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Agradecimentos
Ao professor Jorge Correia, orientador desta dissertação, pela disponibilidade e rigor no acompanhamento do trabalho, pelos conhecimentos transmitidos e, acima de tudo, por motivar o meu interesse pelo património português no Norte de África. À minha mãe pelo apoio constante e incondicional. Ao meu pai pela confiança e incentivo. À professora Helena, ao professor Francisco e ao João pelas dicas de História e Arqueologia, durante a missão em Arzila. À Indira pelos conselhos e ajuda nas medições dos vestígios do Castelo. Aos moradores de Tânger que abriram as portas das suas casas, possibilitando a redescoberta das ruínas da fortificação portuguesa. Ao professor Martin Malcom Elbl, da Universidade de Toronto, pela disponibilidade na partilha do seu trabalho. À Alexandra, à Adriana, ao André e a todos os meus amigos que estiveram ao meu lado durante este longo percurso. Ao Daniel pela força e motivação nesta importante etapa do meu percurso académico.
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Resumo
O Castelo de Cima de Tânger entre Quatrocentos e Seiscentos: de Paço a Cidadela
Em inícios do século XV, principia-se o longo período de expansão portuguesa além-mar. Portugal volta-se inicialmente para o Norte de África, dando continuidade ao processo de reconquista cristã e ampliando, simultaneamente, as fronteiras do seu território. Tânger foi uma das importantes praçasfortes conquistadas no Magrebe em Quatrocentos, ocupada e adaptada às novas necessidades impostas. Hoje, passados mais de 350 anos desde a retirada lusitana e entrega da possessão aos ingleses, os vestígios do tempo português representam um dos muitos estratos que compõem a densa medina. Sabe-se que o “Castelo de Cima” constituía uma das edificações de maior destaque no cenário urbano de 1471 a 16611: um complexo defensivo construído sobre reminiscências anteriores, no topo da colina Noroeste, que anunciava, desde a cota alta, o domínio europeu e cristão daquele território. Contudo, dessa fortificação, escassas evidências físicas sobrevivem no presente. De facto, a contínua ocupação que se sucedeu ao abandono britânico, determinou o preenchimento intensivo de todo o conjunto amuralhado, incorporando pré-existências nas novas construções, e culminando na descaracterização do castelo. De forma a contrariar o tendencial esquecimento da memória da edificação portuguesa, a análise de documentação coeva e fundamentalmente de cartografia e iconografia antiga, a par de alguma prospeção urbana, permitiram recriar uma hipótese para aquela que seria a imagem do Castelo de Cima entre Quatrocentos e Seiscentos. Na realidade, existiram dois momentos construtivos principais da fortificação, intercalados por um período de grande evolução na arte da guerra, que exigia amplas mudanças na arquitetura militar. A reconstituição planimétrica e tridimensional de ambas as fases: a Tardo-Medieval e a Moderna, e o posterior estudo dos elementos constituintes de cada uma, possibilitou o entendimento do complexo, enquanto “organismo bélico”, no contexto geográfico e político em que se encontrava. Permitiu igualmente perceber os pressupostos retóricos nos quais assentava, a sua eficácia funcional e de que forma respondia às necessidades do seu tempo.
1
Intervalo temporal de presença portuguesa em Tânger.
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Abstract
The “Castelo de Cima� of Tangier between the fifteenth and seventeenth centuries: from Palace to Citadel At the beginning of the fifteenth century, the long period of Portuguese expansion has began in North Africa, continuing the process of Christian reconquest and simultaneously expanding the borders of its territory. Tangier was one of the cities conquered in Maghreb at that time, occupied and adapted to the new needs imposed. Today, after more than 350 years since the Portuguese left, the vestiges of their constructions represent one of the many layers of the medina. It is known that "Castelo de Cima" was one of the most important buildings of the urban scenario from 1471 to 16612: a defensive complex built on previous reminiscences, at the top of the Northwest hill, which announced, from the highest point, the dominion of that territory. However, scarce physical evidence of this fortification survives in the present. In fact, the urban fabric incorporated some pre-existences and destroied others. In order to recover the memory of the Portuguese building, the analysis of documentation, cartography and old iconography, together with some urban exploration, allowed to recreate an hypothesis of the image of the upper castle. There were two main constructive moments of the fortification, inserted in a period of great evolution in the art of the war, that demanded big changes in the military architecture. The planimetric and three-dimensional reconstruction of both phases: Medieval and Modern, and the later study of the constituent elements of each one, made possible the understanding of the building in the geographic and political context in which it was found. It also allowed to perceive the rhetorical presuppositions on which it was based, its functional effectiveness, and how it responded to the needs of its time.
2
Time interval of the Portuguese presence in Tangier.
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Índice
Introdução__________________________________________________________________ 13 Estrutura da tese Metodologia
14 15
I - CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E GEOGRÁFICA______________________________ 17 1 - Das origens à grande cidade islâmica do Estreito_________________________________ 18 2 -Expansão marítima portuguesa________________________________________________20 2.1 – O Norte de África
22
2.1.1 - Antecedentes da conquista de Tânger
23
2.1.2 - A tomada de Tânger
25
2.1.3 - A ocupação e adaptação da Praça
26
2.1.4 - O fim do domínio filipino e a entrega de Tânger aos Ingleses
32
II - O “CASTELO DE CIMA” DE TÂNGER______________________________________ 35 1 - Estado atual do conhecimento sobre o Castelo de Cima de Tânger___________________37 1.1 - Recursos documentais referentes ao tempo pré-português em Tânger
38
1.2 - Recursos documentais do tempo português em Tânger
42
1.3 - Fontes documentais do tempo inglês em Tânger
59
1.4 - Recursos documentais que sucederam ao tempo inglês em Tânger até à atualidade
89
2 - Evolução morfológica do Castelo de Cima_______________________________________ 98 2.1 – Pré-existências: Kasbah Islâmica
99
2.2 – Primeira fase: Tardo-Medieval_____________________________________________________ 102 2.2.1 Paço e cerca fortificada
103
2.2.1.1 O Paço
104
Implantação e Morfologia do Paço
106
2.2.1.2 – Cerca envolvente
129
Frente Este
130
Frente Sul
134
Frente Oeste
137
Frente Norte
141
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2.2.1.3 Apropriações e novas construções
150
2.2.2 – Reforço Manuelino____________________________________________________________ 155 2.2.2.1 – Generalização das novas práticas de guerra e repercussões na arquitetura militar
156
2.2.2.2 - O Setor Oeste do Castelo de Cima
158
2.3 – Segunda Fase: Moderno__________________________________________________________ 171 2.3.1 - A Necessidade de um profundo reforço defensivo nas praças conservadas
173
2.3.2 – Intervenção em Tânger: O projeto e construção da Cidadela
174
2.3.2.1 – Materiais
180
2.3.2.2 – Morfologia e Elementos constituintes
182
Frente Este
184
Frente Sul
192
Frente Oeste
197
Frente Norte
198
Reforma do Baluarte-Torre Noroeste e da Torre do Sino
202
Plataforma Norte
204
2.3.3 – A cidadela no Contexto arquitetónico português
213
2.3.3.1 – Análise Comparativa
214
2.4 - O Castelo de Cima do período inglês à atualidade_____________________________________ 224 2.5 - Síntese Conclusiva: O Castelo de Cima e a “Arte da Guerra”_____________________________ 233 Bibliografia________________________________________________________________________ 245 Abreviaturas
250
Glossário
251
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Introdução
O forte desejo de ampliação territorial, conjugado com motivações religiosas, políticas e económicas desencadeou, em princípios do século XV, o começo do longo período de expansão ultramarina portuguesa. A permanência nos territórios conquistados ou recém-descobertos implicava, além de diversas apropriações, a construção de vários equipamentos que garantissem a subsistência na nova possessão e assegurassem a sua proteção contra ataques inimigos. Algumas das edificações construídas durante esse período sobrevivem até aos dias de hoje, disseminadas pelo globo, testemunho físico da dimensão mundial do império lusitano. A arquitetura militar constitui uma boa parte desse património difundido, essencial na defesa e manutenção dos domínios do ultramar, servindo interesses estratégicos e representativos, e refletindo a arte e a técnica de cada tempo adaptada aos vários contextos geográficos em questão. É no Norte de África, mais concretamente com a tomada de Ceuta, em 1415, que se iniciam as conquistas portuguesas além-mar. Tânger, situada na zona ocidental do estreito de Gibraltar1, representava uma praça-forte com elevado valor, particularmente devido à sua localização favorável, que lhe permitia controlar o ponto de entrada para o Mar Mediterrâneo. Após várias expedições fracassadas, em 1471 é ocupada definitivamente pelos portugueses. Na realidade, a presença lusitana em Tânger corresponde a um intervalo de aproximadamente dois séculos2, durante os quais ocorreram grandes alterações morfológicas na mancha urbana, decretadas pelos vários monarcas que se sucederam, motivados pelo reconhecimento da necessidade de ter um bom sistema defensivo e pela procura de afirmação da sua identidade. Ao longo desse período, acompanhando o progressivo desenvolvimento e aperfeiçoamento da artilharia de fogo, estando sob constante pressão inimiga, as estruturas fortificadas foram alvo de várias reformas, no sentido de oferecerem uma resposta mais eficaz aos ataques. O “Castelo de Cima” constituía um elemento fundamental para a salvaguarda da cidade. Tratando-se, substancialmente, de uma acrópole fortificada, anunciava a nova soberania reinante desde a zona mais elevada da urbe, o setor Noroeste, antiga implantação da alcáçova islâmica. Em complemento, uma outra fortificação era responsável pelo controlo do movimento mercantil que acedia à baía. Esse Castelo Novo, construído de raiz, apresentava, além da escala, uma linguagem nitidamente diferente da do análogo. As duas principais fases da fortificação à cota alta analisadas nesta dissertação, separadas por um intervalo temporal de quase cem anos, bem como algumas intervenções isoladas realizadas entre os balizamentos considerados, tiveram sempre por base uma avaliação da eficácia dos sistemas defensivos face aos desafios que a evolução da arte da guerra colocava. Quando o complexo inicial, composto por um paço cercado por altas cortinas torreadas se tornou obsoleto, mesmo após o reforço da frente Oeste, Este canal marítimo, que separa o continente europeu do africano e ao mesmo tempo une o oceano Atlântico ao mar Mediterrâneo, deve o seu nome ao líder mouro Tariq ibn Ziyad que, em 711, atravessou o estreito para iniciar a conquista do reino visigótico. Desembarcou numa pequena península com um promontório ao qual chamaram de “monte de Tariq”, em árabe “Jabalal-Tariq” que deu origem ao nome Gibraltar. 2 O período de ocupação portuguesa em Tânger estendeu-se desde 1471 a 1661, quando é entregue a Inglaterra como dote de casamento pela união de D. Catarina de Bragança com D. Carlos II de Inglaterra. 1
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impôs-se a sua transformação numa Cidadela, alterando por completo a imagem do conjunto. De facto, não se pouparam esforços na atualização do Castelo de Cima, reconhecendo-se a presença de vários vultos especializados na praça, durante as obras da construção referida. André Rodrigues, mestre-deobras da cidade inicia os trabalhos sob a orientação de Miguel de Arruda. Diogo Telles e Isidoro de Almeida são posteriormente enviados em auxílio da longa empresa, bem como especialistas estrangeiros, que dominavam a construção “ao Moderno”. Deste modo, a obra refletia, evidentemente, o cruzamento de conhecimentos e ideais dos intervenientes. Desde a entrega da praça aos ingleses, que a abandonam duas décadas mais tarde, a densificação do tecido urbano, com uma intensa ocupação dos espaços disponíveis, camuflou a maioria dos vestígios da fortificação de cima e apagou irreversivelmente outros. Felizmente, a documentação antiga que chegou aos dias de hoje, mapas e gravuras, estudos e publicações e o levantamento métrico e fotográfico das ruínas feito no local, forneceram informação suficiente para se tecer uma hipótese fundamentada de reconstrução dos dois principais momentos construtivos do Castelo de Cima, objetivo basilar deste trabalho. A partir da produção gráfica foi possível realizar uma leitura evolutiva pormenorizada do conjunto, entendendo os seus propósitos funcionais, compreendendo a linguagem utilizada em cada estágio e percebendo de que forma as duas fases respondiam à realidade dos seus tempos, no contexto de produção arquitetónica militar portuguesa dos séculos XV e XVI.
Estrutura da dissertação A dissertação divide-se em duas partes essenciais. A primeira enquadra o objeto de estudo num contexto geográfico e cronológico alargado, possibilitando entender a cidade onde se implanta enquanto importante aglomerado urbano secular, no qual se sucederam ocupações de diversos povos, até ao século XV, altura das investidas da coroa de Portugal. Em seguida, insere-se Tânger no contexto da ampliação territorial lusitana, cujas motivações orientaram, num primeiro momento para o Norte de África. Neste ponto expõem-se as conquistas no Magrebe que antecederam a apropriação. À menção do episódio da tomada de Tânger, seguem-se referências a adaptações feitas na praça, a evolução sucinta da urbe em paralelo com a política de manutenção das possessões do reino, e subsequente ocupação inglesa, a quem os portugueses entregam a cidade em 1661. A segunda parte do trabalho, mais extensa, centraliza-se no estudo do objeto e encontra-se repartida em vários capítulos. Inicialmente é apresentado o estado da arte do Castelo de Cima, expondo, de forma crítica e analítica as fontes consultadas, organizadas considerando a sua datação, destacandose detalhes proveitosos para a reconstituição da fortificação e expondo-se fragilidades que comprometeram a retirada de dados. São ainda revelados os vestígios remanescentes que perduraram até à atualidade. Após a exposição do ponto de partida para o estudo morfológico e evolutivo do Castelo, apresenta-se a sua reconstituição hipotética, subdividindo-se a explicitação nas duas grandes fases
14
previamente identificadas. Numa apresentação sequencial dos argumentos que conduziram à formulação das possibilidades, procede-se à exposição dos elementos arquitetónicos constituintes, numa abordagem individual e posteriormente de conjunto. Após a leitura evolutiva de cada momento, insere-se o caso de estudo no panorama arquitetónico português respetivo, através da analogia com obras coevas. Terminase com a verificação do cumprimento da sua função militar, através do estudo da eficácia defensiva que a sua morfologia em constante atualização proporcionava, face às dificuldades de cada tempo, culminando numa síntese conclusiva.
Metodologia A metodologia de elaboração desta dissertação resume-se a quatro pontos principais: pesquisa abrangente, seleção crítica, reconstituição fundamentada e interpretação dos resultados. Após a recolha bibliográfica inicial, o primeiro passo consistiu em selecionar, de todo o acervo documental, iconográfico e cartográfico disponível, as fontes que estivessem relacionadas especificamente com o Castelo de Cima. De entre os recursos visuais onde surgia representado, quer em planta, quer em vista perspética ou axonométrica, selecionaram-se os mais rigorosos, tendo por base comparativa a cartografia atual. O reconhecimento no local de vestígios de construções identificadas nas fontes foi fundamental, realizando-se algumas medições e registos fotográficos. Contudo, o estrato português sobrevivente, que poderia sustentar a investigação, é muito reduzido, determinando que a recriação da fortificação à cota alta, nos seus vários momentos, tenha envolvido uma elevada carga especulativa. Justifica-se, deste modo, a opção de explicar, numa narrativa sequencial, o processo dedutivo que conduziu à formulação das hipóteses para os vários elementos arquitetónicos que a compunham em ambas as fases, permitindo ao leitor seguir o raciocínio exposto e formular o seu próprio parecer. Para essa explicitação, havendo escassas fontes datadas do tempo lusitano em Tânger, foi primordial o recurso ao cruzamento de referências de períodos subsequentes, retirando-se desse exercício dados sobre o tempo anterior. Sendo rara uma unanimidade entre evidências, as opções para a reconstituição envolveram também o confronto das evidências com os vestígios atuais e estudos publicados. Ainda assim, no caso específico da conformação do Paço não se conseguiu optar entre duas hipóteses, havendo argumentos válidos para ambas. A produção gráfica de desenhos 2D e 3D apresentase em folhas síntese, concretizando o resultado da argumentação, com o objetivo de facilitar o entendimento de cada componente face ao conjunto. De forma a auxiliar o estudo interpretativo que se seguiu à recriação das imagens do Castelo, enquadrando-o num contexto arquitetónico português mais alargado, houve ainda necessidade de estender a pesquisa a outras construções militares, posteriormente alvo de comparação.
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I - CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E GEOGRÁFICA
Figura 1 A dimensão da atual mancha urbana construída de Tânger, percetível a partir da fotografia aérea do Estreito de Gibraltar.
De forma a perceber as intervenções realizadas pelos portugueses em Tânger, entre os séculos XV e XVII, é essencial compreender o contexto histórico e geográfico no qual se inserem. Atualmente uma das maiores e mais populosas cidades de Marrocos, situada no topo Noroeste do continente africano, a pouco mais de uma dezena de quilómetros da Península Ibérica, as origens de Tânger remontam ao primeiro milénio antes da Era Comum. No século XV, fez parte do conjunto de praças-fortes conquistadas e/ou fundadas pelo reino de Portugal no Magrebe durante o período de expansão ultramarina, uma fase de verdadeiro apogeu lusitano, cujo pioneirismo teve repercussões em toda a Europa, promovendo o desenvolvimento tecnológico e científico. Verificaram-se, durante esse tempo, progressos significativos ao nível da arte da guerra, cuja difusão obrigou a grandes mudanças nos sistemas defensivos, desencadeando o aparecimento de uma nova linguagem na arquitetura militar.
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1 – Das origens à grande cidade islâmica do Estreito
Registos referentes à cidade de Tânger aparecem já desde a antiguidade, quando fontes gregas testemunham o seu grande destaque enquanto porto comercial dentro do panorama mediterrânico3. Na realidade, o referido povoamento ribeirinho foi fundado no século V AEC por colonos cartagineses, numa região onde se sabe ter havido uma intensa ocupação pré-histórica. Seguiram-se anos de presença fenícia até ao século I AEC, quando fica sob domínio romano, inicialmente como aliada independente e mais tarde como colónia. A partir de 40 EC integra efetivamente o império Romano, detendo o estatuto de capital da província Mauritânia Tingitana4. Tingis5, como era designada, destaca-se desde cedo pela sua importância e valor estratégico. “Nesta época, Tânger, para além da sua relevância política, foi também importante centro económico, em estreita ligação com Lixus (Larache). Peixe salgado, o célebre «garum», azeite, vinho e peças de cerâmica eram as principais riquezas da região, que através do seu porto, eram expedidas para outras zonas do império.” 6
Com o enfraquecimento do império Romano do Ocidente, no século V, a urbe foi tomada pelos vândalos do Norte da Europa e na centúria seguinte incorporada pelo Império Bizantino7. De facto, Tânger em conjunto com a vizinha Ceuta converteram-se nos últimos redutos da presença daquele domínio na região, até à sua conquista pelos árabes em 7108. Avançando até ao século X, descrições de geógrafos muçulmanos permitem uma aproximação mais formal àquela que seria a imagem da cidade, islâmica à época. Através das indicações de Ibn Haukal, percebe-se que o aglomerado original se encontraria localizado junto à praia, praticamente ao nível do mar. Contudo, o geógrafo refere que, mais tarde, seria transferido uma milha da sua implantação primitiva9. De acordo com Al Bekri10, a progressão do areal11 teria determinado o abandono da Tindja-tALBUQUERQUE, Luís de – Dicionário da História dos Descobrimentos Portugueses: Volume II, 1994, p. 1014. As províncias romanas eram divisões administrativas que englobavam territórios abrangentes situados fora da Península Itálica, que estavam sob controlo de Roma. A Mauritânia Tingitana era uma província localizada no Noroeste de África que pertenceu ao império Romano até à primeira metade do século V. 5 O nome Romano atribuído a Tânger: Tingis, está diretamente relacionado com as raízes mitológicas da sua fundação. De acordo com Plínio, o Velho na “Naturalis Historia” e Pompónio Mela na sua “De Chorographia” a cidade teria sido fundada pelo gigante Anteu, que é mais tarde derrotado em combate por Hércules. Do nome da viúva de Anteu, Tinge, deriva a designação da cidade. CORREIA, Jorge – Implantação da cidade portuguesa no Norte de África: Da tomada de Ceuta a meados do século XVI, 2006, p. 177. E ainda sobre a fundação de Tânger MENEZES, D. Fernando de (Conde da Ericeira) – Historia de Tangere, que compreende as notícias desde a sua primeira conquista ate a sua ruína, 1732, p. 3. 6 ALBUQUERQUE, 1994, p. 1015. 7 O império Bizantino representava a parcela oriental do império Romano que resistiu ao colapso e fragmentação, no século V. 8 “Foi o lendário Muça quem a arrebatou ao império Bizantino no início do século VIII, conhecendo diversos senhores até ao século XV (…).” DIAS, Pedro – A Arquitectura dos Portugueses em Marrocos 1415 – 1769. 2002, p. 75. 9 De acordo com o geógrafo de Ibn Haukal, no “Description de l’Afrique” é durante o período Idríssida que se transfere a cidade para uma localização que distaria uma milha da primitiva, surgindo como um aglomerado urbano não amuralhado. IBN HAUCAL – Description de l’Afrique. Traduction par M. Le Baron Mac Guckin de Slane. Paris: Imprimerie Royale, 1842, p. 31. 10 Al Bekri foi um geógrafo e historiador do século XI. Para aprofundar a sua obra consultar AL BEKRI, Abu Obeid – Description de l’Afrique Septentrionale. Traduction par Mac Guckin de Slane. Alger: Typographie Adolphe Jourdan, 1918. 11 “E da outra banda estã huuns edificios velhos onde em outro tempo foy hua cidade muy grãde e se chama Tangere Velho (…) e Tanger era hua cidade abaixo em a praya a qual ho mar alagou e he cuberto de área porem achã la ajnda muytas cousas da pouoraçã.”. FERNANDES, Valentim in O manuscrito "Valentim Fernandes", 1940, p. 34. As ruínas da cidade velha “Tanja-Balia” eram ainda percetíveis no tempo português, aparecendo referidas nas crónicas de Zurara e de Rui de Pina. Localizadas à cota baixa, eram acessíveis após o atravessamento de uma ponte que possivelmente cruzava a foz de um dos rios que atualmente desagua na baía. ”(…) em declive até ao rio Mogoga, que desagua em Tânger Velho (…).” MENEZES, 1732, p. 21. Na realidade, também durante o tempo de ocupação inglesa de Tânger e mesmo durante o século XVIII conheciam-se vestígios da antiga povoação, uma vez que aparecem identificados em vários mapas e planos cartográficos. 3 4
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el-Baída12, sendo uma nova povoação implantada sobre a colina, que tudo aponta tratar-se da encosta da atual Medina13. Declara ainda que a nova urbe teria o seu perímetro amuralhado e no interior existiriam mercado e mesquita. Do século XII, as descrições de Idrissi14 corroboram as precedentes e transmitem a imagem de uma cidade próspera e em desenvolvimento15. Ao longo do tempo, dinastias idríssidas, omíadas, almorávidas e almôadas dominaram a cidade. No entanto, a sua posição pouco central e deslocada em relação aos novos centros urbanos em crescimento a Sul16, impedia-a de competir com os mesmos, conduzindo à sua progressiva autonomização e perda de poder económico. Da mesma forma, também a permuta do principal porto de saída de frota para a Península Ibérica, de Tânger para Alcácer Ceguer, favoreceu o declínio da primeira17. Contudo, o seu potencial permanecia, diretamente relacionado com a implantação num ponto fulcral, portal de atravessamento do Atlântico para o Mediterrâneo e motivo de cobiça por parte de várias nações. “(…) o que nos parece he, que esta povoação se continuava com a que hoje dura, por não pedir menor espaço e grandeza que della se refere, affirmando muitas memórias que passava de trinta mil vizinhos.”18
D. Fernando de Menezes, último governador português, conjeturou sobre a possibilidade da população da cidade islâmica, em tempos, ter sido constituída pelo impressionante número de 30000 vizinhos, estendendo-se desde a Tânger Velha até à nova cidade, hipótese que, embora muito pouco provável19, comprova, no mínimo, a reputação da sua opulência. Sob domínio dos merínidas20, embora convertida num reino independente, governada por Sala ben Sala, Tânger surge, em 1437, como um extenso aglomerado urbano amuralhado, delimitado por uma vasta cerca sensivelmente circular e bem preparado defensivamente21.
Figura 2 “Tanger” Mapa datado de 1738, onde aparece identificada a Tânger velha (“Vieux Tanger”) e onde se pode perceber a sua implantação, sensivelmente ao centro da baía, junto a dois cursos de água. BNF – SHM, P110, D3, 10/1D.
Consultar ainda CORREIA, 2006, p. 181. 12 Tindja-t-el-Baída, “Tânger, a Branca” era a designação dada à cidade velha, na obra “Description de l’Afrique Septentrionale” de Al Bekri. 13 As descrições dos geógrafos permitem comprovar a localização da antiga cidade, sensivelmente no centro da baía de Tânger, afastada uma milha da colina da Medina atual. 14 IDRĪSĪ - Description de l’Afrique et de l’Espagne par Edrîsî, 1866, p. 201. 15 CORREIA, 2006, p. 178 e 179. 16 Começam a desenvolver-se, em regiões mais meridionais, centros urbanos tipicamente muçulmanos, como Fez, Baçorá, Tamdoult e mais tarde Marraquexe. ALBUQUERQUE, 1994, p. 1015. 17 CORREIA, 2006, p. 179. 18 MENEZES, 1732, p. 4. 19 “Trata-se de uma conjetura improvável, para cuja desconstrução teórica concorre o hiato existente entre os estabelecimentos baixo (Tânger velha) e alto (Tânger nova), este seguramente o local onde se perpetuaria a ocupação física da colina que hoje constitui o coração desta cidade do Estreito.” CORREIA, 2006, p. 179. 20 Tânger torna-se uma possessão merínida em 1274. 21 CORREIA, 2006, p. 179. Consultar a Chronica de El-Rei D. Duarte de Ruy de Pina.
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2 -Expansão marítima portuguesa
Para entender as razões que conduziram os portugueses a Tânger, é necessário compreender o complexo contexto de expansão marítima no qual os acontecimentos se integraram. Portugal foi precursor desse longo período considerado um dos principais motores para o surgimento da época Moderna22 e durante o qual houve uma profunda transformação da mentalidade do homem ocidental23. Essa projeção nacional processou-se de duas formas diferentes. A primeira caracterizava-se por expedições planeadas a território já conhecido, onde se sabia poder retirar vantagens e riqueza para o Estado, havia uma estratégia e local definidos, foram conquistadas terras e estabelecidos novos povoados. A segunda consistia em explorações marítimas a território desconhecido, em busca de “Novos Mundos geográficos e humanos”24, descobriram-se novas terras e foram determinadas novas rotas de navegação. Tânger enquadrava-se no primeiro grupo. A sua existência, localização e relevância eram perfeitamente conhecidas pelos portugueses25. O pioneirismo lusitano deveu-se à conjugação de fatores económicos, políticos e geográficos. Localizado no extremo Oeste do continente europeu e voltado para o extenso oceano Atlântico, Portugal possuía particularidades que, desde cedo, estimularam uma relação intrínseca entre a população e o mar26. Além da obtenção de bens alimentares, dependia-se das águas para as frequentes trocas comerciais27, determinando o início das atividades marítimas muito antes do século XV, embora para fins exclusivamente mercantis28. Superado o período de crise política que assolou Portugal de 1383 a 138529, D. João I necessitava de se legitimar perante o reino que agora governava, perante Roma e sobretudo de se afirmar perante
A expansão marítima portuguesa, no seu conjunto e com a sua vasta influência, é considerada um dos principais alicerces que sustentam o surgimento dos tempos Modernos. OLIVEIRA, A. - História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa, 1999, p. 69. 23 As notícias trazidas pelos navegadores e marinheiros: informações orais, relatos e crónicas, vieram provocar uma autêntica revolução no campo do conhecimento, colocando em causa algumas ideias aceites e incontestáveis até então. ALBUQUERQUE, Luís de – Os Descobrimentos Portugueses,1985, p. 2 e 3. As novas informações difundiam-se rapidamente por todo o continente europeu, fundamentalmente por iniciativa de humanistas e eruditos, através de relatos, de que são exemplo os recolhidos por Montalbondo e Ramusio e de obras como a “Novus Orbis de Grynaeus” ou o “livro de Linshoten”. ALBUQUERQUE, 1985, pág. 2-3. Até finais do século XIV, apesar dos contactos comerciais frequentes e da circulação de mercadores e peregrinos, a civilização europeia, em geral, denunciava um grande isolamento relativamente ao resto do Mundo. Na verdade, o conhecimento relativo aos restantes continentes era escasso e muitas vezes não correspondia à realidade. “Da Europa – as regiões setentrionais eram ainda imperfeitamente conhecidas. Do continente africano – ignorava-se quase completamente a África negra (…). Da Ásia – as notícias correntes sobre as regiões meridionais compunham-se de algumas realidades e muita fantasia; e do Extremo-Oriente pouco ou quase nada era sabido.” CORTESÃO, Jaime – Os Descobrimentos Portugueses I, 1980, p. 13. 24 CORTESÃO, 1980, p. 13. 25 Descobertas cerâmicas na gruta pré-histórica de Achakar, nas proximidades de Tânger, comprovam a ancestralidade das relações com a Península Ibérica. ALBUQUERQUE, Luís de – Dicionário da História dos Descobrimentos Portugueses: Volume II, 1994, p.1014. 26 Uma boa parte da população portuguesa revelava grande familiaridade com o mar. As cidades de maior escala situavam-se na proximidade da costa e portanto havia uma grande concentração de habitantes ao longo do extenso litoral português. Era das águas que extraiam os elementos fundamentais para a sua subsistência: fazia parte do quotidiano litoral a pesca, a salga, a extração de sal e a construção naval. 27 “A sociedade portuguesa desde a primeira metade do século de Trezentos ganha progressivamente uma estrutura económica e uma mentalidade de carácter vincadamente cosmopolita. (…) os Portugueses alargaram o seu tráfico por mar à Espanha, à África setentrional, à França, à Flandres, à Inglaterra, aos portos mediterrâneos de Itália e do Levante; e Portugal torna-se um vasto mercado (…).” Em CORTESÃO, Jaime – Os Descobrimentos Portugueses II, 1980, p.311. 28 Consultar o capítulo “Expansão Medieval” em OLIVEIRA, 1999, p. 23 a 38. 29Em 1383, Portugal deparava-se com uma crise de sucessão. D. Fernando morreu sem deixar descendentes masculinos, e Castela, beneficiando do momento de fragilidade do país vizinho, tenta a reconquista. Com a vitória portuguesa na Batalha de Aljubarrota, em 1385 termina a crise e D. João, Mestre de Avis, torna-se rei de Portugal, iniciando-se deste modo uma nova dinastia. São estabelecidas tréguas com Castela em 1411, no Tratado de Ayllón e assinada a paz em 1432. 22
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Castela30. É neste contexto que cresce gradualmente um pensamento expansionista que se direciona, num primeiro momento, para territórios norte-africanos.
Figura 3 Distribuição das praças e fortalezas portuguesas conquistadas no Norte de África e respetivas datas de permanência.
“A sociedade de final da Idade Média impunha a aceitação do novo regime por parte do papado e dos principais reinos cristãos, atendendo à deficiência da dinastia em matéria de legitimidade (o rei era bastardo) e à dimensão exígua do território e dos recursos.” BETHENCOURT, Francisco [et. al.] – História da Expansão Portuguesa, 1998, p. 120. 30
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2.1 - O Norte de África
“Eu não o teria por vitória, nem o faria em boa verdade, ainda que soubesse cobrar todo o mundo por meu, se não sentisse que em alguma maneira era serviço de Deus (…).”31
Dar continuidade à luta contra os infiéis terá sido uma das grandes motivações das primeiras incursões militares a Marrocos32. Com uma postura ativa na reconquista cristã, Portugal conseguiria o apoio do Papado do qual recebera diplomas pontifícios que legitimavam as expedições33. Havia também interesse económico e estratégico naquelas terras das quais se conhecia o potencial. Pensava-se poder aumentar os lucros do reino, controlar rotas comerciais e possibilitar a ascensão da nobreza34. “Era em Marrocos que os portugueses iam buscar as mercadorias de troca essenciais- trigo, cavalos e panos (…) Marrocos funcionava como escola de guerra por onde começava o treino militar (…). Foi o único espaço ultramarino em que os próprios monarcas participaram na conquista (…).”35
A expansão portuguesa no Norte de África desenvolveu-se em diferentes etapas, ao longo de mais de um século de investidas em território muçulmano36, caracterizando-se essencialmente pela tomada e ocupação de cidades pré-existentes como foi o caso de Tânger (1471), excetuando algumas fundações ex-novo como foi exemplo Mazagão (1514). Os vários núcleos retirados ao domínio islâmico distribuíam-se ao longo da costa. Com a consciência da impossibilidade de, em caso de emergência, acorrer em tempo útil à metrópole, cada ponto conquistado distava da praça lusitana mais próxima no máximo um dia de viagem por terra ou por mar37. Assim, apesar da linha costeira magrebina não ser ocupada de forma contínua ao longo da sua extensão38, garantia-se um constante suporte e coesão entre as cidades39. As praças-fortes portuguesas situavam-se, fundamentalmente, em duas áreas de condições geopolíticas distintas: uma no Norte, nas proximidades do estreito de Gibraltar e a outra no território mais a Sul40 (Figura 3). A região que as dividia era governada pelo reino de Fez41.
Gomes Eanes de Zurara - Crónica da Guiné, Cap. IX in GUEDES, Maria Helena – Os Grandes Descobrimentos, 2015, p. 49. ponto assente que as viagens dos descobrimentos foram, historicamente, a continuação imediata da guerra com os mouros (…).” ERDMANN, Carl – A ideia da Cruzada em Portugal. Coimbra, 1940. 33 Na realidade, a vontade de avançar sobre o Magrebe aparece no reinado de D. Afonso IV (1325-1357), a quem é concedida uma bula de cruzada Gaudemusetaxultamus, No entanto, as suas aspirações nunca chegaram a concretizar-se. MENDES, Carolina - O Castelo Novo de Tânger: Resgate da arquitetura militar portuguesa entre os séculos XV e XVII, 2017, p. 21. 34 A pressão social da nobreza exigia o aumento das rendas. A conquista de novos territórios apresentava-se com solução. 35 OLIVEIRA, A. - História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa, 1999, p. 67 e 68. 36 Em 1415 é conquistada Ceuta e em 1519 é por último conquistada Aguz. 37 MOREIRA, Rafael – A Construção de Mazagão: Cartas inéditas 1541-1542, 2001, p. 23. 38 “A ocupação praticada pelos portugueses não era somente restrita. Era também limitada ao litoral. Nunca conseguiram fazer penetrar a sua soberania, com um mínimo de consistência, para o interior do território marroquino.” AMARAL, Augusto Ferreira do – Mazagão: A Epopeia Portuguesa em Marrocos, 2007, p. 41. Além das cidades fortificadas, apenas dominavam o território circundante imediato, pertencendo o restante aos reinos de Marrocos e Fez. Isto impedia, em grande medida, a comunicação entre praças, salvo por mar. 39 “(…) servia ao apoio mútuo, a coesão comercial, a troca de informações e decisões urgentes, o socorro de víveres e reforço militar em caso de perigo.” MOREIRA, 2001, p.23. 40 Na zona setentrional foram tomadas Ceuta (1415), Alcácer Ceguer (1458), Arzila e Tânger (1471), que no seu conjunto definiam o “Algarve Além-mar”. Na zona meridional, foram conquistadas Safim (1508), Azamor (1513) e foi fundada Mazagão (1514). 41 Este hiato na ocupação da costa garantia ao Reino de Fez o acesso ao mar. Aí permaneciam grupos de corsários que ameaçavam constantemente a segurança da navegação e condicionavam o abastecimento das Praças. 31
32 “(…) é
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2.1.1 - Antecedentes da conquista de Tânger
É no reinado de D. João I (1385-1433) que se inicia o longo período de permanência portuguesa no Magrebe42. A tomada de Ceuta43 em 1415, sob o comando do próprio rei44, fruto de uma vontade antiga e resultado de uma expedição de longo planeamento prévio45, vem inaugurar uma fase de ocupações, apropriações e fundações de praças no Norte de África. Após a vitoriosa investida em Ceuta, Tânger desperta o interesse da coroa. O grande aglomerado urbano situado 11 léguas a Oeste da nova possessão, que se encontrava permanentemente sujeita a pressão militar por parte dos mouros, não só firmaria a presença portuguesa naquela região como garantiria estabilidade no seu domínio. A praça representava, portanto, um trunfo estratégico para o controlo do estreito de Gibraltar46 e a sua aquisição torna-se uma obsessão para o reino, como o comprovam as 5 tentativas de conquista a que é sujeita. É no reinado de D. Duarte (1433-1438) que se organiza a primeira expedição rumo a Tânger47, vinte e dois anos após a ocupação de Ceuta48. Sob o comando do infante D. Henrique49, a controversa empresa50 revelou-se um desastroso falhanço, com consequências graves a nível político e militar para a coroa. A cidade era densamente povoada, fortificada e de grandes dimensões, o que impossibilitava o cerco completo de todo o perímetro. Da mesma forma, a discrepância de recursos humanos inviabilizava um combate justo51. Além de precipitada, a missão de Setembro de 1437 apresentava graves lacunas ao nível do planeamento, que a par de alguma falta de confidencialidade do plano e desproporção de meios
Os portugueses permanecem no Norte de África durante mais de 350 anos, desde a tomada de Ceuta em 1415 ao abandono de Mazagão em 1769. 43 Consultar ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica da Conquista de Ceuta. 44 A cidade é conquistada a 21 de agosto de 1415, sob comando de D. João I. “(…) um Estado que assume, orienta, e, conscientemente, coordena toda a ação e atividade.(…) Nos tempos anteriores- e não obstante a decidida e direta proteção de alguns soberanos – nunca o Estado se envolveu tão diretamente e tão profundamente na ação. (…). O comando coube ao próprio rei, D. João, acompanhado de seus filhos mais velhos e dos representantes das principais casas senhoriais do país.” OLIVEIRA, 1999, p. 19 e 89. 45 De acordo com Gomes Eanes de Zurara, na “Crónica da Conquista de Ceuta”, 6 anos antes da expedição, já D. João se ocupava dos preparativos. LOPES, David – A Expansão em Marrocos, 1989, p. 5. 46 O domínio do estreito significava um corte no acesso ao mar Mediterrâneo para os reinos muçulmanos do Magrebe, que viam assim comprometido o contacto com o reino Nacérida de Granada. Permitia também aos portugueses o controlo das rotas marítimas vindas do Atlântico e dificultava a atividade de corsários e do comércio mouro. DIAS, Pedro – A Arquitectura dos Portugueses em Marrocos 1415 – 1769, 2002, p.33. 47 Sobre a primeira tentativa de conquista ver PINA, Ruy de - Chronica d’El-Rei D. Duarte, 1901, p. 100 a 136. E ainda consultar MOREIRA, Hugo - A Campanha Militar de Tânger (1433-1437), 2009. 48“(…)Ceuta, isolada, só dava prejuízo e, do ponto de vista estratégico, poucas vantagens havia trazido ao país.” OLIVEIRA, A. História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa, 1999, p. 102. 49 O Infante D. Henrique, “o Navegador” (1394-1460), irmão de D. Duarte é considerado uma figura de extrema importância no contexto do início da era das Descobertas. "O infante D. Henrique foi toda a sua vida partidário da expansão portuguesa em Marrocos. (...) Foi o mais entusiasta colaborador de D. João na empresa de Ceuta (...) quis apossar-se de Tânger (...) quando o seu sobrinho, D. Afonso V, mostrou o mesmo ardor nessa conquista, ele quis ainda, apesar dos seus muitos anos, desembainhar a espada e lá foi com o soberano à conquista de Alcácer Ceguer em 1458." LOPES, 1989, p. 11. 50 Não havia consenso no reino, relativamente à aprovação da realização desta expedição. Ver MOREIRA, 2009, p. 36. Na verdade, o próprio Infante D. Pedro alerta D. Duarte para o despreparo dos portugueses face aos mouros da extensa cidade e os que pudessem aparecer em seu auxílio. “E para cercarem Tanger, certo, senhor, é commetimento muito para temer; porque a cidade é grande e povoada de muita e nobre gente, e a vossa, alem de não ser abastante para a cercar toda em torno, ainda não é poderosa de resistir e se deffender dos cercados, quanto mais dos mouros de fora que vierem em seu soccorro (…).” PINA, Ruy de - Chronica d’El-Rei D. Duarte, Lisboa, 1901, p. 87. 51 CORREIA, 2006, p. 181. 42
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teceram o seu terrível destino52, culminando no cativeiro do infante D. Fernando, que morre em Fez anos mais tarde53. Novas investidas no Norte de África só viriam a acontecer no reinado de D. Afonso V (1438-1481), “o Africano”54. Sob a política expansionista do monarca, é tomada a vila de Alcácer Ceguer, em 1458, construído o castelo de Arguim, em 1461, e há uma investida contra Anafé, sem a ocupar, em 1468/69. Todavia, o grande objetivo continuava a ser o domínio da baía de Tânger55: entre 1462 e 1464 ocorreram mais três assaltos infrutíferos ao cobiçado porto, liderados pelo infante D. Henrique. Em Agosto de 1471, beneficiando de um período de instabilidade política no reino de Fez56, D. Afonso V promove uma proveitosa expedição a Arzila, aglomerado urbano próximo da ambicionada cidade. Conquistada com relativa facilidade, embora com muitas baixas humanas, a praça imediatamente se revelou um vantajoso acréscimo. A investida estratégica colocava Tânger totalmente cercada por possessões portuguesas.
Figura 4 “Painéis de São Vicente de Fora”. Executados por Nuno Gonçalves, pintor régio do reinado de D. Afonso V, dividem-se em dois trípticos com a representação de dois episódios da História. O primeiro pensa-se ser relativo ao desastre de Tânger de 1437, com um funeral simbólico de D. Fernando. O segundo pensa-se ser alusivo à vitória em 1471.
“Sallah ben Sallah (…) capitão dessa cidade e segundo a crónica de D. Duarte tinha 7000 homens prontos para combater, acrescentando-se os besteiros que vieram de Granada em seu auxílio.” MOREIRA, 2009, p. 73. 53 O infante D. Fernando, irmão mais novo de D. Duarte, é feito cativo após a derrota. A sua libertação dependeria da entrega de Ceuta aos mouros. Essa troca nunca chegaria a acontecer e apesar de tentarem o seu resgate de outras formas, D. Fernando acaba por morrer em Fez, em 1443. Este episódio valeu-lhe o epíteto de Infante Santo. “Ceuta era uma carta que não se poderia jogar como troca fosse do que fosse.” Idem, p. 88. 54 Recebe o cognome de “o Africano” pelo seu empenho nas conquistas no Norte de África, curiosamente o mesmo cognome do grande conquistador romano de Cartago, “Cipião o Africano”. MOREIRA, 2001, p. 23. 55 O facto de a cidade possuir uma ampla baía interessava também aos portugueses, no contexto da navegação, uma vez que facilitava o atracamento dos barcos. No Norte de Marrocos, apenas Ceuta apresenta também esta condição geomorfológica. Consultar LOPES, 1989, p. 7. 56 “Em 1465 registou-se a revolução idríssida, que se traduziu pelo assassínio do rei de Fez, Abd al-Hakk e pelo fim da dinastia merínida.” OLIVEIRA MARQUES, A. H. de [et. al.] - Nova História da Expansão Quatrocentista: A Expansão Quatrocentista. 1ª Edição, 1998, p. 279. 52
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2.1.2 - A tomada de Tânger
“Tanto que os moradores de Tangere souberam as clausulas destes consertos, de que ficavão excluídos, e que Mulei Xeque se voltara à guerra que antes trazia, ficarão atemorizados, e sem esperança de remedio: tendo por certo que El Rey valendose da occasião lhes pediria conta das perdas, e injurias passadas. Assim resolverão desamparar a Cidade antes que a isso os obrigasse El Rey vitorios, e experimentassem o daminio dos vizinhos.”57
Beneficiando da ausência do senhor da cidade, Mulei Xeque58, as tropas portuguesas ignoraram a rendição dos habitantes de Arzila e combateram até que se findasse toda a resistência59. Os habitantes de Tânger, ao tomarem conhecimento do sucedido e temendo o mesmo desfecho, por se encontrarem encurralados60, abandonaram rapidamente a praça61 deixando para trás uma grande quantidade de material em condições operacionais, incluindo peças de artilharia e pólvora62. Informado da notícia da retirada dos mouros, D. Afonso V envia imediatamente um exército de várias centenas de homens por terra e ainda catorze caravelas por mar63 e toma finalmente a cidade que o reino há tanto ambicionava, a 28 de Agosto de 147164, sem luta ou combate que vingasse a morte do seu tio. “O próprio rei, com o príncipe “e com a nobre jente de sua Corte, logo se foy aa dita Cidade, em que entrou já sem o ardente desejo de sua destruyçam e vingança, em que sempre vivia”.”65
Segundo Damião de Góis, o monarca não se mostrava inteiramente satisfeito com a pacificidade da conquista66, contudo, imediatamente procedeu à nomeação de cargos, doações e à ordenação de um conjunto de medidas que visavam grandes alterações na estruturação da própria cidade. Depois de um curto período de administração por parte de D. João, Marquês de Montemor, Rui de Melo, conde de
MENEZES,D. Fernando - Historia de Tangere. 1732, p. 33. Muhammad al-Shaykh, alcaide de Arzila. 59 Foram feitos prisioneiros mais de cinco mil mouros, entre quais alguns familiares diretos de Mulei Xeque. A troca dos cativos, D. Afonso V pretendia resgatar os ossos do Infante Santo. Em 1472, com a libertação do filho de Mulei Xeque foram entregues a Portugal as ossadas de D. Fernando. PEIXOTO, Indira – As arquiteturas militares de Arzila ao tempo português: Análise e interpretação evolutiva. 2017, p. 24. 60 A cidade de Tânger tornara-se num reduto islâmico isolado, rodeado de praças cristãs: Ceuta e Alcácer Ceguer a Leste e a recémtomada Arzila a Sudoeste. 61 “(…) os moradores da cidade de Tangere esquecidos da grande fortaleza d'ella e de si mesmos, principalmente temendo que a mortindade e estrago de Arzilla, de que por uma velha segundo se disse, foram avisados, não viesse também sobre elles, a tinham desamparada de todo. A qual leixaram vazia de suas pessoas e fazendas, e cheia de muito fogo, que as casas e relíquias d'ella sem proveito dos christãos se destruíssem e queimassem." PINA, Rui de - Chronica d’El-Rei D. Affonso V, 1901, p. 398 [66]. 62 “(…) D. João sem alguma contradição entrou na cidade, em que achou certas bombardas grossas, e muita outra artilharia e pólvora, a que os mouros per desacordo e cegueira, ou por causa de mais seu damno não poseram o fogo, e o punham andando ás palhas e cousas pequenas das casas (…).” Ibidem. Consultar ainda sobre o assunto ARAÚJO, Inês - As Tapeçarias de Pastrana. Uma Iconografia da Guerra, 2012, p. 74. 63 “(…) D. Afonso V é informado, por quatro cavaleiros mouros (…) envia, nesse mesmo dia, D. João, filho do duque de Bragança e futuro marquês de Montemor-o-Novo, à frente de 5000 homens de pé, todos besteiros, lanceiros e espingardeiros, mais cerca de 2000 a cavalo, a que se juntavam 14 caravelas idas por mar, para se apossarem da urbe (…).” GOMES, Saul António – Reis de Portugal: D. Afonso V, 2006, p. 195. 64 “(…) entrou nela a 28 de Agosto de 1471, dia dedicado ao Doutor da Igreja, Santo Agostinho, parecendo providência divina que um Santo africano entregasse esta cidade, profanada pelos mouros, a um príncipe católico e português (…).” MENEZES, 1732, p. 48. 65 GOMES, 2006, p. 195. 66 Nas palavras do cronista Damião de Góis “(…) lembrando-lhe da prisão do infante D. Fernando seu tio e dos danos e perdas que, desse tempo e do seu, a nação portuguesa ali recebera, parece que tomava por abatimento de sua real pessoa, ganhar uma tal cidade, sem lhe dela ficar nome de vencedor.” GÓIS, Damião de, 1977, p. 76 e 77 in GOMES, 2006, p. 196. 57 58
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Olivença, é nomeado governador de Tânger67, onde permanece vários anos a administrar uma cidade com uma ocupação predominantemente militar68. Com esta nova possessão, finaliza-se a primeira fase da conquista de Marrocos, que se inicia com D. João I, na tomada de Ceuta, e termina com D. Afonso V, Rei de Portugal e dos Algarves d’além e daquém mar em África. É nesta altura assinado um tratado de paz de vinte anos entre Portugal e Fez, que validava a posse lusitana das quatro praças até aí conquistadas69. O reino eleva o seu estatuto perante Castela e demonstra a Roma o seu contributo na batalha contra os infiéis.
2.1.3 - A ocupação e adaptação da praça
“A cidade nova está situada na linha mais ocidental desta enseada, em lugar acomodado e suave entre Ceuta e Arzila, em frente a Tarifa, na costa de Espanha (…). Os ares de Tânger são benignos e temperados (…). As águas saudáveis e copiosas; o terreno fecundo e abundante em todos os frutos e plantas que produz a Natureza (…). O campo é desigual; por onde quer erguem-se colinas que vão terminar nas serras do Atlas Menor, cujas ramificações cortam estas províncias. No entanto, nem as colinas nem as serras são ásperas e estéreis. Regam-nas vários rios e fontes, (…) frescos e agradáveis vales, co muita erva e pastos que as embelezam e fertilizam.”70
A cidade fortificada herdada pelos portugueses, em 1471, estendia-se pela encosta até ao areal banhado pelas águas do estreito, contemplando diante de si a Península Ibérica. Segundo os cronistas, era uma cidade de grandes proporções, densa e delimitada naturalmente a Norte pela escarpa sobranceira ao mar e a Este pela praia do início da baía71. Convertida agora em território cristão e sob domínio europeu, era essencial que a praça transmitisse uma nova imagem forte de poder e fé. As decisões tomadas por D. Afonso V avançaram nesse sentido. Por um lado, havia que responder às necessidades mais prementes de forma a garantir a segurança e proteção da urbe contra possíveis ataques inimigos e, por outro, era necessário proceder a uma renovação simbólica dos principais edifícios públicos. Abandonada pelos seus habitantes, a cidade deixada aos portugueses apresentava uma extensão urbana demasiado ampla. À semelhança de outras praças conquistadas aos reinos de Fez e Marraquexe, a grande e despovoada Tânger era ingovernável do ponto de vista sustentável72. 67 De acordo
com D. Fernando de Menezes, o primeiro governador da cidade terá sido D. João, Marquês de Montemaior, que apenas exerceu o seu cargo enquanto D. Afonso V se encontrava na cidade. “Foi o primeiro D. João, Marquês de Montemaior, filho do Duque de Bragança (…). Não governou mais tempo que o da permanencia do rei na cidade, (...) entregando então o governo a Rui de Melo, Conde de Olivença.” MENEZES, 1732, p. 51. “(…) lhe pediam [a el-Rei] ha capitania da çidade, elle a deu com ha gouernança a Rui de Mello, seu guada mòr, que depois por seus merecimentos foi conde d’Oliuença.” GÓIS, Damião de in RODRIGUES, Graça Almeida, 1977, p. 77 [correspondente na crónica Fol. 32v]. 68 CORREIA, 2006, p. 185. 69 LOPES, 1989, p. 26. 70 MENEZES, 1732, p. 20 e 21. 71 Os limites a Sul e Oeste da cidade correspondiam a uma muralha cujo perímetro reproduzia uma curva de nível sensivelmente constante entre os 60 e 70 metros de altitude. Mais tarde, este antigo traçado defensivo vem a ser utilizado na demarcação do território extramuros, pelos portugueses e ingleses, com atalaias ou pequenos fortes. CORREIA, 2006, p. 185. 72 Embora a fuga da população de Tânger tenha sido um caso excecional, a política de ocupação das cidades tomadas no Norte de África incluía a expulsão dos seus habitantes. O que restava eram cidades desertas e demasiado grandes para uma gestão viável. Acerca de Ceuta escreveu Zuzara “já passavam das sete horas e meia depois do meio-dia, quando a cidade foi de todo livre de mouros.” ZURARA, Gomes Eanes - Crónica da Tomada de Ceuta por el rey D. João I de 1450 in PAULA, Frederico Mendes – Histórias
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“Parecendo-lhe depois, que a cidade era grande, e necessitava de igual presídio para sua defesa, a mandou cortar, e reduzir a mil vizinhos, tendo antes mais de quatro mil, que isto fazem as mudanças do tempo, e dos impérios; a fortificação ficou mal entendida, e sujeita pela maior parte a muitas eminências que a dominam (...).”73
A consciência de que o tamanho avultado da cidade representaria um problema para a sua administração resultou numa decisão de grande objetividade e pragmatismo. O processo de “atalho” era já recorrente74 e consistia numa forte intervenção no desenho urbano e reestruturação dos seus limites. O objetivo era diminuir a área através da redução do perímetro das muralhas, acrescentando novos tramos, interiores aos pré-existentes. No caso específico de Tânger foram erguidas duas linhas muradas que formavam entre si um ângulo de aproximadamente 90º, compondo os novos limites geometrizados a Sudeste e a Sudoeste (Figura 5). Os equivalentes anteriores, delegada a sua função, seriam progressivamente arrasados, conjuntamente com os vários torreões islâmicos neles dispostos. Do mesmo modo, destruía-se toda área exterior excluída, de forma a prevenir emboscadas75, sendo os materiais resultantes das demolições aproveitados para as novas construções. Segundo o testemunho deixado pelo governador D. Fernando de Menezes, a mancha urbana terá sido encurtada para cerca de um quarto da sua dimensão original (de quatro mil casas para apenas mil), considerando uma densidade populacional homogénea76. A praça portuguesa passava, assim, a ocupar a encosta junto à escarpa, prolongando-se até ao mar de onde proviriam mantimentos, armamento e reforços em caso de cerco77. Com esta diminuição e regularização reduziam-se os pontos de
Figura 5 Esquema conjetural dos possíveis limites da cidade de Tânger pré-ocupação portuguesa e após a redução do atalho, no contexto da cidade atual, segundo Jorge Correia.
de Portugal em Marrocos. https://historiasdeportugalemarrocos.com/2015/05/12/fortificacoes-portuguesas-de-ceuta/. 12 de maio de 2015. 73 MENEZES, 1732, p. 24. 74 Os portugueses atalharam todas as praças que conquistaram no Magrebe. CORREIA,2006, p. 353 a 357. “Em esta cidade [Tânger] desfezerõ çertas torres como em qualquer das outras que os christãos desfezerõ (…).” FERNANDES, Valentim in O manuscrito "Valentim Fernandes", 1940, p. 34. 75 Até inícios do século passado, a área compreendida entre os novos limites e a presumível delimitação anterior era, curiosamente, menos ocupada por construção por comparação à densidade urbana envolvente. Este facto levantava a hipótese “(...) que só a arqueologia poderá confirmar, da permanência do negativo de uma porção da muralha islâmica no traçado urbano (…).” CORREIA, 2006, p. 185. 76 Na realidade, a típica cidade islâmica não possuía uma distribuição populacional homogénea, sendo estruturalmente subdividida em alcáçova, medina e arrabaldes. A verificar-se esta composição na Tânger pré-ocupação portuguesa, a cidade atalhada poderia englobar os três setores. No entanto, não existem dados que permitam comprovar a existência dessa partição. Idem, p. 184. 77 Nos atalhos feitos pelos portugueses nas praças da costa norte-africana, a cidade nova englobava invariavelmente a área mais próxima do mar, pois, sob constante ameaça, dependia-se do acesso a ele para obter abastecimentos externos. As águas eram a principal via de comunicação com a metrópole. MENDES, 2017, p.33.
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permeabilidade para o exterior, sempre vulneráveis em caso de ataque, e englobados nos novos limites, ficavam os elementos de maior peso político e religioso pré-existentes: a kasbah a Noroeste, no ponto mais alto intramuros, e a grande mesquita a Sudeste. A criação de uma nova imagem para a cidade passava sobretudo pela renovação dos edifícios públicos mais relevantes. As construções que, simbolicamente, estivessem associadas à fé islâmica, por exemplo, teriam de ser adaptadas à religião recém-imposta. “Foi-se logo á Mesquita que já era feita egreja, onde deu muitas graças e louvores a Deos, e envestio de Bispo da cidade o prior de S. Vicente de Fora de Lisboa, que sendo da regra e Ordem de Santo Agostinho, por promoção e auctoridade apostólica era já d'antes intitulado Bispo d'ella, na qual esteve El-Rei xvn dias não se fartando de a vêr (…).”78
Após a chegada da armada portuguesa, D. Nuno Álvares de Aguiar é nomeado bispo titular de Tânger79 e é determinada a conversão da mesquita maior, expressão máxima da crença muçulmana, em catedral cristã, dedicada ao Espirito Santo80. Na verdade, pensa-se que, no mesmo local, tenha existido uma igreja paleocristã, que antecedeu a construção medieval adaptada pelos portugueses e cuja implantação deu lugar também à mesquita atual81. A partir da análise de cartografia dos séculos XVI e XVII (Figuras 6(1) e (2)), percebe-se que houve um completo aproveitamento da estrutura herdada. É possível que, inicialmente, o minarete original tenha sido utilizado como campanário82; porém, já não surge representado nos desenhos de Seiscentos e, como tal, é provável que tenha ocorrido o seu derrubamento, anos mais tarde. Além da apropriação e adaptação de edificações muçulmanas de relevo, as providências tomadas por D. Afonso V, no sentido de afirmar a nova identidade da possessão, resultariam também em novas construções, em substituição das antigas estruturas merínidas83. No local de maior destaque da cidade, o topo da colina Noroeste, onde repousava a antiga alcáçova islâmica, a iconografia dos séculos XVI e XVII84 mostra um paço: uma estrutura compacta, de aspeto austero, muito encerrada, mas com uma presença
PINA, Rui de - Chronica d’El-Rei D. Affonso V, 1901, p. 398 [67]. “Ha primeira cousa que elRei, e o Prinçipe fezeram em entrando na çidade de Tanger, foi irem fazer oraçam ante hua Cruz, que jà na Egreja, que fora Mizquita, estaua posta sobre hum altar. E porque ho Priot de sam Viçente de fora da çidade de Lisboa, Conego regrante da ordem de sancto Augustinho, era Bispo da mesma çidade (…).“ GÓIS, Damião de in RODRIGUES, Graça Almeida – Crónica do Príncipe D. João de Damião de Góis. Lisboa, 1977, p. 77 [correspondente na crónica Fol. 32v]. “Acompanhava o rei, para além do arcebispo de Lisboa, já referido, e do bispo de Coimbra, D. João Galvão, D. Frei Nuno de Aguiar, prior da Canónica de São Vicente de Fora, de Lisboa, e bispo titular justamente de Tânger, o qual, na antiga mesquita da cidade, agora feita catedral (…).” GOMES, Saul António – Reis de Portugal: D. Afonso V, 2006, p. 196. Este bispo titular, terá acompanhado D. Afonso V nas campanhas pela costa marroquina em 1471. CORREIA, 2006, p. 188. 80 “(…) e entrou na mesquita, que achou consagrada, e dedicada ao Espirito Santo, aonde o recebeo o Prior de S. Vicente, Bispo eleito da mesma Cidade com os Canticos, e ceremonias, q nestes actos se costumão.” MENEZES, 1732, p.34. Um ano após a tomada, a 12 de Setembro de 1472, o Papa Sisto IV envia a bula Clara devotionis através da qual ordenava a instituição de catedrais e igrejas paroquiais nas terras do ultramar. GOMES, 2006, p. 196. 81 Esta sobreposição de sucessivos templos religiosos de várias crenças num mesmo local foi prática habitual e recorrente ao longo de vários séculos de História. Nas várias praças conquistadas na costa marroquina, os portugueses apropriaram-se dos locais de culto para aí preconizarem a sua fé. Por exemplo, na vizinha Arzila, a mesquita local foi convertida em igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção ou de S. Bartolomeu. Sobre a ocupação de Arzila consultar PEIXOTO, 2017, p. 39. 82 CORREIA, 2006, p. 189. 83 A designação “Merínida” refere-se ao período durante o qual uma dinastia berbere com o mesmo nome governou o reino de Fez ao qual Tânger pertencia. 84 De toda a iconografia disponível é de destacar, para a compreensão da imagem do paço, a figura “Tingis Lusitanis Tangiara” que consta na obra “Civitates Orbis Terrarum” de Braun e que será mais à frente analisada, bem como as gravuras de Wenceslau Hollar, do século seguinte. 78 79
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forte no panorama ao seu redor, cercada por muros defensivos. Tratava-se do Castelo de Cima, caso de estudo desta dissertação (Figuras 7 (1) e (2)). Já no reinado de D. João II (1481-1495)85, é construído um segundo castelo, à cota baixa, chamado de Novo, em contraponto ao anterior. Edificado no setor Nordeste da cidade, junto ao mar, em resposta à necessidade da presença de um controlo efetivo do movimento mercantil e militar do porto, vem integrar e completar o conjunto defensivo da praça. Feito num período de avanços e recuos nos ideais tardo-medievais e experiências pré-modernas na arquitetura militar, denominado de período de Transição, o novo castelo possuía uma morfologia bastante diferente da fortificação de Cima86 (Figuras 8 (1) e (2)). Junto a si, é aberto posteriormente um terreiro amplo e livre, designado de “chouriço”87.
Figuras 6 A catedral portuguesa nas gravuras: (1) “Tingis Lusitanis Tangiara” de Braun, datada do século XVI, onde ainda se identifica o minarete que terá sido adaptado a campanário; (2) “Prospect of Tangier from the East”, do século XVII, de Wenceslau Hollar, onde o antigo minarete já não aparece desenhado.
Figuras 7 O Castelo de Cima de Tânger nas gravuras: (1) “Tingis Lusitanis Tangiara; (2) “Prospect of Tangier from the East”.
Figuras 8 O Castelo Novo de Tânger nas gravuras: (1) “Tingis Lusitanis Tangiara; (2) “Prospect of Tangier from the East”.
D. João II foi o sucessor de D. Afonso V e governou desde 1481 a 1495. As duas fortificações (Castelo de Cima e Castelo de Baixo) sofreram diversas alterações durante o intervalo de permanência lusitana na cidade, das quais se irá falar no decorrer da dissertação. 87 “(…) castelo que chamao nouo de grande aparato con seus muros e barbacan e sercado con hua caua da banda da cidade onde esta hua praça grande que se chama o chourisso.” Relação de alguas cousas da cidade de Tangere (c. 1621) in DORNELLAS, Affonso de – História e Genealogia. Lisboa: Livraria Ferin/ Casa Portuguesa, 1913-23, p. 88. “(…) chouriço (…) para paradas militares , reunião da população ou ainda cantina aberta para os marinheiros chegados à Ribeira. (…) primeiro grande espaço público da cidade” CORREIA, 2006, p. 192 e 193. 85 86
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D. João II foi o primeiro monarca a considerar a necessidade de modernização dos sistemas defensivos, atendendo aos avanços da artilharia militar que se desenvolviam na Europa88. Em Tânger efetuou uma reestruturação da frente marítima, concebendo o novo polo defensivo à cota baixa89. Durante a sua regência conservaram-se sob domínio português as praças anteriormente tomadas90, numa altura em que o foco dos navegadores se concentrava cada vez mais para Sul, com o descobrimento de terras subsaarianas91. Após um período de acalmia resultante do acordo de paz entre Portugal e Fez, somente no reinado de D. Manuel I (1495-1521), com a sua lógica de política ultramarina, se verificam novas conquistas em Marrocos. Com ele regressam as intensas companhas no Magrebe: são conquistadas Safim (1508) e Azamor (1513), construídas fortalezas em Santa Cruz do Cabo de Guer (1505-1513) e Mogador (1506) e edificados os castelos de Mazagão (1514) e Aguz (1519). Sucessor de D. João II92, compartilhava com ele o desígnio de modernização das estruturas de defesa e proclamava a difusão de uma nova imagem identitária na arquitetura. Na praça procurou estabelecer princípios higiénicos que incluíam uma maior regularidade e geometrização dos espaços públicos e uma linearidade no traçado urbano93. Num período em que regressa a vontade de remodelar as fortificações no Norte de África, é enviado da metrópole, em 1509, Diogo Boytac94 que traça uma proposta de reforço defensivo para Tânger, posteriormente edificada por Francisco Danzilho95. As alterações efetuadas pretendiam, por um lado, responder às necessidades mais imediatas de reforma de segmentos de muralha e torreões um pouco por todo o perímetro e, por outro, concentrando as ações na cota baixa, o reforço de alguns elementos constituintes do Castelo Novo e a edificação de um novo baluarte, o da Ribeira. A muralha Sul é reconstituída e reforçada com a adição de um contínuo alambor. Mestre Boytac e Bastião Luiz realizam o registo e medição dessas obras em 151496. Durante este período de intenso experimentalismo, o Castelo de Cima é também alvo de intervenção, com o reforço da frente murada Oeste. “D. João II, revelou-se um monarca (…) preocupado na reorganização da defesa de Portugal. Neste sentido, atento à modernização europeia, foi o primeiro monarca de Portugal a encarar verdadeiramente as novas tecnologias para o ajudar a modernizar o seu programa político e garantir as questões da defesa e coesão nacionais. Promovia o fabrico e experimentação de artilharia no reino, que aplicava coerentemente nos castelos da fronteira com o reino vizinho.” LOPES, Ana Catarina Gonçalves – (A) Cerca de Azamor: Estruturas Militares ao Manuelino, 2009, p. 26 89 Com o novo polo, o novo cenário urbano aproxima-se ao da típica cidade portuguesa ribeirinha, repartida entre a parte alta e a baixa. CORREIA, 2006, p. 192. 90 O facto do reinado de D. João II não ter contribuído para o acréscimo do número de conquistas no Norte de África não traduz o desinteresse do monarca nessa possibilidade. Prova disso é a sua preocupação com a confirmação do direito português à conquista do Reino de Fez, no Tratado de Tordesilhas (1494) que determinava a partilha ultramarina do Novo Mundo e foi estabelecido entre as Coroas de Portugal e Castela. 91 As viagens marítimas portuguesas eram cada vez mais longas, atingindo-se pontos inexplorados cada vez mais a Sul. Em 1488 Bartolomeu Dias dobrou, com a sua armada, o Cabo das Tormentas (que depois D. João II mandou designar de Cabo da Boa Esperança) provando que havia ligação entre o oceano Atlântico e o oceano Índico e que era possível chegar à Índia por mar, facto que veio a acontecer uma década depois. 92 D. Manuel I, o Venturoso, “Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia." 93 CORREIA, 2006, p. 194, 195. 94 SOUSA VITERBO, 1922, p. 120-131. “Entre 1509 e 1510, (…) traçou planos de reforço para Ceuta, Alcácer Ceguer e Tânger, os quais deixou em forma de regimento, a serem construídos pelo mestre biscainho Francisco Danzilho a partir do ano seguinte.” PEIXOTO, 2017, p. 109. 95Em 1511, é enviado de Portugal Francisco Danzillo, mestre biscainho, encarregue de algumas obras de reforma pontuais nos sistemas defensivos. “(…) Francisco Danzinho partira para os logares de Africa ahi por 1511 levando uma numerosa expedição de trezentos trabalhadores (…).” SOUSA VITERBO, Francisco (1899-1922, fac-simile 1988). Diccionario Histórico e Documental dos Architectos, Engenheiros e Construtores Portuguezes, Vol. I, p. 272, 273. 96 “Em 1514 mestre Boytaca era enviado, na companhia de Bastiam Luis, escrivão, às praças de Africa, para meder e avaliar as obras ali executadas. As fortalezas percorridas foram Alcacer, Ceuta, Tanger e Arzilla (…) Na Torre do Tombo existe, muito bem conservado 88
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Em meados do século XVI, durante o reinado de D. João III (1521-1557), Portugal atravessa uma fase de depressão económica comum a vários países europeus97. Paralelamente, ocorre a queda de Santa Cruz do Cabo de Guer, no Sul de Marrocos, em 154198. Neste contexto, inicia-se uma fase de mudança na política de gestão das praças marroquinas. Após ponderar, a coroa decreta o abandono das cidades magrebinas de mais difícil proteção e que, ao mesmo tempo, representassem menor interesse para a navegação99. São mantidas apenas três praças-fortes: Ceuta, Tânger e Mazagão. Nestas cidades conservadas, são reunidos todos os esforços tecnológicos e humanos para a edificação de novas estruturas defensivas. É nestas circunstâncias que surge a proposta de construção da grande Cidadela (Figura 9), para reforçar o Castelo de Cima, da qual se falará mais à frente e que só é efetivamente concluída após 1566.
Figura 9 A Cidadela de Tânger representada na axonometria “A Mapp of the Citty of Tanger with the Straits of Gibraltar” de Sir Jonas Moore e de Wenceslau Hollar (século XVII).
e de boa calligraphia, o caderno dos autos das medições, assignados por mestre Boytaca e Bastiam Luis. Intitula-se: “ Libro da medição das obras de Alcacer, Ceuta, Tanger e Arzilla”. ” SOUSA VITERBO, 1922, p. 271 e 272. Livro das medidas de Arzila, Alcácer, Ceuta e Tânger, feitas por mestre Boytac e Bastião Luiz em 1514 (I. A. N. T. T., Núcleo Antigo, n.º769, fol. 50-55v) in Portugal e Marrocos no século XV - Colectânea Documental. (12.6-28.7.1514), p. 438-444. 97 Nesta altura, a chegada de grandes quantidades de prata americana à Europa abala profundamente a economia dos vários países, particularmente a de Portugal, traduzindo-se numa grande inflação do preço dos produtos. GOMES, Carlos – Antecedentes do Capitalismo, 2009, p. 245. 98 Em 1541, Mulei Mohamed Xeque cercou Santa Cruz do Cabo de Guer que, apesar de oferecer bastante resistência, é tomada pelos Mouros. 99 Consultar BETHENCOURT, Francisco [et. al.] – História da Expansão Portuguesa, 1998, p.131.
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2.1.4 - O fim do domínio filipino e a entrega de Tânger aos Ingleses
“A Dinastia de Avis que iniciara a expansão para Marrocos foi vítima dessa mesma empresa que tanta glória lhe trouxera!”100
Com a morte de D. Sebastião (1554-1578) na batalha de Alcácer Quibir101, enquanto tentava reerguer a política expansionista no Norte de África, o reino fica entregue ao seu tio-avô, o cardeal D. Henrique, que morre dois anos depois, sem descendentes, desencadeando um grave problema de sucessão. Esta crise dinástica termina com a subida ao trono de D. Filipe II de Espanha, I de Portugal, em 1580. A união ibérica criada originou um dos mais abrangentes impérios de que há registo. Durante 60 anos, a junção das duas monarquias permitiu o domínio de vastos territórios espalhados por todo o Mundo. Porém, o descontentamento português cada vez mais percetível acabaria por conduzir à restauração da independência do reino a 1 de Dezembro de 1640. D. João, Duque de Bragança é aclamado rei102, iniciando-se uma nova dinastia. Em Marrocos, a praça de Ceuta mostrou-se relutante em aceitar novamente o domínio lusitano, nunca voltando efetivamente a pertencer a Portugal, ao contrário de Tânger que reconhece a soberania portuguesa em 1643103, não permanecendo, porém, nas mãos da coroa durante muito tempo. Com o desejo de renovação da aliança entre Portugal e a Inglaterra, e da afirmação da casa de Bragança na Europa, negociou-se o casamento da infanta D. Catarina Henriqueta, filha de D. João IV, com o rei inglês D. Carlos II. A união foi acordada através da assinatura de um tratado em Londres, a 23 de Julho de 1661. A Inglaterra prometia, essencialmente, apoio militar e lealdade104. Em contrapartida, Portugal oferecia, generosamente, um dote de dois milhões de cruzados, concedia direitos aos mercadores ingleses em possessões portuguesas e doava as praças de Bombaim e Tânger105, esta última há muito tempo cobiçada pelos britânicos106. Em 1662, é nomeado governador da cidade Henry Mordaunt, conde de Peterborough. Grande parte da comunidade civil portuguesa assim como a guarnição militar foi forçada a abandonar a praça e regressar à metrópole107, onde foram conduzidos para a região do Algarve, único local no reino onde a
BETHENCOURT, Francisco [et. al.] – História da Expansão Portuguesa, 1998, p. 133. Mulei Mohammed Almoutauaquil pede o auxílio de D. Sebastião para enfrentar Mulei Moluco, seu tio, e recuperar o trono do qual este se havia apoderado. Em 1577, devolve Arzila ao monarca português na condição do cumprimento do seu pedido. A batalha de Alcácer Quibir, a 4 de Agosto de 1578, resultou na derrota portuguesa, com a morte do rei em combate. O fracasso provocou também a morte e aprisionamento de vários nobres, que permitiram ao sultão obter valiosos resgates durante muito tempo. Idem, p. 133. Em Tânger abre-se uma nova Porta do Mar, como ditava a tradição: a última porta de onde saísse um rei que viesse a ser morto em combate deveria ser fechada. CORREIA, 2006, p. 205. 102 D. João IV, oitavo duque de Bragança, é aclamado rei de Portugal a 15 de Dezembro de 1640. 103 SARAIVA, José Hermano – História de Portugal: Volume 5. 1983, p.6. 104 “(…) ajudar com dois terços da infantaria, de mil homens cada um, obrigava-se a enviar dez naus de guerra se Portugal fosse invadido (…).” Idem, p. 28. 105 “(…) dois milhões de cruzados de dote, as praças de Tânger e Bombaim, o direito de os mercadores ingleses poderem habitar em qualquer lugar de domínios portugueses (…). Também se clausulou que ficariam a pertencer à Inglaterra quaisquer antigos domínios de Portugal que viessem a recuperar-se aos holandeses (…).” Ibidem 106 Tânger traria vantagens aos ingleses, enquanto base naval de apoio. Permitiria o controlo da entrada no Mediterrâneo e domínio do comércio de Marrocos, o combate à pirataria e ao corso. PINTO, Rui da Costa. Comunicação apresentada à Marinha a 6 de Março de 2007 in https://www.academia.edu/4016570/A_ENTREGA_DE_T%C3%82NGER_AOS_INGLESES_E_AS_S p. 2 a 4. 107 A decisão da entrega da praça não foi, obviamente, encarada com muito agrado pelos portugueses que lá viviam, que, forçados a sair, levaram consigo o máximo que puderam. Extratos do “Peterborough’s Reports to the Lords of the Council and Others” 12 de 100 101
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sua presença era permitida108. Bernard de Gomme, engenheiro militar responsável, inicialmente, pelas obras de Tânger, em conjunto com o engenheiro especialista em defesa e fortificação, Martin Beckman, imediatamente procederam ao estudo de toda a extensão urbana, para detetarem os principais problemas defensivos. O estudo materializou-se num ambicioso plano de intervenção nos sistemas de proteção da cidade109. “A primeira obra dos ingleses foi a construção de um molhe na parte poente da cidade, utilizando a abundante pedra que neste lugar há. (…) Terminando o porto dedicaram-se a fortificar a cidade, rodeando-a de simples empalizadas para impedir o acesso dos cavalos, construíram fortes nas proximidades da serra (…) depois de dotas de novas defesas o Castelo, reformaram as trincheiras, dando-lhes uma forma regular (…) colocando atalaias guarnecidas de infantaria.”110
De facto, os britânicos ambicionavam, essencialmente, duas grandes atuações: na vertente marítima, impunha-se a construção de um molhe, enquanto nos campos em torno Tânger consideravase premente a edificação de uma sucessão de pequenos fortes autónomos111. Verificaram-se também, nos anos que se seguiram, grandes intervenções no desenho urbano da praça. Considerada a princípio “insalubre e inabitável”, algumas das medidas também implementadas envolveram o aumento das habitações, construção em altura e a instalação de jardins que libertavam e oxigenavam o tecido urbano112. Mas, de todas as obras realizadas, talvez tenha sido a colocação de várias baterias ao longo de toda a extensão muralhada que mais contribuiu para a descaracterização do sistema fortificado lusitano herdado113. “Reconhecendo a Inglaterra o excessivo gasto feito na cidade de Tânger, tanto na construção do molhe como nas fortificações (…) e não conseguindo impedir (…) a entrada e saída dos turcos no Estreito, decidiu, no ano de 1685, desmantelar a cidade. Teve noticia disso o Rey de Portugal Dom Pedro e enviou o seu embaixador em Inglaterra, José de Faria, ao Rey Dom Carlos II, participando-lhe que posto que havia tomado resolução de abandonar a cidade, quisessem restituí-la à Coroa de Portugal, tendo nela sempre porto seguro e evitando assim que caísse nas mãos dos mouros. Encontrou muy justa a petição o rei Carlos II, mas o duque de York, então Almirante da Esquadra, sustentou que atentava a honra nacional a entrega de uma praça tantos anos defendida por Inglaterra e que, desmantelada, de nada serviria.”114
Fevereiro de 1662- 17 de Fevereiro de 1662, in Rough, Tangier, p.15 in ELBL, Martin Malcolm - Portuguese Tangier (1471-1662), 2013, p. 12 e 13. 108 MENDES, 2017, p. 39. 109 DIAS, 2002, p. 89. 110 MENEZES, 1732, p. 250. 111 Esta nova linha fortificada ampliava a área extramuros controlada defensivamente. Por outro lado, garantia uma maior proteção da Porta do Campo “(…) cujo revelim inacabado se concluiria como Fort Catherine, no âmbito de um projeto global mais ambicioso que nunca foi encetado (…).” CORREIA, 2006, p. 208. 112 Idem, p. 194. 113 Idem, p. 208. 114 MENEZES, 1732, p. 250.
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Embora durante os 23 anos de ocupação inglesa existisse uma forte presença militar, escasseava o conhecimento do modo de guerrear magrebino115 e a capacidade própria dos artesãos portugueses de reparar as fragilidades das fortificações. Da mesma forma, os elevados gastos que a manutenção da praça exigia conduziram à decisão do seu abandono. Esta resolução por parte da coroa britânia não agradou, evidentemente, ao monarca português, que ainda propõe, infrutiferamente, a sua restituição a Portugal. A saída dos europeus de Tânger foi seguida do seu desmantelamento116. Foram recolhidos todos os tipos de armamento da cidade e retirados mantimentos que ainda restavam. Seguiu-se o envio de vários engenheiros com a missão de demolir as infraestruturas defensivas117. Esta destruição intencional veio aumentar o grau de dificuldade do estudo do estrato português na praça. No entanto, a intervenção não foi tão profunda quanto se preconizava e a maioria do complexo fortificado parece ter resistido118.
“Era uma guerra diferente da que se fazia na Europa (…). Foi por se não entenderem com esse modo de a fazer que em Tânger, no fim do século XVII, os ingleses sofreram muitos reveses e por fim largaram a cidade. É a guerra de surpresas e de ciladas, aproveitando os acidentes do terreno ou a escuridão da noite.” LOPES, 1989, p. 43. 116 Com o objetivo de impedir que a praça fosse novamente tomada pelos mouros ou mesmo por Espanha ou França, os ingleses decidem desmantelar a cidade. MENDES, 2017, p. 41. 117MENEZES, 1732, p. 251. 118 “(…) a generalidade das muralhas portuguesas resistiu, permitindo que fossem posteriormente erguidas pelos Marroquinos.” DIAS, 2002, p. 90. 115
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II - O CASTELO DE CIMA DE TÂNGER
Em todas as cidades conquistadas no Norte de África, à exceção de Azamor, fez parte do plano de ocupação português a edificação de pelo menos um castelo. Nas praças da região mais a Norte, e portanto mais próximas do reino, pode dizer-se que essa construção representava quase uma continuação do modelo feudal de controlo do território119. As fortificações erigidas nas praças constituíram talvez as estruturas mais mutáveis durante o período de permanência lusitana nessas terras, necessitando de constante manutenção e atualização face aos avanços dos tempos. O Castelo de Cima de Tânger, que será analisado neste capítulo, é um claro exemplo desse paradigma.
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CORREIA, 2006, p. 291.
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1 - Estado atual do conhecimento sobre o Castelo de Cima de Tânger
Para a elaboração deste estudo, foi imprescindível reunir várias fontes documentais, em diversos suportes, que fornecessem informação relativa à conformação da praça-forte durante o período de domínio português ou que, de alguma forma, abordassem a temática em análise, contendo pistas que, posteriormente, possibilitassem a recriação da imagem evolutiva do Castelo Velho. Desta forma, o acervo disponível engloba recursos escritos e visuais datados desde o século X até à atualidade: fontes primárias, estudos vários, cartografia e iconografia antiga, fotografia etc. Este material foi organizado por períodos e seguidamente por tipologia. Do tempo árabe chegam testemunhos de geógrafos, cuja visão, confrontada com as descrições contidas nas crónicas quatrocentistas, permite uma boa contextualização da morfologia e organização geral da cidade anterior a 1471. Coevas ao intervalo temporal sobre o qual se debruça a análise (1471-1661), e portanto particularmente importantes para a investigação, existem algumas fontes primárias, na sua maioria documentos escritos: inventários, correspondência e memorandos. No que respeita a fontes visuais, apenas dois desenhos perspéticos e dois planimétricos, produzidos durante este período, subsistem até ao presente, número muito reduzido quando comparado ao grande volume cartográfico conservado do tempo britânico. De facto, é proveniente do curto período de permanência inglesa a grande maioria das fontes iconografias recolhidas, algumas das quais representando ainda a cidade tal como foi entregue pelos portugueses. Fontes escritas que de alguma forma referiam o Castelo de Cima foram também consideradas. Desde o abandono europeu até à atualidade existem estudos vários, gravuras, a cartografia em formato digital da medina presente, fotografias diversas desde inícios do século passado, entre outras fontes, que integram a coleção de ferramentas para o início do estudo. Foi também essencial um trabalho de reconhecimento do local, por meio de observação direta dos vestígios que perduram até aos dias de hoje, num exercício de arqueologia urbana. Posto isto, de todo o material recolhido, houve necessidade de se fazer uma seleção daquele que se mostrava, por um lado, mais útil e direcionado ao contexto da questão castelológica e sistemas fortificados abordada e, por outro, aquele que fornecia informação mais rigorosa e credível. Para tal, foi indispensável definir critérios. Os parâmetros utilizados variaram tendo em conta os diferentes formatos. Relativamente a fontes escritas a legitimidade da autoria foi o critério mais considerado, o mesmo para as representações pictóricas do castelo, a par da sua data de execução. Já em relação ao material cartográfico antigo, a metodologia de seleção envolveu ainda o fator da confrontação com os vestígios sobreviventes, conseguido através da sobreposição com a base cartográfica atual. A interpretação deste material selecionado, cruzamento de dados e posterior tratamento das conclusões e conjeturas sobre a evolução sequencial do caso de estudo em resposta à progressão dos tempos é realizada ao longo dos capítulos seguintes. Contudo, antes de prosseguir com o ensaio, interessa dar a conhecer o ponto de partida do trabalho, apresentado o estado atual do conhecimento do Castelo de Cima português, acompanhando essa síntese com um parecer crítico das fontes consultadas. 37
1.1 - Recursos documentais referentes ao tempo pré-português em Tânger
O forte desejo de uma renovação estrutural e, principalmente, a procura por uma nova representatividade formal para a Tânger recém-anexada ao reino são mais facilmente assimiláveis à luz do entendimento do complexo cenário herdado. A nova possessão portuguesa fora uma vasta e consolidada cidade puramente muçulmana, cuja imagem urgia atualizar. Fontes árabes As fontes árabes dos séculos X a XII permitem apenas aferir aspetos gerais da desenvolvida cidade islâmica, que viria a ser ocupada pela coroa lusitana, na sua nova e definitiva implantação. No “Description de l’Afrique” 120 de Abū ‘l-Qāsim Muḥammad Ibn Hawqal, do século X, consta a primeira referência à transferência de Tânger, da sua localização ancestral junto ao mar, para cerca de uma milha de distância, no período Idríssida. Era próspera e desenvolvida. No testemunho do geógrafo pode ler-se ainda que, estranhamente, a urbe não era muralhada. É possível, no entanto, que esta condição observada se verificasse num contexto temporal específico de fragilidade defensiva, resultado da instabilidade política e militar que se vivia121. Em 1068, o geógrafo andaluz, Abd Allāh ibn ʻAbd al-ʻAziz al-Bakrī, no “Description de l’Afrique Septentrionale” 122, acrescenta novas informações relevantes, referindo pela primeira vez a designação do antigo aglomerado urbano: “Tindja-t-el-Baida” (“Tanger a Branca”) abandonado por causa do avanço das areias. Afirma que a nova implantação seria a uma cota mais elevada e Tânger aparece já como uma cidade perimetralmente delimitada por uma muralha sólida. Faz referência ao mercado e mesquita mas nunca a uma alcáçova ou cidadela. No século XII, Abū ʻAbd Allāh Muḥammad b. Muḥammad Idrīsī confirma, no “Description de l’Afrique et de l’Espagne” 123, essencialmente as informações dos dois geógrafos anteriores, mencionando a implantação, numa montanha que dava para o mar, de uma cidade desenvolvida comercial e industrialmente. Comprova-se, deste modo, a correspondência entre esta nova urbe e a que os portugueses encontram em 1437. Não fazendo qualquer referência à alcáçova, escreve que o aglomerado
“Tanger est une ville d’une antiquité reculée, comme le démontrent les edifices qui sont encore debout sur le bord de la mer, et qui continuerent à être habités jusqu’aux premières années de l’islamisme. On fonda ensuite une nouvelle ville à un mille de là, vers l’époque où la prise de Ceuta par les Édrîsites faisait redouter un pareil sort pour l’ancien Tanger. Le blé et l’orge forment les principales richesses des habitants l’eau y est amenée d’un lieu très éloigné par des conduits (souterrains); et malgré les recherches qu’on a faites, la source qui la fournit demeure encore inconnue. Tanger n’a pas de murailles; l’abondance y règne et tout y est à bom marche.” IBN HAUCAL – Description de l’Afrique. Paris: Imprimerie Royale, 1842, p. 31. 121 ELBL, 2012, p. 31 a 33. 122 “ (…) TINDJA (Tanger) (…) Une ceinture de murailles solidement construites entoure cette ville, qui est située sur le bras de mer apeelé Ez-Zocac “Le détroit” (…) Ceci est la localité que les livres d’histoire désignent par le nom de TINDJA-T-EL-BAIDA “Tanger la blanche”. On y trouve beaucoup de monuments antiques, tels que des châteaux, des voûtes, des cryptes, un bain, un aqueduc, des marbres en grande quantité et des pierres de taille. (…) La ville actuelle est bâtie sur une hauteur plus élevée que l’emplacement de l’ancien Tanger, lequel a été envahi par les sables. Elle renferme un beau djamê et un bazar très fréquénté (…).” AL BEKRI, Abu Obeid – Description de l’Afrique Septentrionale, 1918, p. 213 a 215. 123“(…) Cette dernière ville [Tânger] est très ancienne et a donné son nom à tout le pays environnant. Bâtie sur une haute montagne qui domine la mer, ses habitations sont situées à mi-côte et s’étendent jusqu’au rivage. Cette ville est jolie: ses habitants sont commerçants et industrieux. On y construit des navires et le porte est très fréquenté (…).” IDRĪSĪ - Description de l’Afrique et de l’Espagne par Edrîsî, 1866, p. 201. 120
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de habitações se estenderia desde a meia-encosta até ao mar, porventura deixando a zona alta para o castelo.
Crónicas portuguesas Somente a partir das crónicas quatrocentistas portuguesas se conseguem encontrar alusões diretas à atual zona da kasbah de Tânger, então denominada de “castello”. Gomes Eanes de Zurara124 na “Crónica do Conde D. Duarte de Menezes” de 1467 expõe, pela primeira vez, alguns aspetos morfológicos referentes às estruturas defensivas da praça islâmica, inclusivamente da alcáçova, quer de maneira implícita, fornecendo dados relativos ao seu posicionamento125, quer expressamente, no contexto do planeamento do “escalamento” da cidade: “(…) eu [Sancho fernandez] nom sey outra nenhuma maneyra como se aquella cidade possa escallar. Eu sey disse Dyego de barros huum pedaço de muro acerca do castello. muy aazado pera sse acabar todo o feito porque da parte de fora nom tem barreyra e he de tal fortelleza e altura que polla segurança que os mouros teem do lugar nom pooem na guarda delle tanta deligencya como nas outras partes. E da parte de dentro nom ha casas pegadas ao muro per que aiam / de sentyr os que andarem encima (…). Este muro he antre o castello // [188 r] e ha torre que se chama a torre de Gil hayre em que ha cinquo cubelos.”126 “E aquy auees de saber que este lugar per onde sse aquella cidade ouuera de tomar he huum lanço de muro que çarra no castello da parte do setaão em que há cinquo cubelos. em fim dos quaees seguindo para fundo esta uma torre que se chama a torre de gilhayre. E por que do castello era feita sayda pera o muro com huma ponte leuadiça a qual alleuentauam e abaixauam cada vez que queryam. (…) outra torre que esta // [210v] sobre huum postigo que se chama o postigo de gurrer (…).”127
Analogamente, a “Chronica d’El-Rei D. Duarte” de Rui de Pina128 é também uma importante fonte de informação relativa a vários componentes da arquitetura militar da cidade, no contexto da descrição da primeira tentativa de conquista da praça129, precisamente no reinado de D. Duarte. O “castello” islâmico é citado nas seguintes passagens: “(…) foi recolher a gente que alli e na porta do castello e nas outras da cidade estava em combates repartida (…).”130
Gomes Eanes de Zurara (1410-1474) foi um importante cronista português, nomeado guarda-conservador da Livraria Real e guarda-mor da Torre do Tombo. Em 1467 desloca-se, ele próprio, a Alcácer Ceguer, em proveito da redação da “Crónica do Conde D. Duarte de Menezes”. 125 “(…) sentidos das guardas que os mouros ally tijnham. os quaes muyto asinha fezeam huma almenara sobre huum cabeço alto aa qual logo respondeo outra do castelo de tanger (…).” ZURARA, Gomes Eanes de - Crónica do Conde D. Duarte de Meneses. Lisboa, 1978, p. 256. 126 Idem, p. 310 e 311. 127 Idem, p. 345. 128 Rui de Pina (1440-1523), nomeado cronista-mor de reino, guarda-mor da Torre do Tombo e da Livraria Régia, em 1497, por D. Manuel I, inicia a sua atividade de elaboração de crónicas em 1490. 129 Nesta obra pode ler-se uma detalhada descrição sequencial dos acontecimentos bélicos da investida de 1437, durante a qual são mencionados detalhes físicos da grande cidade almejada. Por exemplo, há referência a três portas da cidade às quais os portugueses acorreram movidos pelo falso rumor de que os mouros se tinham retirado deixando as entradas desimpedidas: “(…) combateram as portas tão rija e ousadamente, que de três juntas que eram, romperam duas; e a terceira que se diz o Postigo de Guyrer, cometeram com fogo: e, por ser forrada de ferro e sobrevir a noite, não foi entrada; e também porque os mouros a deffenderam mui bravamente.” PINA, Ruy de - Chronica d’El-Rei D. Duarte, Lisboa, 1901, p. 101. 130 Ibidem. 124
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“(…) Ao Infante D. Fernando (…) ordenado seu combate á porta de Fez : e ao conde d'Arrayolos outra, que o havia logo de seguir: e ao bispo d'Evora outra, que havia de combater e entrar a cidade por um postigo que estava no Valle: e a quarta escala ao marichal a que, junto com o bispo, onde o muro era mais baixo succedia logo seu combate: e o Infante D. Anrique tomou da parte do castello, onde a maior resistência se esperava, e se requeria a principal fortaleza (…).”131 “(…) uma ladeira que acerca do castello estava (…).”132
Também da autoria de Rui de Pina, a “Chronica d’El-Rei D. Affonso V”, dedica um capítulo inteiro à tomada de Tânger de 1471: “CAPITULO CLXVII: De como El-Rei foi certificado que os mouros de Tangere tinham leixado a cidade, e do que sobr’isso logo proveu, e de como se foi a ella, e de hi para o reino”133, e antes disso,
respeitante ao ataque de 1462 o “CAPITULO CXLVII: De como foi a ida dEl-Rei em Africa cam os dois mil de cavallo, e do escaliamento de Tangere”134. Contudo, em qualquer um dos casos estão ausentes quaisquer dados morfológicos relacionados diretamente com a alcáçova. Na “Crónica do Príncipe D. João”, Damião de Góis135 faz várias referências à “çidade grande, e forte”136, destinando também um capítulo à narração das ações decorrentes da tomada de Tânger, durante o reinado de D. Afonso V, pai do príncipe D. João II “Capítulo xxxi.* Do que ELREI FEZ HOS DIAS que esteue em Tanger, ate que se fez a vela pera ho Regno.”137 mas sem alusões ao castelo herdado. Foram ainda analisados pequenos excertos das crónicas de Gomes Eanes de Zurara “Crónica da tomada de Ceuta” e “Crónica da Conquista da Guiné”, para compreender aspetos gerais da situação política do reino de Portugal à época e de outras conquistas, no âmbito do projeto de expansão territorial.
Fontes visuais No que a documentação iconográfica diz respeito, importa aqui fazer referência a uma representação pictórica, que, embora executada após a ocupação lusitana, diz mostrar o extenso e desenvolvido aglomerado muçulmano que as tropas terão encontrado no momento da chegada. Em comemoração das vitórias sobre o Islão de D. Afonso V, foram mandadas fabricar quatro tapeçarias138 que representassem os valorosos episódios das conquistas das praças de Arzila e Tânger, em 1471139. A ilustração da “Tomada de Tânger” (Figura 10 (1)) mostra as tropas portuguesas com artilharia e estandartes à entrada de uma cidade de grandes dimensões, densamente fortificada e junto à praia. À direita surge reproduzida a resignada população moura a abandonar as muralhas. Construções como a PINA, 1901, p. 102. Idem, p. 111. 133 PINA, Rui de - Chronica d’El-Rei D. Affonso V, Lisboa, 1901, p. 66 a 68 [397-399]. 134 Idem, p. 21- [351 a 356]. 135 Damião de Góis (1502-1574) foi um nobre historiador, humanista e cronista português. Em 1548 é nomeado guarda-mor dos Arquivos Reais da Torre do Tombo. Escreve a Crónica do Príncipe D. João em 1567. 136 GÓIS, Damião in RODRIGUES, Graça Almeida – Crónica do Príncipe D. João de Damião de Góis. Lisboa, 1977, p. 56. 137 Ibidem, p. 77 [Fol. 32v]. 138 Não se sabe ao certo a data da encomenda, possivelmente entre 1471 e 1481. Cada tapeçaria tem cerca de 11m por 4m, tecidas em lã e seda e atribuídas à oficina de Pasquier Grenier. A sua composição deriva dos cânones pictóricos luso-flamengos de finais do século XV. GOMES, 2006, p. 197. Conservam-se até ao presente na igreja paroquial de Pastrana, perto da cidade de Guadalajara. 139 OLIVEIRA MARQUES, A. H. de [et. al.] - Nova História da Expansão Quatrocentista: A Expansão Quatrocentista, 1998, p. 286. 131 132
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Mesquita Maior ou a Alcáçova não são perfeitamente percetíveis, no entanto entre os edifícios mais destacados na densa mancha urbana podem identificar-se: o que parece ser um minarete adossado a uma complexa construção, possivelmente o lugar de culto, e à direita, no ponto mais alto da cidade, um conjunto torreado, de onde sobressai uma construção de cobertura azul (cuja fachada apresenta janelas de cariz gótico) que poderá representar a Kasbah140 (Figura 10 (2)). A ilustração permite perceber particularidades relacionadas com modo de guerra praticado à época e ainda dá a conhecer algumas das figuras intervenientes141. No entanto, o grau de rigor da imagem é bastante questionável, parecendo corresponder, em grande parte, à representação de um cenário idealizado, regido por cânones préestabelecidos. A proximidade dos elementos da fortificação com as fortalezas ibéricas do seu tempo aponta para a conceção dos planos a partir de descrições e convenções artísticas. Contudo, certos componentes desta tapeçaria de Pastrana apresentam alguma pertinência142. Deste modo, e embora não havendo dados suficientes para nomear, sem objeções, o autor dos desenhos143, não se afasta a hipótese do pintor ter presenciado os episódios das conquistas ou ter ido a Marrocos.
Figura 10 (1) “A Tomada de Tânger”. Tapeçaria de finais do século XV onde surge representada a conquista da cidade fortificada de Tânger pelos portugueses. Encontra-se atualmente na igreja de Pastrana, em Espanha; (2) Aproximação à representação da cidade na tapeçaria “A Tomada de Tânger”.
ARAÚJO, Inês - As Tapeçarias de Pastrana. Uma Iconografia da Guerra, 2012, p. 187. De facto, é possível identificar algumas das personagens desenhadas, correspondendo a figuras ilustres daquele tempo que participaram no episódio da conquista de Tânger. 142 ARAÚJO, 2012, p. 189. 143 Embora não haja informação considerável para afirmar a autoria do desenho das tapeçarias, o nome de Nuno Gonçalves é apontado como o nome mais provável. 140 141
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1.2 - Recursos documentais do tempo português em Tânger
São relativamente escassos os recursos conhecidos referentes à morfologia e estruturação da praça, datados do intervalo temporal da ocupação portuguesa da cidade (1471-1661), por comparação ao acervo referente a outras possessões marroquinas144. Ainda que se tenham verificado consideráveis perdas documentais, decorrentes do grande terramoto de Lisboa de 1755, é apontada como grande causadora desta carência de informação a negligente circulação e transmissão da documentação relativa a Tânger, propiciando a sua dispersão e desaparecimento, situação agravada com a chegada dos ingleses145. Fontes escritas No que respeita a fontes escritas do período português, são de grande importância os testemunhos descritivos, contidos quer em textos manuscritos, quer em obras publicadas, quer na vasta correspondência enviada, redigidos por habitantes ilustres da praça ou por figuras de prestígio que, em algum momento, se deslocaram até lá. Valentim Fernandes146, que realiza uma expedição à costa Africana entre 1505 e 1507, é um exemplo do segundo caso. No “Manuscrito de Valentim Fernandes”147 podem ler-se claras referências à localização e dimensões da urbe, mencionando a cidade antiga148 e ainda fazendo alusões ao processo de atalho realizado em Tânger, procedimento comum nas demais praças: “Em esta cidade [Tânger] desfezerõ çertas torres como em qualquer das outras que os christãos desfezerõ (…).”149.Do
mesmo tempo, também a obra do célebre Duarte Pacheco Pereira150, “Esmeraldo de Situ Orbis”151, redigida entre 1505-1508, apresenta alusões à “muito forte & antigua Cidade de Tanjer a qual esta cinco leguoas de Alcacre para fora do estreito”152.
O “Livro das medidas de Arzila, Alcácer, Ceuta e Tânger, feitas por mestre Boytac e Bastião Luiz em 1514”153 fornece, pela primeira vez, uma esclarecedora contextualização física do panorama da ELBL, Martin Malcolm - Tangier’s Qasba Before the Trace Italienne Citadel of 1558-1566: The “Virtual” Archaeology of a Vanished Islamic and Portuguese Fortress, 2012, p. 10. 145 “Key documents relating to Tangier were dispersed as flags, allegiances and office-holders changed. We do know that some items held at Tangier until the English takeover vanished for lack of care. Thus Henry Mordaunt the second Earl of Peterborough, upon becoming the first English governor of Tangier, reportedly received in 1662 a confidential Portuguese guide to the town's works (...) passed from one portuguese capitão-mor to the next (...). Lord Peterborough took the item back to England upon leacing his post, as Pepys records, and later claimed to have mislaid it.” ELBL, 2013, p. 78. 146 Valentim Fernandes foi uma personagem importante da tipografia portuguesa de finais do século XV e inícios do século XVI. Proveniente da Morávia, ter-se-á instalado em Lisboa após 1493. 147 FERNANDES, Valentim in O manuscrito "Valentim Fernandes", 1940, p. 34. 148 “Tanger ci[dade] jaz çinco legoas de Alcacer Çeguer e he cidade grãde e forte. Tem porto e baya que tem huã legoa e põta a põta. E da outra banda estã huuns edificios velhos onde em outro tempo foy hua cidade muy grãde e se chama Tangere Velho (…) e Tanger era hua cidade abaixo em a praya a qual ho mar alagou e he cuberto de área porem achã la ajnda muytas cousas da pouoraçã. (…) Esta çidade alcançou elrey Dõ Affonso o quinto quãdo elle ganou per força darmas a Arzilla emtã fugirõ os mouros todos desta çidade e lexarão na vazia e entrarõ os christãos sem resistencia alguã.” Ibidem. 149 Ibidem. 150 Duarte Pacheco Pereira (1460?- 1533) foi um importante cosmógrafo e navegador português, autor da obra “Esmeraldo de Situ Orbis” dedicada ao monarca D. Manuel I. 151 PEREIRA, Duarte Pacheco - Esmeraldo de Situ Orbis. Edição Commemorativa da Descoberta da América por Christovão Colombo no seu Quarto Centenário, 1892. 152 Idem, p. 24. 153 Livro das medidas de Arzila, Alcácer, Ceuta e Tânger, feitas por mestre Boytac e Bastião Luiz em 1514, I. A. N. T. T., Núcleo Antigo, n.º769, fol. 50-55v in Portugal e Marrocos no século XV - Colectânea Documental. (12.6-28.7.1514), p. 438 a 444. 144
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arquitetura militar, dos inícios do século XVI. Contendo medições de obras realizadas, fundamentalmente, na Ribeira e Castelo Novo, interessa sobretudo para este trabalho, a descrição das reformas adicionais que “nam vinha no regimento”154 inicial de Boytac, onde há menção de alguns reparos em setores específicos do Castelo de Cima, como a “Porta da Treição” 155, a “tore do syno”156 e a “torre dos bizcainhos”157. De grande interesse para este trabalho é a fonte direta providenciada pelo último governador de Tânger, D. Fernando de Menezes, conde da Ericeira158. Na obra “Historia de Tanger, que comprehende as noticias desde a sua primeira conquista até á sua ultima ruina”159, o autor descreve toda a trajetória cronológica da cidade, começando pela narração da sua fundação mitológica, referindo a importante ocupação romana160, mencionando pormenores das várias tentativas de conquista pelos portugueses durante o século XV e, por fim, retratando todo o período de presença lusitana161, com episódios do quotidiano tangerino, vivências e acontecimentos inseridos numa narrativa principalmente voltada para a temática da guerra. Ao longo do relato, faz bastantes referências ao Castelo de Cima162 e a elementos específicos que o compõe como o " palácio“163 do governador, a “porta da Traição (…) tão estreita e cheia de obstáculos (…).164, a “porta do Castelo”165, a ”Praça do Castelo”166, a “Torre principal do Castelo”167, a “Torre do Sino em que está o farolero (…).”168, a “torre mais alta do Castelo.”169 ou o “poço do Castelo”170.
A descrição detalhada dos feitos de cada capitão-mor que governou a praça permite ainda situar no tempo alguns momentos construtivos da fortificação, tais como as circunstâncias em que “(…) se fez uma muralha, desde o Castello até ao mar, com uma torre no meio,(…).”171 após um ataque de mouros, em 1543;
a indicação da grande etapa de execução das obras de modernização: “Em seu tempo [do governador Lourenço Pires de Távora a partir de Abril de 1564] (…) fortificou o Castello com Baluartes, e terraplenos mais ao moderno, (…).”172, ou os trabalhos na torre principal e na Torre do Sino, durante o mandato de D. Miguel
de Noronha173.
“E esta nam vinha no regimento (…).” Idem, fol. 52v a 55v. Idem, fol. 54. 156 Ibidem. 157 Idem, fol. 54v. 158 D. Fernando de Menezes (1614-1699), 2º Conde da Ericeira – após herdar, em 1625, o título nobiliárquico do seu tio-avô D. Diogo de Menezes, o 1º Conde da Ericeira - foi Governador e Capitão-general de Tânger na segunda metade do século XVII. Sucessor de D. Rodrigo de Lencastre, partiu para o Magrebe a 17 de Fevereiro de 1656 e governou a cidade durante 6 meses. 159 MENEZES, D. Fernando de (Conde da Ericeira) -Historia de Tangere, que comprehende as noticias desde a sua primeira conquista ate a sua ruína-, Lisboa, Officina Ferreiriana, 1732. 160 Começa por comentar a história de Tânger desde a lenda do Gigante Anteo, fundador da cidade, que morreu no confronto com Hércules, até à sua ocupação por outros povos, incluindo Romanos e Judeus. 161 Inclui igualmente descrições referentes ao período de união dinástica entre as coroas de Portugal e Espanha de 1580 a 1640. 162 “(…) sobem depois ao Castelo [de Cima], onde o governador [Manuel de Melo, 3º governador de Tânger entre 1484 e 1487] que acaba deixa o que serve, e se recolhe a uma casa particular que tem na Cidade, ou ao Castelo novo, que fica sobre a Ribeira.”. MENEZES, 1732, p. 59. “Subiram ao Castelo (…) com algumas fileiras a porta do Castelo (…).” Idem, p. 213. 163 “(…) a 24 de Agosto, dia de São Bartolomeu, de 1643, subiram ao palácio ao amanhecer e entrando na câmara do Conde, que ainda estava na cama, disseram em voz alta: Viva el Rey D. João (…).” Idem, p. 155. 164 Idem, p. 152. 165 Idem, p. 159. 166 Ibidem. 167 Idem, p. 129. 168 Ibidem. 169 Idem, p. 74. 170 Idem, p. 206. 171 Idem, p. 65. 172 Idem, p. 88. 173 “(…) a fez levantar [a Torre principal do Castelo, D. Miguel de Noronha] na fórma que hoje se vê. O mesmo fez com a Torre do Sino em que está o farolero (…).” Idem, p. 129. 154 155
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Datados de meados do século XVII, estes registos foram resultado de um denso trabalho de pesquisa, para o qual o próprio governador chama a atenção. Explicando as razões que o conduziram à elaboração da compilação, o autor refere que a realidade do Norte de África era muito distinta daquela que lhe era familiar e que aquele panorama, “em tudo diferente dos demais” 174, o conduziu à procura de factos antigos de “sucessos passados”175, documentos e doutrinas que o ajudassem a colmatar a falta de experiência naquele território. A pesquisa de acontecimentos históricos ajudá-lo-ia a “atender com maior acerto às obrigações do seu ofício”176. Em conclusão, reconhecendo a falta de informação existente, na
maioria das vezes dispersa ou perdida foi instigado a reunir os resultados da procura num mesmo documento, com o objetivo de não deixar cair em esquecimento as memórias de Tânger. Deste modo, sempre que surgem descrições pormenorizadas de acontecimentos não vivenciados pelo próprio, depreende-se que estas assentam numa sólida base fundamentada. Do mesmo modo, é de grande proveito para este estudo a informação contida no texto “Relação de alguas cousas da cidade de Tangere”, de 1621, incluído na obra de Affonso de Dornellas177 “História e Genealogia”178, na qual o autor se prestou a reunir diversos dados históricos e testemunhos antigos, com o objetivo de dar a conhecer o memorável passado português. Embora publicado em inícios do século XX, os excertos consultados pertencem ao governador da praça, D. Pedro Manuel (1617-22), constituindo uma importante fonte primária, na medida em que proporcionam uma boa descrição da urbe fortificada da segunda década do século XVII com diversas referências ao Castelo que “chamao o Velho 179 e à sua constituição: “(…) no qual estao as casas dos generais, e tem dentro en sy moradores, casas, ruas e agoa ainda que pouca e nao muy boa, quintais de aruoredo e a porta que disem da trejsão (…), está este castelo sercado da banda do sul com dous baluartes fermosos que dominao a cidade, e da parte do leuante tem outros dous posto que da parte do noroeste que he o sitio da torre do sino he algum tanto menos forte a respeito de nao ter hu baluarte, que a telo fora castelo jnexpugnauel.”180
A caracterização da cidade inclui ainda uma série de medidas, em palmos181, das distâncias compreendidas entre um grande número de elementos da praça. Entre todas as dimensões apresentadas pelo autor destacam-se para o estudo: o distanciamento entre o “castelo nouo e a torre do sino”182, entre a “torre do sino e o cobelo do bispo”183 e ainda a informação sobre a cava com “prencipio na torre do sino donde ate o baluarte dos fidalgos he larga e feita a moderna (…).”184.
Também o manuscrito “Livro da Barca da Cidade de Tanjar: Mandado tresladar pello Barão de Aluito Dom Luís Lobo, Governador e Capitão General da dita Praça”185, mencionado por D. Fernando de Carta-Dedicatória aos Governantes e Capitães Gerais da cidade de Tânger in MENEZES, 1732, p. 4. Ibidem. 176 Ibidem. 177 Afonso de de Dornelas Cisneiros (1880-1944) foi um conceituado investigador e escritor português. 178 DORNELLAS, Affonso de – História e Genealogia. Vol. II. Lisboa: Livraria Ferin/ Casa Portuguesa, 1913-23. 179 Idem, p. 87-88. 180 Ibidem. 181 Um palmo corresponde a cerca de 22cm. 182 DORNELLAS, 1913-23, II, p. 88. 183 Ibidem. 184 Ibidem. 185 Livro da Barca da Cidade de Tanjar: Mandado tresladar pello Barão de Aluito Dom Luís Lobo, Governador e Capitão General da dita Praça, 1652, códice 1782. 174 175
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Menezes na sua obra186, constituído por cópias de cartas régias, cartas patente, provisões, alvarás e regimentos, datados de 1472 a 1652, é uma fonte valiosa de informação diversa relativa à evolução da morfologia da praça. No entanto, neste caso, a paleografia complexa tornou-se um entrave para uma análise mais aprofundada de todo o seu abrangente conteúdo. Por fim, importa fazer referência à correspondência conhecida entre figuras de vulto residentes na cidade, nomeadamente governantes e mestres-de-obras, e os monarcas de Portugal sobre diversos assuntos relacionados com a praça, particularmente com o planeamento e construção da grande estrutura moderna, das quais se retiraram informações cruciais para o desenvolvimento deste trabalho187. Exemplo disso é a missiva de Francisco Botelho, governador de Tânger de 1546 a 1548188, a D. João III189, que revela a primeira recomendação, por espanhóis, da fortificação do Castelo, ou as cartas de Bernardim de Carvalho, também governador de 1554 a 1564 por nomeação de D. Catarina190, a D. João III191 e a D. Sebastião onde afirma a sua intenção de fortificar a praça192. Da mesma forma, André Rodrigues, mestrede-obras da cidade, dirige-se a D. João III193 e a D. Catarina, enviando à segunda, em 1558, a traça da cidade onde propõe tornar o “Castello Velho”194 numa “fortaleza impenetrável”195. Atualmente, não há certezas sobre o paradeiro desse documento contendo o perfil arquitetónico da primeira proposta, sendo provável que o original se tenha perdido. Do mesmo ano, a carta remetida a D. Catarina por Cristóvão da Cunha, que se desloca a Tânger acompanhado por Vasco da Cunha a fim de avaliarem o seu estado, revela que, segundo o parecer do redator que coincide com o do seu irmão196, não seriam necessários muitos gastos para a fortificação e o Castelo de Cima é referido, controversamente, como o “castelo amtiguo dos
MENEZES, 1732, p. 51. A consulta destas cartas fez-se a partir dos exemplares manuscritos conservados, em suporte digital, no site oficial do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (http://antt.dglab.gov.pt/), dos dactilografados nos cinco volumes de “Les Sources Inédites de L’Histoire du Maroc. Première Série — Dynastie Sa'dienne Archives et Bibliotheques de Portugal” de Robert Ricard, dos exemplares inseridos no Diccionario Histórico e Documental dos Architectos, Engenheiros e Construtores Portuguezes de Sousa Viterbo e ainda dos citados em diversos estudos atuais. 188“Sucedeu-lhe Francisco Botelho, que tomou posse no governo a 3 de Março de 1546 (…) homem prudente e maduro (…). Teve por sucessor D. Pedro de Meneses, que chegado a 14 de Novembro [de 1548], tomou posse do governo a 18 do mês seguinte.” MENEZES, 1732, p. 80 e 81 189 “ (…) lhes pareçeo mais necesaryo forteficar-se o castello primeyro que a cidade, e a mym asy m'o pareçeo (…).” Carta de Francisco Botelho a D. João III, Tânger - 12 de Agosto de 1548, I.A.N.T.T. - Corpo Cronológico, parte I, maço 81, doc. 23. in LES SOURCES inédites de l'Histoire du Maroc. Première Série — Dynastie Sa'dienne Archives et Bibliotheques de Portugal Tome IV, Janvier 1542 - Decembre 1550, par Robert Ricard, Paris, Paul Geuthner, 1951, p. 290 e 291. 190 “Sucedeu-lhe Bernardino de Carvalho, a quem a Rainha Dona Catarina, que então governava pela menoridade del-rei D. Sebastião, ordenou que acudisse a Tânger (…).” Ibidem, p. 87 191 “(…) Esta cidade estaa comas cavas todas abertas. Compriaao serviço de V. A. mamdar-me jemte d'obra e call e dinheiro; e com ajuda de Deos far-se-a a cavaa e traveses que V. A. mamda fazer per seu rregimento em pouco tempo, eisto feito fiqua forte, ficando pêra se poder defemder com ajuda de Deos de toda a mourama, temdo mamtimentos que aguora não tenho, e a jemte neçesaria.” Carta de Bernardim de Carvalho a D. João III – 6 de Outubro de 1554, I.A.N.T.T. – Corpo Cronológico, parte I, maço 93, nº 126 in LES SOURCES inédites de l'Histoire du Maroc. Première Série — Dynastie Sa'dienne Archives et Bibliotheques de Portugal Tome V Documents Complementaires (1552-1580) par Robert Ricard, Paris, Paul Geuthner, 1953. 192 “(…) por esta çidade estar tam mal fortificada como estaa. Pelo que V. A. deve de mandar cal pera se poder forteficar este castelo, porque, se me mandar o necessário, com ajuda de Deus, este verão o forteficarei (…).” Carta de Bernardim de Carvalho a D. Sebastião I, 31 Mar. [1562/1563] – I.A.N.T.T., Gaveta 15, maço 13, nº 3 em CORREIA, 2006, p. 199. 193 Carta de André Rodrigues a D. João III, 1546, A.N.T.T., Corpo Cronológico, 1ª parte, maço 78, doc. 52 in SOUSA VITERBO, 1998, vol. II, p. 383-384. 194“(…) lhe fiz a traça da maneira que vosa alteza vera que pareçe ir bem decrarada (…)”.E referindo-se ao projeto para a cidadela ”(…) da maneira que vai na traça sera pera de todo ficar em sobre feição, espicialmente o castello uelho, porque lhe fiqua a cidade tam sogeita e tamto debaixo dartelharia que parece que os immiguos ha nao quererao cometer uendo a pouqua esperança que terão de tomar o dito castello (…).” Carta de André Rodrigues a D. Catarina, Tânger - 19 de Julho de 1558, I.A.N.T.T., Corpo Cronológico, parte I, maço 102, doc. 126, in SOUSA VITERBO, 1998, vol. II, p. 383-384. 195 Ibidem. 196 Carta de Vasco da Cunha à Rainha Regente a 12 de Julho de 1558 A. N. T. T. Corpo Cronológico, 1/102/119, in ELBL, 2013, p. 643. 186 187
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mouros”197. O sucessor de André Rodrigues, Jorge Gomes, também em carta à regente198 comunica a
realização de um modelo da praça, peça da qual não há qualquer outro registo, nem indícios de que tenha sobrevivido até à atualidade. Essencial para o entendimento do encadeamento dos factos, que decorreram desde o início das obras até à efetiva conclusão, é toda a correspondência estabelecida entre o cardeal D. Henrique e o governador Lourenço Pires de Távora199, entre Setembro de 1564 e Outubro de 1565. Conhecem-se, através dessas cartas, diversas causas que contribuíram para o atraso da construção, materiais expedidos200 e figuras intervenientes no processo, como os dois italianos enviados201, o cavouqueiro, “Antonio martins Cauoqueiro”202 e “ Jorge gomes que ora he mestre das obras dessa Cidade”203. Há a distinção
entre a “obra da forteficasão de dentro”204 e a “forteficasam de fora” 205 e pela primeira vez há referência ao nome de um dos baluartes, o “belluarte da comseisão”206. Novas alusões à denominação dos elementos modernos, além de menção de obras ainda em curso207, atrasadas “por não ser vindo o mestre d'ellas que Ia ficou”208, aparecem na Carta de D. João de Menezes, governador, a Pedro de Alcáçova Carneiro “(…) pêra o cordão que a de aver no baluarte de S. João; (…) na cortina que vai do baluarte Esprito Santo ao baluarte da Comseição he acentado todo o cordão e esta fermoso (…).”209.
Carta de Cristóvão da Cunha a D. Catarina - 12 de Julho de 1558, A. N. T. T. Corpo Cronológico, 1/102/120, fol. 1. In http://antt.dglab.gov.pt/. 198 “Eu cheguei a esta sua cidade a doze de março (…) e cheguando comecei a emtemder o modello, que V. A. me mâdou fazer desta cidade, e niso amdo bem ocupado, trabalhamdo de dia e de noite (…).”.Carta de Jorge Gomes a D. Catarina, Tânger – 2 de junho 1959, I.A.N.T.T., Corpo Cronológico, parte I, maço 103, doc. 80 in SOUSA VITERBO, 1998, p. 432. 199 Lourenço Pires de Távora (1510-73), 3º Senhor da Torre da Caparica é governador de Tânger entre Junho de 1564 a Abril de 1566. 200 Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Lisboa, 20 de Setembro de 1564, em resposta a cartas do governador de Junho e Julho desse mesmo ano. A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, f. 17. in CRUZ, 1988, p. 430. 201 Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Almeirim, 4 de Janeiro de 1565.A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, f. 35. In http://antt.dglab.gov.pt/ (salvaguardo aqui possíveis erros na compreensão da paleografia, devido à consulta a partir do manuscrito digitalizado). Também há referência aos mesmos “(…) ditos Italliannos para Seguranca dos que trabalharem e apara aplanarem os baluartes (…).” na Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Lisboa, 22 de Fevereiro de 1565, A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, ff. 39-40. in CRUZ, 1988, Apêndice Documental, p. 572-573. E ainda na Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Lisboa, 18 de Maio de 1565.A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, ff. 45-46 in CRUZ, 1988, Apêndice Documental, p. 574-575. 202 Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Almeirim, 18 de Janeiro de 1565.A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, f. 37. In http://antt.dglab.gov.pt/ (salvaguardo aqui possíveis erros na compreensão da paleografia, devido à consulta a partir do manuscrito digitalizado). 203 Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Lisboa, 6 de Outubro de 1565. A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, ff. 60-61 In http://antt.dglab.gov.pt/ (salvaguardo aqui possíveis erros na compreensão da paleografia, devido à consulta a partir do manuscrito digitalizado). 204 Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Almeirim, 4 de Janeiro de 1565.A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, f. 35. In http://antt.dglab.gov.pt/ (salvaguardo aqui possíveis erros na compreensão da paleografia, devido à consulta a partir do manuscrito digitalizado). 205 Ibidem. 206 Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Lisboa, 16 de Julho de 1565. A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, ff. 52-53 In http://antt.dglab.gov.pt/ (salvaguardo aqui possíveis erros na compreensão da paleografia, devido à consulta a partir do manuscrito digitalizado). 207 Referindo-se ao andamento dos trabalhos, o governador refere “(…) As obras não se trabalha nellas o que se deve trabalhar (…), porque se pasa o verão, em o qual fora boom abrirem alguns aliseses onde se an de abrir, por ficar o serviço que se faz pêra o imverno. A jente da obra trabalha, a saber : os cavouqueiros arrenquão pedra na parte onde a de ser a cava ; a que sahe e he pêra cantaria lavrão-na os pedreiros (…) a cava da banda face Esprito Santo se acabara de abrir ate fim d'este mes ; polo meo se põem a pedra d'alvenaria que se poderá aver mister pêra se poder fazer a comtrachapa ; vay limpa da terra. Asi se fará nos outros luguares da cava em que os cavouqueiros trabalhão; a terra não se acarreta pêra dentro dos baluartes e cortina, porque me parece que esta terra dentro que baste, porem ficão dous montes em dous luguares mais acomodados pêra se poderem recolher com menos trabalho se for neceçario, sem se perder o serviço, e a mais terra se afasta da cava pêra fora.” Carta de D. João de Menezes a Pedro de Alcáçova Carneiro a 19 de Agosto de 1566 in LES SOURCES Inédites de l'Histoire du Maroc. Première Série — Dynastie Sa'dienne Archives et Bibliotheques de Portugal Tome V, Janvier 1535 Décembre 1541, par Robert Ricard, Paris, Paul Geuthner, 1948, p. 111. 208 Ibidem. 209 Ibidem. 197
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Ainda no contexto da correspondência estabelecida entre Pires de Távora e D. Henrique, importa particularizar o documento datado de 2 de Abril de 1565: “Apontamento das cousas neçesaryas pera obra e fortifiquação que ora el Rey nosso Senhor ordena se faça nos pumares Respomdendo a outro apomtamento dos Italyanos que pera o feyto da mesma obra ffezerão.”210, no qual surge mencionada a solicitação de diversos
materiais, animais de carga e trabalhadores como “quadrylheyros asystemtes nas partes da obra omde serem neçeçarios porque nãao pode o mestre e aparelhador (…).”211.
Decorrentes do período da sua governação, chegam também aos dias de hoje as imprescindíveis fontes de informação: “Lembrança do que se despemdeo no prouimento do muro e cousas necesareas a gouernaça desta cidade de Tangere que o feitor Luis Fernandes deu per mandado do Senhor Lourenço Pires de Tavora capitão e gouernador della”212 que compreende diversas referências físicas precisas a trabalhos levados a cabo nas “Estancias do Muro e corpos de guarda”213, onde se inclui, por exemplo, a “Tore do Syno” e a “Porta da Treição”,
importantes informações acerca da reforma do “Castelo Velho”214, contendo diversas alusões ao Paço; conjuntamente com a “Lista das cousas que ha dauer na gouernança da cidade de Tangere”215, onde há novas referências a materiais. Em suma, a análise desta correspondência permite perceber alguns propósitos considerados na edificação da Cidadela, a sua materialidade, escala do projeto, datação e encadeamento de episódios. Aliadas às demais fontes escritas datadas do tempo português, possibilitam comprovar considerações gerais sobre a implantação, função e morfologia global dos elementos que compunham o Castelo de Cima, fundamentalmente na segunda fase. Não são fornecidos detalhes precisos acerca da organização espacial do mesmo, sabendo-se apenas, a partir de referências teóricas, aspetos funcionais e a sua evolução ao longo do tempo.
Fontes Visuais Comparativamente aos recursos escritos, a quantidade de fontes visuais datáveis do período português em Tânger é muito menor, resumindo-se a quatro exemplares: dois desenhos perspéticos e dois planimétricos216. Contudo, o seu denso conteúdo é essencial para o desenvolvimento de todo o trabalho.
Papéis da embaixada de Inglaterra e da jornada de Castela sobre a ida da infanta D. Maria, com outros vários, todos do tempo do Senhor Lourenço Pires de Távora, fols. 214-215v, A. N. T. T., Códices e Documentos de Proveniência Desconhecida, nº 53. 211 “Trabalhadores e ofiçiaes se pidyraao quamdo serem neçeçariyos cumprem mamde S. A. somemte logo a Garcia Fernandiz e mestre de Samto Esteuã d’Alfama e Fernam Aluarez que pousa ao Chafariz d’Andaluzes e Diogo Gomez que trabalha em Nossa Senhora da Graça e ho Mõtanhiz pera seruirem como quadrylheyros asystemtes nas partes da obra omde serem neçeçarios porque nãao pode o mestre e aparelhador (…).” Idem, fol. 225. 212 Papéis da embaixada de Inglaterra e da jornada de Castela sobre a ida da infanta D. Maria, com outros vários, todos do tempo do Senhor Lourenço Pires de Távora, fols. 218-223v, A. N. T. T., Códices e Documentos de Proveniência Desconhecida, nº 53. 213 Idem, fol.218 a 220. 214 Idem, fol. 220v a 222v. 215 Idem, fols. 182v-184v. 216 Em apenas três, dos quatro exemplares encontrados, é possível identificar com clareza o Castelo de Cima de Tânger. 210
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O desenho alusivo à praça da autoria de Francisco da Holanda217 (Figura 11 (1)), incluído no Tratado “De quanto serve a ciência do desenho e entendimento da arte da pintura, na República cristã, assim na paz como na guerra”218, datado de 1571, é aquele cujo conteúdo é mais omisso no que a detalhes do Castelo de Cima diz respeito. Na realidade, esta representação da cidade integra uma complexa composição alegórica, que ilustra toda a abrangente linha litoral Sul do estreito de Gibraltar e envolvente interior, aludindo à “conquista projectada de Marrocos”219, onde se incluem outros povoados magrebinos220, pelo que, forçosamente, não é conferido um elevado grau de pormenorização a cada ponto. Embora se trate de uma vista aérea a partir do Norte, é apresentada a perspetiva Nascente da praça (Figura 11 (2)), aquela que, de facto, permite a melhor compreensão da sua extensão, ainda que seja possível que esta opção se tivesse prendido apenas com a necessidade de utilização de um desenho modelo anterior, existindo talvez para o efeito apenas a representação daquele plano221. Na parte mais alta do aglomerado urbano é possível identificar um edifício aparentemente composto por várias torres, possivelmente o retrato do Paço, na base do qual a sugestão de uma admissível construção trapezoidal remete para a presença de um elemento constituinte da Cidadela. Contudo, a conceção simplificada, mostrando apenas as linhas gerais da urbe, faz com que não se consigam retirar dados concretos para o estudo.
Figuras 11 (1) Desenho alegórico de Francisco da Holanda, Tratado “De quanto serve a ciência do desenho e entendimento da arte da pintura, na República cristã, assim na paz como na guerra”, de 1571. (2) Aproximação à representação da cidade de Tânger e envolvente próxima.
Francisco da Holanda (1517-1585) foi um pintor, humanista e arquiteto militar português. CALAFATE, Pedro – Francisco da Holanda in http://cvc.instituto-camoes.pt/filosofia/ren5.html. 218 O pequeno tratado “De quanto serve a ciência do desenho e entendimento da arte da pintura, na República cristã, assim na paz como na guerra” da autoria de Francisco da Holanda é dirigido ao rei D. Sebastião em 1571. DAVEAU, Suzanne - A propósito das “pinturas” do litoral marroquino incluídas no Esmeraldo de Situ Orbis in Mare Liberum: Revista da História dos Mares. Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portuguese, Dezembro 1999 - Junho 2000, p. 93. 219 DAVEAU, 2000, p. 122. 220 Associados aos aglomerados urbanos conseguem distinguir-se, de Sul para Norte, as seguintes palavras: ”Monte Atlante”, “Marocos”, “Fez”, “Tvtvão”, “Ceyta”, “Alcacer” e “Tanger”. 221 A utilização de modelos pré-existentes para a realização de gravuras posteriores era prática comum, comprovando-se este cenário para algumas fontes visuais deste capítulo. 217
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Do ano seguinte, fundamental para esta investigação, a gravura “Tingis Lusitanis Tangiara” (Figura 12 (1)) da obra “Civitates Orbis Terrarum”222 de George Braun223 e Franz Hogenberg224, ilustra uma vista panorâmica de Tânger e envolvente próxima, onde é percetível toda a mancha construída, a baía e a topografia acentuada circundante. Nela identifica-se distintamente, pela primeira vez, o Castelo Velho. Na verdade, embora a produção que a integra seja datada da década de setenta do século XVI, Suzanne Daveau225, apresenta a hipótese de Braun se ter baseado, para a execução da vista da urbe, num desenho português da primeira década do século XVI, antes das reformas de Danzillo de 1511-1514 que não constam na gravura. É apontado como provável autor do modelo, Duarte d’Armas, o “grande pintor” mencionado por Damião de Góis enquanto membro da expedição ordenada por D. Manuel, em 1507, ao Norte de África, cujo objetivo era a execução do levantamento gráfico dos principais portos226. No entanto, não há qualquer alusão direta a uma visita à praça de Tânger227. Apesar das evidentes incorreções de escala e incoerência perspética, a imagem revela-se um importante contributo para o estudo, na medida em que faculta informações acerca de um intervalo temporal específico da permanência lusitana em Tânger, retratando o Castelo de Cima antes da segunda
Figura 12 (1). “Tingis Lusitanis Tangiara” BRAUN, Georg, HOGENBERG, Frans, NOVELLANUS, Simon – Civitates Orbis Terrarum. Antuerpiae Coloniae: Apud Philippum Gallceum/Apud Audtores, 1572. BNL – C.A. 57v, fl, 56-56v; fl 57-57v (cópia de original do início século XVI).
Civitates Orbis Terrarum, Liber Primus. Antwerp, Gilles van den Rade, 1575. (Van der Krogt 4, 41:1.1) A obra “Cidades do Mundo” é considerada, por alguns autores, o conjunto mais completo de vistas, planos e descrições textuais de cidades mundiais publicada durante a Idade Moderna. Dela fariam parte seis volumes, publicados em anos sucessivos, o primeiro em 1572 e o último apenas em 1617. Presume-se que esta obra tenha sido concebida com o intuito de ser um complemento àquele que foi considerado o primeiro Atlas moderno, o “Theatrum Orbis Terrarum” de 1570 de Abraham Ortelius. No entanto, a abordagem seria diferente, direcionada a um público mais abrangente. Historic Cities in http://historic-cities.huji.ac.il/mapmakers/braun_hogenberg.html. 223 George Braun (1541-1622), cónego da catedral de Colónia, foi o coordenador geral da obra “Civitates Orbis Terrarum”. Os textos descritivos que acompanham as gravuras são, na sua maioria, da autoria de Braun. 224 Franz Hogenberg (1535-1590), pintor e gravurista, ilustrou a maioria das vistas do “Theatrum Orbis Terrarum” de Abraham Ortelius. Teve também uma grande participação na obra “Civitates Orbis Terrarum” onde também realizou a maioria dos desenhos para a impressão. 225 DAVEAU, 2000, p. 120 226 MOREIRA, Rafael (direção) – História das fortificações portuguesas no mundo, 1989, p. 109. 227 “Em 1507 el-rei D. Manuel mandou uma pequena expedição a sondar as barras de Azamor, Mamora, Salé e Larache, e d’ella fazia parte como technico “hum Duarte Darmas, grande pintor, que traçou e debuxou as entradas destes rios, e a situação da terra”. SOUSA VITERBO, Vol. I, p. 45. 222
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década de Quinhentos228. Destacam-se pela escala ampliada, entre outras construções, a cerca que envolve a cidade, o Castelo Novo com a couraça à cota baixa, um edifício de índole religiosa, possivelmente a Catedral, antiga Mesquita Maior, e o compacto e torreado Paço destacado à cota alta. Pensa-se que a desproporcionalidade destas edificações tenha como propósito enfatizar a sua importância enquanto meio de legitimação da soberania portuguesa e da fé cristã229. Relativamente ao caso de estudo, a localização cimeira no desenho não deixa dúvidas quanto à sua implantação na zona mais alta intramuros, a ocupar o topo Noroeste da urbe (Figura 12 (2)). O paço surge realçado no ângulo Sudeste do complexo acastelar e dele parte o segmento Nascente da cerca, incompleto, antes de encontrar a muralha Norte. Distingue-se ainda uma parte da seção Poente da cerca, porém o segmento Sul não é visível a partir desta vista. O palácio aparece como um edifício alto, maciço, praticamente sem aberturas no nível inferior e com apenas algumas no estrato superior. Apresenta uma composição aparentemente quadripartida, uma sucessão de blocos paralelepipédicos agregados com cobertura telhada e pontuados por chaminés. Junto à acrópole palatina aparecem as palavras “Domus Praefecti”, que designam a sua função de casa do governador. Embora seja impossível confirmar a fiabilidade de todos os componentes representados na ilustração e apesar das grandes alterações de escala e simplificação de formas, a gravura “Tingis Lusitanis Tangiara” (Figura 12 (1)) contém a única representação clara do Castelo datada do intervalo 1471-1661 e, como tal, a sua análise é imprescindível para o desenvolvimento deste trabalho.
Figura 12 (2) Aproximação à representação do Castelo de Cima da gravura “Tingis Lusitanis Tangiara”.
Não se enquadrando no acervo datado do período português, importa aqui abrir um parênteses na ordem de apresentação dos recursos, para fazer referência a uma gravura cujas semelhanças com a de Braun são inegáveis. Trata-se da vista “Tanger” (Figura 13 (1)), integrada na obra “Description de l’Univers” de Alain Manesson Mallet230 publicada em 1683. De acordo com Suzanne Daveau, a gravura não é uma cópia da “Tingis Lusitanis Tangiara” (Figura 12 (1)) mas sim uma derivação do modelo desta231. A matriz é de facto muito idêntica à de Braun mas é possível constatar-se algumas diferenças relevantes, fundamentalmente no que diz respeito ao Castelo de Cima (Figura 13 (2)). Na segunda metade do século XVI ocorrem grandes transformações formais nas arquiteturas da cidade e no seu sistema defensivo. 229 MENDES, 2017, p. 45. 230 Alain Manesson Mallet (1630-1706) foi um cartógrafo, matemático e engenheiro militar francês que também trabalhou ao serviço do rei Afonso VI de Portugal de 1666 a 1668. D’ORGEIX, Émilie - Alain Manesson Mallet (1630-1706) Portrait d’un ingénieur militaire dans le sillage de Vauban, 2008, p. 68 In http://www.lecfc.fr/new/articles/195-article-7.pdf. 231 DAVEAU, 2000, p. 100. 228
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Quatro blocos agregados, de coberturas independentes e com aberturas somente no nível superior, conformam igualmente a estrutura do Paço, embora a anterior variação de planos não esteja tão presente. De todas as torres, o autor parece destacar as dos extremos, com uma textura e coloração diferentes, embora as dimensões de cada componente sejam praticamente equivalentes para os dois exemplares. As distinções entre gravuras são, porém, mais significativas quando se atenta na restante constituição da fortificação à cota alta. De facto, estão presentes nesta figura alguns elementos modernos, entre eles o Baluarte Sudeste da Cidadela, e, embora de forma menos óbvia, uma estrutura que provavelmente ilustra o Baluarte Nordeste. A muralha Norte distancia-se da fortificação de Cima, terminando numa construção também cilíndrica, mas de escala superior à da gravura de Quinhentos, à qual adicionou também um baluarte, este sobranceiro à encosta. Torna-se evidente, neste momento, que Mallet modificou e “atualizou” parcelas específicas do desenho base da vista Nascente, demonstrando que teria conhecimento de algumas das transformações ocorridas na praça. Não havendo referências a uma deslocação a Tânger, é provável que, durante o período em que o autor trabalhou a serviço de Afonso VI de Portugal, de 1666 a 1668, tenha tido acesso por um lado, ao plano base da primeira década do século XVI e, por outro, à informação das obras executadas pelos portugueses na praça, que nessa altura pertencia já à coroa britânica232.
Figura 13 (1) “Tanger” incluído no “Description de l’Univers” de Alain Manesson Mallet de 1683.
Figuras 13 (2) Aproximação à representação do Castelo Velho no “Tanger” “Description de l’Univers” de Alain Manesson Mallet. 232
A cidade de Tânger é entregue aos ingleses em 1661 que a abandonam em 1684.
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De volta ao tempo português, surgem duas gravuras de enorme valor para o presente estudo, redescobertas recentemente no Arquivo Militar de Estocolmo – “Krigsarkivet”, integrando o espólio do diplomata e colecionador sueco Johan Gabriel Sparwenfeld233, doado à Royal Library da Suécia e à Universidade de Uppsala em 1704-1705234. Tratam-se dos únicos desenhos bidimensionais da praça que subsistem até aos dias de hoje, executados antes do desembarque britânico. Com conteúdo semelhante, separam-nos visivelmente muitos anos de execução. Um deles integra o “Atlas del Marqués de Heliche: Plantas de diferentes Plazas de España, Italia, Flandes y las Indias”: um conjunto de várias dezenas de plantas e vistas235 reunidas num único exemplar, encomendado por D. Gaspar de Haro e Guzman (16291687), Marquês de Heliche236, a Leonardo de’ Ferrari237, pintor e gravurista italiano, e executado entre 1650 e 1655. O segundo, que parece ter servido de modelo ao pintor para a execução do plano de Tânger238, anexado à extensa coleção, contém alguma informação adicional relevante. Segundo consta, Sparwenfeld terá adquirido estes documentos num leilão de bens em Madrid, após a morte do Marquês (1687), presumivelmente durante o período em que o diplomata permaneceu em Espanha, entre finais de 1689 e 1690. Conjuntamente com o Atlas, vários planos originais sobre os quais se terá debruçado Ferrari, alguns deles de possessões então portuguesas, como é exemplo o de Tânger239, foram também adquiridos. Torna-se claro que o pintor terá tido acesso a documentação confidencial, provavelmente facultada pelo próprio mecenas, beneficiando da sua próxima relação com a corte espanhola240. Como é evidente, a maioria destes planos originais não são coevos ao período de elaboração do Atlas, o que se repercute, muitas vezes, em representações anacrónicas. Isto é, embora as gravuras que constam na encomenda do Marquês de Heliche tenham sido realizadas por Ferrari no intervalo temporal 1650-1655, dependendo da fonte em que o autor se baseou, podem retratar, na realidade, momentos anteriores241, como parece ser o caso do exemplar em estudo. Johan Gabriel Sparwenfeld (1655-1727) foi um diplomata e colecionador sueco. “(…) accidentally preserved thanks to the acquisitive meticulousness of the cosmopolitan seventeenth-century Swedish diplomat, traveller, humanist, collector, and bibliophile, Johan Gabriel Sparwenfeld, who donated the Atlas de Heliche and various other papers purchased in Spain in 1689-90 to Sweden’s Royal Library and to the University of Uppsala in 1704-5.” ELBL, 2012, p. 4. 235 Coleção de um total de 133 plantas e vistas que pretendiam ilustrar o Império Espanhol durante o reinado de Filipe IV. SÁNCHEZ RUBIO, Rocío [et. al.] - Imágenes de un Imperio Perdido. El atlas del Marqués de Heliche, 2004, p. 19. No “Atlas” constam os desenhos de Tânger, Castro Marim, Tavira, Lagos, da villa de Belver(?), Castelo de Mina, Cabo Verde, Damão, Moçambique (Monsábiqve), Salvador e o plano de São Julião da Barra (castillo de San Gian). 236 Gaspar de Haro e Guzman ou Gaspar Méndez de Haro (1629-1687) VII Marquês de Carpio e Heliche e Conde de Morente foi um nobre colecionador de arte, diplomata e político espanhol do século XVII. 237 Leonardo de’ Ferrari foi o pintor e gravurista italiano, de Bolonha, que trabalhou desde 1650 a 1655 para o Marquês de Heliche na criação do Atlas. Não existem menções a este gravurista na historiografia espanhola, nem referência a outras obras que tenha realizado em Espanha. “Su dedicación exclusiva a los dibujos que le pidió ejecutar el marqués de Heliche explicaría que no dejara huella alguna en la historia de la pintura española del XVII.” SÁNCHEZ RUBIO, 2004, p. 31. Em Itália, por outro lado, verificam-se vários registos à sua obra, caracterizada fundamentalmente por representações de temáticas religiosas. Consultar BESSONE AUREL, J.- Dizionario dei Pinttori Italiani. 1928. 238 “(…) El Atlas de Ferrari, aparte de su contenido, se caracteriza precisamente por haber sido realizado no por un ingeniero, arquitecto o cosmógrafo, sino por un pintor, que reprodujo y copió planos y mapas que se le facilitaron, informando – hasta donde le fue posible- un material de procedencia muy diversa (…).” SÁNCHEZ RUBIO, 2004, p. 20. 239 “(…) los originales que Leonardo de Ferrari tuvo como modelos para ejecutar sus dibujos. Se trata de los panos de Tortosa, Zaragoza, el castillo de San Gian (Lisboa), Tánger, Lagos, El Puntal (Cádiz), Jerez de los Caballeros y Almendral (…).” Idem, p. 32 e 33. É possível que o de Tânger, bem como os restantes modelos de domínios portugueses usados, tenham sido levados para Espanha durante a União Ibérica e permanecido lá após a restauração da independência em 1640. 240 “(…) don Gaspar se valió de documentos secretos que estaban a sua alcance, en su própria casa, porque era el hijo del valido de Felipe IV [D. Luiz Méndez de Haro] (…).” Idem, p. 21. 241 Segundo Fraga da Silva, uma análise minuciosa do plano de Tavira, com a identificação da presença ou ausência de determinados elementos dos quais se conhece a datação, revela que Ferrari se baseou, muito provavelmente, numa planta original (não incluída nos arquivos) executada entre 1542 e 1568. SILVA, Fraga da – Atlas Histórico de Tavira do século XVII. 4 de Abril de 2008 in http://imprompto.blogspot.pt/2008/04/. 233 234
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Figura 14 “Planta de Tangere” de 1655, Krigsarkivet (Estocolmo), Handritade Kartwerk, vol. 25 (Atlas del Marqués de Heliche [Plantas de diferentes plazas de España, Italia, Flandes y las Indias. Todas de mano hechas hazer de orden del Exmo. Sr. D. Gaspar de Haro y Guzmán, Conde de Morente, Marqués de Heliche, Gentilhombre de la Cámara de Su Magestad, Su Montero Mayor y Alcaide de los Reales Bosques del Pardo, Balsahyn y Zarzuela. En Madrid, Año de 1655]).
Figura 15 Krigsarkivet (Estocolmo), coleção 0406, Utländska kartor, sect. 0406a, Utländska stads- och fästningsplaner, nº 0406:07:009:001 (sem título) (Tangêr), MS, anon., sem data.
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O documento relativo a Tânger: “Krigsarkivet nº 0406:07:009:001” (Figura 15), arquivado em conjunto com as gravuras que compõem o “Atlas do Marquês de Heliche”, não surge datado, nem possui qualquer assinatura autoral242. Na verdade, a análise deste exemplar requer muita cautela e ponderação, uma vez que não possui qualquer tipo de legenda chave para decifrar as intenções de cada variante gráfica, não podendo ser interpretado simplesmente utilizando as convenções atuais. Não obstante, é imediatamente percetível o seu enorme valor, tratando-se da única planta conhecida que parece revelar o perímetro fortificado do Castelo de Cima, tal como ele era imediatamente antes da adição da Cidadela e onde ainda não aparece construída uma plataforma defensiva setentrional. Na realidade, através de expressões gráficas diferentes mas à mesma escala, encontram-se claramente conjugados no desenho pelo menos dois momentos distintos da evolução morfológica do Castelo de Cima. Embora não apresentando pormenores da sua constituição interna, não aparecendo reproduzido o Paço, não só é possível distinguir todo o contorno do complexo fortificado com três grandes baluartes em cunha e uma detalhada plataforma de artilharia a Poente com dois baluartes de escala menor, como ainda, a traçado mais suave, nomeadamente no setor Sul e Nascente, se lê, sugestivamente, a silhueta de muralhas e torreões, que a certo ponto, separando-se do estrato mais destacado, seguem um percurso distinto, intersetando por vezes o primeiro. Estas casuais interseções sugerem que, muito provavelmente, as estruturas cruzadas correspondentes a cada “layer” não coexistiram integralmente num contexto temporal real243. Qualquer que fosse o propósito principal deste plano, transparece a clara intenção do autor de demonstrar a articulação de vários períodos no mesmo mapa. Por hipótese, dar a conhecer a relação entre o que parece ser um estrato presente mais destacado e um anterior, ou, especulando um pouco mais, a relação compreendida entre um estrato presente, consolidado e construído244 (a traço escuro e preenchimento bastante pormenorizado), um estrato também presente, existente no momento da execução do mapa, mas que se tencionava substituir (a traço leve) e um terceiro estrato, permeado pelo anterior, que poderia tratar-se de uma proposta construtiva245. Esta segunda hipótese, compartilhada por Martin Elbl, implicaria que este desenho, ou o original dele, apresentasse o projeto para os três grandes baluartes da Cidadela, sendo portanto anterior a 1565246. Não havendo mais fatores que atestem a
Apresentando grandes semelhanças, particularmente a nível de representação, com o plano de Tânger, aparece também a traça da cidade de Lagos do século XVI, incorporando uma proposta de melhoramento das suas fortificações, e que é também base para a execução da respetiva gravura do Atlas. Krigsarkivet (Estocolmo) coleção 0406, Utländska kartor, sect. 0406a, Utländska stads- och fästningsplaner, nº 0406:18:006:001 (sem título) (Lagos), MS, ano., sem data. Consultar SÁNCHEZ RUBIO, 2004, p. 67. Este plano também se constrói por diversos “layers” de linhas com diferente expressão ao qual é ainda sobreposta uma tira de papel na zona da frente marítima, possivelmente com uma proposta de configuração alternativa para a mesma. Consultar ainda ELBL, 2012, p. 6. 243 Observando o plano, consegue-se facilmente detetar diversas interseções dos limites Sul e Este do Castelo de Cima. Os contornos mais claros “cortam”, indiferentemente, as paredes dos espessos baluartes continuando depois pelo seu preenchimento. A coexistência de duas estruturas com essa configuração parece inconcebível. 244 Muralha Norte pontuada por torreões e a porta da Traição e todo setor Oeste do Castelo de Cima. 245 Nesta hipotética conjetura, o “layer” mais claro representaria os elementos que ficariam em desuso, tendo como destino ser derrubados ou aterrados em proveito da nova construção. 246 A apurar-se a veracidade desta conjetura, o original deste mapa seria anterior ao início efetivo das grandes obras modernas em 1565. Torna-se difícil não estabelecer uma ambiciosa analogia entre este plano e o conteúdo da missiva de 1558 do mestre-de-obras de Tânger, André Rodrigues à rainha regente, onde este refere que executa a traça da Cidade contendo uma proposta de grande envergadura para a Cidadela. “(…) lhe fiz a traça (…) espicialmente o castello uelho, porque lhe fiqua a cidade tam sogeita e tamto debaixo dartelharia que parece que os immiguos ha nao quererao cometer (…).” Carta de André Rodrigues a D. Catarina, Tânger - 19 de Julho de 1558, I.A. N. T. T., Corpo Cronológico, parte I, maço 102, doc. 126 in SOUSA VITERBO, 1998, vol. II, p. 383-384. Ou ainda com o “modelo” que Jorge Gomes fez para a rainha. Carta de Jorge Gomes a D. Catarina, Tânger – 2 de junho 1959, I. A. N. T. T., 242
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autenticidade da suposição, dá-se por certo o facto de o seu conteúdo ilustrar a praça antes da construção da grande plataforma Norte, distanciando, de uma alguma maneira, a edificação desta estrutura das obras do período sebástico. O estado de conservação deste documento vem dificultar a sua interpretação. Infelizmente, as linhas mais claras, principalmente aquelas cuja configuração se pensa constituir o testemunho singular do estrato português mais antigo, são por vezes, de difícil leitura. Ainda assim, é possível estabelecer um paralelo entre as características morfológicas desses limites com as encontradas na muralha Norte. Como é possível observar, o documento original terá sido cortado, em algum momento, em secções que não correspondem às dobras originais. Com o passar do tempo, o desgaste das margens de cada fragmento dificulta a sua correta reorganização e encaixe. Deste modo, a sobreposição da planta com a cartografia atual torna-se inviável quando analisada como um todo, devido ao desfasamento da montagem. Contudo, numa tentativa de reestruturação e nova agregação dos fragmentos, e posterior confronto com a cartografia atual, é possível detetar algumas correspondências (Figuras 16 (1) e (2)).
Figura 16 (1) Sobreposição do mapa “Krigsarkivet nº 0406:07:009:001” com a cartografia de Tânger atual.
Corpo Cronológico, parte I, maço 103, doc. 80) in SOUSA VITERBO, 1998, p. 432. Martin Elbl considera no seu estudo estas possibilidades. Não existem, no entanto, quaisquer outros indícios que legitimem indubitavelmente essa equivalência entre documentos.
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O desenho possui ainda uma valiosa escala gráfica, na qual cada segmento que a constitui corresponde a 22m o equivalente a 10 braças247. Numa dedução análoga à realizada por Fraga da Silva para a planta de Tavira, relaciona-se a probabilidade deste mapa ser realmente português, precisamente com o facto de estar escalado em “braças” (1 braça = 2,2m) e não no equivalente espanhol coevo “braza” correspondendo aproximadamente 1,67m248. Independentemente disso, não sobram dúvidas de que esta planta fornece um enorme contributo para uma nova abordagem à questão do faseamento do Castelo de Cima.
Figura 16 (2) Sobreposição de um segmento do mapa Krigsarkivet nº 0406:07:009:001 com a cartografia da cidade atual.
Valores confirmados por Martin Elbl. “(…) based on my digital reprojection of Krigsarkivet no. 0406: 07:009:001 within a GIS framework registering the trace simultaneously to seventeenth-century English military plans of Tangier and to modern cartographic data, each major segment of the unlabelled scale bar in Krigsarkivet no.0406:07:009:001 equals c. 22m or c. 10 Portuguese braças.” ELBL, 2012, p. 6. 248 SILVA, Fraga da – Atlas Histórico de Tavira do século XVII. 4 de Abril de 2008 in http://imprompto.blogspot.pt/2008/04/. 247
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A “Planta de Tangere” (Figura 14) do “Atlas del Marqués de Heliche: Plantas de diferentes Plazas de España, Italia, Flandes y las Indias”, cuja base de execução foi o “Krigsarkivet nº 0406:07:009:001” (Figura 15), não segue fielmente o plano original. Concentrando-se a análise no Castelo de Cima, o gravurista italiano249, além de suprimir um dos “layers” da planta antiga: aquele que se acredita representar os limites defensivos Sul e Este da primeira fase, ainda altera consideravelmente a configuração da fronteira Sudoeste do complexo acastelar: o flanco do grande baluarte aparece encurtado para aproximadamente metade da sua extensão e a direção da muralha do atalho, limite da cidade e neste ponto limite do castelo, é também deslocada alguns graus (Figura 17). Não se sabe as razões que motivaram Ferrari a estas inusitadas alterações. O que é certo, é que, para o restante conjunto, não realiza modificações, havendo uma correspondência quase perfeita entre todos os elementos constituintes de ambos os planos.
Figura 17 Sobreposição do mapa “Planta de Tangere” com o “Krigsarkivet nº 0406:07:009:001”, onde se verificam claras incongruências no setor Sudoeste. 249
O bolonhês Leonardo de’ Ferrari.
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A sobreposição da “Planta de Tangere” com a cartografia atual (Figura 18) não revela, para este setor, qualquer coincidência com os vestígios atuais, ao contrário do que acontecia com o “Krigsarkivet nº 0406:07:009:001”, o que suscita ainda mais ceticismo face à opção do pintor. Não se encontrando uma justificação plausível para tal, opta-se por concentrar o estudo no mapa base.
Figura 18 Sobreposição de uma porção do mapa “Planta de Tangere” do “Atlas del Marqués de Heliche: Plantas de diferentes Plazas de España, Italia, Flandes y las Indias” com a cartografia da cidade atual.
A combinação de dados fornecidos por estes recursos visuais possibilita já uma primeira aproximação à imagem de alguns dos cenários descritos na documentação coeva. Comprova-se a existência de duas grandes fases do Castelo250, que partilham a mesma estrutura base, mas cuja adaptação evolutiva de uma face à outra resulta num quadro completamente distinto, quer a nível morfológico, quer a nível simbólico. Conhecem-se agora também algumas dimensões de parte dos elementos constituintes. 250
Como se estudará mais à frente, as duas grandes fases do Castelo de Cima são a Tardo-gótica/Manuelina e a Moderna.
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1.3 - Fontes documentais do tempo inglês em Tânger
Avançando no tempo até aos anos que se seguiram ao abandono de Tânger por parte dos portugueses, a quantidade de recursos documentais conservada até ao presente é muito superior. Essencialmente material cartográfico e iconográfico, mas também alguns registos escritos, o acervo disponível fornece diversas informações novas, algumas das quais ainda relativas ao aspeto da praça recém-ocupada, pelo que a sua análise é igualmente fundamental.
Fontes escritas Os testemunhos escritos deixados pelos ingleses, quer os produzidos imediatamente após a sua chegada a Tânger, nos quais relatam a condição da cidade recém-anexada a território britânico, quer os que fazem referência a posteriores obras executadas na cidade, permitindo a deteção das principais alterações face ao quadro português251, forneceram um bom contributo para este trabalho. Foram consultados alguns trechos do “Peterborough’s Reports to the Lords of the Council and Others” de Fevereiro de 1662, relatório do primeiro governador inglês, Lorde Peterborough. Nas suas palavras, os portugueses teriam deixado a praça "(…) very little better than a ruin of walls and full of spoile, scarsity and want as to all such materialls and utensills as could have given assistance to English souldiers (...)"252.
De igual modo, são retiradas da obra “An account of Tangier” de Hugh Cholmley253 algumas indicações e dados qualitativos para o estudo da fortificação portuguesa. O autor, engenheiro responsável pela construção do Molhe, faz referências ao estado de alguns elementos defensivos da praça como as “old walls”254 do setor Oeste. Do mesmo modo, faz uma importante alusão direta ao Castelo de Cima, em
particular ao Paço residencial: “The Castle, which was almost falling, his Excellency repaired so as (…) to make it a house convenient and honourable for the character he had of Governor and General (…).”255.
Por último, importa mencionar Samuel Pepys256; enviado em 1683 a Tânger com o propósito de auxiliar no processo de evacuação e destruição da cidade257. Faz diversas referências, no seu diário, a estruturas da praça sobre as quais recairia a atuação258. No entanto, não relata nenhuma intervenção de De facto, durante o período inglês foram efetuadas várias alterações nos sistemas fortificados construídos pelos portugueses. Extratos do “Peterborough’s Reports to the Lords of the Council and Others” 12 de Fevereiro de 1662- 17 de Fevereiro de 1662, in Rough, Tangier, 15 in ELBL, Martin Malcolm - Portuguese Tangier (1471-1662), 2013, p. 12 e 13. 253 Sir Hugh Cholmley (1632-1688) é enviado a Tânger, onde constrói o Molhe a mando do rei Carlos II de Inglaterra. Na obra “An account of Tangier” revela o relato do percurso da sua viagem por França e Espanha até ao Norte de África e a descrição diarística dos trabalhos que realiza na praça. Consultar CHOLMLEY, Hugh Sir 4th Baronet - An account of Tangier. London: 1787. 254 “(…) the west, althouth it regards the enemy's country, was left only defended with old walls, and an ill ditch, built with small towers flanking each other at convenient distance (…).” CHOLMLEY, Hugh Sir 4th Baronet - An account of Tangier. 1787, p. 9 in ELBL, 2013, p. 186. 255 “The Castle, which was almost falling, his Excellency repaired so as, at an easy charge, to make it a house convenient and honourable for the character he had of Governor and General; and having instructions to remove the stores of provision for more security unto the upper castle, with better husbandry, hem ade the presente stores safe under the protection of a strong wall, well flanked, and which made the castle contiguous to the harbour.”. CHOLMLEY, Hugh Sir 4th Baronet - An account of Tangier. 1787, p. 78 in ELBL, 2013, p. 780. 256 Samuel Pepys (1633-1703) era um “naval administrator” ao serviço da coroa britânica, enviado a Tânger em 1683. 257 “13. Monday. (…) My Lord in discourse, in his cabin, broke to me the truth of our voyage, for disarming and destroying Tangier (…).” The Diary of Samuel Pepys in The Life, Journals and Correspondence of Samuel Pepys, Esq. F. R. S.: Vol. 1, 1841, p. 331. 258 “19. Friday. (…) About five, went to see the first trial by Captain Leake of two bombs blown up under the arches in the Mole. By the looseness of the earth above, they did little or no execution ; which makes us fear more mistakes in the greater works, as the master-gunner of England could be so mistaken.” Idem, p. 412, 413. 251 252
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desmantelamento na estrutura do Castelo de Cima, descrevendo trabalhos concentrados na área do Molhe, pelo que, deste testemunho, não se retiram dados concretos relativos ao objeto em análise, compreendendo-se apenas o cenário inerente à saída dos ingleses.
Fontes visuais Do período de domínio britânico, a partir do ano de 1661, existe um número significativo de mapas e representações pictóricas da urbe. Esta cartografia e iconografia é fundamental para o estudo, considerando que uma boa parte dela retrata a cidade tal como foi deixada pelos portugueses, em meados do século XVII. Neste subcapítulo faz-se uma análise crítica ao conteúdo dessa documentação, verificando-se o grau de distorção dos mapas, dimensão e proporções dos elementos retratados. Datado de 1661, logo após a chegada das tropas inglesas, o desenho perspético “Tangier” (Figura 19), do engenheiro militar Martim Beckman259, fornece, pela primeira vez, a percepção, ainda que generalista e simplificada, da conformação integral da urbe imediatamente após a sua entrega à coroa britânica. A grande distorção morfológica e dimensional dos elementos que contém determina que não possa ser utilizada como referência métrica. Esta planta perspetivada, resultado de um trabalho de reconhecimento prévio da nova possessão e do levantamento das principais estruturas por parte do seu autor, revela uma cidade perimetralmente delimitada por uma cerca pontuada por vários torreões. Nela é possível identificar as principais vias, distinguir os elementos que compõem o Castelo de Baixo e compreender o desenho genérico e conformação do complexo correspondente ao Castelo de Cima (Figura 20). Englobando no interior da Cidadela várias pequenas construções, identifica-se entre elas o edifício que corresponderia ao Paço situado na secção Sudeste do conjunto, no alinhamento do pano de muralha Este. À fachada do palácio representada na perspetiva, o autor confere alguma pormenorização adicional comparativamente a grande parte das construções em redor. O alçado Nascente reproduzido corresponde à mesma vista que aparece no desenho quinhentista de Braun, tendo ambos em comum apenas o facto de remeterem para um edifício alto, destacado na cidade, de dois níveis bem demarcados e com maiores aberturas no estrato superior. Os grandes baluartes Nordeste, Sudeste e Sudoeste, de escala exagerada, preconizando a sua importância, possuem orelhões e faces de pendente inclinada. A Oeste, na porção de muralha que delimita o castelo e a própria urbe, Beckman desenha 8 pequenos torreões semicirculares, muito próximos entre si e acedíveis a partir do adarve. No setor Noroeste, onde se situa a plataforma de artilharia com a Torre do Sino, responsável pela defesa do lado do campo, é dado um particular detalhe ao baluarte-torre do ângulo Noroeste em detrimento do seu homólogo, a Sul, reproduzido de forma esquemática. Aliás, o autor aproxima morfologicamente o primeiro ao extenso baluarte Norte, aqui
Beckman, engenheiro especialista em defesa e fortificação que trabalhou em Tânger durante a ocupação britânica, propõe anos mais tarde alterações na cidade: sugere a construção de novos torreões do lado exterior da muralha, a edificação de um novo molhe e baterias na base do Castelo Novo. MENDES, 2017, p. 49 259
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ligeiramente diminuído. Ao longo do limite Setentrional do Castelo, surgem 6 torreões260, incluindo a estrutura da Porta da Traição. Na verdade, é aqui que pela primeira vez vê representada tridimensionalmente a complexa porta, e ainda uma outra entrada para o Castelo, a partir da muralha Este. É interessante ainda constatar que em diversos pontos do Castelo é desenhado armamento de fogo.
Figura 19 “Tangier” de Martin Beckman de 1661.
Figura 20 Aproximação do mapa “Tangier” de Martin Beckman de 1661 com demarcação do complexo defensivo do Castelo de Cima, do Paço do Governador e portas.
Correspondendo simultaneamente à fonteira defensiva da praça, a muralha Norte é pontuada por diversas torres. No segmento que delimita o que se entende por Castelo de Cima, estão aparentemente representadas 6, havendo uma sétima que se localiza logo após o ponto de junção do baluarte Nordeste com a muralha. 260
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De 1663, a planta “Description of Tangier Mappe” (Figura 21), da qual não se conhece a autoria, vem trazer novas informações relativas ao desenho urbano. Nela podem ler-se os traçados das principais vias, alguns dos quais conservados até ao presente, distinguir-se todo o perímetro fortificado e as notáveis estruturas militares: o Castelo de Baixo, com a demarcação dos seus vários elementos constituintes e o Castelo de Cima, cujos contornos bem definidos da Cidadela antecipam a sua intransponibilidade. A sobreposição do desenho com a cartografia atual de Tânger (Figura 23) revela algumas correspondências principalmente na localização dos limites naturais e murados. Ao atentar no Castelo de Cima, verifica-se uma coincidência entre as muralhas Norte e Sul do mapa com as que ainda existem na medina atual. O caso difere para o setor Oeste/Noroeste, onde não se conseguem sobreposições congruentes. No mapa consta uma escala gráfica cuja unidade de medida é o “Rodd”261 e ainda uma importante legenda descritiva262 de vários elementos representados (Figura 22). No interior do complexo defensivo, a repartição em vários setores comprova que nele se inseriam diferentes dependências. A letra “A” (“A: is the opper Chastle”), designando o conjunto, é escrita dentro de um espaço regular central, ao qual também corresponde a letra “T” (“T: Signifes all houses”), tal como ao espaço delimitado adjacente. A extensa área delimitada na parte Sudoeste do Castelo, que engloba o baluarte do mesmo ângulo, possui, tal como a grande superfície imediatamente externa, as letras “T” e “V” (“T e V: housis e gardens together”). Na parte interna da muralha Norte, o número 4 indica “the niw Stables that My Lord e Earle of Sandwich has made for our Englishe horses (…).”. O Paço surge representado e legendado com a letra “j” correspondendo a “the Gouverneurs Lodging”, junto a si, numa pequena construção circular, o número 2 indica tratar-se de uma fonte (“2: is a Eilwife a fountaine”).
Figura 21 Description of Tanger de 1663. imp pb, dg (cf. 2)
261 262
“Rod” é uma unidade de medida inglesa cuja unidade corresponde a cerca de 5,0292 metros (1 Rod=5,0292m). Salvaguardo possíveis erros na compreensão da paleografia do manuscrito.
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No interior dos baluartes Nordeste, Sudeste e Sudoeste aparece demarcada uma área assinalada com a letra “H” (“H: is halfe Casemates”). Já nos baluartes da plataforma de artilharia a Oeste e plataforma Norte distingue-se, além de outras expressões que não constam na legenda mas numa nota explicativa263, a letra “R” (“R: is Batteries”). Todo este setor parece estar a um nível de altura diferente em relação ao restante complexo. Por fim, identifica-se a entrada que perfura a muralha Este e no limite Norte, juntamente com quatro torreões de forma circular, a Porta da Traição. A ponteado, tal como no desenho de Beckman (Figura 19), aparece a indicação de vários percursos a partir desses pontos de permeabilidade.
Figura 22 Legenda do mapa Description of Tanger de 1663. imp pb, dg (cf. 2).
Figura 23 Sobreposição do “Description of Tanger” de 1663. imp pb, dg (cf. 2)com a cartografia da cidade atual.
A explicação das expressões consta numa nota do canto inferior esquerdo do Mapa “NB” Quando surge um algarismo seguido de “:g: Signifie how manie gunnes upon the Same Batterie (?)”. 263
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Do mesmo ano, o “Plan de Tanger, sur le détroit de Gibraltar, au royaume de Féz” (Figura 24), do qual não há registo do autor, apresenta-se como um plano mais alargado de intervenção territorial. Com escala e legenda, esta planta utiliza variações de cor na expressão gráfica, para a diferenciação de elementos, quer topográficos, quer construídos. Aparece destacada no mapa, a área que circunda o perímetro muralhado da praça, a superfície regular exterior à Cidadela entre os baluartes Sudeste e Sudoeste, um espaço adossado ao baluarte Nordeste e por fim a área circunscrita pelo fosso do Castelo de Baixo. Os interstícios viários são apresentados num registo muito subtil, assim como as departições internas do Castelo de Cima. É interessante constatar, no entanto, que neste documento reaparece o segmento de muralha com três torres semicirculares, conhecido do “Krigsarkivet 0406:07:009:001” (Figura 15), reconhecendo-se que, possivelmente, esta porção nunca terá sido derrubada, mas englobada na construção do baluarte Sudoeste, auxiliando talvez na contenção de terras264. Ao longo do perímetro do Castelo de Cima, verificam-se novamente torreões exclusivamente na fração do pano Oeste, pertencente à cerca da própria cidade atalhada. Nesta representação, a plataforma de artilharia surge novamente num nível diferenciado, mas o mesmo já não parece acontecer com o bastião Setentrional. Quanto à sobreposição do plano com a mancha cartográfica atual (Figura 26), são apenas detetadas equivalências pontuais com alguns vestígios265 pelo que este mapa não é utilizado para recolha de referências métricas.
Figura 24 dg, slide “Plan de Tanger, sur le détroit de Gibraltar, au royaume de Féz” de 1663, Reinlandische Ruten 100.
Não surgindo este segmento de muralha representado em mapas ingleses anteriores nem mesmo na “Planta de Tangere” do “Atlas del Marqués de Heliche” de 1655, não se exclui a possibilidade de todo o segmento ter sido aterrado no biénio 1565-1566 e permanecido desta forma durante o restante século português, sendo emerso pelos novos ocupantes, para uma noa função 265 A baixa qualidade da fonte e a fraca resolução da imagem contribuíram para o aumento do grau de dificuldade na análise detalhada das sobreposições 264
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Figura 25 Castelo de Cima representado no dg, slide “Plan de Tanger, sur le détroit de Gibraltar, au royaume de Féz” de 1663, Reinlandische Ruten 100.
Figura 26 Sobreposição com a cartografia atual dg, slide “Plan de Tanger, sur le détroit de Gibraltar, au royaume de Féz” de 1663, Reinlandische Ruten 100.
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De 1664, o “Map of Tangiers” (Figura 40), do engenheiro militar Bernard de Gomme266, acrescenta referências acerca do território envolvente da cidade. Ao englobar uma área ainda maior, ultrapassando em grande medida os contornos da praça, permite o entendimento das dimensões do Castelo de Cima num contexto mais alargado. A imagem, dotada de uma escala gráfica, demonstra um elaborado plano defensivo envolvendo a construção de vários pequenos fortes ao redor da urbe e também intervenções na mancha urbana, nomeadamente em torno do “Upper Castle”, demarcadas a ponteado. No interior da Cidadela surgem novamente diversos espaços delineados, aparece uma vez mais uma entrada a Este, assinalada com as palavras “Castle Gate” e a Porta da Traição, a que corresponde apenas a designação “Gate”. Os baluartes Nordeste, Sudeste e Sudoeste possuem nos flancos a delimitação de uma área considerável, tratando-se provavelmente de casamatas que albergavam a artilharia de guerra. Precisamente no desenho da face externa, o autor parece representar pequenas aberturas que permitiriam o tiro a partir do interior. A muralha Norte surge com seis torres (incluindo a que alberga a Porta) unidas por um adarve. Curiosamente, desaparece nesta planta a cortina de muralha medieval com torreões no setor Sudoeste da fortificação. A justaposição do mapa com o desenho da cidade atual (Figura 41 (1) e (2)) revela, de uma maneira geral, bastantes concordâncias com os vestígios remanescentes.
Figura 40 “Map of Tangiers”, F0298 nº3, de 1664, Bernard Gomm.e
Bernard de Gomme (1620-1685) foi um engenheiro ao serviço de Carlos II da Inglaterra responsável pelas obras da cidade de Tânger aquando da ocupação britânica. Embora de nacionalidade holandesa, foi uma figura muito importante no campo da engenharia militar do XVII em Inglaterra. 266
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Figura 41 Sobreposição do “Map of Tangiers”, F0298 nº3, de 1664, Bernard Gomme com a cartografia da cidade atual.
Figura 41 Aproximação à representação do Castelo na sobreposição do “Map of Tangiers”, F0298 nº3, de 1664, Bernard Gomme com a cartografia da cidade atual.
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Do ano de 1664 ou 1666, importa referenciar a detalhada vista aérea da cidade “A Mapp of the Citty of Tanger with the Straits of Gibraltar” (Figura 27) da autoria do matemático Sir Jonas Moore267 e do artista Wenceslau Hollar268. O desenho reflete, manifestamente com maior rigor, o mesmo layout do traçado urbano tangerino documentado por Martin Beckman três anos antes. Apesar da representação estilizada de alguns dos elementos edificados, e de não conter escala gráfica, o mapa fornece uma sugestiva percepção do desenho da praça, com as áreas contruídas, de espaço público e espaços verdes e onde surge já desenhado o molhe inglês269. Pela primeira vez é percetível, com clareza, a constituição tridimensional do Castelo de Baixo, legendado com o nome de “Yorke Castle” e do Castelo de Cima (“The Vpper Castle”), talvez a peça de maior destaque na ilustração, sobressaindo pela sua esmagadora escala (Figura 28). Não restam dúvidas quanto à implantação de todo complexo, no setor Noroeste da praça, sobranceiro à declivosa vertente. A acrópole constituída por uma Cidadela de perfil baixo e horizontal, com os seus três fortes baluartes, aqui representados em cunha, sem orelhões, unidos por espessas muralhas para completarem uma estrutura em “L” e cujas extremidades se ligam aos limites Norte e Oeste da cidade. A imponente plataforma setentrional, quarto grande baluarte do complexo, debruça-se sobre a escarpa, conservando junto a si o braço de muralha, que desce até à água, sendo apenas interrompida por uma porta. A plataforma de artilharia onde se encontra a Torre do Sino, agora “Peterborrow Tower”, da qual se projetam dois baluartes de menor dimensão, está aqui representada num plano mais elevado acedível por escadas nos dois extremos. A muralha Norte do Castelo de Cima possui cinco torreões, incluindo o que alberga a Porta da Traição. A certo ponto existe mais uma quebra na linha, onde aparece
Figura 27”A Mapp of the Citty of Tanger with the Straits of Gibraltar” 0484970-1/2, da autoria do matemático Sir Jonas Moore e de Wenceslau Hollar é da British Library de 1664 ou 1666. Original de onde saem as outras cópias.
Jonas Moore (1617-1679) grande matemático, topógrafo e oficial de artilharia britânico, fez parte do projeto de construção do Molhe de Tânger. 268 Wenceslau Hollar (1607-1677) foi um dos maiores gravuristas do seu tempo. Apesar de ter nascido em Praga, na República Checa, cedo saiu do seu país para trabalhar para várias famílias nobres, autores e editores na Inglaterra. A partir de 1642 é contratado pelo duque de York. Produziu um total de cerca de 2740 obras, incluindo vistas, retratos, navios, temas religiosos, paisagens etc. Os seus desenhos arquitetónicos foram realizados à escala e numa visão fotográfica. Viaja a Tânger em 1669. 269 O molhe terá sido encomendado em 1663 a Sir Hugh Cholmley. Consultar CHOLMLEY, Hugh Sir 4th Baronet - An account of Tangier. London: 1787. 267
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uma construção telhada sem legenda. Ao longo do seu comprimento apresenta diversas aberturas verticais no muro, de espaçamento regular, possivelmente seteiras, remetendo para a origem anterior deste limite. Relativamente ao interior das muralhas, este apresenta-se bastante preenchido: observamse quatro aglomerados de casas, além do Paço “Governours House”, representado de forma estilizada e comprometendo, por isso, a retirada de dados exatos para a reconstituição. Da muralha Sul ameada, parte, em direção a Oeste, o que aparenta ser novamente um resquício da cerca medieva, desta vez apenas com dois torreões semicirculares. Este segmento isola em certa medida, o baluarte Sudoeste, parecendo delimitar uma área destinada a cultivo ou simplesmente ocupada com vegetação. Este preenchimento vegetal é verificado para vários outros pontos da cidade, salientando uma pequena área junto ao baluarte Sudeste (“Stayners Battery”) e uma superfície maior entre os dois baluartes meridionais. A entrada para a Cidadela pelo plano Este é feita através de uma estrutura, possivelmente amovível, que se eleva a partir do pavimento térreo, culminando numa passagem mais estreita que finalmente dá acesso ao ponto de passagem.
Figura 28 Aproximação ao desenho do Castelo de Cima no “A Mapp of the Citty of Tanger with the Straits of Gibraltar” 0484970-1/2
A partir deste desenho original são realizadas diversas cópias durante os anos subsequentes como o mapa “The citty of Tanger” (Figura 29) uma vez mais da autoria de Wenceslau Hollar, de 1669, no qual consta já uma escala gráfica, subdividida em jardas270 e uma legenda. Com o mesmo título, um plano de 1670, integrava a obra “Africa: being an accurate description of the regions of AEgypt, Barbary, Lybia, and Billedulgerid, the land of Negroes, Guinee, AEthiopia, and the Abyssines, with all the adjacent islands” de John Ogilby271 (Figura 30). Outro exemplar derivado do original é o “The Royall Citty of Tangier in Africa: with lines & Fortifications when it was Ataqued by the Moores in May 1680” (Figura 31) realizada por Jonh Seller272, no qual são adicionados episódios de batalha contra os mouros.
Jarda (em inglês “yard”) é uma unidade de medida, em que uma jarda corresponde a 0,9144 metros (1yd=0,9144m). John Ogilby (1600-1676) foi um cartógrafo, tradutor e editor escocês. 272 Jonh Seller (1630-1697) foi um importante cartógrafo, topógrafo, artista e hidrógrafo real inglês. 270 271
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Figura 29 “The Citty of Tanger” 3. dg, slide, fotoc. de W. Hollar, de 1669, esc: 200 jardas.
Figura 30 “The citty of Tanger” PAH2834 de 1670, conservado no National Maritim Museum.
Figura 31 “The Royall Citty of Tangier in Africa: with lines & Fortifications when it was Ataqued by the Moores in May 1680”, de 1680, de Jonh Seller, conservado na British Library.
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Novamente da autoria do artista Wenceslau Hollar, executadas durante um intervalo de quatro anos, entre 1669 e 1673, são de excecional interesse para a compreensão morfológica do Castelo de Cima, assim como de toda a extensão do tecido urbano, um conjunto de várias vistas panorâmicas de Tânger. Com um impressionante grau de detalhe, as perspetivas permitem ter uma percepção muito realista da praça em Seiscentos. A exatidão destes desenhos revela-se essencial para o estudo e reconstituição do Castelo de Cima, uma vez que permite efetuar alguns cálculos de mensuração e retirar dados de altimetrias, a partir de diferentes ângulos. A gravura “Prospect of Tangier from the S. E.” (Figura 32) mostra uma vista abrangente de toda a cidade, permitindo uma clara percepção das relações topográficas entre os dois Castelos, a mancha urbana e os limites da praça. No “The Vpper Castle” destacam-se três baluartes angulares: Sudoeste, Sudeste e Nordeste, este último distinguido com o número 3 (3. “Stayners Battery”). Sobressai ainda a Torre do Sino, assinalada com o número 2, cuja legenda “Peterborow Tower” revela também a denominação britânica. O Paço (1. “The Governours House”) salienta-se no “skyline” face à altimetria envolvente. Em torno do Castelo de Cima não existem outras construções. De um ponto de vista relativamente semelhante, mas mais aproximado, a partir da extremidade Sudeste da urbe, a gravura “The South-East Corner of Tangier” (Figura 33), não abrangendo o Castelo de Cima por completo, retrata o Paço do Governador, junto ao baluarte Sudeste e o baluarte Noroeste.
Figura 32 “Prospect of Tangier from the S. E.”, TALM de Wenceslau Hollar, de 1669-73.
Figura 33 “The South-East Corner of Tangier” de Wenceslau Hollar, de 1669-73.
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Novamente uma vista Sudeste, com o “Prospect of y Innerpart of Tangier, with the upper Castle, from South-East” (Figura 34), Hollar provavelmente pretendia dar a conhecer a imagem do Castelo de Cima obtida a partir da cidade, demonstrando a força esmagadora e domínio que este transparecia. A gravura apresenta um maior grau de simplificação em comparação com outras obras de Hollar aqui analisadas, pelo que, através dela, se confirmam apenas dados gerais relativos ao complexo defensivo, como a sua implantação no cimo da colina e organização dos principais elementos constituintes. Os baluartes Sudoeste, Sudeste e Nordeste projetam-se desde o topo da colina fortificada. O primeiro e o último conectam-se às altas muralhas que cercam a praça. O Paço e a Torre do Sino são as estruturas que mais se destacam.
Figura 34 “Prospect of y Innerpart of Tangier, with the upper Castle, from South-East” de Wenceslau Hollar.
A “Prospect of Tangier from the East” (Figura 35), perspetiva da vista Este da cidade a partir do mar, integra nela toda a extensão da praça, incluindo o molhe inglês. Deste ponto, o Castelo de Baixo e o de Cima, encontram-se no mesmo alinhamento, posicionamento que determina a obstrução de quase a totalidade do setor Nordeste do segundo. Ainda assim, este desenho contém dados muito importantes para o estudo, nomeadamente no que diz respeito à relação entre a implantação do Paço do Governador, a muralha Este e o baluarte Sudeste. Do mesmo modo, o detalhado alçado Este da construção palatina, compacto e imponente, retratado nesta gravura é material fundamental para este trabalho.
Figura 35 “Prospect of Tangier from the East”, TALM de Wenceslau Hollar, de 1669-73.
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Uma nova vista abrangente, o “Prospect of Tangier from the S. West” (Figura 36), possibilita o entendimento topográfico do vale onde se encontra implantada a mancha urbana de Tânger e toda a baía. Do mesmo modo, permite imediatamente compreender a grande diferença altimétrica entre as muralhas Oeste e Norte da praça, limites também do Castelo de Cima, e o contorno Sul do mesmo. Na verdade, na gravura distingue-se, além da longa secção torreada Sudoeste do perímetro da cidade regularmente permeada por seteiras, o pano de muralha Sul da Cidadela, pontuado por canhoneiras, o baluarte Sudeste, e uma porção do Sudoeste, as três estruturas unificadas por um contínuo cordão. A Residência do Governador (2. “The Governours House”) tem novamente um papel de destaque quer pela sua localização, quer pela dimensão, comparativamente às pequenas construções que se sucedem no interior da acrópole. É representada a sua fachada Sul e parcialmente a Oeste. Contudo, a partir desta perspetiva, a construção mais evidenciada, situada no ponto mais alto, anunciando com a grande bandeira inglesa o Reino ao qual pertence, é a “Peterborow Tower”. Junto a si, aparece um apontamento de um dos baluartes que flanqueia a plataforma de artilharia, coroado por ameias. Ao fundo, na muralha Norte, é possível observar a silhueta de alguns torreões, entre os quais a porta da Traição e ainda se distingue a demarcação do caminho de ronda a acompanhar o desenho do muro, que, tal como as muralhas medievas do atalho português, não é nivelado.
Figura 36 “Prospect of Tangier from the S. West”, TALM de Wenceslau Hollar, de 1669-73.
A gravura “Prospect of the West Front of Tangier Castle” (Figura 37) mostra, com algum grau de detalhe, a face externa do setor Oeste da cidade. A plataforma de artilharia voltada para o planalto de Marshan, responsável pela defesa da praça neste ponto, é composta por vários elementos inseridos num mesmo plano de muralha. Ao centro, a Torre do Sino, denominada agora de “Peterborow Tower” exibe o seu poder simbólico, suplantando a função de vigia. Nos extremos do conjunto, destacam-se dois baluartes aqui representados praticamente simétricos. A diferença reside numa torre de perfil baixo e regular, que aparenta estar adossada ao componente Norte. Ladeando a torre central, existem dois torreões de largura similar, embora alturas diferentes. Quando se atenta ao segundo plano, a grande plataforma Norte aparece assinalada com o número 2. “The Bastion”. Junto a ela, parte um segmento de muralha, coroado por pequenas ameias que desce a falésia ao longo de uma distância considerável. Toda esta frente é encerrada para o planalto.
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Figura 37 “Prospect of the West Front of Tangier Castle”, TALM de Wenceslau Hollar, de 1669-73.
Elaborada provavelmente com o objetivo de ilustrar o espaço de lazer extramuros “Bowling green”, junto ao rio (“4. The riuer”), a imagem “Prospect of y Bowling green at Whitehall by Tangier” (Figura 38) revela-se uma importante fonte de informação para o entendimento não só da morfologia de uma porção da muralha de atalho quatrocentista, com vários torreões semicirculares e uma pendente muito inclinada, mas principalmente para a compreensão do momento de encontro entre esta e a plataforma que compõe o setor Oeste, no topo da encosta. É interessante ainda constatar que, neste ponto, externas ao perímetro da praça, existem algumas construções, possivelmente destinadas ao auxílio na defesa pelo lado do campo.
Figura 38 “Prospect of y Bowling green at Whitehall by Tangier:” TALM de Wenceslau Hollar, de 1669-73.
Por fim, no “Prospect of y North side of Tangier regarding the mayne sea from the hill as you come from Whitby or the West, towads the Towne” (Figura 39) é possível visualizar todo o limite Norte, acompanhando a vertente marítima, até ao Castelo de Baixo “Yorke Castle”. O facto de ser um plano mais afastado implicou alguma simplificação dos elementos mais longínquos, por parte de Hollar. Ainda assim, são bem percetíveis; a “Peterborow Tower”,a grande plataforma e na muralha setentrional, destacada face aos restantes torreões, a torre que alberga a Porta da Traição. 74
Figura 39 “Prospect of y North side of Tangier regarding the mayne sea from the hill as you come from Whitby or the West, towads the Towne”, de 1669, de Wenceslau Hollar.
O “Piano di Tanger situato nel str. Di Gibraltar” (Figura 42), datável do século XVII e de possível proveniência italiana, exibe outro plano de intervenção defensiva territorial. De uma maneira geral, apesar de se tratar de uma cópia do original e possuir um evidente grau de simplificação, no que refere ao traçado perimetral e à demarcação dos quarteirões da cidade, verificam-se, ainda assim, algumas correspondências quando sobreposto à cartografia atual. Contudo, as equivalências não são tão claras quando se atenta a análise apenas na Cidadela (Figura 43), havendo uma correta sobreposição somente na muralha Norte, em certa medida no pano Sul e em parte no flanco Sul do baluarte Sudoeste. Uma grande discrepância verifica-se em todo o setor Noroeste e na plataforma Norte. Relativamente à constituição interna do Castelo de Cima, destaca-se a demarcação de quatro áreas construídas, das quais possivelmente a que se encontra junto da muralha Este e baluarte Sudeste representará o Paço. Na muralha Norte, a Porta da Traição é a única interrupção desenhada, não aparecendo neste plano qualquer torreão. O segmento de muralha com três torres semicirculares que se acredita pertencer ao antigo perímetro medieval do complexo defensivo, aparece claramente representado.
Figura 42 Imp pb, dg. slide “Piano di Tanger situato nel str. Di Gibraltar”, BNF – Ge. CC. 1262, do século XVII.
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Figura 43 Sobreposição do “Piano di Tanger situato nel str. Di Gibraltar”, do século XVII com a cartografia da Medina atual.
Embora não se conheça o seu autor, o considerável rigor métrico deste mapa da cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (Figura 44), datado de 1676, faz dele uma das fontes cartográficas de maior contributo para o estudo do Castelo de Cima273. Circunscrita aos limites da praça, a planta é dotada de uma completa legenda e de uma escala gráfica cuja unidade é o “Feete”274. Há uma preocupação com a representação de todas as diferentes áreas da cidade, enfatizando espaços públicos e vias de comunicação.
Figura 44 A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25), de 1676, Kuye.
O mesmo não se aplica ao Castelo de Baixo, representado de forma simplificada e com a ausência de alguns elementos. A unidade de medida utilizada na escala do mapa, o “Feete” (feet) tem a sua conversão para metros estabelecida na razão de 1ft=0,3048m. 273 274
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Neste plano, o Castelo de Cima, embora incompleto no seu extremo Noroeste, quando sobreposto à base cartográfica da cidade atual, revela uma surpreendente correspondência (Figura 45 (2)). A exceção verifica-se para a cortina Sul que unia os dois grandes baluartes Sudeste e Sudoeste e numa pequena porção do setor Oeste. Quanto ao interior do complexo, este encontra-se mais uma vez segmentado por áreas, entre as quais aquela que era ocupada pela Residência do Governador. Os números 4 e 6 aparecem associados a outras construções dentro da Cidadela correspondendo a “Guarde” e “Storehous for Ammunition”. As casamatas possuem aqui uma menor dimensão, assim como os dois únicos pontos de acesso ao Castelo. Verifica-se ainda no desenho a proposta de uma segunda linha de defesa disposta a Sul da Cidadela. Além dela, uma outra muralha recortada em ângulos projetados para Sul, nasce do vértice do baluarte Sudeste e termina na muralha da frente marítima. Perante isto, sobressai a intenção clara de apostar no reforço da proteção de toda a zona Norte da urbe: o Castelo de Cima, o Castelo de Baixo e a área compreendida entre ambos, originando a sua unificação.
Figura 45 (1) Sobreposição do mapa A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25), de 1676 com a cartografia da cidade atual.
Figura 45 (2) Aproximação à sobreposição do mapa A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25), de 1676 com a cartografia da cidade atual.
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Datada de 1676/1677, uma planta de Tânger mostrando mais um abrangente plano defensivo interno e extramuros (Fortificação da praça e contexto envolvente) (Figura 46), da qual não se conhece o autor, possibilita a compreensão das dimensões e disposição do objeto de estudo relativamente a um panorama mais amplo. Destaca-se novamente neste mapa, uma muralha que parte do limite Sudoeste da praça e se prolonga, com algumas quebras, até à frente marítima. Esta estrutura, devido ao grau de simplificação, pressupõe-se ser ainda um projeto para a segregação dos dois castelos relativamente à restante mancha construída. Do mesmo modo, bem assinaladas na carta, aparecem diversos outros apontamentos de intervenções de melhoramento defensivo destacando-se as do setor Oeste, que previam a edificação de novos baluartes dirigidos para o planalto de Marshan. No interior do Castelo de Cima (Figura 47), o contorno do Paço atesta o local da sua implantação, no alinhamento da muralha Este, sobre a qual aparece um apontamento da entrada que existiria neste setor. Os três baluartes direcionados para o interior da cidade apresentam aqui novamente orelhões. A muralha Norte do castelo possui 6 torreões incluindo a estrutura da Porta da Traição.
Figura 46 Fortificação da praça e contexto envolvente (IMG_3670) datada de 1676/1677.
Figura 47 Aproximação do mapa Fortificação da praça e contexto envolvente (IMG_3670) datada de 1676/1677.
A sobreposição deste mapa com a cartografia atual revela algumas incongruências acentuadas de escala, fundamentalmente no desenho da Cidadela, pelo que não se retiraram dados métricos desta fonte (Figura 48). 78
Figura 48 Sobreposição do mapa Fortificação da praça e contexto envolvente (IMG_3670), com a cartografia da cidade atual.
No mapa também relativo a Tânger (estruturas fortificadas de Tânger) (Figura 49), datado de 1678, e no qual não é identificada a autoria, estão apenas representados os contornos das estruturas militares da praça. Ausente qualquer tipo de detalhe interno, consta, em contrapartida, na planta, o risco de novas construções cuja intenção é claramente o reforço defensivo da cidade. A traço suave e ponteado são propostas algumas intervenções pontuais, destacando-se, a Noroeste, uma grande estrutura cuja escala e limites remetem invariavelmente para a imagem simetrizada do próprio Castelo de Cima. Por outro lado, a traço mais forte, o mesmo utilizado na representação do perímetro integral e dos limites dos dois castelos, estão desenhados: um baluarte de grande escala no vértice Sudeste, uma barbacã e, no
Figura 49 Estruturas fortificadas de Tânger (IMG_3672), datada de 19 de julho de 1678 da qual não se conhece autor
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interior da urbe, repete-se o conjunto de muralhas que estabelecem a segunda linha de defesa. Embora com uma morfologia diferente, persiste a ideia da segregação desta extensa área Norte. Para o trabalho realizado, este mapa vem comprovar a vontade que se sentia nos finais da década de setenta do século XVII de refortificar a praça, face à instabilidade sentida, não sendo possível retirar dados métricos, pois a sobreposição do plano com a cartografia de medina presente revela-se muito pouco rigorosa quanto à correspondência com construções vestigiais (Figura 50).
Figura 50 Sobreposição da Estruturas fortificadas de Tânger (IMG_3672) com a cartografia atual.
Do mesmo ano, existe ainda uma planta da cidade incompleta (limites fortificados de Tânger) (Figura 51), onde o autor, anónimo, dá ênfase aos limites fortificados Sul e Oeste da mesma. O Castelo de Cima, “The Upper Castle”, é representado de forma bastante simplificada. Evidenciando a sua implantação cimeira, o autor realça a topografia que o circunda. São desenhadas as casamatas dos baluartes Nordeste, Sudeste, Sudoeste e ainda, pela primeira vez, é representada uma dessas estruturas no flanco Poente do baluarte Norte, junto às escadas de acesso à plataforma de artilharia onde se localiza a “Peterborow Tower” e os dois baluartes de menor dimensão. Na muralha Este é assinalada a “Castle Gate” e na Norte aparece caracterizada a outra porta do Castelo associada ao nome “forage poort”, além de mais cinco torres quadrangulares. Relativamente ao limite Sudoeste, porção de cerca da própria cidade, este contém seis torreões semicirculares adossados. Fora do Castelo, a Oeste, um projeto de reforço defensivo aparece a traço suave. Embora conte com uma escala gráfica em “feete”275, este mapa não é utilizado para a retirada de medidas pois o confronto com o desenho da cidade atual revela muito poucas correspondências (Figura 52), possivelmente por se tratar de uma fotografia do exemplar original.
275
Um “feete” corresponde a 0,3048 metros (1ft=0,3048m).
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Figura 51 Limites fortificados de Tânger (IMG_3676) de 1678.
Figura 52 Sobreposição do mapa Limites fortificados de Tânger (IMG_3676) de 1678, com a cartografia atual.
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Essencial para este trabalho, o mapa de 1683 (Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger) (Figura 53), do qual não existem confirmações autorais, possui um impressionante nível de detalhe e rigor quanto ao desenho e inventário de todos os elementos que constituem a praça, do loteamento dos quarteirões às construções militares. A legenda “Explanatio of this Draught the Cittie Tanger” fornece informação relativa a praticamente todas as áreas da cidade. No Castelo de Cima, assinalado com as letras “UC”, correspondentes a “Upper Castle”, aparecem pormenores até antes nunca expostos, tais como diversos lanços de escadas indicando a existência de vários níveis de cotas ou particularidades estruturais dos sistemas defensivos. Permanecem os pontos de entrada encontrados nas fontes cartográficas anteriores e o segmento Sul de muralha medieval reaparece com três torreões semicirculares, um dos quais, o mais próximo da casamata do baluarte Sudoeste, possui uma representação diferente, sem preenchimento, o que talvez explique o facto de em outros documentos só surgirem duas torres. Ao todo, o perímetro do Castelo de Cima possui, caracterizados neste mapa, doze torreões, seis dos quais ligados ao limite Norte e os restantes inseridos na fronteira Poente. A extensa área a Sul e a Nascente externa aos limites da Cidadela não evidencia qualquer tipo de construção. Esta zona livre é separada da restante cidade por um conjunto de muralhas, cujo objetivo é nitidamente reforçar a proteção de todo o setor Norte. Estendendo-se desde a cerca Oeste medieval até à praia, a intencionalidade inerente a este gesto já evidente em diversos mapas anteriores, aparece novamente com grande clareza neste documento.
Figura 53 Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger (MPH 1_1_54) de 1683.
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O confronto com os vestígios remanescentes da Tânger atual é compatível para grande parte da extensão urbana (Figura 54), com uma correspondência quase integral para as muralhas Sudeste e Sudoeste, assim como grandes equivalências no traçado viário. Estranhamente, tal não acontece para o Castelo de Cima, havendo diversas incongruências, principalmente na plataforma de artilharia Oeste, para a qual há uma notória rotação da disposição das estruturas que a compõem. Apesar disso, para a segunda linha de muralhas que vem reforçar o setor Norte há diversos alinhamentos de casas na medina presente que revelam uma sugestiva concordância com os traçados que aparecem na cartografia, não só na região onde se identificam os portais, para a qual há uma correspondência inegável, como também para a zona imediatamente a Sul do castelo.
Figura 54 Sobreposição do mapa Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger (MPH 1_1_54) de 1683, com a cartografia da cidade atual.
Duas novas vistas da praça, datadas do final do período de permanência britânica em Tânger, fornecem mais alguns pormenores sobre o estado das fortificações à época. Com uma expressão que revela bastantes semelhanças com as de Hollar, a gravura “A prospect of Tangier coming from the Westward before it was demolished” (Figura 55) atribuída a Thomas Phillips276 mostra, nitidamente, toda a muralha Norte da urbe e a sua complexa relação com a topografia. Distingue-se ainda a grande plataforma setentrional, a Porta da Traição, um dos baluartes do limite Oeste da Cidadela e a Torre do Sino (Peterborough Tower) junto dos quais se dispõem duas linhas de paliçadas. Á cota inferior diferenciase o Castelo de Baixo (York Castle) e o molhe inglês. Consegue-se ainda perceber, num plano mais afastado, o posicionamento da residência do governador. Thomas Phillips ( - 1693) foi um engenheiro militar britânico, que participou numa expedição que tinha por objetivo demolir as fortificações e molhe de Tânger, aquando do abandono inglês. Registou o processo através de uma série de desenhos. 276
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A imagem “A prospect of Tangier and the Mole before it was demolished” (Figura 56) de Robert 277
Thacker , também de 1683, apresenta uma vista aérea da cidade, a partir de Este, que engloba toda a área intramuros, com um particular detalhe na representação do molhe. O Castelo de Cima é revelado na íntegra: os baluartes ligados por espessas cortinas de muralhas e as construções incorporadas no seu interior, entre as quais se destaca a mais antiga. O desenho expõe com grande clareza toda a morfologia urbana. Identificam-se também o que parecem ser novas plataformas defensivas, possivelmente fruto da adaptação dos terraplenos da Cidadela pelos ingleses, que já surgem nos mapas do loteamento e estruturas defensivas de Tânger (Figuras 44 e 53). Da mesma forma, confirma-se a existência de uma muralha que parte do baluarte que conforma o ângulo de inflexão da fortificação e se prolonga até à cota inferior, para junto do Castelo de Baixo. Para completar, a gravura permite ainda aferir relações de escala e altimetria entre os vários elementos que compõem a praça, a sua relação com o terreno onde estão implantados e com o envolvente.
Figura 55 “A prospect of Tangier coming from the Westward before it was demolished” In Routh, E.M.G., England’s Lost Atlantic Outpost”, 1683, London, 1912.
Figura 56 “A prospect of Tangier and the Mole before it was demolished” In Routh, E.M.G., England’s Lost Atlantic Outpost, 1683, London, 1912.
277
Robert Thacker ( - 1687) foi um gravurista inglês.
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Existem ainda, entre o acervo recolhido, algumas fontes cartográficas que, por possuírem uma escala demasiado abrangente, incorporando grandes áreas territoriais em torno da praça, tornam inviável uma correta percepção de todos os componentes relativos ao Castelo de Cima. Nestes casos, devido ao grande afastamento, torna-se impossível a retirada de referências métricas das estruturas, pelo que, a partir deles, podem apenas ser tecidas considerações gerais. Um desses exemplos é a gravura “The center of y:” (Figura 57 (1)) datada de Novembro de 1661, que pretende dar a conhecer o contexto territorial onde se insere a importante praça, mostrando algumas variações topográficas, o recorte da costa do Cabo Espartel ao Cabo Malabata e até o que parecem ser as ruínas da antiga cidade. Há uma preocupação em mostrar os principais elementos do aglomerado urbano, como a cerca torreada, as principais vias e os dois castelos. A Cidadela é representada com uma escala exagerada, mas consegue distinguir-se todo o desenho perimetral, e entre os seus constituintes internos, a conformação do Paço. Contudo, uma maior aproximação revela um previsível elevado grau de distorção destes componentes (Figura 57 (2)).
Figura 57 (1) “The center of y:” de Novembro de 1661.
Figur 57 (2) Aproximação da gravura “The center of y:” de Novembro de 1661.
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Também o plano “Territorio y Fuertes alrededor de Tánger. Posición de las tropas en el comienzo de la lucha el dia 27 de octubre de 1680” (Figura 58 (1)), exemplo da tipologia anterior, demonstra a localização de diversos pontos defensivos estratégicos externos à praça, numa envolvente alargada. Não se concentrando em detalhes da linha costeira, o mapa abrange uma grande área a Sul e a Poente de Tânger, na qual representa variações topográficas e cursos de água, além das linhas defensivas e fortificações. Quanto à cidade, identificam-se claramente os seus limites e algumas construções legendadas. O desenho do “Castillo Alto” como é designado na figura o Castelo de Cima, é bastante esquematizado (Figura 58 (2)), no seu interior os números 19 e 26 assinalam a “Casa del Gobernador” e a “Torre de Peterborough” respetivamente, destacando a importância desta duas estruturas entre todas as que constituíam o castelo. Contudo, não é possível extrair quaisquer outros dados concretos acerca da conformação do complexo fortificado.
Figura 58 (1) “Territorio y Fuertes alrededor de Tánger. Posición de las tropas en el comienzo de la lucha el dia 27 de octubre de 1680”.
Figura 58 (2) Aproximação do mapa “Territorio y Fuertes alrededor de Tánger. Posición de las tropas en el comienzo de la lucha el dia 27 de octubre de 1680”.
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Outras situações há em que o afastamento do plano culmina em representações completamente esquematizadas da cidade, onde não se reconhece qualquer característica morfológica que remeta para a configuração do Castelo de Cima. São exemplos disso, o “La Baye de Tanger en Barbarie” de Henry Michelot, de 1679 (Figura 59), o “Mouillage de Tanger” de La Motte de Méran (Figura 60), o “Tanger” (Figura 61), ou o “Bay of Tangier” (Figura 62).
Figura 59 “La Baye de Tanger en Barbarie” de Henry Michelot de 1679 BNF – SHM, P110, D3, 3D.
Figura 60 “Mouillage de Tanger” de La Motte de Méran, BNF – SHM, P110, D3, 1D.
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Figura 61 “Tanger” BNF – SHM, P110, D3, 2D.
Figura 62 “Bay of Tangier”, BNF – SHM, P110, D3, 20D
Como é possível constatar, o grande volume de documentação procedente do tempo inglês fornece novas informações e dados mais concretos acerca da constituição estrutural e morfológica do conjunto em estudo, com várias aproximações à sua imagem real passada. Sendo este um estudo maioritariamente retrospetivo, a interpretação de todo este acervo é determinante, permitindo atestar premissas tecidas a partir da análise dos escassos recursos do período português e acrescer novas evidências para a reconstituição do Castelo de Cima. 88
1.4 - Recursos documentais que sucederam ao tempo inglês em Tânger até à atualidade
Importa referir que uma boa parte das obras consultadas e recursos utilizados, para a realização desta investigação, remonta ao interregno temporal que decorre entre o momento do abandono inglês e a atualidade. Fontes Escritas Destacando algumas fontes documentais, de entre todas as que contribuíram para o desenvolvimento deste trabalho, os três volumes do “Diccionario Historico e Documental dos Architectos, Engenheiros e Construtores Portuguezes ou a Serviço de Portugal”, de Sousa Viterbo, forneceram um conjunto de informações muito úteis acerca dos mestres de obra da cidade, arquitetos e outros intervenientes na edificação e reforço do Castelo de Cima, no tempo português. Para complementar cada descrição, Viterbo transcreve, por vezes, o conteúdo de correspondência mantida entre as pessoas descritas e outras figuras de relevo suas contemporâneas, de forma a comprovar a veracidade das afirmações anteriores, provendo novos pormenores e detalhes adicionais. Os estudos atuais que mais diretamente contribuiram para a elaboração desta análise foram: o “Portuguese Tangier (1471-1662): Colonial Urban Fabric as Cross-Cultural Skeleton” e o “Tangier’s Qasba Before the Trace Italienne Citadel of 1558-1566: The “Virtual” Archaeology of a Vanished Islamic and Portuguese Fortress” de Martin Elbl, a par com a dissertação de Doutoramento de Jorge Correia “Implantação da cidade portuguesa no Norte de África: Da tomada de Ceuta a meados do século XVI”. Estas obras foram essenciais a compreensão de todo o percurso evolutivo do Castelo de Cima no contexto diacrónico da história de Tânger. Analisando igualmente uma fortificação tangerina construída pelos portugueses, também a tese de Mestrado de Carolina Mendes “O Castelo Novo de Tânger: Resgate da arquitetura militar portuguesa entre os séculos XV e XVII”, forneceu um contributo dirigido para a interpretação da informação recolhida e possibilitou o posterior estudo das relações estabelecidas entre as duas principais estruturas defensivas da praça.
Fontes Visuais No que respeita a fontes visuais, dado o distanciamento temporal aos acontecimentos, as progressivas alterações no desenho urbano afastam cada vez mais a imagem da cidade portuguesa dos séculos XV a XVII. Apenas alguns mapas, datados de inícios do século XVIII, mostram ainda um cenário pouco alterado. Contudo, estes casos específicos apresentam uma escala bastante afastada, podendo tratar-se de cópias de debuxos ou feitos a partir do oceano, pelo que, embora consultados, não foram usados no processo de reconstituição do Castelo de Cima. No mapa “Plan de la ville et rade de Tanger en Barbarie” (Figura 63), de 1703, distinguem-se os contornos da urbe muralhada e do Castelo de Cima, com a representação muito esquemática das construções contidas no seu interior, compreendendo-se 89
sobretudo a implantação desta cidade no topo de uma baía, que ao centro conserva os vestígios da “Vieux Tanger”. Deste modo, não permite visualizar detalhes do objeto em estudo. A situação repete-se um pouco para o “Tanger” (Figura 64), de 1738, que abrange aproximadamente a mesma área. Embora contendo escala gráfica e legenda, e sendo possível entender, genericamente, a morfologia dos contornos da grande cidade, este plano não vem acrescentar informação concreta relativamente ao Castelo em análise.
Figura 63 “Plan de la ville et rade de Tanger en Barbarie”, 1703, BNF – SHM, P110, D3, 17D
Figura 64 “Tanger”, 1738, BNF – SHM, P110, D3, 10/1D
Diversas gravuras do século XIX, onde aparecem trechos da fortificação tangerina, foram analisados, como é o caso da ilustração “Citadel of Tangier” (Figura 65), de David Roberts (1838) ou várias que constaram no “The Illustrated London News”: “The Citadel of Tangier. – From a sketch by H. J. Johnson” (Figura 66), de 1844, “French fleet off Tangiers” (Figura 67), “The Town, old Moorsih Walls, and Batteries of Tangier. – From a Drawing by Commander Montagu O’Reilly” (Figura 68), “Gateway of the Citadel of Tangier” (Figura 69) e “The Citadel of Tangier” (Figura 70) de 1859. Através delas percecionase já a apropriação das estruturas defensivas portuguesas. 90
Figuras 65 “Citadel of Tangier” de David Roberts (1838) e 66 “The Citadel of Tangier. – From a sketch by H. J. Johnson” (1859) “The Illustrated London News”.
Figura 67 “French fleet off Tangiers”, (1844) “The Illustrated London News”.
Figura 68 “The Town, old Moorsih Walls, and Batteries of Tangier. – From a Drawing by Commander Montagu O’Reilly”(1859) “The Illustrated London News”.
Figuras 69 “Gateway of the Citadel of Tangier” e 70 “The Citadel of Tangier”(1859) “The Illustrated London News”.
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Através de fotografias de inícios do século XX, vistas aéreas da cidade ou captações a partir do solo, embora seja percetível já uma densa apropriação imobiliária de algumas construções fortificadas (Figura 71), é ainda possível observar determinados elementos do Castelo de Cima, hoje arrasados, como é o caso de um segmento de um dos grandes baluartes da Cidadela (Figura 72), o que conformava o ângulo Sudeste da fortificação. Estes registos auxiliam, desta forma, na localização das estruturas em si retratadas, resgatando a memória da sua conformação muitas vezes apagada da mancha urbana.
Figuras 71 Vista aérea – medina, 1925 (DPC – MCC) e 72 Fotografia Baluarte Kasbah ? (BNF).
Finalmente, cruciais para todo o desenvolvimento do trabalho, fotografias aéreas do presente, ortofotomapas (Figura 73) e principalmente a cartografia da urbanização atual (Figura 74), disponibilizada pela “Agence Urbaine de Tanger” (AUT), constituem uma importante base rigorosa para a confrontação com as fontes carto-iconográficas e documentais antigas. Possibilitam, por um lado, a aferição de correspondências entre os desenhos e descrições passadas e os vestígios visíveis que resistiram até aos dias de hoje e, por outro, facilitam a identificação de possíveis indícios de estruturas do tempo português e britânico, ocultadas pela intensiva ocupação da medina, a partir da observação de sugestivos alinhamentos na malha urbana. Posteriormente, é também através do suporte cartográfico que se procede à criação do modelo tridimensional das fases evolutivas do castelo.
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Figura 73 Ortofotomapa da medina de Tânger, 2017.
Figura 74 Cartografia da medina de Tânger na atualidade.
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Vestígios do Castelo de Cima na cidade atual Uma observação direta, no local, dos vestígios do antigo castelo português era essencial para a realização do seu estudo. A visita a Tânger impunha-se, deste modo, como uma etapa metodológica fundamental, enquanto aproximação à realidade física atual, apenas conhecida previamente através de estudos de diversos autores, mapas e fotografias. A procura, deteção e inventário dos fragmentos sobreviventes conhecidos na medina, através de registo fotográfico, desenho e levantamento métrico, permitiram a posterior confrontação com os dados bibliográficos reunidos. As viagens a Marrocos278 revelaram ainda dados novos, contribuindo para o acréscimo de informação sobre o estrato europeu. A chegada à cidade por via marítima possibilita uma completa apreensão de todo o panorama da baía, com a visualização da cerca Norte que, acompanhando o recorte do terreno íngreme, desce quase até à praia. Distingue-se ainda nitidamente, no topo desta estrutura, o grande baluarte setentrional do Castelo Velho. Do Castelo Novo, exteriores ao perímetro muralhado, são identificáveis a Couraça Joanina e o baluarte Moderno com as alterações feitas pelos ingleses. Parte dos vestígios do Castelo de Cima são identificáveis através de um percurso pela Medina (Figuras 77, 78, 79 e 80), como uma boa parte da muralha com torreões do atalho, o baluarte em cunha da plataforma Oeste, a face interna de algumas cortinas entre outros. No entanto, não raras vezes, o denso aglomerado de construções condiciona o olhar de quem percorre as vielas e restringe os pontos de vista, havendo segmentos de ruínas não evidentes a partir do nível térreo das ruas. Só do topo de alguns terraços, com grandes abrangências visuais, cujo acesso foi autorizado por parte dos hospitaleiros moradores, se conseguiu fotografar e até alcançar algumas porções de muralha do castelo português (Figura 82).
Figura 75 Mapa de vestígios e alinhamentos urbanos na cidade atual. 278 Inseridas no âmbito do projeto FCT (PTDC/EPH-PAT/4174/2014) “ESPANAFRI
- Espaços e vivências do período português no Norte de África: cidades e vilas do 'Algarve de Além-Mar' (séculos XV a XVII)”, CHAM-FCSH-NOVA, Lab2PT-UMinho.
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Figura 76 Síntese do inventário fotográfico dos vestígios do Castelo de Cima português, com marcação dos principais pontos a partir dos quais se tiraram as respetivas fotografias.
Figura 77 Inventário fotográfico de vestígios do setor Sudoeste do Castelo de Cima português.
Figura 78 Inventário fotográfico de vestígios do setor Noroeste do Castelo de Cima português.
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Figura 79 Alçado fotográfico interno da muralha Norte.
Figura 80 Inventário fotográfico de vestígios do setor Nordeste do Castelo de Cima português.
Figura 81 Inventário fotográfico de vestígios do setor Sul do Castelo de Cima português.
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Figura 82 Inventário fotográfico de vestígios do setor Sul e Sudoeste do Castelo de Cima português, a partir de terraços dos pontos assinalados
Após a exposição crítica dos recursos disponíveis relacionados com o Castelo de Cima português, considerando todo o acervo documental, icono-cartográfico, fotográfico, subdividido por período e formato, é bastante percetível a disparidade existente entre a quantidade de matéria relativa à primeira e segunda fase construtiva principal. Registos do tempo Tardo-Medieval/Manuelino são escassos, além de subsistirem muito poucos vestígios dele na Medina atual, pelo que a reconstituição desta fase exige um grau de especulação muito maior comparativamente à fase Moderna, para a qual há abundância de informação escrita e visual, cuja análise concede algumas certezas.
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2 – Evolução morfológica do Castelo de Cima
Desde a permuta para a nova implantação, afastada do areal da baía279, o topo da colina Noroeste da cidade foi o lugar eleito, por excelência, para a fixação do poder administrativo da urbe. Ao longo dos séculos, a sua posição possibilitava um avistamento abrangente de toda a frente marítima, a Norte e a Este, assim como dos campos ao seu redor, que, entre planaltos e outeiros, se prolongavam para o interior do continente. Isso determinou que, do ponto de vista da organização funcional, aquele setor sempre desempenhasse o mesmo papel, durante as sucessivas dinastias que governaram a praça: o de assegurar o controlo e proteção da mancha urbana envolvente. Não obstante, o presente estudo debruça-se sobre o intervalo temporal 1471-1661 de permanência lusitana em Tânger. Para o Castelo de Cima português, é possível delimitar-se duas grandes fases evolutivas principais, tendo por base a variação da morfologia geral do conjunto. A primeira iniciase logo após a conquista, quando há necessidade de apropriar, adaptar e reconstruir as estruturas militares herdadas, e traduz-se num poderoso Paço rodeado por uma abrangente cerca torreada. A segunda, despoletada quase um século mais tarde, pela consciencialização da carência de uma profunda intervenção no sistema defensivo à cota alta, é o resultado de um redesenho de todo o complexo, transformando-o numa Cidadela. Durante esses dois estágios construtivos principais ocorreram ainda diversas alterações da estrutura base, sempre com o intuito do melhoramento da eficácia defensiva do complexo, em resposta aos avanços da arte da guerra.
IBN HAUCAL – Description de l’Afrique, 1842, p. 31; AL BEKRI, Abu Obeid – Description de l’Afrique Septentrionale, 1918, p. 213 a 215; IDRĪSĪ - Description de l’Afrique et de l’Espagne par Edrîsî, 1866, p. 201. 279
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2.1 – Pré-existências: Kasbah Islâmica
A política comum de apropriação das principais estruturas constituintes das cidades conquistadas praticada pelos portugueses permitia-lhes, por um lado, acelerar o processo de estabelecimento na nova possessão e, por outro, economizar os parcos recursos que possuíam. Na realidade, sabe-se que nas praças Setentrionais, à exceção de Alcácer Ceguer, as kasbah foram imediatamente apropriadas após a chegada dos novos senhores280. Tânger não foi exceção neste procedimento. Há, de facto, um claro registo de adaptação de parte do Castelo dos mouros, durante o mandato do segundo governador, Ruy de Mello (1471-1484), descrito por D. Fernando de Menezes281. Assim sendo, embora o presente estudo pretenda concentrar-se no estrato português, percebe-se que a estrutura fortificada islâmica herdada lhe é indissociável, reconhecendo-se ainda a sua presença no interregno temporal 1471-1661282. É imprescindível, portanto, compreender o tipo de construção que precedeu todas as variações morfológicas levadas a cabo durante quase dois séculos de evolução. A kasbah ou a alcáçova de Tânger aparece assertivamente mencionada pelos cronistas portugueses, desde a primeira tentativa de conquista em 1437, como o “Castello” da cidade. De facto, quer a nível simbólico quer funcional, a edificação islâmica assemelhava-se a um castelo lusitano, constituindo o último reduto defensivo da urbe, local onde a população se protegeria de invasões e ataques e onde se concentrava todo o poder administrativo e militar283. Na gravura de Ceuta do século XVI (Figura 83), que consta no “Civitates Orbis Terrarum” de Braun284, é possível distinguir claramente um exemplo de uma alcáçova moura de aspeto muito resistente, com paredes fortes e altas, numerosas aberturas a pontuar a fachada, cobertura telhada de duas águas e compactos torreões nas extremidades, formando no seu conjunto um desenho regular e altivo. Neste caso, é evidente a decisão dos portugueses de manter o edifício herdado.
Figura 83 Aproximação da gravura “Septa” (cópia de original do início século XVI). BRAUN, Georg, HOGENBERG, Frans, NOVELLANUS, Simon – Civitates Orbis Terrarum. Antuerpiae Coloniae: Apud Philippum Gallceum/Apud Audtores, 1572. BNL
CORREIA, 2006, p. 314. alta do Castello se levanta outra pequena, e quadrada, em que assiste huma vigia, ou facheiro com hum sino (…).”. MENEZES, 1732, p. 41. 282 Carta de Cristóvão da Cunha a D. Catarina a 12 de Julho de 1558 (A. N. T. T. Corpo Cronológico, 1/102/120, fol. 1.) In http://antt.dglab.gov.pt/. 283 CORREIA, 2006, p. 180. 284 BRAUN, Georg, HOGENBERG, Frans, NOVELLANUS, Simon – Civitates Orbis Terrarum. Antuerpiae Coloniae: Apud Philippum Gallceum/Apud Audtores, 1572. BNL 280
281 “Na Torre mais
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Para Tânger, através das descrições detalhadas contidas nas crónicas relativas às várias investidas da Coroa sobre esta cidade285, é possível localizar fisicamente alguns elementos chave integrantes de todo o complexo fortificado pré-ocupação286. A partir dos relatos respeitantes aos assaltos de finais da década de trinta e de inícios da década de sessenta do século XV, confirma-se o extenso perímetro amuralhado que contornava toda a mancha urbana, interrompido por várias portas e torreões287. O segmento pontuado por cinco cubelos que partia da alcáçova e terminava na “Torre de Gilhayre”, porta tripla na qual se incluía o impenetrável “postigo de Gurrer”288, foi onde se concentrou o planeamento dos assaltos, local que os mouros consideravam intransponível e portanto não vigiavam tanto como outros pontos289. A unir a kasbah e a muralha envolvente existiria uma ponte levadiça290, o que permitiria, sempre que necessário, isolar o reduto. Há ainda referências a uma “Porta do Castello”, particularmente na narração da primeira grande investida sem êxito, no reinado de D. Duarte291, embora nunca seja especificada a sua localização efetiva. Sabe-se que muitas destas fortificações islâmicas do Norte de África eram edificadas em taipa292. Contudo, não há evidências que permitam perceber se esse sistema construtivo foi utilizado, em algum momento, em Tânger. Na realidade, relatórios de descobertas arqueológicas da primeira metade do século XX, nomeadamente de Gilbert F. Bons293, revelaram alguns vestígios de paredes em pedra do 285 Referente
a Tânger, não existe nenhuma representação prespética precisa que evidencie a imagem do “Castello” pré-1471. Ainda que pretendesse ilustrar a cidade no momento da ocupação portuguesa, a tapeçaria de Pastrana “A Tomada de Tânger”, embora aparentemente certeira quanto ao local de implantação da suposta alcáçova, reproduz uma construção estilizada mais assimilável a um paço europeu do mesmo período do que de qualquer edifício árabe. 286 “(…) Ao Infante D. Fernando (…) ordenado seu combate á porta de Fez : e ao conde d'Arrayolos outra, que o havia logo de seguir: e ao bispo d'Evora outra, que havia de combater e entrar a cidade por um postigo que estava no Valle: e a quarta escala ao marichal a que, junto com o bispo, onde o muro era mais baixo succedia logo seu combate: e o Infante D. Anrique tomou da parte do castello, onde a maior resistência se esperava, e se requeria a principal fortaleza (…).” PINA, Ruy de - Chronica d’El-Rei D. Duarte, 1901, p. 102. 287 Através das crónicas de Zurara e Ruy de Pina percebe-se a existência de uma muralha que partia da kasbah em direção ao lado oposto à costa. Era pontuada por diversos cubelos e interrompida por várias portas como o postigo de Gurrer, o baluarte/porta de Fez e a porta do Campo, comprovando a enorme dimensão do aglomerado urbano e justificando os consecutivos insucessos das tropas lusitanas. CORREIA, 2006, p. 182-183. 288 “ (…) combateram as portas tão rija e ousadamente, que de três juntas que eram, romperam duas; e a terceira que se diz o Postigo de Guyrer, cometeram com fogo: e, por ser forrada de ferro e sobrevir a noite, não foi entrada; e também porque os mouros a deffenderam mui bravamente.” PINA, Ruy de - Chronica d’El-Rei D. Duarte, 1901, p. 101. 289 “(…) eu [Sancho fernandez] nom sey outra nenhuma maneyra como se aquella cidade possa escallar. Eu sey disse Dyego de barros huum pedaço de muro acerca do castello. muy aazado pera sse acabar todo o feito porque da parte de fora nom tem barreyra e he de tal fortelleza e altura que polla segurança que os mouros teem do lugar nom pooem na guarda delle tanta deligencya como nas outras partes. E da parte de dentro nom ha casas pegadas ao muro per que aiam / de sentyr os que andarem encima (…). Este muro he antre o castello // [188 r] e há torre que se chama a torre de Gil hayre em que ha cinquo cubelos.” ZURARA, Gomes Eanes de Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, 1978, p. 310-311. 290 “E por que do castello era feita sayda pera o muro com huma ponte leuadiça a qual alleuentauam e abaixauam cada vez que queryam. (…) outra torre que esta // [210 v] sobre huum postigo que se chama o postigo de gurrer (…).” ZURARA, 1978, p. 345. “The junction of town wall and qasba wall was protected, ‘at batlement level’, by a drawbridge that isolate the qasba precint from the enceint’s chemin de ronde.” ELBL, 2013, p.302. 291 “(…) foi recolher a gente que alli e na porta do castello e nas outras da cidade estava em combates repartida (…).” PINA, Ruy de Chronica d’El-Rei D. Duarte, 1901, p. 101. 292 GOMES, Rosa Varela – A arquitectura muçulmana in MOREIRA, 1989, p. 33. 293 “(…) en mars dernier, M. G.F. Bons [Sr.Gilbert F. Bons] en exécutant des travaux de dégagement et de restauration dans le palais du pacha Ali er-Rifi, à la Qasba, mit à jour des parements de pierre très soigneusement appareillée, Dans chaque assise, une pierre placée en carreau alterne avec trois pierres disposées en boutisses. Les fondations de ce mur sont faites uniquement de pierres en dé. Cette muraille, sur laquelle s'appuie le palais du pacha Ali, forme aujourd'hui encore le rempart de la Qasba du côté de la mer. (…) Je n'eus pas de peine à reconnaître, dans ces pans de murs d'une facture si particulière, les restes d'une muraille' oméyade de l'époque du Califat. Tout l'apparente aux constructions espagnoles du même temps: la dimension des pierres, l' ap~ pare 1 du mur et des fondations, la composition même du monier, fait surtout de plâtre et de sable, Il y a quelques années, j'avais pu identifier à Ceuta, dans ces murailles du port, un pan de mur de même facture, qui est le seul vest:ge, dans cette ville, des travaux d'Abd erRahman III. Ainsi Abd er-Rahman III En Nacer fit élever, vers 950, au moins une Qasba au-dessus de la ville de TangeL Comme Ceuta et comme Melilla, Tanger devenait pour le Calife une tête de pont fort.fiée qui préservait l'Espagne d'une invasion africaine. M. G.F. Bons poursuivit ses travaux. D'autres vestiges oméyades - dans la base d'une tour - apparurent au droit du palais d'Ali er-Rifi et plus
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período califal omíada, no local onde se implantava o palácio de Pasha Ali er-Rifi294 e anteriormente um dos baluartes do castelo português295 (Figuras 84 (1), 84 (2) e 85). O facto de estas remanescências resistirem até ao século XX, englobadas em construções posteriores, não parece surpreendente. O fenómeno de apropriação do mais antigo pelo mais recente verifica-se para vários estratos temporais, em diversos pontos da medina atual. Contudo, este exemplo vem introduzir uma questão essencial deste trabalho: em que medida terão os portugueses conservado, no decorrer da sua estadia na praça, as estruturas militares do aglomerado urbano islâmico conquistado, em particular da grande kasbah? Este tópico é analisado e desenvolvido nos capítulos seguintes.
Figuras 84 (1) e (2) Da autoria de Paul Servant, de 1910-1930, as duas fotografias mostram o palácio do Pasha Ali er-Rifi já em ruínas. A primeira vista de Nascente e a segunda de Poente.
Figura 85 Assinalado a vermelho o local onde foram encontrados os vestígios da kasbah do período califal omíada.
à l'Ouest. Dès maintenant. on peut espérer jalonner le front de mer de la forteresse oméyade.. (…) A ces vestiges s'attache le souvenir des plus grands souverains de l'Islam Espagnol, les califes oméyades de Cordoue, qui, dans l'Andalousie sauvée du péril africain, purent faire fleurir la plus belle des civilisations de l'Islam medieval.” TERRASSE, Henri – La Kasba Omeyade de Tanger - in CHABOT, th. De - La Kasba – L’Acropole de Tanger. 1939 Bibliothèque Numérique Marocaine, p. 9 e 10. 294 Com vista sobre toda a baía de Tânger e estreito de Gibraltar, o palácio foi erguido, após 1684, pelo Pasha Ali bin Abdullah alRiffi, sobre elementos pré-existentes. In https://archnet.org/sites/9934. 295 Nesta área ter-se-á localizado o Baluarte Nordeste da Cidadela portuguesa, cuja análise se apresenta mais à frente nesta dissertação.
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2.2 – Primeira fase: Tardo-Medieval
A primeira grande fase do Castelo de Cima português estende-se desde finais de Quatrocentos a meados do século XVI. Inicia-se o estudo genérico deste estádio a partir do momento em que a recémconquistada cidade de Tânger é reconhecida enquanto território pertencente ao reino de Portugal, prolongando-se a análise até ao começo efetivo das grandes obras da Cidadela, definidas como ponto de clivagem entre as duas fases. Este longo intervalo de tempo não se resume, contudo, a uma única imagem fixa do conjunto fortificado. O período em questão coincide, na realidade, com um ciclo de intensa renovação do conceito da arquitetura militar. A pirobalística vinha a revolucionar a arte da guerra e Portugal, embora preso a atavismos medievais foi naturalmente forçado a atualizar a conceção das suas fortalezas. Esta “transição” ocorre sobretudo durante o reinado de D. Manuel, sendo as possessões norteafricanas locais de experimentação das novas técnicas296. Deste modo, é possível identificar diversas etapas construtivas, subdividindo-se esta fase, para efeitos de comunicação, em dois momentos fundamentais: o primeiro Tardo-Medieval, e o segundo correspondente às intervenções Manuelinas. Escassos vestígios físicos restam deste período do Castelo de Cima, pelo que o seu estudo baseiase na interpretação de documentação escrita coeva, na análise da escassa, porém essencial, iconografia do século XVI, e no grande volume de fontes visuais do tempo inglês. Neste sentido, todas as evidências que conduzem à formulação das hipóteses são apresentadas; ainda assim, é evidente que o grau de especulação é elevado.
296
MOREIRA, 1989, p. 80.
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2.2.1 Paço e cerca fortificada
Figura 86 Paço tardo-medieval (“Domus Paefecti”) e cerca destacados na gravura de Braun “Tingis Lusitanis Tangiara””.
As diversas tentativas de conquista de Tânger, por parte dos portugueses297, comprovam a importância da sua adição ao conjunto de praças ocupadas no Magrebe. A valiosa cidade recém-adquirida requeria, portanto, a implementação de um conjunto de medidas que possibilitassem, rapidamente, retirar o maior proveito possível das estruturas herdadas e responder às novas necessidades. Sabe-se que, de uma maneira geral, era uma “çidade grande, e forte”298 pelo que talvez não fizesse sentido reconstruir todos os elementos defensivos cujos “moradores (…) de Tangere esquecidos da grande fortaleza d'ella e de si mesmos”299 abandonaram em 1471. Perante isto, tornava-se premente perceber a postura adotada pelos
portugueses face à alcáçova moura existente na praça conquistada. As fontes referentes à primeira fase exprimem, sumariamente, um cenário fortificado constituído por um edifício de cariz nobre e uma extensa cerca composta por vários tramos com torreões. Devido à complexidade dos elementos, subdivide-se a análise do conjunto, começando pela morfologia do Paço, seguindo-se a composição da muralha fortificada.
34 anos decorreram desde a primeira tentativa de conquista de Tânger em 1437, à sua efetiva ocupação pelos portugueses em 1471. 298 RODRIGUES, Graça Almeida – Crónica do Príncipe D. João de Damião de Góis, 1977, p. 56. 299 PINA, Rui de - Chronica d’El-Rei D. Affonso V, 1901, p. 398. 297
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2.2.1.1 O Paço
O nome Paço deriva do latim “Palatiu” palavra que designava a colina onde o imperador Augusto e sucessores estabeleceram a sua residência, passando posteriormente a denominar a própria habitação300. Em Portugal, a expressão “paaço” começa a ser difundida a partir do século XIII.O Paço português de finais do século XV apresentava um carácter eminentemente civil, procurando transmitir uma mensagem de poder e autoridade.301
O Castelo de Cima de Tânger abrangia uma área bastante considerável do topo Noroeste da cidade. Nesta primeira fase, existia um elemento que se destacava no cenário do complexo, quer pelo seu porte, quer pela posição de destaque que ocupava. Embora nunca referido enquanto “Paço” nas fontes documentais coevas302, adota-se essa designação para a edificação evidenciada à cota alta, devido à sua índole nobre e à função eminentemente civil enquanto residência dos governadores303. Não é difícil imaginar que a construção de um suposto edifício português teria constituído uma ação de grande impacto e visibilidade na praça. Porém, não chegam aos dias de hoje documentos que façam menção aos trabalhos ou a quaisquer datas de construção da estrutura. Consegue-se apenas delimitar um intervalo temporal abrangente durante o qual se poderão ter desenrolado presumíveis obras, estendendo-se desde o ano da ocupação (1471) até à primeira década do século XVI, à qual a iconografia304 faz já corresponder um “Domus Paefecti”305, integralmente finalizado, mas que ao contrário do Castelo à cota baixa, cuja inscrição “Arx, aedificata a D. Ioanne Lusitaneae” remete para a conceção no reinado de D. João II306, não apresenta nenhuma alusão temporal. É, no entanto, admissível que o balizamento estabelecido se possa ainda prolongar até às décadas seguintes, visto ser impossível garantir que o autor da vista original não tenha, na verdade, tomado a decisão de completar em desenho uma construção inacabada307, conjeturando-se mesmo que a edificação possa ter tido vários momentos construtivos. Alguns autores citam a menção que D. Fernando de Menezes faz à adaptação de uma torre do Castelo mouro308, concluindo daí que, após 1471, durante o governo de D. Rui de Mello (1471-1484), a kasbah islâmica pré-existente teria sido ocupada apenas durante um curto período de tempo309 e situando o marco do começo da ereção de um novo Paço algures no decorrer desse mandato. No entanto,
SILVA, José Custódio Vieira da – Paços Medievais Portugueses, 2002, p. 19. SILVA, 2002, p. 36. 302 Pode considerar-se exceção, uma única referência de D. Fernando de Menezes, embora não mencionando o edifício enquanto Paço mas através do sinónimo: “palácio”. “(…) a 24 de Agosto, dia de São Bartolomeu, de 1643, subiram ao palácio ao amanhecer e entrando na câmara do Conde, que ainda estava na cama, disseram em voz alta: Viva el Rey D. João (…).” MENEZES, 1732, p. 155. 303 Idem, p. 45. 304 “Tingis Lusitanis Tangiara” BRAUN, Georg, HOGENBERG, Frans, NOVELLANUS, Simon – Civitates Orbis Terrarum. Antuerpiae Coloniae: Apud Philippum Gallceum/Apud Audtores, 1572. BNL – C.A. 57v, fl, 56-56v; fl 57-57v e “Tanger” integrada na obra “Description de l’Univers” de Alain Manesson Mallet de 1683. 305 As palavras “Domus Paefecti”, o equivalente em latim a “Casa do Governador”, surgem associadas à construção na “Tingis Lusitanis Tangiara”. 306 MENDES, 2017, p. 47. 307 Esta hipótese é levantada no decorrer da análise da morfologia da fachada Este do Paço. 308 MENEZES, 1732, p. 41. 309 CORREIA, 20016, p. 187. “The second Portuguese governor (Rui de Melo, Count of Olivença (1472-84(?)) had for a brief period of time, however, used and adapted the original Arab palace. This implicitly sets the Domus between the reigns of D. Afonso V and D. João II”. ELBL, 2013, p. 806. 300 301
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é possível que esta “Torre mais alta do Castelo”310 adaptada fosse, na verdade, um elemento inscrito na cerca da alcáçova, não interferindo obrigatoriamente com o levantamento de um edifício residencial português. Martin Elbl, afirma que a imagem do Paço do Governador surge já na Tapeçaria de Pastrana “A Tomada de Tânger”, “(…) a blue-roofed large hall with two tall Gothic windows (and likely four- two are namely hidden behind a cubelo (…)”311, remetendo implicitamente a sua finalização para um momento anterior à data de
execução do desenho que foi modelo para a peça. Contudo, a elevada carga ficcional que envolve o conteúdo da fonte analisada, além da falta de rigor da referida Tapeçaria, comprometem, também neste caso, a retirada de conclusões definitivas. Da mesma maneira, não se conhecem, atualmente, nenhuns registos que associem a composição a um autor específico. Sabe-se que, em 1473, é criado por D. Afonso V o cargo de “Mestre das Obras dos lugares de África”312, ocupado por Rodrigo Anes313, sendo cronologicamente possível que o próprio tenha sido o responsável pela direção da suposta obra314. Sobre este mestre sabe-se, através de toda a correspondência a ele relativa condensada na obra de Sousa Viterbo, que terá trabalhado na villa de Santarém por nomeação do mesmo monarca desde 1444, antes de deixar Portugal e exercer o seu cargo no além-mar315. Não existem, contudo, referências de obras específicas dirigidas por ele.
Figuras 87 (1) O Paço (“Domus Paefecti”) destacado na gravura de Braun “Tingis Lusitanis Tangiara”; (2) O Paço, de acordo com Martin Elbl, numa aproximação da Tapeçaria de Pastrana “A Tomada de Tânger”.
MENEZES, 1732, p. 42. ELBL, 2013, p. 791,792. 312 “Anes (Rodrigo) - (…) Pedreiro, morador em Santarem. D Affonso V, a 30 de outubro de 1444, o nomeou mestre das obras d’aquella villa, por falecimento de Gonçalo Vaz. Seis annos depois foi-lhe passada nova carta do mesmo officio sem accrescentamento de mais pormenor.(…) Cremos que é ainda o mesmo, que em 1473 foi nomeado mestre das obras das praças de Africa: Ceuta, Alcacer, Tanger e Arzilla (…).” SOUSA VITERBO, Vol. I, 1922, p. 39-40. 313 Ibidem. Sobre Rodrigo Anes consultar ainda CARVALHO, António Eduardo – A Chancelaria Régia e os seus Oficiais em 1468, 2002, p. 223,224. 314 CORREIA, 2006, p. 187. 315No documento da Chancelaria D. Afonso V, arquivado na Torre do Tombo, e referente ao pedreiro pode ler-se “Dom Afonso &c. a quantos esta carta virem fazemos saber que avendo asy nosso seruiço e confiando de Rodrigo Anes (…) que em esto nos saberaa bem seruir e por lhe fazermos graça e merce temos por bem e damollo ora nouamente por mestre das nossas obras dos lugares dalem em Africa- a- Cepta, Alcacer, Tanger, Arzilla. (…)” In SOUSA VITERBO, Vol. I, 1922, p. 40. 310 311
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Implantação e Morfologia do Paço
Não existindo, atualmente, vestígios claros deste edifício, a determinação do local da sua implantação recaiu fundamentalmente sobre a análise cuidada das raras fontes respeitantes a este período. A partir de recursos documentais, obtém-se somente a confirmação da sua posição cimeira no contexto da praça316. É, sobretudo, com base em fontes visuais que é possível alcançar resultados mais precisos. Com conteúdo referente a este estádio específico, sobrevivem apenas a gravura de Braun317 e o mapa “Krigsarkivet nº 0406:07:009:001”318. Lamentavelmente, a área correspondente ao Paço não se encontra assinalada nessa planta, mas apenas em cartografia inglesa posterior. Apesar das inegáveis alterações escalares e erros perspéticos, a “Tingis Lusitanis Tangiara” (Figura 87 (1)) mostra o conjunto de blocos fortificado inserido no alinhamento da fronteira Este do Castelo de Cima. A supressão do limite Sul, na imagem, sugere que se prolongaria a partir do próprio Paço, determinando que este conformaria a esquina Sudeste da acrópole defensiva319. Quando se atende às plantas seiscentistas, verifica-se uma grande uniformidade no posicionamento do elemento em análise (Figuras 88). Desconsiderando as alterações da estrutura global inerentes aos diferentes tempos representados, a sobreposição dos vários desenhos revela bastantes correspondências entre si. A transposição do resultado da justaposição para o “Krigsarkivet nº 0406:07:009:001” (Figuras 89) proporciona uma primeira aproximação genérica à relação bidimensional estabelecida entre o Paço e envolvente existente na primeira fase, transparecendo a implantação no vértice conformado pelas muralhas e comprovando o que a gravura de Braun antecipava: a fachada Nascente da “Casa do Governador” é, numa aceção geral, coincidente com o próprio muro e a muralha Sul desenha-se a partir do alçado Meridional. No que respeita à constituição e morfologia do edifício palatino, as fontes escritas são novamente bastante omissas e pouco conclusivas, havendo apenas referências isoladas a compartimentos do Paço, como a “Sala Grande do Castelo”320 , “a câmara do Conde”321 ou a “Salla Velha”322, a partir das quais não se retiram dados suficientes que possibilitem a determinação do seu posicionamento relativo. A primazia da investigação recai assim, uma vez mais, sobre os recursos visuais disponíveis.
“(…) sobem depois ao Castelo (…).” MENEZES, 1732, p. 59. “Subiram ao Castelo (…).” Idem, p. 213. gravura “Tingis Lusitanis Tangiara”. 318 No mapa “Krigsarkivet nº 0406:07:009:001” encontra-se representada, num estrato diferenciado, a construção perimetral que antecedeu a edificação da Cidadela. 319 CORREIA, 2006, p. 188. 320 “(…) A terceira a pagam em dinheiro na Sala Grande do Castelo (…).” MENEZES, 1732, p. 41. 321 “(…) a 24 de Agosto, dia de São Bartolomeu, de 1643, subiram ao palácio ao amanhecer e entrando na câmara do Conde, que ainda estava na cama, disseram em voz alta: Viva el Rey D. João (…).” MENEZES, 1732, p. 155. 322 “Lembrança do que se despemdeo no prouimento do muro e cousas necesareas a gouernaça desta cidade de Tangere que o feitor Luis Fernandes deu per mandado do Senhor Lourenço Pires de Tavora capitão e gouernador della.” A.N.T.T., Códices e Documentos de Proveniência Desconhecida, nº 53, Papéis da embaixada de Inglaterra e da jornada de Castela sobre a ida da infanta D. Maria, com outros vários, todos do tempo do Senhor Lourenço Pires de Távora, fols. 221. 316
317A
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Figuras 88 Demarcação da estrutura correspondente ao Paço nas gravuras: (1) “The center of y:” de Novembro de 1661; (2) ”Description of Tanger” de 1663; (3) “Plan de Tanger, sur le détroit de Gibraltar, au royaume de Féz” de 1663, Reinlandische Ruten 100; (4) “Map of Tangiers”, F0298 nº3, de 1664, Bernard Gomme; (5) “Plano mostrando la situación de los fuertes de Tanger en 1676; (6) A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25), de 1676, Kuye (7) Fortificação da praça e contexto envolvente, IMG_3670, datada de 1676/1677; (8) Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger (MPH 1_1_54), de 1683; (9) “Piano di Tanger situato nel str. Di Gibraltar”, BNF – Ge. CC. 1262, do século XVII.
Figuras 89 (1) Sobreposição dos mapas do Paço e colagem do resultado no mapa Krigsarkivet 0406:07:009:001; (2) Sobreposição dos mapas do Paço e sobreposição do resultado no mapa Krigsarkivet 0406:07:009:001 com destaque da camada que se considera representar a fronteira do Castelo da primeira fase.
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Para o estudo da composição dos alçados, às vistas de Braun323 e de Mallet324, somaram-se necessariamente as perspetivas de Martin Beckman325, Wenceslau Hollar326, Robert Thacker327 e Thomas Phillips328, onde embora estejam presentes todas as alterações decorrentes da fase seguinte do Castelo, surge ilustrado o Paço residencial, na maioria dos casos com rigor. Existem várias vistas da fachada Este e Sul completas; contudo, o mesmo não acontece para as restantes. Da fachada Norte e Oeste surgem apenas pequenos segmentos, em perspetivas pouco reveladoras. Aquelas sobre as quais existe mais informação obrigaram ainda a um exercício interpretativo complementar, devido à representação, pelos diferentes autores, de cenários à primeira vista díspares, alusivos ao mesmo prisma do Castelo. Deste modo, a chave metodológica implicava uma concentração da análise em elementos genéricos comuns, em detrimento de uma apreciação da imagem completa do Paço. Tornava-se simultaneamente necessário um confronto de informação entre planta e elevação, considerando os possíveis vestígios expressos em traçados urbanos atuais, para assim aferir hipóteses para a sua morfologia. O complexo ângulo Sudeste do perímetro primário, representado no “Krigsarkivet nº 0406:07:009:001” (Figura 90), torna-se o ponto de partida para o estudo do edifício, de onde se evidencia: um elemento quadrangular que conforma claramente o ponto de encontro das muralhas do Castelo que, entre si, formam um ângulo de aproximadamente 90 graus e uma estrutura recortada que se destaca do limite Este para o exterior.
Figura 90 Aproximação de uma seção do mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001” onde se pode perceber o desenho da camada respeitante ao perímetro defensivo pré-Cidadela no setor Este do Castelo de Cima.
A gravura “Tingis Lusitanis Tangiara”. A gravura “Tanger”. 325 A planta perspetivada “Tangier” de 1661. 326 As vistas “Prospect of Tangier from the East”, ”Prospect of y Innerpart of Tangier, with the upper Castle from South-East”, “Prospect of Tangier from the S. West” de 1669-1673. 327 “A prospect of Tangier and the Mole before it was demolished” de 1683. 328 “A prospect of Tangier coming from the Westward before it was demolished In Routh, E.M.G., England’s Lost Atlantic Outpost” de 1683. 323 324
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Alçado Este
A vista do alçado Nascente, a mais frequentemente representada, é também a mais problemática no que toca à questão da diversidade de caracterizações. Esta perspetiva do Paço surge na “Tingis Lusitanis Tangiara” (Figura 91 (1)) de Braun, mas também em diversas conceções seiscentistas como a “Tangier” (Figura 91(2)) de Martin Beckman de 1661; a “Prospect of Tangier from the East” (Figura 91 (3)), 1669-1673 de Wenceslau Hollar; a “Tanger” (Figura 91 (4)) de Alain Manesson Mallet de 1683 e a “A prospect of Tangier and the Mole before it was demolished” (Figura 91 (5)) de 1683 de Robert Thacker, onde aparece envolvida pela Cidadela. Na mais antiga (Figura 91 (1)), verifica-se um nivelamento uniforme dos torreões que compõem a estrutura, com exceção de um elemento que figura num plano mais recuado, a Sul. Cada um deles possui platibanda ameada e cobertura autónoma, de onde se elevam várias chaminés. Não apresenta aberturas na parte inferior, mas é rasgado por alguns vãos no estrato elevado, maioritariamente nos dois corpos centrais, de escala superior, incluindo, num deles, uma estrutura semelhante a um balcão, enquanto nos blocos dos extremos apenas pequenos rasgos verticais perfuram a fachada. Avançando mais de um século, a vista “Tanger” (Figura 91 (4)), cujo modelo de execução foi presumivelmente o mesmo da anterior329, apresenta um edifício palatino com uma constituição geral muito semelhante à quinhentista. Porém, desaparece o elemento recuado a Sul e o torreão Norte surge mais elevado que os restantes, possuindo, esses últimos, uma única banda contínua a uni-los, o que transmite a sensação de que seriam sensivelmente complanares. As construções dos extremos são representadas com a mesma expressão, com textura e preenchimento mais escuro, notoriamente diferente dos blocos centrais, indicando,
Figuras 91 Vista Este do Paço representado nas gravuras: (1) “Tingis Lusitanis Tangiara” de Braun; (2) “Tangier” de Martin Beckman de 1661; (3) “Prospect of Tangier from the East”, 1669-1673 de Wenceslau Hollar; (4) “Tanger” de Alain Manesson Mallet de 1683 e (5) “A prospect of Tangier and the Mole before it was demolished” de 1683 de Robert Thacker.
329
DAVEAU, 1999-2000, p. 100.
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possivelmente, uma materialidade distinta. O balcão de Braun também é suprimido330 e entre os dois componentes do meio um outro elemento estreito parece destacar-se para o exterior do plano do alçado, até à base da estrutura, tal como acontece com o bloco de maior altimetria. Com a gravura de Beckamn, “Tangier” (Figura 91 (2)), de 1661, o nível de abstração cresce consideravelmente. Entre as construções dispostas na diretriz do limite oriental do Castelo, há claramente um corpo principal mais elevado, com dois níveis bem diferenciados, apresentando uma divisão central, que estabelece uma espécie de eixo de simetria, dividindo duas grandes aberturas em cima e quatro de menor dimensão em baixo. Aos componentes que se lhe sucedem, a Norte, não é conferida muita pormenorização. Com altura menor, possuem um estrato inferior sem qualquer abertura e um superior segmentado em duas partes desiguais, sendo ambas praticamente encerradas para o exterior. Não são representadas coberturas telhadas nem detalhes de chaminés. É com a vista de Hollar “Prospect of Tangier from the East” (Figura 91 (3)), executada anos mais tarde, que se torna possível extrair dados bastante mais precisos. Para além do Baluarte Sudeste, não considerado por agora, na seção da fachada Nascente visível do Castelo de Cima é possível distinguir-se uma composição compacta, coroada por ameias e merlões, constituída por uma torre elevada e um bloco paralelepipédico mais longo, com apenas quatro grandes vãos para a cidade, seguindo-se, a Norte, um conjunto de construções mais heterogéneo, de linguagem aparentemente diferente. Ao contrário das anteriores, estas não são ameadas mas contêm coberturas de duas águas e aberturas de diversos tamanhos na frontaria. Não são visíveis elementos como o balcão ou as várias chaminés de Braun. Por fim, “A prospect of Tangier and the Mole before it was demolished” (Figura 91 (5)) de 1683 de Robert Thacker, embora com um cariz mais esquemático, exibe um edifício cujas linhas gerais coincidem com as do exemplar de Hollar. Novamente um torreão quadrangular ergue-se a Sul, com dois pequenos vãos, coincidentemente dispostos na mesma posição dos da primeira torre da “Tingis Lusitanis Tangiara” (Figura 91 (1)). Associa-se a este um bloco de maior largura mas altura menor. Os dois componentes são encimados por ameias, sendo a fachada marcada por quatro aberturas de espaçamento regular. Por sua vez, a esta construção, junta-se um elemento mais baixo ao qual o autor não confere grande pormenor. Partindo deste ponto, tendo como base as fontes iconográficas apresentadas e o suporte cartográfico, procede-se à interpretação de elementos comuns ou semelhantes entre si. Principiando a análise de Sul para Norte, em quatro das cinco imagens, é representada uma torre de perfil quadrangular, coroada por ameias, cujo limite setentrional parece produzir uma sombra sobre o bloco adjacente, sugerindo a sua projeção. Na “Tingis Lusitanis Tangiara” (Figura 92 (1)), e na “Tanger” (Figura 92 (2)), a construção possui a mesma altura que os blocos seguintes e apresenta telhado com pendente acentuada. É, contudo, provável que tanto as coberturas de Braun, como as de Mallet, nunca tenham existido exatamente como são ilustradas, contendo certamente influências do imaginário iconográfico de um paço ideal de inícios do século XVI. A estrutura só aparece perfurada por pequenos vãos, semelhantes a seteiras, na gravura de Quinhentos (Figura 92 (1)) e na “Prospect of Tangier and the Mole before it was
O balcão existente na gravura “Tingis Lusitanis Tangiara” desaparece, de facto, embora pareçam existir, na fachada do torreão correspondente, vestígios da sua presença anterior. 330
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demolished” (Figura 92 (4)), sendo o seu posicionamento equivalente em ambas. O facto de não aparecerem no desenho de Hollar ou no de Mallet pode ter que ver com a sua reduzida dimensão ou relevância comparativamente aos restantes vãos. Observando o contorno da muralha antiga presente no “Krigsarkivet 0406:07:009:001”, torna-se clara a correspondência entre o desenho desta torre e o elemento tetragonal que conforma o ponto de encontro entre a fronteira Sul e Este (Figura 93). Avançando para Norte, as dificuldades interpretativas aumentam consideravelmente. Na vista do “Civitates Orbis Terrarum” (Figura 91 (1)), aparecem mais três torres, que o autor coloca em planos distintos, criando a sensação, através da iluminação da vertente Sul das mesmas, de que se destacam gradativamente umas em relação às outras. Possuem coberturas independentes, e todos os blocos são ameados. Na ilustração similar, do “Description de l’Univers” (Figura 91 (4), contam-se os mesmos elementos, mas a torre Norte possui aqui uma altimetria marcadamente diferente e a variação de planos não é tão nítida.
Figuras 92 Torre Sul do Paço assinalada nas gravuras: (1) “Tingis Lusitanis Tangiara” de Braun, (2) “Tanger” de Alain Manesson Mallet de 1683; (3) “Prospect of Tangier from the East”, 1669-1673 de Wenceslau Hollar e (4) “A prospect of Tangier and the Mole before it was demolished” de 1683 de Robert Thacker.
Figura 93 Torreão Sul assinalado no mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001”.
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Primeira hipótese
Numa primeira análise, revelava-se bastante intuitiva a correspondência respetiva de cada torreão de Braun a cada um dos três segmentos demarcados por Hollar na fachada do bloco mais longo. Em ambas as fontes, verifica-se um nivelamento uniforme dos elementos constituintes, as duas “torres” internas detêm poderosos vãos enquanto a setentrional, mais estreita, é encerrada para a cidade. Partindo dessa interpretação, segundo a qual o alçado Nascente do Paço se resumiria à composição com platibanda recortada das vistas inglesas, o confronto com o mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001”, considerando as proporções de cada componente, mostra que, em planta, a fachada corresponderia apenas ao segmento desenhado que, partindo do vértice, termina onde uma nova estrutura irrompe do plano (Figura 94). Hollar segmenta, de facto, o bloco em três partes através de sugestivas linhas ponteadas verticais. No entanto, une esta tríade uma única banda de ameias e merlões, contínua, sem qualquer quebra que aponte uma variação da superfície, remetendo mais para uma fachada complanar do que para três torres desfasadas. Quer tratando-se de subtis componentes decorativos associados a detalhes estruturais do edifício, acrescentos posteriores, contrafortes331 ou o resultado da ação de fatores intrínsecos ao meio332, existe uma incontornável dissonância com a primeira representação perspética deste alçado. Apesar da sua análoga do século XVII, a gravura “Tanger”, ilustrar duas torres centrais conexas por uma única platibanda sem variações, o elemento a Norte, mais alto, apresenta-se visivelmente destacado face aos adjacentes, o que não ocorre no suposto correspondente da “Prospect of Tangier from the East”. É ponto assente que as gravuras de Wenceslau Hollar apresentam, de maneira geral, um rigor muito elevado, pelo que a sustentação desta conjetura dependia da confirmação de uma das seguintes premissas: ou as vistas de Braun e Mallet possuíam uma considerável componente fictícia, contendo um jogo de volumes falacioso, ou durante o intervalo temporal balizado pelas datas de execução dos dois modelos base das imagens, primeira década de Quinhentos e final do terceiro quartel do século XVII, ocorreriam grandes alterações estruturais nesta vertente do Castelo, como a demolição das parcelas proeminentes. A aparente integridade e unidade do bloco, com a permanência da mesma linguagem em toda a fachada afastavam, de certa forma, esta segunda possibilidade. Já a primeira parecia mais admissível: não havendo registos da estadia na praça do provável autor do desenho que serviu de base à “Tingis Lusitanis Tangiara” e à “Tanger”, uma passagem ao largo da baía de Tânger poderia ter proporcionado ao pintor uma impressão um pouco deturpada do edifício existente, prevalecendo a subjetividade das suas prévias referências de Paços portugueses. Ainda assim, esta é apenas uma suposição. Na realidade, persistem diversas questões decorrentes da primeira análise, como a não correspondência do número de vãos ou Como é exemplo o da frontaria do paço de Porto de Mós no qual já há uma coincidência de gostos (tardo-gótico e renascentista). De acordo com Martin Elbl, a prolongada exposição aos agentes atmosféricos adversos poderia, com o decorrer do tempo, interferir no aspeto exterior da construção, sendo as linhas ponteadas possivelmente nada mais do que a representação de marcas da escorrência da água das chuvas na pedra, vinda de pontos especificamente abertos na banda. ELBL, 2013, p. 812-813. 331 332
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as dimensões relativamente reduzidas do edifício, cuja procura de respostas forçava a uma revisão dos dados disponíveis.
Figura 94 Estudo comparativo planta/alçado a fachada Este das gravuras: “Tanger”, “Tingis Lusitanis Tangiara”, “Prospect of Tangier from the East” e “Prospect of Tangier and the Mole before it was demolished” e correspondência do resultado com o mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001”
Figura 95 Correspondência entre os elementos que compunham a fachada Nascente, nas gravuras: “Tingis Lusitanis Tangiara”; “Tanger”; “Prospect of Tangier from the East” e “Prospect of Tangier and the Mole before it was demolished”.
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Apesar de surgir apenas na gravura mais antiga, considera-se que o balcão do Paço tenha de facto existido, tendo em conta uma referência de meados do século XVI, no contexto de uma intervenção no edifício à cota alta, a “hua varanda (…) que vay sobre o Chouriço” 333. Tal como é representado na iconografia consultada, o elemento afigura-se pouco comum no contexto arquitetónico português coevo. Nesta altura, prevaleciam construções resistentes de pedra, destacadas da fachada, geralmente com aberturas no pavimento para permitir o tiro vertical sobre o inimigo, diferentemente do que existiria em Tânger. Na realidade a construção parece ser feita num material diferente, possivelmente madeira, o que justificaria, em parte, o facto de não estar presente na cartografia de Seiscentos. Nas ilustrações de Duarte D’Armas334 relativas ao Castelo de Mogadouro (Figura 97 (1)), a Melgaço (Figura 97 (2)), Monção (Figura 97 (3)) e no palácio de Sintra (Figura 97 (4) e (5)) é possível identificar alguns balcões com características idênticas que auxiliaram na recriação.
Figuras 97 Aproximações das ilustrações de Duarte D’Armas que constam no “Livro das Fortalezas”: (1) Castelo de Mogadouro; (2) Melgaço; (3) Monção; (4) palácio de Sintra (5) palácio de Sintra.
333 A. N. T. T., Códices e Documentos de Proveniência Desconhecida, nº 53, Papéis da embaixada de Inglaterra e da jornada de Castela
sobre a ida da infanta D. Maria, com outros vários, todos do tempo do Senhor Lourenço Pires de Távora, fols. 221v. 334 Ilustrações que constram no seu “Livro das Fortalezas”.
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Figuras 96 (1), (2) e (3) Reconstituição hipotética tridimensional do alçado Este do Paço, de acordo com a primeira hipótese.
Figura 98 Reconstituição hipotética do alçado Este do Paço, de acordo com a primeira hipótese.
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Segunda hipótese
Uma observação atenta do restante setor Este do Castelo no “Prospect of Tangier from the East” de Hollar revelava um novo aspeto pertinente: alguns dos vãos do alçado da edificação imediatamente a Norte do bloco principal apresentavam bastantes semelhanças com a configuração das grandes aberturas deste (Figura 99). A identificação de elementos análogos aproximava cronologicamente as duas construções, à primeira vista incongruentes, colocando em questão a ideia de que a face Nascente da “Casa do Governador”, durante o primeiro estágio, corresponderia apenas ao curto segmento ameado da gravura seiscentista, composto por uma torre e um corpo adjacente. Deste modo, nascia a hipótese de que o bloco de cobertura de duas águas referido pudesse ter integrado o conjunto medievo. Novamente da autoria de Hollar, duas ilustrações de um ponto de vista semelhante mas, ao que tudo indica, executadas em tempos diferentes, a “Prospect of Tangier from the S. E” (Figuras 100) e a “Prospect of y Innerpart of Tangier, with the upper Castle from South-East” (Figuras 101) ofereciam alguns argumentos para o debate em torno deste ponto. Na primeira, cujo conteúdo é, de uma maneira geral, concordante com o apresentado no “Prospect of Tangier from the East” (Figura 99), identifica-se, na fachada Oriental, um conjunto de volumetrias de dimensões variadas, entre as quais se salienta a torre Sudeste, o bloco das quatro janelas e o terceiro corpo, de cobertura telhada, mais baixo. A segunda representação, certamente anterior, mostra, por contraste, um cenário mais despido, sem a maioria das construções que se observam na primeira vista, revelando que se tratariam de acrescentos ingleses. Pressupõe-se que o elemento comum a ambas seria o Paço herdado dos portugueses. Apesar do grau de detalhe ser visivelmente inferior, distingue-se nitidamente o torreão meridional e o bloco adjacente. É possível ainda perceber o apontamento de um outro elemento construído no mesmo alinhamento dos primeiros, que poderia corresponder, de facto, ao terceiro corpo, junto de uma estrutura possivelmente pertencente a uma ponte levadiça de acesso ao Castelo. A confirmação desta correspondência, que seria determinante para o avanço do estudo, é comprometida, contudo, pelo baixo grau de detalhe do desenho nesse ponto específico. No seguimento deste raciocínio, é interessante expor a proposta interpretativa de Martin Elbl para o alçado Nascente335 (Figuras 102 e 103). O autor faz o exercício de confrontar com a base cartográfica mais antiga: o mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001”, separadamente, a fachada retratada no “Tingis Lusitanis Tangiara” e no “Prospect of Tangier from the East”, relacionando as peças que compõem o alçado do Paço com elementos da planta, concluindo que o edifício da vista Este de Hollar é o produto de algumas alterações face à imagem da primeira década de Quinhentos.
335
ELBL, 2013, p. 791-799.
116
Figura 99 Vista Este do Paço “Prospect of Tangier from the East”, 1669-1673 de Wenceslau Hollar
Figuras 100 (1) e (2) Aproximações da vista “Prospect of Tangier from the S. E” de 1669-1673.
Figuras 101 (1) e (2) Aproximações da vista ”Prospect of y Innerpart of Tangier, with the upper Castle from South-East” de 16691673.
117
Quanto à torre meridional, há um consenso na atribuição da sua implantação à construção quadrangular do vértice da planta. Porém, quando a análise avança para Norte, Elbl não hesita em afirmar a correspondência de todo o bloco principal da fachada de Hollar e a segunda torre de Braun, ambas com quatro altos vãos e recolhidas em relação ao bloco adjacente, ao segmento murado do “Krigsarkivet 0406:07:009:001” que parte do torreão Sudeste e finda no ponto a partir do qual uma estrutura se destaca do plano. É precisamente a essa composição projetada para o exterior que o autor faz corresponder as duas torres seguintes do “Domus Praefecti” de Braun. A primeira delas, na qual identifica também um balcão voltado para a cidade, seria, segundo ele, efetivamente, correspondente à edificação de cobertura de duas águas adossada ao bloco principal no “Prospect of Tangier from the East”. Nesta já não consta o balcão, mas permanecem os dois grandes vãos pelos quais se acedia e ainda, como observado por Elbl, vestígios do lintel que o encimava336. Nessa mesma torre, as aberturas de menor dimensão alinhadas verticalmente na metade Sul são associadas a uma possível caixa de escadas de acesso ao Castelo a partir da praça337, que na planta equivaleria à parte mais proeminente da parcela meridional338. De facto, a gravura “Tanger” ilustra, entre a segunda e a terceira torre, uma estrutura estreita que aparenta salientarse do plano da fachada, e se prolonga desde o topo até à base original. Estranhamente, o elemento do antigo “lintel”, no “Prospect of Tangier from the East”, atravessa todo o alçado do bloco. Do componente setentrional da Casa do Governador na “Tingis Lusitanis Tangiara” não há indícios na vista de Hollar, tendo sido, de acordo com o autor, estrategicamente demolido durante a edificação da segunda fase do Castelo de Cima, para desobstruir ângulos de tiro339. Na verdade, este elemento só consta em duas fontes iconográficas: a de Braun e a de Mallet, apresentando em ambas algumas semelhanças com o componente Sudeste do Paço. Na primeira, a tipologia das escassas aberturas é muito idêntica, e na segunda o autor utiliza a mesma expressão para ilustrar os dois blocos opostos. A confirmar-se a correspondência, na cartografia, ao elemento mais saliente da composição, também as suas proporções corroboram uma grande proximidade formal entre os extremos do alçado, sugerindo uma morfologia provavelmente equivalente.
“The large ornate 1507-8 balcony is gone (only the lintel is left) (…).” ELBL, 2013, p. 799. “(…) a vertical stack of windows has appeared in the very corner, suggesting a stairecase.” Ibidem. 338 No mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001”, o segmento do pano murado ao qual Martil Elbl diz corresponder o bloco do balcão possui uma subtil variação da superfície, o que se traduziria numa fachada com dois planos diferentes, o do Sul a projetar-se mais para a frente que o do Norte. 339 ELBL, 2012, p. 799. Este tópico é desenvolvido no subcapítulo seguinte desta dissertação. 336 337
118
Figura 102 Interpretação da proposta de Martin Elbl.
Figura 103 Correspondência entre as várias torres que compunham a fachada Nascente, nas gravuras: “Tingis Lusitanis Tangiara”, “Tanger”, “Prospect of Tangier from the East” e “Prospect of Tangier and the Mole before it was demolished”.
119
A esta hipótese, que trouxe respostas a várias questões pendentes da primeira proposta, opõemse, ainda assim, algumas imprecisões e incoerências. A mais evidente prende-se com o terceiro bloco do Paço: na “Tingis Lusitanis Tangiara” aparece claramente destacado em relação à torre dos quatro vãos, mas no “Prospect of Tangier from the East” a sua posição relativa não é tão clara. Na verdade, na segunda gravura, grande parte da fachada deste elemento parece estar em sombra. Além disso, é visível parte da vertente Norte do corpo principal, também ela em sombra, o que, à partida, sugeriria o recuo da torre do balcão face a este. Elbl, consciente desta aparente dissonância entre representações, contrapõe com a possível existência de um erro de representação, que Hollar procura resolver sobrepondo a cobertura da terceira torre à face Setentrional da segunda340. De facto, uma observação mais atenta revela este detalhe, que, não sendo um indicador incontestável, reaviva a possibilidade de correspondência atrás enunciada. Partindo do pressuposto de que, efetivamente, o terceiro bloco constituinte do Paço avança relativamente ao anterior, importa ainda assim assinalar a incompatibilidade altimétrica entre as várias vistas consultadas. Enquanto na gravura de Hollar e de Thacker a variação de alturas dos blocos constituintes é significativa, na de Braun ela é praticamente inexistente e na de Mallet, apenas o componente mais a Norte se eleva relativamente aos restantes. No entanto, a falta de rigor já referida, daquelas cujo modelo provém de inícios do século XVI, admite que estes dados possam ser erróneos e até manipulados pelo autor. Por exemplo, o facto da torre do balcão surgir com uma banda de ameias e merlões, com a mesma altura da homóloga a Sul, ao passo que na “Prospect of Tangier from the East” possui uma menor altura sem os elementos a rematar o topo, pode ser indício de que no momento da execução do desenho original quinhentista, este setor estaria ainda em construção, forçando o gravurista a “completar” o elemento, ilustrando a sua expectável conformação final. Desprezando também a questão da não correspondência altimétrica, relembra-se que o desgaste do mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001” constitui um grande entrave à leitura clara do seu conteúdo, principalmente da camada alusiva ao perímetro mais antigo. Desta forma, não é possível garantir que a conformação da fachada original fosse exatamente como se presume de acordo com a segunda hipótese. Havendo argumentos pertinentes para ambas as possibilidades e não se conseguindo eleger inquestionavelmente uma e excluir justificadamente outra, prossegue-se a análise considerando válidas as duas hipóteses.
340 “(…) the
balcony block (…) does not seem to “jut out”. This, however, is so only if one does not look carefully enough. The confusion arises out of Hollar’s having run, while engraving, the north façade edge of the main building all way down to base. Only then did he continue with rendering the “balcony” block, balcony-less in 1669. It may not have been Hollar’s etching needle that “slipped” but that of an apprentice or hired assistant. Note that the roof of the “balcony” block in fact overlaps the façade edge-a rather tell-tale sign. Everything is really fine and the “balcony” block does come out towards the viewer as it is supposed to.” ELBL, 2013, p. 798 e 799.
120
Figura 104 (1) e (2) Reconstituição hipotética tridimensional do alçado Este do Paço, de acordo com a segunda hipótese.
Figura 105 Reconstituição hipotética do alçado Este do Paço, de acordo com a segunda hipótese.
121
Alçado Sul
Referentes à constituição da fachada Sul do Paço, existem apenas as vistas do século XVII de Wenceslau Hollar: “Prospect of Tangier from the S. E” (Figura 106 (1)), ”Prospect of y Innerpart of Tangier, with the upper Castle from South-East” (Figura 106 (2)) e “Prospect of Tangier from the S. West” (Figura 106 (3)). A torre quadrangular Sudeste corresponde novamente ao elemento de maior altimetria do conjunto visível. Junta-se a ela, a Oeste, um outro elemento bastante idêntico, de menor altura, mas largura semelhante. Ambos apresentam um estreito vão no mesmo ponto da fachada, no nível superior, ao centro. Ao contrário do primeiro, este componente não parece ser ameado, contento apenas uma cobertura telhada (Figura 107). Esta constatação remete para um pormenor constituinte da vista “Tingis Lusitanis Tangiara”. A Sul da respetiva torre Sudeste da fachada quinhentista, um apontamento de uma construção de menor estatura surge, num plano mais recuado, agregado à primeira. Seguramente um elemento integrante da fachada meridional do Paço, aparece sem qualquer banda recortada, mas contendo telhado, destacando-se relativamente à face do torreão do vértice. De facto, a linha comum a todas as gravuras de Hollar que intencionalmente diferencia os dois elementos, indicia uma variação entre superfícies. De acordo com a gravura de Braun, a segunda torre, considerando uma análise de Este para Oeste, avançaria face à primeira. Neste ponto específico, o mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001” (Figura 108) não é claro. À primeira vista, um elemento de proporções idênticas ao torreão do ângulo parece avançar para Sul relativamente a ele, porém a coincidência deste componente com uma mancha do desenho compromete esta observação. Uma aproximação sugere uma diferente leitura: após conformar o contorno tetragonal do vértice, o perímetro parece afinal recuar seguindo para Ocidente na mesma direção 341. Tornava-se, deste modo, indispensável consultar outros recursos visuais que permitissem responder à questão levantada. A maioria das fontes cartográficas seiscentistas representa simplificadamente uma fachada lisa na vertente Sul do Paço, exceto duas: o mapa A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês, (MPH 1_1_25) (Figura 109 (1)), de 1676 e o mapa Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger, (MPH 1_1_54) (Figura 109 (2)), de 1683, contendo ambas o elemento proeminente. A sobreposição dos dois mapas com a cartografia atual levanta a possibilidade dos limites do segundo componente da fachada Meridional coincidirem com os da atual Bab el-Assa342 (Figuras 110 e 111). Apesar de apenas um estudo arqueológico poder comprovar esta correspondência, ela figura-se bastante provável, constituindo um indicador de que a torre se destacava relativamente à análoga do vértice.
341Esta
segunda interpretação coincide com a de Martin Elbl. ELBL, 2013, p. 811. A correspondência não é exata em nenhum dos casos, porém a localização e proporções aproximadas tornam essa possibilidade plausível. 342
122
Figuras 106 Aproximaçôes ao Paço nas vistas: (1) “Prospect of Tangier from the S. E”; (2) ”Prospect of y Innerpart of Tangier, with the upper Castle from South-East”; (3) “Prospect of Tangier from the S. West” de 1669-1673.
Figura 107 Correspondência entre as várias torres que compunham o alçado Sul nas gravuras: “Prospect of Tangier from the S. E”; Aproximação da vista ”Prospect of y Innerpart of Tangier, with the upper Castle from South-East”; Aproximação da vista “Prospect of Tangier from the S. West” de 1669-1673.
Figura 108 Aproximação do mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001”.
Figuras 109 (1) e (2) Aproximação da vista o mapa A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês, (MPH 1_1_25), de 1676 e o mapa Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger, (MPH 1_1_54).
123
O terceiro e último componente visível nas três gravuras seiscentistas é um pouco mais extenso e mais baixo que os anteriores. Está dividido em dois níveis bem demarcados. No superior surge também um vão e a cobertura telhada apresenta, curiosamente, três mansardas regularmente espaçadas (Figuras 112). Esta característica não se identifica em Paços portugueses coevos. O habitual rigor de Hollar descartava a possibilidade de se tratarem de itens fictícios adicionados por este, pelo que, muito provavelmente, a sua origem não remontaria ao intervalo 1471-1661. Esta constatação levantava a hipótese de que este terceiro elemento do alçado meridional, ou pelo menos o seu estrato superior tivesse sido uma adição britânica343. Esta suspeita é corroborada pela cartografia do século XVII, que não apresenta nenhum elemento adjacente à segunda torre.
Figuras 110 Sobreposição da cartografia atual, onde se encontra destacada a Bab el-Assa, com os mapas: (1) A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês, (MPH 1_1_25); (2) Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger, (MPH 1_1_54).
Figuras 111 (1) Planta atual da Bab el-Assa); (2) Bab el-Assa, Tânger, Fotografia de Julho de 2017.
Figuras 112 (1), (2) e (3) Aproximação das vistas “Prospect of Tangier from the S. E”; da ”Prospect of y Innerpart of Tangier, with the upper Castle from South-East” e da “Prospect of Tangier from the S. West” de 1669-1673.
“The Castle [Castelo de Cima], (…) his Excellency repaired so as, at an easy charge, to make it a house convenient and honourable for the character he had of Governor and General (…).” CHOLMLEY, Hugh Sir 4th Baronet - An account of Tangier. 1787, p. 78 in ELBL, 2013, p. 780. 343
124
Figura 113 Reconstituição hipotética tridimensional do alçado Sul do Paço, durante a primera fase.
Figura 114 Reconstituição hipotética do alçado Sul do Paço, durante a primeira fase.
125
Alçados Oeste e Norte
Contrariamente ao que acontece para os alçados anteriores, não existem representações tridimensionais das faces Poente e Norte em verdadeira grandeza. Pequenos segmentos transversais são visíveis nas gravuras de Hollar “Prospect of y North side of Tangier regarding the mayne sea from the hill as you come from Whitby or the West, towads the Towne”de 1669 (Figura 115 (1)), na “Prospect of Tangier from the S. West” (Figura 115 (2)) e na “A prospect of Tangier coming from the Westward before it was demolished In Routh” (Figura 115 (3)) de Thomas Phillips de 1683, onde diversas construções existentes no interior da Cidadela aparecem em planos mais próximos, ocultando consideravelmente o Paço, identificando-se apenas o topo de alguns elementos que o constituíam, particularmente o torreão Sudeste, elevado relativamente ao conjunto. Também a vista aérea “A Mapp of the Citty of Tanger with the Straits of Gibraltar” (Figura 116) de Sir Jonas Moore e Hollar (1664 ou 1666) bem como as reproduções posteriores, mostram parcialmente o alçado ocidental e inteiramente o suposto alçado setentrional da “Residência do Governador”. Porém, a representação de um bloco compacto e sem quaisquer variações altimétricas denuncia um edifício totalmente estilizado, onde a morfologia real foi certamente adulterada, não contribuindo, portanto, com dados fiáveis para tecer uma hipótese de reconstituição. Apesar disso, a sua simetria pode constituir um indício de uma possível semelhança entre as fachadas opostas Sul e Norte. Da ilustração transparece ainda a sensação de que, tal como a fachada Nascente que, sobranceira à cidade, transmitia a imponência do edifício a quem o avistasse à cota baixa, à fachada Oeste competia representar a imagem principal do Paço obtida a partir do interior do Castelo. De igual forma, as fontes bidimensionais não se revelam suficientemente esclarecedoras para a determinação dos desenhos dos alçados. O mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001”, base de análise para os anteriores, não contém os contornos dos limites Poente e Norte da construção palatina e embora o acervo cartográfico do século XVII se mostre bastante unânime quanto ao recorte das fachadas Oeste e Norte, é omisso quanto a detalhes sobre a sua composição ou informações altimétricas. Somente a A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25) (Figura 118), de 1676, parece assinalar diferentes elementos constituintes do Paço, embora de forma muito esquemática344. O autor delimita quatro espaços, três dos quais com o que se entende ser a sua codificação para áreas construídas. A um corpo longo e estreito coincidente com a fronteira Este do Castelo, anexam-se, para Ocidente: um mais curto e mais largo na metade Norte, e outro de menores dimensões a partir da metade Sul. Não contendo legenda para estes espaços, é impossível garantir que todos os componentes se tratariam de estruturas presentes no edifício original, podendo tratar-se de acrescentos posteriores. Quanto ao alçado Norte, é evidente que a sua morfologia estaria necessariamente dependente do desenho da fachada Nascente, para a qual se apresentam duas hipóteses distintas. De facto, uma leitura crítica das fontes inglesas não é suficiente para formular hipóteses criteriosas para estes alçados.
A simplificação da representação do Paço no mapa A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25), de 1676 é percetível pela ausência de variações na fachada Nascente. 344
126
Figuras 115 Aproximações das vistas (1) “Prospect of y North side of Tangier regarding the mayne sea from the hill as you come from Whitby or the West, towads the Towne”de 1669; (2) “Prospect of Tangier from the S. West”; (3) “A prospect of Tangier coming from the Westward before it was demolished In Routh” de Thomas Phillips de 1683.
Figura 116 Aproximação do “A Mapp of the Citty of Tanger with the Straits of Gibraltar” de Sir Jonas Moore e de Wenceslau Hollar, 1664 ou 1666.
Figuras 117 Aproximações (1) ”Description of Tanger” de 1663; (2) “Map of Tangiers”, F0298 nº3, de 1664, Bernard Gomme; (3) A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25), de 1676, Kuye (4) Fortificação da praça e contexto envolvente, IMG_3670, datada de 1676/1677; (5) Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger (MPH 1_1_54), de 1683.
Figura 118 Aproximação à representação do edifício do paço no mapa A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25), de 1676, Kuye
127
Figuras 119 (1) e (2) Reconstituição hipotética tridimensional do Paço, durante a primera fase, de acordo com a primeira hipótese de conformação
Figura 120 Reconstituição hipotética tridimensional do Paço, durante a primera fase, de acordo com a segunda hipótese de conformação.
A construção palatina assentava sobre as próprias muralhas, fazendo com que, vista de Este e de Sul desde a cidade, parecesse ainda mais imponente, pois à sua altura acrescia-se a do alto muro sob si, não apresentando quaisquer aberturas no estrato inferior (Figuras 119 e 120). É provável que possuísse pelo menos dois pisos. Embora isso não seja claro a partir das representações iconográficas, os edifícios de carácter nobre continham, invariavelmente, no mínimo, um piso térreo, de serviços, e um segundo piso – piso nobre. Martin Elbl sugere a correspondência da localização da “Sala Grande do Castelo”345 ao corpo principal onde se dispõem as quatro grandes janelas346, com pé-direito muito alto, ocupava uma posição central no conjunto era comum em diversos Paços tardo-góticos europeus.
345 346
MENEZES, 1732, p. 41. ELBL, 2013, p. 808.
128
2.2.1.2 – Cerca envolvente
Figura 121 Subdivisão do estudo do perímetro do Castelo de Cima da primeira fase em quatro frentes: Este, Sul, Oeste e Norte.
Além do Paço, uma considerável área adicional era envolvida pela cerca torreada do Castelo de Cima. No entanto, nenhuma fonte visual ou escrita fornece indícios relativos a quaisquer componentes albergados no seu interior durante a primeira fase347. A perspetiva de Braun ilustra apenas um espaço descampado com algum declive, sem construções visíveis. O caso difere para a constituição das muralhas circundantes, que a Norte e a Poente delimitavam a própria urbe e a Sul e a Nascente representavam tramos que arrancavam da construção palatina. “As torres das cercas, tanto nas do castelo como da vila, tinham de ser mais altas que as muralhas em que se integravam pois que, além de flanquearem, isto é, defenderem a face dos mesmos muros ou cortinas, tinham de servir de reduto, quando os inimigos se instalassem no adarve das mesmas cortinas.”348
O estudo do desenho da cerca da fase Medieval debruça-se maioritariamente sobre o mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001”, uma vez que esta fonte cartográfica contém o traçado dos limites do Castelo de Cima anteriores à adição da Cidadela. Para melhor compreensão da morfologia e componentes dos vários tramos, subdivide-se a exposição do estudo em setores (Figura 121). Pode apenas especular-se sobre o tema com base nas descrições respeitantes à fase seguinte do Castelo de Cima. Sabe-se que em inícios do século XVII no interior do perímetro “(…) estao as casas dos generais, e tem dentro en sy moradores, casas, ruas e agoa ainda que pouca e nao muy boa, quintais de aruoredo (…).” DORNELLAS, 1913-23, II, p. 87-88. Há também menção a uma ” Praça do Castelo” onde a 6 de Novembro de 1644 “ (…) aberta a porta [do Castelo], reuniu a gente.” MENEZES, 1732, p. 159. Perante estes dados referentes ao conteúdo da Cidadela, é admissível, embora nenhum registo o comprove, que na primeira fase já se encontrassem presentes alguns desses elementos, como dependências militares ou os pomares descritos. 348 DIAS, Pedro- A Arquitetura Manuelina. Edições Civilização Comemorativas dos Descobrimentos Portugueses, 1988, p. 235. 347
129
Frente Este
Não restam dúvidas de que a frente Este do Castelo de Cima era protagonizada pela presença do Paço residencial na parcela Sul da mesma. Contudo, outros elementos compunham a fração restante, os quais era necessário analisar, para se poder reconstituir a imagem da primeira fase da fortificação. A gravura “Tingis Lusitanis Tangiara” (Figura 122), que ilustra a cidade antes das obras modernas, mostra este setor incompleto, questionando-se se estaria em construção ou reforma no momento da elaboração do desenho que lhe serviu de modelo. Não sendo possível atestar nenhuma das hipóteses, e reconhecendo-se a falta de rigor desta fonte, deixa-se esta questão em aberto e concentra-se a análise no mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001” (Figura 123 (1) e (2)), onde este segmento surge na íntegra. Representados a traço leve349, são distinguíveis três torreões poligonais destacados da diretriz da metade setentrional da muralha (E1, E2 e E3). Não sendo evidente no desenho, considera-se provável que o que remata a interseção entre os panos murados Norte e Este (E1) fosse uma torre quadrangular de maiores proporções, tal como acontece em outros pontos do conjunto350. Quanto à metade Sul, duas possibilidades se colocam, de acordo com as duas hipóteses de constituição do alçado do Paço. Considerando a primeira, segundo a qual a fachada do edifício terminaria no ponto onde, no mapa, o muro quebra e se projeta para o exterior, a complexa estrutura adjacente, a traço suave, constituía a principal dúvida interpretativa. A identificação de um outro elemento inserido no perímetro do complexo exibindo algumas semelhanças com aquela construção, claramente uma porta para o exterior- a Porta da Traição351 (Figura 124)-, constituía um indício de que esta se trataria também de uma entrada em cotovelo, composta por dois elementos estrategicamente conectados para permitir a sua defesa (E4). Esta suspeita é reforçada pelo facto de não se distinguirem quaisquer outros acessos ao Castelo a partir da cidade. Considerando a segunda hipótese, a estrutura destacada no mapa seria parte integrante da constituição o Paço. Contudo, esta conjetura também admite a possibilidade de um acesso ao Castelo de Cima nesta frente. Conhecendo-se o posicionamento da “Castle Gate” do período inglês (Figura 125), é concebível que se situasse no mesmo ponto, mas que se tratasse de uma porta de entrada direta e, dessa forma, não se identificasse na sobreposição de estratos do mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001” (Figura). Martin Elbl defende, no entanto, que o acesso ao Castelo se faria a partir do próprio edifício, através do elemento mais saliente do seu alçado, mencionando o exemplo de Alcácer Ceguer352, onde os portugueses adaptaram uma das complexas portas islâmicas herdadas para uso civil353. Não havendo outras fontes visuais ou escritas que permitam eleger uma das hipóteses, opta-se pela representação da conjetura de Elbl. Estruturas representadas a traço mais leve no mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001” foram Interpretadas anteriormente como sendo precedentes da Cidadela. 350 Torreões quadrangulares localizados nos pontos de conexão de muralhas de direções diferentes verificam-se para o vértice Noroeste e Sudeste da primeira fase do Castelo de Cima. 351 Este elemento constituinte da muralha Setentrional será alvo de um estudo mais aprofundado, quando se abordar o Setor Norte do Castelo de Cima. 352 ELBL, 2013, p. 560. 353 CORREIA, 2006, p. 152. 349
130
Figura 122 Aproximação da gravura “Tingis Lusitanis Tangiara” de Braun.
Figuras 123 (1) e (2) Aproximações ao setor Este do Castelo de Cima representado no mapa Krigsarkivet 0406:07:009:001.
Figura 124 Aproximação à Porta da Traição no mapa Krigsarkivet 0406:07:009:001.
Figura 125 Aproximação ao acesso ao Castelo de Cima a partir da muralha Nascente no “Map of Tangiers” de Bernard Gomme, legendada como “Castle Gate”.
131
Figura 126 Planta da reconstituição hipotética da frente Este do Castelo de Cima da primeira fase, de acordo com a primeira hipótese de conformação do Paço.
132
Figura 127 Planta da reconstituição hipotética da frente Este do Castelo de Cima da primeira fase, de acordo com a segunda hipótese de conformação do Paço.
133
Frente Sul
Embora o “Domus Praefecti” da perspetiva de Braun oculte inteiramente a cortina defensiva meridional, o mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001” (Figuras 128) é muito claro quanto à sua morfologia bidimensional e constituição. Após definir os contornos do Paço, anteriormente explicitados, a muralha prolonga-se para Oeste, seguindo a mesma direção, até encontrar uma construção de perfil quadrangular (S6). A partir daí, o desenho ilustra uma ténue mudança no sentido do muro. A sentidos diferentes correspondem tipologias de torreões distintas. Cinco cubelos retangulares (S1, S2, S3, S4 e S5) com um distanciamento sensivelmente regular, de aproximadamente 11m (5 braças), surgem dispostos na parcela Este, imediatamente a seguir à “Casa do Governador”. A restante fração de muralha dessa direção não apresenta nenhum elemento agregado, contudo, nada invalida que tenha possuído anteriormente. Não se conhecendo outros dados, representam-se somente os cubelos ilustrados na cartografia. O segundo trecho de muro é pontuado por duas torres semicirculares (S7 e S8), de proporções idênticas às dos muros do atalho quatrocentista (Figuras 130), cerca de 2 braças de diâmetro. A dúvida surge no momento em que o traçado da muralha Sul termina inesperadamente, na cartografia, quando se aproxima da representação das estruturas de reforço defensivo dos limites Ocidentais354. Não se conectando com elas, a demarcação da cerca medieval deixa de existir, o que não acontece por exemplo quando esta intersecta os grandes baluartes Nordeste, Sudeste e Sudoeste, não se conseguindo assegurar como o troço original continuaria355. Não havendo quaisquer pistas em fontes visuais ou documentais posteriores, a sobreposição com o mapa atual demonstra que, desse muro, subsiste apenas um dos antigos torreões, adaptado para um novo uso, um forno público – “Hadj Tahar”356 (Figuras 129). O cenário que se afigura mais provável é o prolongamento da muralha, seguindo o mesmo sentido, até encontrar a fronteira Oeste. De facto, a sua extensão, de acordo com a fonte cartográfica mais antiga, sugere o seu encontro com a cerca num ponto específico, um torreão de maior escala e base polifacetada (A1), o que favorece a teoria apresentada (Figura 131)
Considerando que a verificação da primeira ou da segunda hipótese de conformação do Paço não interferem com a morfologia da muralha Sul, nem das que se analisarão em seguida, opta-se por representar nos desenhos somente uma delas, neste caso a segunda possibilidade.
O estudo da adição desta plataforma de artilharia é feito mais à frente, neste capítulo. A justificativa mais provável para a omissão é que, no momento da execução do mapa, esse segmento do pano murado já não existia, derrubado para a construção da plataforma de artilharia “A plausible reading might be as follows: when Krigsarkivet no. 0406:07:009:001 was prepared sometime before June 1564, the basic structural reinforcement of the north-west land-front (with its broad artillery platform) was already in place, and in that sector the old walls had thus been torn down.” ELBL, 2012, p. 12. 356 CORREIA, 2014, p. 4. 354 355
134
Figuras 128 (1) e (2) Aproximações ao setor Sul do Castelo de Cima representado no mapa Krigsarkivet 0406:07:009:001.
Figuras 129 (1) Torreão do segmento Oeste da muralha Sul do Castelo de Cima, adaptado e transformado em forno público Hadj Tahar. Fotografia captada em Março de 2017; (2) Sobreposição de um segmento do mapa “Krigsarkivet nº 0406:07:009:001” com a cartografia da cidade atual, de se identifica vestígios de uma das torres da muralha Sul.
Figura 130 (1) Torreões semicirculares da muralha do Castelo de Cima, onde se percebe uma sobreposição estratigráfica. Fotografia captada em Março de 2017; (2) Aproximação à gravura seiscentista “Prospect of Tangier from S. West” de Wenceslau Hollar.
Figura 131 Aproximaçãp ao setor Sudoeste do Castelo de Cima no mapa Krigsarkivet 0406:07:009:001.
135
Figura 132 Planta da reconstituição hipotética da frente Sul do Castelo de Cima da primeira fase.
136
Frente Oeste
A partir da torre de base polifacetada (A1), as fronteiras do Castelo passam a corresponder aos limites da cidade. Apesar de na gravura “Tingis Lusitanis Tangiara” (Figura 133) parte do setor Oeste se encontrar ocultado pela estrutura correspondente ao “Domus Praefecti”, a parcela visível enuncia uma conformação manifestamente diferente de todas as fontes iconográficas posteriores. O segmento ilustrado na perspetiva quinhentista corresponde, presumivelmente, à primeira estruturação dessa frente do tempo português357, onde o único torreão visível, integrante do tramo, se assemelha aos que pontuam a muralha de atalho. É interessante analisar ainda o tipo de construção que surge destacada no ponto de conexão com a fronteira Norte, comum à vista de Mallet: um torreão de perfil aparentemente cilíndrico sobre o qual se eleva um outro elemento vertical, ao que tudo indica um engenho de sinalização (Figuras 135). Nas gravuras, esta estrutura implanta-se na posição mais elevada do perímetro da cidade, local onde, simultaneamente, se avistaria toda a vertente Norte e frente marítima, e uma grande parte da fronteira terrestre da praça, tornado evidente a sua função de controlo. “Na Torre mais alta do Castello se levanta outra pequena, e quadrada, em que assiste huma vigia, ou facheiro com hum sino, em que faz sinal do que se vê no mar, ou no campo; dá rebates, e seguro com badaladas diferentes; está no alto hum mastro ou facho com hum modo de sesto, ou canastra sem fundo, coberto com um pano e preso a uma roldana (...). Quando está em cima, é sinal de que o campo (…) está seguro e guardado pelas torres de vigia; e quando baixa a meio, indica que a gente deve recolher-se.”358
Figura 133 Aproximação à representação do Castelo de Cima na gravura “Tingis Lusitanis Tangiara” de Braun.
Figuras 134 Aproximações à representação da muralha Noroeste: (1) na gravura “Tingis Lusitanis Tangiara” de Braun; (2) na gravura “Tanger” de Mallet.
Presume-se que o desenho original, que serviu de modelo à gravura “Tingis Lusitanis Tangiara”, remonte à primeira década do século XVI. 358 MENEZES, 1732, p. 41. 357
137
Perante esta observação, é bastante sugestivo estabelecer uma correspondência entre a estrutura dos desenhos e a “Torre mais alta do Castello” de D. Fernando de Menezes, considerando a referência à altura não uma alusão às dimensões do elemento, mas sim ao seu posicionamento cimeiro, que favoreceria o desempenho da função de vigia. A referência de Suzanne Daveau à torre do Facho de Arzila: “alto mastro, ao longo do qual se maneja um cesto, que significava paz quando se encontrava no topo e que se deixava descer em caso de perigo permitindo assim que o sino da Torre principal avisasse logo os habitantes da cidade”359 parece corresponder à descrição da dita torre de Tânger, atestando a sua finalidade.
A morfologia deste componente associado ao vértice Noroeste não consta em mais nenhuma fonte documental posterior360. Apesar de, numa leitura atenta aos mapas “Krigsarkivet 0406:07:009:001” (Figura 135 (1)) e “Planta de Tangere” (Figura 135 (2)), se identificarem duas construções semicirculares nas imediações do local em questão, uma delas parece completamente externa à cerca medieval do Castelo, e a outra integra o limite Setentrional, o que a distancia do prolongamento da muralha da frente terrestre. Martin Elbl levanta ainda a suspeita de que a torre das gravuras, considerando a sua falta de rigor, pudesse ter pertencido a uma couraça, não compondo o vértice361, mas implantando-se nas proximidades do mesmo, embora mais nada o possa comprovar. Certa é a intenção de evidenciar este elemento por parte do autor do desenho original, demonstrando a sua importância no perímetro defensivo. Não obstante, havia uma rutura do sentido da muralha Sudoeste, de forma a fechar o perímetro da fortificação. A partir das referências anteriores, o “Krigsarkivet 0406:07:009:001” e a “Planta de Tangere”, comprova-se que o contorno Oeste se iniciaria com um segmento do muro de atalho362 que se prolongaria para Norte até mudar ligeiramente de direção (Figura 136). É provável que o ponto da quebra tenha sido conformado por uma torre (O1), como acontece sempre que há variações de sentido dos muros da cidade, mas que a construção da plataforma a tenha demolido, não sendo ilustrada nas cartografias. Pensa-se que a continuação do limite Ocidental correspoderia à muralha ilustrada em ambos os mapas contendo dois torreões (O2 e O3) de dimensão e desenho semelhantes aos que se verificam em outros segmentos perimetrais da fase inicial, cerca de 4m, com o espaçamento também análogo, largura da muralha equivalente e expressão similar. Esta cortina terminaria num torreão quadrangular (O4), integrante de uma estrutura posterior na cartografia363. Configurando o ângulo Noroeste, na posição mais alta, dele partiria o muro Setentrional. Desta forma, não se conseguindo comprovar a veracidade da torre alegadamente cilíndrica, admite-se que a estrutura de Braun e Mallet tenha sido, na realidade, quadrangular, correspondendo a este componente. Esta “Torre mais alta do Castello (…) em que assiste huma vigia, ou facheiro com hum sino,” seria, certamente, a primeira Torre do Sino do Castelo de Cima.
DAVEAU, 1999-2000, p. 89. ELBL, 2013, p. 308. É exceção a gravura “Tanger” de Mallet, que se presume ter sido baseada no mesmo original da “Tingis Lusitanis Tangiara”. 361 Idem, p. 307. 362 Embora não seja possivel garantir que a curta parcela de atalho referida, sem torreões, não tenha sofrido alterações aquando da construção da plataforma, considera-se para a reconstituição a morfologia apresentada, uma vez que não existem outros dados sobre essa parte da cerca. 363 Analisar-se-à a estrutura que engloba o torreão mais à frente neste capítulo. 359 360
138
Figuras 135 Identificação das estruturas semicirculares: (1) na gravura “Krigsarkivet 0406:07:009:001”; (2) na “Planta de Tangere”.
Figura 136 Aproximação à muralha Oeste no mapa Krigsarkivet 0406:07:009:001
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Figura 137 Planta da reconstituição hipotética da frente Oeste do Castelo de Cima da primeira fase.
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Frente Norte
Como já referido, a muralha Norte correspondia simultaneamente ao limite do Castelo e da cidade, contorno urbano provavelmente inalterado, beneficiando dos condicionamentos topográficos, desde a edificação da Tânger “nova” islâmica364. Na gravura de Braun “Tingis Lusitanis Tangiara” (Figura 138 (1)) e na “Tanger” (Figura 138 (2)) de Mallet a muralha setentrional desce a encosta até ao Castelo Novo, seguindo uma direção constante que apenas quebra a dada altura mas prossegue paralelamente no mesmo sentido. Não são representados torreões ao longo de toda a extensão de muralha, mas verificase a existência de um adarve que continua para o setor Oeste da cerca limítrofe da fortificação e da praça. Esta é, claramente, uma representação muito simplificada do pano murado, não corroborada por nenhuma outra fonte, pelo que se afasta a possibilidade de ter havido um momento em que a muralha se encontrava totalmente desprovida de cubelos. Desta maneira, é novamente o mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001” (Figura 139) que se apresenta como base para a análise desta frente. O pano de muralha que partia do torreão quadrangular do vértice Noroeste (O4) e se prolongava para Este, aparece, no desenho, com uma ligeira quebra na sua direção, à semelhança da muralha Sul. Desta vez, a rótula coincide com um torreão semicircular (N2) com aproximadamente 5m de diâmetro. A porção Oeste possuía mais um torreão tetragonal (N1) a uma curta distância do elemento que conformava o ângulo e após a subtil mudança de sentido aparecem mais cinco torres (N3, N5, N6, N7 e E1) também quadrangulares, uma das quais a Ocidente (N3) e as restantes a Oriente (N5, N6, N7 e E1) de uma estrutura bastante detalhada pelo autor anónimo: uma porta em cotovelo (N4). A expressão gráfica ministrada a
Figuras 138 Aproximações à representação da muralha Norte (1) na gravura “Tingis Lusitanis Tangiara” de Braun; (2) na gravura “Tanger” de Mallet.
Figura 139 Aproximação do mapa Krigsarkivet 0406:07:009:001, onde é visível toda a extensão da muralha Norte.
364
CORREIA, 2006, p. 180.
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esta muralha, diferente das homólogas correspondentes à primeira fase de outros setores, com um traço mais carregado e preenchimento, não intersetando elementos da fase seguinte, é indício de que permaneceria praticamente inalterada, conservando-se a maioria dos componentes que a integravam365. Através da iconografia do período inglês é ainda possível inferir sobre a configuração tridimensional da cerca Setentrional da primeira fase. Tendo em conta as alterações de que foi alvo a muralha366, a “A prospect of Tangier coming from the Westward before it was demolished” (Figura 140) de Thomas Phillips e “Prospect of y North side of Tangier” (Figura 141) de Wenceslau Hollar, possibilitam a retirada de alguns dados altimétricos. As mesmas fontes e ainda a “Tangier” de Martin Beckman e a “A Mapp of the Citty of Tanger with the Straits of Gibraltar” de Sir Jonas Moore informam que os cubelos seriam coroados por ameias e merlões e mais altos que cortina adjacente, perfurada por seteiras.
Figura 140 Aproximação do “A prospect of Tangier coming from the Westward before it was demolished” de Thomas Phillips.
Figura 141 Aproximação do “Prospect of y North side of Tangier” de Wenceslau Hollar.
O papel defensivo que desempenha, por si só, a vertente acentuada sobre a qual assenta todo o pano fortificado, pode ter sido o fator decisivo que pesou na escolha da manutenção da muralha inicial. 366 A análise das várias fontes cartográficas do período inglês demonstrou que foram derrubados dois cubelos da muralha da primeira fase do Castelo de Cima, algures durante o intervalo temporal que decorreu desde a execução do original do “Krigsarkivet 0406:07:009:001” até à ocupação britânica. O estudo desta evolução encontra-se mais à frente neste capítulo. 365
142
Figura 142 Reconstituição hipotética tridimensional dos limites Sul e Norte do Castelo de Cima durante a primeira fase.
Figura 143 Planta da reconstituição hipotética da frente Norte do Castelo de Cima da primeira fase.
143
O elemento com maior protagonismo deste limite, quer pela sua escala quer pela complexidade que apresenta, é o único ponto de permeabilidade de todo o setor Norte: a porta em cotovelo mencionada anteriormente. Trata-se da “Porta da Traição”367 (N4) citada em diversas fontes documentais, adjetivada como “(…) estreita e cheia de obstáculos (…).”368 e representada em todos os recursos visuais que ilustram a perspetiva setentrional do Castelo. Com exceção da Tingis Lusitanis Tangiara”369 e da “Tanger”, os desenhos disponíveis são bastante unânimes ao apresentar uma estrutura constituída por dois elementos distintos: duas torres de diferente configuração e altimetria, cuja disposição obrigava a um percurso “em linha quebrada”370 até alcançar o interior, permitindo um maior controlo da passagem. A uma torre quadrangular regular destacada do plano murado, para a qual se abre uma passagem desde o interior, é adicionada uma segunda, retangular, um pouco mais estreita. Entre ambas estabelece-se um ponto de atravessamento e a segunda permite o acesso ao exterior371. Não se consegue determinar se foram abobadadas ou não. O mais lógico seria que pelo menos a mais baixa fosse descoberta, permitindo o disparo de fogo a partir da torre adjacente e adarve Norte372. O mapa Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger (MPH 1_1_54) (Figura 144 (8)) e aparentemente também a “Planta de Tangere” (Figura 144 (2)), do Atlas del Marqués de Heliche, ilustram umas escadas junto à porta, possibilitando a ascensão ao caminho de ronda a partir daquele ponto.
Figuras 144 Aproximação à Porta da Traição nas gravuras: (1) “Krigsarkivet 0406:07:009:001” (2) “Planta de Tangere” (3) ”Description of Tanger Mappe” imp pb, dg (cf. 2) de 1663 (4) “Map of Tangiers”, F0298 nº3, de 1664, Bernard Gomme; (5) Limites fortificados de Tanger (IMG_3676) de 1678; (6) A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25), de 1676, Kuye (7) Fortificação da praça e contexto envolvente (IMG_3670), datada de 1676/1677; (8) Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger (MPH 1_1_54), de 1683;
MENEZES, 1732, p. 39, 61, 65. “(…) a porta que disem da trejsão pela qual se uay ao campo alguas veses (…).” DORNELLAS, 191323, II, p. 88. 368 “O Conde [D. Rodrigo da Silveira, Conde de Sarzedas] (…) quis retirar-se, mas como a entrada da porta da Traição, por onde saíra, era tão estreita e cheia de obstáculos, foi grande a confusão e a desordem. Uns impediam a outros (…) e cada um queria ser o primeiro a entrar na cidade.”. MENEZES, 1732, p. 152. 369 Na realidade, na gravura “Tingis Lusitanis Tangiara” parece constar a representação de uma porta na muralha Norte, contudo sem toda a estrutura torreada constituinte do acesso ilustrado em todas as outras fontes visuais. 370 DIAS, 1988, p. 236. 371 Reentrâncias no desenho sugerem batentes para o encaixe de 3 diferentes portas. “The masonry jambs and recesses recorded in Krigsarkivet no. 0406:07:009:001 (discernible at high magnification) make two and probably three discrete sets of gates likely.”ELBL, 2012, p. 29. 372 Consultar ELBL, 2012, p. 29. 367
144
Figuras 145 Aproximação à representação tridimensional da Porta da Traição nas gravuras: (1) “Tangier” de Martin Beckman de 1661, (2) “A prospect of Tangier and the Mole before it was demolished” de 1683 de Robert Thacker.
Figuras 146 (1) Planta de coberturas da reconstituição hipotética da Porta da Traição (N4), inserida na frente Norte do Castelo de Cima; (2) Planta à cota 62 da reconstituição hipotética da Porta da Traição, inserida na frente Norte do Castelo de Cima.
Figura 147 Reconstituição hipotética tridimensional da Porta da Traição, inserida na frente Norte do Castelo de Cima.
145
“Porta do Castelo” “(…) Para além destas portas [do Mar e do Campo], há as da Traição e do Castelo (…).”373.
No decurso do estudo do perímetro da primeira fase Castelo de Cima, retoma-se a discussão da existência de uma saída da fortificação para o exterior, além da anteriormente referida estrutura em cotovelo. É nas crónicas portuguesas descritivas das várias tentativas de conquista de Tânger que aparecem as primeiras menções a uma “porta do Castello” 374 árabe. Porém, como já referido, não são reveladas quaisquer pistas que permitam calcular o seu posicionamento, abrindo-se um leque de inúmeras possibilidades, podendo a sua localização, inclusivamente, corresponder à posteriormente designada Porta da Traição375. Avançando até ao tempo português, não consta, em nenhuma fonte visual, a representação de qualquer elemento alternativo de permeabilidade na cerca. Contudo, na obra de D. Fernando de Menezes, existe uma referência específica, num contexto em que a intenção do autor parece ter sido mencionar todas as saídas vigiadas da praça, indiciando um diferente acesso ao campo376, durante o mandato do segundo governador de Tânger. Ainda assim, não há garantia de que esta aceção esteja correta. Assumindo que não se trataria da porta de entrada no Castelo a partir da cidade, mas sim de uma construção que permitia o acesso da fortificação ao exterior da praça, o setor Oeste do Castelo, cuja conformação durante a primeira fase concentra mais incertezas, revelar-se-ia o local mais provável para a sua possível instalação. É, de facto, nessa zona que atualmente se situa a “Bab Kasbah” (Figura 148 (1)), surgindo quase inalterada em registos fotográficos desde inícios do século XX (Figura 148 (2)). No entanto, a grande diferença de níveis que se verificava, durante a fase em estudo, entre a parte interna e extramuros parece inviabilizar uma transposição direta nesse ponto. Além disso, conhecendo-se a vulnerabilidade do planalto de Marshan, de onde surgiam a maioria dos ataques, talvez fosse imprudente situar um ponto de permeabilidade nesse setor. De facto, sempre que há referência a saídas do Castelo, é citada apenas a Porta da Traição377. Não sendo possível assegurar qualquer hipótese, afigura-se mais provável que existisse apenas um acesso para o exterior, possivelmente numa lógica de salvaguarda do reduto, segundo a qual as portas representariam “(…) pontos sempre delicados na defesa de uma praça de guerra.”378.
MENEZES, 1732, p. 39. “(…) foi recolher a gente que alli e na porta do castello e nas outras da cidade estava em combates repartida (…).” PINA, Ruy de Chronica d’El-Rei D. Duarte, Lisboa, 1901, p. 101. 375 A análise desta possibilidade é retomada com mais ênfase no tópico conclusivo deste subcapítulo. 376 Ver nota 371. As restantes referências à “Porta do Castello” são claramente alusivas ao seu acesso a partir da cidade. “Acudiram entretanto (…) chegarão à porta do Castello a acharão cerrada (…) aberta a porta, reunio a gente na Praça do Castello (…).”, “Subiram ao Castelo (…) com algumas fileiras a porta do Castello (…).”. Idem, p. 213. 377 “Em outra ocasião saiu pela porta da Traição (…).” Idem, p. 139; “(…) se retirou com ordem pela porta da Traição, por onde tinha saído.” Idem, p. 183; “(…) se abriu a porta da Traição para ir buscar os mouros.” No contexto da fuga de alguns mouros cativos das masmorras. Idem, p. 197; “(…) o General, com a mayor parte, saio pela porta da Traição (…).” Idem, p. 207; “(…) saio o Conde General ao campo pella porta da Traição (…).”. Idem, p. 227. “(…) porta que disem da trejsão pela qual se uay ao campo alguas veses (…).” DORNELLAS, 1913-23, II, p. 88. Apesar de tudo, estas são referências alusivas à segunda fase do Castelo de Cima, não invalidando que, durante a primeira, as saídas se realizassem também por outro lugar. 378 CORREIA, 2006, p. 186. 373 374
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Figuras 148 (1) Bab Kasbah, Marรงo de 2017 (2) 26. Baluarte da Kasbah, 1904 (DPC-MCC)
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Figura 149 Reconstituição hipotética tridimensional do perímetro do Castelo de Cima da primeira fase, de acordo com a primeira hipótese de conformação do Paço.
Figura 150 Planta da reconstituição hipotética do perímetro do Castelo de Cima da primeira fase, de acordo com a primeira hipótese de conformação do Paço.
148
Figura 151 Reconstituição hipotética tridimensional do perímetro do Castelo de Cima da primeira fase, de acordo com a segunda hipótese de conformação do Paço.
Figura 152 Planta da reconstituição hipotética do perímetro do Castelo de Cima da primeira fase, de acordo com a segunda hipótese de conformação do Paço.
149
2.2.1.3 Apropriações e novas construções
“Palaces, after all, are things of value: something to re-appropriate, whether as heritage or as a trophy bespeaking one’s victory.”379
A partir dos desenhos planimétricos e tridimensionais que ilustram a imagem do complexo fortificado, durante o início da primeira fase, é possível tecer algumas considerações relativas à questão fundamental que inicia este capítulo: quais as opções tomadas pelos portugueses relativamente ao castelo árabe que herdam. Começando pelo Paço, protagonista do complexo fortificado, numa abordagem geral, para ambas as hipóteses de constituição, é possível reconhecer-se o cariz compacto e intangível comum a outras construções lusitanas coevas. O Paço dos Duques de Bragança em Guimarães380 (Figuras 153), mencionado como possível modelo comparativo por Jorge Correia381, manifesta, de facto, características semelhantes. Repleto de uma forte simbologia medieval, transmite, tal como o anterior, o seu domínio e poder sobre o território em redor. É também constituído por vários blocos agregados, maioritariamente encerrados para o exterior, de onde se elevam algumas chaminés. Mandado construir por D. Afonso, primeiro Duque de Bragança382 por volta de 1420-1422383, e, portanto, necessariamente anterior ao de Tânger, diferia deste, essencialmente, ao nível da organização funcional. Apresenta-se em planta como um quadrilátero de cerca de 60m de lado, com um pátio central e capela alta, contrariamente ao edifício estudado, longitudinal e sem simetrias. Um outro exemplo, citado pelo mesmo autor, cuja retórica visível na representação de Duarte D’Armas, no “Livro das Fortalezas”384, parece aproximar-se às primeiras, é o Paço dos Duques de Bragança em Barcelos (Figura 154). Novamente D. Afonso385 é apontado, por diversas fontes, como o responsável pela edificação386. Composto por cinco volumes compactos, de planta retangular, repletos de chaminés, no seu conjunto descrevem um “L”387. As fachadas dos vários corpos surgem coroadas por ameias e altos telhados, tal como acontece no Paço tangerino das gravuras de Braun ELBL, 2013, p. 772. Considera-se, para a comparação, o seu aspeto antes da grande intervenção de restauro da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) nos anos 30 do século XX, sob responsabilidade do arquiteto Rogério de Azevedo. 381 CORREIA, 2014, p. 3. 382 D. Afonso, primeiro duque de Bragança, é filho ilegítimo de D. João I, irmão de D. Duarte e genro do Condestável D. Nuno Álvares Pereira. Intimamente ligado à corte, este realizou várias viagens diplomáticas pela Europa, onde contactou com a arquitetura que se fazia fora de Portugal, o que evidentemente influenciou todo o desenho e morfologia do palácio que edifica. De carácter civil e inspiração essencialmente francesa. SILVA, 2002, p.150. 383 A data de início das obras coincide com o momento da segunda união do duque de Bragança com D. Constança de Noronha, que escolhem Guimarães para sua residência. SILVA, 2002, p. 138. 384 O “Livro das Fortalezas” contém o inventário manuscrito de 56 castelos fronteiriços do reino de Portugal, dos princípios de Quinhentos. ARMAS, Duarte de- Livro das Fortalezas. Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo e Edições Inapa, 1990 (Fac-simile do Ms. 159 da Casa do Forte do Arquivo Nacional da Torre do Tombo). Pensa-se que este inventário das fortalezas e castelos fronteiriços tivesse como finalidade demonstrar ao monarca a necessidade de reformas que algumas daquelas edificações apresentavam, no final do reinado de D. Afonso V. As informações recolhidas eram pormenorizadas e revelavam muitos "segredos defensivos", pelo que seria extremamente perigosa a sua divulgação indevida. Os desenhos finais foram feitos em gabinete e não in situ, tendo por base esboços que poderão ter diferentes origens e até realidades temporais distintas, embora próximas. Talvez seja por isso que uns dizem "feitos do natural" e outros não. MATTOSO, José – História de Portugal: No Alvorecer da Modernidade. 1ª Edição. Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 14. 385 D. Afonso (1402-1460), primeiro Duque de Bragança é mais tarde tornado oitavo Conde de Barcelos. 386 Outros factos sugerem que terá sido erguido a mando do seu filho, D. Fernando. A verdade é que o edifício de meados do século XV apresenta semelhanças com o paço dos Duques de Bragança em Guimarães: elementos como janelas cruzetadas, as chaminés, aparelho bem esquadriado e a composição por vários volumes compactos agregados que sugerem um mesmo autor da encomenda. 387 “(…) a forma em “L” que o paço, predominantemente, denuncia (…) parece fazer (dele] o predecessor importante de uma das tipologias que, ao longo do século XVI, a casa nobre irá utilizar (…).”. SILVA, 2002, p. 147. 379 380
150
e Mallet, demonstrando a presença de uma forte simbologia militar. O edifício possuía dois pisos e não apresentava oratório ou capela alta como sucedia no homólogo de Guimarães. Evidenciando-se desde um ponto alto, expondo uma mensagem clara de controlo sobre o território envolvente, também o Paço dos Condes de Ourém (Figuras 155) permite estabelecer uma analogia com o edifício residencial do Castelo de Cima. Relativamente próximo de Santarém, de onde era proveniente o primeiro mestre das obras dos lugares em África, Rodrigo Anes, é erguido a mando de D. Afonso, 4º conde da mesma vila388, que, além de grandes reformas no conjunto do castelo medieval adjacente, adaptando-o para uso civil, rasga as antigas muralhas e ergue, por volta de 1440389, a imponente nova construção sobranceira à vila. De influência italiana390, conservando um cariz militar, é
Figuras 153 (1) e (2) fotografias do Paço dos Duques de Bragança em Guimarães antes da intervenção de restauro da DGEMN nos anos 30 do século XX.
Figura 154 Representação do Paço dos Duques de Bragança em Barcelos, no “Livro das Fortalezas” de Duarte D’Armas.
Figuras 155 (1) e (2) Fotografias do Paço dos Condes de Ourém.
O 4º Conde de Ourém e Marquês de Valença, D. Afonso (1402-1460) era neto de el-rei D. João I por via paterna e de D. Nuno Álvares Pereira por via materna, sobrinho de el-rei D. Duarte e primo de D. Afonso V. a sua figura aparece representada nos painéis de S. Vicente. 389 SILVA, 2002, p. 149. 390 Segundo alguns autores o paço teve inspiração no modelo italiano da “casa fortaleza”. A função de embaixador do Conde permitiu-lhe ter contato com a arquitetura que se fazia fora de Portuga. D. Afonso frequentou diversas cortes europeias e presenciou concílios religiosos. Em 1458, foi o responsável pela organização, no Porto, de uma das armadas da expedição a Marrocos, tendo 388
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constituído por três partes implantadas no declive: duas torres-baluarte de traçado poligonal, ligadas por um muro com adarve, um pátio amuralhado e por um corpo central de planta retangular, maciça com poucas aberturas, possuindo 3 pisos391. Bastante fechado, é igualmente composto por volumes organizados entre si, no caso de Ourém desagregados, embora comunicantes. Esta edificação abre-se sobretudo para o interior do complexo, assegurando, deste modo, uma maior proteção dos pontos de permeabilidade. O alçado Nascente do Paço de Tânger apresenta uma fachada praticamente cega num primeiro nível e apenas com algumas aberturas no segundo. É possível que, tal como na edificação de Ourém, possuísse maiores vãos rasgados nos alçados Norte e Oeste, voltados para o interior da cerca. Embora se consigam estabelecer diversas analogias com edifícios portugueses tardo-medievais, outros fatores parecem simultaneamente distanciar o Paço de uma tipologia definida, dados que combinados com o facto de não se encontrarem quaisquer registos referentes à construção de um edifício novo à cota alta em Tânger, conjeturam novas perspetivas. Não há dúvidas de que a edificação apresenta uma composição bastante heterogénea de blocos paralelepipédicos de diferentes dimensões, sendo esta constatação mais evidente para a segunda hipótese recriada. Embora não constitua por si só uma prova irrefutável, esta ausência de unidade revela-se o primeiro indício de que a edificação da primeira fase poderia ser composta, na verdade, por parcelas procedentes de tempos distintos. Outras pistas surgem implicitamente em documentação escrita, como a menção a uma “Salla Velha”392 do Paço que precisava de uma remodelação na década de sessenta do século XVI, onde o adjetivo que a qualifica parece apontar para uma datação anterior a outras possíveis dependências. Mais explicitamente, a referência ao Castelo de Cima, em 1558, numa carta de Cristóvão da Cunha à regente D. Catarina, enquanto o “castelo amtiguo dos mouros”393 prova que se perpetuava, em meados do século XVI, uma surpreendente associação da
acrópole fortificada ao período pré-português, sugerindo apropriações da arquitetura militar passada. Embora se trate de uma alusão dirigida, de forma genérica, ao conjunto defensivo e não especificamente ao edifício palatino, a observação de que duas das suas faces, em ambas as hipóteses, coincidem com os limites do próprio Castelo torna a sua análise crítica indissociável. Neste ponto, questiona-se se as muralhas terão estabelecido ou não a diretriz do edifício, ou seja, se a sua construção foi pensada em simultâneo, ou se o Paço obedeceu a condicionantes pré-existentes. Concentrando a atenção nas fronteiras da fase inicial do Castelo português, é facilmente percetível que entre a muralha meridional e a setentrional se estabelece quase um paralelismo. De dimensões aproximadas, ocorre, tanto no limite Sul como no Norte, uma subtil quebra na sua direção. Na muralha meridional, o segmento Oeste apresenta torreões de base semicircular394, à semelhança dos que
tomado parte da conquista de Alcácer Ceguer, ao lado de D. Afonso V, seu primo e último rei que serviu. BARRADAS, Alexandra Leal, FCSH-UNL – D. Afonso, 4º Conde de Ourém – viagens, cultura visual e formação de um gosto. In http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA2/medievalista-afonso.htm. 391 As dimensões desta torre são 23x13,3m e 15m de altura, correspondendo a 3 pisos. Em geral, os paços portugueses coevos ao do conde de Ourém possuíam apenas 2 pisos. 392 A. N. T. T., Códices e Documentos de Proveniência Desconhecida, nº 53, Papéis da embaixada de Inglaterra e da jornada de Castela sobre a ida da infanta D. Maria, com outros vários, todos do tempo do Senhor Lourenço Pires de Távora, fols. 218-223v. 393 Carta de Cristóvão da Cunha a D. Catarina, a 12 de Julho de 1558, A. N. T. T. Corpo Cronológico, 1/102/120, fol. 1. In http://antt.dglab.gov.pt/. 394 No caso do setor Norte, existe apenas um torreão semicircular, localizado no ponto de rótula de mudança de direção. Junto ao limite Oeste do Castelo reaparecem torreões quadrangulares.
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pontuam o muro do atalho que reduziu o perímetro da urbe após 1471. Já nas parcelas Este dos referidos limites, surgem apenas torreões de base quadrangular, construções que devido à sua configuração recebiam também a designação de “cubelos”395. O mesmo acontece na cortina Poente e Nascente. Recuando às descrições contidas nas crónicas quatrocentistas portuguesas, importa relembrar a especificação, entre as referências a construções perimetrais defensivas da cidade islâmica, de elementos como a porta tripla e os ”cinquo cubelos”396 dispostos ao longo do muro que partia da alcáçova e terminava na torre da porta397. Neste contexto é particularizado o perfil tipológico tetragonal dos torreões mouros para um setor da cidade próximo da kasbah398. Na gravura “Septa” de Braun399, distinguem-se, ao longo da muralha moura conservada, apenas elementos de base quadrangular regularmente espaçados. De volta a Tânger, importa ainda referenciar a importante entrada em cotovelo existente no pano murado Norte, designada de “Porta da Traição”. Considerando a primeira hipótese de conformação do Paço, existia uma outra entrada da mesma tipologia disposta no pano de muralha Este. Sabe-se que estas complexas construções eram elementos comuns na arquitetura militar almóada400, pelo que se considera provável uma origem pré-portuguesa dos que permeiam o Castelo de Cima401. Com efeito, elas surgem em segmentos da cerca que apresentam unicamente cubelos. Deste modo, torna-se sugestivo estabelecer uma analogia entre as muralhas que contêm torres de desenho quadrangular e o período islâmico anterior à conquista. Martin Elbl, baseado no estudo de Pavón Maldonado “Tratado de arquitectura hispanomusulmana”402, vai mais longe e propõe que tanto os segmentos contendo cubelos quanto os que possuíam torres semicirculares correspondiam, na realidade, aos muros da “original qasba”403, partindo do princípio de que ambas as tipologias se tratariam de um outro componente característico da arquitetura militar almóada: as “torres albarrãs”404, embora admita uma possível construção em tempos diferentes405. De facto, Rosa Varela Gomes menciona a existência de torres semicilíndricas na arquitetura militar muçulmana406. Contudo, a esta hipótese de Elbl, cuja comprovação permitiria fechar praticamente o
Como a origem etimológica da palavra indica, “cubelo” deriva de “cubo”, remetendo para uma estrutura de perfil quadrangular. https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/cubelo. Embora atualmente se atribua esta designação a outras tipologias de torres e torreões, o seu emprego original cingia-se às estruturas tetragonais. 396 ZURARA, Gomes Eanes de - Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, 1978, p. 345. 397 Idem, p. 310-311 e 345 e PINA, Ruy de - Chronica d’El-Rei D. Duarte, 1901, p. 101-103. 398 Na gravura de Braun alusiva a Ceuta, estão desenhados ao longo da cerca islâmica, também torreões de perfil quadrangular de espaçamento regular. 399 BRAUN, Georg, HOGENBERG, Frans, NOVELLANUS, Simon – Civitates Orbis Terrarum. Antuerpiae Coloniae: Apud Philippum Gallceum/Apud Audtores, 1572. BNL 400 GOMES, Rosa Varela – A arquitectura militar muçulmana in MOREIRA, 1989, p. 32, 33. 401 ELBL, 2013, p. 576. 402 Pavón Maldonado, Basilio – Tratado de arquitectura hispano-musulmana, vol. II, Ciudades y fortalezas. Madrid: CSIC, 1999. 403 “The overall curtain wall design matches (...) Pavón Maldonado’s observation that detached forward towers (torres albaranas) (...).The closest recurrent tower spacing is c. 20-25 m, well in line with Pavón Maldonado’s argument that in representative wall arrays Maghribī towers averaged 20 to 30-35 m apart. If the scaling of discrete architectural elements in Krigsarkivet no. 0406:07:009:001 is to be trusted, the rectangular towers had an average footprint of c. 3.7 × 2.2 m, thus at the lower end of the size range in Pavón Maldonado’s survey, and the semicircular ones were built with a radius of c. 2.5 m. The two larger documented square corner towers measured c. 5.2 × 5.2 m, and may have been openbacked tower-bastions (like the bestorres or baluartes of the Almohad alcázar of Alcaudete (Jaén) but smaller).” ELBL, 2012, p. 13 a 14 404 “Is the core of the old qasba documented in the Krigsarkivet trace thus largely Almohad? Nothing in the ground plan contradicts this: the walls, as draughted, would not be out of place in Rabat, for instance, as part of the Almohad Qasba of the Udayya.” ELBL, 2013, p. 588. 405 ELBL, 2013, p. 292. Martin Elbl, embora admita ser mais comum a construção de torreões poligonais na arquitetura islâmica, cita alguns exemplos de elementos circulares da mesma proveniência. De acordo com o autor, o segmento que continha torreões semicirculares poderia ter origem também islâmica, porém talvez construído em outro período. 406 GOMES, Rosa Varela – A arquitectura militar muçulmana in MOREIRA, 1989, p. 28. 395
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perímetro do reduto pré-1471, contrapõe-se a visível semelhança de forma e dimensões entre as construções semicirculares da muralha de atalho e as que delimitam parte do Castelo, remetendo para uma intervenção portuguesa, talvez coeva à redução da cidade, a justificação da mudança de tipologia e direção do segmento de muro referido. Da confirmação da conservação de grande parte do perímetro da kasbah, incluindo as frações onde assentavam as fachadas Nascente e Sul do Paço, decorreria a hipótese de que pelo menos parte do edifício português proveniesse de um passado islâmico. O facto de cada bloco constituinte das faces referidas resultar do prolongamento vertical do contorno da base poderia ser um forte indício de total apropriação da construção herdada. Contudo, diversos elementos que se lêem nos alçados afastam essa suspeita. De linguagem tardo-gótica, identificam-se várias janelas ogivais e o próprio balcão. Por contraste, as torres dos extremos são praticamente encerradas. Uma nova pista para o desenvolvimento desta conjetura reside na gravura “Tanger” (Figura 156) de Mallet. Como já referido, na face Este do Paço, o autor distingue com diferente expressão os componentes centrais, que contém aberturas mais generosas, dos dos extremos, encerrados para o exterior. Esta preocupação, possivelmente baseada no modelo original, não pode ser desconsiderada, sugerindo ilustrar uma distinta materialidade407. Na verdade, analisando novamente a alcáçova de Ceuta da gravura de Braun (Figura 157), observam-se, a flanquear o corpo principal ao centro, dois blocos paralelepipédicos com apenas uma pequena abertura no nível superior. Assim, revela-se bastante intuitiva a associação destes dois componentes do edifício de Tânger ao castelo árabe precedente408, aos quais se terão adicionado ameias de forma a conferir-lhe uma identidade mais próxima das construções europeias, enquanto os centrais, por oposição resultariam de uma forte intervenção portuguesa, não se descartando, porém, que a sua estrutura base também pertença ao período anterior. Deste exercício de teorização, deixam-se as possibilidades em aberto, as quais talvez só um exercício de arqueologia urbana, como o efetuado por Gilbert F. Bons, em inícios do século XX409, poderia comprovar.
Figuras 156 Aproximação da gravura “Tanger” de Mallet; 157 Aproximação da gravura “Septa” (cópia de original do início século XVI). BRAUN, Georg, HOGENBERG, Frans, NOVELLANUS, Simon – Civitates Orbis Terrarum. Antuerpiae Coloniae: Apud Philippum Gallceum/Apud Audtores, 1572. BNL 407 Apesar de Mallet utilizar também uma expressão carregada para indicar sombra em outros edifícios, não parece ser a sua intenção
no caso das torres laterais. 408 A comprovação da adaptação lusitana dos supostos torreões islâmicos, executando um possível aumento da sua altura, transformaria estes elementos em candidatos à “ Torre mais alta do Castello” de Fernando de Menezes sobre a qual construiriam “(…) outra pequena, e quadrada, em que assiste huma vigia, ou facheiro com hum sino, em que faz sinal do que se vê no mar, ou no campo (…).” MENEZES, 1732, p. 41. Parece, porém, opor-se a essa teoria o facto de a torre apresentar a mesma configuração da base ao topo, não se identificando qualquer interrupção que sugerisse uma adição de um segmento de menores dimensões (“pequena, e quadrada”). Além disso, a implantação desta não seria a mais estratégica para o avistamento do campo. 409 TERRASSE, Henri – La Kasba Omeyade de Tanger - in CHABOT, th. De - La Kasba – L’Acropole de Tanger. 1939, p. 9 e 10.
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2.2.2 – Reforço Manuelino
Figura 158 Alteração da frente Oeste, durante a primeira fase do Castelo de Cima de Tânger.
“A arquitectura manuelina (…) é, formalmente, de transição, entre o gótico que persiste, e a renascença que, timidamente, se vai impondo (…).”410
Recuperada a hipotética imagem do Castelo do início do período português, revela-se ainda necessário salientar uma subfase construtiva independente. Quando se observa a composição geral do Castelo de Cima, nas várias fontes iconográficas e cartográficas, destaca-se inevitavelmente, pela divergente morfologia face ao conjunto, todo o setor Oeste da fortificação, em especial uma plataforma de artilharia num nível elevado, ladeada por duas estruturas que se salientam para o planalto de Marshan, de escala considerável quando comparadas aos componentes da cerca primordial, porém muito inferior à dos baluartes modernos. Toda esta frente possui a particularidade de não corresponder a uma tipologia de edificação militar tardo-gótica, e, paralelamente, de não imprimir ainda o gosto consolidado das adições da segunda metade de Quinhentos. De facto, os elementos desta composição sugerem tratar-se de estruturas experimentais, sendo imperativa a explicitação da sua análise e do seu entendimento funcional no contexto temporal da fortificação. 410
DIAS, 1988, p. 236 e 237.
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2.2.2.1 – Generalização das novas práticas de guerra e repercussões na arquitetura militar “(…) o uso generalizado do armamento de fogo, a complexidade das operações e o papel activo nelas desempenhado pelas fortificações condenavam a desaparecer o sistema cavaleiresco de combate de corpo a corpo da Idade Média.”411
De modo a enquadrar o surgimento das edificações que ditaram a ramificação do primeiro estágio do Castelo de Cima numa subfase autónoma, é imperioso abordar os avanços tecnológicos que se desenvolveram ao longo do período em questão, geradores diretos de uma grande metamorfose na arquitetura militar. Na verdade, é a partir do século XIV que o modo de “fazer guerra” começa gradualmente a transformar-se, à medida que os engenhos pirobalísticos se disseminam progressivamente pela Europa412. Primitivas bocas-de-fogo, como trons e bombardas, pesadas e de difícil manuseamento, começavam a generalizar-se, ainda que o seu efeito concreto atuasse, inicialmente, muito mais a nível psicológico no atacante413. Anteriormente, em caso de cerco, as populações resistiam passivamente permanecendo no interior das muralhas, durante longos períodos de tempo. Havia troca de flechas, arremesso de projéteis e óleo quente por parte dos sitiados. Por sua vez, os castelos eram atacados recorrendo ao uso de catapultas e aríetes. Estando a arquitetura militar intrinsecamente relacionada com o modo de combater, neste período as fortalezas medievais tinham, essencialmente, de estar preparadas para vencer os disparos dos engenhos neurobalísticos, situação verificada para a primeira subfase do Castelo de Tânger. Com o aparecimento do armamento de fogo, esta realidade foi completamente abalada. O estrago provocado a cada disparo era muito maior e mais abrangente. Urgia portanto adaptar as estruturas defensivas aos avanços tecnológicos que se propagavam. Esta adaptação não se limitava apenas a resistir à nova artilharia, mas também a acolhê-la. No século XV havia já uma consciência generalizada relativa às várias aplicabilidades da pirobalística. Utilizada para o ataque e defesa de fortificações, em campo de batalha ou mesmo a bordo de embarcações, a principal vantagem parecia ser a possibilidade de causar consideráveis danos ao inimigo a uma distância relativamente segura, o que jamais aconteceria com armamento medieval. Porém, continuariam a ser utilizados os arcos e bestas, instrumentos eficientes que complementavam o ataque. No caso específico de Portugal, ainda que se verificasse esta procura por uma atualização tecnológica414 observava-se, na arquitetura, uma certa recusa na libertação da retórica tardo-gótica. Este MOREIRA, Rafael (direção) – História das fortificações portuguesas no mundo, 1989, p. 143. Contudo, existem referências a esses mecanismos desde o século XII, nos países árabes. Em 1108, os mouros de Tunes usavam trons de fogo contra os mouros de Sevilha. Posteriormente, em 1247 Sevilha defende-se também com artilharia de fogo; em 1280, Sancho “ o Bravo” atacou Córdova usando o mesmo armamento; do início do séc. XIV remontam os primeiros documentos técnicos e ilustrações executados na corte de Inglaterra. “Em Portugal, Fernão Lopes, funcionário do paço real e notário, terá sido o primeiro a mencionar o uso de peças de artilharia, com 2m de comprimento e 16cm de calibre, assentes sobre um reparo (…), com um alcance máximo de 200 a 300m, mesmo que apenas 25% deste fosse eficaz devido à dispersão do tiro.” LOPES, 1989, p. 33. 413O forte ruído e o fumo, provocados pela detonação, provocavam medo ao inimigo. A novidade era associada muitas vezes a poderes demoníacos e era colocada a operá-la a fração mais desprezada da sociedade, pois era perigoso o manuseamento das bocas-de-fogo e a sua eficácia era ainda dubitável por parte da nobreza. LOPES, 2009, p. 35. MONTEIRO, João Gouveia – Os Castelos Portugueses dos Finais da Idade Média: Presença, Perfil, Conservação, Vigilância e Comando, 1999, p. 36. 414Há registo de fabrico de trons e bombardas desde o reinado de D. Fernando, contudo só com D. João II se assistiu à sua difusão pelo país. É após a guerra dos cem anos entre ingleses e franceses que se tornam claras as vantagens do uso de armas de fogo, quando os britânicos comprovam a eficácia desta artilharia e a partilham com os portugueses, com quem estabelecem uma aliança, na segunda metade do século XIV. BAÊNA, Miguel Sanches – A artilharia moderna in MOREIRA, 1989, p. 77. 411 412
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vínculo aos atavismos medievos é gradualmente vencido, à medida que se toma consciência da insuficiência defensiva das estruturas fortificadas anteriores face aos novos desafios: o volume das paredes e os tiros frontal e vertical deixam de ser solução eficaz na proteção das fortalezas. Aos poucos, inicia-se o reforço das muralhas que passam a adquirir base em alambor, abrem-se vãos maiores para instalar a artilharia de fogo e mais tarde introduzem-se baluartes. Eram óbvias as vantagens do alargamento do uso dos novos engenhos a além-mar, em proveito, por um lado, da conquista, integrando artilharia nos próprios barcos415, e por outro da defesa e manutenção das novas possessões. Neste contexto, são também as praças norte africanas que constituem os principais locais de experimentação da arquitetura militar adaptada ao armamento pirobalístico. “(…) Marrocos nas duas primeiras décadas do século XVI [é] o mais interessante campo de experimentação de arquitectura militar fora da Europa, verdadeiro laboratório de ensaios e soluções para a aclimatação da arte da guerra do Mediterrâneo e outras latitudes, onde serão testadas, retidas ou aperfeiçoadas as futuras formas de dominar o Mundo.”416
Na realidade, Rafael Moreira situa o verdadeiro marco de início deste período de transformação com o cerco de Arzila, em Outubro de 1508, pelo rei de Fez, quando “derrubadas facilmente as muralhas de pedra e barro, os moradores se refugiaram no Castelo e estariam perdidos se não fora a chegada de socorro (…).”417
Este episódio, no reinado de D. Manuel, viria comprovar a fragilidade das estruturas medievais, despoletando a primeira campanha de obras de reforço das mesmas por toda a costa do Magrebe. É imediatamente enviado à praça atacada, o mestre Diogo Boitaca418, forçado a interromper o seu trabalho à frente dos trabalhos no Mosteiro dos Jerónimos. Também em Tânger traça uma proposta de reforço defensivo, cuja execução ficaria a cargo do mestre biscainho Francisco Danzillo419. Nesta fase, o principal desafio era conjugar, num desenho viável e funcional, o dinamismo inerente a uma solução defensiva e a uma resposta ofensiva, tendo em consideração as distâncias de tiro dos novos instrumentos bélicos420. A criação de uma alternativa ao sistema medieval implicava o estudo de um novo traçado das edificações, para que do cruzamento de tiros flanqueante e afastado não resultassem ângulos cegos421. O termo “baluarte” surge para designar os muros baixos que ocultavam peças de artilharia de fogo em posição lateral, frente às entradas principais422. “Entre nós, esta fase corresponde à segunda metade do reinado de D. Manuel I, arrancando em 1508-10, e entra ainda no reinado de D. João III, prolongando-se pelo menos até 1531.”423
“(…) os navios portugueses tinham de possuir também peças adaptadas aos seus objectivos. Sabemos pelos relatos de Garcia de Resende que as caravelas iam equipadas com “tiros grossos”, mas não de dimensões tais que pudessem pôr em perigo o equilíbrio do navio.” MOREIRA, 1989, p. 80. 416 Idem, p. 119. 417 Ibidem. 418 SOUSA VITERBO, 1922, p. 120 a 131. 419 Francisco Danzillo ou Danzinho foi um arquiteto militar oriundo da Biscaia, no Norte de Espanha, que trabalhou para o rei D. Manuel I. SOUSA VITERBO, Vol. I, 1922, p. 272 e 273. 420 “Apesar da capacidade do projéctil poder atingir distâncias mais elevadas, o tiro certeiro era garantido para alcances mais curtos, tanto para besta como para bombarda, que íam dos 50-100m aos 50-150m, respectivamente. Este discurso acabava por ser o aplicado, idealmente, no momento de decidir a localização dos baluartes introduzidos (…).” LOPES, 2009, p. 40. 421 Este sistema é desenvolvido na Itália central por figuras como Leonardo da Vinci, Michelangelo e os Sangallo. MOREIRA, Rafael in SERRÃO, Vítor – História da Arte em Portugal: O Maneirismo, Volume 7, 1993, p. 137. 422 MOREIRA, 1989, p. 146. 423 BARROCA, Mário Jorge – Tempos de Resistência e de inovação: a arquitectura militar portuguesa no reinado de D. Manuel I (14951521), 2003, p. 98. 415
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2.2.2.2 - O Setor Oeste do Castelo de Cima
Plataforma de artilharia Em resposta às necessidades impostas pela evolução da arte da guerra, uma extensa plataforma de artilharia terá sido adicionada enquanto reforço da parte ocidental do Castelo de Cima, complementando a proteção de um ponto vulnerável da cidade. Pensa-se que o pano de muralha visível atualmente a partir da “Place du Tabor” (Figuras 159) tenha correspondido ao limite interno da referida superfície. Assim o confirma a coincidente sobreposição da maioria das fontes cartográficas consultadas com a base presente (Figuras 160). Ao que tudo indica, conservaria como revestimento externo a muralha precedente, onde, de acordo com o mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001”, são mantidos os dois cubelos (O2 e O3), desenvolvendo-se depois para o interior do recinto fortificado, apresentando uma largura de cerca de 14m424, elevada relativamente ao solo. A cartografia “Krigsarkivet 0406:07:009:001” (Figura 161 (1) e (2)) e a “Planta de Tangere” (Figura 161 (3) e (4)), derivada da anterior, mostram, excecionalmente, uma extensão da estrutura para a vertente Sudoeste. Nelas a plataforma desenvolve-se em níveis diferenciados, com o acesso principal localizado numa posição central relativamente aos dois tramos constituintes: o Sudoeste seria acedido a partir do primeiro lanço de escadas e o Noroeste seria alcançado avançando mais um lanço. Novos desníveis permitiriam que a plataforma acompanhasse o declive topográfico da muralha de atalho, descendo em degraus. Esta representação não se verifica, porém, em nenhuma outra fonte visual, nem se conhecem vestígios da sua presença na atualidade, sendo provável que se tratasse, como Elbl propõe, de uma proposta construtiva nunca concretizada425.
Figuras 159 (1) Muralha interna da plataforma de artilharia Noroeste. Fotografia retirada a partir da “Place du Tabor” em Julho de 2017. (2) Aproximação do pormenor do aparelho da muralha interna da plataforma de artilharia Noroeste.
Apesar de nenhuma das plantas consultadas fornecer detalhes da constituição interna da plataforma, não ilustrando quaisquer aberturas nos paramentos que indiciassem se seria total ou parcialmente oca, as vistas perspéticas demonstram o posicionamento raso de alguns vãos na fachada, suscitando essa possibilidade. 425 ELBL, 2013, p. 332 a 334. 424
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Figuras 160 Sobreposiçãocom a cartografia atual com os mapas: (1) ”Description of Tanger”; (2) “Map of Tangiers” (3) Fortificação da praça e contexto envolvente (IMG_3670); (4) A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25); (5) IMG_3676 (limites fortificados de Tânger).
Figuras 161 Aproximação à plataforma de artilharia nas gravuras: (1) “Krigsarkivet 0406:07:009:001” (2) “Planta de Tangere” de 1655.Aproximação ao acesso à plataforma de artilharia nas gravuras: (3) “Krigsarkivet 0406:07:009:001” (4) “Planta de Tangere” de 1655.
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Posto isto, é unânime a localização de um acesso direto à plataforma junto ao seu limite Noroeste, ilustrado em todas as representações bidimensionais e axonométricas seiscentistas. Os mapas: Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger (MPH 1_1_54) (Figura 162 (1)), Fortificação da praça e contexto envolvente (IMG_3670) (Figura 162 (2)), a axonometria “A Mapp of the Citty of Tanger with the Straits of Gibraltar” (Figura 162 (3)) e até mesmo a “Tangier” de Martin Beckman (Figura 162 (4))426, assinalam um outro, no extremo Sul da superfície elevada. Contudo, a gravura “Prospect of Tangier from S. West” (Figura 162 (5)), de Hollar, ilustra uma face vertical completamente encerrada a rematar este setor, pelo que, para a reconstituição desta subfase, se considera apenas o primeiro acesso. Nas gravuras “Prospect of the West Front of Tangier Castle” (Figura 163 (1)) e “Prospect of y North side of Tangier” (Figura 163 (2)), que representam vistas externas da plataforma, lêem-se as aberturas que permitiam o disparo de bombardas e, nas ameias de corpo largo, seteiras direcionadas para o planalto. É provável que tenha sido precisamente nesta altura que o cubelo que ocupava a posição central na muralha de fora (O3) fosse adaptado a Torre do Sino. No “Krigsarkivet 0406:07:009:001” a representação de escadas a partir da plataforma denuncia já a sua provável altura superior, comparativamente aos componentes adjacentes. No entanto, sabe-se que as suas dimensões, nesta fase, não corresponderiam às ilustradas nas vistas. Desta forma, a sua reconstituição aqui é conjetural. Dos extremos da plataforma Ocidental, projetavam-se, para o exterior, dois novos componentes de escala superior à dos cubelos também aí presentes. A morfologia de ambos era também bastante distinta.
Na realidade, na vista aérea “Tangier” de Martin Beckman, o acesso junto ao limite Sul da plataforma não é evidente, salvaguardando-se aqui uma possível interpretação errónea do elemento desenhado nesse local. 426
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Figuras 162 Aproximação à plataforma Oeste nas fontes visuais: (1) Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger (MPH 1_1_54); (2) Fortificação da praça e contexto envolvente (IMG_3670) ; (3) “A Mapp of the Citty of Tanger with the Straits of Gibraltar”; (4) “Tangier”; (5) “Prospect of Tangier from S. West”.
Figuras 163 (1) Aproximação à fachada externa da plataforma de artilharia Noroeste no “Prospect of the West Front of Tangier Castle”; (2) Aproximação à fachada externa da plataforma de artilharia Noroeste no “Prospect of y North side of Tangier”.
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Baluarte- Torre Noroeste Da estrutura que outrora ocupou o ponto Noroeste do Castelo Velho, importa referir que, no momento presente, não se encontram vestígios visíveis, nem quaisquer alinhamentos urbanos que sugiram indubitavelmente a sua apropriação posterior. Contudo, as fontes iconográficas e principalmente as fontes cartográficas são bastante esclarecedoras e coerentes no que respeita à sua morfologia. O mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001” (Figura 164 (1)) e a “Planta de Tangere” (Figura 164 (2)) fornecem inclusivamente detalhes essenciais da sua composição interna. De base retangular, de aproximadamente 15,4m (7 braças) por 24,1m (aproximadamente 11 braças), a estrutura de espessas paredes externas aparece tripartida no seu interior. Dois dos torreões quadrangulares que se pensa terem pertencido ao perímetro inicial- o que conformava o vértice e o que lhe sucedia no pano de muralha Norte- surgem representados como parte integrante da construção, demonstrando que não foram derrubados, mas sim incorporados para reforço estrutural da nova edificação427. Decorre desta constatação a certeza de que este constituinte se tratava de uma adição posterior à cerca original. Verifica-se que este elemento excedia a extensão dos cubelos adjacentes, prolongando-se muito mais para o exterior da plataforma. Isto permitia-lhe cobrir uma maior área extramuros assegurando a própria defesa dos restantes componentes da muralha. Torna-se, deste modo, evidente que no momento da sua construção se tinha noção das vantagens do “tiro flanqueante” embora não “do princípio da defesa mútua.”428, o que constitui mais um indício de elemento experimental. “Faltava a este experimentalismo quinhentista o elemento essencial do princípio do flanqueamento: o da defesa mútua ou cruzamento de fogos, em que cada ponto de um baluarte é sempre batido pelo tiro de um dos baluartes vizinhos.”429.
A ilustração de muros completamente encerrados para o exterior é um indicativo de que não possuiria níveis de fogo inferiores. A localização de possíveis referências a este constituinte em fontes documentais, que permitissem complementar a informação que os recursos visuais proporcionavam, implicava perceber previamente como seria reconhecido ou designado à época. No entanto, esta estrutura aparece apenas legendada num mapa, o ”Description of Tanger” (Figura 165 (2)), proveniente do período inglês, onde a letra “R” a qualifica como bateria (“R: is Batteries”), o que, na realidade, não oferecia nenhuma pista adicional. O desenho pouco elaborado indiciava que se trataria de uma forma muito precoce de baluarte, talvez nunca designado dessa forma, por se tratar, substancialmente, de uma torre larga, mas de altimetria reduzida, possivelmente semelhante à da cerca, cujo avanço para o exterior do perímetro permitia albergar peças de artilharia. Expressando uma vontade de responder às exigências defensivas da evolução pirobalística, e possuindo uma forte índole experimental, infere-se que a sua execução remontaria, presumivelmente, ao denominado período de Transição, durante o qual o Mestre Boitaca é enviado ao Magrebe, onde são concretizados os seus planos de melhoramento da eficácia defensiva das praças. Em Ceuta, as construções muçulmanas anteriores foram incluídas na construção moderna. CORREIA, 2006, p. 121, 122. MOREIRA, 1989, p. 105. 429 Idem, p. 149. 427 428
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Figuras 164 Aproximações ao Baluarte-Torre Noroeste nas gravuras: (1) “Krigsarkivet 0406:07:009:001”; (2) “Planta de Tangere” de 1655.
Figuras 165 (1) “Tangier” de Martin Beckman de 1661, (2) ”Description of Tanger” de 1663; (3) A Mapp of the Citty of Tanger with the Straits of Gibraltar” (4) “Map of Tangiers”, F0298 nº3, de 1664; (5) Limites fortificados de Tânger (IMG_3676) datada de 1678; (6) Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger (MPH 1_1_54), de 1683.
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Na fração respeitante a Tânger do “Livro das medidas de Arzila, Alcácer, Ceuta e Tânger, feitas por mestre Boytac e Bastião Luiz em 1514”430 não constam, entre as obras executadas por Francisco Danzillo segundo o Regimento inicial traçado pelo Mestre, informações respeitantes a alterações do setor Oeste. Porém, medições de intervenções não integrantes do plano original são igualmente explicitadas, destacando-se entre elas a referência a duas torres, que a descrição sugere, implicitamente, estarem conectadas por uma cortina dotada de alambor. São elas a “tore do syno” e a “tore dos bizcainhos”. “Item, tem o pedaço da chapa que estaua per fazer a par da tore do syno de comprido b braças e mea e d’alto tiramdolhe o remate e que não he tão alto como a outra R palmos e he de groso quatro palmos tres polegadas e mea em que monta / Sam trinta e nove e mea. /Item, a contrachapa tem de comprido as mesmas b braças e meia e dalto vimte palmos metemdo nisto alambor que esta apegado a tore dos bizcainhos e de grosura as quatro palmos tres polegadas e mea em que monta dez e nove [braças] cinquoemta e dous palmos e meo / Esta contrachapa tem menos hua braça na altura do que hera hordenado nem leuão sylhares por baixo porque esta sobre penedos (…).431
O facto de uma delas ser a Torre do Sino constitui o primeiro indicador de que ambos os elementos mencionados no “Livro” deveriam localizar-se no setor Ocidental do Castelo432, considerando o posicionamento do primeiro na região mais alta do complexo. Como referido anteriormente, a estrutura que passa a ocupar o ponto onde a torre com sentinela medieval (O4) vigiava a cidade433, desempenhava um papel diferente na defesa daquela frente, admitindo-se que a sua construção tenha desencadeado a permuta da vigia para a localização final, na mediatriz deste lanço (O3), provavelmente a “tore do syno” mencionada no excerto. A procura de correspondências entre as medidas enunciadas e os mapas antigos revela-se, contudo, inconclusiva, provavelmente porque estas dizem respeito a partes que era necessário completar e não a distâncias totais entre elementos. Apesar disso, é interessante perceber que unia a estrutura central e a do extremo em análise, de acordo com o mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001” e a sua cópia “Planta de Tangere”, um segmento de muralha contínuo, desprovido de quaisquer cubelos. A sugestiva conexão direta entre as duas levanta a hipótese da segunda se tratar da “tore dos bizcainhos”. Esta designação remete imediatamente para Francisco Danzillo, natural da Biscaia, responsável por fortificar Tânger a partir de 1511. Martin Elbl, que atesta a anterior associação, propõe assertivamente que o nome atribuído à construção se deve à sua execução pelos vários operários vindos da Cantábria para o Magrebe, e portanto biscainhos, contratados por Danzillo434, justificando o plural da denominação. No contexto da intervenção de Danzillo em Arzila, Indira Peixoto refere que não se verifica uma preocupação com a estetização, mas um grande cuidado com a eficácia militar. Em Alcácer Ceguer, por
“Livro das medidas de Arzila, Alcácer, Ceuta e Tânger, feitas por mestre Boytac e Bastião Luiz em 1514” (A. N. T. T., Núcleo Antigo, n.º769, fl. 50-55v) in Portugal e Marrocos no século XV - Colectânea Documental. (12.6-28.7.1514), p. 438-444. 431 Idem, fol. 54, 54v. 432 ELBL, 2013, p. 312. 433 Hipótese suscitada pela representação na“Tingis Lusitanis Tangiara” e na “Tanger” da Torre onde “assiste huma vigia, ou facheiro com hum sino” no ponto de encontro da muralha Norte com a Noroeste. MENEZES, 1732, p. 41. 434 “(…) the Torre dos Bizcainhos as the nearest structure brings to mind the 300 Cantabrian masons/crossbowmen recruited by militar contractor Francisco Danzilho to refurbish the defences of Ceuta, Ksar es-Seghir, Tangier, and Arzila in 1511. If the Torre was built during Danzilho’s contract, just after the 1511 Moroccan siege of Tangier, it would have been quite natural to refer to ir as the Torre dos Bizcainhos in 1514.” ELBL, 2013, p. 312. 430
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exemplo, cada baluarte projetado por si435 possuía uma morfologia autónoma, adaptada às préexistências, tal como acontece na estrutura em Tânger. Não há outras referências à “tore dos bizcainhos”, mas a “Torre principal do Castello em que está a mayor parte da artilharia” que, já no século XVII, sofreu um aumento em altura parece também dizer
respeito à estrutura Manuelina. Deste modo, percebe-se que a sua altimetria original seria inferior à que apresentam as gravuras de Hollar436. “Por lhe parecer [a D. Miguel de Noronha437] baixa a Torre principal do Castello em que está a mayor parte da artilharia, e que não se descubria bem o campo, a fez levantar na fórma que hoje se vê. O mesmo fez com a Torre do Sino em que está o farolero (…). Como era necessário muito terrapleno para preencher a muralha nova, trabalha nela toda a gente. (…).”438
Embora provavelmente não tenha resultado em alterações morfológicas consideráveis, importa referir que, de acordo com o “Livro das medidas de Arzila, Alcácer, Ceuta e Tânger, feitas por mestre Boytac e Bastião Luiz em 1514”439, a Porta da Traição também foi alvo de uma intervenção em inícios da segunda década do século XVI. “Item, o pedaço do muro que se fez a Porta da Treição pera soster a terra da contra-chapa he de comprido quatorze braças e d’alto duas braças e de groso cimquo palmos que fazem”440
Figuras 166 (1) Vértice Noroeste do Castelo de Cima, anterior à reforma Manuelina; (2) Inclusão dos torreões O4 e N1 na estrutura do Baluarte-Torre adicionado à frente Este do Castelo; (3) Planta de Coberturas do vértice Noroeste do Castelo, após a reforma Manuelina.
Em Alcácer Ceguer Danzillo é responsável pelo Baluarte da Praia, a Norte, pelo Baluarte de Fez a Sul e pelo Baluarte de Ceuta a Nascente. Além disso “o desenho dos três baluartes afasta-se das formas arredondadas existentes em Arzila e Azamor, revelando contornos mais rígidos e comunicando ativamente entre si através de ângulos muito pronunciados e salientes.” PEIXOTO, 2017, p. 150. 436 ELBL, 2013, p. 315. 437 D. Miguel de Noronha, Conde de Linhares governa Tânger desde julho de 1624 a junho de 1628. 438 MENEZES, 1732, p. 129. 439 “Livro das medidas de Arzila, Alcácer, Ceuta e Tânger, feitas por mestre Boytac e Bastião Luiz em 1514”, A. N. T. T., Núcleo Antigo, n.º769, fl. 50-55v in Portugal e Marrocos no século XV - Colectânea Documental. (12.6-28.7.1514), p. 438-444. 440 Idem, fl. 54, p. 442. 435
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Baluarte Oeste em Cunha
“Aos bastiões circulares substituíram-se os pentagonais, a que entre nós se ficou a chamar baluartes, com a base, isto é, a gola, a formar parte do polígono interno que as cortinas desenham, com dois flancos e duas faces unidas no ângulo como ponta de flecha (…). Eram inicialmente pequenos; de ângulos flanqueados obtusos; de flancos perpendiculares às cortinas, dando-se-lhes frequentemente em cerca de um terço da sua extensão flancos baixos com casamatas, além de um superior, retirado; de golas apertadas.”441
Embora com algumas modificações face àquela que era a sua imagem original442, decorrentes de sucessivas tentativas de restauro, a estrutura defensiva que se cogita ter sido adicionada ao Castelo de Cima também durante esta subfase do primeiro estágio, conformando o encontro entre os limites terrestres Oeste e Sudoeste, conserva-se até ao presente, no setor Ocidental da Medina, junto à atual “Bab Kasbah”, designada por “Borj Ben Amar” ()ﺑ ـ ـ ـ ـ ـ ـ ج ﺑـ ـ ـ ــﻦ عمــار. Trata-se de um baluarte em cunha assente num alambor de forma trapezoidal, de escala relativamente contida considerando o complexo defensivo total, porém destacadamente superior aos cubelos e torreões adjacentes. Os autores divergem quanto à determinação da designação desta construção durante o período português. Não havendo referências diretas à sua edificação, descrições de episódios bélicos que inegavelmente envolvessem a estrutura, ou, contrariamente ao análogo Noroeste, aparentes referências a este elemento no “Livro das medidas de Arzila, Alcácer, Ceuta e Tânger, feitas por mestre Boytac e Bastião Luiz em 1514”443, a análise do seguinte excerto, retirado do “Relação de algumas cousas da cidade de Tangere”, de 1621: “A caua tem seu principio na Torre do Sino donde ate o baluarte dos fidalgos he larga e feita a moderna, tem de largura sesenta palmos e de altura vinte, esta por acabar.”444, suscitava pela primeira vez a possibilidade de se tratar do “baluarte dos
fidalgos”, devido à menção da “Torre do Sino” e de uma cava que as fontes visuais mostram, de facto, existir entre os dois pontos445. Uma diferente interpretação do mesmo excerto, contudo, contradiz esta hipótese, defendendo que a designação correspondia à Johnson’s Battery446 dos mapas britânicos. O argumento baseia-se na análise do desenho da cava na cartografia coeva (Figura 168), na qual o segmento em que era “larga e feita a moderna”, não terminaria junto da construção abaluartada poligonal mas sim no remate da estrutura que se destaca em forma de “U” da muralha Sudoeste. Este elemento não possuía casamatas, era um “baluarte em tambor maciço”447, pelo que o armamento se dispunha no seu topo, e era orientado de forma a permitir a proteção das muralhas laterais. A sua construção implicou o desaparecimento do torreão O1, implantado no mesmo ponto, e provavelmente da torre A1 (Figuras 169 (1)). Na realidade, as fontes cartográficas representam, unanimemente, esta construção adstrita à plataforma, sem qualquer linha de diferenciação de alturas ou materialidade, especulando-se que, na linha cronológica deste setor, a sua construção ocorresse em
GONÇALVES, António Nogueira – A torre baluarte de Belém, 1964, p. 170. CORREIA, 2006, p. 201. 443 “Livro das medidas de Arzila, Alcácer, Ceuta e Tânger, feitas por mestre Boytac e Bastião Luiz em 1514” (A. N. T. T., Núcleo Antigo, n.º769, fl. 50-55v) in Portugal e Marrocos no século XV - Colectânea Documental. (12.6-28.7.1514), p. 438-444. 444 “Relação de algumas cousas da cidade de Tangere”, c. 1621, in DORNELLAS, 1913-23, II, p. 87-88. 445 CORREIA, 2014, p. 13. 446 ELBL, 2013, p. 266 a 272. 447 MOREIRA, 1989, p. 114. 441 442
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simultâneo, pensada como um todo, em complemento à Torre Baluarte. No elemento em análise verificase já o “princípio da defesa mútua.”448.
Figuras 167 (1) “Tangier” de Martin Beckman de 1661, (2) ”Description of Tanger” de 1663; (3) “A Mapp of the Citty of Tanger with the Straits of Gibraltar”; (4) “Map of Tangiers”, F0298 nº3, de 1664; (5) Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger (MPH 1_1_54), de 1683.
Figura 168 Mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001”.
Figuras 169 (1) Vértice Oeste do Castelo de Cima, anterior à reforma Manuelina; (2) Adição do baluarte em cunha no mesmo ponto.
448
MOREIRA, 1989, p. 105.
167
Muralha que desce do vértice Noroeste do Castelo
“(…) voltaram a entrar os mouros na cidade, pelo mesmo sítio da outra vez, junto à porta da Traição. Aproximando uma escada à muralha, subiram por ela, sem ser ouvidos (…). Não bastou o primeiro erro para evitar o segundo, e se os mouros tivessem forças e se soubessem valer da ocasião, poderiam facilmente ganhar a cidade no silêncio e obscuridade da noite. (…) Devido a isto se fez uma muralha, desde o Castello até ao mar, com uma torre no meio, para assegurar esta parte e deixar dentro huma courassa (…).”449
Esta linha defensiva complementar, adicionada ainda durante a primeira fase do Castelo de Cima de Tânger, encontra-se entre os raros elementos constituintes da fortificação os quais é possível datar com alguma segurança. De acordo com D. Fernando de Menezes, em 1533 alguns mouros conseguiram transpor a muralha Norte, colocando umas escadas junto à Porta da Traição450. O ataque é repetido 10 anos depois, demonstrando a fragilidade daquele ponto. É em resposta à segunda investida bemsucedida, que se constrói uma barreira fortificada, partindo do Castelo em direção ao mar, de forma a oferecer proteção a todo o setor Setentrional, onde se inseria a estrutura da referida Porta. A descrição parece corresponder integralmente ao pano murado representado em todos registos icono-cartográficos consultados, à exceção do mapa do “Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger” de 1683 e por razões óbvias do “Tingis Lusitanis Tangiara” e do “Tanger”. De facto, do tempo lusitano não existem registos tridimensionais deste elemento, pelo que o estudo da sua volumetria se baseia, obrigatoriamente, nas fontes subsequentes, apesar das transformações decorrentes da evolução daquela frente. A análise destes dados, confrontados com os dois únicos registos cartográficos pré-1661, possibilitam recriar a imagem desta construção. Com início na estrutura do ângulo Noroeste do complexo fortificado de cima, o braço de muralha com ameias e merlões, de altimetria relativamente reduzida, descia perpendicularmente à muralha Norte no sentido da orla marítima. É interessante perceber que a estruturação deste muro, nas cartografias do tempo português, segue o alinhamento da face Este do Baluarte-Torre, e consequentemente do limite interno da plataforma de artilharia. Possuiria uma porta junto à anterior construção, garantindo um maior controlo do único ponto de atravessamento do tramo, presumivelmente mais vulnerável. Entre a plataforma e a dita porta existiria ainda um torreão de perfil semicircular451, identificável na planta “Krigsarkivet 0406:07:009:001” (Figura 170 (1)) e na “Planta de Tangere” (Figura 170 (2)), do qual se desconhece a altura. Adossado à cortina, identifica-se nos mapas e gravuras utilizados um outro torreão, igualmente semicircular, voltado estrategicamente para Oeste, de onde viriam as investidas inimigas. Tendo em conta as variações de representação da muralha, nas diversas fontes visuais analisadas452, a identificação deste elemento, a “torre no meio”453 referida pelo
MENEZES, 1732, p. 65. “(...) em 26 de Setembro de 1533 (...) os Mouros escalaram a muralha, servindo-se de huma escada colocada ao lado da Porta da Traição." MENEZES, 1732, p. 61. 451 ELBL, 2013, p. 320. 452 Na planta mais antiga do tempo português, o “Krigsarkivet 0406:07:009:001”, a referida estrutura prolonga-se até aos limites do próprio mapa, gerando a dúvida se, na realidade, esta terminaria naquele ponto ou se continuaria o seu curso pela ravina. 453 MENEZES, 1732, p. 65. 449 450
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Conde da Ericeira, constitui um auxílio para a determinação da extensão total da barreira, considerando que se implantava na sua mediatriz.
Figuras 170 Aproximação à muralha que se prolonga do vértice Noroeste nas gravuras: (1) “Krigsarkivet 0406:07:009:001”; (2) “Planta de Tangere” de 1655;
Figura 171 Reconstituição hipotética da plataforma de artilharia adicionada ao Castelo de Cima, durante a primeira fase.
O reforço Manuelino, durante a primeira fase do Castelo de Cima, não interferiu com a estrutura do Paço pelo que, na reconstituição hipotética do complexo total, opta-se por representar somente uma das possibilidades de conformação, neste caso a segunda.
169
Figura 172 Reconstituição hipotética tridimensional do Baluarte-Torre Noroeste e muralha; Figura 173 Reconstituição hipotética tridimensional do Baluarte em cunha Oeste e plataforma de artilharia.
Figura 174 Planta da reconstituição hipotética do perímetro do Castelo de Cima da primeira fase, após o reforço defensivo Manuelino.
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2.3 – Segunda fase: Moderno
A segunda grande fase construtiva do Castelo de Cima inicia-se no momento em que arrancam as demoradas obras de reforma defensiva em Tânger, cujo resultado viria a alterar por completo a anterior imagem da fortificação, na segunda metade do século XVI. Neste processo participam diversas personagens de vulto no campo da arquitetura militar, enviadas à praça com esse propósito, e são gastas grandes somas de capital em materiais, operários e execução. Os trabalhos envolveram algumas adaptações, mas visaram fundamentalmente novas construções, ao gosto do novo tempo. Alusiva ao segundo estágio, existe uma significativa quantidade de informação disponível, possibilitando a conceção de propostas baseadas em fundamentos mais seguros. 171
Figura 176 SubdivisĂŁo do estudo do perĂmetro do Castelo de Cima da segunda fase em quatro frentes: Este, Sul, Oeste e Norte.
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2.3.1 - A necessidade de um profundo reforço defensivo nas praças conservadas
“Na esteira da queda de Sta. Cruz do Cabo de Gué (1541) e da reforma dos sistemas defensivos de Ceuta e Mazagão, os arquitetos portugueses aprenderam, com Benedetto de Ravena, o arquitecto de Carlos V, a arte de fortificar “à italiana”, com baluartes angulosos454.”
O ponto de viragem no panorama de controlo das possessões norte africanas é despoletado pelo episódio da perda de Santa Cruz do Cabo de Guer, em Março de 1541. Após seis meses de cerco por parte do Xerife Mohammed Ech-Cheikh455, os portugueses rendem-se, com grandes perdas de vidas humanas. Este acontecimento veio alertar D. João III para a fragilidade defensiva de alguns dos portos do Norte de África. A decisão de manter apenas três praças456, Ceuta, Mazagão e Tânger, apostando tudo no seu reforço e fortificação, num esforço para as conservar na posse do reino, é prova da mudança de estratégia característica do reinado do monarca, traduzida numa quebra da política expansionista457. “(…) a figura central desse processo foi o arquiteto Miguel de Arruda, criador de uma verdadeira escola nacional de arquitectura militar e urbanismo cujos discípulos levaram aos quatro continentes as directrizes, se não os próprios planos, traçados no seu atelier. É o caso de André Rodrigues e Jorge Gomes (…).”458
Em Junho desse mesmo ano, a pedido de D. João III, o italiano Benedetto de Ravena459, arquiteto militar ao serviço de Carlos V em Gibraltar, reúne-se em Ceuta com Miguel de Arruda460, a quem comunica os seus projetos, e partem seguidamente para Mazagão461.
454 BARROCA, Mário Jorge –
Tempos de Resistência e de inovação: a arquitectura militar portuguesa no reinado de D. Manuel I (14951521). Volume XXVI. Nova Série. PORTVGALIA, 2003, p. 109. 455PAULA, Frederico Mendes – Histórias de Portugal em Marrocos: Santa Cruz do Cabo de Guer. 18 de Fevereiro de 2015 in https://historiasdeportugalemarrocos.com/2015/02/18/santa-cruz-do-cabo-guer/. 456 A perda de Santa Cruz do Cabo de Guer conduziu a uma avaliação dos territórios conquistados no Norte de África. São evacuadas e abandonadas as vilas de Alcácer Ceguer, Azamor e Arzila e a cidade de Safim, entre 1542 e 1550. São mantidas Ceuta, Mazagão e Tânger. 457 Na verdade, já durante o reinado de D. Manuel se percebe um progressivo declínio do poder português no norte de África. Os mouros intensificavam cada vez mais os seus assaltos às possessões portuguesas, à medida que se apercebiam da sua crescente força a cada ataque. LOPES, 1989, p. 67. 458 MOREIRA, 1989, p. 155. 459 Benedetto de Ravena (1485-1556) foi um arquiteto militar italiano que trabalhou ao serviço de várias cortes europeias particularmente para a espanhola. 460 Miguel de Arruda (1500-1563) foi uma figura de grande relevo no panorama da arquitetura portuguesa do século XVI. Arquiteto e engenheiro militar, era filho de Francisco de Arruda e sobrinho de Diogo de Arruda, também eles personagens de vulto no mesmo campo, associados ao período Manuelino, de transição e numa fase final ao Moderno, trabalhando também no Norte de África. 461 Os projetos-base de Benedetto de Ravena foram revistos por Miguel de Arruda e Diogo de Torralva. No entanto, os portugueses não copiaram na íntegra nenhum modelo italiano. MOREIRA, Rafael in SERRÃO, Vítor – História da Arte em Portugal: O Maneirismo, Volume 7, 1993, p. 140.
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2.3.2 – Intervenção em Tânger: O projeto e construção da Cidadela
Em Tânger, as intervenções de reforço defensivo começam timidamente por volta do ano de 462
1546 . Francisco Botelho era o então capitão-mor e André Rodrigues o mestre-de-obras da praça463, cujo trabalho era orientado por Arruda, com quem se correspondia frequentemente. Dois anos depois, em 1548, é pela primeira vez sugerido ao governador, por espanhóis em visita a Tânger, uma concentração de esforços no reforço do Castelo de Cima, substituindo uma intervenção estendida a toda a cidade. “(…) lhe mostrey a cidade toda por demtro, e a tarde o campo; ficaram contentes do que vyram nele e das obras que V. A. manda fazer, e a eles e a seo forteficador, que trazia comsyguo, lhes pareçeo mais necesaryo forteficar-se o castello primeyro que a cidade, e a mym asy m'o pareçeo sempre, e por iso o escrevy a V. A..” 464
Em 1549, ano em que recebe o cargo de “Mestre das Obras da Fortificação do Reino, Lugaresd’além e Índias”465, o próprio Miguel de Arruda é enviado por D. João III à praça e a Alcácer Ceguer466. Contudo, paralelamente a isso, no final da primeira metade do século XVI, afluíam à cidade um grande número de judeus vindos de Azamor467 e Safim bem como uma boa parte do exército que antes defendia as quatro praças abandonadas e ainda clérigos e religiosos da igreja e mosteiro de Arzila. Esta súbita concentração de pessoas veio contribuir para o atraso do programa de fortificação468. Nos anos que se seguiram, a falta de financiamento, mão-de-obra e cal469 determinaram também a estagnação das obras durante algum tempo.
“(…) fyz quatro tramqueyras em hos quatro caminhos prymcypaes e a cada hua delas duas pasages hua pera o gado e hontra pera a geiiite de caualo da maueira e feyçam que Mygell darruda hordenou hos de ceyta (…). Mudei ho chafaryz do almiramte que esta no caminho dos tres fachos pera hua ilharga por estar de todo desmamchado e fazer ho caminho mais direyto e largo tam bem com ho parecer do capitaom (…).Tenho laurado hos tres portaes — s — ho da çidade que serue pera fora e hos dous pera ho castelo nouo todos de cãtarya e ha sym ho arquo pera o aroyo com ha mais cantarya pera os canos da caua nesesaryos, e houtra muita asêtada e parte dela posta na praia da vyla velha homde se ha de fazer ho lambor, e por que nao era vymdo cali nao a tenho assemtada.(…).” Carta de André Rodrigues a D. João III, 1546, A.N.T.T., Corpo Cronológico, 1ª parte, maço 78, doc. 52 in SOUSA VITERBO, 1922, vol. II, p. 383. 463“Rodrigues (André) - Trabalhou na fortificação de Tanger segundo consta de duas cartas suas (…).” SOUSA VITERBO, 1922, vol. II., p. 382. 464 Em 1548 Francisco Botelho recebe em Tânger, a 8 de Agosto de 1548, o espanhol Joam de Mendoça, que comandava nove galés, e ainda o Conde de Concemtayna, D. Inhiguo de Mendoça, D. Noto e outros fidalgos, a quem mostra a cidade e dos quais recebe a recomendação de concentrar os reforços de fortificação no Castelo de Cima. Carta de Francisco Botelho a D. João III, Tânger - 12 de Agosto de 1548 (IAN-TT - Corpo Cronológico, parte I, maço 81, doc. 23.) in LES SOURCES inédites de l'Histoire du Maroc. Première Série — Dynastie Sa'dienne Archives et Bibliotheques de Portugal Tome IV, Janvier 1542 - Decembre 1550, par Robert Ricard, Paris, Paul Geuthner, 1951, p. 290 e 291. 465 SOUSA VITERBO, 1922, vol. I, p. 72. 466 CORREIA, 2006, p. 197. Consultar Carta de D. João III a D. Pedro de Mascarenhas, Lisboa - Agosto de 1549. 467 Carta de D. João III a D. Fernando de Noronha, Lisboa – 2 de Setembro de 1541 (Biblioteca de Évora, cod. CIII/2-20, fl. 151) in LES SOURCES inédites de l'Histoire du Maroc. Première Série — Dynastie Sa'dienne Archives et Bibliotheques de Portugal Tome III, Janvier 1535 Décembre 1541, par Robert Ricard, Paris, Paul Geuthner, 1948, p. 516 e 517. 468 CORREIA, 2006, p. 197. 469 Em 1554, Bernardim de Carvalho, pedia a D.João III meios para poder fortificar a cidade e assim defendê-la “de toda a mourama” “(…) Esta cidade estaa comas cavas todas abertas. Compriaao serviço de V. A. mamdar-me jemte d'obra e call e dinheiro; e com ajuda de Deos far-se-a a cavaa e traveses que V. A. mamda fazer per seu rregimento em pouco tempo, eisto feito fiqua forte, ficando pêra se poder defemder com ajuda de Deos de toda a mourama, temdo mamtimentos que aguora não tenho, e a jemte neçesaria. A jemte de cavallo que tenho pedido a V. A. os dias pasados, faça V. A. merçe de prover, e asy allgum dinheiro pêra se encavallgarem descomtamdo-se dos sólidos que lhes são devidos.” Carta de Bernardim de Carvalho a D. João III – 6 de Outubro de 1554, I.A.N.-T.T. – Corpo Cronológico, parte I, maço 93, nº 126 in LES SOURCES inédites de l'Histoire du Maroc. Première Série — Dynastie Sa'dienne Archives et Bibliotheques de Portugal Tome V Documents Complementaires (1552-1580) par Robert Ricard, Paris, Paul Geuthner, 1953. 462
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Novos impulsos para o andamento da missão viriam a acontecer já sob regência de D. Catarina (1557-1562)470. São enviados a Tânger, em 1558, os arquitetos régios: Diogo Telles471 e Isidoro de Almeida472 para, por fim, se executar a modernização das fortificações, em colaboração com o mestre-deobras da cidade473. No mesmo ano chegam também à praça Cristóvão da Cunha e o seu irmão Vasco da Cunha, o primeiro dos quais, em correspondência a D. Catarina, a tranquiliza quanto ao grau de dificuldade e gastos inerentes à “forteficação asy da cidade como do castelo amtiguo dos mouros e nouo dos cristãos (…).” 474 porque, de acordo com ele, “(…) con pouco guasto se poderão emendar alguns defejtos que nela ha.” 475. Também o segundo refere em correspondência à monarca que “(…) a despesa sera tão pouca que V. A. se maravylhe, por que ho mais dysto a de ser de terra (…)”476. Na carta de André Rodrigues para a regente,
datada de 19 de Julho de 1558, o mestre informa-a que, acompanhado pelo governador, por Diogo Telles e pelos recém-chegados irmãos Cunha, percorreu a urbe ouvindo os pareceres do grupo “(…) e porque não sabem traço nem debuxos me pedirão que lhos fizese de toda a cidade (…)”. Cumprindo o pedido, Rodrigues
afirma que executa “traça” da cidade, hoje em paradeiro incerto, com o objetivo de facilitar o entendimento da situação de todo o conjunto urbano e propõe já o projeto de grande dimensão no Castelo Velho477. “(…) e por me pareçer seruiço de vossa alteza, pera mjlhor decraração de seu dizer lhe fiz a traça da maneira que vosa alteza vera que pareçe ir bem decrarada, e os apontamêtos de seus pareceres escreuo ao conde e o Isidoro dalmeida por que qua esteue pera os decrararem a vossa alteza, posto que na dita traça uai por letra a decraração dos mais delles o que tambem escreuerão a nosa alteza, e parece que fortificando se da maneira que uai na traça sera pera de todo ficar em sobre feição, espicialmente o castello uelho, porque lhe fiqua a cidade tam sogeita e tamto debaixo dartelharia que parece que os immiguos ha não quererão cometer uendo a pouqua esperança que terão de tomar o dito castello, (…).”478.
Um ano mais tarde, em 1559, ocupa o cargo de mestre-de-obras da praça, Jorge Gomes479. Este elabora um “modelo” da cidade, também desaparecido na atualidade, para D. Catarina, que acompanhava com manifesto interesse o andamento dos trabalhos.
D. Catarina, avó de D. Sebastião, é regente durante a sua menoridade. “Telles (Diogo). Era cavaleiro da casa real e exerceu o officio de architecto de D. João III e D. Sebastião. (…) D. Sebastião, em carta de 25 de Junho de 1557, o nomeou para ir servir nas obras de Tânger (…).” SOUSA VITERBO, vol. III, 1922, p. 88 e 89. 472 “Almeida (Isidro de). Se não era architecto militar, era pelo menos engenheiro de fogos, entendido na defesa das praças (…) porventura um engenheiro de minas (…) tanto das minas de fortificação, como das minas metálicas. (…) Deprehende-se que elle era architecto ou engenheiro militar de uma carta (…) em que lhe ordena que ‘veja com Isidro de almeida como se pode estreitar e acomodar o sítio de Tanger para um caso de necessidade. (Annaes de D. João III, p.463).” SOUSA VITERBO, vol. I, 1922, p. 7-10. 473 Em Carta, o mestre André Rodrigues refere a colaboração dos dois arquitetos. ”Sõra. – Dioguo Tellez cheguou ha esta cidade ho derradeiro de Junho e loguo lhe foi dado pose do seu oficio como nosa alteza mandou; uio o que se fazia no couello do bispo pello Regimento de vossa alteza que Isidoro dalmeida trouxe: não lhe pareçeo bem porque diz que se ade fazer hum baluarte major (…)..” Carta de André Rodrigues a D. Catarina, Tânger - 19 de Julho de 1558 I. A. N. T. T., Corpo Cronológico, parte I, maço 102, doc. 126) in SOUSA VITERBO, 1922, vol. II, p. 383-384. 474 “Carta de Cristóvão da Cunha representando à Rainha ver a Fortificação de Tânger conforme as ordens de sua Alteza, achando que com pouco gasto se poderiam emendar os defeitos dela como também do Castelo Antigo dos Mouros e novo dos Cristãos, sobre o que também escrevia seu irmão Vasco da Cunha a sua Alteza.” A 12 de Julho de 1558 A. N. T. T. Corpo Cronológico, 1/102/120, fol. 1. In http://antt.dglab.gov.pt/. 475 Ibidem. 476 Carta de Vasco da Cunha à Rainha Regente a 12 de Julho de 1558 A. N. T. T. Corpo Cronológico, 1/102/119, in ELBL, 2013, p. 643. 477 Enquanto as grandes obras não principiavam, Rodrigues acompanhava as obras no cubelo do Bispo (atual Tour des Irlandais), cujo baluarte teria de sofrer alterações de acordo com o Regimento enviado pela rainha. CORREIA, 2006, p. 196. 478 Carta de André Rodrigues a D. Catarina, Tânger - 19 de Julho de 1558 I. A. N. T. T., Corpo Cronológico, parte I, maço 102, doc. 126) em SOUSA VITERBO, 1998, vol. II, p. 383-384. 479 “Gomes (Jorge). (…) Era cavalleiro de Christo, mestre de obras da cidade de Tanger, onde já o encontramos em junho de 1559, levantando a planta ou tirando o modelo d’aquella praça. (…).” SOUSA VITERBO, Vol. I, 1922, p.432, 433 e 434. 470 471
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“Eu cheguei a esta sua cidade a doze de março (…) e cheguando comecei a emtemder o modello, que V. A. me mâdou fazer desta cidade, e niso amdo bem ocupado, trabalhamdo de dia e de noite (…).”480
Sabe-se, através da correspondência mantida com a rainha, que ocorriam alguns desentendimentos entre o mestre e os arquitetos régios, particularmente Diogo Telles481, causados por disputas de autoridade, que resultariam, uma vez mais, no comprometimento do início das obras. Também o cerco de Mazagão, em 1562, obrigou à união de esforços nessa praça, tenho Isidoro de Almeida deixado Tânger para prestar assistência na cidade portuguesa mais a Sul482. Apesar de tudo, não se extinguira a determinação de prosseguir com os trabalhos. Nos inícios da década de sessenta do século XVI, o governador Bernardim de Carvalho483, em carta ao então monarca D. Sebastião, pede novamente cal para poder efetuar a fortificação do Castelo Velho, porque até à data a cidade continuava “(…) tam mal forteficada (…).”484. Simultaneamente na metrópole, realizavam-se, entre 1562 e 1563, as Cortes de Lisboa
que evocavam o compromisso passado de conservação e proteção das três praças norte africanas, reestabelecendo-se a responsabilidade de aumentar a atuação do reino nesse sentido485. É no mandato do governador Lourenço Pires de Távora486, a partir de Abril de 1564, que se executa verdadeiramente grande parte da empreitada487. Durante esse período verifica-se uma contínua troca de correspondência entre o administrador e a Coroa, intensificada ao longo do segundo semestre desse ano e o início da primeira metade do seguinte. Entre os assuntos tratados, destaca-se o envio de materiais e mão-de-obra, despesas estimadas e gastas, e descrição do avanço dos trabalhos. No começo da nova governação existia na praça uma concentração de pessoas muito superior à habitual para colaborar nas obras de fortificação488, dado que por si só revela a envergadura do projeto. Apesar de, nesta fase inicial, a tensão vivida pela eminência de um cerco condicionar a regular entrega de materiais vindos de Portugal489, a insegurança funcionava igualmente como um incentivo ao aceleramento dos trabalhos, que decorriam ininterruptamente, implicando grandes movimentos de
Carta de Jorge Gomes a D. Catarina, Tânger – 2 de junho 1959, I. A. N. T. T, Corpo Cronológico, parte I, maço 103, doc. 80) in SOUSA VITERBO, 1922, p. 432. 481 “(…) deste carguo de que me fes merce amda hum pouco deramado, por que Dioguo Telles quer ser tudo, asi que per este respeito detremino acabar o modello pero o lleuar e tratar do que e de cada hum, asi pera V. A. ser veruida, como pera cada hum seruir seu carguo ser aver nisto desavemças (…).” Ibidem. 482 CORREIA, 2006, p. 199. 483 Governador de Tânger de 1554 a 1564 por nomeação de D. Catarina. 484 “(…) por esta çidade estar tam mal fortificada como estaa. Pelo que V. A. deve de mandar cal pera se poder forteficar este castelo, porque, se me mandar o necessário, com ajuda de Deus, este verão o forteficarei (…).” Carta de Bernardim de Carvalho a D. Sebastião I, 31 Mar. [1562/1563] – I.A.N.-T.T., Gaveta 15, maço 13, nº 3 em CORREIA, 2006, p. 199. 485 “As Cortes de 1562-1563 (…) irão, na verdade, definir uma orientação inequívoca na política a seguir no Norte de África (…) preconiza-se a manutenção de todos os domínios portugueses no Norte de África, numa condenação directa ao projecto de abandono de Mazagão, na época em discussão (…) e um reforço da nossa posição em Tânger. Todo este desejo de intensificar a nossa acção nos reinos norte-africanos corresponde, desta forma, a um projecto de política, simultaneamente defensiva e ofensiva, passando pelo fortalecimento das três praças portuguesas de Marrocos setentrional e meridional, pelo investimento na guerra de África de recursos humanos (…).” CRUZ, Maria Leonor García da - Lourenço Pires de Távora e a política portuguesa no Norte de África no século de quinhentos, 1988, p. 414-415. 486 Lourenço Pires de Távora (1510-73), terceiro Senhor da Torre da Caparica (Almada), foi governador de Tânger de junho de 1564 a abril de 1566. CRUZ, 1988, p. 436. 487 “Em seu tempo [o governador Lourenço Pires de Távora] fortificou o Castello com Baluartes, e terraplenos mais ao moderno, posto que a obra ficou imperfeita, e não houve depois curiosidade para se acabar (…).”. MENEZES, 1732, p. 88. 488 CRUZ, 1988, p. 436. 489 A perspectiva de um cerco a Tânger no futuro próximo [anunciada em finais de 1564] irá condicionar drasticamente a própria política de abastecimento da praça. (…) opta-se, de facto, por deixar para uma oportunidade posterior, o envio de todo o material por aquele requisitado para as obras de fortificação.” CRUZ, 1988, p. 435. 480
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terras e a demolição de várias casas490. Sabe-se que em Novembro de 1564, a empresa se realizava com bastante rapidez, para agrado do Cardeal Infante491. É também através de uma missiva por ele remetida ao governador, a 4 de Janeiro de 1565, que este manifesta grande apreço pelo trabalho de monitorização “(…) na obra da forteficasão de dentro (…)”492. Neste tempo são consultados e mais tarde enviados à praça,
para trabalhar em conjunto com Jorge Gomes, dois italianos, um dos quais referido por D. Henrique como “Capitão Benedito”493, possivelmente Tommaso Benedetto de Pésaro494 acompanhado pelo seu irmão
Doutor Benedetto, mencionados por Rafael Moreira enquanto fortificadores de Tânger e Ceuta em 15651566495. Por meio da anterior carta, D. Henrique informa Pires de Távora que um dos italianos por ele consultados se dirigiria à cidade “(…) e quoanto ao que toca a forteficasam de fora eu tenho mandado uir a Mim os Italliannos para com elles me acabar de ResoLuer com toda a breuidade posiuel e em deligençia determino mandar hum dos ditos Italliannos a esa Cidade para melhor poderdes efectuar a dita forteficasão (…).”496. É interessante
perceber aqui a distinção de dois tipos de obras “a forteficasão de dentro” e “a forteficasam de fora”, para a qual foram especificamente solicitados os estrangeiros. Uma interpretação imediata destas palavras sugeriria a existência simultânea de construções no interior mas também no exterior da cidade, estando as primeiras bastante adiantadas à data da redação da carta497, e as segundas apenas começariam após a conclusão das primeiras498. Estranhamente, não parecem existir, nas fontes cartográficas e iconográficas consultadas, intervenções significativas externas ao perímetro urbano, além da conclusão da cava incompleta em alguns pontos, nomeadamente no setor Noroeste, que justificassem uma necessária instrução de especialistas italianos499. Martin Elbl levanta uma outra possibilidade plausível: “In 1564, Girolamo Cataneo called "fab[b]rica di dentrouia" the internal brick/stone "framing" typical of most bastioned “(…) Enquanto às casas que se tornaram para a fortificação (…) há de trazer ou enviar os títulos que tiveram das propriedades que lhes forem tomadas e avaliadas (…)”.Carta do Cardeal Infante em nome de el-Rei D. Sebastião a Lourenço Pires de Távora – BNL. cód. 2633, fis. 11v-12: Lisboa – 20 de Outubro de 1564 fl.26v 491 “(…) Muito folguei de uer o que m’escreueis que he feito na obra de fortificasão dessa Cidade e do cudado (sic) que tendes em uos aiudardes da gente que nella esta e de não perderdes tenpo que uos eu agradeço muito que fasaes.” Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Lisboa, 1 de Novembro de 1564 A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, ff. 26-29. in CRUZ, 1988, Apêndice Documental, p. 567. 492 Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Almeirim, 4 de Janeiro de 1565, A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, f. 35. In http://antt.dglab.gov.pt/ (salvaguardo aqui possíveis erros na compreensão da paleografia, devido à consulta a partir do manuscrito digitalizado). 493 “ (…) quoanto o que toca as obras da dita fortificassam e o niso desseis tanto que uir o debuxo e tomar imformação da ppessoa que esperais de m’emuiar loguo uos Responderei o que assentar e me pareser meu Seruiço. O Capitão Benedito tenho mandado (…).” Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Lisboa, 28 de Maio de 1565.A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, ff. 47-50 in CRUZ, 1988, Apêndice Documental, p. 580-582. 494 Tommaso Benedetto de Pésaro foi um arquiteto e engenheiro militar italiano que terá chegado a Portugal por volta de 1558, 1560, contatado pela regente D. Catarina, tendo trabalhado antes disso em Veneza e possivelmente em Malta. 495MOREIRA, 1989, p. 155. 496 Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Almeirim, 4 de Janeiro de 1565.A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, f. 35. In http://antt.dglab.gov.pt/ (salvaguardo aqui possíveis erros na compreensão da paleografia, devido à consulta a partir do manuscrito digitalizado). 497 “(…) enquanto esa Cidade se não forteficar [de fora] que com aiuda de Deus sera muito sedo pois uedes quoanto isto importa (…) pouco tempo sam informado se fes a forteficasam de dentro de que tenho o contentamento que he visam pelo que uos agradeserei muito pareseruos isto assim bem (…).” Ibidem. 498 “Pareçe bem mão se começaar a obra de fora sem ser posta em defemsa a que ora se faz demtro e asy nãao se deue começaar se nesta çidade estarem yumtos dez mil moyos de cal pera a de fora com esta camtydade se ya lauramdo e a que mais ser neçesario se pidyra e tirara em tempo com boa comodydade.“ Apontamento das cousas neçesaryas pera obra e fortifiquação que ora el Rey nosso Senhor ordena se faça nos pumares Respomdendo a outro apomtamento dos Italyanos que pera o feyto da mesma obra ffezerão a 2 de Abril de 1656 in A.N.T.T., Códices e Documentos de Proveniência Desconhecida, nº 53, Papéis da embaixada de Inglaterra e da jornada de Castela sobre a ida da infanta D. Maria, com outros vários, todos do tempo do Senhor Lourenço Pires de Távora, fols. 214-215v). 499 Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Almeirim, 12 de Fevereiro de 1565, A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, f. 38. In http://antt.dglab.gov.pt/ (salvaguardo aqui possíveis erros na compreensão da paleografia, devido à consulta a partir do manuscrito digitalizado). 490
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fortifications ( i. e. everything from the counterforts to the casemate support piers), crucial in order to achieve superior structural properties. The term "fab[b]rica di dentrouia" is reasonably close to the Portuguese "obra de dentro", word for word alone. If "obra de dentro"="internal framing", then "obra de fora"="external revetment" and trim. Both necessarily located in the same space, representing simply two discrete construction stages the same structure (…).”500.
De facto, todas as descrições alusivas aos trabalhos parecem reportar-se à mesma construção, inclusivamente, o “Apontamento das cousas neçesaryas pera obra e fortifiquação”501, enviado ao monarca a 2 de Abril de 1565, dizendo respeito apenas a intervenções no Castelo de Cima. Deste modo, revelava-se efetivamente provável que a diferenciação da fortificação de “dentro” e de “fora” se utilizasse para distinguir, respetivamente, as obras de estruturação interna e preenchimento dos baluartes das obras de revestimento e consolidação externa. Na carta de 16 de Julho de 1565, de D. Henrique a Lourenço Pires de Távora, há referência de uma dúvida relativa à construção do “belluarte da comseisão”502 para a qual o Cardeal aconselha o governador, “por os italliannos serem nessa Cidade e nella Se poder milhor tratar da dita duuida”503, a seguir as suas indicações. Deduz-se, deste modo, que os trabalhos na Cidadela ainda decorriam em meados de 1565, sob instruções dos arquitetos de fora. Aliás, um ano depois, a 19 de Agosto de 1566, através da carta do então capitão-mor D. João de Menezes504 a Pedro de Alcáçova Carneiro, torna-se evidente de que a empreitada perduraria. “(…) os cavouqueiros arrenquão pedra na parte onde a de ser a cava ; a que sahe e he pêra cantaria lavrão-na os pedreiros pêra o cordão que a de aver no baluarte de S. João ; e se comesou levar-la pêra se nele asentar quando vier recado de S. A. do que se a de fazer alem do que ficou pêra se fazer nelle que ja he feito ; na cortina que vai do baluarte Esprito Santo ao baluarte da Comseição he acentado todo o cordão e esta fermoso; a cava da banda face Esprito Santo se acabara de abrir ate fim d'este mes ; polo meo se põem a pedra d'alvenaria que se poderá aver mister pêra se poder fazer a comtrachapa (…).”505.
Retira-se deste excerto que, pela altura da redação da missiva, se escavava a cava, de onde os blocos de cantaria extraídos e talhados constituiriam o cordão que se assentaria em torno do “baluarte de S. João”, elemento este já colocado na ”na cortina que vai do baluarte Esprito Santo ao baluarte da Comseição”.
Nesta mesma carta, o governador pede instruções à Coroa e manifesta o seu desagrado face ao lento andamento dos trabalhos “por não ser vindo o mestre d'ellas que Ia ficou, nem se saber qua per onde se a de seguir a obra”. Conclui-se assim que, havendo ainda segmentos por acabar, a Cidadela só se concluiria após
agosto de 1566. Desta forma, considerando que a obra se estendeu até à administração de D. João de Menezes, afasta-se a hipótese da inscrição, existente até ao século passado, “REINANDO O CRISTIANIS/ SIMO
500
ELBL, 2013, p. 661.
501 A. N. T. T., Códices e Documentos de Proveniência Desconhecida, nº 53, Papéis da embaixada de Inglaterra e da jornada de Castela
sobre a ida da infanta D. Maria, com outros vários, todos do tempo do Senhor Lourenço Pires de Távora, fols. 214-215v. 502 Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Lisboa, 16 de Julho de 1565. A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, ff. 52-53 In http://antt.dglab.gov.pt/ (salvaguardo aqui possíveis erros na compreensão da paleografia, devido à consulta a partir do manuscrito digitalizado). 503 Ibidem. 504 Governador de Tânger de 1566 a 1572. 505 Carta de D. João de Menezes a Pedro de Alcáçova Carneiro a 19 de Agosto de 1566 in LES SOURCES Inédites de l'Histoire du Maroc. Première Série — Dynastie Sa'dienne Archives et Bibliotheques de Portugal Tome V, Janvier 1535 Décembre 1541, par Robert Ricard, Paris, Paul Geuthner, 1948, p. 111.
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REI DOM SEBASTIÃO I/ (…) GOVERNANDO ESTES REINOS/ (…) INFANTE CARDEAL/ (…) HENRIQUE./ (…) LOVRENCO/ (…) SE FEZ ESTA/ (…) ORDENOV/ (…) M. D. LXVI.”506, “onde a palavra “fortaleza” (…) afastada pela erosão”507, ligava
os nomes de D. Sebastião, do Cardeal D. Henrique e de Lourenço Pires de Távora, estar relacionada com o seu momento inaugural. Igualmente, a alusão de D. Fernando de Menezes à obra “imperfeita”, durante a administração de Lourenço Pires de Távora, faz mais algum sentido, estando os trabalhos ainda por finalizar durante o mandato deste governador “(…) posto que a obra ficou imperfeita, e não houve depois curiosidade para se acabar (…).”508. Fica ainda subentendido que nunca terá sido integralmente concluída,
talvez porque, embora “imperfeita”, a composição fosse suficientemente resistente para desempenhar, de forma eficiente, a sua função. Isso mesmo prova a exclamação de D. Sebastião: “Vós deveis achar que tenho muito medo dos mouros, pois fizésteis este castelo tam forte!”.509 palavras que transmitem, por um lado, a noção
das dimensões, força e monumentalidade da Cidadela e, por outro, através da utilização de um tempo verbal passado, que se considerariam finalizados os trabalhos durante o reinado deste monarca.
Quatro fragmentos encastrados na muralha do setor Este da Cidadela, possuindo diferentes dimensões foram descobertos por Gilbert F. Bons e Molle, em 1937. Transcrevendo as palavras que se conseguiram recuperar, podia ler-se “REINANDO O CRISTIANIS/ SIMO REI DOM SEBASTIÃO I/ (…) GOVERNANDO ESTES REINOS/ (…) INFANTE CARDEAL/ (…) HENRIQUE./ (…) LOVRENCO/ (…) SE FEZ ESTA/ (…) ORDENOV/ (…) M. D. LXVI.” CRUZ, 1988, p. 460. Consultar ainda RICARD, Robert – Bulletin des études portugaises, T.V., 1938, p. 15-24 e RICARD, Robert – Études sur l’histoire des portugais au Maroc, p. 413-424. 507 CORREIA, 2006, p. 201. 508 MENEZES, 1732, p. 88. 509 LA VÉRONNE, Chantal de-Tanger sous l’occupation anglaise d’après une description anonyme de 1674, Paris, Geuthner, 1972, p. 155 In CORREIA, 2014, p. 12. 506
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2.3.2.1 Materiais
“Para as erguer [fortificações das praças norte africanas] não se pouparam os bons materiais, alguns deles vindos de Portugal, como a pedra de cantaria, a madeira e a cal.”510
A eficácia das fortificações modernas assentava na combinação de dois pontos fundamentais: a precisão da geometria do seu desenho e a resistência dos materiais constituintes da sua composição511. Por esta altura já se tinha plena noção de que a baixa capacidade de absorção da força impactante das superfícies muito duras, típicas de antigas construções militares, condicionava a sua eficácia face aos disparos dos projéteis de fogo, cuja detonação resultava em perigosos ressaltos e na lascagem dos muros. Desta forma, a rigidez da pedra seria desfavorável no travamento do impacto da artilharia de fogo. Em Tânger, sabe-se que o solo era no “alto de sima (…) quasi todo em pedra uiua”512, e que dele se retirava matéria prima para a própria construção “os cavouqueiros arrenquão pedra na parte onde a de ser a cava ; a que sahe e he pêra cantaria lavrão-na os pedreiros pêra o cordão (…).”513. No entanto, esta é a única referência ao uso de
cantaria, aplicada no cordão da fortificação. De uma maneira geral, as fontes documentais coevas contêm numerosas menções aos materiais utilizados ou solicitados ao Reino, quantidades, preços e aplicação nas obras. Por essa razão, importa fazer uma resumida alusão a alguns desses dados, importantes para compreender a própria constituição e estruturação dos novos elementos. Para além do conteúdo de algumas missivas, destaca-se de entre todo o acervo: o “Apontamento das cousas neçesaryas pera obra e fortifiquação que ora el Rey nosso Senhor ordena se faça nos pumares Respomdendo a outro apomtamento dos Italyanos que pera o feyto da mesma obra ffezerão.”514,
onde se pedem “dez mil moyos de cal pera a [fortificação] de fora”515, “cimquoenta quimtais de fero alem de uimtaquatro quimtais que estã em poder do feytor”516, “Aço (…) tem o feytor agora dezaseys quimtais delle.”517, “A faxina que os Italyanos apomtãao nãao se mãde porque semdo neçeçarya qua se remedeara.” 518, “(…) cimquoenta milheyros de tigolo pera obra de fora porque pera de dentro teremos aymda sesemta milheyros” 519, “Quimtalynhos desparto pera caretar terá teremos qua çimquo mil (…)”520,“Deue sse mãdar quinhentos çestos de uerga cõ os quais se trabalha em tempo que a tera he muyto molhada (…)”521, “Não se pede madeira por que ao presemte temos a que pareçe que basta e gastandose se pidyra em tempo e o mesmo se diz de feramenta e pregadura.” 522, “Pareçe que temos caaruãao para tres meses (…).” 523, “Cal para obra que se faz dentro nam deixa de uir cõ muyta dellygencia e
LOPES, 1989, p. 41. LOPES, 2009, p. 45. 512 DORNELLAS, 1913-23, II, p. 88. 513 Carta de D. João de Menezes a Pedro de Alcáçova Carneiro a 19 de Agosto de 1566 in LES SOURCES Inédites de l'Histoire du Maroc. Première Série — Dynastie Sa'dienne Archives et Bibliotheques de Portugal Tome V, Janvier 1535 Décembre 1541, par Robert Ricard, Paris, Paul Geuthner, 1948, p. 111. 514 A. N. T. T., Códices e Documentos de Proveniência Desconhecida, nº 53, Papéis da embaixada de Inglaterra e da jornada de Castela sobre a ida da infanta D. Maria, com outros vários, todos do tempo do Senhor Lourenço Pires de Távora, fols. 214-215v). 515 Idem, fol. 214. 516 Ibidem. 517 Ibidem. 518 Ibidem. 519 Ibidem. 520 Ibidem. 521 Idem, fol. 214v. 522 Ibidem. 523 Ibidem. 510 511
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para a dita obra se acabaar de por em defemsa ssão nececaryos mil moyos (…).”524, além de alimentos, capital e
trabalhadores. O documento sem título anexado ao anterior525 contém mais alguns aspetos relevantes relativos a materiais e ao seu respetivo valor. Não sendo imprescindíveis para o seguimento do estudo, os custos dos componentes não são aqui alvo de análise. Assim, os elementos referidos surgem nas seguintes citações: “leua esta obra cemto e cimquoenta e duas mil faxinas semdo a faxina de quatro palmos de comprido e huum de groso” 526, “(…) quinze mil e trezentos adobes que leuao quatro cemtos sasenta panais de palha”527, “Avemdose de fazer esta obra darquos de pipas leua treze mil e seiscemtos e cimqoemta e sete feixes darquos semdo ho feixe de hoito duzias e quimze palmos de comprido”528, “Avemdose de fazer de madeira. De viguas, traçadas, escoras: leua mil duzemtos viguas (…) e de traçadas leua quatro cemtos e cimquoenta que são duzentos e cimquoenta caros (…) leua quinhemtas e çimquoenta escoras (…) leua de pranchas mil e çemto (…) pode leuar de preguadura cem mil réis que ao todo soma.” 529.
Outros materiais de uso mais esporádico surgem mencionados em situações específicas, de que se falará mais adiante. Assim, de uma maneira geral, as matérias-primas empregues na reforma defensiva resumem-se a sete principais elementos. A cal, inúmeras vezes referida em diversas outras fontes, era amplamente utilizada tanto na fortificação de fora como na de dentro “ porque sem ela tudo o mais nãao serve.”530. Tratando-se de um componente com propriedades elásticas, além da aderência e
endurecimento, permitia amenizar o efeito da colisão de projéteis. Ferro e aço são também referidos, embora não sendo especificado o seu propósito na obra531. Do mesmo modo, há alusão ao uso de faxinas e pormenorização das suas dimensões. Quanto aos tijolos explicitados no primeiro documento é provável que se tratassem do adobe mencionado no segundo. Não se sabendo a sua quantidade exata, depreendese que seriam empregues na obra de dentro e na de fora532, talvez no revestimento dos baluartes e nas molduras das canhoneiras, devido às propriedades de absorção da força de impacto deste material533. Outra matéria essencial seria a madeira para o fabrico de “viguas, traçadas, escoras” e ainda o carvão. Por fim, destaca-se uma curiosa referência a “darquos de pipas”.
524 A. N. T. T., Códices e Documentos de Proveniência Desconhecida, nº 53, Papéis da embaixada de Inglaterra e da jornada de Castela
sobre a ida da infanta D. Maria, com outros vários, todos do tempo do Senhor Lourenço Pires de Távora, fols. 214v. 525 Idem, fols. 216 a 217. 526 Idem, fol. 216. 527 Ibidem. 528 Idem, fol. 216, 216v. 529 Idem, fol. 216v, 217. 530 “Para ambas as obras se torna a fazer lembrança de cal e nyso se repite muytas vezes porque sem ela tudo o mais nãao serve.” Fol. 214v. 531 “o fero que uiese serya muyto bõ por que as cousas em que se despemde e neçeçaryo e bõ e doutra maneyra perdese o tempo he a obra.” Idem, fol. 214. 532 Ibidem. 533 BARROCA, 2003, p. 103.
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2.3.2.2 Morfologia e Elementos constituintes
“(…) tem esta forsa dous castelos hu a que chamao o Velho no qual estao as casas dos generais, e tem dentro em sy moradores, casas, ruas e agoa ainda que pouca e nao muy boa, quintais de arvoredo e a porta que dise da trejsão pela qual se uay ao campo alguas veses, está este castelo sercado da banda do sul com dous baluartes fermosos que dominao a cidade, e da parte do leuante tem outros dous posto que da parte do noroeste que he o sitio da torre do sino he algum tanto menos forte a respeito de não ter hu baluarte, que a telo fora o castelo jnexpunavel.”534
As prolongadas obras no Castelo de Cima desenvolveram-se em torno da fortificação préexistente, cuja condição à época comprometia o desempenho da sua função primordial: a proteção de todo aquele domínio. Além da adaptação dos elementos constituintes e algumas demolições, a adição de novos componentes impunha-se como condição necessária à atualização do sistema defensivo à cota alta. Desta forma, a incorporação de três baluartes de grande escala veio introduzir, em Tânger, uma nova dimensão militar535. O Paço anterior é envolvido pela nova construção. Para além dele, vários equipamentos e espaços diversos compunham o interior das muralhas, tais como “as casas dos generais, (…) [outras] casas, ruas e agoa ainda que pouca e nao muy boa, quintais de arvoredo (…).”.Sabe-se que igreja de S. Roque também
se localizaria no interior da Cidadela e que, já em 1645, é até construído um equipamento de saúde dentro dos limites do Castelo, numa altura em que Tânger se encontrava em crescente desenvolvimento536. Percebe-se ainda que, provavelmente, a área abrangida intramuros não seria inteiramente plana537. Apesar de nenhuma fonte fornecer indícios que permitam localizar possíveis elevações no interior da fortificação, constata-se, fundamentalmente através da “Prospect of Tangier from the S. West” (Figura 175) de Wenceslau Hollar, onde a cortina Sul apresenta uma ligeira inclinação538, que a superfície total seria um plano subtilmente inclinado. Em torno da Cidadela existiriam terraplenos que a separavam do restante tecido urbano539. Das fontes documentais, retiram-se ainda os nomes a cada um dos baluartes. A carta remetida pelo governador de Tânger, D. João de Menezes a Pedro de Alcáçova Carneiro540, em Agosto de 1566, contém em si as três designações das construções modernas e alguns dados relativos às relações espaciais estabelecidas entre elas.
DORNELLAS, 1913-23, II, p. 88. CORREIA, 2006, p. 200. 536 Idem, p. 203. 537 “(…) a terra não se acarreta pêra dentro dos baluartes e cortina, porque me parece que esta terra dentro que baste, porem ficão dous montes em dous luguares mais acomodados pêra se poderem recolher com menos trabalho se for neceçario, sem se perder o serviço, e a mais terra se afasta da cava pêra fora.” Carta de D. João de Menezes a Pedro de Alcáçova Carneiro a 19 de Agosto de 1566 in LES SOURCES Inédites de l'Histoire du Maroc. Première Série — Dynastie Sa'dienne Archives et Bibliotheques de Portugal Tome V, Janvier 1535 Décembre 1541, par Robert Ricard, Paris, Paul Geuthner, 1948, p. 111. 538 Mede-se uma inclinação de cerca de 2 graus da muralha Sul, a partir da gravura “Prospect of Tangier from the S. West” (Figura 175), que não está exatamente em verdadeira grandeza, pelo que o rigor desta informação é questionável. 539 CORREIA, 2006, p. 297. 540 Carta de D. João de Menezes a Pedro de Alcáçova Carneiro a 19 de Agosto de 1566 in LES SOURCES Inédites de l'Histoire du Maroc. Première Série — Dynastie Sa'dienne Archives et Bibliotheques de Portugal Tome V, Janvier 1535 Décembre 1541, par Robert Ricard, Paris, Paul Geuthner, 1948, p. 111. 534 535
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“ (…) pêra o cordão que a de aver no baluarte de S. João (...) na cortina que vai do baluarte Esprito Santo ao baluarte da Comseição he acentado todo o cordão e esta fermoso ; a cava da banda face Esprito Santo se acabara de abrir ate fim d'este mês (…).”541
Neste excerto verificam-se, além das denominações, duas informações importantes: a primeira delas é a ligação, através de uma cortina, do Baluarte Espírito Santo ao Baluarte da Conceição, e a segunda é a localização do primeiro, junto à cava que se estava a abrir. Por um lado, a menção da conexão entre as duas estruturas implicava, à partida, que uma delas se trataria da construção do ponto Sudeste da Cidadela, à qual as restantes se vinculavam. Por outro, a especificação da proximidade do Baluarte Espírito Santo a um fosso em escavação “a cava da banda face Esprito Santo” levava a crer que este designaria a estrutura adossada à muralha Sudoeste542. Não existindo outros documentos que atestem a associação anterior permitindo afirmar com certezas a sua veracidade, parece ainda assim provável que aquele fosse, de facto, o nome da estrutura. Menos dúvidas existem quanto à localização do Baluarte da Conceição. A partir da menção ao reparo da “casa que cahe sobre o Belluarte Conçeysão”543, em 1565, percebe-se que este se trataria do único que as fontes mostram, unanimemente, conter no seu interior elementos edificados, nomeadamente parte do Paço. Martin Elbl constata que este Baluarte apontaria diretamente para a Catedral de Nossa Senhora da Conceição544, podendo ser esse o motivo da escolha da designação. A confirmar-se a primeira hipótese, por exclusão de partes, o Baluarte Nordeste teria sido nomeado de São João. Sublinha-se, no entanto, que, uma vez mais, não havendo quaisquer outras alusões a este nome, não se garante a veracidade deste facto. Estes elementos são analisados nas páginas seguintes deste trabalho. Para facilitar o entendimento da sua morfologia, realiza-se o estudo novamente por frentes (Figura 176).
Figura 175 Aproximação da gravura “Prospect of Tangier from the S. West” de Wenceslau Hollar, onde é visível a muralha Sul que une dois baluartes, revelando um plano ligeiramente inclinado.
541 Carta de D.
João de Menezes a Pedro de Alcáçova Carneiro a 19 de Agosto de 1566 in LES SOURCES Inédites de l'Histoire du Maroc. Première Série — Dynastie Sa'dienne Archives et Bibliotheques de Portugal Tome V, Janvier 1535 Décembre 1541, par Robert Ricard, Paris, Paul Geuthner, 1948, p. 111. 542 ELBL, 2013, p. 716. 543 A. N. T. T., Códices e Documentos de Proveniência Desconhecida, nº 53, Papéis da embaixada de Inglaterra e da jornada de Castela sobre a ida da infanta D. Maria, com outros vários, todos do tempo do Senhor Lourenço Pires de Távora, fols. 220. 544 ELBL, 2013, p. 716
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Frente Este A frente Nascente do Castelo era, a par com a meridional, aquela cuja imagem possuía maior presença e impacto na cidade. Visível a partir de diversos pontos da mancha urbana, as fortes mudanças a que foi sujeita com a adição da Cidadela, alteraram por completo a identidade original da fortificação à cota alta. Dois poderosos baluartes são adicionados ao cenário anterior: a Nordeste o suposto “Baluarte São João”(E5) e a conformar o vértice Sudeste, o “Baluarte da Conceição” (E6). Baluarte Nordeste, possivelmente o “Baluarte S. João” O estado de ruína em que se encontrava, até há poucos anos, este ponto da Medina determinou que se iniciasse uma grande intervenção de restauro. Na verdade, após a saída dos ingleses, esta área foi prontamente ocupada pela edificação do palácio do Pacha Ali Ben Abdellah er-Rifi545, que veio contribuir para a descaracterização da herança lusitana. Contudo, a análise da cartografia atual possibilita a identificação de alguns segmentos de construções coincidentes com os alinhamentos dos registos gráficos do século XVII e embora a morfologia da estrutura representada nas fontes não seja exatamente unânime, é possível recriar uma hipótese do desenho aproximado deste elemento. O baluarte moderno que se projetava para a cidade a partir do setor Nordeste do Castelo, possuía invariavelmente como limite, a Norte, a ancestral muralha setentrional de Tânger. Por essa razão, possuiria apenas uma face, um flanco e uma casamata. Relativamente a este último constituinte, os recursos visuais não são muito esclarecedores, dando a impressão, em algumas vistas de que seria abobadado, enquanto na maioria das plantas parece aberto. Isto verifica-se também para as casamatas dos outros baluartes. Na realidade, as suas dimensões sugerem que albergariam armamento de grande calibre, necessitando de uma boa ventilação. Isto poderia determinar que talvez não fossem cobertas para evitar custos desnecessários na construção de um bom sistema de arejamento546. De acordo com o mapa “Krigsarkivet nº 0406:07: 009:001” (Figura 177 (1)) englobaria em si o torreão que conformava o vértice (E1) e parte da cortina Este. Um cordão em cantaria547, separando o parapeito vertical das extensões escarpadas, contornaria a superfície moderna, desaparecendo quando encontra a cortina Este, de acordo com a “Prospect of Tangier from the East” de Hollar. Alguns dados métricos retiram-se do documento de 1565 relativo aos materiais aplicados e gastos correspondentes durante as obras: “(…) leua esta obra cemto e cimquoenta e duas mil faxinas semdo a faxina de quatro palmos de comprido e hum de groso e o parapeto de quatro braças de groo e quinze palmos dalto (…).”, “ (…) semdo a fortaleza quimze palmos dalto e o parapeto quatro bracas de groso os quais valem tres comtos e quatro cemtos e quatorze mil e duzemtos e çimquoemta réis (…).”548. A área ocupada pelo palácio do Pacha Ali Ben Abdellah er-Rifi foi o local onde, em inícios do século passado, foram encontrados vestígios do período califal omíada. TERRASSE, Henri – La Kasba Omeyade de Tanger - in CHABOT, th. De - La Kasba – L’Acropole de Tanger. 1939 Bibliothèque Numérique Marocaine, p. 9 e 10. 546 ELBL, 2013, p. 745. 547 Carta de D. João de Menezes a Pedro de Alcáçova Carneiro a 19 de Agosto de 1566 in LES SOURCES Inédites de l'Histoire du Maroc. Première Série — Dynastie Sa'dienne Archives et Bibliotheques de Portugal Tome V, Janvier 1535 Décembre 1541, par Robert Ricard, Paris, Paul Geuthner, 1948, p. 111. 548 A. N. T. T., Códices e Documentos de Proveniência Desconhecida, nº 53, Papéis da embaixada de Inglaterra e da jornada de Castela sobre a ida da infanta D. Maria, com outros vários, todos do tempo do Senhor Lourenço Pires de Távora, fol. 216 a 216v. 545
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Na realidade, estas passagens não dizem respeito ao caso específico do elemento Nordeste, mas a toda a obra, contemplando, desta forma, os restantes baluartes da segunda metade de Quinhentos. Retira-se, destas menções, a complexidade do parapeito, composto por algumas camadas de materiais e as medidas guia de um “parapeto de quatro braças de groo e quinze palmos dalto” e “semdo a fortaleza quimze palmos dalto e o parapeto quatro bracas de groso”.
Não descurando as fundamentais fontes escritas, os recursos visuais são de extrema importância no processo de reconstituição das estruturas modernas. O Baluarte Nordeste não surge em nenhuma gravura em verdadeira grandeza, o que dificulta, em parte, no seu completo entendimento, sendo imprescindível perceber correspondências, continuidades e analogias com os seus homólogos. Existe um pormenor relevante que se verifica para os três, nas vistas de Hollar relativas à Cidadela549, na axonometria “Tangier” de Martin Beckman, de 1661, no “A Mapp of the Citty of Tanger with the Straits of Gibraltar” e réplicas posteriores, e ainda no “Tanger” de Alain Manesson Mallet de 1683, sendo a única exceção ao conjunto a “A prospect of Tangier and the Mole before it was demolished”, 1683, de Robert Thacker. O detalhe é a representação dos parapeitos sem merlões ou quaisquer vãos, contínuos e regulares. De facto, com a possibilidade de tiro rasante sobre os terraplenos, os portugueses provavelmente prescindem dos disparos ao nível superior a partir dos baluartes.
Figuras 177 Aproximação ao baluarte Nordeste nas gravuras: (1) “Krigsarkivet 0406:07:009:001” (2) ”Description of Tanger” de 1663; (3) “Map of Tangiers”, F0298 nº3; (4) A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25); (5) Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger (MPH 1_1_54).
Figuras 178 (1) Vértice Nordeste do Castelo de Cima da primeira fase, conformado pelo torreão E1; (2) Baluarte Nordeste do Castelo de Cima da segunda fase.
“Prospect of Tangier from the S. West”; “Prospect of Tangier from the East”; “Prospect of y Innerpart of Tangier, with the upper Castle, from South-East”; “Prospect of Tangier from the S. E”; “The South-East Corner of Tangier” de Wenceslau Hollar, de 1669-73. 549
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Pano de Muralha Este, Baluarte Sudeste- “Baluarte da Conceição” e Paço no novo contexto
O estudo destes três componentes do Castelo: a Muralha Este, o Baluarte Sudeste e o Paço é indissociável. Estando inter-relacionados espacialmente, a sua conformação na fase Moderna é o resultado de uma ponderação entre o que se pretendia manter e era possível adaptar, o que seria necessário adicionar e o que era indispensável demolir naquele setor. Esta específica interdependência deve-se sobretudo ao facto do Paço, elemento de grande importância simbólica no panorama da cidade, assentar sobre os próprios limites Nascente e Sul da fortificação medieval, implantação esta que implicava que o edifício fizesse obrigatoriamente parte no projeto da Cidadela, condicionando o desenho das novas adições e sofrendo, ele próprio, alguns ajustes. Na realidade, é mais uma vez o plano “Krigsarkivet 0406:07:009:001” que, condensando na mesma representação bidimensional o contorno Oriental da fortificação do primeiro estágio e a intervenção, ou a proposta de intervenção, da segunda metade de Quinhentos, fornece algumas pistas para a compreensão das alterações deste setor. A cortina Este da Cidadela surge sobreposta à anterior, sugerindo à primeira vista que os seus traçados coincidiam. Retratados a traço suave, dois torreões (E2 e E3) projetam-se da face externa, além da estrutura que, de acordo com a primeira hipótese de constituição do alçado Nascente corresponderia a uma porta de acesso ao Castelo e, de acordo com a segunda, constituiria parte do Paço (Figuras 179)550. A representação destes elementos não se verifica em nenhuma fonte visual posterior. Ademais, no mapa, a casamata do Baluarte Sudeste incorpora em si parte do edifício residencial, o que, na prática, poderia indiciar a sua demolição. Contudo, nas cartografias de Seiscentos e na iconografia do século XVII esta fração do Paço permanece intacta. Esta observação específica corroborava a ideia de que o mapa sem autor se trataria de um projeto inicial, não executado integralmente, ou, no mínimo, de que o plano apresentava incoerências, afastando-se a ideia de que se teria materializado tal como é enunciado. Os cubelos externos não surgem, de facto, em quaisquer fontes posteriores. Na realidade, o desaparecimento destes elementos salientes seria vantajoso, na medida em que libertaria o ângulo de disparo do Baluarte Nordeste. Contudo, o outro elemento que se projetava para o exterior, segundo essa ordem de ideias, constituiria também ele um obstáculo. Tratando-se de uma porta de acesso ao Castelo551, a sua demolição não representaria um transtorno. Na realidade, uma nova entrada permeando a mesma muralha aparece unanimemente ilustrada no acervo visual consultado (E7) (Figura 180). A situação seria diferente considerando a segunda hipótese de reconstituição do edifício, que enuncia que as parcelas projetadas constituiriam elas próprias blocos do Paço. A decisão de derrubar toda esta parte seria muito mais invasiva para com uma construção com uma carga representativa tão elevada, além de dispendiosa, e não existe, nos recursos documentais consultados, qualquer menção à demolição de parte
Hipóteses desenvolvidas neste trabalho, no subcapítulo – O Paço: A Mofologia do Paço. De acordo com a primeira hipótese de reconstituição da morfologia do alçado Este do Paço, a estrutura saliente seria um acesso em cotovelo ao Castelo de Cima. 550 551
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do Paço. Deste modo, a única solução que viabilizaria a manutenção destes elementos consistiria em alargar a cortina murada fazendo com que esta incorporasse todas as estruturas anteriormente externas. Tal como parece ter acontecido na reforma Manuelina do setor Oeste, a permanência das pré-existências propiciaria o reforço estrutural da nova construção. Graças ao avanço da muralha, o terceiro bloco não representaria um obstáculo ao alcance das aberturas de disparo. Porém o mesmo não aconteceria com a torre Setentrional que, sendo a mais pronunciada, teria de ser, inevitavelmente, derrubada de forma a libertar o ângulo de tiro552. Esta solução revela-se a mais provável para ambas as hipóteses.
Figuras 179 (1), (2) e (3) Aproximações ao setor Este do Castelo de Cima representado no mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001”.
Figura 180 Aproximação do Setor Este do Castelo na “Prospect of Tangier from the S. E.” de Wenceslau Hollar, de 1669-73.
Figuras 181 Aproximações (1)”Description of Tanger” imp pb, dg (cf. 2) de 1663; (2) “Map of Tangiers”, F0298 nº3, de 1664, Bernard Gomme; (3) A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25), de 1676, Kuye (4) Fortificação da praça e contexto envolvente (IMG_3670) datada de 1676/1677; (5) Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger (MPH 1_1_54), de 1683. 552
“A mere external attachment to the old wall, [a torre norte do Paço] was therefore sacrificed.” ELBL, 2013, p. 800.
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Após compreender a possível estruturação da nova cortina Nascente, e a sua relação com o edifício fortificado, a análise do documento “Lembrança do que se despemdeo no prouimento do muro e cousas necesareas a gouernaça desta cidade de Tangere que o feitor Luis Fernandes deu per mandado do Senhor Lourenço Pires de Tavora capitão e gouernador della”553 permite ainda perceber algumas alterações mais especificas
operadas no Paço, acompanhadas do inventário dos materiais utilizados para cada intervenção. “(…) se consertou a casa que cahe sobre o Belluarte Conçeysão que por estar muy denificada leuou tres trecadas e tres duzias de tauoado de pinho de Frandes e dous caros daguyaires em barotes e quinhentos pregos de gallyota grande e dous mil tijollos com que se ladrilhou tasco e se lhe fizerão na jenella humas adufas que leuarão seys tauoas de pinho de Frandes e huma trecada e quoatro centas tachas de cetia grande e dez doze macha femeas de fero sobre que jogão com quoatro fechos corediços e quoatro alldrabas de fero”554
Parte-se do princípio de que esta “casa que cahe sobre o Belluarte Conçeysão” seria, efetivamente, o edifício residencial, única construção englobada pelo elemento moderno Sudeste, que, por se encontrar danificado aquando das obras da Cidadela, necessitaria de alguns arranjos. O documento reporta, seguidamente, intervenções pontuais tais como: “(…) se puserão em hua jenella rasgada desta casa huas portas que se fizerão de huma trecada de castanho com sua aldraba de fero e suas argolas de manquaes (…). Na porta da entrada desta casa se puserão huas portas nouas que se fizerão de viga de castanho com sua aldraba de fero ferolho fechadura e chaue.” 555
A documentação do reparo de uma “Salla Velha”, cuja qualificação situa cronologicamente num tempo anterior a outros compartimentos não mencionados, expressa a complexidade do processo evolutivo do Paço, sobre o qual a ausência de referências impossibilita dissertar. “Se concertou a Salla Velha na qual se gastarão huma viga e huum caro dagieyros huma dúzia de tauoado de pinho de Frandes duas de tauoado corente de leyrya e VIIIe pregos de galyota grande e em huma jenella que esta casa tem se puserão humas adufas de paao que leuarão hua trecada na lumieyra e seys tauoas de pinho de Frandes e huma escora de pinho em couceiras e seis macha-femeas e duas aldrabas e duas escapollas grandes de fero e cto L pregos de galliota grande (…).” 556
Pensa-se que o balcão ainda existiria nesta fase, sendo também reparado, correspondendo à varanda documentada, a partir da qual se olhava para o Chouriço. “se conçertou huma varanda que estas casas tem que vay sobre o Chouriço por estar muy danificada leuou duas trecadas seis taouas de pinho de Frandes cento L pregos da gallyota grande (…).”557. Considera-se que as suas duas aberturas de acesso também tenham
sido reformadas “(…) na salla destas casas se fizeram humas portas de jenella em que se gastarão cinquo vigas e oyto macha-femeas de fero com suas argllas e mancaes e leuou 50 pregos de gallyota pequena”558. Não se
identificando a referida construção nos recursos visuais do tempo inglês, é possível que tenha sido demolida durante a segunda fase do Castelo.
553 A. N. T. T., Códices e Documentos de Proveniência Desconhecida, nº 53, Papéis da embaixada de Inglaterra e da jornada de Castela
sobre a ida da infanta D. Maria, com outros vários, todos do tempo do Senhor Lourenço Pires de Távora, fols. 218-223v). 554 Idem, fol. 220v 555 Ibidem. 556 A. N. T. T., Códices e Documentos de Proveniência Desconhecida, nº 53, Papéis da embaixada de Inglaterra e da jornada de Castela sobre a ida da infanta D. Maria, com outros vários, todos do tempo do Senhor Lourenço Pires de Távora, fols. 221. 557 Ibidem. 558 Idem, fol. 221.
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Quando ao “Baluarte da Conceição” (E6), importa ainda dizer que se tratava da única construção moderna da Cidadela de Quinhentos considerada um baluarte completo: com duas faces e dois flancos contendo duas casamatas. É também aquele sobre o qual terão recaído mais dúvidas durante o seu planeamento e construção559, possivelmente pelo facto de conter em si o simbólico edifício que decidiram manter. Deste elemento não permanece na malha urbana qualquer marca, exceto presumivelmente uns vestígios de muro, mas que a sobreposição com a cartografia do século XVII revelou não corresponderem ao seu contorno, mas, na melhor das hipóteses, a parte do enchimento do flanco Este. A fechar um pátio conformado pela área ocupada pelo baluarte estava uma espécie de portão, representado com destaque na primeira planta perspetivada do período inglês “Tangier” de 1661, de Martin Beckman.
559 “
(…) ui a duuida que se ofereseo no prosseguir do belluarte da comseisão e Resões que se nisso apontão e por os italliannos serem nessa Cidade e nella Se poder milhor tratar da dita duuida me pareseo que com elles conuerces(?) das obras deuiemis(?) tomar nisto asento pello que uos emcomendo muito que com elles pratiqueis o que se de faser que fareis afectuar comforme ao asento que com seus pareseres tomardes de que me dareis conta por uosa carta e no que toca as outras materias Sobre que me tendes escrito uos Responderei com breuidade (…)”. Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Lisboa, 16 de Julho de 1565. A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, ff. 52-53 In http://antt.dglab.gov.pt/ (salvaguardo aqui possíveis erros na compreensão da paleografia, devido à consulta a partir do manuscrito digitalizado).
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Figura 182 Reconstituição hipotética tridimensional da região Sudeste do Castelo de Cima da segunda fase, de acordo com a primeira hipótese de conformação do Paço.
Figura 183 Planta da reconstituição hipotética da frente Este do Castelo de Cima da segunda fase, de acordo com a primeira hipótese de conformação do Paço.
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Figura 184 Reconstituição hipotética tridimensional da região Sudeste do Castelo de Cima da segunda fase, de acordo com a segunda hipótese de conformação do Paço.
Figura 185 Planta da reconstituição hipotética da frente Este do Castelo de Cima da segunda fase, de acordo com a segunda hipótese de conformação do Paço.
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Frente Sul O limite Sul da primeira fase, constituído por duas direções de muralhas, pontuadas por diversos torreões, é também alvo de uma ampla transformação durante a segunda metade do século XVI. Tal como acontece no setor Este, a intervenção produz um grande impacto na praça, transformando inteiramente aquela vista da cidade. A fronteira meridional do Castelo começa, naturalmente, com a vertente Sul do “Baluarte da Conceição”. Esta estrutura é unida por uma imponente cortina à terceira adição moderna: o Baluarte Sudoeste, possivelmente o “Baluarte do Espírito Santo”. Muralha Sul Grande parte da fração superior da cortina Sul do Castelo de Cima permanece bem conservada nos dias de hoje, visível a partir dos terraços de diversos pontos da medina (Figuras 186). Ao longo de praticamente toda a sua extensão, igualmente bem preservado, está o cordão que demarca a linha a partir da qual o parapeito vertical, que possuía aberturas para disparo de canhoneiras, dá lugar a uma face ligeiramente inclinada, à qual várias construções se agregam numa cota inferior. Após compreender as transformações ocorridas na homóloga do setor Este, torna-se premente analisar a abordagem que é considerada para a muralha Meridional e a intervenção neste lugar, permitindo perceber a que tempo remontam os vestígios presentes. Seguindo a metodologia anterior, o mapa “Krigsarkivet nº 0406:07: 009:001” (Figura 187 (1)) ilustra, na frente que partia do baluarte Sudeste, dois muros contíguos e não sobrepostos, estando a cortina mais antiga, com os vários cubelos (S1, S2, S3, S4 e S5), desenhada a traço leve na face externa. Novamente neste caso, na atualidade, nenhum vestígio dos antigos torreões quadrangulares é identificado. Na verdade, associa-se à camada do plano representada com risco mais claro as estruturas que estariam ou viriam a estar em desuso, pelo que, dependendo do cumprimento do plano, todo este trecho teria sido demolido560. No entanto, a constante preocupação com a economia de recursos e tempo dos portugueses durante o período de obras, expressa na correspondência remetida entre a praça e a metrópole, torna esta conjetura incongruente. Afigurando-se cada vez mais provável que este mapa se trate apenas de um projeto, o mais razoável é que a demolição não tenha acontecido. A sobreposição do desenho com a cartografia atual demonstra que o alinhamento de muralha visível hoje em dia, não coincide com o retratado, mas está em frente dele, ou seja, avança externamente para Sul (Figura 187(2)), relativamente ao ilustrado. De 19 de Agosto de 1566, o conteúdo da Carta de D. João de Menezes a Pedro de Alcáçova Carneiro, vem atestar a hipótese mais provável: “ (…) na cortina que vai do baluarte Esprito Santo ao baluarte da Comseição he acentado todo o cordão e esta fermoso (…).”561
A indicação do assentamento do cordão sobre a superfície demonstra implicitamente que se teria completado a cortina até àquele nível. Deste modo, tal como é percetível através do confronto entre Relembra-se que a interpretação desta cartografia é, contudo, discutível, pois não contém qualquer legenda ou informação que garanta o significado do seu conteúdo. 561 Carta de D. João de Menezes a Pedro de Alcáçova Carneiro a 19 de Agosto de 1566 in LES SOURCES Inédites de l'Histoire du Maroc. Première Série — Dynastie Sa'dienne Archives et Bibliotheques de Portugal Tome V, Janvier 1535 Décembre 1541, par Robert Ricard, Paris, Paul Geuthner, 1948, p. 111. 560
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plano e realidade presente, e como parece acontecer com a muralha Este, a antiga construção é mantida mas reforçada externamente por uma nova camada, funcionando a anterior como um elemento de contenção.
Figuras 186 (1) e (2) Fotografias da face externa da muralha Sul ainda visível na medina de Tânger, Julho de 2017.
Figuras 187 (1) Aproximação ao setor Sul do Castelo de Cima representado no mapa Krigsarkivet 0406:07:009:001; (2) Sobreposição do mapa Krigsarkivet 0406:07:009:001 com a cartografia atual.
Figuras 188 (1) “Prospect of Tangier from the S. E.” de Wenceslau Hollar, de 1669-73; (2) Fotografia da face externa da muralha Sul visível na medina de Tânger, Julho de 2017.
Figura 189 Aproximação da gravura “Prospect of Tangier from the S. West” de Wenceslau Hollar, onde é visível a muralha Sul que une dois baluartes, revelando um plano ligeiramente inclinado.
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Baluarte Sudoeste, possivelmente o “Baluarte do Espírito Santo” e muralha da cerca
Avançando para Oeste, percebe-se que a cortina terminaria, como esperado, no ponto em que surge o terceiro elemento moderno (S9), adicionado à fronteira do Castelo no local onde, na fase anterior, o segmento murado que delimitava a fortificação adotava uma direção diferente. Na realidade, não é óbvio o que ocorre à porção de muralha que continha torreões semicirculares (S7 e S8). A sua aparente incorporação no preenchimento do baluarte poderia ter determinado o seu desaparecimento em registos posteriores, envolvida pelo terrapleno. Contudo, tal não parece ter ocorrido. Embora na axonometria de 1662 de Martin Beckman “Tangier” não se identifique a muralha completa, mas apenas o que aparenta ser um dos torreões constituintes (Figura 190), e alguns dos mapas seiscentistas não incluam de todo este muro562, ele surge, surpreendentemente, em diversos recursos visuais do período inglês, delimitando grande parte da superfície correspondente ao preenchimento do baluarte e provando que mesmo incorporado na nova estrutura, o seu traçado permaneceu enquanto parte integrante do complexo, pelo menos até à saída dos ingleses. A decisão da não representação em alguns desenhos pode ser indicador de que não constituiria um componente relevante, apesar de visível e, de acordo com a vista aérea ”A Mapp of the Citty of Tanger with the Straits of Gibraltar”, assim como todas as cópias que se seguiram, possuir alguma altimetria. Dúvidas há quando ao número de torreões que são mantidos. No “Krigsarkivet nº 0406:07: 009:001” (Figura 191 (1)), o cubelo quadrangular que marcava a variação da direção da muralha intersecta a casamata do Baluarte Sudoeste, contudo, a sua representação no “Plan de Tanger, sur le détroit de Gibraltar, au royaume de Féz” de 1663, no “Piano di Tanger situato nel str. Di Gibraltar”, datado do século XVII e no Mapa de Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger (MPH 1_1_54) (Figura 191 (4)), de 1683, coloca em causa a hipótese dessa estrutura ter sido demolida aquando das obras de construção da Cidadela. Quanto às torres semicirculares, a sua conservação parece certa, subsistindo uma delas até aos dias de hoje, como já referido, utilizada como forno público Hadj Tahar563. O Baluarte responsável pela proteção da parte Sudoeste do Castelo de Cima era, de todos, o que abrangia em si uma maior área. Beneficiando do traçado oblíquo da muralha da cidade, desenhava-se partindo desta estrutura, o que determinou que fosse necessário apenas completá-lo com uma face e um flanco, contendo uma casamata. Acompanhando o declive acentuado, o muro limítrofe continha vários torreões. Atualmente, nas proximidades da “Bab Kasbah”, são ainda visíveis dois desses altos elementos fundamentais para a proteção deste setor. Possuía parapeito contínuo, sem ameias, mas com várias seteiras. Presume-se que esta fronteira terrestre de Tânger se tenha mantido praticamente inalterada564 desde a redução estratégica da praça565 logo após a sua conquista. Isso confirmam as fontes cartográficas
562 São eles: o “Description of Tanger” de 1663; a “Planta de Tangere” do “Atlas del Marqués de Heliche” de 1655; o “Map of Tangiers”
(Figura 191 (2)) de 1664 de Bernard Gomme; o Mapa cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25) (Figura 191 (3)) de 1676; ou mesmo o Mapa da Fortificação da praça e contexto envolvente (IMG_3670) de 1676/1677. 563 CORREIA, 2014, p. 4. 564“(…) the west, althouth it regards the enemy's country, was left only defended with old walls, and an ill ditch, built with small towers flanking each other at convenient distance (…).” CHOLMLEY, Hugh Sir 4th Baronet - An account of Tangier. 1787, p. 9 in ELBL, 2013, p. 186. 565 MENEZES, 1732, p. 34.
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recolhidas, cuja unanimidade permite localizar todos os componentes constituintes desta frente, à excessão da torre de base polifacetada de escala superior que surge apenas no “Krigsarkivet nº 0406:07: 009:001” (Figura 191 (1)), provavelmente demolida. Percebe-se que os torreões apresentam um espaçamento mais próximo nesta parte da cidade, confirmando a necessidade de maior proteção neste ponto.
Figura 190 Aproximação da axonometria de de 1662 de Martin Beckman “Tangier” e identificação de um elemento que poderá corresponder a um torreão da muralha medieval.
Figuras 191 Aproximação ao baluarte Sudoeste nas gravuras: (1) “Krigsarkivet 0406:07:009:001” (2) “Map of Tangiers”, F0298 nº3, de 1664, Bernard Gomme; (3) A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25), de 1676, Kuye (4) Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger (MPH 1_1_54), de 1683.
Figura 192 (1) Aproximação do Baluarte Sudoeste nas vistas (1) ”Prospect of y Innerpart of Tangier, with the upper Castle from SouthEast” (2) ”Prospect of Tangier from S. E.” de 1669-1673.
Figura 193 Aproximação da muralha Sudoeste na vista (1) ”Prospect of y Bowling green at White hall by Tangier”
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Através da análise da cartografia urbana atual, é possível identificar um sugestivo alinhamento de casas, coincidente com o que as fontes cartográficas setecentistas apontam como sendo a face da construção (Figura 75). A partir dos edifícios que se agregam à muralha da Cidadela, é possível observar o cordão que circundava o Castelo neste setor. O estudo da cartografia da cidade do presente possibilita ainda perceber nitidamente a coincidência do desenho da casamata com construções atuais (Figura 75).
Figura 194 Fotografias da face externa do Baluarte Sudoeste ainda visível a partir de um terraço na medina de Tânger, Julho de 2017.
Figura 195 Planta da reconstituição hipotética da frente Sul do Castelo de Cima da segunda fase.
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Fremte Oeste: Plataforma de Artilharia Segundo o documento “Lembrança do que se despemdeo no prouimento do muro e cousas necesareas a gouernaça desta cidade de Tangere que o feitor Luis Fernandes deu per mandado do Senhor Lourenço Pires de Tavora capitão e gouernador della”566, fizeram-se também algumas adições no setor Noroeste do Castelo de Cima.
Construiu-se “huma casa de corpo de guarda na Tore do Synno”567 e no mesmo local ” huma casa para poluora”568. Contudo, de uma maneira geral, de acordo com as fontes visuais datadas do início da chegada dos Ingleses a Tânger, todo o setor Noroeste dominado pela plataforma de artilharia permaneceria com uma conformação muito idêntica àquela que teria tido no momento da sua construção.
Figura 196 Planta da reconstituição hipotética da frente Oeste do Castelo de Cima da segunda fase.
566 A. N. T. T., Códices e Documentos de Proveniência Desconhecida, nº 53, Papéis da embaixada de Inglaterra e da jornada de Castela
sobre a ida da infanta D. Maria, com outros vários, todos do tempo do Senhor Lourenço Pires de Távora, fols. 218-223v. 567 “huma casa de corpo de guarda na Tore do Synno que leuou huma viga e duas treçadas e dous caros dagieiro e oyto duzias de tauoado corente de leyria com que se cobryo / com sua porta fechadura ferolho e chaue e sua porta de madeira <.> Esta casa se telhou depois de cuberta por quanto chouya nella <.> v de ripar e iii de galiota grande.” Ibidem. 568 “se fez a Tore do Synno huma casa para poluora que leuou huma viga e três caros daguieyros e hum pontão e huma escora de pinho humas portas nouas feitas de duas trecadas de castanho com seu ferolho fechadura e chaue com seus camdes a roda em que estao os caregadores e colheres que se fizeram dhum caro dagieyros em que se dispenderão oyto centos pregos ripães ii de galiota grande <.> esta casa esta cuberta com mil e V telhas (…).” Ibidem.
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Frente Norte Pano de Muralha Norte e torreões A muralha Norte correspondia, com apenas algumas alterações, ao limite da fase anterior. As mudanças resumiam-se essencialmente ao número de cubelos aí existentes. Apesar das fontes seiscentistas não serem inteiramente consensuais quanto a isso, a grande maioria aponta para o desaparecimento do cubelo imediatamente a Oeste da porta da Traição (N3) e ainda um dos que se destacava a Este da mesma (N5). Deste modo, pensa-se que neste período, considerando uma análise e Poente para Levante, a fronteira do Castelo contaria com o torreão semicircular (N2) que marcava a variação de direção da muralha, seguindo-se a Porta da Traição (N4), mais quatro cubelos (N6, N7, E1, N8) e um último torreão de base semicircular (N9).
Figuras 197 Aproximação à muralha Norte nas gravuras: (1) “Krigsarkivet 0406:07:009:001” (2)”Description of Tanger” imp pb, dg (cf. 2) de 1663; (3) “Map of Tangiers”, F0298 nº3, de 1664, Bernard Gomme; (4) A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25), (5) Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger (MPH 1_1_54), de 1683.
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Figura 198 Planta da reconstituição hipotética da frente Norte do Castelo de Cima da segunda fase.
Largura das muralhas e Cava No documento “Relação de alguas cousas da cidade de Tangere”, de 1621, quando surge a referência à distância entre o Castelo Novo e a Torre do Sino de 3280 palmos (aproximadamente 721,6m), o autor acrescenta que o “lanso de muro tres palmos e mejo e junto a torre do sino quatro palmos somente e tera de altura vinte palmos”569. Do mesmo modo, associada à distância entre a Torre do Sino ao Cubelo do Bispo
de 3970 palmos (aproximadamente 873,4m) há informação sobre a largura da muralha entre esses pontos “o muro (…) tem da Torre do Sino ate a escada da caldeira seis palmos de largura a dahj ate o raso desaseis e do raso ate a porta da cidade quatro”570 e ainda sobre a cava. “(…) a caua tem seu principio na Torre do Sino donde ate o baluarte dos fidalgos he larga e feita a moderna, tem de largura sesenta palmos e de altura vinte, esta por acabar”571,
provavelmente a mesma que em 1566, segundo o capitão-mor D. João de Menezes, se encontrava em escavação e da qual se retirava pedra para o cordão.572 DORNELLAS, 1913-23, II, p. 88. Idem, p. 87-88. 571 Idem, p. 88. 572 Carta de D. João de Menezes a Pedro de Alcáçova Carneiro a 19 de Agosto de 1566 in LES SOURCES Inédites de l'Histoire du Maroc. Première Série — Dynastie Sa'dienne Archives et Bibliotheques de Portugal Tome V, Janvier 1535 Décembre 1541, par Robert Ricard, Paris, Paul Geuthner, 1948, p. 111. 569 570
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Figura 199 Planta da reconstituição hipotética do perímetro do Castelo de Cima da segunda fase, de acordo com a primeira hipótese de conformação do Paço.
200
Figura 200 Planta da reconstituição hipotética do perímetro do Castelo de Cima da segunda fase, de acordo com a segunda hipótese de conformação do Paço.
201
Reforma do Baluarte-Torre Noroeste e da Torre do Sino
Durante os 60 anos de união das Coroas Ibéricas (1580-1640), foram realizadas algumas obras relevantes no Castelo de Cima, com o intuito de melhorar o desempenho do organismo bélico. As intervenções concentraram-se no setor Noroeste da fortificação, mais exposto a investidas inimigas. “Por lhe parecer [a D. Miguel de Noronha573] baixa a Torre principal do Castello em que está a mayor parte da artilharia, e que não se descubria bem o campo, a fez levantar na fórma que hoje se vê. O mesmo fez com a Torre do Sino em que está o farolero (…). Como era necessário muito terrapleno para preencher a muralha nova, trabalha nela toda a gente. (…).”574
O autor não refere a data exata de execução destas obras de aumento da altimetria das duas torres. No entanto, pelo encadeamento dos acontecimentos descritos, supõe-se que tenham ocorrido após 1625575, durante o mandato de D. Miguel de Noronha576. Assume-se que a morfologia dos novos elementos pudesse corresponder à representada na planta perspetivada de Martin Beckamn de 1661 e nos desenhos de Hollar. É possível que tenha sido durante esta intervenção que foram adicionados alguns elementos que constam na iconografia seiscentista. No “Prospect of West front of Tangier Castle” (Figuras 201) e também no “Prospect of y North side of Tangier” (Figuras 202), surge um cubelo complementar, entre as duas estruturas modificadas, de altura inferior à do análogo da metade Sul. Não há certezas de que tenha sido adicionado no tempo português, uma vez que não consta no mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001” nem na “Planta de Tanger”, contudo não se descarta essa possibilidade, podendo ter ocorrido neste contexto ou mesmo sido incluído nas obras que ocorreram na cidade durante o mandato do sucessor de Noronha577, D. Fernando Mascarenhas578. O mesmo se aplica à estrutura agregada ao baluarte Torre Noroeste, que, tal como a anterior, sugere mais tratar-se de um reforço estrutural do que propriamente um elemento defensivo.
D. Miguel de Noronha, quarto Conde de Linhares governa Tânger desde julho de 1624 a junho de 1628. MENEZES, 1732, p. 129. 575 Ibidem. 576 Ver nota 573. 577 “(…) tratou de reparar a cidade. Levantou os muros que estavam caídos em muitas partes (…) também a outras obras públicas muy necessárias (…).” MENEZES, 1732, p. 140. 578 D. Fernando Mascarenhas governou Tânger durante 9 anos de 1628 a 1637. 573 574
202
Figuras 201 (1) e (2) Aproximações à fachada externa da plataforma de artilharia Noroeste no “Prospect of the West Front of Tangier Castle”.
Figuras 202 (1) e (2) Aproximações à fachada externa da plataforma de artilharia Noroeste no “Prospect of y North side of Tangier”.
203
Plataforma Norte
Atualmente designado de “Borj Naam” ()ﺑ ـ ـ ـ ـ ـ ـ ج ن ـ ــام, o grande baluarte destacado na frente Norte da Cidadela é elemento comum a todos os mapas e representações cartográficas, exceto os mapas do tempo português, constituindo um dos componentes do Castelo de Cima perpetuado até à atualidade, embora com várias intervenções de restauro, entre as quais se destaca a modificação integral do flanco Este. Não constando no mapa “Krigsarkivet 0406:07:009:001” nem no “Planta de Tangere” de Leonardo de’ Ferrari, torna-se evidente que a sua construção não é coeva às grandes obras da década de sessenta do século XVI, informação atestada pela menção de apenas três baluartes durante a edificação da Cidadela579. A sua execução vinha auxiliar a proteção desta vertente da praça que, em 1621, de acordo com o governador D. Pedro Manuel “(…) da parte do noroeste (…) he algum tanto menos forte a respeito de nao ter hu baluarte, que a telo fora castelo jnexpugnauel.”580, pois contava, nessa altura, apenas com o Baluarte-
Torre do ângulo Noroeste do qual partia uma muralha que se estendia até junto ao mar. Sabe-se, portanto, que em inícios da década de vinte do século XVII, não existindo este componente, se admitia a necessidade de reforço defensivo daquele lugar. Segundo Martin Elbl, a grande plataforma seria denominada à época de “Baluarte do Caranguejo”581, baseando a sua afirmação num trecho do “Historia de Tangere, que comprehende as noticias desde a sua primeira conquista ate a sua ruína” que, relatando um episódio de invasão moura do Castelo Velho, aproximava espacialmente quatro estruturas fundamentais: uma Torre, a porta da Couraça, a Porta da Traição e o Baluarte do Caranguejo582. “(…) 6 de Novembro de 1644 (…), se arrimarão à muralha pela parte da Torre e puzerão duas escadas ao Baluarte do Caranguejo junto à porta da Couraça: e subirão por ellas. (…) da muralha ao terrapleno, que não está acabado, ficava alto descerão por toucas a elle (…) Francisco Soares (…) que fazia este posto, se defendeo (…) dando rebate./ (…) ocuparão a torre e descerão (…). alguns soldados e outra gente do Castelo (…)./ Acudiram entretanto (…) os mais se pozerão em salvo, descendo huns pelas escadas, arrojandose outros pela muralha (…) tinhão jà para esse effeito quebrada a porta da Couraça para fazer o mesmo com a da Traição (…).”.
Da confirmação desta analogia decorreria que em Novembro de 1644, a estrutura já estaria erigida, embora com terrapleno não finalizado: “(…) da muralha ao terrapleno, que não está acabado, ficava
579 Carta de D.
João de Menezes a Pedro de Alcáçova Carneiro a 19 de Agosto de 1566 in LES SOURCES Inédites de l'Histoire du Maroc. Première Série — Dynastie Sa'dienne Archives et Bibliotheques de Portugal Tome V, Janvier 1535 Décembre 1541, par Robert Ricard, Paris, Paul Geuthner, 1948, p. 111. 580 “Relação de alguas cousas da cidade de Tangere” in DORNELLAS, 1913-23, II, p. 88. 581 ELBL, 2013, p. 321-326. 582 “(…) se juntarão na Serra, e na noite de 6 de Novembro de 1644 (…), se arrimarão à muralha pela parte da Torre e puzerão duas escadas ao Baluarte do Caranguejo junto à porta da Couraça: e subirão por ellas sem ser sentidos. (…) porque da muralha ao terrapleno, que não está acabado, ficava alto descerão por toucas a elle (…) receando que huma sentinella os sentisse, que estava mais perto , se chegarão a ella para a tomar às mãos, e matar sem ruido; mas Francisco Soares (…) que fazia este posto, se defendeo (…) dando rebate./ (…) ocuparão a torre e descerão até perto do corpo de guarda, e dos Armazéns (…). Acudiu Pedro de Campos (…) reuniu alguns soldados e outra gente do Castelo (…)./ Acudiram entretanto (…) chegarão à porta do Castello a acharão cerrada (…)./ (…) aberta a porta, reunio a gente na Praça do Castello (…) os mais se pozerão em salvo, descendo huns pelas escadas, arrojandose outros pela muralha (…) tinhão jà para esse effeito quebrada a porta da Couraça para fazer o mesmo com a da Traição (…).” MENEZES, 1732, p. 158 e 159.
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alto (…).”583. Porém, embora pela descrição se admita que os invasores possam ter escalado a grande
plataforma Norte, que era contígua a uma torre (o baluarte-torre Manuelino) e próxima à Porta da Traição, a atribuição da qualidade de couraça à muralha que descia do setor Noroeste, até junto ao mar parece rebuscada. As couraças consistiam, geralmente, em braços duplamente murados, assegurando a comunicação entre um edifício fortificado e um ponto exterior, não muito distante584. É o caso da couraça principal Castelo Novo, nas proximidades da qual se implantava, nesta altura, uma construção defensiva Moderna. É esta estrutura que outros autores afirmam que se trataria do “Baluarte do Caranguejo”585, concorrendo para o epíteto a sua sugestiva morfologia. Desta forma, é possível que o assalto dos mouros se tenha iniciado, na realidade, à cota baixa. Mais certezas existem quanto ao seu desenho. Este elemento surge com conformação idêntica em todos os mapas ingleses, e ainda na axonometria de Martin Beckman “Tangier” (Figura 203 (1)) 1661, na vista aérea “A Mapp of the Citty of Tanger with the Straits of Gibraltar” (Figura 203 (2)) de Sir Jonas Moore e Wesceslau Hollar e cópias posteriores e ainda nas perspetivas “Prospect of y North side of Tangier regarding the mayne sea from the hill as you come from Whitby or the West, towads the Towne” (Figura 203 (3)) e “Prospect of the West Front of Tangier Castle” (Figura 203 (4)) de Hollar, “A prospect of Tangier and the Mole before it was demolished” (Figura 203 (5)) de Robert Thacker e a “A prospect of Tangier coming from the Westward before it was demolished” (Figura 203 (6)) atribuída a Thomas Phillips. De grande escala, projeta-se sobre a escarpa setentrional, com as duas faces a formar entre si um grande ângulo obtuso. As fontes icono-cartográficas divergem, contudo, na ilustração da relação estabelecida
Figuras 203 Aproximações à plataforma Norte no: (1) “Tangier” de 1661, de Martin Beckman, (2) “A Mapp of the Citty of Tanger with the Straits of Gibraltar” de Sir Jonas Moore e Wesceslau Hollar; (3) “Prospect of y North side of Tangier regarding the mayne sea from the hill as you come from Whitby or the West, towads the Towne” de Hollar; (4) “Prospect of the West Front of Tangier Castle” de Hollar; (5) “A prospect of Tangier and the Mole before it was demolished” de Robert Thacker; (6) “A prospect of Tangier coming from the Westward before it was demolished” de Thomas Phillips.
MENEZES, 1732, p. 158 e 159. MENDES, 2017, p. 77. 585 “O Castelo Novo de Tânger apresentava na segunda metade do século XVI um baluarte, designado de Baluarte do Caranguejo. A sua construção integrava-se num conjunto de obras realizadas na cidade sob orientação de mestres e engenheiros militares (…).” Idem, p. 101. “O Baluarte do Caranguejo construído contiguo ao castelo, decorrente do plano de Isidoro de Almeida, vinha reforçar em Tânger a defesa que anteriormente já era preocupação central, o porto.” Idem, p. 123. 583 584
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entre o novo componente e a anterior muralha, construída na década de 40 do século XVI, com o similar propósito de reforçar a defesa daquela frente. Analisando as gravuras disponíveis, constata-se que em grande parte, o início do braço murado parece ter sido incorporado no flanco do grande Baluarte, incluindo a porta que permitia o seu atravessamento, sendo aberta uma outra, junto ao ponto de encontro com a nova construção. É exceção a vista “Prospect of the West Front of Tangier Castle” (Figura 204), de Hollar na qual aparece representada a muralha na íntegra, partindo do mesmo local de onde fora construída. De facto, na maioria das cartografias586, o flanco Oeste da Plataforma Setentrional, além de não apresentar a direção da muralha interna da plataforma de artilharia e da parede Nascente do Baluarte-torre Noroeste, de onde partiria o muro quinhentista, em alguns dos casos, não se conecta sequer com a última. Isto é, há uma descontinuidade bastante sugestiva entre os dois elementos, que permitiria a sua permanência587.
Figura 204 Aproximação da muralha e plataforma Norte na “Prospect of the West Front of Tangier Castle” de Hollar.
Na planta de 1663 “Description of Tangier Mappe”, da qual não se conhece autoria, uma linha forte no desenho sugere um desnível do piso correspondente à área do preenchimento do baluarte, relativamente ao pavimento do interior da cidadela. Contudo, a axonometria de Beckman, “Tangier” (Figura 203 (1)) de 1661, efetuada logo após o abandono português, não representa qualquer diferença de alturas entre esses pontos588, atestando a provável continuidade do piso durante a ocupação lusitana, intervalo temporal sobre o qual se debruça a análise.
“Description of Tanger” de 1663, “Plan de Tanger, sur le détroit de Gibraltar, au royaume de Féz” de 1663, “Map of Tangiers”, de 1674, Bernard Gomme, a IMG_3670 de 1676/1677 e a IMG_3676 de 1678. 587 O estudo de Martin Elbl parece corroborar esta hipótese quando afirma que a estrutura “(…) was built into the space shown as vacante in the Krigsarkivet trace. It stood tight to the couraça but did not encroach on it.” ELBL, 2013, p. 322. 588 Não se exclui, no entanto, a hipótese de ter havido um desnivelamento do solo da plataforma durante a ocupação inglesa. 586
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Figura 205 Fotografia aérea de inícios do século XX onde se distingue grande parte da frente norte e oeste da Cidadela de Tânger.
Figura 206 Reconstituição hipotética tridimensional da região Noroeste do Castelo de Cima da segunda fase, após a adição da plataforma Norte.
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Figura 207 Planta da reconstituição hipotética do perímetro do Castelo de Cima da segunda fase, após a adição da plataforma Norte e reforma da Torre do Sino.
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Figura 208 Reconstituição hipotética tridimensional do Castelo de Cima da segunda fase, de acordo com a primeira hipótese de conformação do Paço
Figura 209 Reconstituição hipotética tridimensional do Castelo de Cima da segunda fase, de acordo com a segunda hipótese de conformação do Paço
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Com o advento da segunda fase, assiste-se ao reforço e complemento das altas barreiras verticais que delimitavam a fortificação de Cima, por elementos de menor altimetria e maior espessura589, mais regulares, de geometria estudada para oferecer a melhor eficácia possível. O Castelo ganhou duas novas frentes abaluartadas, a Sul e Nascente, com elementos modernos posicionados de forma a possibilitar uma mútua proteção, onde o cruzamento de fogos anulava ângulos mortos, sendo as respetivas faces dimensionadas considerando as linhas de tiro dos baluartes adjacentes (Figura 210). É, de certa forma, exceção à regra a face Nascente do Baluarte da Conceição, cuja morfologia não segue a aplicação do princípio de flanqueamento das restantes. Como já foi mencionado, este foi o componente que gerou mais questões durante a edificação do conjunto, tendo o projeto inicial sido ajustado para que pudesse albergar em si grande parte do Paço residencial, edifício que apesar de permanecer numa posição de destaque acabaria por perder protagonismo590. Este cenário particular pode ter motivado o diferente desenho. A face parece, contudo, traçar-se considerando uma linha de disparo desde o final da casamata do baluarte Nordeste, sendo o único ângulo que permite a sua defensa integral591. A superfície total do Castelo ocupava quase 1/5 da área da praça592, o que confirma o seu grande impacto no contexto envolvente. Com a adição da plataforma Norte, no seu conjunto em planta, a Cidadela apresentava um certo aspeto antropomórfico que não deve ser ignorado. A analogia entre a arquitetura e o corpo humano é já proferida por Vitrúvio no seu Tratado “De Architectura”593, sendo recuperada no Renascimento594. Contudo, o pragmatismo da intervenção em Tânger, extravasando os princípios estáveis renascentistas595, utilizando o sistema de regras para criar variantes mais profícuas, confere à Cidadela a classificação de Maneirista596. Não obstante, a relação simbiótica estabelecida com as pré-existências, o vínculo ao meio envolvente e à topografia, talvez por força das circunstâncias, parece situá-la um passo à frente relativamente às “puramente geométricas fortificações maneiristas”597. Nenhum dos componentes adicionados nesta fase possui medidas equivalentes, nem as suas dimensões obedecem a uma métrica clara. Somente a amplitude dos ângulos formados pelas linhas que definem as faces Meridionais dos baluartes da frente Sul é semelhante.
A diminuição da altura representava a diminuição da superfície alvo de tiro a longa distância, ao passo que paramentos mais robustos permitiam resistir ao impacto das armas de fogo. MOREAU, Filipe Eduardo – Arquitetura Militar em Salvador da Bahia séculos XVI a XVIII, 2011, p. 35. 590 A sua menção em fontes escritas parece comprovar a perda de protagonismo face ao conjunto “(…) casa que cahe sobre o Belluarte Conçeysão (…).”. A. N. T. T., Códices e Documentos de Proveniência Desconhecida, nº 53, Papéis da embaixada de Inglaterra e da jornada de Castela sobre a ida da infanta D. Maria, com outros vários, todos do tempo do Senhor Lourenço Pires de Távora, fol. 218. 591 A eficácia defensiva do Castelo de Cima durante as suas várias fases é analisada mais à frente nesta dissertação. 592 À área do complexo anterior, somam-se agora as dimensões dos baluartes e plataformas adicionados. 593 Constituído por 10 livros, o Tratado de arquitetura “De Architectura” é escrito pelo Romano Vitrúvio no século I A.E.C. 594 MOREAU, 2011, p. 70, 71. 595 Idem, p. 263. 596 CORREIA, 2006, p. 201. 597 MOREAU, 2011, p. 217. 589
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Figura 210 Dedução simplificada da lógica geométrica utilizada no desenho dos baluartes do Castelo de Cima.
Figuras 211 (1) e (2) Hipóteses alternativas para o desenho do baluarte Sudeste, respeitando a lógica geométrica dos restantes.
211
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2.3.3 - A Cidadela no contexto arquitetónico português
Fixados os pressupostos funcionais e retóricos nos quais assentava o complexo modificado correspondente à segunda grande fase do Castelo de Cima, e compreendido o seu papel fundamental na defesa da praça, impunha-se como passo seguinte perceber o enquadramento da fortificação no panorama arquitetónico nacional coevo, ou seja, entender se, de facto, o complexo defensivo acompanhava o seu tempo, manifestando as opções tipo-morfológicas e características construtivas utilizadas à época598, testando a sua importância para a Coroa. Sabe-se que participaram no seu projeto e edificação vários intervenientes de vulto. Portugueses e estrangeiros, arquitetos, engenheiros militares e mestres-de-obras foram enviados à cidade com o propósito de transformarem aquele castelo num reduto inexpugnável599. A maioria deles trabalhara anteriormente em obras relevantes, em Portugal ou além-fronteiras, as quais interessava submeter a uma análise comparativa com a Cidadela, possibilitando contextualizar o caso de estudo e inferir, sumariamente, sobre as influências dos agentes no resultado final600. Para além dessas, importava analisar exemplos posteriores de conformação idêntica, estabelecendo analogias e identificando as principais diferenças, que permitissem compreender a relevância da fortificação norte-africana. Alguns dos projetos estudados localizavam-se, inclusivamente, no mesmo quadro geográfico do objeto de estudo, inserindo-se, tal como ele, no conjunto de renovações defensivas no Norte de África, que se seguiram à decisão de manter somente três praças no Magrebe: Ceuta, Mazagão e Tânger.
MENDES, 2017, p. V. CORREIA, 2014, p. 12. 600 Reconhecendo-se a importância dos diversos especialistas que participaram, direta ou indiretamente, nas várias etapas inerentes à renovação do Castelo de Cima, desde a primeira proposta de intervenção à cota alta até à consolidação e efetiva construção da Cidadela, torna-se essencial estudar possíveis relações entre a fortificação de Tânger e algumas das obras associadas a eles. 598 599
213
2.3.3.1- Análise Comparativa601
Como mencionado atrás, é em 1546 que são reportados os primeiros trabalhos pontuais de modernização da praça pelo mestre-de-obras André Rodrigues602, sob orientação de Miguel de Arruda. Este arquiteto é uma figura importante no contexto em estudo. É ele que cinco anos antes, após a perda de Santa Cruz do Cabo de Guer, conduz o início da empresa de melhoramento das possessões norteafricanas. Fazendo-se acompanhar pelo arquiteto militar italiano Benedetto da Ravenna, ainda em 1541, o mestre português desloca-se a Ceuta e posteriormente a Mazagão603. Na primeira, Ravena, ciente da sua vulnerabilidade, elabora um plano, do qual apenas os textos que o acompanhavam chegam aos dias de hoje604, contendo uma proposta de intervenção nas estruturas defensivas do perímetro da cidade atalhada605. As obras arrancariam verdadeiramente apenas em 1544, dirigidas por Arruda606. Nessa praça, tal como em Tânger, reconhece-se um grande pragmatismo na atuação: intervém-se somente onde é necessário. Deste modo, apenas a frente Poente é dotada de baluartes em cunha nas extremidades, ambos com orelhões e aberturas para canhoneiras. Possuiriam casamatas com dois andares, abobadados no interior607. Em comum têm também o reaproveitamento das pré-existências, sendo a abordagem às cortinas entre baluartes de certa forma semelhante nos dois casos, pois são mantidos e reforçados os muros anteriores. Ambas diferem na cota de implantação, sendo ao nível da água em Ceuta, o que possibilitava a existência de uma cava inundável no Setor Ocidental, e na escala dos elementos modernos, que no Castelo de Cima apresentavam dimensões superiores608 (Figuras 213 (1)). Em Mazagão, praça à qual Arruda e Ravena se dirigem logo após a passagem em Ceuta, e onde já se encontrava Diogo de Torralva609, o cenário é muito diferente. Lá, o italiano traça um plano integralmente novo610 “(…) segundo os princípios do moderno sistema abaluartado italiano.“611, executado rigorosamente por João de Castilho612. Em comum com Tânger tem a escala, a inclusão do antigo castelo, Nota: Os desenhos esquemáticos utilizados neste subcapítulo para as comparações pretendem reproduzir simplificadamente os projetos iniciais de cada um dos fortes. Relembra-se que a plataforma Norte é resultado de uma intervenção posterior à campanha principal de reforma do Castelo, sendo adicionada apenas no século seguinte. 602 Carta de André Rodrigues a D. João III, 1546. A. N. T. T., Corpo Cronológico, 1ª parte, maço 78, doc. 52 in SOUSA VITERBO, 1922, vol. II, p. 383. 603 “(…) o pedido de D. João III ao cardeal de Toledo, ministro do Imperador Carlos V, para que conceda licença ao seu engenheiro de fortificações militares, Benedeto, no sentido de acompanhar Miguel de Arruda a África, continha já uma intenção simultânea de dotar Mazagão de um novo sistema defensivo inexpugnável e de reavaliar o sistema defensivo de Ceuta.”. CORREIA, Jorge MAZAGÃO: A última praça Portuguesa no Norte de África, 2007, p. 194 in Revista de História da Arte Nº 4 – 2007 – Cidades Portuguesas Património da Humanidade. 604 “Castello da cidade de Cepta” in AS GAVETAS da Torre do Tombo, V, p. 79-81. 605 CORREIA, 2006, p. 119. 606 “(…) depois pratiqueys sobre a traça que miguel da arruda leua da obra que ao diante se ha de fazer (…).” SOUSA VITERBO, vol. I, p. 69. 607 CORREIA, 2006, p. 120. 608 Embora a superfície total da cidade fosse mais extensa que a área englobada pelo Castelo de Cima de Tânger, a escala dos baluartes de Ceuta era inferior. 609 Diogo de Torralva estaria encarregue de analisar o local, sugerindo uma implantação junto ao mar. CORREIA, 2006, p. 324. 610 De acordo com João de Castillo, enviado 12 anos antes, o pequeno Castelo Manuelino não garantiria a defesa da povoação que se instalara em redor. PAULA, Frederico Mendes – Histórias de Portugal em Marrocos: MAZAGÃO, 5 de Março de 2014 in https://historiasdeportugalemarrocos.com/2014/03/05/mazagao/. 611 MOREIRA, 2001, p. 42. 612 Carta de João de Castilho a D. João III a 15 de Dezembro de 1541 “(…) E quanto ao que V. A. espreveuo que na obra não saya dos apontamentos de Benito de Reuena, eu asy o fiz sempre e farey (…).” A. N. T. T., Corpo Cronológico, parte 1, maço 72, doc. 32 in SOUSA VITERBO, vol. 1, 1922, p.195. 601
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sendo em Mazagão o centro do complexo, onde no interior é construída uma monumental cisterna, e um certo antropomorfismo formal, que se lê na planta ligeiramente retangular com quatro baluartes de orelhões nos vértices contendo casamatas, unidos por cortinas espessas, possuindo invariavelmente uma ligeira quebra na direção, formando ângulos obtusos entre vértices consecutivos. A porta principal no centro do pano Oeste era protegida por um quinto baluarte de menor escala. Possuía fosso nos lados Sul, Poente e Norte. Na frente Este, o muro fazia uma reentrância de modo a formar um pequeno porto. Esta Cidadela, contrariamente à de Tânger, englobaria toda a vila no seu interior (Figuras 213 (2)).
Figuras 212 (1) Planta de Ceuta de 1691. Arquivo General de Simancas (2) Planta da Cidadela de Mazagão de 1622, anónima, Códice Cadaval, Torre do Tombo.
Figuras 213 Desenhos esquemáticos dos contornos e áreas abrangidas pelo Castelo de Cima e (1) Ceuta após a reforma moderna; (2) a Cidadela de Mazagão.
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A convivência de Miguel de Arruda com o engenheiro militar italiano terá inevitavelmente tido em si um efeito pedagógico. Percebe-se a influência do projeto de Mazagão na sua traça do Forte de S. Sebastião de Moçambique (Figura 214)., de 1546. Com uma planta sensivelmente quadrangular e quatro baluartes em cunha nos vértices, duas das cortinas que uniam extremos apresentavam também inflexões. A implantação era à cota baixa, sendo rodeada por água em 3 das suas faces. Numa analogia com Tânger e contrariamente a Mazagão, possuía baluartes de diferentes configurações, possivelmente ajustados de acordo com a necessidade de cada ponto e desenhados de forma a que se cumprisse o princípio de defesa mútuo (Figuras 216 (1)). O mesmo acontece com a Fortaleza de São Julião da Barra613 (Figuras 215), embora com uma geometria mais regrada, onde se lê claramente uma simetria. É traçada poucos anos após a ida efetiva do mestre a Tânger, em 1549614, embora as obras só se começassem a desenvolver verdadeiramente uma década depois615, participando na sua execução Isidoro de Almeida 616. O forte apresentava uma planta estrelada, decorrente de uma base pentagonal dotada de baluartes em cunha com casamatas, em todos os vértices, alguns deles com orelhões. As cortinas que uniam estes poderosos bastiões eram muito curtas. Deste modo, apesar da escala ser visivelmente inferior à da congénere norte-africana, as dimensões dos seus baluartes eram quase aproximadas, nomeadamente os dois voltados para a frente terrestre (Figuras 216 (2)). É, no entanto, a grande preocupação com uma perfeita coerência formal que se identifica no Forte de S. Julião, decorrente de uma planificação inteiramente de raiz, que a afasta do caso de Tânger onde cada elemento adicionado às pré-existências é pensado e desenhado para funcionar nas condições particulares da sua implantação, não obedecendo a uma diretriz de conjunto. Nesse sentido o Castelo de Cima aproxima-se mais da Cidadela de Moçambique. Avançando cronologicamente, importa particularizar as obras de dois arquitetos militares enviados à praça, por D. Catarina, no final dos anos 50 do século XVI: Diogo Telles e o já referido Isidoro (ou Isidro) de Almeida, ambos com experiência europeia617. O primeiro, mencionado por Sousa Viterbo apenas enquanto arquiteto de D. João III e D. Sebastião além de cavaleiro da casa real618, trabalhou, na realidade, para Henrique VIII e para Carlos V da Alemanha, regressando a Portugal em 1549619. Em carta, de 25 de junho de 1557, D. Sebastião comunica que o enviará a Tânger para exercer os seus serviços e auxiliar na “fortificação dela”620, chegando efetivamente em Junho do ano seguinte621.
Em Portugal Continental, era primordial assegurar a proteção da barra de Lisboa razão que motivou o projeto da fortaleza de São Julião da Barra. CRUZ, 1988, p. 419. 614 Idem, p. 197. Consultar a Carta de D. João III a D. Pedro de Mascarenhas, Lisboa, Agosto de 1549. 615 Traçada por Miguel de Arruda em inícios da década de 50 do século XVI, os trabalhos começam verdadeiramente em 1562 na ponta rochosa de São Gião (ou Julião) junto à ermida com o mesmo nome. SANTOS, Cristina – Fortificações da foz do Tejo. 2012, p. 128 a 130. 616 CRUZ, Carlos Luis – Forte de S. Julião da Barra. 2013. In http://fortalezas.org/?ct=fortaleza&id_fortaleza=674&muda_idioma=PT. Nessa altura o autor é nomeado “(…) mestre e vedor das obras da fortaleza de São Gião.” Ibidem. 617 MOREIRA, 1994, p. 144. 618 SOUSA VITERBO, 1922, vol. III, p. 88, 89. 619 “(…) Diogo Teles (m. 1575), decerto o engenheiro português que em 1540-1541 construía, com o boémio Stephen von Haschenberg, os fortes de Henrique VIII no canal da Mancha, passando ao serviço de Carlos V na Alemanha, donde em 1549 voltou para Portugal.” MOREIRA, 1989, p. 144. 620 Carta de D. Sebastião a Diogo Telles a 25 de junho de 1557 (Torre do Tombo.- Chancellaria de D. Sebastião e D. Henrique, Doações, liv. 1º, fol. 4 v) in SOUSA VITERBO, 1922, vol. III, p. 88, 89. 621 “Dioguo Tellez cheguou ha esta cidade ho derradeiro de Junho e loguo lhe foi dado pose do seu oficio como nosa alteza mandou (…).” Carta de André Rodrigues a D. Catarina, Tânger - 19 de Julho de 1558, I.A.N.T.T., Corpo Cronológico, parte I, maço 102, doc. 126 in SOUSA VITERBO, 1922, vol. II, p. 383-384. 613
216
Figura 214 “Planta de Monsábique” Planta do Forte de S. Sebastião de Moçambique no Atlas del Marqués de Heliche [Plantas de diferentes plazas de España, Italia, Flandes y las Indias. Todas de mano hechas hazer de orden del Exmo. Sr. D. Gaspar de Haro y Guzmán, Conde de Morente, Marqués de Heliche, Gentilhombre de la Cámara de Su Magestad, Su Montero Mayor y Alcaide de los Reales Bosques del Pardo, Balsahyn y Zarzuela. En Madrid, Año de 1655]).
Figuras 215 (1) “San Gian” Planta do Forte de São Julião da Barra no Atlas del Marqués de Heliche [Plantas de diferentes plazas de España, Italia, Flandes y las Indias. Todas de mano hechas hazer de orden del Exmo. Sr. D. Gaspar de Haro y Guzmán, Conde de Morente, Marqués de Heliche, Gentilhombre de la Cámara de Su Magestad, Su Montero Mayor y Alcaide de los Reales Bosques del Pardo, Balsahyn y Zarzuela. En Madrid, Año de 1655]). (2) Original que se pensa ter sido utilizado para o desenho da planta “San Gian” Planta do Forte de São Julião da Barra no Atlas del Marqués de Heliche.
Figuras 216 Desenhos esquemáticos dos contornos e as áreas abrangidas pelo Castelo de Cima e (1) Forte de S. Sebastião de Moçambique; (2) Forte de S. Julião da Barra.
217
Os autores atribuem-lhe a autoria do Forte Redondo de Peniche (Figura 217) “(…) construído em 1557, que deriva directamente dos fortes henriquinos do Sul da Inglaterra – em particular do Fort Pendennis (1540-1543), em Falmouth – e aplica os princípios teorizados por Albrecht Dürer (…).”622, considerando-o, no entanto, um modelo
ultrapassado623, do qual não se obtêm analogias com o Castelo de Cima. Relativamente a Almeida, nas palavras de Sousa Viterbo “(…) Se não era architecto militar, era pelo menos engenheiro de fogos, entendido na defesa de praças”624. Outros autores referem que teria sido um
importante “Engenheiro militar, cujo saber e experiência no campo da fortificação foram comprovados nas fortalezas de Tanger e Mazagão.” 625. Terá trabalhado nas campanhas de Itália626 de Alemanha627, e de
regresso a Portugal, anos antes de ser enviado ao Magrebe, mais precisamente em 1552, desloca-se aos Açores onde realiza a traça do Forte de São Brás de Ponta Delgada (Figura 218 (1)), em S. Miguel “(…) de que é engenheiro mais renomado Tomás Benedito [Tommaso Benedetto de Pésaro].”628, embora a colaboração do
italiano tenha ocorrido apenas na década seguinte629. De planta quadrangular, o desenho dos quatro baluartes de diferentes dimensões traça-se a partir da ponderação dos ângulos de tiro, à semelhança de Tânger, possuindo também casamatas. Era igualmente cercado por um fosso, neste caso com 5 metros de profundidade630. Diferem grandemente na escala e na implantação que neste exemplo é à cota baixa, junto ao mar. Também o Forte de S. Sebastião de Angra do Heroísmo (Figura 218 (2)) é indicado, por alguns autores, como sendo da autoria de Almeida; contudo, não há consenso, confirmando-se apenas que Benedetto de Pésaro, à semelhança do exemplo anterior, intervém na fortificação, registando-se a sua presença na ilha em 1567631. Possuía planta pentagonal irregular, adaptada à morfologia do terreno. Composto por 3 meios-baluartes e um completo, era um exemplar bastante atípico, pelo que não se conseguem estabelecer analogias com a Cidadela marroquina, além do grande pragmatismo da intervenção e da sua morfologia antropomórfica, apesar da escala bastante inferior. É importante acrescentar que Isidoro de Almeida foi um dos poucos escritores portugueses de Arquitetura Militar do
MOREIRA, 1989, p. 149. “O forte de Peniche foi o exemplo de traçado circular já ultrapassado, que muito provavelmente teve origem no tratado de Dürer, ou eventualmente vinculado aos castelos henriquinos do sul de Inglaterra (…).” SOUSA, Luís Filipe - Escrita e Prática de Guerra em Portugal 1573-1612, 2013, p. 369. 624 SOUSA VITERBO, 1922, Vol. I, p. 7. 625 NUNES, António Lopes Pires – Dicionário Temático de Arquitectura Militar e Arte de Fortificar, 1991, p. 29. 626 “(…) participou na guerra do Piemonte, adquirindo um valioso tirocínio militar.” SOUSA, 2013, p. 369. 627 MOREIRA, 1989, p. 144. 628 “O sr. Senna Freitas (Breve noticia da transladação da imagem de Santa Barabara, Ponta Delgada, 1847) diz que o engenheiro Isidro de Almeida fôra em 1552 a Ponta Delgada para a construção de uma fortaleza, o castello de S. Braz. Não cita, porém, o documento ou auctoridade que lhe forneceu esta noticia.” SOUSA VITERBO, 1922, Vol. I, p. 9. “Segundo carta de D. João III de 18 de Outubro de 1552, endereçada a Pedro Annes, provedor das armadas da Ilha Terceira, o Rei mandara Isidoro de Almeida à Ilha Terceira “… por ter conhecimento das coisas de fortificação, para convosco e com o vosso parecer verem o que se deve fazer na cidade de Angra e em todas as povoações e portas da dita Ilha…”, pelo que a sua opinião não deve ser alheia à construção do Castelo de S. Brás, iniciado nesse ano e de que é engenheiro mais renomado Tomás Benedito.” NUNES, 1991, p. 29. 629 De acordo com Carlos Luis da Cruz, o primeiro desenho da fortificação realizado por Manuel Machado “Mestre das obras das Capelas” dos Açores, foi modificado por Isidoro de Almeida, que apresenta uma nova traça em 1553. A mesma fonte refere que o engenheiro militar italiano intervém apenas bastantes anos depois, possivelmente na companhia de Pompeu Arditi. O projeto final, já de 1569, resultado da atuação dos dois especialistas, mostrava “(…) uma estrutura no formato de um polígono quadrangular com 4 baluartes de orelhões nos vértices e casamatas, (…) nela já se encontram identificadas as edificações de serviço, assim como os baluartes com formato pentagonal e as canhoneiras rasgadas nos parapeitos das muralhas.” CRUZ, Carlos Luis – Forte de S. Brás de Ponta Delgada. 2009. In http://fortalezas.org/index.php?ct=personagem&id_pessoa=1471&muda_idioma=PT. 630 Ibidem. 631CRUZ, Carlos Luis – Forte de S. Sebastião de Angre do Heroísmo. 2009 in http://fortalezas.org/?ct=fortaleza&id_fortaleza=632 622 623
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Séc. XVI632, publicando em 1552, o “De Codendis Arcibus”, segundo Rafael Moreira a tradução de “De Urbibus et Arcibus Condentis” de Albrecht Durer, na sua edição latina633.
Figura 217 Apoximação da “Planta da Praça de Peniche”, Euzebio Dias Azevedo, 1800 onde, com o número 4, está assinalado o Fortim redondo de Peniche.
Figura 218 (1) Mapa da Fortaleza de S. Brás em Ponta Delgada. (2) “Planta do Castello de S. Sebastião” de Angra do Heroísmo, 1881, Ayres Pinto de Sousa.
Figuras 219 Desenhos esquemáticos dos contornos e áreas abrangidas pelo Castelo de Cima e (1) Forte de S.Brás de Ponta Delgada; (2) Forte de S. Sebastião de Angra do Heroísmo. 632 633
MOREIRA, 1989, p. 145. “De Urbibus et Arcibus Condentis” edição latina de Albrecht Durer, Paris 1535. O original é de 1527, Nuremberga.
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Depreende-se que a participação destas duas figuras, Diogo Telles e Isidoro de Almeida, tenha sido muito expressiva, pois a sua chegada coincide com a realização da primeira traça da cidade de que se tem conhecimento634, e no ano seguinte do modelo635, hoje presumivelmente desaparecidos, pelos mestres-de-obras respetivos, ambos discípulos de Arruda636. É interessante perceber que em 1562, no contexto do cerco de Mazagão, Almeida é enviado em auxílio à praça meridional637, demonstrando o apreço que se tinha pelas suas funções. Sobres duas outras personagens que se encontravam simultaneamente em Tânger no ano de 1558, os irmãos Cristóvão e Vasco da Cunha, não existe informação rigorosa, não sendo sequer claro se se tratariam de arquitetos ou engenheiros militares. Sabese somente que foram também enviados pela Regente para darem o seu parecer sobre a fortificação que se planeava realizar638. Além disso, transparece a ideia de que a sua estadia na cidade terá sido bastante curta, apesar de provavelmente terem tido acesso à traça que André Rodrigues faz nesse mesmo ano639. Ainda assim, a ausência de dados elucidativos a ambos e ao seu percurso profissional impede um verdadeiro entendimento do seu papel no projeto de modernização. Por fim, importa fazer referência aos dois italianos que chegam à praça em meados da mesma década. Depreende-se que seriam Tommaso Benedetto de Pésaro, o mencionado engenheiro da fortaleza de S. Brás de Ponta Delgada e de S. Sebastião de Angra do Heroísmo, sendo a sua colaboração em ambas posterior à intervenção em Tânger, e o seu irmão Doutor Benedito640. Contratado pela regente D. Catarina, o primeiro terá participado, antes de ser enviado a Marrocos, por volta de 1564, na construção do Forte de Nossa Senhora da Luz de Cascais641 (Figuras 220), cuja ausência de informação precisa sobre a conformação original dificulta analogias fiáveis, sabendo-se apenas que possuiria uma planta triangular, dimensões contidas, rematada por baluartes nos vértices, dois deles truncados. Esta morfologia corrobora a objetividade da atuação do estrangeiro. Em Agosto de 1565, antes da conclusão da Cidadela de Tânger, com receio de um possível ataque da armada turca a Ceuta642, os italianos são enviados em colaboração à dita cidade643, comprovando a credibilidade no seu trabalho. A presença dos estrangeiros é nitidamente
Carta de André Rodrigues a D. Catarina, Tânger - 19 de Julho de 1558 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 102, doc. 126) em SOUSA VITERBO, 1922, vol. II, p. 383-384. 635 Carta de Jorge Gomes a D. Catarina, Tânger – 2 de junho 1959 (IAN-TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 103, doc. 80) in SOUSA VITERBO, 1922, p. 432. 636 MOREIRA, 1989, p. 155. O mestre-de-obras de Tânger, em 1559, era Jorge Gomes, anteriormente empreiteiro da Sé de Miranda, em cujo projeto participou Miguel de Arruda. 637 SOUSA, 2013, p. 375. 638 Carta de Cristóvão da Cunha a D. Catarina a 12 de Julho de 1558, A. N. T. T. Corpo Cronológico, 1/102/120, fol. 1 In http://antt.dglab.gov.pt/. 639 Ver nota 632. 640 MOREIRA, 1989, p. 155. 641 ELBL, 2013, p. 648. 642 Chegara ao Cardeal Regente a notícia da chegada inesperada da armada turca a Malta em Maio desse ano. CRUZ, 1988, p. 458. 643 Lourenço Pires de Távora, então governador em Tânger, pede aos peritos italianos que se encontravam na praça para se deslocarem à vizinha cidade, para fornecerem o seu parecer relativamente ao que seria necessário para aquela obra. Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Lisboa, 31 de Agosto de 1565. A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, f. 56 In http://antt.dglab.gov.pt/ e Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Lisboa, 6 de Outubro de 1565.A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, f. 58-59 In http://antt.dglab.gov.pt/. “A ameaça externa, por mar, inquietante dadas as notícias chegadas sobre o ocorrido em Malta leva, de resto, o Regente em Agosto de 1565 a manda também fortificar Ceuta. Nesse sentido escreve a Lourenço Pires de Távora para que os peritos italianos estantes em Tânger passem a esta praça a fim de a inspecionarem e concluírem sobre o necessário àquela fortificação e pede-lhe um parecer pessoal sobre esta matéria.”. CRUZ, 1988, p. 458 Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora a 6 de Outubro de 1565, A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, ff.58-59. 634
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importante em Tânger, tendo um papel determinante na conclusão da “forteficasam de fora”644, considerando que sempre que surgiam dúvidas eram consultados, estando as decisões finais dependentes da sua aprovação645. Martin Elbl refere ainda a provável intervenção da figura de Mateus Fernandes no plano para a Cidadela646. Apesar de nenhuma fonte coeva afirmar a sua colaboração, as relações profissionais com Tommaso Benedetto levam o autor a mencionar essa possibilidade. Trabalham em conjunto no Funchal, também com Pompeu Arditi647, após um forte ataque de corsários franceses à ilha. Não havendo provas da sua participação na fortificação da praça norte-africana, fica a nota dessa hipótese. É interessante constatar que as trajetórias profissionais dos vários intervenientes na fortificação de Tânger se cruzam por diversas vezes, no contexto de outros projetos nacionais de grande relevo. Isso salienta a importância da praça, para onde são enviados os melhores especialistas do seu tempo. Na realidade, não se reconhece a prevalência do cunho indubitável de nenhuma personagem face às restantes, o que pode ser explicado pelo facto de todas elas se guiarem por referências comuns. “A referência à teoria e prática da arquitectura militar italiana torna-se obrigatória na segunda metade do século XVI, quando o nível cultural dos arquitectos e a difusão da tratadística impressa constituem factores decisivos (…).”
648.
Não obstante, torna-se evidente que a experiência em Tânger constituiu, ela própria, uma referência, quer para os seus intervenientes em obras posteriores, quer para outros autores em projetos planeados de raiz décadas mais tarde, cuja morfologia é passível de se relacionar.
Figuras 220 (1) “Planta da vila de Cascais”, de 1590, de Vicenzio Casale incluída no livro de Alexandre Massai, “Descripção do Reino de Portugal”, 1621. Museu da Cidade; (2) Aproximação do Forte de Nossa Senhora da Luz de Cascais na “Planta da vila de Cascais”.
Figura 221 Desenhos esquemáticos dos contornos e áreas abrangidas pelo Castelo de Cima e Forte de Nossa Senhora da Luz de Cascais.
Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Almeirim, 4 de Janeiro de 1565. A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, f. 35. In http://antt.dglab.gov.pt/ (salvaguardo aqui possíveis erros na compreensão da paleografia, devido à consulta a partir do manuscrito digitalizado). 645 Carta do Cardeal Regente a Lourenço Pires de Távora, Lisboa, 16 de Julho de 1565, A. N. T. T., Manuscritos da Livraria, Ms. 1110, ff.52-53 in http://antt.dglab.gov.pt/. 646 ELBL, 2013, p. 647. 647 MOREIRA, 1989, p. 155. 648 MOREIRA, 2001, p. 146. 644
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É exemplo o Forte de Jesus de Mombaça (Figura 222). A fortificação construída no Quénia, da traça do italiano Giovanni Battista Cairati649, possuía uma planta igualmente retangular, com baluartes em cada um dos vértices, embora em Mombaça não fossem dimensionados a partir do cálculo de tiro flanqueante. Era, do mesmo modo, encabeçada por uma plataforma de tiro, neste caso voltada para o mar, de onde proviriam grande parte dos ataques. A sua edificação terá ocorrido entre 1593-1596650, durante a União Dinástica na Península Ibérica, período em que o Castelo de Cima é complementado com a plataforma Norte, reforçando a sua forma antropomórfica, principal elo de comparação a este exemplo. Curiosamente sabe-se que o arquiteto italiano terá estado na praça-forte de Tânger em 1581, para inspecionar as fortificações, acompanhado pelo duque de Medina651, onde terá obviamente testemunhado a grandiosidade da sua Cidadela. Contrariamente ao Castelo marroquino, o Forte de Mombaça foi planeado de raiz, sendo de escala consideravelmente inferior e implantado à cota baixa (Figuras 223). Perante a anterior análise comparativa, torna-se claro que o Castelo de Cima imprimia, na sua segunda fase, as opções tipo-morfológicas da época, constituindo um exemplo notável de arquitetura militar Maneirista no contexto do panorama arquitetónico nacional coevo. Confirma-se a sua grande escala, sendo de entre todos os exemplos analisados, um dos que englobava em si maior área e a única fortificação abaluartada implantada à cota alta, resultante do reaproveitamento integral da extensa fortificação pré-existente, havendo na cidade outro dispositivo fortificado encarregue da proteção do nível inferior: o Castelo de Baixo. Do mesmo modo, é o único caso, entre os comparados, cuja planta antropomórfica não resultava de um projeto de raiz, mas da adição de elementos modernos a uma estrutura consolidada anterior. Conclui-se que o facto de a Cidadela ser resultado da metamorfose do Castelo original não determinou, em nenhum momento, que se optasse por uma solução atávica. Expandindo a abrangência das apreciações, é possível inferir também sobre o poder da praçaforte de Tânger face a outras possessões portuguesas além-mar. A urbe apresentava-se como um organismo incorruptível, com redutos isolados dentro das próprias muralhas. Não fosse a sua entrega aos ingleses, talvez tivesse tido condições para permanecer longamente em mãos lusitanas.
O autor da traça era um engenheiro italiano que terá trabalhado ao serviço do Estado de Milão. Participou na fortificação de Malta e da Sardenha e foi um dos fundadores do ”Collegio di Ingegneri ed Architetti”. Em 1577 é contratado por Filipe II de Espanha, Filipe I de Portugal. CARRATO, João Baptista. Cátedra de Estudos Sefarditas Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 12 de Setembro de 2018. in http://www.catedra-alberto-benveniste.org/dic-italianos.asp?id=317 650 Fort Jesus, Mombasa, UNESCO, 2013 in https://whc.unesco.org/en/list/1295. 651 Ibidem. 649
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Figura 222 “Pataforma da Fortaleza de Bombaça” de João Teixeira Albernaz, século XVII.
Figura 223 Desenhos esquemáticos dos contornos e áreas abrangidas pelo Castelo de Cima do Forte de Jesus de Mombaça.
223
2.4 – O Castelo de Cima do período inglês à atualidade
Em Fevereiro de 1662, deu-se a saída definitiva dos portugueses de Tânger, doada aos ingleses no ano anterior, enquanto parte integrante do dote de casamento de D. Catarina com D. Carlos II652. O envio dos engenheiros Bernard de Gomme e Martin Beckman marcou o início de um conjunto de transformações na nova possessão britânica. Nos anos que se seguiram, intervieram na zona marítima e nos territórios que circundavam a praça653. Simultaneamente, também a mancha urbana e as estruturas militares foram alvo de algumas modificações. No Castelo de Cima, para além da alteração das designações dos componentes do agora “Upper Castle”, percetível nas legendas da iconografia do tempo em questão (a Torre do Sino passa a denominar-se “Peterborow Tower” e o suposto “Baluarte de S. João” surge legendado, por vezes, como “Stayners Battery”), ocorrem algumas mudanças reportadas. “The Castle, which was almost falling, his Excellency [Earl of Middleton] repaired so as, at an easy charge, to make it a house convenient and honourable for the character he had of Governor and General; and having instructions to remove the stores of provision for more security unto the upper castle, with better husbandry, hem ade the presente stores safe under the protection of a strong wall, well flanked (…).”.654
Constata-se que o Paço, a “Governours House” necessitaria de grandes reparações, que são efetuadas pelo Earl of Middleton. É admissível que durante estas obras que se tenha ampliado o edifício, acrescentando o bloco do telhado com três mansardas, no alçado Sul (Figura 224 (3)). É também provável que ao longo do tempo inglês, tenha ocorrido o acrescento de novas dependências e diferentes espaços no interior do reduto655. Através da iconografia datada da década de 70 do século XVII (Figuras 225, 226, 227), é possível reconhecer duas situações interessantes. Por um lado, identifica-se o que parece ser uma nova cortina fortificada, partindo da muralha Sudoeste do atalho e prolongando-se para Este em paralelo à frente Sul da Cidadela. Por outro, distingue-se uma segunda muralha recortada estendendo-se desde o vértice do antigo baluarte da Conceição até junto à frente marítima.
Figuras 224 Aproximações do “A Mapp of the Citty of Tanger with the Straits of Gibraltar” onde se identificam: (1) “Stayners Battery”; (2) “Peterborow Tower”; (3) Aproximação da vista “Prospect of Tangier from the S. E” de Hollar.
CORREIA, 2014, p. 14. “A primeira obra dos ingleses foi a construção de um molhe na parte poente da cidade, utilizando a abundante pedra que neste lugar há. (…) Terminando o porto dedicaram-se a fortificar a cidade, rodeando-a de simples empalizadas para impedir o acesso dos cavalos, construíram fortes nas proximidades da serra (…) depois de dotas de novas defesas o Castelo, reformaram as trincheiras, dando-lhes uma forma regular (…) colocando atalaias guarnecidas de infantaria.” MENEZES, 1732, p. 250. 654 CHOLMLEY, Hugh Sir 4th Baronet - An account of Tangier. 1787, p. 78 in ELBL, 2013, p. 780. 655 Extratos do “Peterborough’s Reports to the Lords of the Council and Others” in ELBL, 2013, p. 12 e 13. 652 653
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Figura 225 (1) A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25); (2) Sobreposição da cartografia atual com o mapa A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25), de 1676.
Figuras 226 Aproximação da sobreposição com a cartografia atual do mapa Estruturas Fortificadas de Tânger (IMG_3672) datado de 1678,
Figura 227 (1) Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânge (MPH 1_1_54); (2) Sobreposição da cartografia atual com o mapa Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânge (MPH 1_1_54), de 1683.
225
A construção efetiva destas novas linhas defensivas aparece concretizada na gravura “A prospect of Tangier and the Mole before it was demolished” (Figura 228) de Robert Thacker, de 1683, onde são visíveis plataformas de tiro a Sul da Cidadela. A Nascente reconhece-se uma outra associada ao antigo Baluarte da Conceição, da qual parte um muro contínuo que se prolonga até à cota inferior, desembocando numa segunda plataforma junto à frente portuária. A leitura de sugestivos alinhamentos urbanos na cartografia atual (Figura 229) praticamente coincidentes com os traçados do mapa Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânge (MPH 1_1_54) (Figuras 227) parece demonstrar que a construção terá, de facto, ocorrido, embora provavelmente somente após 1676, data do primeiro mapa que reporta as intervenções. Carolina Mendes propõe que o portal Dar Baroud, situado no bairro da Medina com o mesmo nome, tenha integrado a cortina656, devido à coincidente sobreposição da sua localização com um dos momentos de permeabilidade assinalados na planta antiga mais rigorosa, colocando em causa a anterior tese de que este teria sido um dos portais lavrados pelo mestre-de-obras André Rodrigues, em 1546657. Vem corroborar a hipótese da autora a identificação e levantamento de um segundo portal, na atual Rue Cheikh Mohamed Ben Seddik, cuja sobreposição com a fonte cartográfica
Figura 228 Aproximação da gravura “A prospect of Tangier and the Mole before it was demolished” In Routh, E.M.G., England’s Lost Atlantic Outpost, 1683, London, 1912.
Figura 229 Inventário dos alinhamentos urbanos na cidade atual que remetem para o reforço defensivo do período inglês.
MENDES, 2017, p. 97. Carta de André Rodrigues a D. João III, 1546, A.N.T.T., Corpo Cronológico, 1ª parte, maço 78, doc. 52 in SOUSA VITERBO, 1922, vol. II, p. 383. 656 657
226
anteriormente utilizada, mostra não só a localização no mesmo alinhamento murado, como a coincidência com a representação de uma nova abertura na cortina.
Figura 230 Identificação na cartografia atual de dois portais que terão integrado a muralha do período inglês.
Figura 231 Levantamento métrico dos dois portais. Os dados relativos ao portal Dar Baroud foram retirados da Dissertação de Mestrado de Carolina Mendes.
227
As dimensões dos vãos dos dois portais são semelhantes, possuindo ambos cerca de uma braça de altura. O Dar Baroud é em arco de volta perfeita658, com cobertura abobadada e moldura almofadada ao romano659. Quanto ao outro, apesar do estado de conservação ser visivelmente inferior ao do congénere, é notório que a opção estética neste caso é muito diferente. A moldura não é tão trabalhada, possuindo silhares biselados rematados por uma chave simples. Apesar de provável, não é possível comprovar se seria em arco de volta perfeita tal como o primeiro, pois a morfologia dos limites laterais encontra-se bastante adulterada. Há, no entanto, indícios de que seria abobadado. As fontes visuais Loteamento e estruturas defensivas da cidade de Tânger (MPH 1_1_54) e A cidade de Tânger e estruturas defensivas no tempo inglês (MPH 1_1_25) revelam que existiria ainda outro ponto de atravessamento na mesma cortina, a Ocidente dos anteriores660. O portal Dar Baroud localizarse-ia adjacente ao baluarte à cota mais baixa, enquanto que o da Rue Cheikh Mohamed Ben Seddik se situaria entre os dois.
Figura 232 Levantamento fotográfico dos dois portais em Julho de 2017. (1) Alçado Sul do portal Dar Baroud; (2) Moldura almofadada ao romano do alçado Sul do portal Dar Baroud; (3) Alçado Sul do segundo portal; (4) Pormenor da cobertura do segundo portal; (5) Pormenor da moldura do alçado Sul do segundo portal; (6) Alçado Norte do segundo portal.
O início do arco encontra-se a 1.18m, cerca de meia braça. MENDES, 2017, p. 95. Ibidem. Este portal almofadado “ao romano” é comparado ao portal Nascente do “Castelo Artilheiro” de Vila Viçosa, atribuído a Benedetto de Ravenna. CORREIA, 2006, p. 194. 660 Uma análise da cartografia atual sugere a incorporação do terceiro portal numa construção. 658 659
228
“A nova cortina de muralhas construída pelos ingleses estaria na continuidade da cidadela portuguesa. Repetia-se o gesto reformador português, desta vez à cota baixa.”661
Tirando partido da conformação do reduto abaluartado português para elaborar uma segunda linha fortificada, sobressai da aposta inglesa a intenção de isolar a área administrativa e militar da praça. Ao unificar o setor Norte da urbe -os dois castelos e a área compreendida entre ambos-, os britânicos criam um novo espaço urbano, autónomo, numa extensão do conceito da Cidadela Moderna para a cota baixa, potenciando a sua capacidade defensiva. Na realidade, beneficiando de um tratado de tréguas com o árabe Al Ghailan, os ingleses viveram em Tânger alguns anos de relativa paz662, período que termina com a ascensão ao poder do sultão Moulay Ismail663, tendo o chefe alauita cercado a cidade, em 1678. Desta forma, dá-se início a um período descendente, marcado por uma tensão constante, durante o qual se repensam estratégias. Reconhecendo a força do inimigo, os britânicos concluem ser pouco proveitosa a manutenção de uma praça continuamente ameaçada e dispendiosa. Seguiu-se a decisão do seu abandono e desmantelamento, apesar dos protestos de Portugal664. “(…) decidiu [o governo britânico], (…) desmantelar a cidade. (…) enviou uma esquadra de vinte navios com numerosos engenheiros que minaram as muralhas, o castelo e mesmo o molhe.”665.
Entre os enviados estava Samuel Pepys666, chegando em 1683 a Tânger e reportando no seu diário as operações de derrubamento a que assistia667. Foram, durante esta fase, realizados vários planos para as grandes demolições. Contudo, é ponto assente que os arrasamentos não foram tão drásticos quanto as gravuras preconizam, sobrevivendo grande parte do Castelo de Cima português668. A praça foi então reentregue aos mouros, que por sua vez a recuperaram e adaptaram. Sabe-se que o sultão Moulay Ismail mandou edificar, em finais da década de 20 do século XVIII, no interior dos limites da Cidadela lusitana de outrora, o palácio de Dar El Makhzen669, construído por Ahmed Bem Ali
Figuras 233 (1) “Bombardement de Tanger, 6 Aout 1844” de Antoine Léon Morel-Fatio, National Maritime Museum, London. (2) “Citadel of Tangier” de David Roberts (1838) Illustrated London News.
MENDES, 2017, p. 97. CORREIA, 2006, p. 208. 663 Moulay Ismail é sultão alauita de Marrocos de 1672 a 1727. 664 MENEZES, 1732, p. 250. 665 Idem, p. .250 e 251. 666 “13. Monday. (…) My Lord in discourse, in his cabin, broke to me the truth of our voyage, for disarming and destroying Tangier (…).”.The Diary of Samuel Pepys in The Life, Journals and Correspondence of Samuel Pepys, Esq. F. R. S.: Vol. 1, 1841, p. 331. 667 “19. Friday. (…) About five, went to see the first trial by Captain Leake of two bombs blown up under the arches in the Mole. By the looseness of the earth above, they did little or no execution ; which makes us fear more mistakes in the greater works, as the master-gunner of England could be so mistaken.” Idem, p. 412, 413. 668 “(…) English demolition efforts concentrated in 1683-4 on the prominent and tactically significant land-front and its major landmark, the “Peterborough” Tower, and the entire length was mined in depth, with corresponding extensive damage.”. ELBL, 2012, p. 22. 669 Musée d’Al Kasbah à Tanger, 2018 in http://www.minculture.gov.ma/fr/index.php/accueilmobile/44-culture-etrecherches/patrimoine/89-musee-dal-kasbah-a-tanger. 661 662
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filho do Pacha Er Riffi, que anteriormente teria erguido um outro edifício palatino sobre o baluarte Nordeste português, contribuindo para a sua descaracterização. Já no século XIX há registos de bombardeamentos sobre a urbe, nomeadamente em 1844 por parte da marinha francesa670, causando possivelmente danos nas construções defensivas. De facto, ilustrações coevas mostram uma cidade muito alterada, onde as estruturas militares europeias surgem quase irreconhecíveis e englobadas pela urbanização árabe posterior (Figura 233 (2)). O século XX é marcado por um grande crescimento demográfico, para o qual concorreu a chegada de um vasto número de estrangeiros, usufruindo do “Estatuto de Zona Internacional” conferido a Tânger em 1923671. Naturalmente, o aumento da população incrementou a densidade urbana, culminando no preenchimento da área equivalente ao antigo Castelo de Cima português. Hoje em dia, não é observável grande parte da arquitetura militar passada. Contudo, o presente trabalho revelou que o “desaparecimento” das estruturas defensivas do Castelo se deveu, em grande medida, à sua incorporação pelas novas construções. Tal fica provado pela leitura do traçado português em alinhamentos urbanos atuais, nos quais uma intervenção arqueológica colocaria a descoberto fragmentos de património lusitano. Tal acontece com o flanco do baluarte Sudoeste e respetiva casamata, por exemplo, também com parte do Paço residencial coincidente com a Bab el-Assad e o Dar Zero672 e até mesmo a Porta da Traição cuja estrutura parece constituir agora uma parcela do edifício que alberga o Hotel “NordPinus” na Rue Riad Sultan673. Mesmo em casos onde, de facto, ocorreram demolições, permanecem os “negativos” das próprias construções, espaços vazios com a configuração primitiva674, conservando a sua memória.
A 6 de Agosto de 1844, uma frota francesa comandada pelo príncipe Joinville bombardeia a cidade de Tânger. O conflituo com Marrocos termina com um Tratado de paz no mês seguinte. História Geral de África: Vol.VI - África do século XIX à década de 1880, 2010, p. 558. 671 A 18 de Dezembro de 1923 é assinado um Tratado que atribuia o “Estatuto de Zona Internacional” à cidade de Tânger, tornada num espaço livre de impostos e passando a possuir uma administração conjunta, sendo abolido em 1956. Tanger: Au XXéme Siecle in http://tangier.free.fr/Histoire/f20.html. 672 "(...) a key swath of the location is occupied by the well-known Dar Zero, with its adjacent venerable fig tree (...).". ELBL, 2013, p. 786. 673 ELBL, 2012, p. 15. 674 “Depending on the degree of effective destruction in various sectors, the demolition carried out by the English in 1683-4 would have created both “negative surfaces” (absence of earlier structures and deposits) and capping layers of rubble, through (a) explosive disruption and (b) as a result of subsequent “cleanup” during the Moroccan restoration of Tangier. Even earlier “negative surfaces” would have been created through controlled demolition of older structures in the citadel area by the Portuguese in 1564-6.” Idem, p. 9. 670
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Figura 234 Sobreposição da reconstituição da primeira fase do Castelo de Cima com a cartografia da cidade atual.
Figura 235 Sobreposição da reconstituição da primeira fase do Castelo de Cima após o reforço Manuelino com a cartografia da cidade atual.
231
Figura 236 Sobreposição da reconstituição da segunda fase do Castelo de Cima com a cartografia da cidade atual.
Figura 237 Sobreposição da reconstituição da segunda fase do Castelo de Cima, após a construção do baluarte Norte com a cartografia da cidade atual.
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2.5 - Síntese Conclusiva: O Castelo de Cima e a “Arte da Guerra”
O trabalho prévio de investigação e seleção de informação sobre o Castelo de Cima de Tânger, com o objetivo de dar a conhecer o seu estado da arte durante o período português (1471-1661), permitiu que se procedesse ao trabalho analítico e interpretativo partindo da clara identificação de duas grandes fases construtivas principais: a Tardo-Medieval e a Moderna. Não obstante, ao longo desses estágios basilares identificaram-se diversas intervenções adicionais, reformas, acrescentos e alterações, de maior ou menor expressão no complexo, destacando-se, no decorrer da primeira fase, uma significativa intervenção Manuelina. O Castelo revelou-se um organismo em permanente evolução, onde a constante procura por uma atualização das estruturas de proteção estava diretamente relacionada, como não raras vezes se pode ler em testemunhos coevos, com a necessidade de dar continuamente respostas eficazes às investidas inimigas. Sendo a praça-forte portuguesa um ponto isolado em território infiel, a sua sobrevivência dependia da sua autossuficiência defensiva, o que implicava que estivesse sempre na vanguarda da arquitetura militar, acompanhando os avanços da “Arte da Guerra”675. A reconstrução planimétrica e tridimensional do reduto à cota alta possibilitou um melhor entendimento da sua morfologia mutável, captando-se o papel de cada um dos elementos constituintes de cada fase à medida que se percebia o seu enquadramento balístico. De uma maneira geral, transparece da imagem da primeira fase do Castelo de Cima a imponência de uma acrópole fortificada, um reduto circunscrito por muralhas muito altas, em particular os limites correspondentes à fronteira da própria cidade. O recurso à elevada altimetria representava uma primeira garantia de segurança, constituindo um mecanismo de defesa passiva676. Porém, evidentemente, a proteção exigia uma atitude ativa face aos atacantes. O armamento neurobalístico era, neste período inicial, extensivamente utilizado: pensa-se que terão existido seteiras/besteiras677 ao longo de todo o perímetro do Castelo, localizadas na parte superior da muralha678, identificando-se alguns destes vãos nos alçados do próprio Paço. Através destas aberturas, os disparos de arcos e bestas permitiriam um bom alcance e grande exatidão, até cerca de 100m. Como já referido, o declive acidentado do setor Setentrional era, por si só, uma mais-valia na sua proteção. Ainda assim, disparos em direção mergulhante a partir da cortina Norte sobre a escarpa impediriam qualquer tipo de escalada. Os longos panos murados existentes no Castelo de Tânger eram pontuados por um grande número de torres, compensando a fragilidade que poderiam representar em caso de ataque. As estruturas destacadas permitiam o tiro
675“A
eficácia defensiva de uma praça em caso de ataque dependia da articulação entre arquitectura e o alcance das armas.”. LOPES, 2009, p. 167. 676 Note-se que nas crónicas portuguesas de Quatrocentos, a extensa altura dos muros era um fator dissuasor em caso de ataque. PINA, Ruy de - Chronica d’El-Rei D. Duarte, Lisboa, 1901, p. 102. 677 “O arco e a besta possuem diferentes níveis de eficácia de tiro. Com a primeira, a seta perfaz uma trajetória curva, o que não resulta num tiro certeiro; daí, este tipo de aparelho ser mais efetivo quando manuseado por vários arqueiros ao mesmo tempo, aumentando a probabilidade de acertar no alvo. Já a besta é mais potente e mortífera; podia ser armada e disparada mais tarde na altura propícia, pois possuía um gatilho que o permitia.” PEIXOTO, 2017, p. 117. 678 Embora não existam registos visuais que o comprovem, a identificação de seteiras em gravuras do século XVII na cortina Norte e na muralha de atalho, duas das estruturas mais antigas da cidade, levanta a hipótese provável do mesmo acontecer com os restantes limites do Castelo de Cima.
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cruzado em complemento ao frontal679. A existência de um adarve que percorria os limites da fortificação coincidentes com as fronteiras da cidade, prosseguindo ininterruptamente para Sudoeste, facilitava a rápida e eficaz circulação dos portadores de armas individuais680 além de possibilitar um acesso unificado a todos os componentes constituintes. Do mesmo modo, a presença de uma “Torre do Sino” no ponto mais alto do Castelo representava uma importante vantagem na agilização da resposta interna em caso de ataque surpresa. Ao longo deste primeiro estágio assiste-se à progressiva adoção de armamento de maior potência e poder de alcance, introduzem-se os trons nos confrontos, com amplitude destrutiva superior ao dos mecanismos de propulsão. A tapeçaria de Pastrana “A Tomada de Tânger”, fonte visual de finais do século XV, representa nas muralhas da praça recém-conquistada diversas aberturas de disparo: perto da suposta localização do Castelo identificam-se seteiras e ainda troneiras simples e cruzetadas, constituindo estas uma primeira adaptação à pirobalística. Ao longo do perímetro da urbe distinguem-se até algumas troneiras de dupla cruz681(Figuras 238). Todavia, não se considerando esta representação suficientemente rigorosa, a ausência de vestígios ou outras fontes visuais credíveis respeitantes à fase em estudo determinou que não se conseguissem localizar estes possíveis vãos, pelo que, embora se admita a sua existência, não se incluem troneiras no mapa de alcance de tiro (Figura 239). Verifica-se que a mancha correspondente ao alcance de seteiras e besteiras é muito densa e abrangente, cobrindo eficientemente todo o perímetro fortificado. Considerando que, muito provavelmente, a defesa seria ainda complementada por disparos de troneiras, depreende-se que a sua proteção estaria relativamente bem assegurada, contudo apenas numa fase inicial.
Figuras 238 Aproximações da tapeçaria de Pastrana “A Tomada de Tânger” de finais do século XV onde (1) se identificam troneiras simples e troneiras cruzetadas (2) se identificam troneiras de dupla cruz.
A diferença entre o tiro frontal e o tiro cruzado reside no ângulo que o projétil prefaz, sendo oblíquo no segundo caso. PEIXOTO, 2017, p. 141. 680 Os portadores de armas individuais referidos seriam arqueiros, besteiros e espingardeiros. Idem, p. 142. 681 A identificação destas tipologias reforça a suspeita de uma representação bastante subvertida da realidade. Na cidade muçulmana de Tânger, de 1471, dificilmente se encontrariam elementos com alusões ao Cristianismo, ainda que tratando-se de componentes funcionais. Contudo, como Indira Peixoto refere a propósito das tapeçarias referentes à conquista de Arzila, não se pode excluir a hipótese destes elementos terem sido representados pelo autor com a intenção de reforçar a ideia de resistência e valor da praça ocupada. Idem, p. 141. 679
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Figura 239 Mapa da especulação do alcance de tiro do Castelo de Cima de Tânger da primeira fase, anterior ao reforço Manuelino.
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É já em inícios do século XVI que se toma verdadeira consciência, no Magrebe, dos grandes impactos da pirobalística. As sucessivas investidas dos árabes, que gradualmente adotam a nova artilharia de fogo, sobre as possessões lusitanas682 vieram alertar o reino para a real importância de adaptar as fortificações medievas às inovações bélicas emergentes. Num tempo de intenso experimentalismo, durante o qual são enviados a Marrocos, por D. Manuel I, mestres especializados, nomeadamente Boytac, seguindo-se Francisco Danzillo, dá-se um tímido mas decisivo primeiro passo na direção da Modernidade que despontaria nas décadas seguintes. Este período de transição manifesta-se no Castelo de Cima com o reforço do muro limítrofe mais vulnerável. Correspondendo a uma fronteira terrestre da própria praça e não beneficiando de acidentes geográficos que dificultassem uma aproximação inimiga, o setor Oeste do reduto representava uma fragilidade no conjunto que era urgente resolver. A solução foi reformar toda a zona Poente para que pudesse albergar a nova artilharia e, assim, dar uma resposta mais poderosa aos ataques provenientes do planalto de Marshan. A área considerável da plataforma que edificaram permitia um eficiente manuseamento dos engenhos pirobalísticos pesados, possibilitando o tiro alto sobre o inimigo. Nesta altura as bombardas conseguiam produzir grandes danos a um alcance máximo de 150 metros e a introdução definitiva do conceito de tiro flanqueante garantia a salvaguarda das cortinas adjacentes. Adicionalmente, existiam seteiras a perfurar os merlões da plataforma que permitiam complementar a defesa, possibilitando o tiro mergulhante, e a base em alambor externa impedia a aproximação dos atacantes. Torna-se evidente que, com as intervenções Manuelinas, a capacidade defensiva do Castelo de Cima, e por conseguinte, da cidade, foi potenciada. A análise do mapa de alcance balístico desta subfase revela uma mancha densa e abrangente formada pela desmultiplicação de linhas de fogo provenientes de vários pontos das muralhas, em várias direções (Figura 240). Como esperado, a fronteira Oeste, agora dotada de bombardeiras, é onde existe uma maior sobreposição de trajetórias diferentes. Os restantes segmentos murados permaneciam sob intensa proteção de engenhos neurobalísticos e possíveis trons. A cortina Norte, igualmente limite da praça e onde se localizava um importante elemento de permeabilidade entre a urbe e o exterior: a Porta da Traição, passou a contar com uma proteção adicional. O muro que, partindo da plataforma Poente, descia a colina constituía claramente uma barreira à passagem de inimigos provenientes do continente.
“(…) derrubadas facilmente as muralhas de pedra e barro [de Arzila, em 1508], os moradores se refugiaram no Castelo e estariam perdidos se não fora a chegada de socorro (…).” MOREIRA, 1989, p. 119. 682
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Figura 240 Mapa da especulação do alcance de tiro do Castelo de Cima de Tânger da primeira fase, após o reforço Manuelino.
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A Modernidade chega ao Castelo de Cima já na segunda metade do século XVI, no âmbito de um conjunto de intervenções profundas desenvolvidas nas praças de Marrocos. O mote para as renovações foi, uma vez mais, a demonstração de supremacia inimiga num contexto bélico, resultando na perda de uma possessão em 1541683. Em Tânger, a reação ao ocorrido manifestou-se vários anos depois, através de, entre outras medidas, uma radical metamorfose de todo o conjunto fortificado à cota alta, dando origem à segunda grande fase construtiva estudada. A atualização militar consistiu, como já mencionado, na adição à estrutura base precedente de novos componentes, resultantes de um estudo geométrico individualizado: os baluartes. Possuíam uma grande capacidade de resistência ao impacto da artilharia por um lado, e por outro possibilitavam investidas poderosas. A partir das casamatas dos novos elementos das frentes Sul e Nascente, os disparos atingiam um alcance a grande distância, possibilitando, pela primeira vez o tiro rasante sobre os terraplenos que rodeavam a acrópole. “(…) o conhecimento que deveriam ter os homens que manuseavam estas armas [de fogo] quanto às relações entre quantidade de pólvora, qualidade da arma e ângulo de tiro (…) Era de extrema importância terem pleno controlo da trajectória e alcance do projéctil, pois a distância estabelecida entre a maioria destas estruturas [abaluartadas] é inferior ao alcance máximo de tiro.”684
É interessante salientar que a análise do alcance balístico dos projéteis provenientes dos baluartes intramuros revela que, devido à potência da nova artilharia, a cobertura máxima da trajetória extravasava os limites da própria cidade, o que significa que os disparos poderiam atingir pontos da muralha Sudoeste ou mesmo da mancha urbana que se desenvolvia em redor (Figura 241). O mesmo acontecia com os tiros disparados das canhoneiras abertas na reforçada cortina Sul, embora apenas no nível superior. Evidentemente, era possível controlar e alterar as distâncias de fogo. Contudo, é impossível não estabelecer um paralelismo entre esta constatação e a ideia do Castelo enquanto último reduto impenetrável. Numa situação limite de invasão da praça, com a população reunida na acrópole, poderiam justificar-se disparos sobre a própria cidade. Nesta fase o Castelo passa a apresentar novos níveis de tiro. No entanto, os limites externos continuam sem aberturas para tiro rasante ou intermédio, apenas para tiro alto. A plataforma Norte, que foi posteriormente adicionada, possibilitava o disparo flanqueante de canhoneiras sobre a cortina e vertente Setentrional, assegurando a proteção da frente de mar e ainda da frente Oeste, que permanecia igualmente bem salvaguardada pela plataforma Manuelina. Verifica-se que a frente Sul possuía uma cobertura defensiva na sua totalidade e em dois níveis de fogo. Quanto à Nascente, o seu redesenho, dotando-a de dois baluartes em cunha bastante próximos entre si, garantia a defesa da Porta do Castelo e do Paço secular.
Como já mencionado, a perda de Santa Cruz do Cabo de Guer para os árabes, em 1541, é considerada o episódio determinante para a mudança de posicionamento da Coroa portuguesa relativamente às praças norte-africanas, desencadeando intensas obras de modernização nas possessões que decidiram manter. 684 LOPES, 2009, p. 172. 683
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Figura 241 Mapa da especulação do alcance de tiro do Castelo de Cima de Tânger da segunda fase, à cota baixa.
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Figura 242 Mapa da especulação do alcance de tiro do Castelo de Cima de Tânger da segunda fase, à cota alta.
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O sucesso do Castelo enquanto organismo militar dependia do cumprimento da sua função primordial: a defesa. Na situação geopolítica em que se implantava, onde a ciência bélica era constantemente posta à prova, de forma a travar o inimigo muçulmano que continuamente se posicionava na vanguarda da Arte da Guerra685, a fortificação ofereceu progressiva resistência. Na verdade, em quase duzentos anos de domínio lusitano, o Castelo de Cima condensou em si os três principais momentos de construção militar em Marrocos: Tardo-Medieval, Transição e Modernidade. Os mapas de alcance balístico vieram comprovar que as respostas arquitetónicas aos progressos balísticos se mostraram eficazes, compensando o grande investimento por parte do Reino para atualizar a fortificação à cota alta. Ademais confirmou-se que o reduto conseguiria funcionar de forma independente do sistema fortificado da cidade. A Tânger atual apresenta-se como uma conjugação de estratos de tempos diversos, numa convivência harmoniosa, numa simbiose quase poética, sem disputas de protagonismo. O que se vê é o resultado da evolução natural da cidade, o fenótipo de séculos de história. Deste modo, as tentativas de “recuperar” as estruturas militares europeias, que se têm verificado nos últimos tempos, exigem ponderação, para que não se reinventem vestígios. “(…) It is impossible, as impossible as to raise the dead, to restore anything that has ever been great or beautiful in architecture.”686
Talvez fosse proveitoso apostar numa maior divulgação de informação relativa às estruturas pertencentes aos vários períodos que coexistem na Medina, possivelmente usando o sistema de sinalética que já implementaram, porém personalizado a cada espaço por forma a assinalar construções que facilmente passam despercebidas. Do mesmo modo, além dos percursos externos à fronteira de muralhas Norte e Oeste que viabilizam a sua contemplação, seria vantajoso criar também locais de observação externos para a muralha Sul da Cidadela portuguesa, que atualmente apenas se consegue admirar a partir de casas privadas do bairro Jnan Kaptan. Estes locais teriam necessariamente de ser pontos bastante elevados devido ao grande desnível topográfico que ocorre neste setor. A hipótese da utilização de terraços pré-existentes próximos da construção com esse propósito constituiria o cenário ideal, dando a conhecer não só a cortina lusitana como uma vista extraordinária sobre a Medina e baía de Tânger (Figura 243). Obviamente, essa ação estaria inteiramente dependente de fatores externos, nomeadamente a cedência dos espaços por parte dos eventuais proprietários. A alternativa edificação de um “miradouro” de origem, embora desencorajada pelo concentrado tecido urbano da zona, é ainda assim possível (Figura 244).
LOPES, 2009, p. 178. is the true meaning of the word restoration. It means the most total destruction which a building can suffer: a destruction out of which no remnants can be gathered: a destruction accompanied with false description of the thing destroyed. Do not let us deceive ourselves in this important matter; it is impossible, as impossible as to raise the dead, to restore anything that has ever been great or beautiful in architecture.” RUSKIN John - The Seven Lamps of Architecture, 1912, p.242. 685
686 “(…)
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Figura 243 Vista sobre a muralha Sul do Castelo de Cima, Medina e baía de Tânger. Fotografias efetuadas a partir de vários terraços. Julho de 2017.
Figura 244 (1) Mapa dos vestígios do Castelo português: a vermelho assinalada área privada não construída no bairro Jnan Kaptan; (2) Negativo da zona do bairro Jnan Kaptan próxima à muralha Sul; (3) fotografia área da zona do bairro Jnan Kaptan próxima à muralha Sul; (4) área privada não construída no bairro Jnan Kaptan.
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O trabalho desenvolvido ao longo desta dissertação, no qual se inclui o resgate da memória do Castelo Velho, praticamente desaparecido da urbanização atual, possibilitou avançar um passo no sentido da compreensão desta importante página da história de Tânger e de Portugal dos séculos XV a XVII. Este intervalo temporal inseriu-se num contexto de grandes progressos no conhecimento a nível europeu, renovações de mentalidade e evolução na arquitetura e na tecnologia bélica, das quais o objeto estudado foi testemunho. Um exemplo paradigmático da atuação dos portugueses nos territórios além-mar, a clarificação dos seus principais momentos construtivos permitiu a atualização de algumas ideias anteriormente estabelecidas. Todavia, todas as temáticas abordadas podem ainda ser mais desenvolvidas, nomeadamente o esclarecimento da morfologia dos componentes que geraram mais dúvidas na formulação da hipótese de reconstituição do Castelo, talvez beneficiando de um trabalho interdisciplinar com Arqueologia e História. Pretende-se portanto que esta dissertação seja o ponto de partida para outros estudos.
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Glossário Acrópole- Parte de uma cidade que se localiza à cota mais alta, estando associada a uma importância defensiva e a um valor simbólico. Adarve- Também denominado de caminho de ronda, era o percurso estreito ao longo da parte superior das muralhas de um castelo ou fortaleza, que permitia a ronda e a distribuição dos defensores. Adobe- Tijolo moldado a partir de argila. Ameias- Aberturas intercaladas por merlões na parte superior das muralhas de um castelo ou fortaleza que permitiam avistar o inimigo e atirar sobre ele. Aparelho- Técnica de disposição ou forma na qual a alvenaria é assente formando paramentos, arcos ou cúpulas. Atalaia- Construção externa a uma fortificação com objetivos defensivos: garantia a vigilância dos territórios circundantes e encontrava-se geralmente posicionada em outeiros ou pontos elevados. Atalho- Prática estratégica recorrentemente executada pelos portugueses que consistia no encurtamento das dimensões de uma cidade, através da adição de um tramo de muralha interior ao perímetro que seccionava a mancha urbana, de forma a que esta pudesse ser mantida de forma sustentável. As construções externas à muralha do atalho eram progressivamente demolidas. Balcão- Elemento das fortificações medievais que consistia num pequeno varandim, por vezes assente em mísulas, possuindo no pavimento aberturas para tiro vertical, os matacães, identificando-se também destes elementos construídos em madeira. Baluarte- Plataforma defensiva que funciona como um prolongamento do edifício, avançando em relação a ele, recortada em várias faces o que permite o tiro cruzado sobre o inimigo. Era constituído pelos flancos onde se concentrava toda a artilharia e pelas faces. Barbacã- Muro perimetral defensivo, funcionando como uma segunda muralha externa. Besta- Arma neurobalística portátil, de madeira e/ou aço, composta por um arco e um cabo muito tenso que lançava setas curtas de modo certeiro. Bombarda- Disparador de projéteis pesados precursor do canhão. Bombardeiras - Aberturas circulares nas muralhas ou vãos nos parapeitos entre merlões, que permitiam o disparo de bombardas. Caminho de ronda- Também denominado de adarve, era o percurso estreito ao longo da parte superior das muralhas de um castelo ou fortaleza, que permitia a ronda e a distribuição dos defensores. Canhão- Disparador de projéteis pesados, que atinge uma distância relativamente longa e a uma grande velocidade. Canhoneira- Aberturas nas muralhas de um castelo, fortaleza ou navio, de formato circular ou quadrangular, ou ainda os vãos nos parapeitos entre merlões, que permitiam o disparo de armas de fogo como canhões. Casamata- Construção subterrânea inserida numa fortificação, podendo ser ou não abobadada, permitindo o disparo de projéteis e protegendo simultaneamente do fogo inimigo. 251
Castelo- Construção fortificada, responsável pela proteção da área circunscrita pelas suas muralhas. Catapulta- Instrumento de guerra baseado na força de contrapeso que arremessava projéteis. Cerca- Muralha que contornava uma povoação. Cidadela- Fortaleza ou fortificação construída num ponto estratégico de uma cidade com propósitos defensivos. Cisterna- Reservatório de águas pluviais, essencial para a subsistência de uma cidade em caso de cerco. Cortina- Pano de muralha que unia dois elementos de uma fortaleza. Cordão- Pormenor estético recorrente em fortificações modernas portuguesas, a partir do início do século XVI. Consiste num friso de seção hemisférica saliente, que separa o parapeito vertical do remate da escarpa, dificultando a escalada do atacante. Couraça- Pano de muralha que se projetava para o exterior de uma fortificação, com funções defensivas e muitas vezes permitia o acesso direto ao rio ou mar. Cubelo- Torreão de forma cúbica ou de perfil quadrangular. Faxina- Feixe de paus utilizados, entre outras coisas, para preencher fossos ou fixar terrenos. Fortaleza- Complexo fortificado projetado com propósitos essencialmente defensivos. Fortim- Pequeno forte. Fosso- Vala profunda e regular, escavada com o objetivo de impedir dificultar o acesso do inimigo e o seu ataque. Por vezes continha água. Kasbah- Em português “alcáçova” é o reduto defensivo de uma cidade islâmica. Lintel- Peça rígida colocada horizontalmente sobre as ombreiras de portas ou janelas. Magrebe- “Magrebe al Agsa” que significa “ocidente extremo” era o nome que os conquistadores árabes davam ao território correspondente a Marrocos. Matacães- Estrutura de defesa vertical medieval, arredondada, rasgada no pavimento de balcões de torres ou muralhas. Medina- Aglomerado urbano islâmico envolvido por muralhas. Merlões- Elementos compactos que pontuam a parte superior das muralhas, alternados por ameias, com o objetivo de proteger os defensores. Mestre-de-obras- Mestre responsável pela criação e manutenção das fortificações. Muralha- Parede ou muro alto e espesso construído para a defesa de fortalezas, povoações ou territórios mais abrangentes. Neurobalística- Utilização da energia de tensão, através da flexão ou torção de elementos, enquanto força propulsora do armamento de guerra. Orelhão- Parte saliente, num baluarte, resultante do prolongamento da sua face na ligação ao flanco. Paço/Palácio- Edifício destinado à habitação de um monarca ou governador. Paliçada- Sistema defensivo constituído por um conjunto de estacas cravadas verticalmente no terreno e interligadas entre si formando barreiras ao inimigo. Pano de muralha- Troço de muralha que unia dois elementos de uma fortaleza, também denominado de cortina. 252
Pátio de Armas- Espaço no interior do castelo destinado ao treinamento militar. Pirobalística- Utilização da pólvora como força propulsora, a partir da segunda metade do século XIV, que permitiu o desenvolvimento de novos tipos de armas. Plataforma- Semelhante a um baluarte, a plataforma permitia o disparo de tiros. Ponte Levadiça- Plataforma de madeira colocada em frente às portas de uma fortificação, acionada mecanicamente a partir do interior, que permitia a transposição do fosso. Porta- Elemento que permitia a transição entre o interior e o exterior de uma fortificação. Esta condição determinava que fosse um ponto frágil a nível defensivo e por isso aparecia normalmente reforçada por outros sistemas, como fosso, balcão, ponte levadiça e muitas vezes flanqueada por torres e baluartes. Porta da Traição- Porta secundária à qual se associa um facto histórico de traição perante um ataque inimigo. Postigo- Pequena porta geralmente aberta ao lado ou na própria porta principal de uma fortificação, para evitar a sua abertura frequente. Seteira- Ranhura estreita aberta nas muralhas de um castelo ou fortificação que permitia o arremesso de setas contra o inimigo. Com o início da utilização da pólvora, algumas sofreram adaptações que possibilitavam o disparo das armas de fogo. Terrapleno- Terreno aplanado, geralmente resultante do preenchimento de uma depressão, destinado à manobra de bocas de fogo e movimento de homens. Torre- Construção prismática ou cilíndrica com vários níveis denunciados geralmente pelas aberturas das seteiras. Surgiam ora adossadas às muralhas de uma fortificação, a flanquear as entradas ou de forma autónoma e eram essenciais no processo defensivo, uma vez que devido à sua maior altura, permitiam a diminuição de ângulos mortos. Torre de Menagem- Último reduto defensivo de um castelo medieval, consistia numa torre geralmente mais alta que as demais e que permitia uma visão abrangente do território circundante. O piso térreo não possuía aberturas, sendo o segundo nível acedível por meio de escadas de madeira, facilmente removíveis. Troneiras- Aberturas circulares nas muralhas que permitiam o disparo de armas de fogo como canhões, encimadas por fendas verticais. Troneiras Cruzetadas- Aberturas circulares nas muralhas que permitiam o disparo de armas de fogo, encimadas por um rasgo vertical que, por sua vez, era intercetado por outro horizontal.
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