gavin colocou à disposição toda a comida que trazia na saca para que ambos pudessem se alimentar. Mas, como


já tinha comido naquela manhã e ainda era o início da tarde, não estava com muita fome. Cat, por outro lado, parecia não comer havia dias. Sentada, engolia antes mesmo de conseguir puxar o próximo pedaço para fora da saca. Gavin não via uma corrida tão desesperada por cada farelo desde a infância, quando tinha dois irmãos e um pai famintos à mesa. — Se eu comesse tanto quanto você — disse-lhe Gavin — estaria do tamanho desta casa. Não que fosse uma reclamação. Gavin estava simplesmente chocado e, tendo morado a vida toda com dois irmãos e uma irmã muito faladeira, não estava acostumado a segurar a língua. Cat interrompeu o trajeto de mais um bolinho de aveia para fitá-lo com uma expressão levemente horrorizada, como se apenas naquele momento percebesse a velocidade com que dera cabo do almoço do rapaz. — Não pare — ele a tranquilizou. — Está faminta e de onde eu trouxe essa comida ainda tem muito mais. Só não consigo entender como se mantém tão miúda. Cat sorriu, mas não antes de empurrar mais um bolinho para dentro. Engoliu e em seguida disse: — Meu irmão diz que é porque tenho um encosto que come junto. — Um encosto que come junto? Ela se inclinou para sussurrar em seu ouvido, como se fosse um segredo. — Um dos seres da floresta — disse ela. — Eles comem sua comida, então você não se beneficia dela. Balançou a cabeça afirmativamente, olhou para os lados (onde não se via vivalma) e finalmente colocou um dedo na frente dos


lábios, pedindo silêncio. Gavin encarou-a, confuso. A situação toda estava ficando cada vez mais estranha. Ela não era um gato. Também não era uma fada. E definitivamente ele não estaria repartindo sua refeição com uma duende invisível, usurpadora de bolinhos de aveia! Não dava para acreditar. Por nada no mundo. — Está muito bom! — declarou Cat, arrancando mais um pedaço de queijo e abocanhando-o inteiro. Gavin não pôde evitar de rir. Nunca em sua vida vira uma mulher se alimentar com tamanha avidez. Apenas para garantir que ela pudesse comer o quanto quisesse, empurrou sua porção mais para perto do meio. Ela parou de mastigar, observando-o ajustar as iguarias sobre a saca. Virando-se para ele, lançou-lhe mais um sorriso radiante. Gavin sentiu um agito no estômago que lhe subiu até o peito. Diabos, se tivesse uma visão daquelas todos os dias, abriria mão de bom grado de todas as refeições. — Obrigada — disse ela suavemente. — De onde venho, quem não se vira, não come. — De onde venho também — confessou ele, contemplando-a com singeleza. — E de onde é que você vem mesmo? Desde que Gavin a vira pela primeira vez, a curiosidade era sua companheira constante. Cat ergueu os joelhos e abraçou-os com um braço enquanto falava, lembrando uma criança. — Cá e acolá — disse frivolamente, inclinando a cabeça para olhá-lo de viés. Estava escondendo algo.


Gavin podia sentir, e sabia que não tinha nada a ver com mágicas. — Pois bem, creio que já estive lá também — brincou, percebendo que ela não lhe diria a verdade de qualquer forma. Ela riu e seus dedinhos dos pés, as coisinhas mais delicadas, se curvaram agarrando a terra. Ali, mais perto da mata, a terra era mais fácil de arar. Mas Gavin não queria levar o jardim até lá para não perder a claridade do sol por inteiro. Também não queria ter de manejar o grande número de raízes de árvores. — E você? — perguntou ela. — Morou aqui a vida toda? — Quase — respondeu ele E contou-lhe sobre sua casa, sobre o casamento da irmã com um inglês e sobre a briga que havia desencadeado tudo. Quando Piers de Montgomerie reclamara para si o terreno de David da Scotia, nenhum dos clãs da região aceitara bem o fato. A verdade era que Gavin não fazia a menor ideia de quem roubara o primeiro cabrito, mas a guerra que tivera início naquele momento fora do naipe da disputa entre os MacKinnon e os MacLean. Por fim, Montgomerie sequestrara a irmã de Gavin e casara-se imediatamente com ela. E de alguma forma ganhara o amor de Meggie no processo, coisa nada fácil. Do ponto de vista de Gavin, era isso o que importava. Se a irmã estava feliz, ele também estava. Contou-lhe também sobre os irmãos e seus casamentos: sobre como a esposa de Leith primeiro se interessara por Colin e Seana por Broc, ao passo que Colin não queria saber de mulher nenhuma. No fim, Colin caíra de amores por Seana e Leith por Alison, enquanto Broc, que secretamente desejava a esposa do seu senhor de terras, casara-se com uma prima Sassenach de Piers de Montgomerie.


A forma como ela o olhava fez Gavin sentir-se subitamente desconfortável, como se ela pudesse adivinhar o motivo que o levara a se afastar de casa. Cat não disse uma palavra, mas sua expressão demonstrava compreensão e uma pitada de piedade que não era familiar a Gavin, exceto quando ele pensava em si mesmo. Gavin explicou-lhe sobre seu arranjo com Seana, para que ela entendesse melhor por que ele estava ali... longe da família. Não era simplesmente porque não aguentava ficar testemunhando o tempo todo algo que nunca teria. Estava feliz por seus irmãos e irmã, genuinamente. Mas já tinha quatro décadas e quatro anos de vida e nunca beijara uma mulher. Levara apenas uma para a cama, e se arrependera logo em seguida. Assim que Gavin se vira livre da fome do corpo, a moça fugira envergonhada. Gavin a deixara ir, sem saber exatamente o que fazer, já que não a amava. Era apenas um rapazote de cajado em riste, à época. E agora, cada vez que se viam (principalmente na presença do marido da moça), ela evitava cruzar olhares com ele. Desde então, Gavin vinha lutando com todas as forças para renegar aquela parte de si mesmo à qual seu irmão Colin e seu pai eram incapazes de resistir. Colin, embora tivesse bom coração, nunca percebia as lágrimas que deixava em seu rastro. Mas Gavin sim, e sua alma chorava junto com cada coração partido, porque se lembrava da terrível melancolia no olhar daquela jovem. Mais tarde, envolvera-se tão profundamente com os estudos e as escrituras que as mulheres, ao cruzarem o seu caminho, viravam na direção contrária. Até Meggie fazia cara feia diante da simples perspectiva de bater um papo com ele, apesar da iniciativa de erguer um pequeno templo para o irmão.


Gavin ficou em silêncio por tempo indeterminado, meditativo, até que Cat quebrou o silêncio. — Então Seana morava lá no meio sozinha? Gavin assentiu: — Com o pai dela... até se casar com meu irmão Colin. E, apontando na direção da floresta: — O alambique continua lá. Cat arrancou mais um naco de bolinho de aveia, balançando a cabeça em concordância. — Eu vi. O uisge beatha dela cheira a coisa fina — disse, usando a língua antiga para se referir à bebida. — Mas não a experimentei. Dá azar beber um whisky novo antes da libação e eu jamais amaldiçoaria a bebida de um homem... ou mulher — corrigiu, rindo. — Mas Seana parece ser generosa com suas oferendas. Gavin apertou os olhos lembrando-se de todos os gatos que circundavam o alambique. Não era possível que ela tivesse espiado Seana. Não. Seria ridículo pensar que ela fosse um daqueles gatos... sentada ali, espiando em meio às sombras da floresta. — E como é que sabe disso? — perguntou casualmente, atento aos olhos dela. Eram de um verde tão vivo que o remetiam a uma clareira fresca na mata. Mas não eram olhos felinos, de maneira alguma. Cat ergueu os olhos, curvando os dedos dos pés novamente. — A grama ao redor do alambique está completamente gasta! — Há! — concordou Gavin. Era verdade. Nada crescia em uma área de pelo menos um metro em torno. Gavin indagou-se por um instante sobre os efeitos do álcool à garganta humana, se era capaz de queimar a grama.


Mas não disse nada. — Uisge beatha pode curar, sabia? É um presente dos deuses, e apenas alguns poucos mortais receberam a responsabilidade de preservar as antigas receitas. Seana é uma mulher muito especial. Gavin nunca pensara no whisky de Seana daquela forma. — Um presente dos deuses... — repetiu, concordando com a cabeça baixa, apesar de ter lá suas dúvidas. — E o senhor pode se considerar muito sortudo se ela compartilha a receita com você — acrescentou Cat. — Deve confiar muito em você. — Eu não disse isso — Gavin a corrigiu. — Disse apenas que, pelo nosso acordo, eu forneceria a ela os grãos e ela teria parte nos lucros. Cat pareceu refletir por um momento e então concordou. — Faz sentido. Sobrava apenas um último bolinho de aveia, e Gavin apontou em sua direção, oferecendo-o a Cat. As sobrancelhas delicadas estremeceram. — Tem certeza? Não comeu muito — protestou ela. Gavin tranquilizou-a: — Comi bastante, e sua companhia é um pagamento mais do que justo. O rosto dela iluminou-se. Seus olhos verdes brilhavam com força e, em um impulso, Gavin estendeu a mão para limpar um traço de tinta azul que ainda permanecia em sua bochecha. Era apenas uma manchinha, nada que chamasse atenção, a não ser para alguém que estivesse inspecionando o lindo rosto minuciosamente, como fazia Gavin. Cada vez que ela virava de lado, ele se pegava examinando cada detalhe, da boca sedutora


que se curvava naturalmente para cima até o pequeno nariz de botão. Ela se retraiu a princípio, mas, entendendo o intuito de Gavin, conteve-se, deixando-o limpar seu rosto. — É um homem bom — disse ela de repente. — Se me permitir, gostaria de ajudá-lo a terminar a casa. Gavin respondeu com excessiva prontidão, abaixando as mãos subitamente: — Não preciso de ajuda — retrucou na defensiva, para logo em seguida se arrepender, vendo que os ombros de Cat caíram desanimados e o sorriso aos poucos se apagou. — Porém... bom... — concedeu rapidamente — se quiser, pode ajudar. Com o sorriso radiante de volta, ela pegou o último bolinho e o agitou na frente de Gavin, dando-lhe uma última chance de protestar. Como ele não se manifestou, ela o degustou lentamente, saboreando a deliciosa iguaria. Gavin sentiu-se feliz até o fundo da alma. De alguma forma a presença dela o confortava e, em toda honestidade, ele preferia sua companhia ao próprio labor da construção. O simples fato de conversar com ela lhe agradava mais do que qualquer outra coisa na vida. Mas não ousava explorar essa constatação em muitos detalhes. Passaram o restante do dia juntos, trabalhando na porta. Chegado o crepúsculo, assentava-se na entrada da residência uma porta robusta e bem-feita. — Onde aprendeu esse tipo de trabalho? — perguntou Gavin. Cat piscou: — Nasci sabendo. Gavin franziu o cenho.


Mesmo após terem passado quase o dia todo de prosa, ele ainda não sabia quase nada a respeito dela. — Escolheu um bom local — disse ela enquanto admiravam os resultados da labuta do dia. Aconchegada no seio da floresta, a pequena choupana não ficava nem escancarada ao ar livre, nem tão perto das árvores que uma fogueira perigasse se espalhar em seu entorno. Além disso, estando aos pés de Chreagach Mhor, escaparia aos piores ventos das Terras Altas. Logo acima, a fortaleza se erguia contra o céu da tarde, um soberano majestoso reinando sobre a paisagem. Cat examinou a casinha com os braços cruzados. — Cailleach Bheur sorri para você — arriscou. Cailleach Bheur era a mãe do inverno, de face azulada, que criava montanhas para proteger as criaturas dos ventos cruéis. Gavin mirou o forte acima, observando a silhueta da imensa da torre contra o sol poente, e estremeceu ao pensar na primeira esposa de MacKinnon. Após entregar ao marido o rebento recémnascido, ela se jogara da janela daquela torre. Sua morte fora como lenha na fogueira de uma guerra de trinta anos e forçara os clãs vizinhos a escolherem um lado. Não surpreendia que todos tivessem escolhido o lado dos MacKinnon — era uma ocasião bastante alegre para todos o nascimento de um bebê. À noite, a torre cinza com sua luz dourada na janela alta parecia uma vela no escuro, uma luz guia. — Acredita nos antigos deuses? — perguntou Gavin, tanto por curiosidade quanto para acalmar a mente, que andava vagando demais. Quando vira Cat pela primeira vez, ela estava coberta com a tinta dos povos pintados — algo que ninguém, nem mesmo seu


avô, testemunhara diretamente, porque aqueles povos e suas histórias haviam-se apagado da memória dos vivos havia muito tempo. Agora tudo indicava que não eram mais do que uma lenda, exceto pela estranha mulher ao seu lado. Colocando as mãos nos quadris, ela o examinou de través, estudando-o. E então deu de ombros. — Que importa no que a pessoa acredita, Gavin Mac Brodie... desde que acredite em alguma coisa? Gavin piscou diante da resposta, pasmo diante de sua simplicidade. — Com a fé não há dúvidas — disse ela — mas sem fé não há respostas. Em uma única tacada, ela matara tanto a curiosidade quanto a ambiguidade que reinavam em Gavin. Ele ficou ali parado a contemplá-la, admirando o rosto encantador, a beleza em nada diminuída pela sujeira sob as unhas ou as manchas de tinta nas bochechas. — Estava me perguntando sobre a pintura, só isso. Os olhos verdes reluziram, ardentes. — É costume do meu povo — afirmou, e sua expressão o proibiu de fazer mais perguntas. Gavin suspirou. Parecia que estava destinado a ficar no vácuo, porque, a não ser que a amarrasse e a torturasse, ela não parecia minimamente inclinada a lhe dar nenhuma explicação. Na hora de partir, Gavin sentiu uma decepção pungente que, no entanto, nada tinha a ver com o fato de ter de deixar o novo lar, agora quase pronto. Era Cat que ele não estava preparado para deixar ainda, embora soubesse que devia. A floresta lhe era familiar, mas não tanto a ponto de ele querer sair durante a noite,


tropeçando em meio à névoa rastejante. Como sabia instintivamente que ela não o acompanharia e desejava encontrar uma forma de mantê-la por perto, Gavin lhe ofereceu a casa como hospedagem. Não havia motivo para um teto tão bom ficar sem uso, pensou, principalmente quando fora ela quem o levantara. De todo modo, começava a suspeitar de que ela não tinha nenhum outro lugar para ir, porque não parecia estar com pressa de chegar em lugar algum. Desta vez deixou propositalmente com ela sua adaga para proteção, seu manto para aquecê-la e todas as provisões que ainda restavam na saca. Ainda assim, relutava em partir. Por um momento que lhe pareceu eterno, observando-a parada na porta da casa, enrolada em seu tartã, Gavin foi acometido de uma ânsia... de estender os braços... e tocá-la. Algo nos olhos dela o convidava... e no entanto... ele não confiava em si mesmo. Também não sabia o que ela esperava dele. Sabia apenas que seu corpo doía e que, se tivesse alguma chance, adoraria sentir o doce calor daquela flor aberta para recebê-lo. Engolindo em seco, partiu relutantemente e arrancou-se dali. De costas para Cat, ordenou às pernas que o levassem em direção à floresta. Virou-se para trás apenas uma vez... mas foi sua ruína, porque no crepúsculo, ela parecia um sonho... uma adorável quimera que poderia se esvair como um silencioso sussurro do vento. Ela acenou e ele então se foi de vez, rezando para ainda encontrá-la no mesmo local na manhã seguinte. Decidiu que, naquela noite, contaria aos irmãos sobre sua intenção de sair de casa. Sabe-se lá para onde iria Cat quando ele


se mudasse para a casa nova. Talvez, se ela concordasse, ele pudesse ajudá-la a encontrar abrigo entre seus familiares. Com esse pensamento em mente, dirigiu-se à casa da família, contemplando a floresta por um novo prisma. Com os vaga-lumes iluminando o caminho e os gatos piscando ao vê-lo passar, Gavin pensou sobre o fogo-fátuo. Talvez, apenas talvez, houvesse alguma mágica real naquele lugar. Se fosse o caso, Cat seria certamente uma fada, pois havia uma luz em seus olhos que ele nunca vira antes. Suspirou ao imaginarse diante daquelas charmosas joias verdes na manhã seguinte. Pela segunda vez em poucos dias, assoviou e cantou o caminho todo, até chegar em casa.


CAPÍTULO 5

A

penas uma faísca de luz da lua passava por entre a grossa neblina. A janela da torre permanecia aberta, mas as noites agora já eram mais frias e o ar perdia todo o calor após o crepúsculo. Glenna, a parteira, surgiu na porta do quarto com ar enfurecido, mas Iain MacKinnon tinha olhos apenas para sua esposa Page e filhinha. Sentado ao lado da cama de Page, o marido paparicava o bebê, sorrindo para a pequena e passando as juntas dos dedos reverentemente sobre suas pequeninas bochechas. — Ela tem o seu nariz, acho eu — disse Page, acenando com a mão para que Glenna entrasse no quarto. — Não diga! — retrucou Iain surpreso, cenho franzido. — Vejo apenas você nesta doce criança! Page não estava com a menor disposição de discutir, mas definitivamente via o nariz de Iain. E os olhos eram dele também, cor de âmbar na luz do sol. — Quando os pombinhos terminarem com esse nhenhenhém, preciso contar-lhes que tivemos uma visitinha de Bodachan Sabhaill — ralhou Glenna. Ao ver a esposa contorcer o rosto, Iain lhe explicou: — Uma assombração no celeiro. — Sumiu uma caixa cheia de velas novinhas! — disse Glenna. — Arre, diabos! Passamos o dia todo moldando os círios e os deixamos para endurecer, e agora eles se foram! Todos eles!


— Dê as velas que sobraram para os nossos convidados — disse Iain com simpatia. — Podemos usar resina aqui dentro, não se preocupe, Glenna. Glenna não arredava pé da porta por nada. — Não! Não com um bebê aqui! — decretou. — A fumaça vai pretejar os pulmõezinhos dela! Ambos Iain e Page voltaram-se para ela, sorrindo delicadamente diante do exagero. Certamente a criança seria protegida e mimada por cada membro do clã, disso não havia dúvida. Principalmente pelo irmão mais velho, que estava agora deitado, após ter passado literalmente o dia todo ao lado da bebezinha, protegendo-a, dissera, das multidões inglesas. Sem dúvida ele ainda se sentia um pouco inseguro após sua própria odisseia com David, mesmo tendo Iain assegurado que ninguém roubaria o bebê. O pobre irmão quase caíra no sono de pé, por isso Glenna o convencera a retirar-se para uma cama. Glenna rosnava baixo: — Por que gastar o melhor do nosso armazém naquele mandrião bajulador de Sassenachs? O mandrião em questão era ninguém menos do que o rei David da Scotia. Iain e Page compartilharam um olhar risonho. Aparentemente, o filho mais velho deles não era o único a ter pendências mal resolvidas com o rei. — Dê a David as velas que sobraram — ordenou Iain, para exasperação de Glenna. A luz do quarto pareceu diminuir diante da expressão de Glenna, como se sob seu comando. Entretanto, de fato, as velas remanescentes já estavam nos tocos, com os pavios se afogando na cera.


— Podemos nos virar com estas até terminarem de queimar e, no meio-tempo, você pode fazer mais — sugeriu Iain e piscou para Page, cheio de amor. Glenna suspirou. — E quando será isso, por obséquio? Aqueles desocupados já estão aqui há mais de uma semana e nenhum sinal da moça desaparecida. Quando irão embora? — Quando tiverem certeza de que ela fugiu da área — disse Iain. — Parece que David espera casá-la com um lorde inglês para agradar ao irmão da moça, apesar de a própria estar relutando. Page riu suavemente. — Que eufemismo! — Que absurdo! — censurou Glenna. — Como podem dar abrigo àquele homem detestável depois de ele ter feito a mesma coisa com vocês, ao sequestrar seu filho. Não estou nem aí se ele acha que é para o bem de todos. Quem lhe deu o maldito direito? — Ele é o herdeiro legal do trono — ponderou Iain. — Hunf! E o senhor também! — retrucou Glenna, batendo o pé. — E seu filho também, aliás! Aqui pra ele! — disse, erguendo a mão fechada em forma de soco para que Page e Iain pudessem ver. Page riu, embora soubesse que aquela discussão faria apenas exaltar os ânimos. Naquele momento, Iain estava arrebatado pelo bebê, mas Page sabia que Glenna não daria trégua até atiçar a ira do marido. — Não é a mesma coisa — disse Page. — Ah, não? — foi tudo o que Glenna disse em resposta, levando as mãos novamente aos quadris. — Não falemos do passado — interrompeu Iain, com um grande sorriso no rosto voltado para o bebê. — Não na presença de


tanta esperança — disse, fazendo cócegas no queixinho da filha com seus lábios. — Pois bem — recuou Glenna. — Mas nunca que vou achar isso certo! —declarou, e saiu como um furacão. Iain levantou-se da cadeira, sem olhar para a porta em momento algum. Devolveu a filha aos braços de Page com um sorriso caloroso e disse: — Amo você, querida esposa. E ela é totalmente a sua cara. Page apenas sorriu, pensando consigo mesma que o marido era teimoso e cego, mas apenas de amor por ela. E, pela primeira vez na vida, compreendeu o poder de tal devoção. Observou-o encaminhar-se até uma das velas que já chegavam ao fim, erguendo-a junto com o castiçal. Levou-a até a tocha de resina e retirou a vela do suporte para colocar a chama em contato com a resina. O fogo se inflamou de imediato, iluminando o quarto com um brilho alaranjado e preto. — Quando acha que ele vai partir? — arriscou Page, admirando os ombros largos do marido. Iain voltou-se para ela, pequenos pontos de luz refletindo-se em seus olhos profundos de âmbar. — Em breve, espero, antes que minha boa vontade chegue ao fim. Por Deus, como ele gera antipatia. Page ficou séria diante dessa observação e disse com sinceridade: — É porque ele parece não se preocupar minimamente com as pessoas, passando por cima delas em nome da paz. Balançou o bebê nos braços e sentiu um suave calafrio ao lembrar-se do que haviam feito com o filho de Iain. O pobre menino passara meses sem conseguir falar após terem-no tirado dos braços


do pai, mas ela não ousaria relembrar ao marido o ocorrido. Mesmo assim, teve de perguntar: — Tem certeza de que pode confiar nele desta vez? Iain apagou a vela e colocou-a de volta no suporte. Apoiou-a sobre a mesa e dirigiu-se até a janela para fechar a cortina antes de retornar à lateral da cama. Seu sorriso havia se apagado e, sob a diabólica luz, Page poderia até se esquecer de que aquele era seu doce companheiro. Com a luz alaranjada da tocha, seus olhos eram apenas sombras fitando a criança em seus braços. Não era preciso dizer uma palavra, pois ela sabia instintivamente no que ele estava pensando. — Confiança não tem nada a ver com isso — disse-lhe ele. — Rei ou não, se David me trair novamente, arranco seu coração. E sei que ele sabe disso. Porém, por garantia, você ficará aqui... segura neste nosso quarto... você, com o bebê, e meu filho ficarão de guarda o tempo todo. Como planejado, Gavin deu aos irmãos a notícia da sua partida iminente. Ninguém demonstrou a menor surpresa, ou pareceu desapontado. Claramente, o arranjo em vigor era incômodo para todos. Mesmo assim, fizeram questão de manifestar alguma contrariedade, assegurando a Gavin que aquela casa sempre seria seu lar, principalmente durante os longos invernos, quando os ventos gélidos penetravam cada fibra dos ossos do corpo. Gavin estava prestes a lhes contar sobre Cat também, mas, por alguma razão, guardou essa informação; talvez para que não lhes dar a impressão de que se livrariam dele tão facilmente. A presença


de Cat na casa era temporária de qualquer forma, e os invernos de fato se tornariam longos e frios. Quando isso acontecesse, ceratmente o haggis de Seana já estaria bem melhor e era reconfortante sentir que ele teria aonde ir. Como ainda não estava preparado para levar todos os seus pertences para a casinha, carregou alguns mantimentos de carreta. Ao chegar à casa, levou mais um susto. Deparou-se, passando pela porta, com uma pequena cova de pedras que Cat construíra no centro do vão principal. Olhou para cima e percebeu que havia uma pequena saída para a fumaça no teto. Era de tal destreza o trabalho que ele não o percebera anteriormente. Algumas velas apagadas, pela metade, se espalhavam pela sala, e a casa cheirava a cera de abelha. Tinha a aparência de um chalé aconchegante, mesmo estando ainda vazia e sem nenhum móvel. Assim que Gavin trouxesse a cama e fizesse alguns ajustes, ficaria quase tudo pronto. Gavin não perguntou a Cat de onde viera o material. Se havia alguma mágica em vigor ali, não era problema dele. — No inverno, pode colocar os gravetos contra as paredes — disse ela. —Vai ajudar a isolar a casa do frio. Observou que ela construíra uma espécie de esteio para segurar os gravetos contra as paredes. Era genial, é claro, ter uma parede dupla para isolamento térmico, mas Gavin não estava particularmente feliz em vê-la trabalhando como um burro de carga. Ao menos, imaginava que estivesse, pois tudo aquilo não apareceria num passe de mágica. Sem falar que ele nunca antes conhecera uma mulher que fizesse trabalho de homem melhor que um homem. Muito melhor


do que ele próprio. Coçou a cabeça: — Arre, moça... Não tenho como recompensá-la por tudo isto. Ela sorriu com benevolência. — Como disse tão bem no outro dia... o prazer de sua companhia é o suficiente, Gavin Mac Brodie. E ele o havia mesmo dito. E tal era o fato. Da parte dele, era simplesmente uma alegria ver que ela decidira ficar alguns dias. Quanto à questão de encontrar água, Cat desenvolveu uma varinha da sorte e com ela saiu a inspecionar a área, Gavin em seu rastro, perguntando-se como é que ela conseguiria achar água sem efetivamente cavar. Com efeito, vovó Fia mencionara a tal vara certa vez, mas Gavin nunca vira ninguém usar o apetrecho. No início da tarde, Cat encontrou um ponto e pediu a Gavin que confiasse nela. Foi o que ele fez. Deixando as dúvidas de lado, ele começou a cavar. Cavou o dia todo; e no próximo; e no próximo, sem deixar que Cat o ajudasse em nada naquela tarefa. Afinal, poxa vida, ele era um homem, e devia fazer o seu papel. Deixou-a assistindo (e comendo, já que ela parecia apreciar a atividade) até que o buraco estivesse fundo o suficiente para abrigar uma pessoa inteira. Durante o processo, Cat permaneceu sentada acima dele, pernas balançando por sobre a borda, tagarelando sem parar — uma conversa fácil, que, Gavin suspeitava, escondia mais do que revelava. Por outro lado, havia coisas que ela não se intimidava minimamente em contar para ele. Deus do céu, se ele fosse qualquer outro homem, teria erguido o braço em algum momento para deslizar o polegar por entre aquelas tenras carnes. Ou, ainda pior (maldita luxúria!), poderia enterrar o rosto entre


as coxas dela para beber do poço do seu corpo. A sede mais desesperada que sentia naquele momento pouco tinha a ver com a água que estava procurando. Mas Gavin continuava cavando com energia, sem dizer nada, tentando olhar além das deliciosas pernas que o tentavam, e dos cachos vermelho-escuros entre elas. Quanto mais cavava, mais maliciosa Cat se mostrava. Gavin começou a indagar se ela não seria o próprio demônio personificado a tentá-lo. Cat sabia muito bem o que estava fazendo. Não que tivesse se deitado com algum homem antes, mas seu povo não tinha pudores. Faziam amor onde queriam. E, naquele momento, embora isso confundisse bastante as coisas, ela queria Gavin Mac Brodie. Vê-lo na labuta com tanta vigorosidade, as costas nuas, fazia brotar um sorriso em seu rosto. Nunca vira um homem se dedicar ao trabalho com tanto afinco apenas para conter as garras do desejo (sabia muito bem o que passava pela sua mente). Reconhecia o brilho da luxúria em seus olhos verde-escuros e percebia as olhadelas tímidas que ele lançava na direção de suas pernas. Mas os vislumbres que ela lhe permitia também não eram nada acidentais. Sentira-se atraída por ele do momento em que o conhecera. Na verdade, não fosse esse detalhe, já teria partido há muito tempo, ainda mais agora que sabia que estava sendo procurada. Mas, por alguma razão, não conseguia partir. Convencera-se de que, se fugisse para o norte, certamente seu movimento seria previsto e seus algozes a alcançariam


rapidamente, já que estava a pé. E provavelmente aconteceria isso mesmo, por isso pretendia roubar um cavalo. Mas o fato puro e simples era que, nesse momento, não queria partir. O poço tornava-se cada vez mais fundo e logo Cat estaria fora do alcance dos braços de Gavin. Mas esperava desesperadamente que ele tentasse tocá-la. Arre, que ele não era em nada como os bobalhões cheios de dedos que conhecera antes dele. Era um home doce e gentil, com rosto de anjo e um corpo de tirar o fôlego. — Não precisa de um descanso, não? — sugeriu ela. — Não. Ele recusava-se a olhar para cima e Cat riu delicadamente. — Não estou cansado – insistiu ele. Cat deslizou pela borda do poço para que ele não tivesse como não vê-la e cruzou as pernas, sabendo perfeitamente bem que a visão dele, ali de baixo, seria bastante reveladora. — Não está com nenhuma fome? — perguntou ela, da forma mais sedutora que podia. Ele parou subitamente, apoiando-se na pá, e ergueu os olhos em sua direção, engolindo em seco ao contemplar a curva das suas nádegas... e outros segredos que lhe foram revelados. Lambeu os lábios e Cat sentiu um impulso de pular no poço e beijá-lo com fúria. Brevemente, não teria escolha a não ser partir e não queria fazer isso antes de agradecer a Gavin da forma pela qual mais ansiava. — Arre, moça — disse ele, encostando-se na parede mais distante do poço, como se tentasse afastar-se da tentação que ela representava. Cat suspirou. Sabia que ele tinha curiosidade sobre sua origem,


mas ainda não estava pronta para se abrir (talvez, em parte, porque poderia se sentir tentada a voltar pra casa), particularmente se ele descobrisse quem era seu irmão — Aidan, o último do sangue de Aed, neto de Donald MacAlpin, irmão de Kenneth e último dos Reis de Dal Riata. Após a morte de Aed, seu clã fugira para o Mounth e lá permanecia. Conviviam entre si a maior parte do tempo e não tinham pendor para a política, embora, por ser Aidan um herdeiro distante ao trono, David aparentemente o visse como uma ameaça. Parecia acreditar que, com Cat em seu poder, seu irmão Aidan nunca o desafiaria. Mas não conhecia seu irmão. Aidan não estava nem aí para Scotia, mas provocá-lo era como atiçar um dragão adormecido. Se Gavin soubesse da verdade, ele a entregaria para o lacaio inglês, ou será que a levaria para casa ele próprio? Cat preferiria morrer a tornar-se esposa de um Sassenach. Puxou o corpo para a frente o mais que pôde, olhando para baixo. — Bom trabalho — elogiou. Algumas pedras soltas caíram no poço com o atrito do seu traseiro, e subitamente ela teve uma ideia. — Mas não tem água nenhuma ainda — reclamou ele. Ela sorriu. — Ainda não.


CAPÍTULO 6

G

avin não conseguia mais enxergar acima da borda do poço, mas parecia-lhe que o nível do lago que se encontrava a certa distância estaria em um nível superior ao dele, fato que ele que apontou para Cat. — Não tem água nenhuma aqui — anunciou, pensando em como fora bobo de achar que encontraria uma fonte no primeiro local em que enfiasse a pá, mesmo tendo sido ela a responsável por fazê-lo acreditar naquilo. — Arre, homem de pouca fé — disse ela. Gavin ergueu uma sobrancelha ao ouvir a expressão familiar das escrituras. — Onde ouviu isso, moça? — Onde ouvi o que? Cat deslizou ainda mais até a borda, mobilizando uma cascata de terra poço adentro, caindo aos pés de Gavin. Ele franziu o cenho: — O que acabou de dizer. Ela ergueu uma sobrancelha. — Ouvi de mim mesma, bobo, porque acabei de dizer. Não me ouviu? E sorriu para ele, deixando claro que o sorriso maroto era inofensivo. — Deixa pra lá — Gavin queixou-se, desconcertado com o fato de que, pela segunda vez, ela fizera alusão à sua falta de fé.


Seria verdade? Teria ele se perdido no caminho? Mas como é que ela podia saber disso? Ela era pagã e pintava o corpo com corante de flores. Na verdade, havia a possibilidade, uma remota possibilidade, de que ela fosse de fato uma fada, duende, ou um daqueles espíritos irritantes. Exceto pelo fato de que ela não era em nada irritante. Era, na verdade, a pessoa mais agradável que já conhecera, principalmente em se tratando de alguém que parecia não ter lar, nem vestimentas, e que não comia havia tanto tempo que perdera qualquer senso de boas maneiras. Ainda não sabia nadica sobre ela e isso o deixava ainda mais mal-humorado a cada golpe da pá. Se ela partisse, como a encontraria? Não fazia ideia nem de onde vinha! Naqueles últimos dias, sentira-se mais vivo do que em qualquer outra época de sua vida e não queria que o sentimento chegasse ao fim. Era como estar embriagado do whisky de Seana, mas sem beber uma gota. Sentia-se apenas, de uma hora pra outra... Amor, Gavin Mac Brodie, ouviu Seana dizer novamente. Se o amor não for um tipo de magia, então não sei o que é. Gavin levantou o olhar para Cat, indagando-se... seria possível ser dominado pelo coração tão rapidamente, sem nem perceber? As pessoas não deveriam concordar em amar uma à outra? Pensou sobre a irmã, Meggie, e em como o Sassenach simplesmente a tomara para si. Sabia que Meggie poderia ter lutado contra ele. E, no entanto, lá estava ela... amando o Sassenach apesar de tudo.


E Colin? Certamente nunca procurara o amor. Mas o amor o encontrara, apesar disso. E quanto a Leith, aparentemente sempre amara Alison, embora tivesse mantido o fato em segredo. Confuso com tantos pensamentos, Gavin começou a cavar novamente, e Cat estendeu o pé, rindo e cutucando-o com os delicados dedinhos. Arre, que ele queria mordê-los; não com força, mas apenas o suficiente para mostrar a ela como era perigoso brincar com um homem adulto (principalmente um fraco como ele). E Gavin definitivamente era fraco; concentrar-se na pá era o máximo que conseguia fazer. — Vai cair daí — ele a alertou. — Eu, não! — garantiu ela, inclinando-se ainda mais perigosamente sobre a borda. De repente, com um grito curto, ela despencou poço adentro, chocando-se contra Gavin e atirando-o contra a parede. Ele ainda conseguiu afastar a pá para o lado para não machucá-la. Cat caiu sentada sobre seu estômago, e suas partes úmidas, lascivas, aqueceram sua pele. Gavin sentiu o coração na garganta. Ela o presenteou com uma gargalhada sonora e abraçou sua cintura com as pernas, fazendo-o engolir em seco convulsivamente. Os lábios bem desenhados se curvaram, travessos. — Você me salvou — declarou ela. Gavin assentiu fracamente com a cabeça; não conseguia. — Não tinha muito perigo — assegurou-lhe, engolindo novamente em seco. — Caiu de uns dois metros apenas. Gavin sentiu o coração acelerar ainda mais e o sangue ferver ao observar a reação que provocou nela.


Não conseguia permanecer inalterado, seu corpo estava vivo e tinha vontade própria. Percebeu que ela estava a par do que acontecia com ele quando seu sorriso curvou-se ainda mais, uma curva sensual e maliciosa. Engoliu em seco. — Arre, você tem pernas fortes — disse com fraqueza, um nó crescente na garganta. E não era só o nó da garganta que crescia. As mãos estavam suadas, a boca seca. Um choque de prazer percorreu seu corpo quando uma mão de Cat acariciou a pele do seu peito. Seu corpo enrijeceu-se completamente quando os dedos dela tocaram seus mamilos. — Arre, moça — protestou, mas o que quer que fosse dizer acabou por morrer ali mesmo. Ela se inclinou para tocá-lo com os lábios: um beijo quente, molhado, que o tirou do eixo. Fitou-o com um sorriso sugestivo, e o coração de Gavin disparou aloprado. — Não tem ideia do que está fazendo comigo — avisou. Ela fez que sim com a cabeça, olhos lascivos. — Sei, sim... — disse, apertando as pernas e pressionando suas carnes privadas contra a barriga dele. Gavin lutou contra outra onda de tontura. Todo o seu sangue jorrava em direção à cabeça (bem, não todo o sangue, graças a Deus!). As mãos dela desapareceram atrás de seu tronco, desatando o cinto que atava o manto de Gavin para então jogá-lo então para o lado. Gavin se viu completamente desprotegido ante seus olhos e


seu feitiço. Se ela estendesse a mão um pouco mais para trás, esbarraria em um poste rígido como o cabo da pá. Subitamente, um movimento do seu quadril fez com que a racha do seu traseiro resvalasse contra o pênis ereto. Ela então ergueu sua túnica verde (dele, na verdade) para aconchegar o calor daquele membro rígido em sua carne macia e quente. Gavin teve uma sensação febril. Sua pele ardia. Seu sangue fervia. Para unir seus corpos, bastava-lhe naquele exato instante erguê-la e empurrá-la um pouquinho para trás... só um pouquinho... e conseguiria fazê-la sentar-se delicadamente sobre seu membro. O poço era pequeno o suficiente para que ele pudesse empurrar um lado com as pernas e o outro com os ombros, deixando-a cavalgá-lo como bem entendesse. Gotas de suor cobriam sua testa. O coração pulsava nas orelhas e o sangue cantarolava em suas veias. Por um instante, simplesmente fitaram um ao outro. Cat segurou a respiração, reconhecendo o desejo nos olhos dele, atraída por ele, excitada por ele. Era exatamente o que queria, mas vê-lo diante de si agora a enfraquecia. Sentia o coração batendo furiosamente contra as costelas e tinha os lábios subitamente ressecados. Algo em Gavin Mac Brodie encantava seu coração, algo que jamais sentira com outro homem. Ele a olhava como se ela fosse perfeita. Gostava daquela sensação... gostava de tudo o que ele a fazia


sentir... cada arrepio na pele... cada formigamento na carne... cada palavra que saía de sua boca. E, naquele momento, queria apenas senti-lo bem dentro de si. Guardara-se por tanto tempo... para aquele exato momento. Cada beijo que deixara de dar, cada toque que evitara... fora porque buscava o sentimento incrível que agora a dominava. E pensar que o descobrira no lugar mais improvável: nos braços de um estranho escocês. Gavin abriu a boca; — para protestar, ela sabia, mas não queria ouvir. Ergueu um dedo contra os lábios dele. Engolindo de leve, Cat mordeu o lábio e moveu-se para trás, curvando-se para erguer o traseiro enquanto se inclinava para beijá-lo. Foi estranho de início, os lábios se tocando gentilmente ao mesmo tempo em que ela se ajeitava sobre a virilidade dele, encostando seus lábios íntimos contra a carne quente e ereta. Ela abriu a boca, ele enviou a língua para uma incursão tímida. Um choque de prazer percorreu o corpo de Gavin a partir daquela carícia íntima, um abraço mútuo dos lábios. Cat o aceitou, segurando uma respiração trêmula enquanto lambia sua língua e, sem pensar muito, sem permitir hesitação, permitiu que o peso de seu corpo a fizesse deslizar sobre seu pênis. Ele tremeu violentamente, gemendo com força, assim como ela. Seus corpos se fundiram. Gavin gemia do fundo da garganta, subjugado por um êxtase que jamais sentira em toda a sua vida, nem mesmo naquela primeira vez em que perdera a virgindade. Ela gemeu delicadamente. E, daquele ponto, não havia retorno.


A pá foi esquecida, o poço era como se não existisse. Sem se preocupar com o local onde estavam, os dois corpos se moviam em uníssono em um acorde voluptuoso. Ela se movia delicadamente, sem pressa, seu corpo enrijecendo-se sobre o membro dele, ordenhando-o com doçura. Suados e cobertos de terra, mas sem se importarem com isso, beijavam o corpo um do outro. Ele lambia os seios dela, sentindo o sal de sua pele, chupando seus mamilos e venerando seu corpo. Gavin buscava um apoio mais firme para os pés, que encontrou na lateral da parte de baixo da pá. Enquanto Cat dançava sobre seu corpo com selvagem abandono, seus pés empurravam a pá contra o solo. Arre, por Deus, ela era maravilhosa. Cada toque era pura magia. Ela só podia ser do além. Moveram-se juntos naquela dança ancestral, até que Gavin sentiu seu corpo convulsionar, enviando ondas e mais ondas e prazer incontrolável a percorrerem seu corpo. Gritou, despejando suas sementes no fundo do ventre de Cat. Apenas quando, molhados e extenuados, ambos finalmente pararam de se mover, e Cat se encontrava deitada inerte sobre o peito nu de Gavin, foi que ele percebeu os tornozelos afundados n'água. Piscou. — Por Deus! — exclamou, e não apenas por ter viajado até o paraíso e voltado à terra nos braços dela. Haviam encontrado água. O poço estava enchendo!


CAPÍTULO 7

A

o contrário daquela primeira vez tanto tempo antes, Gavin não sentia um pingo de arrependimento. Euforia era tudo o que sentia. Rindo, beijou Cat em cheio nos lábios, estremecendo novamente. Três palavras estranhas lutavam para emergir até sua boca, mas, assustado, ele se conteve. O sorriso de Cat era tão cheio de alegria que seus olhos emitiam faíscas. As faces estavam rosadas e adoráveis. — Eu lhe disse para ter fé, não disse? Gavin riu novamente, erguendo-a, com a água pelas canelas. — Maldição! Você é uma bruxa mesmo! — exclamou, mas com o sorriso mais largo que lhe era possível. Ela encontrara água. Mágica! Arre, que a moça era pura e simples magia. Porque, mais do que de alguma forma ter conseguido achar água e sem muito esforço, ela abrira outro tipo de poço, um poço que ele acreditava seco havia muito tempo. Fé, dissera ela. Arre, que ele teria de ter um pouquinho de fé, afinal ela lhe fora enviada justamente quando precisava. Fé de que ela era exatamente aquilo de que ele necessitava. Rindo juntos, ele a ajudou a sair do poço, dando um tapa em


seu traseiro redondo e firme assim que ela se firmou do lado de fora. E então ela o ajudou, sujo e enlameado que estava. Colin terminou de corrigir a sua parte da parede. Em seguida, ele e Leith firmariam o restante da estrutura. — Quando o canalha disse que estava indo embora, aparentemente queria dizer neste exato momento — reclamou Leith. Gavin não aparecia havia dois dias. Partira com uma das carretas e ainda não voltara. Nem para dormir, comer ou dizer “Vá para o inferno e leve sua maldita parede!”. Colin não tinha muito a dizer a respeito. Gavin era o único Brodie escravizado pelo dever e a consciência. Que tivesse se dado a rara chance de fazer o que bem entendesse era uma coisa, na opinião de Colin, e ele o aplaudia por isso (mesmo que sobrasse mais serviço para eles). De qualquer forma, se estava mesmo de mudança para a Terra de Ninguém, não o veriam mais todo dia. Era hora de aprenderem a se virar sem Gavin. Embora ele e Gavin raramente partilhassem confidências, Colin acreditava que sabia o que estava afligindo o irmão mais novo. Na pele dele, também não conseguiria ficar ali no meio de tanta beijação e paparicação, especialmente após passar a maior parte da vida sozinho. Não, Colin não se ressentia de Gavin. — Ele podia pelo menos devolver a carreta — queixou-se Leith. E ali permaneceu, coçando a cabeça. — Você viu a madeira para o telhado?


Colin balançou a cabeça. Levantou um braço para secar o suor da testa. — Não vejo essa madeira desde duas semanas atrás, quando a deixamos separada e fomos trabalhar nas paredes. Leith largou o martelo. — Malditos ladrões que estão circulando por aqui! E, lançando um olhar questionador para Colin: — Acha que Montgomerie poderia estar de volta aos seus antigos truques? Colin riu. — Não, Meggie acabaria com ele — garantiu. Mas ficou pensativo. Não era do feitio de Gavin tomar posse de qualquer coisa que não fosse designada especificamente para ele, mas será que poderia estar tão desesperado para se ver livre da família a ponto de pegar emprestada a madeira para terminar o telhado da sua nova habitação? Mas não... jamais faria isso. Gavin era o cara mais honesto que Colin já conhecera (apesar de ser seu irmão). Leith aparentemente pensava sobre a mesma possibilidade. — Os pinhões também sumiram — disse. — Talvez seja hora de fazermos uma visita ao novo lar do nosso irmãozinho? Embora Gavin tivesse passado a maior parte da vida celibatário, compensara cada momento perdido ao longo daqueles dois dias. Ele e Cat fizeram amor novamente, na campina, assim que saíram do poço. E depois no lago, após cruzarem o campo pela trilha. Aproveitaram a privacidade da casa, propiciando-se prazer um ao outro ao lado da lareira, até o amanhecer.


A bem da verdade, até chegar aos braços de Cat, Gavin nunca percebera o real significado de ter um lar: agora, não importava onde estivessem; se estivessem juntos, aquele era o lugar certo. O poço já estava cheio até a metade; mais algumas chuvas e encheria por inteiro. A casa estava pronta e Gavin agora cogitava trazer a cama da antiga casa ou fazer outra. Pensava que talvez fosse hora de ter tudo novo, e se perguntava sobre o tipo de cama que Cat gostaria de ter. Gavin partiu para o bosque levando consigo o machado e Cat permaneceu em casa, fazendo uma mistura de tintura para passar no corte que Gavin arranjara no pé empurrando-o contra a pá. Gavin enrubescia ao lembrar-se de que pressionara seu calcanhar com tanta força contra o metal que conseguira se cortar; e, pior, só percebera muito mais tarde. Apenas uma coisa o preocupava. Estava se acostumando a ter Cat por perto. E, naquele ponto, embora não acreditasse em qualquer tipo de mágica, começava a temer até a possibilidade de ela partir. E se ela não pretendesse ficar? E se ele não fosse o suficiente para mantê-la ali? E se ele acordasse um dia e ela tivesse partido? Era um homem de verdade, mas choraria como um menininho pelo resto de seus dias, se isso acontecesse.


CAPÍTULO 8

O sul não era sua direção preferida. Aidan cheirou o ar à sua volta. As florestas amplas ainda mantinham um verde vivo e as samambaias continuavam vistosas, com novos brotos florescendo. Os cardos e prímulas ainda floriam e o aroma de urze preenchia a atmosfera. Havia algum pântano próximo dali; seu nariz nunca mentia. Inspecionou os arredores, pensando consigo mesmo que Cailleach Bheur não era tão gentil com aquele povo, pois deixava-os vulneráveis às bofetadas dos ventos de inverno mesmo que, vivendo suficientemente ao norte, eles já convivessem com um frio constante. A mãe do inverno protegia seu próprio povo havia muito tempo, afagando-o como um bebê em seu seio caloroso e fazendo brotarem montanhas para desencorajar qualquer homem menos determinado a se aventurar até o berço. Embora seu povo não tivesse um rei, Aidan era quem chegava mais perto disso pelos parâmetros do norte. Guiava a população com o coração e a protegia com cada fibra de sua alma. Seu pai fizera o mesmo antes dele, e morrera pela espada de um desses escoceses baba-ovos dos Sassenachs, com um golpe no estômago. Sua mãe também morrera defendendo o lar, deixando-o sozinho para criar cinco irmãos, entre eles a preferida: sua irmã Cat. Aquele canalha que se achava o futuro rei da Scotia a roubara diretamente dos seus aposentos. Se a levassem suficientemente ao sul, nunca mais a


reencontraria. E se fosse para ela retornar com um Sassenach no ventre, era melhor que não retornasse jamais. Por dois séculos, seu povo se mantivera imperceptível e longe da política dos homens e, por mais que lhe fosse difícil, não permitiria um Sassenach em seu meio. Mesmo um que carregasse sangue do norte nas veias. Na realidade, Aidan partilhava do sangue de muitos, incluindo David da Scotia... mas isso não os tornava iguais. Cavalgando a favor do vento, trazia vinte guerreiros para procurar Catrìona e tinha esperança de encontrá-la antes que fosse tarde demais. A ideia de passar um inverno sem o sorriso agradável da irmã enchia seu peito de uma melancolia taciturna e amarga. Além disso, não lhe aprazia a ideia de perder um homem ou mulher que fosse, já que restavam apenas poucos remanescentes de seu clã. — O rei da Scotia está próximo — disse o olheiro, retornando da inspeção. — Estão varrendo estas terras em busca de Cat, mas parece que ela ainda não foi encontrada. Aidan sorriu suavemente. Catrìona saberia o que fazer. Era uma guerreira, antes de mais nada. Ele a treinara bem. Criara-a desde o primeiro sorriso — sorriso que ela sabia usar tão bem quanto uma espada. Todos em seu povo eram guerreiros, pois no Mounth era questão de vida ou morte. — Continue procurando nesta área — Aidan orientou seus homens. Trazia consigo os mais ferozes, todos dispostos a morrer por cada mulher e criança deixadsa sob seu cuidado. Dessa forma haviam sobrevivido ao longo dos tempos, nunca deixando nenhum


homem sozinho. Pintados com a tinta dos seus antepassados, uma lembrança de suas origens, cavalgavam cavalos brancos — cavalos fantasmas, treinados para pisar levemente e viajar não com pressa, mas com precisão. Disparar pelo Mounth afora era assinar a própria sentença de morte. Seguiam a mãe natureza, atentos aos segredos que ela sussurrava, e não perdiam nada: nem mesmo a passada branda de uma criança sobre uma pedra sólida, nem mesmo um único graveto quebrado. Eram os últimos remanescentes do povo pintado. Carregavam a pulsação dos antepassados no sangue e a música de seu povo no coração. — Vamos — ordenou. — Revirem cada pedra até a encontrarem! Por mais gélido o clima naquela altura dos morros, a urze floria em um violeta brilhante contra um carpete de verde reluzente. Gavin estava deitado de costas em meio aos botões de ouro e Cat ajoelhava-se aos seus pés com o pote de loção curadora nas mãos, aplicando a pasta azul na sola machucada. — Não consigo entender como sua tinta de guerra vai curar meu pé. De qualquer forma, não dói — garantiu ele. — Isto – disse ela, erguendo o pote — não é tinta de guerra — repreendeu-o. — E, embora seja azul, não é a mesma tinta com a qual me viu pintada. Entretanto — esclareceu — aquela também não é tinta de guerra. Gavin piscou para ela. — Seja lá o que for, gostaria de vê-la usando muitas vezes. Apenas a tinta. Ela riu suavemente.


— É um tributo aos meus ancestrais. Aos seus também, Gavin Mac Brodie, pois temos os mesmos antepassados. — Na verdade, nunca conheci um azul em toda a vida — jurou Gavin. — Até onde sei, ninguém do meu povo jamais se pintou. Infelizmente, não partilho do sangue dos elfos. — Elfos! — protestou ela, fazendo-se de ofendida. Pelo sorriso dele, sabia que estava brincando. — Arre, a julgar pela sua altura — disse ele. — Elfo ou fada, posso jurar que sua boceta é pura magia! Cat deu-lhe um tapa na perna, mas riu. — Fique quieto, Gavin, ou vou lhe jogar um feitiço! — ameaçou. — Já jogou! — disse ele, mergulhando o dedão no pote e espalhando a tintura, com o pé, pelo rosto dela. Pegou-a completamente de surpresa. De início, Gavin parecera tão rabugento, mas agora seu humor estava muito mais leve. Não ficava mais remoendo pensamentos, o que Cat atribuiu ao fato de ter finalmente esvaziado as bolas. Fazia sentido para ela. Um homem simplesmente não podia passar a vida inteira sem nada de amor; e esse era o caso dele. Ela sabia disso, porque o olhar de dor que vira nele era típico daqueles cujas bolas haviam-se petrificado pela falta de uso. Um sorriso largo se abriu em seu rosto. — Ah, danado! E, agarrando o pote, rastejou por entre os joelhos de Gavin para sentar sobre seu peito e esfregar a tinta em seu rosto. — Arre, menina ardilosa — xingou ele, erguendo-se de um pulo para tomar dela a tinta. — Não! — gritou ela, e começaram a lutar pelo pote, afundando os dedos na tinta e lambuzando um ao outro onde quer


que conseguissem alcançar. Cat ria sem parar. Rolando juntos pelo pântano, deixavam marcas azuis nos botões de ouro ao passarem por eles. Logo teriam de ter uma longa conversa, e ela teria de lhe contar tudo. Mas não agora, que ela estava saboreando o momento, desejando que nunca acabasse. E, sentindo-se particularmente perversa, arrancou a túnica e começou a pintar os seios com a tintura, fazendo os desenhos característicos do seu povo. Seu olhar então ficou sério. As sobrancelhas claras se curvaram e os olhos verdes reluziram. Gavin a segurou sobre a grama e, deitando-se sobre seu corpo, amou-a ainda mais uma vez. Seana percebeu que o marido estava ficando inquieto, por isso inventou uma desculpa relacionada ao alambique e saiu para verificar o que se passava com Gavin. Encontrou a bebida quase no ponto e sorriu, dando tapinhas na barriga do alambique de cobre. Seu pai ficaria satisfeito com aquela leva. Um gato preto correu em sua direção para passar o rabo em seus tornozelos. Ela sorriu para a criatura e se curvou para pegá-la no colo. — Meu Amor — disse-lhe suavemente. — Onde está o papai hoje? O gato lhe deu um miadinho sofrido que a fez sorrir; por que, não fazia ideia. Era apenas um grunhido felino bobo, mas gostava de imaginar que compreendia exatamente o que o animal queria dizer. Gostava da companhia do pequeno felino e, olhando em volta, varreu com os olhos todos os amigos peludos que o pequeno


trouxera consigo para aquela área. Próximo a um arbusto particularmente farto, outro gato negro esfregava as costas na terra. Seana colocou Meu Amor no chão e alcançou o gato negro para coçar sua barriga, como ele gostava. Em seguida, relutantemente, deixou os gatos para trás e começou a andar em direção ao novo lar de Gavin, na beira da mata. Mal podia esperar para ver o progresso da obra. Parte dela estava contente porque Gavin poderia cuidar do alambique dali pra frente. Além disso, entendia perfeitamente por que Gavin precisava estabelecer-se como mestre de seu novo lar. Esperava apenas que... Seana congelou ao cruzar a linha das árvores. Em um campo de botões de ouro ao lado da nova casa de Gavin, dois amantes rolavam. Seana piscou várias vezes, incrédula. E então, com as bochechas queimando, subitamente virou-se e fugiu correndo, antes que alguém a visse espiando por entre as sombras das árvores.


CAPÍTULO 9 Juro que é verdade! — afirmou Seana a Meghan. Viera direto para o clarão dos Montgomerie e agora conversava com a irmã de Gavin no pátio. Meghan ergueu as sobrancelhas. — Gavin? — perguntou, embasbacada. E, apontando para o próprio peito: — Meu irmão Gavin? — Arre! — exclamou Seana. — Não conheço outro Gavin! Sim, eu o vi, juro pelo uisge beatha de meu pai! A expressão de Meghan de repente tomou um ar de medo. — Ah, não! — disse. — Ouvi meu marido dizer que o rei David está à procura de uma prisioneira fugitiva. Será que pode ser ela? Seana ergueu os ombros. — Tudo o que sei é que seu irmão arranjou uma amante. — E tem absoluta certeza de que são amantes? — Ô, se tenho! — disse Seana, as faces enrubescendo de uma vez. — Mais certeza impossível! — Mas quem diria... — disse Meghan, começando a rir nervosamente. — Achei que este dia nunca chegaria. — Que dia? — inquiriu o marido, aproximando-se por detrás de Meghan e abraçando-a pela cintura para dar-lhe um beijinho no rosto. Meghan voltou-se para ele com uma expressão sofrida. Claramente não queria mentir para o marido, mas também não queria trair o irmão. —


Se de fato se tratasse da mulher foragida, o que isso significaria para Gavin? Mas não podia mentir para o marido. Contou-lhe tudo o que Seana acabara de revelar. E Seana corroborou os fatos. Piers adotou uma expressão que traía nitidamente seus pensamentos. Lá vinha mais um imbróglio do qual ele teria de salvá-los e, infelizmente, só havia uma forma de fazer isso; teria de encontrar a moça antes de qualquer outra pessoa. Iain não estava nem um pouco contente de deixar a esposa e o bebê recém-nascido para sair em busca de uma jovem desconhecida, apenas para colaborar com os jogos políticos de David. Ainda estava fresco em sua memória o que se passara com o próprio filho e, embora David garantisse não ter feito parte do esquema, o fato era que fora ele quem cruzara a fronteira com o menino sem avisar Iain, e a lembrança pesava em seu estômago como uma pedra. Cheirava a mentira. Ainda assim, David apoiou Iain quando este desafiou as exigências do pai de Page para devolver a filha. Ainda bem, porque Iain não abandonaria o amor da sua vida nem que o mundo acabasse. Cavalgando ao lado do rei da Scotia ao final da tarde, tinha o coração apenas parcialmente focado na busca. Por esse motivo, não viu quando um dos homens de David avistou o casal rolando no pântano onde Gavin Mac Brodie dizia estar construindo seu novo lar. Mas, tendo-os visto, um frio lhe cruzou a espinha, pois sabia


instintivamente que o fato seria o estopim de uma nova disputa. Não estavam tão distantes das mais recentes hostilidades para que um único incidente não pudesse colocar os clãs um contra o outro novamente. — Por Deus — disse, seguindo David e os demais pelo caminho pedregulhento costa abaixo. Na bifurcação antes da entrada da mata, depararam-se com Leith e Colin Mac Brodie, que despontavam vindos da mata. Os três se olharam curiosos, até que, sem aviso, Piers de Montgomerie e seus homens apareceram na estrada estreita, vindos da direção do clarão dos Montgomerie. — Graças a Deus! — declarou David, atiçando o cavalo para levá-lo até Piers, evidentemente satisfeito por encontrá-lo entre seus novos aliados. — O que está acontecendo aqui? — perguntou Leith. Broc esporeou o cavalo. — Estamos à procura de uma fugitiva — explicou a Leith e Colin, olhando-os com seriedade. — É uma rebelde — disse David, retornando com Piers atrás. — Uma traidora da coroa em potencial! O cavalo de Iain pinoteou ansioso, sentindo sua tensão. — E que coroa é essa? — indagou taciturno. Embora não tivesse intenção alguma em relação à coroa, o fato de David se referir a ela bem na sua frente era uma grosseria, no mínimo. Na opinião da maioria dos habitantes das Terras Altas, Iain tinha mais direito ao trono do que David, já que este passara a vida toda mamando nas tetas de uma criada Sassenach. Passsara a juventude como guarda da côrte inglesa e trouxera para o norte as sementes da traição inglesa.


— A coroa da Scotia por direito — respondeu David com arrogância. — A única coroa — acrescentou. Iain segurou as rédeas com força, um músculo repuxando-se no queixo. Mas não disse nada, pois sabia que, se abrisse a boca, seria o suficiente para que o mar das lealdades escocesas se dividisse ao meio. Para sorte de David, Iain não tinha interesse na política ou no massacre de compatriotas. — De qualquer forma, rastreamos a moça até aquela cabana abaixo da costa — explicou David a Piers e aos irmãos Brodie. — Não temos inimizade com ninguém, exceto pelo homem que a acoberta neste momento. Leith adotou uma expressão ameaçadora. — Se está falando daquela cabana lá embaixo, é do meu irmão Gavin. E Gavin não tem mulher alguma — garantiu a David. — Não? — retrucou David em tom agressivo. — Nós os vimos juntos — interveio Broc solenemente. — Acabaram de entrar. Por um instante, os líderes dos três clãs presentes — Leith, Piers e MacKinnon — trocaram olhares. David guiou o cavalo para posicionar-se de frente para Piers, enviando uma mensagem taciturna. Se fossem lutar ali, naquele momento, David tinha cinco homens à disposição. Piers tinha quatro. Iain tinha apenas Broc. Leith e Colin estavam sozinhos. Nove contra quatro... a não ser que Piers abandonasse seu senhor. Iain permanecia alerta a cada pequeno movimento, interpretando a linguagem corporal de cada um e pronto a desembainhar a espada. — Pois bem — intercedeu Colin, fitando David diretamente. —


Vamos descer para falar com Gavin, mas, se o machucarem, eu os matarei com minhas próprias mãos. Não me importa que haja um rei entre vocês. — Diabhul! — xingou Catrìona. Espiando por entre as cortinas, avistou os cavaleiros agrupados no ponto onde terminava a estrada da fazenda mais próxima, na junção entre a floresta e o urzal. — Que foi? — perguntou Gavin. Cat mordeu os dedos, enfiando os caninos nas cutículas, subitamente tomada de medo. Haviam-na descoberto. O que fazer, o que fazer? — Cat? — Gavin estava aquecendo água em uma pequena chaleira sobre o fogo para um banho de esponja, já que estavam ambos cobertos da cabeça aos pés com a tintura medicinal que ela preparara para o machucado do pé dele. Deixando a chaleira de lado, Gavin dirigiu-se até a janela e parou ao lado de Cat. Era chegada a hora de contar-lhe a verdade, percebeu ela. Agora ela teria de confiar que ele faria a coisa certa. Poderia ele entregá-la para o rei David? Ou lutaria por ela? Este último pensamento a fez retorcer-se por dentro, pois, por mais que lhe enojasse a ideia de passar o resto dos seus dias como esposa de um Sassenach gordo, também não queria que Gavin morresse na tentativa de defendê-la. Tinha medo de amá-lo. Arre, mas o amava. Amava-o com tanta certeza quanto o fato de que respirava. Gavin olhou pela janela.


— Parecem meus irmãos — disse, bastante curioso — e o marido da minha irmã. Lançou a Cat um olhar confuso e esta foi imediatamente buscar a túnica que ganhara dele de presente, antes que a vissem nua novamente. Gavin também buscou seu manto e vestiu-o, afivelando o cinto com mais rapidez do que qualquer homem jamais afivelara um cinto em toda a História da humanidade. Puxou Cat pela mão e já ia levando-a porta afora, mas ela o segurou. Balançou a cabeça amedrontada, recusando-se a sair. Gavin franziu o cenho, confuso, mas a soltou. — O que significa tudo isto? — gritou Gavin, saindo porta afora. Os homens a cavalo pareciam estar no meio de uma discussão acalorada. Leith e Colin foram os primeiros a separar-se do grupo e aproximar-se. — Está escondendo uma fugitiva aí dentro? — perguntou Leith, sem preâmbulos. Gavin contorceu o rosto. — Fugitiva? — Balançou a cabeça, sem entender. — Tem uma moça aqui dentro, sim, mas não é nenhuma fugitiva... é... Atrapalhou-se ao tentar uma explicação, não sabendo direito o que ela era dele e desejando chamá-la de sua esposa. Porém ela não era sua esposa, e os irmãos sabiam disso melhor do que ninguém. — Ela é... — Já lhe digo o que ela é! É minha prisioneira! — vociferou David. Avançou alguns passos com o cavalo, a mão sobre o cabo da espada. Seus homens o acompanharam, prontos a protegê-lo.


Certamente uma luta estava se armando. Gavin observou que Montgomerie e seus homens mantiveramse à distância, assistindo ao desenrolar da cena com expressão inalterada. Agora, pensou Gavin, é a hora da verdade. Montgomerie desafiaria seu senhor em prol daqueles que carregavam seu sangue? A quem seria ele realmente leal? À irmã e aos parentes? Ou àquele rei marionete, bajulador de Sassenachs? Iain MacKinnon também moveu-se alguns passos à frente, sem pressa e com total controle sobre sua montaria. — Ela deveria tornar-se tutelada da corte inglesa — explicou ele suave, porém não timidamente. Sua voz grave impunha respeito e, ao invés de se sobreporem a ela, todas as outras vozes se aquietaram para ouvi-lo. — Não tem conhecimento deste fato? — perguntou a Gavin. Gavin fez que não com a cabeça. — Não, mas a mulher ali dentro está sob minha proteção — respondeu ao senhor MacKinnon. — Não os deixarei levá-la sem luta. MacKinnon fitou-o, curioso: — Então abdicou de sua fé, pregador? Gavin negou mais uma vez: — Ao contrário — argumentou. — Acabei de encontrá-la, mas não foi nem aqui nem lá. Aquela mulher lá dentro é minha noiva! — Noiva! — gritaram Leith e Colin ao mesmo tempo. — Noiva? — repetiu Broc, engasgando-se com a palavra. Os olhos de Montgomerie se arregalaram incrédulos. — Macados me mordam! — exclamou, esporeando a montaria para andar em torno do grupo e examinando a cabana no percurso,


especialmente o teto. — Diabos, é um teto robusto! — acrescentou casualmente, elogiando Gavin da forma mais estranha. Gavin assentiu, sem saber direito o que dizer, já que não tinha nada a ver com a construção do maldito telhado. Mas também não queria admitir que Cat era a responsável. — Obrigado — disse após algum tempo, olhando para trás em direção à porta para ver se Cat estaria espiando por alguma fresta, olhos verdes cheios de temor. De qualquer forma, decidiu que era uma coisa estranha de se dizer, dado nível de tensão que se aglutinava no ar. Como se apenas naquele momento tivesse percebido, Leith lhe perguntou: — Gavin... por que diabos está todo sujo de azul? — Porque sua noiva é uma selvagem maldita! — respondeu David azedo, e suas palavras provocaram a ira de Gavin. Gavin ia atirar-se em sua direção, mas Montgomerie conseguiu interceder por pouco, colocando o cavalo entre os dois. — Chega desta conversinha! — declarou David, impaciente, e então gritou em direção à cabana. — Mostre-se, mocinha! Gavin retrocedeu instintivamente em direção à porta, pronto para lutar pela mulher que amava. Catrìona sabia que não poderia se esconder para sempre. Era chegado o momento de revelar-se. Espiou os homens que acompanhavam o rei David, aqueles mesmos que a haviam desnudado e amarrado, e soube que atacariam Gavin se tivessem a chance. Não podia permitir que ele sofresse por causa dela. Arre, ele a chamara de “noiva”.


Queria sorrir, mas a garganta secou. Desejava com toda a sua alma que fosse verdade. Um pouco receosa, passou pela porta e correu em direção a Gavin, agarrando-se às suas costas. Ele se posicionou de modo a escondê-la da visão dos homens, mas ainda lhe era possível enxergar por baixo de suas axilas. Vários deles, todos desconhecidos para ela, simplesmente se olharam entre si, curiosos. Um por um, compartilharam uma mensagem silenciosa que Cat entendia instintivamente pela linguagem corporal. Seus gestos silenciosos deixavam entrever uma lealdade ancestral. — É verdade? — um dos homens perguntou. — Você a ama, irmão? Gavin endireitou as costas, o braço estendido para trás para segurá-la. — Sim — disse sem hesitação. O homem que fez a pergunta trocou algumas palavras com um outro, que por sinal parecia-se muito com Gavin — loiro e de ombros largos, porém com olhos azuis. O mais velho chamara Gavin de irmão. Catrìona engoliu em seco, sabendo que aqueles instantes definiriam seu destino. Outro homem, o que fizera o comentário sobre o telhado, fitou Cat diretamente: — Você o ama? — pressionou-a. Catrìona assentiu nervosamente com a cabeça. As pernas tremiam. Nunca estivera circundada por tantos estranhos, mas não envergonharia seu irmão e seu povo acovardando-se diante deles. Endireitou os ombros e, percebendo que Gavin não vira seu gesto,


respondeu em alto e bom tom para que todos ouvissem: — Sim, este homem é o dono do meu coração! O rei David ainda não se pronunciara. Nem uma palavra desde que ela pisara do lado de fora. Todos juntos, os homens se moveram na direção contrária a David. Cavalos a circundaram, impedindo uma possível fuga. Cat conseguia apenas ouvir vozes sem dono. A mais grave de todas, a do homem que chamara Gavin de pregador, agora inquiria de David: — Esta é a moça que procura, David? Não teria se enganado? — sugeriu, em um tom de voz que insinuava uma ameaça. — Depois de passar tanto tempo na côrte inglesa, talvez nós selvagens tenhamos todos a mesma cara? David não respondeu. E então Catrìona ouviu uma voz que parou seu coração. Com vinte cavaleiros atrás de si, sete deles arqueiros, Aidan irrompeu a cavalo, juntando-se ao grupo. Estivera assistindo a cena até que Catrìona aparecera na porta da choupana. Nunca confundiria a juba brilhante da irmã. Seus cabelos brilhavam como cobre à luz do sol, mesmo estando ela escondida atrás de tantos cavalos. — Catrìona! — gritou novamente. Viu-a erguer-se na ponta dos pés, tentando enxergar por sobre a barreira que se formara entre ela e os homens de David. Estava claro que David estava em desvantagem, por isso ordenou aos seus arqueiros que baixassem os arcos. O cavalo de David pinoteava nervoso, mas Aidan lançou-lhe apenas um olhar superficial, reconhecendo em outro homem aquele


com quem devia falar. Não tinha uma imagem preconcebida do senhor MacKinnon, mas sabia reconhecer um verdadeiro líder quando se deparava com um. — Iain MacKinnon — gritou —, descendente dos filhos de MacAlpin, busco apenas uma palavra com o senhor! O cavalo de MacKinnon virou-se na direção de Aidan e David recuou, seu rosto enchendo-se de manchas. Apesar do contingente de soldados sobre mulas, não disse nada. Aidan soube instintivamente que estava certo em suas pressuposições. — Sou Aidan — revelou, direcionando o olhar para Iain — o último remanescente do sangue de Aed, neto de David MacAlpin, irmão de Kenneth e o último dos reis de Dal Riata. MacKinnon esporeou a montaria e avançou, seu cavalo preto confiante como o mestre. — Não tenho questões a resolver com o senhor — Aidan se apressou em dizer. — Mas a mulher que mantém cativa é minha irmã. Se devolvê-la agora, partiremos pacificamente para o Mounth. O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Ambos os homens examinavam um ao outro. Passados alguns instantes, MacKinnon olhou para trás. — É verdade? — perguntou para todos. Catrìona deu um passo à frente, desvencilhando-se da barreira de cavalos enfileirados que a protegiam. — Sim — afirmou a MacKinnon. — Este homem é, de fato, meu irmão. — Como pode estar tão longe de casa? — perguntou-lhe MacKinnon. Cat voltou-se para o rei David, que agora parecia relutante em falar. Mediu as palavras com sabedoria, sentindo que estava


cercada de tamanho orgulho masculino que não sairia ilesa se dissesse algo errado. Ergueu a cabeça e mentiu descaradamente. — Saí para uma caminhada — respondeu e olhou para o irmão. Ergueu um ombro, numa espécie de dar de ombros caolho. Aidan ergueu uma única sobrancelha negra. Tinha a pele mais escura que a de Cat e um cabelo que descia pelas costas, negro como o pecado. Estava pintado ousadamente, vestido para a guerra, e tinha olhos negros astutos. Sabia que a irmã estava tentando evitar um derramamento de sangue e por isso, gentilmente, permitiu. MacKinnon voltou-se para o rei David. — Que diz, David? Ainda não pronunciou uma palavra... Esta é a mulher que procura? David fitou-a novamente, piscando ao constatar sua derrota. Cat arriscou uma espiadela na direção do homem de nome Dùghall, aquele que golpeara na testa para escapar. Ele a encarava com rudeza, mas não disse nada e, inclusive, evitou o olhar de MacKinnon. David demorou a responder. Guiando o cavalo um pouco mais adiante, examinou-a de cima abaixo — um artifício, porque fora ele quem ordenara aos homens que a despissem na tentativa de deixála menos inclinada a fugir. E, naquele dia, aproveitara para inspecionar cada centímetro do seu corpo, embora, verdade seja dita, tenha proibido seus homens de abusarem dela. O cavalo se agitava impacientemente enquanto ele fingia analisá-la. Ao mesmo tempo, os demais homens formavam uma fila ainda mais coesa atrás do senhor MacKinnon, em um movimento que David não falhou em perceber.


Estava claro para Cat, naquele momento, de que lado estava cada um. Os homens de David foram deixados totalmente à parte do restante, meia dúzia de gatos pingados com ar de que fariam pipi nas calças se a palavra errada fosse proferida. O silêncio que se seguiu era impenetrável. Finalmente, o rei da Scotia falou. — Não — disse por fim. — Não conheço esta mulher. Não é ela que procuramos. Cat exalou aliviada. Houve ainda mais um momento de silêncio, ao fim do qual MacKinnon disse em voz moderada, mas permeada de sarcasmo: — Está certo disso? — Sim —assegurou-lhe David de uma vez por todas, com mais firmeza desta vez. —Não é ela que procuramos. Venham! — ordenou aos seus homens, que partiram juntos. Os MacKinnon, os Brodies e os Montgomerie, juntamente com todos os seus homens, permaneceram. Uma vez certificados de que David não retornaria, Aidan adiantou-se em seu cavalo branco e comentou: — Da próxima vez que sair para caminhar, querida Cat, lembreme de lhe emprestar uma coleira — disse, irônico. — Agora vamos para casa. Cat sentiu o coração a ponto de quebrar. Balançou a cabeça, recusando-se a se mexer. Gavin estava de saco cheio. Avançou por entre seus irmãos e os homens de MacKinnon até chegar à frente do grupo. — Não! — gritou. — Não podem levá-la!


Caminhou então até o homem que se dizia irmão de Cat, mas que falava em colocá-la numa coleira. Parou, desafiador, tão irritado que não percebeu o fato de seu manto ter-se desamarrado. — Se eu não ouvir dos lábios dela que ela deseja partir, terá de me cortar ao meio para levá-la — declarou. Para total surpresa de Gavin, o homem começou a rir. Seus ombros enormes chacoalhavam. Todos os demais se juntaram a ele. Gavin olhou para Cat, que também estava sorrindo. Com uma mão sobre a boca e as sobrancelhas retesadas, ela fez um gesto que lhe pedia para olhar para baixo. Quando Gavin obedeceu, percebeu que seu membro (ainda pintado de azul) estava em posição de sentido, escapando por debaixo das dobras do manto. Não se sentia minimamente excitado, mas, dado seu estado de irascibilidade, aparementemente seu amiguinho também decidira mostrar a que veio. — É uma bela espada — arriscou Colin, limpando a garganta e olhando de lado. MacKinnon não conteve a risada, nem Piers. — Maldição! — assinalou Leith. — Ainda bem que nenhuma das nossas esposas viu essa monstruosidade antes de ver os nossos! Gavin apertou as sobrancelhas, não achando nada engraçado. Também não estava com vergonha ou amuado, mas mesmo assim cobriu as partes baixas com o manto. Voltou-se para Cat, importando-se apenas com o que ela teria a dizer naquele momento. Seus irmãos podiam se danar. — Quero ouvir dos seus lábios. Cat... — continuou. — Se me disser que precisa ir, não ficarei no seu caminho. Mas espero que decida ficar... comigo...


Cat voltou-se para o irmão com os olhos marejados. Após um instante interminável, Aidan consentiu. Ela se voltu para Gavin e assentiu com a cabeça também, irradiando amor através dos olhos. Gavin sentiu o coração prestes a explodir. Arre, de fato, se o amor não era um tipo de magia, sabe-se lá o que era. Mas a Cat dele era de carne e osso, e isso o agradava mais do que podia expressar em palavras. Caiu de joelhos e estendeu-lhe a mão: — Seja minha noiva de verdade — rogou, e ela veio sem hesitar para acochegar a cabeça dele em seu peito. — Parece que precisaremos de mais uma celebração — declarou MacKinnon, novamente bem-humorado. — Isso mesmo, e já sei onde achar o whisky — brincou Colin com um sorriso largo e uma piscadela. Com um gesto, indicou a Aidan e seus homens que descessem dos cavalos, convidando-os a segui-lo pelo bosque. Piers e seus homens também os acompanharam, mas não antes de Piers se aproximar e dar um tapinha nas costas de Gavin, cumprimentandoo mais uma vez pelo telhado fino e firme. Nem Gavin nem Cat ouviram uma palavra sequer do que lhes foi dito. Gavin beijou-a furiosamente, sussurrando promessas obscenas em seu ouvido, contando-lhe tudo o que pretendia fazer assim que estivessem sozinhos novamente. E percebeu, de repente, que fora a fé que o fizera sair da casa da família e que o trouxera até ali. Podia não saber exatamente o que procurava quando saíra porta afora, mas alguém lá fora parecia saber...


No limiar da floresta, assistindo ao grupo que se aproximava, cheio de whisky na cabeça e risos no coração, ao menos seis pares de olhos felinos piscaram em uníssono... E, no crepúsculo, por um certo ângulo, poderia parecer que estavam sorrindo. Juntos sumiram entre as árvores, deixando para trás uma nuvem de vaga-lumes dançantes.

Querem saber o que aconteceu a Aidan e Cat? Continuem lendo para saber mais sobre HIGHLAND FIRE, livro 1 da série Guardians of the Stones.


EPILOGUE

F

az anos que recebo cartas de leitores que apreciam esta série e os heróis e heroínas cujas sagas a compõem. Canção das Terras Altas é o fim de The Highland Brides e o início de uma novíssima série histórica. Se você se encantou com os personagens de The Highland Brides, pode agora acompanhá-los em um universo ainda mais rico e abrangente, que traz de volta personagens queridos e ainda acrescenta outros. Highland Fire é a estória de Aidan dún Scoti. Se está lendo esta nota, é porque já conheceu Aidan em Canção das Terras Altas. O ano é 1125. Os Pictos já partiram faz tempo, relegados aos anais da História, mas um clã não esquecerá os antigos costumes tão facilmente. Após a morte do rei Aed em 878, esse clã fugiu para as montanhas, levando consigo a verdadeira Pedra do Destino, e lá permanece... esperando pelo surgimento de um rei digno. Por dois séculos, o povo de Aidan mantém o secredo mais bem-guardado da Escócia no interior do Mounth, rústica colina de morros na fronteira sul de Strathdee, nordeste da Escócia. A paisagem é implacável e o povo ainda está imbuído nas tradições do passado, preservando o hábito de pintar o corpo com a tintura dos antepassados como forma de reverência a sua nobre origem. São os últimos remanescentes dos “Pintados”, os guardiães da Pedra. Agora tem início uma nova disputa de poder. As tribos das Terras Altas estão fracionadas. David Ceann Mór, conspirador inglês, reclama o trono da Scotia, mas apenas um rei digno pode possuir a pedra que tem o poder de unir os clãs da região. Amaldiçoada pelo povo de Aidan ao nascer, em função dos pecados do seu pai, Lìleas MacLaren é a única mulher a quem Aidan acredita estar imune... Oferecida em casamento como forma de promover a paz, ela é também a única mulher que pode trair o segredo do clã, levando-o à guerra. Rica em história e folclore e com um toque de magia, Highland Fire dá vida a uma lenda. Se ainda não leu The Highland Brides, comece pelo Livro 1, The MacKinnon’s Bride, passando por Lyon's Gift e On Bended Knee até Lion Heart. Se já leu esses populares livros, vire a página para baixar uma amostra GRÁTIS de Highland Fire.


SOBRE A AUTORA Os romances de Tanya Anne Crosby fizeram parte de inúmeras listas de best-sellers, incluindo a dos jornais The New York Times e USA Today. Mais conhecida por escrever histórias carregadas com emoção e humor e preenchidas por personagens imperfeitos, seus romances têm conquistado elogios de leitores e de críticos. Ela mora com o marido, dois cães e dois gatos temperamentais na parte norte de Michigan. Para mais informações @tanyaannecrosby tanyaannecrosby www.tanyaannecrosby.com tanya@tanyaannecrosby.com


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