PROJETO GRÁFICO Camilla Lourenço Julio Joly ORGANIZAÇÃO Camilla Lourenço CAPA Julio Joly ORIENTAÇÃO Fabiano Ormaneze
PUC-CAMPINAS 2015 Livro produzido a partir da compilação de perfis escritos pelos alunos do quarto ano do curso de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, na disciplina de Jornalismo Literário, ministrada pelo professor Fabiano Ormaneze.
Sumário Apresentação......................................... 6 VOLUNTARIADO......................................8 Lúcia ..................................................... 9 Irene e Cia .......................................... 13 ESTATÍSTICA ....................................... 16 Laura .................................................. 17 Fausto ................................................ 21 Renata ................................................ 24 Luana ................................................. 28 SUPERAÇÃO ........................................ 31 Lorenze .............................................. 32 Gabriel ................................................ 34 Valdemir ............................................. 38 GENTE DO POVO ................................ 41 Igor ..................................................... 42 Jovenília ............................................. 45 Antônio ............................................... 50 Marcelo............................................... 53
Elisabeth ............................................. 55 Cleverton ............................................ 58 Thiago ................................................ 62 ESPORTE ............................................. 66 José .................................................... 67 Alexandre ........................................... 70 Álvaro ................................................. 74 Hélio ................................................... 77 Nathália .............................................. 80 Manoel................................................ 84 Wanderlei ........................................... 88
Por que contar histórias? Fabiano Ormaneze professor de Jornalismo Literário na PUC-Campinas
E
ste e-book nasce de uma prática que, desde que a disciplina de Jornalismo Literário foi criada, tem sido executada com os alunos do quarto ano do curso de Jornalismo da PUC-Campinas: a escrita de perfis. Gênero caracterizado por ser um retrato de uma pessoa, conhecida ou anônima, mas com uma boa história para contar, a partir de critérios próximos aos chamados valores-notícia, o perfil garante leitores pela capacidade de identificação capaz de gerar. Fazer perfil é dar-se à arte do encontro. É permitir-se enxergar no outro o que cada um tem de igual e, ao mesmo tempo, de diferente. Esse tem sido o exercício proposto aos alunos em todos esses anos: praticar um texto com estratégias literárias, como a narração cena a cena, a descrição, os diálogos, a voz autoral explicitada, mas a partir de uma história de vida. Os perfis aqui publicados estão ligados por linhas em comum. Alguns deles contam histórias de superação, outros falam sobre personagens de destaque no esporte. Há ainda aqueles que tentam mostrar a história de personagens que, mesmo muito conhecidos socialmente, em geral, são estereotipados. Nosso objetivo, nesses casos, é mostrar a história por trás do estereótipo. Por fim, damos destaque ainda há personagens que ilustram estatísticas. Nada mais frio que os números que todos os dias nos chegam pelos institutos de pesquisa ou pelas mais diversas instituições. São milhares de pessoas em determinada situação, outras centenas noutra. Mas que cara
tem esses números? Quem são essas pessoas que são silenciadas ou camufladas, ao menos, pelos índices que ilustram títulos de notícias e reportagens em jornais? Fica o convite para conhecer algumas dessas pessoas!
VOLUNTARIADO
Lúcia
Entre muros, animais e dedicação Por Ana Carolina Pertille
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uma casa como qualquer outra do bairro, o muro alto cercando seu entorno e perto dali é possível chegar à Rodovia Luiz de Queiroz. O bairro Vila Godoy fica na cidade de Santa Bárbara d’Oeste, há cerca de dez minutos da cidade de Americana. Nessa casa vive Suzy, que já não enxerga e não escuta muito bem por causa da idade avançada, mas, apesar de tudo, possui uma boa saúde. Suzy divide a casa com mais dez ‘indivíduos’ e sua vizinha do fundo não vê a hora que eles saiam dali. Suzy é uma cachorrinha de pelagem negra e caramelo e passa os dias deitada em sua casinha, alheia a todas as coisas que acontecem ao seu redor. A psicóloga de 40 anos, Lúcia Paschinelli, é a vizinha do fundo e tem um bom motivo para querer que Suzy saia logo dali: a casa localizada na Vila Godoy é um abrigo para animais que pertence a Organização Não Governamental Animais têm Voz, ONG que Lúcia fundou junto com mais quatro amigos em junho de 2011. O foco do trabalho é o mesmo da ONG mais antiga do Brasil, a União Internacional Protetora dos Animais, fundados em 1895 e responsáveis pela instituição do Movimento de Proteção Animal no país no século XIX, somando 120 anos de existência. Desses anos, já faz quatro em que Lúcia vem lutando pelos animais através da ONG, mas seus esforços já somam cerca de 20 anos. Cabelos enrolados, um pouco castanho, um pouco loiro... Olhos escuros e sorriso largo sem medo de mostrar os dentes. Desde pequena, tinha o hábito de acolher os cachorros que encontrava nas
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ruas e levar para casa, para que assim pudesse cuidar e dar a eles um lar, até porque seu pai sempre os deixava ficar. Assim, permaneceu durante boa parte de sua vida, resgatando os animais das ruas, acolhendo-os e levando-os para feiras de adoção. Foi em uma dessas feiras em que Lúcia conheceu seus futuros companheiros de ONG. Todos iam até lá para tentar encontrar um lar e uma família para os animais que resgatavam e assim decidiram unir forças para ajudar o maior número possível. Começaram com dez, mas apenas cinco restaram: Lana Barros, Darlan Barros, Carol Campos, Cássia Marroni e Lúcia. E a psicóloga não esconde a admiração e felicidade que sente por seus amigos: - Porque somos assim, tão loucos por animais que acabamos loucos uns pelos outros... Até o final de 2014, com três anos e meio de existência, a Animais têm Voz já doou 163 cachorros adultos e 76 filhotes. Lúcia deixa claro que os filhotes são sempre raros no abrigo. Talvez um número meio pequeno para quase quatro anos... - Antes de serem doados, todos os nossos animais são castrados, vacinados e micro chipados. Pode ser um número pequeno comparado com outras ONGs, mas nós gostamos de saber para quem estamos entregando nossos cachorros... E, para Lúcia, é isso o que realmente importa: ver os animais que cuidou com tanto carinho serem cuidados com mais amor por suas novas famílias, e não o número de adotados. São raros os casos em que os animais são levados para feiras, pois sempre querem manter contato com os adotantes para saber se os animais estão sendo bem cuidados e assim também podem ver em quais condições eles viverão. E existe outro porém: alguns cães não são “aptos” para as feiras, pois já são velhos ou estão cegos... Deficientes de alguma forma. Assim, as “divulgações” dos animais que estão prontos para a adoção são feitas pelas redes sociais, mais precisamente pelo facebook que já possui mais de 5000 amigos e também pelo famoso e tradicional boca a boca. Segundo uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, com dados de 2013, quase metade das residências brasileiras possuem pelo menos um cachorro. São 44,3% de domicílios, somando 52,2 milhões de cães.
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Porém, estima-se que existam mais de 30 milhões de animais abandonados no Brasil, segundo pesquisa da Organização Mundial da Saúde do início de 2014. E fazer parte de algo que ajuda diversas vidas é mais que um simples hobby, e Lúcia consegue transmitir todo esse sentimento: - Quando você faz parte de uma causa como a nossa ONG, é como um pedaço da sua vida. Quando chega um animal novo, existe toda uma dedicação: física, financeira e principalmente emocional. O bem estar deles é prioridade, tentar transformar essa vida é o único objetivo e para isso não se medem esforços. Os cinco integrantes da ONG revezam-se para limpar o abrigo e cuidar dos animais todos os dias. Como também para levar ao veterinário, fazer os resgates e o que mais for necessário. Prestes a fazer aniversário de quatro anos a organização teve – e ainda tem – todos os custos bancados pelos integrantes. Todo o mês precisam pagar as contas do veterinário, os produtos de limpeza, a ração, as vacinas, castração, o combustível... Se no final do mês a conta do veterinário ficar muito apertada, as ajudas costumam vir pelos amigos, principalmente os do facebook: - A ajuda vem em forma de ração ou produtos de limpeza. Nunca pedimos dinheiro... Todo dia 30 a conta do veterinário é paga e quando fica muito alta pagamos com o que tem em caixa. E se faltar? Dividimos igualmente em cinco partes. Dessa forma, muitas outras pessoas fazem parte da organização, ajudando-os indiretamente, com doações ou participações nas ações promovidas pelos Animais tem Voz: comprando rifas, camisetas e participando dos almoços e jantares. E como será o futuro da Animais têm Voz? Sem desanimar, mas com um toque de pesar Lúcia responde: - Esperamos conseguir um lugar maior, mais apropriado, algo como uma chácara. Assim conseguiríamos ter um lugar com melhores acomodações, para separar os que precisam de mais cuidados dos que já estão prontos para encontrar um lar. - Mas e a casa atual, Lúcia? - Ela já está meio velha, e não tem a estrutura que realmente precisamos. Quando a ONG nasceu, forneci a casa pois estava sem uso... Mas um dia vamos ter que pegá-la de volta, reformar e alugar...
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O marido de Lúcia, Paulo já avisou que um dia vai querer a casa de volta, pois de certa forma, estão perdendo dinheiro... Mas com um sorriso ela explica que ele sempre está junto com ela nas decisões que toma: - Ele é quem sonha e realiza tudo junto comigo... E se algum dia você quiser ir visitar a casa e conhecer os animais, a notícia não é muito boa: - Não costumamos passar o endereço, pois, mesmo com o muro alto e sem saber que ali é uma ONG, as pessoas depositam animais no portão, abandonam. Antes permitíamos visitas, mas começamos a perceber que as pessoas iam até lá visitar para saber onde era e depois abandonavam os animais... E com tantos animais indo e vindo, tantas histórias, resgates e dificuldades, Lúcia possui uma relação de amor com os habitantes do abrigo. Quando algum animal fica por lá por muito tempo, é difícil que aconteça a adoção, pois os laços se tornam muito fortes, mas ela avisa – mais para ela mesma do que para mim: - Ali é um abrigo, não uma casa.
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Irene e Cia
De triste fim a recomeço florescente Por Raíssa Bazzo
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ão importa se você já teve algum tipo de câncer, se perdeu uma pessoa muito querida para o câncer, ou se, simplesmente, gosta de histórias sobre o câncer. O que importa, é a forma com que você trata isso e como pretende escrever a sua história nesse ambiente. É para isso que existe a Associação Voluntária de Combate ao Câncer (AVCC) em Barretos, interior de São Paulo. A 340 quilômetros da capital paulista existe o maior hospital de câncer público do Brasil. O Hospital do Câncer de Barretos PIO XII atende milhões de pessoas ao ano, vindas de todos os estados, de distâncias mais improváveis possíveis. Tudo, absolutamente, gratuito. São pacientes e famílias com pouca condição financeira que merecem, não menos que qualquer um, tratamentos dignos e eficientes, com médicos de qualidade que lutam diariamente para salvar vida por vida. Entretanto, para acolher tantas famílias, é necessário que haja muito auxílio e, é para isso que existe a AVCC, fundada em março de 1997, por um grupo de mulheres que formavam a Associação Paulista Feminina de Combate ao Câncer de São Paulo. A equipe presta serviços à sociedade através de arrecadação de roupas e alimentos, organização de um bazar diário de roupas, eventos, campanhas de conscientização, campanhas para arrecadação e estimulação para realização de doações.
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São aproximadamente 300 voluntários, com cede em Barretos e em outras 53 cidades próximas, que atuam diretamente com os pacientes, realizando o auxílio com apoio moral, para adquirir o remédio, cestasbásicas, transporte, visitas, campanhas e disseminando os métodos de prevenção. Entre o voluntariado estão Irene Paim, de 76 anos, João Carlos da Silva, de 60 e, Maria Emília Fernandes, de 21. Irene faz o levantamento de todas as doações que entram na AVCC. É ela quem controla o que é colocado em cada cesta, como e quando elas serão entregues. Já o João costura vestidos para vender no bazar, enquanto a Maria Emília entrega o pão ao hospital todas as manhãs de segunda. O voluntariado de Irene começou quando seu pai teve câncer no intestino, em 1983 que, quando internado no hospital São Judas (o único hospital da cidade na época), conheceu um senhor muito doente, internado ao lado de seu pai. O senhor precisava operar, porém, estava muito fraco por não conseguir comer a comida do hospital. Irene sentiu seu lado filantrópico despertar, levando, diariamente, almoço e jantar para o homem, enquanto sua irmã levava os lanches da manhã e da tarde. Mesmo depois de ter o pai operado e, semanas seguintes, morto, ela continuou a levar refeições para que o velho pudesse realizar a operação. Resultado: logo o novo amigo pôde ir para o centro cirúrgico. Enquanto ele esteve internado, toda a família do paciente ficou na casa de Irene. Foi quando a AVCC iniciou os trabalhos e a jovem altruísta decidiu entrar para o voluntariado, mesmo tendo muito trabalho com o salão de costura, o qual era proprietária. Por muito tempo, em vários dias, Irene deixou seu salão com suas funcionárias, apenas para se dedicar ao trabalho voluntário, até que, em 2006, se desligou totalmente de sua fonte de renda, aposentou-se e, desde então, dedica-se integralmente à AVCC. Não foi o que aconteceu com João que, nascido em São Paulo, perdeu um filho, entrando em depressão e se revoltando com a vida. “Dizem que a mágoa e a depressão trazem o câncer e eu fiquei muito revoltado por terem tirado meu filho de mim”. Quando ele completou 50 anos, passou a fazer exames periódicos de prevenção que, por cinco anos consecutivos, nunca resultaram em nada. Até ele trocar de médico, quando o doutor pediu uma biópsia e nela acusou um tumor na
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próstata. Segundo ele, a ficha só foi cair quando foi transferido para o PIO XII, “foi a pior coisa que aconteceu na minha vida. A biópsia acabou comigo, foram 12 fragmentos a sangue frio”. O câncer é uma doença silenciosa. Cruel. O tipo de doença que não se deve desejar nem mesmo ao pior inimigo. Ela mata, mata sem sentimento, sem piedade. Mata o paciente e um pedacinho de todos os que convivem com o doente. Foi quando João Carlos procurou a Associação em busca de uma nova renda, pois seu nome já estava manchado em toda a cidade e região. Ninguém o procurava para fazer ou alugar vestidos de noiva, que era seu único trabalho antes da doença. Na AVCC ele foi muito mais do que acolhido, chamaram-no para trabalhar no voluntariado e ele sem titubear, aceitou, “foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida, psicologicamente me ajudou muito. Eu passo o dia todo aqui, é a minha segunda casa”. Segundo ele, ninguém comenta que se trata de um paciente, “eu até esqueço que sou paciente do hospital”. Felizmente, não foi o caso da jovem Maria Emilia, da cidade de Monte Azul Paulista que, por curiosidade, quis conhecer o trabalho da Associação. “Meu pai e meu sogro vinham de ônibus para fazer tratamento e todos os dias eu via um moço com a camiseta da AVCC, até que perguntei para ele do que se tratava”, ele perguntou a ela se queria conhecer o trabalho e trabalhar com eles. Desde então, a cerca de um ano e meio, Maria está no voluntariado, mesmo que trabalhe apenas um dia por semana, durante meio período. “É uma coisa que já faz parte da minha vida, quando eu não venho pra cá parece que a semana não passa. Eu tô parada, então aqui eu me sinto útil”, Maria está desempregada, estudando para prestar concurso de auxiliar de creche. Qualquer um pode se tornar um voluntário da AVCC. Basta realizar o preenchimento de um cadastro e ter vontade de ajudar o próximo. A única exigência é que seus membros doem, pelo menos, duas horas de serviço gratuito por semana. A entidade não tem fins lucrativos, credo religioso ou cunho político partidário. Mas é uma história que faz do trabalho uma fórmula de esperança para quem mais precisa de atenção e conforto.
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Laura
“Eu sei que é clichê, mas olha só, né...” Por Camila Yano
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abelo, unhas, maquiagem, sapato, bolsa, colar, brinco e a busca pelo vestido perfeito. A festa de formatura do ensino médio do Colégio Santo André, em São José do Rio Preto, promete. Muita festa, risadas, selfies, bebidas, comidas, danças e amigos inseparáveis. O que iria acontecer também, mas que Laura Castro não sabia era que, depois daquela noite, sete de dezembro de 2013, ela acordaria sendo mais uma das 291 milhões de mulheres no mundo portadoras de uma doença altamente contagiosa, que infecta a pele e mucosas e pode causar câncer no colo do útero. Em uma tarde na casa de uma amiga, eu estava conversando com a mãe dela, Beatriz Barco, enfermeira, e ela comentou que conhece uma menina, Laura Castro, estudante de arquitetura, infectada pelo vírus HPV, possível personagem para o meu texto. Depois de uma ligação e alguns dias, combinamos de nos encontrarmos na casa dos pais Laura, no bairro Vivendas, zona sul da cidade. Fiquei aliviada por encontrar uma fonte que fale numa boa sobre ser portadora do HPV, afinal, conseguir alguém que fale sobre uma doença sexualmente transmissível não é tão comum como achar um consumidor para falar sobre o preço do tomate.
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Era uma tarde nublada de sábado. A casa fica de frente ao muro de um cemitério e a rua estava vazia. Apertei a campainha e a empregada me recebeu. “A Lala está te esperando no escritório”, ela disse muito simpática. Ao mesmo tempo, também fui recepcionada pelos três Golden Retriver querendo brincar como se não houvesse o amanhã. Após calorosas tentativas de abraço seguidas de pulos e arranhões, continuei. A casa, um sobrado com quatro quartos, churrasqueira e uma piscina desmontável, no geral, era de muito bom gosto. A decoração parecia estar de braços abertos às visitas. Ao final do corredor, vi Laura me esperando. Enquanto caminhava em direção ao escritório, ela veio em minha direção e nos cumprimentamos na sala. Laura falou para conversarmos lá mesmo, caso eu não me importasse. Concordei com a cabeça. A iluminação natural fazia com que, às quatro horas da tarde, o sofá gigante nos convidasse a ficar por ali. Sentamos. Antes de iniciarmos, ela quis saber a finalidade da entrevista. Eu já havia explicado pelo telefone, mas repeti que, por ela ser portadora do HPV, a escolhi para fazer um perfil. Ela não entendeu e eu não soube muito bem explicar, mas prometi que enviaria o texto assim que ficasse pronto. Laura Castro é uma garota de 24 anos, solteira, mora com os pais e faz faculdade de Arquitetura e Urbanismo no Dom Pedro, em Rio Preto. Gosta de beber cerveja com os amigos, não é tão fã assim de vodka, “muito menos de pinga”, e frequenta a academia três vezes por semana. “É o que eu tento, pelo menos”, fala brincando. Em 2008, aos 17 anos, formou-se no ensino médio pela escola particular Santo André, tradicional na cidade. Depois da festa de formatura, Laura e os amigos foram à casa de um deles, “tipo um after party” e ela se envolveu com o primo de um colega de sala. “Como na maioria das situações como essa, a gente sempre fala ‘ah, eu me esqueci da camisinha’ ou ‘não tinha’... Mas eu estaria mentindo caso falasse qualquer um destes exemplos. Eu tinha, não esqueci, mas sabe como é... corta o clima”, ela afirmou, sem vergonha, mas sua expressão era de decepção consigo mesma. “Da noite para o dia minha vida mudou. Aquela noite foi ótima, mas ele poderia ter me falado. Resolvi que não queria mais vê-lo, mas não aguentei e fui tirar alguma satisfação. Ele negou que tem o vírus, o que me deixou muito chateada”.
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Um dos sintomas, apesar de raro, é a presença de verrugas genitais nos portadores, e foi assim que Laura se descobriu infectada para sempre. Na maioria dos casos, tanto em mulheres quanto em homens, a infecção é assintomática ou inapetente e de caráter transitório, ou seja, regride espontaneamente. Mas ela não se encaixou neste quadro e tornou-se parte dos cinco por cento das pessoas que desenvolvem alguma manifestação. Laura diz que sempre teve uma boa relação com os pais e, devido a isso, “eles acompanharam tudo desde o começo, assim que a doença se manifestou”. “Eles não estão aqui hoje, foram a um churrasco com os amigos no clube”, ela me disse, respondendo a questão que não precisei dar voz. Perguntei se ela havia tomado a vacina, mesmo após ter adquirido o vírus, e Laura concordou “Minha ginecologista falou que não adiantava muita coisa... Mas enquanto pesquisava na internet, achei um site do Ministério da Saúde sobre a doença, e lá estava falando um monte de coisas sobre isso, inclusive que tem que tomar, independente de ter ou não”. No Sistema Único de Saúde (SUS), a vacina é dividida em três doses. A segunda é aplicada seis meses após a primeira, e a terceira, cinco anos após a segunda. Mas ela só está disponível para meninas de nove a 11 anos, então Laura teve que procurar uma clínica particular. Quando soube do preço, a facada: R$ 300 cada dose. “Saúde não tem preço, né, então meus pais pagaram”, ela observa. A razão pela qual apenas estas crianças podem ser imunizadas no SUS é que o grau de eficácia da vacina no corpo é bem maior nessa faixa etária, e, na maioria dos casos, elas ainda não tiveram nenhum contato com o vírus. A partir do ano que vem, apenas meninas de nove anos poderão ser vacinadas. Em 2008, o conhecimento popular sobre o HPV era muito restrito, o que ainda é, e a vacina não estava disponível no SUS. Isto só aconteceu em 2014, quando ela entrou para o calendário de vacinação do Ministério da Saúde. Ano passado, as meninas de 11 a 13 anos podiam tomar a vacina. “Nem sabia dessa mudança na idade, mas deve ser por causa do câncer, né? Eu li sobre isso na época”. Concordei. O relatório do Ministério da Saúde sobre a doença diz que cerca de cinco mil mulheres morrem anualmente no Brasil de câncer do colo do útero, e que ele é a quarta causa de morte entre as mulheres no país. Enquanto falávamos sobre isso, Laura conta que uma amiga
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da mãe dela faleceu por causa da doença, mas foi há anos e ninguém sabia nada sobre o vírus. É devido a esse preocupante número que o órgão investe em pesquisas e campanhas para saber a melhor idade somada à melhor eficácia com a vacinação. Cerca de uma hora depois, alguns copos de suco de laranja natural e bolachinhas, terminamos a conversa. Agradeço a entrevista e nos despedimos. Ao sair, ela diz: “Camisinha. Não esquece de escrever que eu falei pra usar sempre. Eu sei que é clichê, mas olha só, né...”.
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Fausto
A morte precoce da poesia Por Gustavo Gianola
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Meu risco é estar entre a arte e a morte. O resto é bobagem, é brincar de ser forte. Meu resto é estar entre o uísque e o descanso.” Por mais subjetivas e inocentes as intenções de Faustinho, ou Fausto Pará, como foi batizado, ao criar esse trecho – parte de uma de suas inúmeras poesias – o fim da curta vida do poeta, músico e compositor foi previsto ironicamente de forma escrita em mais um de seus “insights”. No dia do acidente, Faustinho passou a tarde andando de skate, bebendo seu então tradicional uísque, fumando seu cigarro e tocando seu inseparável violão, acompanhado de seus amigos no Pico do Apha – ladeira tradicional de Sorocaba onde jovens se reúnem para andar de skate, beber e jogar conversa fora -. Em mais um descontraído e desfrutado sábado, Faustinho e amigos planejavam o que iriam fazer à noite. Ficou decidido então que todos iriam para o sítio de um deles. Porém Faustinho não estava tão animado quanto os outros para sair, então disse que voltaria para a casa. E foi. Devido à grande insistência de seus amigos para Faustinho não ir embora, – especialmente de um deles que não o via a muito tempo e veio da cidade de Bauru – Faustinho volta e decide seguir trajeto rumo ao sítio. Faustinho vai sozinho em seu carro e logo atrás vão os outros três amigos em um outro carro. A noite já estava quase prevista, os amigos iriam curtir mais uma noite regada a álcool, cigarros, entre outros,
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música e amizade. Só que, um detalhe desabituado e aparatoso apareceu no meio do caminho de Faustinho, em um cruzamento de uma das avenidas mais movimentadas da cidade e aos olhos de seus amigos, que estavam logo atrás dele. Uma Mercedez-Benz C-240 blindada fugindo da polícia, fura o sinal vermelho e bate a 135km/h em Faustinho, jogando seu carro a quase 10 metros de distância. Seu carro teve perda total e Faustinho morreu na hora. Do outro lado, o caseiro Romualdo Spinoza, de 34 anos, pegou o carro sem a autorização do patrão, abasteceu R$56 de gasolina e saiu do posto sem pagar, o que acarretou em uma perseguição policial terminada em uma morte aleatória de um jovem que, ironicamente estando entre o uísque, a arte e a morte, previu seu destino em uma de suas poesias e atingiu seu descanso não planejado. Para os três amigos que assistiram, viveram e acompanharam os últimos momentos de Faustinho, até o seu enterro, o dia 2 de novembro de 2013 começou com sentimentos de pureza e amizade verdadeira, e terminou com indignação e a percepção de que todos nós estamos à mercê de qualquer coisa, podendo ser desde a maior sorte até a nossa morte. Seu funeral reuniu todos seus amigos, desde a turma do colegial – Faustinho se formou em 2009 – à amigos de infância, familiares, amigos de bar e entre outros. O clima era de muita tristeza, mas ao mesmo tempo, via-se nos olhos de todos um sentimento de inconformismo, de que todas aquelas pessoas, que não se viam a muito tempo, não acreditavam que estavam ali para uma cerimônia de despedida de uma delas. “Não foi acidente, meu filho foi assassinado aos 21 anos”, completa Marta Pará, mãe de Faustinho. “A arma foi o carro”, disse Fausto Pará pai, sobre lágrimas de indignação e conformidade que correm seus olhos por quase dois anos. O que sobraram de sentimentos para os pais de um jovem que queria ser poeta em um mundo capitalista? “É de saudade e mais que desalento, o vazio que ele deixou para a gente. E também é de revolta”, afirma o pai, que clama por justiça. “O que a gente pede é que ele fique preso e que nosso filho não vire só mais uma estatística. Que esse não seja mais um caso de impunidade neste país”.
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E é pelo seguinte trecho que escrevo sobre você, caro amigo. Obrigado por me livrar do clichê para fazer esta pequena homenagem a você, onde quer que esteja. “O poeta, quando tem a paixão e o amor nas mãos, escreve sobre saudades. Bom, quando não tem, é puro clichê. ” Faustinho – Fausto Pará (1992 – 2013).
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Renata
Vivendo e aprendendo Por Maria Luisa Borin
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odo dia o dia começa assim: Renata acorda cedo, prepara o café da manhã e acorda seus meninos. Enquanto comem cereal com leite, a van escolar estaciona na rua e começa a buzinar. Os meninos nem se apressam, continuam saboreando seu desjejum com aquela lentidão matinal. A mãe tampouco se move da cadeira para apressá-los ou menciona que eles estão atrasados. Isso porque eles não vão para a escola. Nem hoje, nem amanhã e nem depois. Os meninos de Renata, Kadu e Léo, de 5 e 3 anos, não estão matriculados em nenhuma instituição de ensino. A rotina da família de Renata Campanholo pode soar estranha para muitas pessoas e sempre surgem diversas dúvidas do porque seus filhos não vão à escola. Na verdade, isso não é tão incomum quanto parece. Segundo a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), entre 2011 e 2015 o número de famílias que optaram por não matricular suas crianças em instituições regulares aumentou significantemente, saltando de 400 para 2,5 mil famílias. A ANED lista em seu site alguns dos motivos que podem influenciar essa escolha. Bullying, religião e não adaptação são alguns deles. No caso da família de Renata, o motivo foi a busca por novas alternativas de ensino. Ela e o marido Daniel, optaram pela desescolarização que, ao contrário do ensino domiciliar que segue a
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grade curricular tradicional sem precisar frequentar uma instituição regular, dispensa currículos e defende o uso das mais variadas ferramentas para a busca e aquisição de conhecimento. A ideia foi surgindo aos poucos. Renata estava grávida do segundo filho e sentiu a necessidade de matricular o filho mais velho, na época com 1 ano e pouco, em uma escola para que ela tivesse mais tempo de cuidar da gravidez. Na busca por uma instituição que atendesse as necessidades da família, se assustou com as propostas que encontrava, já que muitas não condiziam com o que era feito na prática. Mesmo assim, acabou matriculando seu filho em uma escola base. Com o tempo, ela percebeu que Kadu não estava se adaptando e que a escola “segurava” muito a criança e não dava espaço para o seu desenvolvimento de corpo, de chão, de curiosidade. Angustiada, Renata buscou referências de escolas que permitem que a criança tenha mais liberdade em seu desenvolvimento. Encontrou, em São Paulo, a Casa do Brincar, um espaço para crianças que pode ser alternativo à escola ou um complemento a ela. A partir desse contato com a Casa do Brincar, Renata decidiu abrir o Espaço Areté, em Jundiaí, cidade onde mora com a família. O slogan do espaço Areté era “Um lugar para brincar” e seguia a ideia de que é brincando que a criança desenvolve a imaginação, o controle, a confiança, a cooperação e a civilidade. Mas, com o tempo, Renata foi percebendo que os pais simplesmente não tinham consciência do desenvolvimento das crianças, eles estavam se ausentando da educação e do crescimento dos próprios filhos. Com isso, o espaço foi perdendo sua principal função e Renata foi perdendo suas esperanças. Ela até tentou fazer programas para que os pais também frequentassem o espaço e interagissem mais com seus filhos, mas a verdade era que eles não estavam interessados nisso. Com o fechamento do Areté, em 2014, Renata, por meio de pesquisas e reuniões com pais que se encontravam no mesmo barco que ela, acabou descobrindo a desescolarização. A sua intenção era de assumir de fato a educação dos meninos e participar direta e ativamente do desenvolvimento de cada um. Para que desse certo, ela e o marido estavam dispostos a abrir mão de algumas coisas e mudar a estrutura familiar.
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A opção pela desescolarização mudou a rotina dos Campanholos. Hoje eles trabalham menos, levam uma vida mais simples – com direito a menos idas ao supermercado e mais colheitas na horta da varanda – e ganham mais tempo para passar com os meninos. Enquanto a maioria das crianças está dentro de uma sala de aula soterrada por cadernos e livros, lá vai a família curtir uma tarde no parque, sem preocupações. Algumas pessoas chegam a perguntar se eles não vão à escola e, na maioria das vezes, o próprio Kadu, o filho mais velho, consegue explicar de forma clara, com seu conhecimento de um menino de apenas cinco anos. Renata vem de uma família de pedagogos e também acabou seguindo esse caminho. Por conta disso, está sempre preparada para o questionamento dos familiares, que a instiga a pesquisar e estudar mais sobre desenvolvimento infantil. Quando alguém chega para criticar o modo de vida dos meninos, ela já tem a resposta na ponta da língua. Sua irmã mais nova, que ainda não é mãe, acha a ideia interessante, mas jamais faria isso com seus filhos que ainda não nasceram. Já Luciana, a irmã mais velha, é professora e segue o caminho tradicional. Seus filhos pequenos estão matriculados em uma escola bilíngue, intenção dos pais para que eles consigam falar mais de um idioma o quanto antes. Apesar de Renata e sua irmã mais velha serem o oposto uma da outra, o mesmo não é percebido entre as crianças. Quando os primos se reúnem, não dá pra perceber que Kadu e Léo são diferentes de seus primos porque não vão à escola. No conhecimento e no desenvolvimento, os meninos de Renata não ficam para trás. Isso porque, em casa, os dois aprendem tanto quanto se estivem dentro de uma sala de aula. Para quem pensa em desescolarização, pode surgir a ideia de uma vida sem rotina e desorganizada. Mas Renata leva essas duas palavras à risca. Na casa da família Campanholo, existem regras e uma rotina a ser seguida, mas a vontade das crianças é sempre respeitada. São os meninos que sabem quando estão com vontade de brincar, de aprender... E a mãe vai seguindo as necessidades das crias, sempre de forma organizada, porque acredita que uma criança não deve ser ignorada só porque é criança. Ela não sente que os filhos estão perdendo alguma coisa, mas sim que estão ganhando diferentes tipos
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de conhecimentos e olhar crítico sobre as coisas, apesar da pouca idade. Por não frequentarem uma escola, Kadu e Léo não possuem a barreira de que permite que a criança socialize apenas com crianças da mesma sala de sala ou da mesma idade. O mais velho consegue conversar com pessoas de qualquer idade. Os amiguinhos do condomínio, o senhorzinho da praça, a atendente da padaria... Assim, ele vai enriquecendo seu repertório. Renata vai percebendo o resultado da escolha em relação à educação de seus filhos e assim se sente confiante em prosseguir com suas decisões. Quando perguntam para Renata o que vai ser das crianças daqui a alguns anos, ela simplesmente responde que vive seus filhos agora. Ela e o marido, de tempos em tempos, perguntam aos meninos se eles querem ir à escola. Eles dizem não, mas pode ser que um dia mudem de ideia e os pais vão respeitar suas decisões. Por enquanto, eles vão seguindo com seus aprendizados diários e viagens exploratórias. Este ano, a família seguiu de carro para a Argentina e no caminho os pais iam explicando um pouco de história, um pouco de geografia... Os planos para os próximos meses é uma viagem para países onde a desescolarização é forte e mais livre de preconceitos.
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Luana
O depósito de crianças Por Juliana Araujo
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odo dia útil é dia de depósito. 163 crianças são entregues toda manhã no portão do Centro de Educação Infantil Padre Elias (CEI). Algumas são deixadas por pais cheios de expectativa para seus filhos, mas para a maioria, não passa de mais uma transação profissional, que ao final do dia terá que ser desfeita. O terreno tem cerca de seis mil metros quadrados, com um pequeno retângulo de cimento chamado de "escola", rodeado por um mato tão grande que facilmente é confundido com uma das florestas tão citadas nas histórias infantis. "É aqui que eu me escondo enquanto o seu lobo não vem", conta a professora Edna Santos, de 52 anos, que cuida da afastada biblioteca. Para chegar até os livros é preciso através todo o terreno, passar pela floresta e, quase completamente escondido, está o pequeno espaço, suficiente apenas para três prateleiras, uma mesa e cadeira e mais alguns passos vazios. "Aqui é uma escola pequena, então a gente consegue controlar, saber o que está acontecendo em cada espaço", afirma a diretora do CEI, Fabiana de Freitas, de 34 anos. E realmente é possível já que de todos os cantos podemos ouvir os balbucios, risos, gritos e um infinito "dadadadadada". O choro manhoso ecoa dentro da pequena estrutura verde, com nove salas de aula, um amplo refeitório repleto de
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pequenas mesas e cadeiras, recortes e colagens nas paredes e grades em todas as janelas. Do lado externo há o parquinho com um carrossel já enferrujado, balanços rangedores e um castelinho de madeira coberto pelo matagal. Mesmo com a estrutura desgastada, os educadores realizam atividades lúdicas e garantem o ensino e a diversão para os alunos. "É comum dizerem 'mas as crianças não escrevem no papel nem nada, o que vocês fazem com eles?!', é preciso perceber que o cuidar e o educar andam juntos na educação infantil", explica a diretora. A professora Luana Henriques do Amaral, 29 anos, leva duas horas no transporte público de Mogi das Cruzes até a CEI, na zona leste de São Paulo. "E eu ainda tenho que ouvir 'nossa, mas você estudou tanto para ficar trocando fralda?'". A confusão que muitos fazem sobre a priorização do assistencialismo está impregnada na educação infantil. Confundem as CEIS com os antigos modelos de creches que não possuíam um plano pedagógico ou professores, quando todo o trabalho era realizado pelos pajens, os cuidadores. De 2001 a 2004, durante a gestão de Marta Suplicy (PT), houve a transição das creches diretas da Secretaria de Assistência Social (SAS), para a Secretaria Municipal de Educação (SME). Foi então que o objetivo principal de “bem estar social” passou para “educar”. Valquíria Aparecida Mendes, de 53 anos, passou por essa transição. Começou como pajem trabalhando em creches em 1978, com a mudança na prefeitura cursou o magistério e passou a ser registrada como professora de educação infantil. “Mas e do mato? Você vai falar, né?” perguntou-me a funcionária enquanto tomava notas em meu caderno. Luana Amaral faz questão de dizer, com um sorriso que mal cabe no rosto, que é professora por opção, não por falta de uma. Assim como a professora Roseane Santos da Silva, de 35 anos, que tinha o objetivo de ser psicóloga, mas casou-se com a pedagogia após assistir algumas aulas na faculdade. "A educação que entrou em mim, antes eu não sabia nem o que era pedagogo", conta. O desconhecimento das atividades realizadas é apontado com uma das principais causas do preconceito na profissão. "Em todas as nossas lutas a manchete é sempre a questão do salário, mesmo tendo outras pautas importantes. O que atrapalha o nosso trabalho é a condição, falta conhecimento a sociedade, investimento na
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infraestrutura, professores suficientes para todas as salas e excesso de alunos dentro de uma turma", diz a professora Viviane da Silva, de 29 anos. "O investimento é complicado. Você só recebe se você pedir, mas eu peço todos os meses e mesmo assim não dá", explica a diretora Fabiana de Freitas. Por ano o Centro de Educação Infantil recebe cerca de 25, 30 mil reais, divididos em três verbas: uma mensal de pequenos reparos na estrutura, uma verba federal, que é anual e que pode ser gasto com materiais e brinquedos, e o PTRF (Programa de Transferência de Recursos Financeiros) a cada três meses, que serve para qualquer necessidade da escola, como grandes reformas ou outras necessidades do CEI. Todas as empresas que prestam serviço para as escolas devem estar cadastradas na Prefeitura e disponibilizar nota fiscal eletrônica. O requisito foi instituído para evitar fraudes, mas, muitas vezes, a burocracia impede a instituição de realizar de maneira mais ágil alguns serviços. "Nós já ligamos e pedimos para vir aparar o mato, mas quem disse que vieram? Eles sempre demoram meses para prestar o serviço, já que todas as escolas acabam contratando a mesma empresa" afirma a diretora do CEI. "Se ficamos pensando nos problemas, a gente não trabalha, né?", diz Roseane Silva. "Não podemos nos acomodar e nos transformarmos em ‘professor vira caixa', aquele que joga os brinquedinhos no chão e deixa a criança lá". Mas muitos pais não se preocupam com isso, já que procuram apenas um lugar para deixar os filhos enquanto vão cumprir as horas de trabalho. "Eles acham que é nossa obrigação ficar com a criança, mesmo que esteja fora do horário de funcionamento", afirma Fabiana de Freitas. Mas o que todos os professores fazem questão de dizer é que não estão lá apenas para guardar crianças na caixinha.
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Lorenze
Não é uma pessoa X Por Jaíce Cris
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orenze, Enzo, Guilherme ou Anna porque sim. Porque é assim que elx se sente. O uso do X aqui vai marcar a bandeira de Lorenze, que luta a favor do amor e da não divisão de gênero; é marca do não binarismo, da reflexão que eu tento fazer para dizer “pode ser ele, pode ser ela, contanto que você me trate bem”, a referência é o amor. Anna Carolina, 21, nasceu e era só riso. Cresceu como uma menina normal, consciente de seu comportamento de menina, das suas escolhas, jeito de se vestir, pessoas com quem se relacionar. Tudo normal, sem fugir às regras. O interessante, é que de uns anos pra cá, elx percebeu que não queria mais pertencer à normalidade estando perdida em si mesma. Foi quando elx resolveu que o “ela” ou “ele” não definiria mais a sua personalidade, e começou a se expressar pelo que sentia. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que uma em cada cem pessoas sejam transgêneras, isto é, não se identificam com o gênero associado ao seu sexo de nascimento. Há um ano, Enzo sentiu que precisava de ajuda especializada, foi quando procurou uma psicóloga e começou a frequentar rodas de conversas com transgêneros e começou a entender o que elx realmente sentia. Muito expressivx, sempre com o brilho nos olhos azuis, de quem está falando o que lhe agrada, Lorenze explica que a aceitação de
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quem elx é para a sua família não foi tão rápida. Seu pai lida de uma forma, sua mãe de outra, até tenta se adaptar a não tratá-lx como menina, como sempre aconteceu e faz de tudo pra que o processo dentro da sociedade seja menos tortuoso a partir da preocupação em casa. Avô e avó são de outros tempos, mas o amor não muda. A família, que é o ponto de equilíbrio, está do seu lado. Com um instinto de liberdade, Lorenze se encontra em suas palavras e expressões. O fato de elx se vestir como quer, colocar boné, ter cabelo curto, faz as pessoas olharem diferente, atribuir adjetivos vários sem querer entender o que se passa. Entre o “você é confuso” a “virar homem não vai resolver seus problemas” elx entende que o respeito poderia ser algo unânime. A OMS, recentemente deixou de considerar a transgeneria como uma condição patológica e estuda mudar a sua colocação na Classificação Internacional de Doenças. Para Enzo, todos tem momentos de mudança de humor ou personalidade, todos precisam de psicólogo para entender “que existem vários nós” dentro de uma pessoa só, existem 7 bilhões de gêneros e que tem essa classificação é inútil. Sim, é inútil. A OMS também divulgou que vai deixar de considerar o transtorno de identidade de gênero como condição para a recomendação da cirurgia de mudança de sexo... Mas Lorenze não quer se hormonizar e sim se harmonizar, com o mundo, com as pessoas, com as situações e com as diversas possibilidades que a vida oferece a elx e ao mundo. “A Anna cada dia aparece com uma. É o máximo”, disse uma amiga que convivia com as suas mudanças de comportamento na adolescência. Mas elx não quer “chegar” no mundo e impor suas regras, pelo contrário, quer que as coisas aconteçam naturalmente, como tudo deve ser. Viver é o que lhe inspira. Faz exercícios, lê, escreve, aprende, se joga, na vida e nas oportunidades. Escreve sobre as relações, sobre a vida, sobre as escolhas, sempre colocando o amor no início, meio e fim. Faz faculdade de publicidade na Mackenzie em São Paulo, quer estar ao lado das pessoas que querem o bem do mundo e a realização dos sonhos, vive para amar, para se realizar como gente, para ser o pivô de mudanças, sem criar rótulos, sem se fazer de vítima, sem questionar as diferenças, mas se adequando a elas, sem deixar seu eu, sem deixar de ser Lorenze, Enzo, Guilherme ou Anna.
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Gabriel
“Sou feliz com a vida que levo, tento não reclamar de nada” Por Vinícius Falavigna
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m três rodas, faz-se a extensão do seu corpo. Dos braços direito e esquerdo vem à ajuda para a locomoção na quadra. Uma luva na canhota, uma raquete dourada na destra e uma camisa polo amarela, com a bandeira do Brasil e seu nome as costas dão o toque que o diferencia das outras pessoas. E é assim que, durante os treinamentos, Gabriel Partinelli Jannini, membro da seleção paralímpica brasileira de Parabadminton, supera suas dificuldades para ser um atleta de destaque. Aos 3 anos, seu carro chocou-se de frente com um caminhão, deixando-o paraplégico. No acidente, outras três pessoas estavam envolvidas: seu primo, que sofreu apenas escoriações; sua avó, que bateu a cabeça e ficou com sequelas; e seu pai, que não resistiu e morreu. Apesar de sua condição, afirma ter uma vida "normal como todas as outras" e diz ser feliz. Foi à escola normalmente e hoje, aos 19 anos, é estudante de Administração na PUC-Campinas. Durante um papo descontraído de mais de duas horas, falou das dificuldades quando mais jovem, da mãe, da vida social e, claro, das conquistas no Parabadminton.
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Sentados em um palco próximo a quadra de treinamento do clube da Sociedade Hípica de Campinas, inicio a entrevista perguntando logo de cara qual o motivo dele estar em uma cadeira de rodas. Mesmo não lembrando do acidente e nem do que veio a seguir, Gabriel comenta sobre o que sua mãe, Márcia Jannini, sempre diz: "ela não sabia se ficava triste pela morte do meu pai ou por eu ter ficado paraplégico". A mãe é considerada por Gabriel "a mulher mais guerreira que conhece". Reservou um espaço em seu antebraço direito para uma homenagem: tatuagem com a data de seu nascimento em números romanos. Após o acidente, ela precisou parar de trabalhar e se dedicar integralmente a ele. Durante os anos, dividiu-se em levar levá-lo à escola, à fisioterapia, treinamentos... Hoje, com o jovem atingindo a maioridade, tenta dedicar-se um pouco mais para si mesma e tem planos para voltar a trabalhar. Com melhor memória a partir dos 10 anos, ele conta sobre sua vida. Estudou no Notre Dame, escola de Campinas que se adaptou quase que exclusivamente para o jovem poder estudar. Nas atividades esportivas, era auxiliado pelos amigos ou pelos monitores. Participava de brincadeiras de corrida e, quando jogava futebol, era goleiro. Entretanto, confessa que ficava sentido, pois queria fazer algo que a cadeira não atrapalhasse. Foi quando aos 13 anos conheceu, através de atividades de férias realizadas no clube Sociedade Hípica de Campinas, o badminton. Para quem não sabe, o badminton é um esporte parecido com o tênis. Utiliza-se uma raquete menor e mais fina e uma peteca composta por penas de ganso, que é rebatida por cima de uma rede que fica a 1,55 metros do chão. O campo de jogo para jogadores andantes (atletas sem comprometimentos físicos) tem comprimento de 13,40 metros e largura de 5,18 metros (simples) e 6,10 metros (dupla). Para cadeirantes, a quadra é reduzida pela metade. Divido em três categorias, o jovem compete na WH1. Segundo Gabriel, viu no esporte a oportunidade de não ficar preso apenas à cadeira. Na época, em 2008, o Parabadminton praticamente não era divulgado e, por isso, ele foi um dos primeiros atletas a praticar o esporte no Brasil. Inicialmente foram dois anos jogando contra andantes, e por conta disso, desistiu do esporte por seis meses. Mas, em 2010, uma competição o fez voltar a treinar. Fora realizado em Curitiba o 1º Panamericano de Parabadminton no Brasil. Logo na
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estreia, aos 15 anos, foi campeão na categoria simples para cadeirantes, 2º em duplas - jogando com andantes - e 3º na classificação geral. A partir daí, colecionou mais de 30 medalhas em mais de 30 torneios que participou. Dos principais, Gabriel destaca as primeiras representações internacionais brasileiras, em 2011, no Torneio da Alemanha e no Mundial da Guatemala. No ano seguinte, conseguiu uma conquista inédita: 3º lugar em dupla masculina no Internacional da Espanha. Em 2013, voltou à Guatemala, desta vez para ser campeão da sua categoria e da classificação geral e chegou em 2º nas duplas. Falou, ainda, do 1º Campeonato Nacional de Parabadminton, realizado este ano em Campinas, onde foi 3º lugar no simples e 2º na dupla masculina. Atualmente ele ocupa o 7º lugar no ranking mundial de simples e o 27º no de duplas. Nas duas horas de treinamento, me espantei com um fato: o treinador de Gabriel, Marcel Smouter, jogador profissional, holandês, também é cadeirante. Ou não? Em um dado momento, ele se solta da cadeira e, mesmo com alguma dificuldade, começa a caminhar e gesticular algumas instruções. Durante a entrevista, toco neste assunto. O jovem conta que, com Smouter, os treinamentos melhoraram muito, pois ele consegue ensinar na cadeira e fora dela, dando dicas para melhorar a movimentação e o posicionamento. Acompanhando a entrevista, pergunto a Smouter o que acha do garoto. Mesmo não sendo fluente em português, ele entende e responde: "Muito bom. Antes, pior. Agora, melhorando e com o tempo vai melhorar mais". O técnico complementa dizendo que a evolução tem a ver com a nova cadeira adquirida, a qual deve chegar ainda este mês. Mais alta e de melhor movimentação, suas "pernas" custaram cinco mil reais, bancada do bolso do atleta. A diferença da cadeira está na terceira roda, menor, mas que ajuda na sustentação. Na vida social, Gabriel procura acompanhar seus amigos em todos os lugares, seja em festas da faculdade, baladas ou até mesmo na primeira viagem que fez sozinho, quando foi para Porto Seguro-BA, no terceiro ano, com os colegas de escola. O atleta faz questão de afirmar que a ajuda dos “brothers” é essencial, principalmente na locomoção, seja para andar pelo local ou descer algum degrau ou escada. Após quase duas horas de bate-papo, seu técnico se aproxima e pergunta se já estamos acabando, pois Gabriel precisava ir embora – é
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ele quem leva o atleta para casa depois de todo treino -. Para última dúvida, pergunto sobre uma tatuagem chamativa no antebraço direito, próxima a data de nascimento dedicada à mãe. Uma imagem, bem desenhada, de duas mãos juntas como se tivessem agradecendo aos céus. A justificativa é de que foi feita como forma de homenagem para agradecer: “sou feliz com a vida que levo, com as coisas que tenho, tento não reclamar de nada”.
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Valdemir
Uma grande surpresa em um dia comum Por Mona Carolina
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Sr. Valdemir Lopes não é um homem de fácil acesso. No mínimo três semanas foram precisas para conseguir inicialmente um contato via telefone. Com 47 anos, três lojas de assistência técnica e mais ou menos nove funcionárias. “Valdemir está em uma reunião”, “Valdemir está atendendo”, era o que eu escutava de algumas de suas funcionárias quando tentava contato. Para quem precisa de algumas paravas de Valdemir, talvez tenha a primeira impressão de que ele não gosta de muito proza, assim como eu tive. Mas, garanto, a persistência valeu a pena. Um poço de humildade e uma história de superação é o que esse homem tem para apresentar. Nascido em Alto Alegre do Pindaré, em Maranhão, as oportunidades foram poucas. Vindo de uma família humilde, Sr. Valdemir aprendeu a ler e escrever há apenas 26 anos atrás. Com uma calça e uma camisa social, sou recebida por Valdemir em uma de suas lojas. Um cabelo escuro, bem cuidado e um sotaque diferente dos que eu estou acostumada. “Porque gostou da minha história e escolheu ela para contar?”, foi como Sr. Valdemir começou nossa conversa que durou em média uma hora.
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Particularmente, há tempos eu não escutava uma história de um exanalfabeto, assim, tão atual. Quando criança Sr. Valdemir não pensava em estudar. Sua mãe, uma doméstica batalhadora, o deixava com os dois irmãos mais velhos para poder trabalhar. “Meu pai faleceu quando eu tinha 4 anos. Morreu depois de pegar uma pneumonia que não foi tratada como deveria”, com os olhos mais baixos e demonstrando ainda lamentar à morte do pai, é que Sr. Valdemir conta uma difícil fase de sua vida. No local onde a maioria das pessoas trabalha, mas poucas têm oportunidade de estudo, as famílias tentam ganhar a vida como podem. Sem saber ler e nem escrever, Valdemir trabalhou desde criança. Ajudava sua mãe em casa, levava comida para seus irmãos no trabalho, entre outras funções relacionas a família e a batalha diária a favor da sobrevivência. Em Alto Alegre do Pindaré, ainda na adolescência, seu primeiro trabalho fora de casa, foi ajudante em uma loja - de materiais e peças para a casa como foi a definição de Valdemir. Atrás dos balcões com 14 anos, ele estava ali para ajudar a sustentar a casa. Após esse, outros empregos foram surgindo, porém, existia sempre uma barreira: o analfabetismo. “Eu sempre sonhei em levar uma vida normal. Como algumas crianças que eu via. Indo para escola, voltando para casa para estudar. Mas por conta da vida dura que minha família levava, eu não podia estudar. Ou eu trabalhava para me alimentar ou eu estudava e morria de fome.” Ao conversar com Valdemir, sinto que o ex analfabeto sente vergonha de seu passado. Em vários momentos da conversa, essa vergonha foi mencionada direta ou indiretamente. Com 17 anos, Valdemir sentia a necessidade de aprender a ler e escrever. Ele sabia da importância que aquilo teria para o seu futuro. Nessa época, ele trabalhava como ajudante de um pintor. Fazia serviços pequenos, como cobrir móveis e buscar materiais que faltavam para o trabalho. Até que o destino o colocou no local certo. Dia 14 de março, Valdemir precisava acordar às 5 da manhã e começar mais um dia de luta. Como de rotina, Valdemir levantou, comeu um pão com margarina e foi para a calçada de casa esperar o pintor que passava todos os dias para buscá-lo. Ao chegar na casa onde iriam começar um novo trabalho, em uma cidade próxima à Alto Alegre do Pindaré, Valdemir conheceu a senhora Maria Rita, concidentemente ou não, uma professora de português. “Como nós
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passava uns dias trabalhando na mesma casa, sempre acabava conhecendo os donos e criando até amizade com alguns deles. Até que eu contei da minha vontade de aprender ler e escrever para Maria Rita.” E ela não deixou o desejo de Valdemir passar despercebido. Sem pensar duas vezes, a professora ofereceu aulas particulares gratuitas. Foi aí, que Valdemir viu a esperança de mudança para o seu futuro. Como ele ainda precisava continuar os trabalhos, os horários para estudar eram reservados na noite. Valdemir pegava um ônibus, geralmente 3 vezes na semana, com um sorriso no rosto – como ele conta, e ia até a casa da Maria Rita, a professora, para aprender a ler e escrever. Durante 4 anos, entre pausas e recomeços, ele foi aos poucos mudando completamente sua vida, pois o fato de se tornar alfabetizado, abria portas que antes estavam fechadas. Após sair daqueles dados, que mostram o número de pessoas analfabetas, as oportunidade cresceram cada vez mais. “Quando você aprende ler, escrever você pode trabalhar em outros lugares com outras coisas melhores. E não ficar eternamente como ajudante de um e de outro.”, e foi aí que começaram as chances de crescer profissionalmente. Com 22 anos Valdemir conheceu Tamires Duleba, sua atual esposa. “Tenho muito orgulho do Val. Ele tinha tudo para ser mais um desses que morrem sem saber ler e escrever. Mas ele deu a volta por cima. Claro, com a ajuda do destino com a batalha, hoje têm tudo o que têm por mérito só dele”, a esposa cheia de orgulho, declarado, conta. Aos 28 anos, Valdemir casou e junto a esposa mudou-se para a cidade de Várzea Paulista –SP, cidade de um grande amigo o qual o influenciou em mudar. Atrás de maiores oportunidades tanto de estudos, quanto de emprego, o casal arriscou. Com experiência em diversas, pequenas, áreas desde os 14 anos e com sua esposa formada em administração de empresas, Valdemir abriu na cidade onde hoje vive, uma loja que presta serviço de assistência técnicas para produtos de cabelereiros. “Estou com Valdemir desde que ele abriu a primeira loja praticamente. Ele é um patrão incrível. Uma pessoa bondosa e humilde. Acredita que ele não gosta nem que chame ele de chefe?”, me contou uma de suas primeiras funcionárias da loja, Beatriz Tavares.
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GENTE DO POVO
Igor
O registro oficial de um artista de rua Por Guilherme Mazieiro
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o fim de tarde frio do dia 28 de maio, a mesa de apreensões do 1º Distrito Policial de Campinas tinha duas facas, 12 celulares, R$ 1,250, algumas porções de maconha, crack, cocaína, um alicate e um violão. Ao lado dela, uma cadeira preta e velha estava vazia. O braço de ferro escondia um rosto encoberto por entre agasalhos e outras três pessoas detidas por roubo e tráfico de drogas. O ambiente tenso estava quieto. Minutos antes, 23 homens fervilhavam o hall da delegacia até prestarem esclarecimentos sobre as drogas e armas. No entanto, 19 foram liberados sem maiores complicações. “Não quero nada, só ir embora. Vi que esse lugar não é para mim”, disse o artista de rua Igor Cardoso Filho, de 37 anos. O paraense fora assaltado no início daquela manhã próximo à Rodoviária de Campinas. De todos os pertences que estavam na mesa, só o violão era seu. Por alguma razão, tentava suprimir o sotaque nortista durante seu depoimento. “Acordei pela manhã e ia para rua 13 (de maio) tocar minhas músicas. Logo saindo do albergue, dois cabras vieram pedindo tudo e mostrando faca, eu não tinha nada. Nem celular, nem dinheiro, nem nada. Só meu violão”, lembrou categórico. Com o sonho de gravar um CD de músicas sertanejas, inspirado na carreira de Eduardo Costa, saiu de Tucumã-PA (a 939 km da capital
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Belém) há dois anos com seu violão para tocar pelas ruas de São Paulo capital e adjacências. “A vontade é mostrar para o pessoal meu trabalho e tentar a vida com música. Até lá eu vou andando pelo mundo e cantando as canções do guerreiro Eduardo Costa e outros caras como Zezé di Camargo e Luciano, às vezes alguma música minha também”, contou. Para economizar o pouco que ganha, dorme em albergues públicos. “O único problema é que tem muito parasita nesses lugares. Gente que fica a vida toda atoa por aí e são um pouco perigosos. Por isso também durmo abraçado com meu violão”, analisou relutante. Acordou desanimado com o céu nublado daquela quinta-feira em Campinas. Saiu cedo do Samim (Serviço de Atendimento ao Migrante, Itinerante e Mendicante), albergue localizado na avenida Francisco Elisário, 156. Considerou seu quarto dia na cidade feio e sem perspectiva de bons ganhos com a cantoria. “Dez minutos após sair para trabalhar, eu lembro que me recusei a dar meu violão aos bandidos, aí me deram uma chave de braço. E quando estava desmaiando começaram a me bater muito. Tô todo arrebentado”, contou. Seguiu com o depoimento em que contava sobre o que viera fazer em Campinas e o que tinha acontecido. “Tô de passagem na cidade. Já não tenho parada certa, e minha mãe tá caducando. Vai morrer logo. Preciso ver ela antes de qualquer desgraça. Ver ela antes da morte é mais valioso que o meu CD. Só tenho ela nesse mundo”, ponderou. O topete estava um pouco torto. Marca da luta que travou contra os socos e pontapés dos assaltantes. O rosto era duro e seco. Riscado como estado do Pará, na régua. A maxila fugia do rumo das orelhas e aumentava ainda mais a densidade da barba que brotou de alguns dias na pele morena, meio negra. Dos olhos, apenas um se mantinha aberto. O da esquerda. Mirava longe, emoldurado em uma feição vazia como o sertão. O único feixe de luz que emanava de Igor saia desse lado do rosto. Cara tão disforme e simbólica que mais se assemelha a um espelho de “Busto e Paleta”, do espanhol Picasso. As mãos grossas de quem já trabalhou na terra lutam para se encaixarem rápido nas casas certas do violão e não perderem tom.
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O comandante da Guarda Municipal, Rodriguez, contou como os suspeitos foram abordados. “Ele (Igor) já chegou até nós, na rua, bem machucado e desnorteado. Só queria achar o violão dele a qualquer custo. Aí que começamos nossa movimentação pela região”, disse Rodriguez. “Fiquei desacordado por algumas horas no chão. Só aí me dei conta do que tinha acontecido e fui procurar meu violão”, relembrou. Com voz chocha contou do dia em que escapou de um assalto em São Paulo, “no meio daquela correria” do Centro. Foi há uns quatro meses. Dois rapazes que o seguiam na rua partiram em disparada atrás dele. Igor, trombando com os passantes, manteve certa distância e pulou de “um muro alto que nem sei dizer onde é. Só me lembro deles parando de correr e indo cada um para um lado. Foi milagre de Deus”, garantiu. O comandante da GM, menos interessado no violão e Igor, relatava o êxito da apreensão. “Aí, com o trabalho efetivo conseguimos recuperar o violão e desarticular um grupo de 23 indivíduos que estavam com drogas e armas brancas, além de um número excessivo de celulares. Conseguimos uma mobilização maior. Agora deixamos o caso nas competências da Polícia Civil”, afirmou afinado no discurso batido. “Eu vivo tocando pela rua, é minha profissão. Fiquei desiludido quando me roubaram. Agora que peguei meu violão de volta, estou feliz para caramba. Sai tão adoidado que nem fui em hospital nem nada. Só queria meu violão, só isso”, contou rindo. Após o pique para chegar a tempo de registrar as ocorrências no 1º DP, o fotógrafo Pedro Amatuzzi achou graça na história de Igor. Banal, mas curiosa entre uma pauta e outra. “Doidão, cara. Olha que loucura esse maluco fez para pegar de volta o violão dele”. Fato relevante ao ponto de valer uma réplica nas redes sociais da matéria sobre as apreensões do Jornal Destak. E só. Ao final do depoimento de Igor sobra a sensação de que tudo foi só mais um detalhe. Um imprevisto que custou algumas horas da penosa volta para casa. Das poucas marcas que deixa pelas cidades, em Campinas fez um registro oficial, um Boletim de Ocorrência. Sem muito riso ou pensamentos profundos, tocou para rodoviária, para ir à Araras, “caminho para o sertão, que tá no rumo de casa”, pontuou.
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Jovenilla
Uma baixinha cigana Por Jaqueline Zanoveli
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eu dia começa cedo. Às 4h40 já está de pé. Não que isso incomode. Seus 1,50m de altura receberam a dose certa de força e coordenação para encarar a jornada diária. Caminha rua acima, em direção ao primeiro dos cinco ônibus que tomará no dia. O ambiente dentro do transporte público talvez seja o lugar em que ela mais se revela. Dá bom dia a todos, sem se intimidar com olhares estranhos daqueles que estão só de passagem pela sua íntima linha. Em meio a braços levantados, pernas cansadas, maus humores diários e a educação esquecida em casa, sua figura destoa. Acaba deixando migalhas de sorrisos soltos para aqueles que ainda o prendem devido à céu claro que ainda não resolveu apareceu. Altura de criança, disposição de um adulto e história que poderia ser de um personagem com cabelos brancos. Essa é Jovenília Querino Ferreira, natural da cidade dos patos lá de Minas. Aos 13 anos, sua progenitora se casou e um ano depois, “Jô” já parecia ser grande o suficiente para entrar no comboio de sua família na busca por uma vida melhor. Talvez tenha sido o destino ou a falta de sorte que ainda reservavam para ela muitos pontos e vírgulas e um distante ponto final.
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Nos ares de Goiás A primeira parada do trem da vida da “Baixinha” foi Anápolis, Goiás, onde muita coisa seria construída e lembranças guardadas. Uma terra sem lei, em que brigas faziam parte do cotidiano da comunidade e da família. “Meu pai era valente pra caramba” confessa a menina que brincava com bonecas de sabugo de milho enquanto acompanhava-o na vida boêmia. Com sua mãe, dona de casa, senhora acomodada, de andar vagaroso e de palavras quase escassas, a relação nunca foi próxima ou afetuosa. O assunto parece incomodar quando é colocado na mesa, explícito na mágoa que aparece em sua voz. “Tudo que acontecia de errado era eu. Minha mãe não sabia o que é trabalhar na vida”, ela diz. Quem a tirou desse convívio descombinado e um tanto quanto traumatizante foi sua madrinha. Transferida para o que chama de “convento” – na verdade uma casa de crianças, que funcionava como colégio interno e abrigava meninos e meninas – já com sete anos, aprendeu a “arte da leitura e da escrita”, que gostaria de ter aprofundado. Os dias se passavam entre rezas de joelho e batidas com fio, para castigar a baixinha indisciplinada. Em um desses bilhetes premiados que a vida oferece, uma família americana foi até o escola e a adotou. Embora não soubesse, na época ela desperdiçou o que passou a percorrer quando crescida: o sonho de uma vida melhor. As incompatibilidades para comunicar e a tristeza aparente da criança levaram os adotivos a devolverem-na. Lá ficou até aquela fase em que não se gosta mais de ser criança, mas não se quer ser adulto. Quando a mesma madrinha a tirou do lugar em que desabrochou, muita coisa do lado de fora da fortaleza havia mudado. “Quando saí, descobri que meu pai tinha deitado um dia em sua cama e não levantou mais”. A vida dele esvaiu cinco anos depois. Fins e começos de vida Nessa etapa, embora nada parecida com um conto de fadas, a vida de Jô deve ter ganhado pinceladas dos irmãos Grimm. Na casa da madrinha, onde estava naquele momento, trabalhava como doméstica. “Não queria ser escrava, eu trabalhava e as duas filhas dela não.” Essa
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foi a explicação para a pulada de janela e a fuga para casa da mãe que Jô carinhosamente desenhou como mais uma peripécia de sua jornada. Lá se instalando, sua mãe já tinha “amigado” – ou ido morar junto, como se costuma dizer - com outro homem. De beleza natural e discreta, chamava atenção das pessoas, segundo a baixinha. Quatro meio irmãos já dividiam ainda mais atenção com a já distante Jô. A vida um tanto solitária da baixinha não demorou a ganhar um novo personagem. Próximo a roça onde morava como agregada e trabalhava de sol a sol para os patrões, Almerico trabalhava sob o mesmo peso da enxada e foi o escolhido de sua mãe para ser seu marido. “Conhecia hoje, não aturava dois meses e já tinha que casar. Acabei casando sem gostar”, foi só o que ela disse sobre a tradição de casamento arranjado que pairou sobre ela naquela época. O “casamento chiquérrimo” foi descrito de maneira rápida, como um capítulo de novela não tão bom que na opinião dela não vale a pena ser revisto. Apesar disso, há detalhes que parecem ter disso cuidadosamente pinçados como que para sempre lembra-la de que o episódio aconteceu. “Os meus patrões foram padrinhos e me deram um jogo de jantar de 28 peças”, precisa. “Eu era sem juízo, larguei ele e fui dançar”, lembra Jô. Ele disse para minha mãe ir buscar a filha dela, “ela casou comigo e tá lá”, reclamou o marido sobre a noiva passarinhando. A saga do pobre continuou quando chegou a noite de núpcias. Fugida pra casa da mãe, sem querer seguir o itinerário traçado para uma noiva. Sem rota de fuga dessa vez, a baixinha hasteou a bandeira de rendição para o ciumento marido, com quem ficou um ano e quatro meses até jogar fora de vez todas as bandeiras e lençóis brancos. Um cigano em minha vida Já com 32 primaveras, o talvez personagem principal da obra de arte que é sua vida, entrou em cena. Com o novo namorado Samuel, “amigou” em um ano e partiu rumo a Manaus, com a promessa de um bom ganha pão. A família do recém-agregado juntou-se às malas, mas logo se tornou o motivo para botar o pé na estrada. Cego de um olho, o pai de Samuel não aguentou viver por muito tempo em uma cidade em que o sol parece tocar a careca de quem anda pela rua. Pegaram o caminho de volta para Brasília, “terra boa”. Nessa altura da conversa, talvez o único
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ponto em que nossas linhas de vida profissional se aproximaram, me chamou a atenção. “O Samuel trabalhava no Correio Braziliense”. “O jornal?” “Aquele mesmo ué, o jornal. Trabalhava como jardineiro.” Nunca chegou a ir até o local, mas bisbilhotava uma ou outra edição que servia para forrar o chão as vezes. Talvez o jornalismo um dia também fez parte da vida da baixinha. “A gente tentou toda a vida, mas nunca deu muito certo, porque o Samuel nunca para em um emprego, então a gente saia igual cigano, ia tentar a vida no próximo lugar.” Depois de Brasília, após saídas rápidas e repentinas, os mochileiros seguiram para Foz do Iguaçu. “Por mim eu parava, eu nunca fui de mudar muito de lugar”, conta. Na cidade, morava na divisa com o Paraguai, próximo ao rio Paraná. “Um dia foi perguntar no trabalho do Samuel, ele não aparecia há uma semana. Tava lá no Paraguai”. Jô acabou se rendendo também as facilidades e oportunidades da fronteira. Na Ponte da Amizade, que liga os dois países, fez durante dois meses o transporte de mercadoria pras pessoas que excediam o limite de compra, as chamadas ‘”mulas”. Mas um trabalho que não durou até a tinta da casa secar. Depois de Guaíra, no Paraná, a dupla se assentou em Campinas, interior de São Paulo, onde conseguiu ficar por mais de um ano. Era 1994 quando ancoraram na cidade e, sem ter onde morar, optaram por participar da invasão “São José”, de acordo com Jô, em um local próximo ao que hoje é o bairro Ouro Verde. Lá, um barraco de tábua era o que os protegia da terra que ainda levantava com a ausência de asfalto. “Depois o prefeito comprou um terreno e levou a gente pra morar num novo bairro, o Vida Nova, em casas da Cohab”. Lá, pelo menos, as casas tinham dois cômodos. Ela começou a trabalhar em uma empresa de limpeza e ele na Apae. Enfim um novo lar Campinas foi o berço em que a baixinha se habitou e conseguiu o melhor emprego. No entanto, a mineirinha não esquece mesmo é de Anápolis. “Se pudesse eu voltaria, mas enquanto tiver vida e saúde, estamos aqui.” Aos 40 anos, retomou os estudos e completou o ensino médio, “para tentar ser alguém na vida” e um primeiro passo para realizar seu reconhecidamente distante sonho, de ser professora de inglês. “Me
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arrependo de ter seguido o Samuel porque aquele homem não para em nenhum emprego, além de ter arrumado mulher na minha ausência”. Os arrependimentos e sucessivos desafios não parecem ter deixado marcas. Pelo menos é o que acreditam aqueles que há conhecem a tempos e aqueles companheiros de trem da vida com os quais ela viaja todos os dias. “Quando a Jô não vai, o povo fala, cadê ela?”, conta Ivone Silva, companheira da linha 116. Para Neusa Heli, patroa há 17 anos da baixinha, quem observa seu trabalho e seu jeitinho “teimoso mas competente” não imagina que ela passou por tudo aquilo. “Sei que ela tem e teve uma vida complicada, mas todo mundo gosta dela porque é uma pessoa muito boa. O pouco que ela tem ela divide com os outros se precisar” conta. Para ela, a falta de estrutura familiar e a convivência com outras pessoas ao longo da vida – que aos poucos foram se mostrando diferentes, segundo Jô - acrescentaram em nada na vida dela. “Mas ela é feliz na medida do possível”. Resta aos outros descobrir o segredo dessa baixinha cigana para nunca se deixar abalar.
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Antônio
Antônio “Tony” Zanello Por Danilo Christofoletti
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u não sou uma pessoa bitolada, nunca deixei me bitolar na vida. Por esse motivo que sou solteiro. A felicidade é uma coisa muito relativa. Temos momentos felizes e momentos mais tristes durante nossa vida. O que posso garantir é uma coisa: eu não sei o que stress. Até porque o stress é uma coisa que surge na vida das pessoas que não fazem nada, que por isso tornam-se bitoladas. E eu não sou uma pessoa bitolada. Nunca deixei me bitolar. Não conheço a depressão. É, acho que me considero uma pessoa feliz” Essa frase é de Antônio Zanello, um senhor de 83 anos de idade, figura folclórica de Rio Claro, cidade de aproximadamente 200 mil habitantes, localizada a aproximadamente 200 quilômetros da capital do estado, São Paulo. Na cidade é conhecido pelo apelido de Tony, alcunha que adotou com alegria. Antônio, só para questões legais ou para familiares que moram fora da cidade. Por que falar do Tony? Porque Tony tem características únicas. A de maior destaque é a menos importante, por um desses motivos que a vida não explica. Tony, um senhor de 83 anos, passa os dias andando de bicicleta ou patinete pela cidade, vestindo apenas uma calcinha, um sutiã, um par de meias e alguns adereços de crochê ou tricô, feitos às vezes por ele mesmo. Marquei de tomar um café com Tony. Na primeira vez, ele me deu bolo. Não apareceu. Na segunda vez resolvi não deixar ao acaso e disse que passava buscá-lo em casa. Fui de bicicleta, pois Tony não
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gosta de carros. E odeia ainda mais motocicletas, pois essas sim são responsáveis pelos problemas do mundo, da camada de ozônio, do nervosismo entre as pessoas além de serem o câncer do trânsito, comenta o simpático senhor. Ele mora na avenida 40A, no bairro Vilã Alemã, há 500 metros de minha residência. No trajeto, curto por sinal, até uma sorveteria no bairro ao lado, senti os olhares de todas as pessoas ao redor, fitando-nos com extrema curiosidade, mesclada a uma malícia. Assustei-me. Tony nem ligou. Está acostumado. Nem sempre fora assim. Quando era Antônio, ou melhor, senhor Zanello, era de tudo um pouco, especialistas em atividades historicamente masculinas. Já foi marceneiro, mecânico e eletricista. Professor de colégio técnico e professor de física. Vestia-se como mandam os modos e bons costumes. Que apenas servem para deixar as pessoas bitoladas. E Tony nunca se deixou bitolar. Romualdo Christofoletti foi aluno de Antônio (ele enfatiza o Antônio, não gosta de chamá-lo pelo apelido) no colégio técnico. Hoje com 54 anos, Romualdo lembra-se de Zanello com um respeito digno de mestre e salienta a inteligência do mesmo: “Um dos homens mais inteligentes que conheci. Fala bem sobre tudo.” Ao se aposentar, tornou-se Tony, começou a vestir-se dessa maneira exótica e hoje luta para explicar que não é homossexual: “Não tenho nada contra os gays. Não tenho nada contra ninguém. Ninguém é melhor que ninguém. Mas não gay. Se eu fosse gay, teria silicone, batom, faria unha e falaria fino. Apenas me visto assim porque me sinto confortável dessa maneira.” Depois de finalmente chegar à sorveteria, peço um sorvete para mim e um para ele. Sentamo-nos juntos. Nunca me senti tão julgado em toda minha vida. Tony nem ligou. Ele conta que vive sozinho. Não tem parentes diretos em Rio Claro, apenas uma sobrinha, já casada. Passa o dia cuidando da casa e pratica um hobby ou outro. Também conserta as coisas. Conserta tudo o que vê pela frente. Percebo os olhares cada vez maiores das pessoas ao redor. Alguns com carinho e curiosidade quase ingênua. Outros olhares são reticentes. Outros são raivosos. Como se o senhor a minha frente estivesse cometendo um crime. E ele não o está. Alvo de vários processos ao longo da vida, quase todos por atentado ao pudor, saiu-se inocente de todos. O mais trabalhoso chegou ao Supremo Tribunal Federal em Brasília. Três desembargadores derem o veredicto de inocência por constatar que o
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atentado ao pudor configura-se no ato e não na vestimenta. Vitória para Tony e para o bom senso. De todas as situações embaraçosas e preconceituosas que enfrentou, uma em particular o chateou bastante. Foi até a Caixa Econômica Federal e assim que entrou, foi retirado à força pelos seguranças. Teve que voltar acompanhado de advogados. Ao receber uma retratação do diretor, foi informado de que o mesmo nem tinha conhecimento do ocorrido. A atitude foi tomada por um ex-diretor que apenas estava lá e deu a ordem. Outro causo foi a guerra instalada entre Tony e a Guarda Municipal de Rio Claro, que lhe deu voz de prisão duas vezes. Os motivos: Nenhum. Na segunda vez foi ainda pior. Tony foi ameaçado em um hospital público por um homem. A Guarda foi chamada e ao invés de prenderem o ameaçador, prenderam Tony, com a alegação de que ele era o único “diferente” naquele ambiente. Tony nunca se casou. Perguntei o porquê. É o único momento da conversa em que o senhor a minha frente baixa a guarda, o tom da voz, mostra-se vulnerável, talvez machucado. Ele conta que ainda adolescente teve que sair de casa, pois seus irmãos e pai não aceitaram suas ideias e jeito de levar a vida. Foi trabalhar e sofreu preconceito no trabalho também. Apaixonou-se por uma moça, “linda”, diz. E o pai dela proibiu o relacionamento. A partir de então, Tony não quis mais casar-se. Percebeu que não era para ele. Seus filhos e esposa iriam sofrer muito. Ele se anima novamente quando começa falar da televisão. Ele odeia a televisão. Para Tony, não passa de um tubo, de uma caixa que dita a moda e as regras sociais, que manipula tudo e a todos. A conversa vai terminando. Aos 83 anos, ele não para. Pedala entre oito e dez quilômetros por dia. Nas eleições municipais de 2012 foi candidato a vereador (afirma que só não ganhou porque faltou verba para a campanha) e pretende se lançar novamente no próximo ano. Versa sobre política, sociedade, comportamento, politicas públicas e abstrações com imensa qualidade e eloquência. Odeia silogismos idiotas. Tony gosta roupa íntima. Gays usam roupa íntima. Logo, Tony é gay. Isso o deixa louco. “É estupidez”. E é bitolação. E Tony definitivamente não é uma pessoa bitolada.
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Marcelo
O famoso pipoqueiro Por Carla Mariah Bampa
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arcelo Garcia, mais conhecido como Marcelo Pipoqueiro, nasceu em Valinhos no dia 28 de março de 1969, casado e vem de uma família de pipoqueiros bem conhecida na cidade de Valinhos. Seu pai, mais conhecido como Seu Mário, foi quem começou com a venda de pipocas em frentes das escolas por volta de 1970, local onde fazia sucesso com os estudantes e conseguia vender pipocas quentinhas, que tinham acabado de sair. Sua mãe, que recebeu em uma casa simples e local que faz a paçoca e a geleia, conta que a infância foi difícil, porque além de ter Marcelo, havia mais dois irmãos para cuidar, e assim, não puderam acabar os estudos. Marcelo cresceu vendo o pai e o irmão mais velho com seus carrinhos de pipoca estacionados não só em frente às escolas de Valinhos, mas também em praças aos finais de semana, onde várias famílias levavam seus filhos para brincar. Como não conseguiu concluir a escola, porque tinha que trabalhar para ajudar no sustento da casa, resolveu ter o seu próprio carrinho. E seu começo foi onde está até hoje, na Praça 500 anos, localizada na Avenida dos Esportes.
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No começo era facilmente encontrar ele de terça a domingo na praça, a partir das 17 horas, horário que as pessoas caminhavam e depois passavam lá pra comprar algo, ou os pais levavam seus filhos pra comer pipoca e milho no pratinho. Só que com o passar do tempo, isso foi sendo modificado pelo motivo de ter pouca procura em dias de semana, diferente do que ocorre aos finais de semana. Assim, teve que mudar a sua rotina de trabalho e fazer com quem pudesse atrair mais pessoas para que tivesse mais venda. O que fez que isso ocorresse, foi o começo da venda dos doces que fazem sucesso por lá, paçoca e geleia, feitos por sua mãe que conta que o sucesso vem porque é sempre feito com carinho, e claro pelo carisma que o filho tem quando atende seus clientes. Uma senhora chamada Mariolina, conta que é apaixonada pela paçoca vendida na barraquinha de Marcelo, quando meu filho saia do trabalho a noite sempre passava lá para comprar pra mim, mas nos dias de hoje, sou eu mesma quem compro quando vou ao supermercado de sexta à noite. Explica que gosta de trabalhar com isso, pelo motivo de conviver com pessoas diferentes a cada venda, e também pelas amizades que podem ser criadas. Enquanto, conversávamos alguns carros passam nessa avenida, considerada uma das principais do município, e me mexem com ele, assim é possível enxergar como ele é popular e querido por todos. Nessa profissão fica claro que para você conseguir se destacar entre os outros, é tratar bem o cliente para que possa voltar sempre, fazer agrados. E para ele, o que ajudou foi ser filho de um grande pipoqueiro da cidade. Dessa maneira fazendo com que a população tenha mais confiança e, claro voltem sempre que possível.
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Elisabeth
Os dois lados de Betty Abrahão Por Amanda Januzzi
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etty Abrahão é uma das personalidades da alta sociedade campineira. Betty sorri com os olhos e ri com a alma, bem alto, para todo mundo ouvir. Mas Betty também chora, em algum lugar, talvez no escuro. Betty frequenta todas as festas badaladas da high society de Campinas. Betty também fundou e foi a primeira presidente do Hospital Boldrini, referência em tratamento de crianças com câncer. Betty é dona da revista Absoluta. Betty é absolutamente solidária. Betty é conhecida e reconhecida por onde passa, mas nem todos a conhecem de fato. Sua voz rouca não a impede de falar em tom elevado. Suas roupas cheias de estampas diferentes chamam a atenção de todos. Seus cabelos, com mechas que vão do louro ao preto, passando por castanho, ruivo e outras cores, gritam que aquela não é uma pessoa comum e ela própria se considera incomum, aliás, diz ter pavor de ser comum. Desde criança já usava roupas extravagantes, muitas jovens, falava alto e questionava tudo. Maria Elisabeth Abrahão Aburad nesceu em 29 de janeiro de 1950, pontualmente às 7h30, na Casa de Saúde de Campinas. Filha de Amil Aburad e Esmeralda Abrahão Aburad, neta de Jorge e Maria Aburad e
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Constantino Abrahão e Nibiha Waquim, Betty, como é conhecida desde pequena, tem sangue libanês correndo em suas veias. Primogênita da família foi muito paparicada e mimada por todos. Sempre foi geniosa e decidida. Responsável, mas não concordava com muitas regras impostas pela educação rígida dos pais. Sua mãe diz que ela era ousada, mas que sempre sabia onde pisar e o que fazer para chegar onde pretendia. Betty sempre teve tudo aquilo que queria, fosse pela sua própria determinação ou pela família. A menininha era tão mimada que chegou a ser sequestrada por uma das tias paternas durante uma viagem. Nada tirava sua atenção, nem mesmo depois que as irmãs e outras crianças da família nasceram. Todos aqueles que conviveram e convivem com Betty afirmam que seu jeito de ser sempre foi o mesmo desde criança, ela carrega seus valores e transborda carisma, conquistando quase todos. Ela mesma se define como uma mulher de fé, guerreira, batalhadora e vitoriosa. Betty é uma figura bastante irreverente e ousada, muitos a consideram caricata. Mas aqueles que a conhecem de verdade sabem que não é bem assim. - As pessoas me olham e têm uma visão de festa, porque sou bastante alegre, alto astral, mas na verdade não é assim o tempo todo; tem festa também, mas não só isso. Betty Abrahão está no mundo da comunicação desde que se entende por gente, por conta de sua família muito bem relacionada e sucedida. Foi seu tio paterno, Jamil Abrahão, quem a influenciou e inspirou nessa área. Ele foi considerado o maior colunista social de Campinas, deixando um legado de 30 anos em textos publicados em jornais diários sobre os eventos mais badalados da cidade. Tudo isso tornou-se referência para a sobrinha, que desde jovem vislumbrava uma carreira na comunicação. E, como boa aquariana que é, ela conseguiu e segue os passos do tio até os dias de hoje. A comunicação está intrínseca no DNA de Betty, ela não poderia ter feito outra coisa durante sua vida, a não ser se comunicar. - O que eu mais gosto de fazer é me relacionar, falar, escrever... A Revista Absoluta é fruto disso e muitas de minhas outras conquistas também. Uma dessas conquistas a que se refere chama-se Centro Infantil Boldrini, o qual ela considera seu quarto filho. Desde menina Betty teve a mãe como espelho quando se fala em
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solidariedade. Quando criança via Esmeralda trabalhando para ajudar as pessoas. Ainda jovem, aos 19 anos, Betty se apaixonou pelas crianças doentes de Santa Casa de Misericórdia de Campinas, que ficava bem em frente à casa de seus avós maternos. Era ali que ela passava seu tempo livre, tentando se aproximar das crianças que esperava por atendimento médico. A menina criou o hábito de contar histórias, distribuir balas e dedicar sua atenção àquelas crianças que precisavam tanto de socorro. Era também na Santa Casa que trabalhava Silvia Brandalise, que havia feito doutorado em coagulação sanguínea e montou o primeiro laboratório de coagulação de Campinas. Os caminhos de Betty e Silvia se cruzaram ali mesmo, pelos corredores do hospital, onde foram apresentadas pela tia de Betty, Olga Abrahão. Mas, antes disso, Betty se casou com Delmo Delgado, em festa luxuosa no Jóquei Clube de Campinas, numa segunda-feira do ano de 1970. Oito meses depois de sua lua de mel, nasceu sua primeira filha, Isabelle. Depois nasceram Mariella e Gabriella. Ao completar cinco meses, Gabriella ficou doente. O leite da amamentação entrou em seu pulmão e poderia lhe causar uma infecção fatal. Betty então levou a menina para o Hospital Irmão Penteado, onde ficou internada por quatro dias. A mãe não se ausentou por um minuto sequer e chegou a ouvir dos médicos que a filha estava desenganada. Desesperada, a socialite se lembrou de Silvia e pediu que a médica fosse ver a menina, mas a resposta continuou negativa. "Betty, sua filha não vai sobreviver". Ninguém mais tinha esperança, mas a dela continuava forte e inabalável. Betty então fez um 'pacto com Deus' e jurou que se a filha se curasse, ela ia ajudar crianças que precisassem de algum modo. Gabriella se salvou. Betty então se aproximou de Silvia e soube, pela médica, sobre a dificuldade e precariedade de tratar crianças com câncer. Mesmo sem saber nada sobre o tratamento, Betty percebeu que aquele era o caminho para cumprir sua parte do pacto que fizera. Depois, conversando com o tio Jamil, logo após a morte de seu pediatra, Dr. Boldrini, teve a ideia de homenageá-lo, então criar uma instituição com seu nome. Aos 26 anos, quando era presidente do Clube da Lady de Campinas, Betty viu ali um modo de conseguir colocar seus plano em prática. E, depois de deixar muitos obstáculos e olhares
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preconceituosos para trás, conseguiu. Tudo começou com uma pequena casa na rua Teodoro de Lima, uma maca já usada e uma mesa de fórmica amarela, com duas cadeiras doadas por um médico. Além da vontade que Betty tinha de dar certo e da competência de Silvia Brandalise. Mas isso ainda não era quase nada. No dia 25 de janeiro de 1978, foi aprovada e oficializada a Diretoria do Centro Infantil de Investigações Hematológicas "Dr. Domingo Adhemar Boldrini" e Betty era a presidente fundadora. - presidir o centro não foi fácil, porque eu era a única mulher entre muitos homens e isso era muito incomum, mas eu tive apoio incontestável deles, me ajudaram muito. Foi uma época muito gratificante e difícil ao mesmo tempo. - tratar o câncer era muito complicado, porque as pessoas nem pronunciavam esse nome, era tido como doença maldita. A luta foi grande, o preconceito era muito, mas com um pouquinho de amor e solidariedade a coisa vai pra frente, consegui vencer, graças a Deus. Lidar com a morte era difícil para Betty, porque tinha as três meninas pequenas dentro de casa. - Era uma luta insana de a noite falar que não queria mais e no dia seguinte ia à luta, era uma guerra minha comigo mesma muito difícil. Mas a vida trouxe tempos difíceis muitos anos depois. Em 1999 sua filha do meio, Mariella, deu à luz Felipe aos 26 anos. Cerca de 40 dias depois do nascimento de seu neto, Betty recebeu aquela que seria a pior notícia de sua vida: sua filha veio a falecer. Segundo Janayna Arouca, que escreveu uma biografia sobre Betty, o assunto é proibido. - Ela chora muito quando isso vem à tona, é melhor não tocar nessa ferida. Hoje, já se vão 34 anos desde que Betty deixou a presidência do Boldrini. - É uma semente que eu plantei e que germinou muito bem, mas se não fosse essa semente naquela época, hoje não estaríamos ajudando tantas pessoas nem seríamos referência internacional no tratamento do câncer infantil. Betty Abrahão continua à frente da revista Absoluta e a família é sua prioridade. Considera uma conquista ter três filhas e seus netos, faz questão de acompanhar o crescimento de cada um deles. Isabelle, a filha mais velha, trabalha com ela assim como a irmã Gabriella, e afirma que a mãe tem uma das histórias de vida mais interessantes que
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conhece, é como se fossem muitas vidas em uma pessoa só. Ela vê a mãe como uma mulher determinada, com personalidade forte, decidida, lutadora e generosa. A fé inabalável de Betty fez com que chegasse onde chegou e conquistasse o que conquistou, segundo sua própria avaliação. Ela afirma que sua ligação com Deus é muito forte e que, se não fosse por Ele, não teria conseguido muitas coisas na vida. Com relação ao Boldrini, hoje sua participação é apenas social. - Eu acho que tem fases na vida da gente que a gente tem participação afetiva, depois a gente precisa dar oportunidade a outras pessoas. Ad maiora natus sum, significa nascida para coisas grandes. Betty aprendeu essa frase ainda quando jovem nas aulas de latim. Decidiu que essa seria a sua frase. E, como todas as suas outras decisões, foi mesmo. Betty Abrahão é grande e vai além de seu estereótipo.
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Cleverton
Entre desenhos e reflexões Por Bárbara Leão
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paixonado por desenhos desde a adolescência, o chargista, caricaturista, artista plástico e professor Cleverton Gomes, de Itatiba, faz sucesso por onde passa com a sua arte. Bem acompanhado da sua Kombi reformada e estilizada com cortinas, souvenirs, sofá, pia e até mesmo um telefone antigo, o carro é um chamariz para conhecerem a sua arte. No ano passado, o carro e o caricaturista fizeram com que os itatibenses colaborassem para uma campanha que vinha causando comoção nacionalmente. Intitulada de “Ajude Sofia”, tinha como objetivo arrecadar fundos para o tratamento de Sofia, bebê que nasceu com uma síndrome raríssima que impossibilitava o funcionamento normal do estômago, intestino e bexiga. Por conta de o transplante multivisceral que Sofia precisava ser realizado somente nos Estados Unidos e o custo para o procedimento ser alto para os pais, Gomes “armou” sua Kombi no estacionamento do Pabreu Mall, em Itatiba, chamou os amigos e o dinheiro de toda caricatura que ele fizesse seria arrecadado para o tratamento da pequena. E teve bons resultados. Hoje, um ano depois, Sofia está transplantada, se desenvolve bem e é motivação e inspiração para muitas famílias que possuem histórias parecidas.
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Todas as quartas e sextas-feiras o artista contribui para o jornal principal da cidade e, segundo ele, só consegue transmitir a mensagem que deseja de forma simples. As charges precisam ser atuais, mas a ideia do desenho pode surgir de uma conversa ouvida na fila do banco, ou na padaria. “Sou apenas um locutor de fatos que estão a nossa volta. Na maioria das vezes, com muito bom humor”, diz. Desde pequeno, encantado com os desenhos que via nos meios de comunicação, começou a perceber que este tipo de crítica levantava discussões e reflexões. “A charge é um cartum. Tem o poder de nos fazer enxergar outro ponto de vista referentes a política, problemas sociais, esportes e inúmeras questões do dia-a-dia”, ressalou Gomes enquanto desenhava seu discurso em sua mesa com recursos digitais que permitem que as imagens sejam confeccionadas com facilidade. Mas ele lembra ainda da época em que ia de bicicleta até o jornal em que trabalhava para levar as suas charges para serem escaneadas. Entre suas imagens preferidas está a publicada no Jornal de Itatiba, em 29 de março de 2013, que ilustrava o aumento do preço do tomate. A mesma charge foi publicada em seu Facebook no dia seguinte e teve mais de 56 mil compartilhamentos. Poucos dias depois, o artista descobriu que esta tinha sido uma das mais visualizadas em todo o País, segundo os portais UOL e Globo – que também publicaram o desenho. A arte chegou a ser mostrada também no programa Mais Você, apresentado por Ana Maria Braga, na Rede Globo.
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Thiago
(A)braços para Thiago Por Gustavo Lorón
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ara quem não conhece a região do bairro Vila Padre Anchieta, no distrito de Nova Aparecida, em Campinas, o pai de Thiago Oliveira Lino, Jorge Luiz Lino, passa o endereço de um autovidros. Isso porque, a casa deles, logo em frente ao comércio, está em uma rua nova, que não se encontra no GPS. Na tarde em que tomei um café com os pais de Thiago, a casa estava movimentada. Lá vive uma família cujo sobrenome poderia ser gentileza. Thiago foi quem me convidou para sentar. Miqueias, o garoto mais novo, lembrou-se de me oferecer um copo d’água. Jesana, a caçula, não se importou em perder algum tempo para procurar uma foto de Thiago no celular dela e me mostrar. Sem falar nos sorrisos de Pricila, a filha de Tamires, irmã mais velha de Thiago, que engatinhava pelo chão da sala. Até o cachorrinho Pingo, que com seus pelos pretos despenteados é extremamente simpático com as visitas. A fachada da casa apresenta uma pintura de crianças brincando com pipas, porque em um cômodo alugado funcionada uma loja desse brinquedo, a qual Thiago provavelmente não freqüentava muito. Ele prefere os jogos e o computador. Ao contrário do que contam os jornais, Thiago não soltava pipa no dia seis de janeiro de 2015. Ele estava em casa, quando atendeu aos pedidos de ajuda do primo mais novo, Samuel, o Muca, de nove anos, que passava férias na casa da namorada do pai, um sobrado na esquina ao lado do auto-vidros, onde Thiago nunca tinha ido.
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A pipa de Samuel se enrolou nos coqueiros que cercam a varanda desta casa. Thiago montou na grade branca, que agora apresenta manchas queimadas, e tentou alcançar a pipa. Vendo que o primo não conseguiria pega-la, Samuel jogou um pedaço de ferro, que encontrou por ali. A ingenuidade da infância resultou em um clarão vindo da fiação elétrica que se cruzava com as copas das árvores. Thiago não sentiu dor, mas percebeu que algo estava errado quando viu Samuel no chão, gritando. Os primos foram encaminhados para um hospital de Campinas, e três dias depois, Thiago foi transferido para o Hospital Estadual de Bauru, referência no tratamento de queimados.As pernas do garoto e a região da virilha foram as mais atingidas pela descarga elétrica. E os braços do menino, assim como os braços de Samuel, tiveram que ser amputados. Durante três meses no hospital, Thiago teve uma parada cardíaca, enfrentou a dor da perda dos membros, da raspagem de partes queimadas e a possibilidade de perder o órgão genital, ficou em coma induzido e passou pela UTI. Mas desafiou todos os diagnósticos, inclusive a probabilidade de óbito. No hospital em que Thiago ficou não há um médico chamado Miguel, conta Cirlene de Oliveira Ferreira, a mãe do garoto, em uma postagem do Facebook. Os pais do Thiago descobriram isso em uma visita ao filho que estava sereno naquele dia. O menino contou que durante o banho, o momento mais dolorido para ele, rezou para que Deus tirasse aquela dor. As orações parecem ter anestesiado o garoto, que viu um homem de branco. “Meu nome é Miguel. E você é muito amado, fique tranqüilo, está tudo preparado para você”, disse o homem, que para a família é o anjo Miguel, ser espiritual citado na Bíblia sempre guerreando contra anjos maus. A religião foi medicação tarja preta no tratamento de Thiago. Cirlene abre um sorriso quando se lembra da importância dos ensinamentos bíblicos para o filho. Jorge se orgulha também. “A fé salvou Thiago”, repete algumas vezes, enquanto se lembra dos momentos em que o filho canta os hinos da Igreja Obra da Restauração, em Campinas, onde ele tocava trompete, instrumento que aprendeu a partir dos 10 anos. No primeiro dia que foi para a igreja, após o acidente, Thiago sentou com o pai no último banco. Insatisfeito, pediu para ir mais pra
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frente. Então, perguntou se podia sentar junto com a banda. Cirlene me mostrou com orgulho a foto em que Thiago, com ajuda de um colega, conseguiu tocar o instrumento. Um interlúdio de esperança. “Aquilo o animou muito”, comentou Jorge. Thiago tem reações adversas desde que descobriu, por acaso, que teria que readaptar toda sua vida. Os pais ainda combinavam com uma psicóloga como contar para o garoto sobre a perda dos braços. Mas Thiago percebeu antes, quando não conseguiu pegar um copo d’água na mão de uma enfermeira. O primo mais novo reagiu com mais tranquilidade. Em um vídeo que Cirlene me mostrou no Facebook, o menino conta que iria tirar um cartão para não pagar o transporte público, enquanto a irmã emprestalhe os braços e ambos fazem piada. Os médicos disseram para Crilene que as atitudes distintas dos primos devem-se à diferença de idade. Aos nove, tudo parece mais fácil. Já Thiago está naquela idade que qualquer imagem no espelho é desaprovada. Dos cinco filhos de Jorge e Cirlene, Thiago é o mais vaidoso. Durante a minha visita, Thiago se vestiu com uma calça azul justa, o que preocupou o pai, devido às queimaduras da perna. Ele havia engordado desde que chegou do hospital com menos de 40 Kg, notou Jorge ao ajudá-lo abotoar a calça. A apresentação foi completa por camiseta rosa e um tênis cano médio. O cabelo com franja lembrava um ídolo de música teen. Mas ele só ia para a casa do avô Antonio que mora no mesmo bairro. Antonio carrega brilho no sorriso e nos olhos, principalmente na presença da bisneta Pricila. Quando ele chegou, Thiago dividiu os braços do avô com uma pilha de roupas que ele trazia. “Este neto é o meu orgulho”, disse Antonio durante o abraço. O carro de Antonio estava quebrado na garagem de Jorge. Porém, ele pegou emprestado do vizinho outro carro para passear com o neto, e distraí-lo, já que ficar parado é ruim na adaptação de Thiago. Foi Antonio também quem cuidou da casa e dos irmãos de Thiago, enquanto Jorge e Cirlene estavam no hospital com o filho. Às vezes, Thiago vai dormir tarde. Em outros momentos ele se desespera, o que é normal, como disse a psicóloga para Cirlene. As orações tendem a acalmá-lo. A superação diária é ressaltada pelo
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menino. “Vamos conseguir”, disse Thiago olhando carinhosamente para a mãe. Apesar dele ainda não ter voltado para escola, Cirlene lembra que o filho era um bom aluno e perto dele o riso era fácil. Sempre estava tirando sarro de alguma coisa. Ao meu lado, Thiago também fez piada. Pediu-me parte do dinheiro que eu ganharia na publicação de um livro dele, “porque esse negócio de livro dá dinheiro”, disse. E exigiu uma foto bonita na capa. Talvez uma que estava com o primo Samuel, dias antes do acidente.O menino está doido para rever o primo, que não se encontram desde o acidente. Cirlene já notou a ansiedade que surgiu no filho após a volta do hospital. Se antes ele era tranqüilo, agora preza pelo imediatismo. Thiago ainda precisa de ajuda para beber água ou espirrar um remédio na garganta e ainda tem que usar uma bolsa de colostomia, para não infeccionar as partes queimadas. Mas ele já aprendeu a jogar no computador com os pés e agora os familiares fazem uma campanha na internet para a arrecadação de dinheiro para a compra próteses. As próteses custam 138 mil reais, em média. Mas, ainda quando estavam no hospital, os pais de Thiago receberam a ligação do fisioterapeuta Anderson Tuzino Nolé, que ofereceu a mão de obra e conseguiu reduzir o preço para 75 mil reais cada uma. Thiago tem esperança que com elas possa voltar a ter uma vida normal, com braços e abraços.
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ESPORTE
José
“Um craque não parece, ele é...” Por Bettina Pedroso
O
s pés que cresceram correndo nos campos de chão batido e grama, ganharam chuteiras profissionais e percorreram o mundo atrás da bola. Aos 29 anos, o esquerdo sofreu uma fratura e os dois tiveram que se aposentar. Hoje, na sua cidade natal, me receberam sujos de terra e com um largo sorriso. Sábado à tarde na ensolarada Batatais, José Guilherme Baldocchi, dono dos pés e da camisa 3 esmeraldinha, me recebeu em sua casa, junto com a “patroa” Diná, a cachorrinha Teca e os passarinhos. O exjogador estava cuidando das plantas e, sua mulher, do orquidário. A casa, localizada no centro da cidade e com vista para a praça e igreja matriz, foi herança do avô italiano que veio para o Brasil em 1902. “Depois do casamento, eu a reformei e vou ficar aqui até acabar.” A voz rouca descreve as boas lembranças da infância. Fala muito dos tios, primos, escola e amigos. “Quando o colégio fechava, íamos direto para o campo. Pena que esse tempo não volta!”. Baldocchi, relembra também, os muitos “puxões de orelha” que levou da mãe, Lígia, porque chegava das peladas quando já havia anoitecido e todo sujo, “ela sabia onde eu estava”. Mesmo com as broncas, a mãe sempre foi a maior incentivadora do seu sonho. A vontade de ser jogador de futebol crescia a cada vez que comprava chuteiras novas, já que as antigas estavam furadas ou não
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serviam mais. O primeiro passo para a profissionalização, foi aos dezesseis anos, quando entrou para o time Batatais Futebol Clube. Nas categorias de base, Baldocchi mostrou seu talento e logo foi contratado pelo Botafogo de Ribeirão Preto. O pai, Amélio, era cauteloso e realista. “Ele sempre dizia: a única coisa que posso te deixar de herança são os estudos. Por isso, queria que eu entrasse em medicina”. José, até tentava conciliar a matemática, literatura e biologia com os treinos, concentração e viagens, “mas, era muito difícil”. O destino permitiu que o seu desejo fosse atendido. Em 1966, aos 20 anos, o jogador não pestanejou ao aceitar o convite do Palmeiras. “Tive oportunidade e a aproveitei na hora que me foi dada. Deus me ajudou.” Com futebol simples, sóbrio e competente, o zagueiro conquistou a graça da comissão técnica e torcedores. “Na minha época o nível dos jogadores era muito elevado. Em um amistoso, jogando contra a Argentina, me machuquei e não quis sair. Voltar do banco era muito difícil, eu não podia abrir mão da minha vaga.” A disciplina e obediência foram os grandes trunfos de Baldocchi para se consagrar campeão brasileiro com a camisa verde. “Não existia teimosia. A relação com meus pais, professores e treinadores era amigável, mas, sempre tive consciência que eles eram autoridades.” 1969, ano marcante na vida pessoal de José Guilherme. Trocou o uniforme, pelo terno e sapato e, seguiu à igreja na rua Jaguaribe, em São Paulo. Ficou nervoso e emocionado quando subiu ao altar para celebrar a união e o amor pela mãe de seus dois filhos. “A celebração foi feita pelo Padre Geraldo Jarussi que me acompanhou desde a época de moleque. Ele falou muito de futebol, fiquei com receoso (risos). Mas, valeu, já estou casado à 45 anos!” O casal não teve tempo para lua de mel, na mesma época, Baldocchi foi escalado para seleção brasileira, que iria disputar a Copa do Mundo no México. Felicidade sem tamanho e, agora, os sonhos de menino se tornavam realidade. “Fui convocado como titular pelo João Saldanha, meu treinador na época. Mas, antes da Copa ele foi retirado e colocaram o Zagallo como técnico. Tive que suar a camisa para garantir meu lugar, porque, Zagallo era treinador carioca e, eu de São Paulo. Ele não me conhecia direito, então, tive que malhar mais do que os outros para ter essa chance.”
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O jogo aéreo de Baldocchi não passou despercebido. Quando ele subia, não dava chances aos atacantes que procuravam a finalização junto aos arredores da grande área. “Eu tinha que mostrar serviço ao lado do Pelé, Tostão, Riva, Gérson”. Em maio de 1970, estavam eles disputando o tricampeonato. Baldocchi não atuou em nenhuma das seis partidas durante a epopeia mexicana. Mas, sua equipe executou a tarefa com sucesso e a taça levada ao Brasil com muita festa. “Demorei quatro dias pra chegar em Batatais por causa das comemorações. Satisfação sem tamanho fazer parte dessa história.” O batataense viveu a era do futebol sem recursos, tecnologia e patrocínio. Muito diferente dos tempos modernos, em que assistimos o Fut Art ou futebol ostentação. O campo não era palco para exibir as tatuagens e novos penteados, quiçá, fazer coreografias para se comemorar um gol. A organização e seriedade fez com que o salário de jogador de futebol fosse suficiente para sustentar a família e garantir um futuro seguro. Hoje, Baldocchi possui propriedades agrícolas, onde cultiva cana de açúcar, café e milho. Mas, confessa que o motivo de acordar cedo e fazer o “caminho da roça” é para cuidar dos cachorros, uma das suas maiores paixões. São os netos que fazem os olhos claros do “vovô babão” brilharam ainda mais. O jogador é bom de conversa mas, quando fala da Maria Fernanda, Isabella e Luca não para mais. “Quando começam a chorar, a gente coloca eles no carro para dar uma volta, igual fazíamos com nossos filhos”. Com eles o jogador se rejuvenesce e os cabelos brancos são apenas detalhe.
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Alexandre
Pequeno pra quem vê gigante pra quem ama Por Beatriz Bressan
“U
m querido” era o que todos falavam quando eu perguntava sobre Alexandre Cremasco. Nascido no dia 23 de Julho de 1972, no Hospital e Maternidade Galileu, na cidade de Valinhos, o filho do marceneiro Antônio Carlos e da costureira Eronildes, não imaginava o rumo que sua vida iria tomar depois de tantas mudanças pelas quais sua vida passaria até se transformar num atleta internacionalmente premiado. O menino de família humilde e bastante religiosa vivia em uma pequena casa, sem muito luxo. Os pais de pouco ensino trabalhavam o máximo que podiam para dar uma vida diferente da que tiveram e uma educação “de verdade” para o até então, filho único. Desde pequeno, Alexandre adorava esportes. Tinha muitos amigos e passava muitas horas brincando na rua ainda de terra do bairro simples que morava. De altura, sempre foi o menor deles. Era caçoado por isso, comparado ao personagem “Alexandre o grande”. Sim, a estatura era mediana. Deixava a desejar, não possibilitando ele de ser um tão sonhado jogador de basquete, mas a bondade e honestidade eram gigantescas. Na escola sua aula preferida era Educação Física e sempre que tinha campeonato ele era um dos primeiros a participar. Adorava comandar os grupos e fazer novas amizades, apesar do espírito
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competitivo, com o sorriso de orelha a orelha, não se deixava abater quando não ganhava os jogos. Era sim que Alexandre seguia a vida, simples que tivera. Com 14 anos, em uma terça feira, no dia 16 de Abril de 1985, após chegar da escola, almoçar e tirar uma soneca, Antônio Carlos, pai de Alexandre o convidou para passar uma tarde diferente junto com ele e o tio Ademir. O passeio seria em uma chácara na cidade de Campinas, tirando mel de abelha e comendo acerola do pé. Já na hora de ir embora, por volta das 19h, o carro que Alexandre estava com o pai e o tio sofreu um acidente. Uma longa carreta que transportava matérias de construção colidiu bruscamente com o carro que levava a família de volta para casa. O socorro não demorou a chegar e apesar da gravidade dos ferimentos, a equipe foi ágil o suficiente para que as consequências do acidente não fossem piores. Depois de oito dias em coma, e seis cirurgias, Alexandre ficou paraplégico. Já seu pai teve os dois braços, os tornozelos, o pé e o maxilar fraturados e foi submetido a uma traqueostomia. O tio que conduzia o automóvel, por um milagre, saiu ileso. Antes do acidente a vida já não era fácil, depois então, ficou pior ainda. O bairro não oferecia muita infraestrutura, a renda era baixa e família apesar de muito batalhadora não via crescimento. Alexandre precisava de cuidados, não conseguia se virar muito bem sozinho. Precisava de ajuda não só para tomar banho, mas, para fazer todas as outras atividades do dia-a-dia. Ele ainda não tinha uma cadeira de rodas. O que dificultava muito. A mãe que antes passava a maior parte do dia costurando vestidos de festas, não sabia mais o que fazer para colocar dinheiro dentro de casa. Os parentes e vizinhos tentavam ajudar da maneira que podiam, mas financeiramente falando ninguém ajudava muito. Alguns anos depois, já conformado com as limitações e sua situação atual, Alexandre estava assistindo TV quando viu a reportagem da EPTV Campinas que falava da primeira corrida em cadeiras de rodas que aconteceria na Lagoa do Taquaral. Muito empolgado pediu para seus pais o levarem para ver a corrida, chegando lá, depois de conversar com algumas pessoas organizadoras do evento, foi convidado naquele mesmo dia a participar da corrida. Não passando a despercebido, conseguiu então o terceiro lugar.
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Já no final do evento, quase na hora de voltar para casa, o Centro Interdisciplinar de Atenção ao Deficiente (CIAD) e a Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC) o convidaram para conhecer a Unicamp, pois lá havia um time de basquete em cadeira de rodas. “Ele chorava tanto, eu não sabia o que fazer. Mas era de felicidade. Ele não acreditava na possibilidade de voltar a praticar esportes, muito menos de jogar basquete”, conta Dona Eronildes, mãe de Alexandre. Foram muitas competições, mas nada grandioso. Os treinos eram de quinze em quinze dias e Alexandre não faltava por nada. Na casa simples, pouca coisa havia mudado. A vida seguia tranquila. Um novo membro fazia parte da família. Bruna foi adotada e além de muita alegria trouxe também esperanças de uma vida melhor. Os pais de Alexandre já não ficavam tanto tempo em casa cuidando do filho, iam trabalhar tranquilos, sabendo que Bruna ajudaria em tudo que fosse preciso. Para ajudar na renda, Bruna se tornou manicure. Atendia os clientes em sua casa e assim cuidava de Alexandre, que já não dependia tanto dela, devido aos anos com as limitações e também com a ajuda de uma cadeira de rodas, que havia ganhado graças a rifas feitas pelos vizinhos. Bruna tinha bastante clientela. Em média umas seis por dia. Alexandre tentava se ocupar, não ficar em cima enquanto ela trabalhava. Mas um dia em especial as quintas feiras, ele fazia questão de ficar pertinho da irmã. Foi através dela que ele conheceu a esposa, Maria do Carmo, com quem é casado até hoje. Foi ela quem o incentivou a treinar outros esportes e também a participar de mais competições, com o intuito de ganhar. “A Bruna me falava muito dele, do espírito competitivo que a família contou que ele tinha. Depois do acidente acho que ele perdeu um pouco isso. Na verdade, estava guardado dentro dele” afirma a esposa. Em 2008, Alexandre conheceu o handebol também na Unicamp, instituição que já jogava basquete. Um novo esporte, uma nova paixão. No primeiro toque de bola, no primeiro momento na quadra. Paixão essa que dura até hoje e que fez com que Alexandre realizasse todos os seus sonhos. O maior deles, ser um atleta apesar de todas as limitações. No primeiro campeonato que disputou no
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Paraná, já foi convocado para participar da Seleção Brasileira. Em 2009, participou do Primeiro Sul-americano no Chile. Podemos o considerar vitorioso. Ele realmente é. Possui títulos como: segundo campeão paulista, segundo campeão brasileiro, terceiro sul-americano no Chile, Argentina e Brasil e também primeiro campeão mundial.
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Álvaro
O sucesso do ex-birinight Por Marcel Kassab
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ão é nenhum exagero afirmar que o sucesso de Álvaro Gaia é inversamente proporcional a sua curta carreira como treinador. É sabido também que não são todos os que aceitam o desafio de comandar um clube que antes de 2013 era inexpressivo no cenário do interior paulista e até então era apenas a sombra da Inter de Limeira, primeira campeã estadual do interior. Mas somente quem tem contato próximo com ele, que, entre outras coisas, convive no futebol há mais de 30 anos e foi ex-proprietário de ''uma das melhores casas de samba de São Paulo'', sabe pelo o que Gaia passou até se tornar o maior técnico da história do Independente, um clube com pouco mais de 71 anos de existência. A trajetória de Álvaro Gaia não foge à regra da maioria que hoje vive do futebol. Nascido em Tupã, no estado de São Paulo, começou no esporte cedo e passou por categorias de base de clubes como Portuguesa e São Paulo. O sonho de ser um volante de destaque foi interrompido pelas nove intervenções cirúrgicas no joelho, que o fizeram abandonar a carreira de forma precoce. A solução, então, foi deixar a vida de esportista de lado e deixar aflorar o lado investidor. Na década de 90, se aventurou no ramo empresarial e fundou uma casa de samba em São Paulo.
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- Montei uma casa noturna que chamava ''Birinight'', que estourou muito rápido e foi durante muito tempo uma das melhores casas de samba de São Paulo. Foram anos bons - relembra, com certo saudosismo. O negócio foi um tiro tão certeiro que deixou o treinador afastado por dez anos de qualquer atividade formal que envolvesse a bola. Nesse meio tempo, teve duas mulheres e três filhos, com quem se lembra com carinho e é lembrado no meio da entrevista - uma de suas filhas interrompe brevemente a conversa e liga em seu celular. Sua família, diz, nunca contestou uma decisão sequer. Solteiro, ele visita regularmente dois de seus dois filhos em São Paulo e sua caçula em Ilhabela, onde exerceu o cargo de diretor de esportes da cidade. - Muitos disseram isso (não vá para o Independente). Fiquei receoso, porque fiquei dez anos longe do futebol. Mas fui para um clube que, apesar de nenhuma tradição, tinha um projeto maravilhoso e que deu certo - diz. O convite para comandar o Independente aconteceu no final de 2012. O cenário não era nenhum um pouco favorável: assumir um clube que, assim como as palavras do próprio hino, ''nasceu pobre, sem fama e sem glória'' e que cuja cidade sempre foi associada no futebol ao rival Inter de Limeira, primeira campeã paulista do interior. Àquela época, o Galo disputava a Série A3 do Paulista. As dificuldades, é claro, não demoraram para aparecer. O bolso doeu quando o técnico, que hoje detém o recorde de 111 partidas à frente do clube, teve que desembolsar cerca de R$ 40 mil durante o ano para comprar alimento para o elenco. - Eu cheguei sabendo que seria difícil. Antes ninguém queria jogar no Independente. Falei para a diretoria que eles tinham que dar um jeito de pagar a estrutura que eu conseguiria um investidor. Em 2013, o salário era de no máximo R$ 25 mil, com comissão técnica. Teve vez que acabava a mistura e eu liberava o meu cartão para eles (funcionários e jogadores) irem ao supermercado. Falava ''vai lá e senta a bota, que depois a gente vê''. No total deu uns R$ 40 mil, que eu fui receber neste ano. Foi como um empréstimo - completa, sem esconder o humor. Curiosamente, com as adversidades que o Independente começou a dar indícios que incomodaria outros clubes mais tradicionais no interior. Apesar de ter conseguido na mesma temporada a inédita classificação
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à segunda fase da Copa Paulista, foi em outro campeonato que o Galo conquistou aquele que seria o maior feito de sua história até então. Com uma vitória incontestável sobre a Inter no Pradão, o Independente chegou ao inédio acesso à Série A2 do Paulista. O tamanho do feito aumentou ainda mais porque 2014 marcou o primeiro ano que o Independente disputou uma divisão acima da rival. - Eu vou falar uma coisa. Eu não esperava que nós teríamos essa possiblidade (de chegar na primeira divisão tão rápido). Sabia que tinha um grupo bom para disputar, tinha jogadores bons na mão e que me deram condições de brigar. Seria muito gratificante chegar à Série A1 e ver que o projeto idealizado deu resultados além do esperado. Mas nem tudo ocorreu como o esperado em 2015. De azarão a um dos quatro favoritos para conquistar o acesso à elite paulista, o Independente deixou o que então seria seu maior feito escapar na última rodada, com o empate por 2 a 2 com o Oeste. A maior conquista escapou pelos dedos - ou então pelo apito do juiz, que anulou um gol de forma duvidosa nos minutos finais. Conhecido pela postura mais ativa do que passiva no banco de reservas, Álvaro Gaia sofreu e ainda sofre na pele as consequências do nervosismo nos estádios do interior. Fumante, o treinador já passou por uma cirurgia no coração e teve que mudar de estilo à beira do gramado. Isso, porém, não o faz mudar de ideia em relação aos próximos passos no futebol. - No começo eu não tinha maturidade e experiência que tenho hoje. Todo o investimento que fiz aqui valeu a pena, com certeza. Eu tenho um carinho muito grande pelo Independente, que foi quem me abriu as portas e deu espaço para eu mostrar meu trabalho. Sou muito grato a todos daqui. Estou feliz aqui, e para me tirar daqui tem que ser algo que cubra essa felicidade. Hoje, mesmo com o problema no coração, eu penso em continuar até onde eu conseguir - projeta.
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Hélio
Uma vida dedicada ao basquete Por Gabriela Gimenes
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ndando pelos cômodos de sua casa é impossível não respirar basquete. Troféus, medalhas e fotos contam a história do ídolo francano Hélio Rubens Garcia. Sentado ao lado da mulher Maria Helena, o ex-armador recorda o inicio da sua carreira no basquete no Clube dos Bagres, em Franca, onde jogou até 1981. “Foi pelos Bagres que conquistei meu primeiro título de expressão, a Taça Brasil, em 1971”, relembra Hélio. Ao lado das inúmeras fotos jogando, está a foto do neto Benício. “Ele também quer ser jogador, e não é que leva jeito? Olha os joelhos flexionados pro arremesso”, acrescenta o vovô todo empolgado. Aliás, o basquete parece mesmo estar na veia dos Garcia. Além do neto, o filho Helinho, como é conhecido por todos no mundo do esporte, é jogador profissional assim como seu avô, Francisco Garcia do Nascimento, o famoso Cachoeira. “Meu pai tem 15 títulos brasileiros, cinco como jogador e dez como técnico. É o maior vencedor da história do Campeonato Nacional Masculino”, conta Helinho ainda mais orgulhoso do que o pai quando falou do neto. “Os dois são inseparáveis, mesmo quando discutiam por conta do basquete não passavam mais de 5 minutos sem conversar”, completa a mãe e mulher Maria Helena.
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O ex-armador também fez história na Seleção Brasileira, conquistando o ouro no Pan-americano em 1971, o segundo lugar no Mundial de 1970, e a terceira colocação nos Mundiais de 1967 e 1978. Como técnico da Seleção Brasileira, foi campeão pan-americano nos Jogos de Winnipeg em 1999. “Não sei dizer qual desses títulos foi mais emocionante, mas garanto que o mais sofrido para mim foi como técnico. Chega uma hora que você quer estar lá dentro e mostrar como se faz”, explica Hélio ao mesmo tempo em que Helinho cai na gargalhada. “Meu pai fica muito tenso como treinador, às vezes era difícil ser filho do técnico, porque quando eu chegava em casa os treinos e broncas continuavam”, acrescenta o filho que tem certeza absoluta que nunca foi privilegiado por ser filho do rigoroso técnico. Helinho e Hélio Rubens vestiram a camisa do Franca juntos por aproximadamente seis anos Dos 56 anos dedicados ao basquete, 26 como jogador e 30 como técnico, 48 foram vividos em Franca. “Encerrei minha carreira de jogador quando ainda atuava pelo Franca Basquetebol Clube, em 1981, com 42 anos de idade, e já virei técnico do clube. Foi uma das maiores emoções da minha vida, eu amo essa cidade e esse time”, conta o exarmador com lágrimas nos olhos. A conversa sobre sua carreira é interrompida quando pela janela decide me mostrar uma cesta no quintal. "Era ali que eu ensinava o Helinho a arremessar. O engraçado é que deixei o aro menor para que ficasse mais difícil. Então ele passava o dia todo errando aqui, mas quando chegava no treino, acertava todas”, explica rindo antes de ser interrompido pelo filho: “eu sempre falo que ele me sacaneou", acrescenta Helinho. Além da Seleção Brasileira, Hélio Rubens também esteve à frente do Vasco da Gama do Rio de Janeiro e Uberlândia. "Todo mundo acha que me aposentei, jamais. Eu recebi convites da Argentina, da Venezuela, mas o Eurico Miranda me quer no Vasco. Existe um projeto para o time voltar ao NBB. Se der certo, eu volto”, diz entusiasmado. Hoje, Hélio Rubens trabalha nos bastidores do Franca, o time passa por uma grande crise econômica. “Não podemos perder a tradição, são mais de 60 anos formando atletas e técnicos. Estou procurando ajudar de alguma forma procurando patrocinadores com a ajuda da minha mulher”, diz com ar pensativo.
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Hélio quer voltar às quadras, mas não tem pressa. “Se o Vasco conseguir voltar mesmo para o NBB, voltarei para a ativa, mas até lá o Benício me ocupa”, gargalhou como se esquecesse do drama vivido pelo time de coração. E para o Franca? Não volta? - Há sempre essa possibilidade, não somente porque moro aqui, mas também porque meu coração pertence ao Pedrocão (Ginásio Poliesportivo Pedro Morilla Fuentes, lar do Franca Basquete)!
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Nathália
“É preciso ter manha, é preciso ter raça, é preciso ter força sempre...” Por Marília Gabriela Simão dos Santos
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43,5 kg. Esse é peso médio que as prateleiras do quarto de Nathália Orpinelli Mercadante carregam, devido às mais de 290 medalhas que a judoca de Araras, interior paulista, conseguiu conquistar em seus 20 – enfatizo, vinte – anos de vida. São mais de 300 campeonatos nas costas, nos braços, nos kimonos e na memória. De faixa em faixa, hoje ela carrega no peito 234 medalhas de ouro, que brilham como os olhos quando sobe ao primeiro lugar. “Foi inexplicável o que eu senti naquela hora, fazendo o que eu mais amo! Foi um sonho realizado.” É assim que Nathália descreve a sensação de ser considerada a terceira melhor judoca do mundo em 2011, na Ucrânia. A pequena-grande-mulher de 1,56m e 48 kg conseguiu atropelar outros milhares de judocas, derrubar as barreiras, levantar arquibancadas, e provou, sem contestações que todo e qualquer esforço que fez desde seus três anos de vida não foram em vão. Nem todo caminho é composto apenas de flores. No mesmo ano dessa consagração, Nathália passou pela sua maior frustração; não apenas como atleta, mas como ser humano. Em Brasília, ela participou da seletiva nacional, mas teve um resultado ruim. Nas ruas da cidade,
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circularam jornais dizendo que ela “tinha sido a grande decepção da competição”. No dia seguinte, competiu novamente em uma categoria acima e ficou em segundo lugar. Dessa vez, os jornais diziam que ela havia dado “a volta por cima”. “Fiquei feliz com a conquista, mas fiquei tão frustrada que foi difícil passar por cima de toda aquela pressão”. Mas Nathália é dessas que tem a estranha mania de ter fé na vida e, depois que começou a fazer acompanhamento mensal com uma psicóloga, disponibilizada pelo projeto KImono de Ouro, ela mudou o seu foco. “Aprendi a pensar mais no que eu acho de mim do que os outros acham. Trabalhar a confiança acho que é o grande segredo para tudo”. Em 2013, chegou a pensar em desistir de tudo, por conta de muitas lesões e resultados nem-tão-expressivos. Mas ela ainda não conquistou o que mais almeja: chegar às Olimpíadas. “Ela é especial, veio ao mundo para brilhar, sempre com muita responsabilidade soube fazer as escolhas certas, e sempre com muita determinação foi crescendo e correndo atrás do sonho olímpico que um dia vai chegar”, diz o pai. Esse sonho nasceu ainda no berço. Desde quando ainda usava a mamadeira pra se alimentar – à época não existiam restrições na sua alimentação.. ainda bem! – ela já se deitava em tatames e observava treinos. E isso tudo porque seu maior espelho e treinador –ou sensei, na língua judoca -, seu pai, Marcos, já dava aulas. Mas naquela idade, tudo o que ela queria era brincar, correr no sítio do avô na pracinha da frente da casa dela. Foi quando aos três anos ela começou a fazer aulas com o pai, participou de um campeonato do clube da cidade, ganhou a primeira medalha de ouro, maior que sua pequena mão. Desde então, ela descobriu para o que nasceu, onde iria treinar forte para brilhar. E bota força nisso. Aos 13 anos, ela decidiu que começaria a fazer ainda mais para conquistar o que queria. “Foi preciso crescer um pouco para entender o que tinha que ser feito para alcançar esse sonho”, conta. A garotinha que entrara na adolescência há pouco, começou a viver igual gente grande. A rotina de treinou mudou. Como o pai já possuía uma academia, ela passou a frequentar mais arduamente o local, tornando-se – literalmente – a sua segunda casa. Sete dias por semana, duas vezes por dia a atleta treina, focada e persistente, como se define. Hoje, onde se olha para ela, veem-se apenas músculos definidos e marcados – como cicatrizes de conquistas.
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Assim como os treinos, a vida sem kimonos mudou. Ela queria sair com as amigas, mas as vezes não podia; ela queria namorar, mas parecia não ter mais tempo. E, encarando como curso natural das coisas, muitas pessoas se perderam no caminho, pois não compreendiam a necessidade do esforço e da rotina árdua da judoca. “Os amigos de verdade sempre vão estar com a gente”. E nesse contexto entra a sua família. Seus primeiros e melhores amigos, os grandes incentivadores da batalha. Seu tudo. “Estão sempre comigo, caminham comigo, me dão muita força e mostram os melhores caminhos”. Inclusive seu irmão mais novo, Matheus, já a vê como inspiração. “Treinamos juntos, ela me corrige. Os títulos que ela tem são os que eu quero ter também”. Sua aparência também foi mudando, e como toda adolescente que em algum momento passa por crise, Nathália sente um pouco, porque seu corpo era e é diferente da maioria das meninas da idade. “Tem roupas que me sinto mal quando as visto. Sou bem pequena mas tenho braços grandes e costas largas. Não acho feio, pelo contrário, eu gosto porque aí sei que estou mesmo forte. Mas quando saio prefiro deixar eles escondidos, até porque gosto de me sentir menininha nessas horas”. Inclusive a vaidade já foi companheira, mas hoje ela não se importa mais tanto com isso, pois está acostumada a ficar de caralimpa e pés-descalços. “Gosto do natural”, assim define. Há um ano, a lutadora encontrou o companheirismo que precisava em uma pessoa. Wagner Zoré, um ano mais novo que ela, o atual namorado e parceiro da sua jornada. Ele é o garoto que não entende nada do que acontece no tatame, mas está sempre por dentro de como estão os treinos, e da arquibancada vibra e torce, quando pode. Eles foram o casal-calendário, que seguem a risca e aproveitam o Máximo que podem todos os dias que podem ficar juntos, pois Nathália conta com ele todos os finais de semana em que precisa viajar pelo judô. “A saudade convive com a gente. Tem vez que chega convocação em cima da hora e tinha planejado mil coisas com meu namorado, e tenho que chegar nele e falar que não vai dar porque vou viajar.”. Mas o amor fica acima de tudo e é o que os mantém juntos. Até a saudade tem sabor mais gostoso. “Cinco minutos antes de ela partir para o aeroporto, ainda nos meus braços, eu já sinto uma saudade enorme. Mas por um lado isso é bom, quando ela chega e toca a campainha de
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casa eu transbordo de felicidade”, diz Wagner. Já dizia o poeta: se isso não é amor, o que mais pode ser? Neste ano, Nathália precisou trancar a matrícula na faculdade de Educação Física que começou a cursar no ano passado. Tudo isso por conta das inúmeras viagens que faz pela seleção brasileira. “Vou voltar. Vou me formar, ensinar aos futuros atletas tudo o que aprendi, tudo o que sei. E quando eu tiver que parar de lutar, darei continuidade a Academia do meu pai. Meu maior sonho, de verdade, é ser feliz e realizada na profissão. É tudo que almejo”. Como ela chegou tão longe em tão pouco tempo? Dedicação, investimento da família, persistência, estrutura que o Projeto Kimono de Ouro oferece e a crença de que sempre se pode querer mais e fazer mais para alcançar. Um conselho da Nathália para quem ainda quer chegar “lá”. “Para acreditar que ele pode ser o que ele quiser ser, se dedicar sempre e não deixar de tentar nada.”. Nathália, Nathália. Mistura a dor e a alegria. Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça, é preciso ter sonho sempre.
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Manoel
De Feira de Santana para o Mundo Por Giovanni Mari Chierighini
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ara falar de Manoel Lourenço da Silva, ou simplesmente Manu, como é chamado pelos amigos do futebol, é necessário voltar no tempo. Mais precisamente em 2 de fevereiro de 1978, em Feira de Santana, de onde saíram grandes atletas como o lateral esquerdo Edmilson e atacante João Paulo que jogaram no Botafogo, o meia Jorge Wagner que jogou no Corinthians e no São Paulo e Fabio Costa, goleiro que jogou no Santos e no Corinthians. Por lá, nascia um menino humilde que de degrau em degrau, subiria a escada do futebol rumo ao sucesso. De família simples, Manu começou a jogar bola com os amigos do bairro e da rua em um campinho de terra. Aos poucos, não só ele, mas toda a sua família perceberam que o seu talento para o futebol era nato e diferentes das outras crianças da rua. Foi então que começou a jogar no time da cidade aos 11 anos, no Bahia de Feira. Com os seus gols, ele começou a ser destaque no time e foi subindo nas divisões de base do clube até ser contratado pelo Ituano com 15 anos. De lá, ele ficou de 1993 até 1997, pois recebeu uma proposta tentadora: Ir para o Internacional de Porto Alegre e se profissionalizar por lá. Manoel, mais do que de pressa disse que sim e que iria pra lá nem que fosse de jegue. Segundo ele, nunca foi tão emocionante uma assinatura de um contrato. Agora em uma cidade grande, e cheio de grandes estrelas no time como André Dohring, Christian e Paulo Diniz. Mesmo para ser um
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reserva e ter que disputar posição com atacantes que já estavam no clube há muito tempo, Manoel aceitou o desafio e subiu junto com um grande amigo que fez por lá chamado Lucio, zagueiro que um dia ficaria famoso vestindo a camisa do Bayer de Munique, Internazionale, Juventus de Turim, São Paulo, Palmeiras e Seleção Brasileira. Mesmo sendo reserva, o técnico Cassiá colocou o jovem atacante no brasileirão daquele ano por três vezes. Diferentemente do seu amigo Lucio, que tomou conta da zaga rapidamente e virou titular imediato, entrou no segundo tempo e mesmo criou várias chances de gols. Para ele estava muito feliz em jogar no Internacional, mas precisava de rodagem, ritmo de jogo e de mais maturidade para enfrentar os grandes campeonatos. Todos esses três jogos que ele jogou foram o suficiente para convencer os holandeses do poderoso PSV Eindhoven a contratálo por empréstimo por uma temporada. “Quando a proposta chegou, meus olhos brilharam instantaneamente”. Era um time cheio de jogadores da seleção holandesa e ainda tinha Ronaldo e Vampeta, que eram da seleção brasileira. Na hora eu topei”. Lucio, que é considerado um parceiro dele, avisou ao Manu sobre as responsabilidades de jogar em um grande clube da Europa: “Aproveita que jogar com o Ronaldão é fácil, mas o duro vai ser você desbancar ele porque ele tá voando e fazendo muitos gols” disse Lucio empolgado, mas colocando um tom sério porque o nível internacional que ele enfrentaria não seria fácil. Ele precisaria se dedicar e dar toda a sua vida por lá, pois estava lidando com jogadores de elite mundial. Não deixava de mencionar o tempo todo, os grandes jogadores que jogou. Ronaldo, Romário, Vampeta, Clemer, Marcos Assunção, Dida, Lucio, Cristiano Ronaldo, João Moutinho, Costinha, Maniche. Mas foi com o baixinho e com o fenômeno que ele realmente ficou como os melhores. “Romário e Ronaldo sabiam o que ia acontecer antes de acontecer. A bola caia nos pés deles e eles já tinham tudo definido na cabeça o que iriam fazer. Na hora de finalizar, era uma muita calma pra um atacante só”! Brinca Manu que completa: “Essa galera nova não acredita, joguei com gente muito boa da bola”. Para ele foi um momento de grande aprendizado. Pode aprender uma língua nova, novos costumes e refinar a sua pontaria, já que treinar com o fenômeno não era para ninguém. “Ele sempre me falava para fazer as coisas, mas só dava certo com ele” lembra Manu com um certo tom de inveja.
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Ser marcado pelo Vampeta nos treinos foi uma coisa que o fez crescer muito e que com os jogos realizados pelo time reserva do PSV fizeram Manu almejar a titularidade de algum clube. ” O baiano era arretado mesmo. Se ele encasquetasse com você, ele te colocava no bolso”. Foi ai que o Capetinha o indicou ao Vitória, que rapidamente o contratou e trouxe para jogar em 1999 antes mesmo de voltar ao Internacional do empréstimo. De lá, Manu estourou para o mundo. Fez 20 gols no seu primeiro ano entre Brasileirão e Campeonato Baiano e foi transferido para Europa novamente. Dessa vez, para o Vitória de Guimarães, e Portugal. A coisa seria muito mais séria, pois o clube estava disputando vaga na antiga Copa da UEFA e não poderia ficar de fora, pois a torcida pressionaria a diretoria por um campeonato internacional que não vinha a muito tempo. Com seus 13 gols e duas assistências, Manu colocou o Vitória de Guimarães na Copa da UEFA e se transferiu para o Gil Vicente, aonde faria a melhor trajetória da sua história. Fez 60 gols e 15 assistências em sua passagem de dois anos entre 2001 a 2003. De 2003 a 2005 jogou no Moreirense, outro time português. Nele, foi até melhor, fazendo 62 gols e dando 13 assistências. O sucesso nos pequenos clubes de Portugal fez o Sporting arregalar os olhos no atacante que não parava de fazer gols por onde ia. “Um olheiro assistiu ao treino e gostou do meu trabalho. Contatou o presidente, que foi direto para mim, dizendo que tinha que me vender para fechar a conta. Foi tudo extremamente rápido. Eu não queria sair, estava muito bem, feliz e adaptado no clube, mas tive porque eles necessitavam demais do dinheiro, ai não rolou ficar” explica Manu contando como tudo aconteceu naquela segunda feira de treino após a vitória contra o Vitória de Setúbal. Manu não jogou muito no Sporting em 2006, mas por lá fez um amigo de fazer inveja a muitos boleiros espalhados pelo mundo. Um menino franzino da Ilha da Madeira chegava ao profissional para treinar e encantava a todos com sua determinação e o cuidado com o preparo físico. Era o pequeno Cristiano Ronaldo, que ainda com aparelhos nos dentes e um cabelo horroroso, já assustava os zagueiros do time do Sporting com seus dribles rápidos e chutes fortes. “Ele sempre treinava muito e era extremamente competitivo. Não aceitava perder nem par ou impar”, brinca Manoel. Suas arrancadas e gols no treino eram um trailer de um filme perfeito. CR7, na época apenas o
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Cristiano, já mostrava uma dedicação absurda. Após o almoço, todos os jogadores voltavam para suas casas, pois o treino é de apenas um período exceto um. Cristiano Ronaldo fazia exercícios na academia à tarde inteira. “Agora está ai o melhor do mundo e ninguém faz ideia de como ele era com a gente lá dentro” fala com saudades do atacante que o ajudou muito em sua chegada a Lisboa.” “Ao contrário do que muitos pensam, o Cris é um cara divertido, simpático e de muito fácil acesso. É o tipo do cara que não ficava um minuto sem fazer piada no vestiário, mas quando chegava a hora séria, de treinar e jogar era o silencio em pessoa. Um grande amigo da bola que eu fiz”, acrescenta Manu. Manu sempre buscou salários maiores em cada clube que ia e depois de uma passagem apagada no CRB de Alagoas, decidiu jogar no futebol Chinês, no Nanchang Bayi. Ficou dois anos entre 2007 e 2008 foi transferido para o time búlgaro Vihren que ficou apenas em 2009. O tour no Oriente Médio, como ele próprio brinca, foi sensacional. Um mercado emergente, aonde não se tem um futebol de tanta qualidade, mas que se paga muito bem e Manu embarcou na aventura do dinheiro e de desenvolver um futebol que era extremamente fraco. Jogou em Dubai, Bahrein e fez o pé de meia para cuidar dos filhos e ajudar a família. Encerrou sua carreira no América-SP em 2011 e ao relembrar toda a sua trajetória, sente saudade da rotina de treinos, viagens e jogos que mesmo longe da família, amigos e de seus dois filhos, é gratificante pela cultura adquirida e ainda diz que foi burro, porque deveria ter ficado muito mais tempo na Europa, virando técnico ou preparador físico para aprender mais. Aos 37 anos, o Manoel do Brasil, Europa e Oriente Médio é um cara mais tranquilo. Mora em São Paulo e aos finais de semana joga futebol no Theodora, um condomínio de Itu que tem vários amigos e curte os seus dois filhos. Sempre muito animado gosta de fazer festas e assistir a jogos de futebol seja no campo ou na TV reunido com a galera. Não desperdiça uma cerveja por nada nesse mundo e sempre é o primeiro a verificar se ela está bem gelada junto com uma carne mal passada. A final da Champions League e a Copa América ele mesmo recomenda com tudo isso.
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Wanderlei
Ao mestre, com porrada Por Cassius Torres
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uritiba sempre foi o berço dos maiores nomes do MMA brasileiro. Maurício Shogun, Anderson Silva e Fabrício Werdum são alguns dos nomes mais conhecidos produzidos pela famosa academia Chute Boxe. Mas o maior nome de todos a sair de lá é o de Wanderlei Cézar da Silva. Wand, como gosta de ser chamado por seus amigos e fãs, nasceu em Curitiba, no ano de 1976. Filho de pais humildes, Wand começou a treinar muay thai ainda adolescente, porque se achava baixo demais e um pouco gordinho. Em 1996, após participar de uma luta profissional, teve que ouvir seu pai Horlando dizer: “Deixa de ser idiota. Isso não vai te dar um futuro. Vai arrumar um emprego”. Ah, se Cachorro Louco (apelido dado pelos amigos, devido a sua agressividade nos ringues) tivesse ouvido seu pai nessa hora. Wanderlei, que sempre foi um cara que ouvia os conselhos do pai, dessa vez resolveu pensar por si próprio e seguir em frente. A base de todo esse sucesso do lutador foram os bons professor que ele teve no início da carreira. Rudimar Fedrigo e Rafael Cordeiro foram essenciais para sua formação. Sua trocação de golpes violenta e agressiva surtiam efeito nos combates, deixando seus adversários, na maioria das vezes, estirados na lona. Suas primeiras lutas foram no extinto Internacional Vale Tudo Championship. Lutas conhecidas como “mão pelada”, já que os
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competidores não usavam luvas. As regras eram restritas. Talvez apenas as básicas e de honra, como não morder, não apertar os olhos e não acertar as genitais. A raça demonstrada por Wanderlei fez com que ele fosse convidado para lutar no UFC Brasil em 1998, contra Vitor Belfort. Essa luta ficou marcada como o começo de uma rivalidade histórica. Vitor derrotou Wanderlei com 44 segundos de peleja. O reencontro dos dois demoraria anos para acontecer, mas uma chance veio a tona. Levou quase 12 anos para que o Machado Assassino (outro apelido conquistado ao longo da carreira) voltasse ao Brasil para mais um show. Wand foi convidado para ser um dos técnicos do The Ultimate Fighter Brasil, reality show que revela novos talentos para o UFC. O técnico adversário seria Vitor Belfort, seu desafeto de longa data. Como sempre acontece ao final de cada temporada do TUF, os técnicos se enfrentariam. Entretanto, Vitor machucou a mão e teve que ser substituído pelo americano Rich Franklin. Não era o que o público esperava já que a revanche era muito aguardada. Mesmo assim, em junho de 2012 o UFC 147 toma conta de Belo Horizonte. Vitor resolve assistir o evento ao vivo na arena, mas é recebido pelo público ao gritos de “arregão”, enquanto exibe sua mão engessada para o telão. Chega a hora do evento principal da noite. O Cachorro Louco derrubou Franklin com um direto no queixo, levando a arena ao delírio. Eu mesmo cheguei a subir na cadeira para comemorar, mas tive um dos maiores baldes de água fria da minha vida ao ouvir meu amigo dizer que a luta não havia sido encerrada, mas sim que o round havia acabado. A luta terminaria com a vitória de Franklin por decisão unânime dos juízes laterais. Essa seria a última vez que Wand lutava em solo brasileiro. Wanderlei começou no Brasil, mas foi no Japão que teve as maiores glórias de sua carreira. Foram 28 lutas no antigo Pride, com 22 vitórias, 4 derrotas, um empate e uma luta sem resultado. O sucesso era tanto que Wanderlei ganhou o apelido de Mr Pride. Suas três vitórias sobre Kazushi Sakuraba e os dois massacres pra cima de Quinton Jackson estão sempre na compilação dos melhores momentos da sua carreira. A fama nos ringues o obriga a andar disfarçado no Japão até os dias de hoje. O brasileiro é estrela de comerciais e até estampa de cartão de crédito na terra do sol nascente.
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Em agosto de 2012, Wanderlei recebeu uma das piores notícias da sua vida. Horlando, seu pai, havia sofrido um acidente de carro na cidade de Castro, onde morava. Nenhum golpe foi tão forte na vida do lutador quanto a morte do pai. Horlando era a inspiração para as batalhas do lutador. Era o homem que mesmo depois que o filho ficou famoso e começou a ganhar dinheiro lutando fora do país, ainda o fazia ajudar no balcão do bar que tinha. Wanderlei só voltaria a lutar mais de um ano após a morte de seu pai. Seu oponente seria a figura do herói americano. Brian Stann era um veterano de guerra e símbolo do patriotismo americano. Mas isso não fazia diferença para o brasileiro, já que a luta ocorreria em sua segunda casa (ou primeira, já que a maior parte da sua carreira foi lá), o Japão. Wanderlei e Stann protagonizaram um primeiro round cheio de ação e de knockdown, o que deixou o público em chamas. Na metade do segundo round veio a consagração. Wanderlei acertou um direto de esquerda e um cruzado de direita, fazendo com que Stann caísse no chão e levasse mais alguns socos antes de ficar inconsciente. A luta tinha tudo para ser mais uma na carreira do lutador, mas acabaria por ser sua última aparição nos ringues. Quem conhece Wanderlei sabe o quão atencioso ele é com os fãs. Ele constuma dizer que não tem fãs, mas sim amigos. Pude confirmar esse fato em setembro de 2014. Uma sessão de fotos e autógrafos foi marcada numa loja de artigos de luta. Wanderlei chegou, entrou na loja e fez questão de cumprimentar todos os funcionários antes de se preparar para tirar as fotos. Recebeu todos os fãs com um sorriso no rosto, sempre perguntando “Como você está, amigo?”. Presenteei-o com uma camiseta e pedi que autografasse um boneco dele de colecionador. O assessor, vendo a quantidade de coisas que ele fazia, disse “apenas um autógrafo por pessoa”. Na mesma hora foi rebatido por Wanderlei, que disse: “deixa o cara. Estou autografando o boneco pra ele”. A sessão durou cerca de duas horas. Mesmo após o término, Wand ainda atendeu algunas fãs no meio da rua. Após anunciar sua aponsetadoria em 2014, Wanderlei começou a travar uma guerra contra o UFC, alegando que a empresa paga muito mal seus funcionários enquanto lucra absurdamente com as lutas. A batalha é longa, mas os passos estão sendo dados. Lutadores em atividade estão reclamando, aos poucos, das condições de trabalho impostas pelo UFC nos contratos. A repercussão fez com que o UFC
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conseguisse banir Wanderlei do esporte caso ele tentasse lutar novamente. A liminar foi cassada, mas segundo o Cachorrou Louco, ele não tem vontade de voltar a competir. A parte da família que pode levar o legado adiante é Thor, seu filho mais novo. Fruto de sua relação com Tea Silva, Thor vive em Las Vegas com o pai, onde estuda e treina diversas modalidades de luta. Thor já chegou a ser campeão do torneio escolar de wrestling, deixando o pai todo orgulhoso. Para Wand, Thor vai seguir o rumo que quiser na sua vida, mas se quiser escolher o caminho das lutas, tem todo o apoio do pai. Wanderlei pode não ter sido o campeão mais dominante da história, como Anderson Silva e Fedor Emelianenko, mas com certeza foi o mais carismático e cativante. Suas lutas empolgavam qualquer um. Batalhas marcantes, derrotas que apertam o coração, vitórias emocionantes e um coração de leão. Essas foram as características marcantes da carreira de Wanderlei. Um atleta sem igual, um representante único de uma geração de estrelas, uma lenda, um mito. Jamais haverá outro lutador com tamanho carisma e suporte dos fãs. A saudade é inevitável, mas a felicidade de poder ter visto suas performances ao vivo é maior ainda. Muito obrigado, Cachorro Louco.
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PUC-CAMPINAS 2015