Educação Matemática: linguagens, práticas e sujeitos versao digital paginas

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Série: PRAKTIKÉ Vol. 1


Karin Ritter Jelinek Samuel Edmundo Lopez Bello Suelen Assunção Santos Orgs.

Educação Matemática:

linguagens, práticas e sujeitos 1ª Edição

Porto Alegre Canto - Cultura e Arte 2017


Copyrigth @ 2017 Samuel Edmundo Lopez Bello, Suelen Assunção Santos, Karin Ritter Jelinek e autores Organizadores: Samuel Edmundo Lopez Bello, Suelen Assunção Santos, Karin Ritter Jelinek Coordenação da Série PRAKTIKÉ: Samuel Edmundo Lopez Bello Projeto Editorial: Processo C3 - Wagner Ferraz - Estudos do Corpo Projeto Gráfico e Layout: Wagner Ferraz - Processo C3 Jessica Krahl Diagramação: Jessica Krahl Criação e Arte da Capa: Anderson Luiz de Souza Revisão: Organizadores Coordenação Editorial - Editores Wagner Ferraz e Diego Esteves Editora: Canto - Cultura e Arte

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) E24

Educação matemática : linguagens, práticas e sujeitos / Organizadores Karin Ritter Jelinek, Samuel Edmundo Lopez Bello e Suelen Assunção Santos. – Porto Alegre : Canto-Cultura e Arte, 2017. 170 p. (Praktiké ; 1) ISBN 978-85-69802-09-9 1. EDUCAÇÃO. 2. MATEMÁTICA. I. Jelinek, Karin Ritter. II. Bello, Samuel Edmundo Lopez. III. Suelen Assunção Santos. CDU 51(07) CDD 510.07

Bibliotecária responsável Catherine da Silva Cunha CRB 10/1961

Porto Alegre - 2017 CANTO - Cultura e Arte www.canto.art.br


CANTO - Cultura e Arte A “CANTO – Cultura e Arte” foi criada em 2010, a partir das experiências e demandas do “NECITRA – Núcleo de Estudos e Experimentações com Circo e Transversalidades”, se focando a produção artísticas. Atualmente possui registro editorial possibilitando publicar livros, periódicos e diferentes textos em formato impresso, impresso sob demanda, e-book e também disponibilizar arquivos em formato “pdf” para download gratuito, como produções textuais diversas e pesquisas de seus parceiros, convidados e demais interessados. Os temas publicados variam dentro dos campos das Artes e Educação, destacando as artes da cena (dança, circo, teatro, performance...), artes visuais, fotografia, produção cultural e moda atravessadas por perspectivas poéticas, histórias, filosóficas, políticas, culturais... Os projetos desenvolvidos estão sob a Coordenação Editorial de Wagner Ferraz e Diego Esteves e o projeto editorial desenvolvido pelo Processo C3.


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COMISSAO EDITORIAL

Prof.ª Dra. Alexandrina Monteiro (UNICAMP) Prof.ª Dra. Cláudia Regina Flores (UFSC) Prof. Dr. Cláudio José de Oliveira (UNISC) Prof.ª Dra. Fernanda Wanderer (UFRGS) Prof.ª Dr.ª Patrícia dos Santos Moura (UNIPAMPA)


SÉRIE PRAKTIKÉ A Série Praktiké originou-se da atividade comemorativa do trabalho decenal, em pesquisa e orientação, que vem sendo realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) e recentemente, também, no Programa de Pós-Graduação de Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde (PPGQVS), ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Enseja divulgar regularmente os trabalhos realizados pelo grupo de Pesquisa Praktiké: Educação e Currículo em Ciências e Matemática (UFRGS), objetivando multiplicar as produções dos pesquisadores envolvidos para contribuir com outros modos de ver e de fazer a Educação, Educação Matemática e Educação em Ciências a partir da perspectiva pós-estruturalista.



GRUPO DE PESQUISA

PRAKTIKÉ EDUCAÇAO E CURRÍCULO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA ~

Desde 2008 o grupo de pesquisa Praktiké vem objetivando realizar estudos que dizem respeito às relações entre Educação, Cultura e Currículo no âmbito do Ensino de Ciências e Matemática em diferentes espaços educativos, fazendo articulações com outras disciplinas e campos de conhecimento. Além disso, o grupo está numa constante busca em problematizar poderes e práticas que produzem saberes, verdades e formas-sujeito em espaços escolares e não escolares, tomando como referência produções acadêmicas de viés pósestruturalista. Atualmente, o grupo possui dez pesquisadores e nove estudantes, além de dois colaboradores estrangeiros, atuando na linha de pesquisa Educação Matemática e Prática Pedagógica: currículo, linguagens e subjetivações, do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq.


AU TO RES


Claudia Glavam Duarte Fernando Ripe Jean-Claude Régnier Karin Ritter Jelinek (org.) Karliúza Fonseca Bitencourt Maria Aparecida Maia Hilzendeger Monica Pagel Eidelwein Samuel Edmundo Lopez Bello (org.) Suelen Assunção Santos (org.)


SUMÁRIO LINGUAGEM, REALIDADE E SUBJETIVIDADE:

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ELEMENTOS PARA UMA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA CONTEMPORÂNEA Samuel Edmundo Lopez Bello Jean-Claude Régnier

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SABER-REALIDADE E SEUS DILEMAS PARA

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PRÁTICAS AVALIATIVAS: INCLUSÃO E

O ENSINO-APRENDIZAGEM Claudia Glavam Duarte

AVALIAÇÃO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA Monica Pagel Eidelwein

O PORTADOR DE ALTAS HABILIDADES EM MATEMÁTICA SOB UMA PERSPECTIVA PRAGMÁTICA DA

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LINGUAGEM Karin Ritter Jelinek Samuel Edmundo Lopez Bello


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LIVRO DIDÁTICO DE MATEMÁTICA E A PRODUÇÃO DE SUJEITOS MASCULINOS Maria Aparecida Maia Hilzendeger

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SUJEITOS DOCENTES:

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SUJEITOS DOCENTES-DISCENTES:

IDENTIDADES E DISPOSITIVOS Suelen Assunção Santos

ENTRE DIZIBILIDADES E VISIBILIDADES Fernando Ripe

Apêndice: O ENSINO-APRENDIZAGEM DE MATEMÁTICA POR

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PROJETOS: PROBLEMATIZANDO

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Posfácio:

LINGUAGENS E PRÁTICAS Karliúza Fonseca Bitencourt

FOUCAULT EM MOVIMENTO Rochele de Quadros Loguercio


A pre sen ta ção


Educação Matemática: Linguagens, Práticas e sujeitos, é um dos primeiros trabalhos comemorativos dos 10 anos de trabalho, em pesquisa e orientação, que vem sendo realizada no Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEDU/UFRGS), e que reúne um conjunto de estudos e apresentações públicas, realizadas no semestre 2016-1, na disciplina « Educação e Ensino de Ciências e Matemática: práticas, saberes e sujeitos » do programa de pós-graduação em química da Vida e Saúde da UFRGS. A maioria desses textos e estudos estão situados nas perspectivas pós-estruturalistas em Educação, hoje em dia, acolhidos pela linha de pesquisa Filosofias da diferença e Educação do PPGEDU/UFRGS. Porém, esta atualidade nem sempre foi assim. Ao longo desses 10 anos, mudaram-se as linhas de pesquisa, consequentemente as perspectivas, os autores e as temáticas.

A guinada pós-estruturalista vai começar com

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Os estudos realizados no período 2006-2007, centrados primordialmente na temática da formação de professores, apoiavam-se dentro de um viés crítico-construtivista, seja pelo lastro deixado pelos nossos estudos etnomatemáticos de viés multiculturalista, seja pelas bibliografias cada vez mais recorrentes que evidenciavam os saberes docentes e a epistemologia do professor na realização das suas práticas pedagógicas. Destacamos, neste momento, a dissertação de mestrado de Karliuza Bittencourt, intitulada: Educação Matemática por projetos: perspectivas e prática pedagógica no contexto escolar, a qual - apoiada nos estudos piagetianos e nas nossas discussões sobre interdisciplinaridade e modelagem matemática - discute a possibilidade de qualificação profissional do professor de matemática por meio da análise de sua ação docente e sua constituição como educador. Uma amostra deste trabalho encontramos no texto: O Ensino-Aprendizagem de Matemática por Projetos: Problematizando Linguagens e Práticas, apresentado pela autora e que se encontra no apêndice desta obra.

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Educação Matemática

os primeiros estudos, preferencialmente foucaultianos, justamente sobre a formação de professores e as práticas pedagógicas em Educação Matemática. O trabalho de mestrado de Cleuza Iara Campelo dos Santos, Inclusãoexclusão nas práticas pedagógicas dos professores que ensinam matemática na educação de jovens e adultos, defendido em 2008, inaugura formalmente este nosso movimento. Igualmente, e a partir dos trabalhos realizados junto a pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas, da Universidade São Francisco (Itatiba/SP) e da Universidade Federal de São Carlos1, autores como Ludwig Wittgenstein e alguns outros da chamada virada linguística, assim como Jaques Derrida, vêm comparecer nas nossas analíticas e desenvolvimentos teórico-filosóficos. Três anos depois, a interlocução com o grupo de pesquisa DIF – Artistagens, fabulações, Variações do PPGEDU/UFRGS, traz à nossa cena filosófica os escritos de Gilles Deleuze. O movimento da Virada Linguística assim como as filosofias Pós-estruturalistas de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jaques Derrida, apresentam-nos novas temáticas e possibilidades para Educação Matemática. As práticas Matemáticas curriculares são vistas como jogos de linguagem, jogos de poder em meio a processos de subjetivação. Elas constituem um perspectivismo de se fazer pesquisa ao modo Nietzschiano. Assim sendo, produzir uma perspectiva não é ter uma posição relativista ou fabricar um mero ponto de vista. Muito menos é uma metodologia. Um perspectivismo fabrica conceitos, modos de pensar e agir. É uma modalidade de pensamento e como tal se constitui numa qualidade analítico-interpretativa de criação. Para Gilles Deleuze em seu livro “A dobra: Leibniz e o Barroco”, o perspectivismo não significa que tudo é relativo e não indica uma relatividade daquilo que é visto. 1 Estes pesquisadores, fazem parte atualmente do Grupo de pesquisa CNPq – PHALA, vinculado ao departamento de Ensino e Práticas Culturais da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Este grupo é constituído por subgrupos de pesquisa que apresentam ramificações de interesse diferenciada, sendo que teoricamente partilham da noção de linguagem como constitutiva da realidade.

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Se a perspectiva é verdadeiramente potência de ordenar os casos, potência de colocar em séries os fenômenos, ela é, por isso mesmo, condição de surgimento ou de manifestação de uma verdade nas coisas. Não se encontrará nenhuma verdade se não se tem uma perspectiva. A perspectiva jamais significou que a verdade é relativa a cada um, mas que há um lugar a partir do qual o caos se organiza, onde o segredo se descobre. Nesse sentido, a perspectiva é pensada como uma “condição” para a verdade. Certamente, a verdade só pode ser reconhecida como tal, segundo uma perspectiva. Ora, a perspectiva não é nem nunca foi uma variação da verdade de acordo com um sujeito, ela é a própria condição de variação de verdade que aparece ao sujeito.

No Capítulo de abertura deste volume, temos a discussão proposta por Samuel Bello e Jean-Claude Régnier que exploram, numa perspectiva pragmática, as noções de Linguagem, Realidade e Subjetividade na Educação Matemática. Entrelaçados a alguns estudos desenvolvidos no campo da Etnomatemática, os mesmos propõem uma compreensão normativa da linguagem e dos saberes matemáticos como constituintes de práticas, pelas quais elaboramos nossas formas de pensar e agir. De acordo com os autores, dizer que a linguagem é constitutiva da realidade quer dizer, em primeiro lugar, que está é consequência do fenômeno linguístico, afastando-nos assim do caráter essencialista-conceitual atribuída à linguagem capaz de expressar uma suposta unidade e universalidade de objetos

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Dentro desse nosso perspectivismo, os textos que compõem este primeiro volume, intitulado Educação Matemática: Linguagens, Práticas e sujeitos, fazem uso, essencialmente, das ideias de Michel Foucault e Ludwig Wittgenstein. O que temos, ao apreciar o conjunto da obra, é que cada autor explora diferentes conceitos relacionados a esta perspectiva teórica e o faz de modo que o conjunto de artigos apresentados se complementem e ofereçam ao leitor um conjunto de estudos desta perspectiva a partir de campos empíricos singulares.

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Educação Matemática

pelos significados contidos nas palavras. Tal entendimento, possibilita perceber que a realidade do signo é a realidade do jogo; é a realidade do jogo de linguagem. Assim também, multiplicidade de subjetividades, multiplicidade de sentidos, multiplicidade de realidades. Os saberes, também formulados pela linguagem, tornam-se elementos constitutivos normativos de práticas e objetos culturais no interior de espaços sociais institucionalizados. O Capítulo de Claudia Glavam Duarte tem por intenção problematizar uma verdade recorrente no âmbito educacional que afirma a necessidade de incorporarmos, em nossas salas de aula, a realidade dos alunos. Para isso, ela aborda as diferentes lógicas que sustentam essa premissa ao longo dos séculos e questiona-se a possibilidade de tal empreitada. De acordo com a autora, identificar a engrenagem que sustenta enunciados naturalizados e dar visibilidade ao seu caráter contingente e arbitrário aponta que a aparente tranquilidade, serenidade, expressa inclusive pelas mesmas palavras, que poderiam parecer estar configurando a “mesmidade” do enunciado que afirma a importância de trabalharmos com a realidade do aluno, ao fim e ao cabo não são mais do que efeitos de superfície. E são exatamente estes efeitos que a tornam, muitas vezes, quase que inquestionáveis no discurso educacional. Discutir as práticas avaliativas dos professores que ensinam Matemática é o cerne da pesquisa apresentada por Monica Pagel Eidelwein no terceiro Capítulo desta obra. Para a autora, nessas práticas está a ideia de que há saberes que são produzidos nos jogos discursivos da inclusão e que ao serem naturalizados e tomados como verdades operam na produção de formas de pensar e agir, e assim incidem sobre as práticas avaliativas dos professores que ensinam Matemática. Para se entender os jogos discursivos, de acordo com ela, não é suficiente dizer que é um discurso, nem apenas olhar para suas regras enquanto jogo. Faz-se necessário perceber as práticas que as regras desses jogos produzem. Assim os saberes dos jogos discursivos da inclusão produzem formas de avaliar em Matemática. Isso ocorre

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quando tais saberes são tomados como verdade, incidindo sobre suas práticas avaliativas na Matemática escolar, através da flexibilização da avaliação, constituindo, assim, formas de ser professor.

Identificar e analisar os discursos sobre masculinidade presentes no livro didático “Primeira Arithmetica para Meninos”, compilado pelo engenheiro, educador e escritor brasileiro José Theodoro de Souza Lobo, é o objetivo de Maria Aparecida Maia Hilzendeger neste Capítulo 5. De acordo com a autora, a escolha desse livro deu-se por considerá-lo um artefato cultural, compreendendo que nele circularam discursos que implicaram a produção de identidades de gênero, de acordo com determinados modos de ser menino. A partir do estudo empreendido por Maria Aparecida, é possível compreender que este tipo de material didático é regulado por uma diversidade de discursos (legislativo, gênero, raça, etnia, classe social, religioso) que permitem

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Os portadores de altas habilidades em Matemática são os protagonistas da pesquisa aqui apresentada por Karin Jelinek e Samuel Bello. Os autores apresentam no quarto capítulo o recorte da pesquisa que teve por objetivo analisar os jogos de linguagem em formas de vida de crianças ditas portadoras de altas habilidades, evidenciando aqueles valorizados pelos processos escolares de seleção e enriquecimento educativo. Aproximando a noção de jogos de linguagem de Wittgenstein da noção de jogos de verdade de Foucault, foi possível perceber que no âmago desses jogos encontram-se regras de legitimação de discursos forjados nas relações de poder mantidas entre os sujeitos no espaço histórico e social. No exercício de aproximação dessas ideias, cunhou-se a expressão jogos de poder-linguagem, a qual passa a sustentar as discussões propostas neste estudo. De acordo com eles, o sujeito das altas habilidades é efeito de uma prática discursiva, uma vez que são os modos de ser e de agir que lhe outorgam existência. O que torna este estudo ainda mais instigante, é que segundo os autores, a identificação e seleção desses sujeitos dão, acima de tudo, por processos comparativos e classificatórios.

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Educação Matemática

fixar diferenças e que, com elas, produzem desigualdades. Dando visibilidade aos discursos que circularam no livro didático analisado, ela destaca a regularidade destes naquela sociedade, pois ganharam legitimidade de acordo com o proposto na legislação. No Capítulo 6, Suelen Assunção Santos nos prestigia com um estudo sobre como o Portfólio de Aprendizagens, produz maneiras de se pensar e ser professora que ensina Matemática na Educação Infantil e nas Séries Iniciais. A autora partiu dos relatos de aprendizagens relacionadas à disciplina de Matemática feitos pelas alunas-professoras de um curso de Pedagogia e teve por intenção dar visibilidade às identidades constituídas por este dispositivo interdisciplinar por excelência: o Portfólio de Aprendizagens. Para a constituição de suas narrativas, as alunas-professoras não escolheram quaisquer palavras, uma vez que houve um regime de verdade que deu sentido à formação das sujeitas pedagógicas e à produção do Eu reflexivo, do Eu crítico construtivista e do Eu interdisciplinar. Já no último Capítulo deste volume, temos uma problematização sobre a questão da constituição do sujeito docente proposta por Fernando Ripe. A partir de uma perspectiva discursiva o pesquisador buscou caracterizar a incitação à reflexão, presente no processo de avaliação de um Curso de Especialização para o ensino de Matemática, como sendo um dispositivo disciplinar. De acordo com ele, tal dispositivo, pode se supor capaz de construir significados e atuar decisivamente na formação dos sujeitos professores através da regulação e controle das práticas pedagógicas. Neste contexto analítico de modos de pensar e fazer pesquisa, é que este conjunto de trabalhos faz parte da produção científica do grupo de Pesquisa do CNPq – Praktiké: Educação e Currículo em Ciências e Matemática, cujos estudos dizem respeito às relações entre Educação, Cultura e Currículo no âmbito do Ensino de Ciências e Matemática em diferentes espaços educativos, e problematizam poderes e práticas que produzem saberes, verdades e formas-sujeito.

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Ao finalizar a apresentação da composição desta obra é possível perceber que a mesma é constituída por um conjunto singular de campos empíricos, resultado dos diferentes olhares dos autores para o campo da Educação Matemática. Assim, a partir daqui, deixamos o convite para que o leitor se lance na apreciação destas possibilidades de problematização da Educação perspectivadas pelo viés pósestruturalista. Esperamos que através dos diferentes cenários e dispositivos apresentados – como a realidade, os processos de avaliação, os laboratórios de aprendizagem, o livro didático, os cursos de formação de professores, os portfólios, dentre outros – possamos contribuir para a compreensão de alguns conceitos-chave relacionados à perspectiva teórica Pós-estruturalista e, com isso, enriquecer as pesquisas no campo da Educação Matemática inspirando aqueles que hoje se lançam nos desafios da pesquisa contemporânea em Educação.

Organizadores

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Karin Ritter Jelinek Samuel Edmundo López Bello Suelen Assunção Santos

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Educação Matemática

Linguagens, Praticas e Sujeitos


LINGUAGEM, REALIDADE E SUBJETIVIDADE ~

ELEMENTOS PARA UMA EDUCAÇAO MATEMÁTICA CONTEMPORÂNEA1 Samuel Edmundo Lopez Bello Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS – Brasil Jean-Claude Régnier Université Lumière - Lyon 2 - France Universidade do Estado de Tomsk - Rússia


Aspectos introdutórios

1 Este texto é uma versão revista e ampliada do trabalho intitulado: Langage, subjectivité et pratique: qu’appelle-t-on réalité em éducation mathématique? apresentado no 66 CIEAEM, na cidade de Lyon-FR e publicado no Quaderni Di Ricerca In Didattica / Mathematics, 24 (suppl. I), 336-343. 2 Estágio realizado com apoio financeiro da CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de pessoal de Nível Superior. Proc: BEX 4392/13-2 3 Embora nos dias de hoje exista um amplo número de pesquisadores e pesquisadoras em Etnomatemática, no Brasil e no mundo, tomaremos como referência as obras produzidas e organizadas por esses autores, tendo em vista que as mesmas se constituem em um referencial teórico privilegiado a partir do qual tem se produzido diferentes pesquisas, abordagens e desdobramentos.

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

O assunto que se abordará a seguir tem seus antecedentes em dois projetos de pesquisa, o primeiro intitulado: Etnomatemática – Discursos, governo e subjetividades, desenvolvido entre os anos de 2008 a 2012, no programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; e o segundo: Saberes Estatísticos e Práticas Sociais - a normatividade estatística como produção Cultural. realizado no Estágio Sênior durante o ano acadêmico 2013-2014, no laboratório UMR5191 ICAR da Universidade de Lyon 22 . Nesse percurso, a intenção era dar continuidade aos questionamentos iniciados em Bello (2000; 2004; 2006; 2008), do que vinha sendo dito e escrito em torno da Proposta Etnomatemática (D’AMBROSIO, 1985, 1990, 2005; POWELL e FRANKENSTEIN, 1997; KNIJNIK, WANDERER e OLIVEIRA 2004; RIBEIRO, DOMITE e FERREIRA, 2004)3 , a qual como campo de investigação procura relações entre as formas de produção de saberes matemáticos e o entorno sociocultural, integrando processos de ensino-aprendizagem dentro e fora da escola. Nessa procura, a centralidade das noções de prática social, identidade e diferença são também evidentes. Todavia, e sob a analítica de M. Foucault, questionávamos sobre os impactos da proposta Etnomatemática na formação de professores em relação à produção de poderes e verdades, tais como: o ensino contextualizado da Matemática, sua relação com a cultura e a realidade do aluno; seus usos e aplicações via modelagem Matemática, bastante recorrentes no âmbito da produção acadêmico-científica. Dito de outro modo, tratava-se também de indagar como poderes e saberes agiam e produziam modos de ver-se, operar-se e falar-se professor

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Educação Matemática

de Matemática, produzindo processos de governamento e subjetivação nos diferentes processos de formação - inicial e continuada - dos profissionais da Educação. Parafraseando Foucault (2006, p. 276) o que se tornava o centro da nossa atenção era a maneira pela qual o sujeito [professor] se constitui de maneira ativa, através de práticas pedagógicas, as quais não são uma coisa que o indivíduo inventa, mas esquemas que ele encontra em sua cultura e que lhe são propostos; que lhe são sugeridos, impostos pela sua cultura, sua sociedade, seu grupo social. Assim, a partir das discussões posteriores feitas em Bello (2010; 2012); Eidelwein (2012), Jelinek (2013); Pinho (2013), Bello e Régnier (2014) e Jelinek e Bello (2014); vimos consolidando um entendimento do que seja o caráter normativo da linguagem; do saber Matemático e das práticas sociais, problematizando assim não apenas o uso da linguagem e da cultura para o ensino-aprendizagem (MIGUEL e VILELA, 2008; MIGUEL, 2010, MIGUEL, VILELA e MOURA, 2010); mas, sobretudo, o uso da realidade para o ensino de matemática e as noções de diversidade, identidade e diferença cultural ali presentes4 . Da mesma forma, ampliando nossa percepção para as questões de Governo e Subjetivação, para além da própria Etnomatemática, vem se abrindo uma perspectiva analítica que estuda não apenas a(s) Matemática(s), mas de modo geral, as normatividades produtoras, organizadoras e reguladoras de condutas, das maneiras de pensar e de agir na contemporaneidade baseadas fortemente na quantificação, na codificação e na medida. Essa perspectiva trata de explicar a maneira pela qual se combinam as artes e técnicas de governar assim como as normatividades em relação a medições, a quantificações e contabilidades que gerenciam a produção enunciativa de práticas sociais em ambientes institucionais como os da escola e o currículo (Bello e Régnier, 2014). Cabe destacar que a teorização utilizada como base para a nossa analítica-interpretativa, provêm de dois movimentos filosóficos, que embora distintos, entrecruzamse no entendimento pragmático da linguagem; da 4 É importante assinalar que em torno destas discussões são significativas as contribuições acadêmicas do Grupo de Pesquisa PHALA, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, bem como as produções acadêmicas, de viés Foucaultiano, da linha de pesquisa dos Estudos Culturais e das filosofias da diferença, do Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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prática; dos saberes; das relações de poder e do discurso; das formas-sujeito, são esses: a virada Linguística e o pósestruturalismo, com especial destaque às ideias dos filósofos Ludwig Wittgenstein (das Investigações Filosóficas) e Michel Foucault. Poder-se-ia dizer que esta abordagem é uma entre outras tantas possíveis. Nossos pontos de vista e nossas ideias meramente fornecerão outras maneiras de (re)considerar o problema proposto e de refletir a questão a fim de ampliar e enriquecer o debate. Nesse sentido, as relações entre linguagem, realidade e subjetividade que se tecem a seguir não buscam reafirmar aquilo que vem sendo tratado pelo multiculturalismo ou pelas ciências da cognição. Em todo caso, trata-se de uma discussão sobre o governo e a produção de condutas expressas nas formas de ser e agir; abrindo espaço à compreensão das filosofias da diferença, ao estudo dos processos de subjetivação e à proliferação de estilos de pensamento.

5 Na França, por exemplo, se desenvolvem anualmente as Jornadas de Estudo do LEMME (Langage, enseignement et apprentissage des Mathématiques) as quais tem especial foco de interesse nas dimensões linguísticas dos processos de ensino-aprendizagem da Matemática, tanto do ponto de vista dos saberes, das interações entre os alunos, bem como da organização dos processos de Ensino, envolvendo aspectos sociais, semióticos e comunicativos dos processos didáticos.

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

A linguagem é constitutiva da realidade Argumentar que a linguagem é constitutiva da realidade pode não ser tão simples como se imagina; principalmente, quando após os estudos epistemologicoestruturais de Jean Piaget e Histórico-culturais de L.Vygotski fundamentam-se e relacionam-se os papeis cognitivos e comunicativos da linguagem. Para Vygotski (1991) uma palavra que não represente uma idéia seria uma coisa morta, vazia; da mesma forma uma ideia que não se incorporasse a palavras não passaria de uma sombra. Na esteira desses clássicos da Psicologia, os desdobramentos investigativos posteriores em torno das práticas linguísticas (interpretação, compreensão e a formulação conceitual) em Matemática consideram a discursividade como uma forma de estabelecer relações entre o conhecimento matemático e os contextos e práticas (profissionais, cotidianas, escolares, etc.)5 .

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Pesquisas que tomam como foco de estudos a linguagem em educação matemática pretendem desvendar: qual o papel desempenhado pela linguagem no ensino e na aprendizagem? Por ora uma premissa é clara. Para as ciências da cognição: o dizer; o falar; o enunciar é um elemento mediador do ato de conhecer, isto é, uma espécie de elo, entre o pensar e o fazer, entre nossa mente (sujeito) e o mundo (objeto). Isto porque, desde a psicologia estrutural, o significado é um critério da palavra e seu componente indispensável; o significado de cada palavra é uma generalização, um conceito, um referente e uma ferramenta que nos permite revelar/apropriar-nos das coisas. Contudo, o que significaria despojar a linguagem de uma condição mediadora e representativa de significados para uma condição produtora/constitutiva de significações e sentidos? Dizer que a linguagem é constitutiva da realidade quer dizer, em primeiro lugar, que esta é consequência do fenômeno linguísitico, afastando-nos assim de caráter essencialista-conceitual atribuída à linguagem capaz de expressar uma suposta unidade e universalidade de objetos pelos significados contidos nas palavras. Dito de outro modo, supomos que as palavras não representam ou não descrevem coisas ou conceitos como um espelho da realidade: a escrita, por exemplo, não é um retrato da voz, bem como a oralidade não é o espelho do pensamento. Tanto a língua falada como a escrita nunca representam um objeto dito ou visto como uma situação real. As coisas são o que nós dizemos que são (FOUCAULT, 1990), mas os limites do dizer pelos quais dizemos as coisas são tão incertos quanto aqueles que produzem os objetos e o real. Notese que a linguagem é mais do que um simples ato de fala ou escrita, ele implica também formas de pensar e de agir. Nesta perspectiva, a significação não é algo que é extraído das coisas ou dos objetos, mas é um componente que atribui significado. O que se acredita ser o “objeto em si” é apenas uma consequência de um dos vários sentidos possíveis a serem criados pela nossa própria linguagem. Para Wittgenstein, a produção do “real” pela e na linguagem significa pensar sobre um conjunto de signos que se articulam com regras amplas e variadas de significação e que vem para nos dizer, como em um jogo, de que maneira


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Ilha de Lifou no arquipélago das ilhas Loyauté na Oceania.

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nós devemos perceber e compreender os objetos dos quais nós falamos (WITTGENSTEIN, 2009). Além disso, podemos dizer que “a linguagem é autônoma não como instância exterior ao mundo, mas como processo simbólico de construção de sentido que é acontecimento no mundo e que ao mesmo tempo nos ultrapassa” (PALTRINIERI, 2011, p. 48). Em efeito, Wittgenstein cunhou o termo “jogos de linguagem” para trazer a ideia de que a linguagem é uma atividade orientada por regras cuja significação é o resultado de um conjunto de regras que regem o seu funcionamento em certas situações de utilização. “A maneira como eu entendo o mundo é a minha maneira de estar no mundo, (...) a linguagem é o próprio mundo que habitamos e que “praticamos”, ao mesmo tempo instrumento e construção” (PALTRINIERI, 2011, p. 50). Isto é o que nós chamamos de realidade. Embora os significados das coisas são dadas pela linguagem, a realidade não pode ser reduzida a aquela. A realidade não é senão o sentido da materialidade. Nesta produção de significação intervém também a materialidade própria da linguagem (ações, falas, gestos, silêncios) e dos sujeitos. Por conseguinte, uma vez que os jogos de linguagem possuem uma certa materialidade, assim práticas são constituídas por esses jogos - envolvendo ações, palavras, gestos, crenças, valores, desejos e regras de utilização próprias da linguagem - é assim que pode-se dizer que as subjetividades nos são dadas pela realização das práticas. As diferentes realidades não estão aí para serem percebidas ou descobertas, devemos compreender que diversas realidades são possíveis, não só pela multiplicidade de jogos de linguagem e seus processos de significação, mas também pela multiplicidade de “subjetividades” individuais que as elaboram e as produzem. Esta mudança de referência é essencial para a compreensão da matemática como construção de grupos sociais que têm as suas práticas e atividades específicas de linguagem e que as utilizam para organizar as suas experiências no mundo. Waminya (2011, p. 119), em uma pesquisa adotando uma perspectiva etnomatemática desenvolvida com os Kanak de Drehu de Nouvelle Calédonie6 , mostra que no dizer desse povo, não pode existir uma quantidade sem existência física, uma espécie de relação entre o visível e o dizível. Assim, a quantidade

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adquire seu valor no momento em que houve a primeira aparição visível do objeto. Esta visão transparece na relação que existe entre o número 0 e o número 1. O número 1 em Drehu “CAAS” vem da expressão “asehë ca”, que significa “acabamos de ter acesso” para expressar o início de uma existência material. No que concerne ao número 0, “Peko” ou “pë qane ekö”, ele expressa à ausência dessa nova forma visível desde a noite dos tempos. Por isso, o número não pode existir sem a existência de uma forma visível. Não se pode enunciar o que não se vê, o que é visto não faz sentido se não pode ser enunciável. Para Wittgenstein, estas formas de compreensão da realidade são possíveis pela multiplicidade de jogos de linguagem que constituem outras atividades no interior de diversas formas de vida. Esta noção de “forma de vida” implica uma forma gramatical em que a nossa experiência é estruturada e a realidade modelada. Nós podemos realmente dizer que a gramática, justamente como um conjunto de regras e condições disciplina um uso de significado de linguagem, tanto que para imaginar outra gramática, eu tenho que imaginar outra forma de vida (PALTRINIERI , 2011). Por outro lado, se para Wittgenstein as regras de uma gramática são possibilidades de significação relacionadas aos jogos de linguagem, para Foucault as regras constituintes das práticas discursivas são produtoras de condutas (BELLO, 2012). Nesse sentido, assume-se o caráter regrado das práticas pelas quais se constituem subjetividades, identidades, saberes, estilos de pensamento. O sujeito do conhecimento (ponto de partida do ato de conhecer das psicologias) é substituído pelo sujeito da ação, que aprende e conhece as regras no seu uso. Em acordo com o jogo de linguagem, a prática na qual ele está implicado, ele utiliza uma língua. Ele aprende a participar de atividades segundo as normas que propiciam e produzem a adequação ou não a uma conduta em particular. Uma pesquisa que propõe a ancoragem sobre uma concepção normativa wittgensteiniana da linguagem ou foucaultiana em relação ao discurso, não isenta o conhecimento ou uma expertise desse caráter regrado. Para Wittgenstein, a matemática como um jogo de linguagem tem uma função de regulação e de construção simbólica em oposição a uma função descritiva da realidade. A linguagem normativa da matemática nos leva ao que


Linguagens, Práticas, e Sujeitos

pode ou não pode ser dito, usado ou compreendido. Este argumento se apoia na compreensão segundo Wittgenstein (2009) da matemática como um conjunto de atividades que podem estar presentes em diversas práticas, mas que não são necessariamente de qualidade científica. Em outras palavras, tudo o que nós podemos dizer ou pensar está nos símbolos matemáticos e nas suas relações internas, e não nos objetos que eles deveriam refletir. A linguagem matemática fala dela mesma, sobre a base de seu agenciamento simbólico e não em correspondência com uma realidade exterior. Segundo Lavigne (2012), os diferentes significados que a palavra arredondar assume: como arredondar os ângulos, os números, os fins de mês; ou como o caso de meio/meia que formam significados diferentes para uma meia dúzia de ovos ou para dizer Paul é o meu meio-irmão, mostram a influência da “cultura” em termos matemáticos que lhes são próprios. Em nossa opinião, os múltiplos significados da linguagem da matemática mostram que as condições de significação estão ligados à prática para a qual os termos matemáticos são produzidos e não à essência de um único conceito ou objeto. Consideremos também a preocupação de Lavigne para as nuances de sentido do termo matemático número, ora seja para se referir a um algarismo, a uma codificação ou a uma “quantidade” as quais deveriam ser notadamente definidas e corretamente utilizadas: onde e quando você determina as diferenças entre eles? Uma caracterização essencialista/universalista do conhecimento matemático deveria nos orientar a estabelecer claramente o conceito e as diferenças de “uso adequado destes termos”. Porém, pensemos o seguinte: alguém diz num jogo: “fala um número de 1 a 9”, ou “me diz um número de dois algarismos”; ou “me dá um endereço com o número do apartamento”; ou “um número de telefone”. Nos 4 casos estamos falando do mesmo número? Qual seria o conceito desse número? Perceba que a significação atribuída está em relação ao que se constuma dizer e fazer em relação a um jogo, a um endereço ou a um telefone. Efetivamente, somos levados a concordar que um número de telefone ou o número de habitantes de uma cidade não falam da mesma coisa na linguagem corrente, certamente, eles não funcionam da mesma maneira. Assim, considerando a normatividade da linguagem e dos saberes matemáticos

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como constituintes de práticas – não como uma expressão da universalidade dos conceitos a serem construídos ou descobertos – nós chegamos a uma outra perspectiva porque as significações matemáticas estão relacionadas com as práticas, bem como ao seu funcionamento. O que existe no final não é uma polissemia de termos como nuance de um mesmo e único conceito, como o caso do número; mas uma variedade de usos determinados por sentidos necessários para realização de uma prática, cujas finalidades são atribuídas pelas comunidades de indivíduos. A ideia do jogo linguístico nos reconduz tanto a noção de conjunto de regras quanto à ação. Falar de regra e de regularidade não se refere a uma lei do pensamento, mas a uma regularidade de comportamento, à existência de um hábito, à dimensão dinâmica de um uso. Segundo Paltrinieri (2011, p.52), o jogo linguístico é uma atividade na qual a regra não cumpre a função de uma norma unívoca que me guiaria em qualquer aplicação (como se ela misteriosamente contivesse em si mesma todas as aplicações), em vez disso a regra é mais uma expressão de usos e aplicações. A certeza de um cálculo ou, neste caso, a certeza de um uso, segundo Wittgenstein, não é da ordem de evidências ideais expressas pela regra, mas provem do ato de aprender, da instrução linguística. Saber seguir a regra significa saber seu uso. Isto não é da ordem da mente. A captura, compreensão e produção de algo como conhecimento, é uma capacidade que se adquire e que deve ser aprendida, praticada, desenvolvida e, portanto, consiste em uma participação ativa no processo simbólico. As pesquisas em etnomatemática tem nos mostrado que os saberes matemáticos não são necessariamente expressão de um discurso científico, e que estão imbricados os efeitos de um sistema de crenças, opiniões, práticas capilarizadas em formas de vida específicas. Porém, numa concepção normativa esses saberes estão sob um domínio das práticas, provenientes de um conjunto de regras e enunciados que organizam o exterior segundo um espaçotempo determinado dentro de um campo de possibilidade linguística.


Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Linguagem e subjetividade Diferentes estudos (BELLO, 2010; 2012; JELINEK, 2013, PINHO 2013) têm nos mostrado como as perspectivas de linguagem e conhecimento reorientados por uma perspectiva normativa modificam a nossa compreensão, inclusive, sobre o que são as práticas e as subjetividades. Adotando essa nova perspectiva, além de discutir essa significação particular da linguagem, vimos necessário introduzir o questionamento sobre a existência de uma subjetividade humana como fonte de construção de toda significação e de realização de toda ação. A autonomia do indivíduo e de sua consciência sede lugar a um mundo social, anteriormente estabelecido pelas regras da linguagem (WITTGENSTEIN, 2009), do discurso e do poder (FOUCAULT, 2013). De acordo com o paradigma mentalista, presente em toda a filosofia tradicional, a nossa subjetividade funcionaria como uma fonte do conhecimento e a linguagem, como um conteúdo anterior à própria experiência, descreveria apenas a realidade que encontra uma imagem em nossa mente. A linguagem seria o local de uma transparência original, na qual a totalidade de seres que constituem o mundo estaria dada e seria reconhecida – pelo olho da mente – como uma estrutura necessária e racional (PALTRINIERI, 2011). Dito de outro modo, nossa mente funcionaria tanto como um teatro de representação quanto uma instância decifradora dessa representação, permitindo o acesso à realidade exterior. Este modelo baseia-se na hipótese de uma correspondência entre a representação mental e o mundo exterior dos objetos e dos fatos, o qual desde Descartes deverá sempre ser justificado por intermédio de ideias anteriores e indubitáveis. A verdade que pode ser expressa como um sinônimo de conhecimento do real será, assim, aquela correspondência existente entre o lado de “dentro” e ao lado de “fora”. De acordo com Foucault, os pensamentos são eles próprios interpretações que tanto a análise de si, bem como a verbalização de si nos revelam. Pelo conceito de relações de poder, o filósofo vai se perguntar sobre os efeitos dos saberes (por exemplo, da ciência, das moralidades, das artes), no que ele denomina de práticas discursivas pelas quais se dá a produção de subjetividades. Pelos efeitos de seus saberes e sua força da verdade, os discursos acabam por definir as

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identidades ou formas-sujeito. De um lado, as formas-sujeito sociais pelas quais somos visibilizados, lidos, decifrados: o bom aluno, o jovem, o índio, o doente, o homossexual, a pessoa que sabe ou não a matemática. Do outro, a formasujeito que consideramos “ser em si” e que assumimos como identidade. Para Foucault, os conhecimentos não são senão uma invenção “de” e “pelo” poder fortemente sustentados por valores de verdade supostos. Efetivamente, pela potência das verdades e de seus valores é que modelamos nossa vontade, através da produção de certas atitudes que acabarão nos enquadrando em identidades discursivas socialmente pré-estabelecidas. Assim, não se trata de se perguntar “o que somos?” Mas de acordo com quais as formas, quais os procedimentos e com quais efeitos de subjetivação, um sujeito vai se vincular, ligar a uma verdade? Que formas de subjetivação se articulam sobre quais formas de veridicção? (FOUCAULT, 2008). Com efeito, essa percepção da subjetividade em relação às relações de poder e linguagem como atividade regrada desconstrói imediatamente a ideia da diversidade, como algo natural ou essencial, e recoloca em questão a existência das identidades. Se “por intermédio da linguagem nós não buscamos nada, mas construímos alguma coisa” (PALTRINIERI, 2011, p.47), então podemos dizer que as identidades são assim definidas, a partir de um sistema cultural e um campo linguístico de significação sob a forma de normas que nos convencem disso. Efetivamente, levando-se em consideração a concepção de jogos de linguagem em Wittgenstein e o reposicionamento do sujeito em Foucault (como um efeito do discurso e poder), somos levados a estabelecer relações entre subjetividade, prática e linguagem. Para Foucault (2014), o poder não deve ser compreendido como um sistema opressivo, mas como um conjunto de relações. Exercer o poder quer dizer agir ou tentar agir sobre a conduta do outro; conduzir e dirigir a conduta do outro tal que esse outro seja conduzido ou aceite sê-lo. Assim, numa dimensão normativa, os saberes ditos pelas práticas agem como modeladores de condutas (BELLO, 2012), as quais acabam desenhando nossos contornos identitários. Nesta perspectiva, o sujeito não passa de uma composição temporária de impulsos, sendo portanto, descentrado, dependente do sistema linguístico; o sujeito é discursivamente constituído e posicionado em meio a


Linguagens, Práticas, e Sujeitos

forças libidinais e práticas de individualização e normalização que caracterizam as instituições modernas (PETERS, 2000, p. 33). Esse entendimento de sujeito/subjetividade ora vem problematizar as noções de identidade cultural e de diversidade atreladas fortemente ao multiculturalismo. Nós poderíamos continuar a dizer que as identidades são múltiplas, móveis, provisórias pela complexidade das relações inter, pluri e multiculturais destacando, inclusive, a proliferação de diferenças; contudo, isso não tem diluído a fixação de um referente ou ao assujeitamento a uma norma. Tratando-se da matemática e seu processo de ensino, por exemplo, temos desconstruído a pertinência do sujeito cartesiano, propondo no lugar um outro como efeito do ambiente cultural e a produção de conhecimento matemático a partir de lógicas diferentes. O programa de pesquisa Etnomatemática (D’AMBROSIO, 1985) tem posto em evidência as diferenças sobre as maneiras de pensar, agir, saber-fazer dos sujeitos e dos grupos considerados “culturalmente distintos”. Anteriormente mencionamos como a Etnomatemática destacava as relações possíveis entre a matemática e a cultura. Tudo isso a fim de considerar e conciliar o lugar e o papel do compromisso no interior da diversidade social e cultural na transformação da realidade (BELLO, 2010). No entanto, essas diferenças foram construídas através da sujeição a valores, aos sentidos e aos símbolos coletivos do mundo dominado pela cultura “matemática”, baseada em certos conhecimentos ditos verdadeiros. O conceito de uma “matemática relacionada à cultura”, à vida cotidiana, à natureza, à realidade, ao mundo moderno foi uma estratégia central no projeto de construção do conhecimento que deu visibilidade não apenas os problemas epistemológicos, mas também os problemas sociais, culturais e políticos. Contudo, e embora exista um conteúdo críticosocial em todas essas discussões e um reconhecimento das diferenças, a noção de “matemática relacionada com a cultura” levou a um aumento da produção de identidades e proliferação de diferenças sob processos de comparação, contraposição, classificação, hierarquização sobre o campo de significação de um saber-linguagem etnomatemático. Nesse sentido, a teorização foucaultiana – e alguns aportes da discussão Wittgensteiniana da linguagem – abre caminho para uma discussão sobre subjetividade/ subjetivação; sobre a produção de estilos de pensamento

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e comportamentos dos sujeitos; a partir de diferenças e especificidades impossíveis de serem capturadas pela ciência como a matemática, a pedagogia, ou até mesmo de serem compreendidas pela teorização existente sobre a aprendizagem e a cognição. Dito de outro modo, tratase de pensar nas maneiras de ser e agir enquanto estilos de vida; enquanto singularidades que se constituem em meio às grades coercitivas e normativas do dizer (linguagem), do saber (práticas), do poder (condutas). Linguagem, realidade, subjetividade: multiplicidades O que denominamos de realidade? “Realidade” num sentido amplo designaria aquilo que “é”. Nesse caso, pensa-se numa equivalência entre os termos ser e realidade. Quando queremos dizer o que uma coisa é, tentamos no fundo expressar uma verdade sobre a coisa, uma essência. Num sentido mais restrito, a realidade pode se relacionar ao que é empiricamente e materialmente constatável. Neste caso, a realidade vem designar o mundo da existência sensível cujo conhecimento deverá ser extraído. O estudo de uma geometria da natureza ou a aritmética do supermercado, sob a estratégia de modelagem matemática, por exemplo, tentam trazer e mostrar no interior de uma aula de matemática o que existiria baseado no real. No entanto, o sentido mais particular e, certamente, o mais corrente é aquele que refere a realidade como o fundamento que se encontra por detrás das aparências. Se pensamos, por exemplo, que tudo é Matemática, estamos colocando a ciência enquanto fundamento não apenas das relações empíricas, mas ainda das relações sociais e das manifestações cognitivas. Na Educação Matemática contemporânea tem sido recorrente ainda dizer que “as matemáticas são parte da vida das pessoas” (KNIJNIK e WANDERER, 2006), ou que os significados matemáticos podem ser buscados na “realidade dos alunos” (DUARTE e TASCHETO, 2014) ou que devemos “olhar matemática a partir de práticas sociais” (BELLO, 2010), expressões ainda ligadas a uma concepção metafísica de realidade e de conhecimento. Isso quer dizer que, apesar de uma base empírica, social ou cultural da matemática, haveria um fundamento matemático essencial e de significação universal. Isto porque, na crença


Linguagens, Práticas, e Sujeitos

que a matemática está presente em tudo e que todos nós chegamos aos mesmos resultados, existe a ideia de que os objetos matemáticos são inerentes a essas realidades empíricas ou culturais. Ao propormos neste texto um caráter normativo para o saber, a linguagem e as práticas, propõmos também uma caracterização pós-metafísica, do que seja essa realidade, com algumas implicações e desdobramentos para a Educação. Um conceito, como conhecimento, como saberespelho da realidade, não é uma essência que se manifesta por meio de diferentes representações. Pela relação constitutiva da linguagem um conceito é feito de significantes cambiantes cujos sentidos são produzidos entre pessoas em determinadas práticas. É por esse caráter normativo, por exemplo, que as práticas não podem ser usadas como uma metodologia ou estratégia de transposição didática com a qual se aproxime uma teoria ou enunciado matemático de uma possível realidade. Devemos considera-las apenas como instâncias que conduzem a maneira que devemos significar, produzir sentidos. Essa condução não quer dizer rigidez/fixidez de ação. Para Wittgenstein não existe alguma coisa como a saturação/esgotamento de significados, pois os jogos de linguagem variam em significação dentro das formas de vida (supermercado, escola, rua) onde eles estão inseridos. Se em todo caso convocamos a prática, o uso, as aplicações para um bom ensino, é porque acreditamos que os saberes matemáticos escolares apresentam-se também como uma gramática específica constituída por um conjunto de regras em que o possível estágio de incompletude poderia ser preenchido através do contato com a realidade (DUARTE e TASCHETO, 2014). Como enunciações normativas, os conceitos matemáticos não estão aí somente para orientar o sentido que nós devemos dar ao conhecimento, mas também de que maneira podemos conhecê-lo, aprendêlo. E é aí que está o centro das atenções e articulação entre o conteúdo matemático e processos pedagógicos. Quando seguimos uma prática, seguimos suas normas e por conseguinte, os saberes que as constituem. Outras práticas implicam inequivocamente em outras regras, outros saberes, outras formas de pensar. Assim, a realidade do signo é a realidade do jogo; é a realidade do jogo de linguagem. Assim também, multiplicidade de subjetividades, multiplicidade de sentidos,

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multiplicidade de realidades. Os saberes, também formulados pela linguagem, tornam-se elementos constitutivos normativos de práticas e objetos culturais no interior de espaços sociais institucionalizados. Não se trata de um relativismo e sim de um perspectivismo em cuja concepção normativa (como jogo) de saber e de linguagem é possível compreender como indivíduos agem e se tornam sujeitos seguindo regras de significação e de produção de sentidos por diferentes tipos de práticas. Aqui, a ideia de seguir uma regra não refere apenas uma possibilidade de significação, mas também uma possibilidade estratégica de condução, governo, de orientação das formas de ser e de agir. Porém, diferentes práticas sociais não definem apenas identidades culturais e individuais; ao permitirem a proliferação de sentidos, pelas práticas é possível a proliferação de estilos de subjetividades. Essa estilística é uma produção histórica. O sujeito não é natural, ele é modelado a cada época pelos tipos de saber, pelos tipos de prática do momento, pelas reações de sua liberdade individual e pelas suas eventuais formas de estetização. Existem ainda muitos desafios e problematizações a serem feitos dentro desta perspectiva. Há de se pensar, por exemplo, em compreender sobre uma perspectiva normativa a conduta do próprio pensamento e do olhar, apesar de uma leitura específica do mundo na qual essa mesma conduta é produzida. A aprendizagem a partir de um ponto em que se considera o uso de uma realidade como suporte empírico para a compreensão do que será abstraído tem sido bastante explorado pelo cognitivismo sob uma perspectiva bastante tradicional da ciência e da filosofia. É preciso se lançar para outros entendimentos. Referências BELLO, S. E. L. . Etnomatemática: entre o discurso Acadêmico e a produção social do Conhecimento. In: Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Etnomatemática - CBEm1. São Paulo: FE-USP. V. único. p. 95-103, 2000. _______. Identidade Cultural ou culturas: contribuições ao campo teórico da Etnomatemática. In: Anais do II Congresso Brasileiro de Etnomatemática, Natal: EDUFRN. v. 1. p. 153-158,

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SABERREALIDADE E SEUS DILEMAS PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM Claudia Glavam Duarte Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS - Brasil


Para início de conversa...

Como diz Foucault (2006) à verdade corresponde o conjunto de procedimentos que permitem pronunciar, a cada instante e a cada um, enunciados que serão considerados como verdadeiros. Não há, absolutamente, uma instância suprema. (p. 232, 233).

Isso significa entender que nossas verdades são deste mundo, não há ganchos que as suspendam do céu. É

1 Trata-se da aula proferida no dia 09 de abril de 2016 no Programa de PósGraduação em Ciências, Química da Vida e Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Este texto nasce de um encontro1 e tem por finalidade compor uma série de escritas que tratam de celebrar um período – dez anos – de ricas contribuições teóricas advindas dos trabalhos orientados pelo professor Samuel Edmundo Lopez Bello. Especificamente, neste texto, tenho uma dupla intenção: primeiro enfatizar, algo que não é novidade, mas, que vale a pena reforçar, a potência teórico-ativa de Michel Foucault, para pesquisas no âmbito educacional e, como segunda intenção, problematizar uma verdade que atravessa o campo educacional e que, por possuir o caráter verdadeiro, produz efeitos nas práticas escolares: a necessidade de trabalharmos com a realidade do aluno. Pensar a partir de ferramentas foucaultianas implica abandonar a seguridade das grandes estruturas que garantiriam a existência de metanarrativas, é deixar o solo fixo para se abrigar em estruturas moventes, que ora somem, ora se reatualizam. Esta empreitada encerra um paradoxo: a dificuldade em abandonar a seguridade de pensar a partir de lugares por nós já habitados e o fascínio que o trânsito por um território “não-familiar” provoca, ou seja, a possibilidade de tecermos novos fios que não se pretendem melhores ou piores, mas simplesmente outros. Assim, trata-se em última instância de – des- confiar de tais verdades. Des – fiar - com Foucault as tessituras, as amarras tão fortemente entrelaçadas que garantem a existência de verdades que nos parecem naturalizadas e que, muitas vezes, questioná-las parece ser uma heresia.

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Educação Matemática

pura produção que está amalgamada a relações de poder que, como causa imanente, produzem-na e sofrem efeitos dessa produção. Esta entra em dispersão, está ligada a um suporte institucional e é produzida pelo entrelaçamento de enunciados que lhe dá suporte. Nosso trabalho consistiria então, em colocarmos sob suspeição nossas verdades e rastrearmos os processos pelas quais estas se tornaram verdadeiras, ou seja, irmos em busca dos processos de verdadeirização. Escutarmos os sussurros da guerra de forças que agem em sua formação a fim de verificarmos como nossas verdades, e aqui penso nas verdades educacionais, se entrelaçam com outros enunciados e produzem efeitos que nos permitem perguntar: que práticas tais verdades erigem? Que sujeitos necessitam? Que posições de sujeito disponibilizam? Dito de outra maneira, como isto (prática, ideia, objeto, metodologia...) se tornou tema de conversa? De forma geral, trabalhar com Foucault nos permite mostrar o caráter contingente e histórico das verdades que aceitamos naturalmente e possibilita, quem sabe, a abertura de espaços para que possamos pensar de outro modo. É neste sentido que esta escrita quer pensar o dilema, entendido como algo de conjuntura difícil, que se estabelece diante da prerrogativa educacional que aponta para a necessidade de incorporarmos, no tempo-espaço escolar, a realidade do aluno. O material empírico aqui analisado é composto pelas revistas do Ensino do Rio Grande do Sul, importante periódico que circulou no século XX no Estado e os anais dos Encontros Nacionais de Educação Matemática (2001, 2004, 2007)2 . Além destes, escrutinou-se as obras de Wolfgang Ratke, Comenius e Rosseau, a fim de verificar como eram pensadas as relações entre a escola e o mundo social mais amplo nos séculos XVII e XVIII. De início é preciso ressaltar que a própria expressão “realidade” é passível de discussão. Neste sentido, pontuo que não a entendendo de forma tranqüila como algo que preexista fora do domínio da linguagem e que possua uma essência que a caracterize. Com isso, não estou afirmando sua não existência, pois a materialidade do mundo está aí, as coisas estão aí, mas “o mundo em si – sem o auxílio das atividades descritivas dos seres humanos – não pode sê–lo” Para saber mais sobre esta temática ver DUARTE (2008).

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(RORTY, 2007, p.28). Para se poder dizer o que uma coisa, um objeto, uma idéia é, é preciso que já esteja disponível um conjunto inteiro das determinações possíveis de tais (coisas, objetos, idéias), ou seja, “antes de se poder dizer o que uma coisa é, é necessário já se saber o que podem ser as coisas” (BRAIDA, 1994, p. 35). Temos assim, a linguagem como condição de possibilidade para os significados que damos ao mundo, a realidade. Abandonando, mesmo que momentaneamente, a discussão sobre o papel constitutivo da linguagem, torna-se interessante observar o quanto as enunciações que implicam na premissa de trabalharmos com a “realidade” do aluno atravessam o tempo-espaço e implicam na construção de certas práticas pedagógicas. Uma breve digressão aos séculos XVII, XVIII e XX Filósofos dos séculos XVII e XVIII como Ratke, Comenius e Rosseau já discorriam sobre a produtiva relação a ser estabelecida entre a realidade do aluno e os ensinamentos a serem desenvolvidos no espaço escolar.

3 Segundo o Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa (CUNHA, 1999, p.665), o verbete realidade, na língua portuguesa, remonta ao século XVI. Associado à palavra real, que se refere “ao que existe de fato, verdadeiro, [...] do baixo latim realis, de res rei, coisa”. Segundo Hoff e Cardoso (s/d, p.13), a expressão realia está ligada a “[...] (coisas reais): ensino a partir da realidade do aluno. Realia tomou um sentido mais específico, como um conjunto de disciplinas que se ensinava após o ler, escrever, calcular e a doutrina cristã, a partir do terceiro ano, correspondendo à história, geografia e ciências naturais. Por fim, também era considerada uma disciplina metodológica”. Lúcio Kreutz (1996), ao fazer um estudo sobre os métodos pedagógicos praticados no início da república nas escolas de imigrantes alemães no Rio Grande do Sul, identificou que a “lição das coisas” sinalizava uma nova postura metodológica na escola da época. Tratava-se, segundo o pesquisador, de uma perspectiva metodológica que buscava superar a lição de palavras. “Todo o processo escolar, de forma especial, o material didático, deveria partir da realidade dos alunos e ajudá-los a integrar-se ativamente em seu contexto social. Um dos termos mais usados para sinalizar essa perspectiva metodológica foi de lições de coisas (realia)” (Ibidem, p. 76) [Grifos do autor]. Assim, fazer uso pedagógico das coisas que circundavam a “realidade” do aluno era designado pelo “termo latino realia [que] significa coisas reais, coisas objetivas.” (Ibidem, p.81).

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Em tudo é necessário seguir a ordem das coisas3 e se assegurar que os ensinos dos instrumentos não podem ser entendidos sem as coisas. Assim também, devem-se esclarecer as regras, utilizando exemplos e modelos tirados das coisas e, a partir delas, efetuar os

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ensinamentos. (RATKE, 2008, p. 129) [Grifos meus]. [...] quando ensinadas pela primeira vez, as regras (de lógica, retórica, etc.) deverão ser ilustradas com exemplos não muito distantes da compreensão dos alunos [...] extraídos do uso cotidiano. Caso contrário, não entenderão nem a regra nem seu uso. (COMENIUS 2006, p. 174) [Grifos meus]. [...] nenhum livro além do livro do mundo, nenhuma instrução a não ser os fatos [...] Tornai vosso aluno atento aos fenômenos da natureza e logo o tornareis curioso; mas, para alimentar sua curiosidade, nunca vos apresseis em satisfazê-la [...] (ROUSSEAU, 2004, p. 216).

Guardadas as especificidades das formulações de Ratke (2008), Comenius (2006) e Rousseau (2004), é possível perceber ressonâncias entre os três pensadores no que se refere à importância do professor levar em conta o “livro do mundo” e a utilidade do conhecimento a ser apresentado para o educando. Para esses três autores, o conhecimento escolar só é válido se estiver vinculado à sua utilidade no mundo. Tudo aquilo que é considerado inútil deve ser descartado. Comenius (2006) chegou a levantar como uma hipótese para a não aprendizagem das crianças exatamente o fato das escolas trabalharem com conhecimentos desconectados da vida: Da mesma forma, Rousseau (2004) criticou os pedagogos que, “com grande pompa” (ibidem, p.122), vangloriavam-se de ensinar conhecimentos para os quais as crianças não estariam preparadas. Tais conhecimentos inúteis, do ponto de vista rousseauniano, tornam “triste e estéril [a] infância” (Ibidem, p.127). Ratke (2008), por sua vez, reprovou todos os ensinamentos que não tivessem “utilidade para a vida” (Ibidem, p. 181). Avançando no tempo, para meados do século XX, a Revista do Ensino do Rio Grande do Sul, importante periódico que circulou de 1939 a 1992 no Estado indicavam a preocupação em dar visibilidade aos usos, no cotidiano extra-escolar, dos conteúdos trabalhados na escola. Essencial que a aprendizagem se faça em situação real e total, aproveitando as oportunidades variadíssimas de trabalho escolar e as possibilidades da localidade em que funciona a escola. (RE. n.5, 1940, p. 76) [...] a utilização de recursos didáticos adequados e de

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formas de trabalho [sejam] idênticas às atividades da vida real. (RE. n.10, 1940, p. 93) (Grifos meus).

No século XX, me parece que “[...] a realidade funciona bastante bem e ainda goza de boa saúde” (LARROSA, 2000, p.161), pois a premissa ainda continua sendo válida: Muitos autores e pesquisadores têm enfatizado a importância de trabalhar o conteúdo matemático vinculado à realidade do aluno, o que levou à construção de situações-problema envolvendo galinhas e ovos, visto que os alunos daquelas classes de EJA eram funcionários de uma empresa do setor agro-avícola. (KESSLER, 2007, p.10) [Grifos meus] [...] a desarticulação entre a realidade prática e os conteúdos vistos nos cursos de formação de professores são um problema que merece discussão e reflexão [...] (BERTANI, 2001, p.3) [Grifo meu].

[...] o grande problema que se vai colocar – que se

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Dada a recorrência das enunciações que apontam para o enunciado “é importante trabalhar com a “realidade”” do educando no âmbito escolar, e aqui estou entendendo enunciado como “um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente. [...] aberto à repetição, à transformação, à reativação” (FOUCAULT, 2002, p. 32), penso ser necessário questionarmos: O que se passa aí, nada mudou? Seria a “perene ampulheta do existir”, de Nietzsche (2001), insistindo em ser virada ininterruptamente? Seria o mesmo enunciado insistindo em se fazer ouvir? O mesmo enunciado teria atravessado intacto os séculos? A partir das ferramentas teóricas que utilizo, entendo que não se trataria de uma simples repetição, mas de transformações e reativações, pois “o que dizem as palavras não dura. Duram as palavras. Porque as palavras são sempre as mesmas e o que dizem não é nunca o mesmo. ” (PORCHIA apud LARROSA, 2004, p.15,) ou nas palavras de Foucault: “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta. (FOUCAULT, 2000, p. 26). Assim, sustento-me no fato de que os acontecimentos, aqui entendidos como irrupções, estão engendrados com as singularidades históricas que os produzem e são produzidos por eles. Dessa forma,

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coloca – a tais análises históricas não é mais saber por que caminhos as continuidades se puderam estabelecer; de que maneira um único e mesmo projeto pôde–se manter e constituir, para tantos espíritos diferentes e sucessivos, um horizonte único; que modo de ação e que suporte implica o jogo das transmissões, das retomadas, dos esquecimentos e das repetições; como a origem pode estender seu reinado bem além de si própria e atingir aquele desfecho que jamais se deu – o problema não é mais o fundamento que se perpetua, e sim as transformações que valem como fundação e renovação dos fundamentos. (FOUCAULT, 2002, p.6).

Este texto situa-se nessas transformações, pois, assim como Foucault afirmou ao estudar o discurso psicopatológico que “de Pinel ou Esquirol até Bleuler: não se trata das mesmas doenças, não se trata dos mesmos loucos”. (FOUCAULT, 2002, p. 36), é possível afirmar que, no enunciado contemporâneo, não se trata das mesmas práticas sociais, das mesmas práticas pedagógicas, dos mesmos alunos de meados do século XX, nem da mesma “realidade”. Segundo Deleuze (2005) a repetição de um enunciado exige condições bastante singulares: “é preciso que haja o mesmo espaço de distribuição, a mesma repartição de singularidades, a mesma ordem de locais e de posições, a mesma relação com um meio instituído [...]” (Ibidem, p. 22). Tais condições tornam a probabilidade de repetição bastante restrita. Neste sentido, “toda esta quase-continuidade ao nível das ideias e dos temas não passa, certamente, de um efeito de superfície” (FOUCAULT, 1999, p.xix). Mas que continuidades e desencaixes ocorrem ao longo dos séculos? Que lógicas sustentam a proposição de que é preciso trabalhar com a “realidade” do aluno nos diferentes períodos? Analisando os séculos XVII e XVIII é possível perceber certa regularidade no que diz respeito à inquietante preocupação com a relação a ser estabelecida entre as palavras e a realia (as coisas) no campo educacional. O papel exercido pelo posicionamento das “coisas”, a materialidade dos objetos em relação às regras e símbolos, parecem ser centrais nas discussões propostas pelos autores. Assim, do ponto de vista de Ratke, Comenius e Rosseau, para uma aprendizagem ser eficiente, fazia-se necessário estabelecer um “vínculo entre as palavras e as coisas: Tudo deve partir do sensível e do sabido”, afirmou Comenius (2006, p. 9). Assim, para esses autores, existiria uma função representativa da


Linguagens, Práticas, e Sujeitos

linguagem expressa em uma correspondência biunívoca entre mundo e linguagem. Se a relação entre as palavras e as coisas não fosse estabelecida no âmbito educacional, as palavras não passariam de sons vazios, expressões sem significados. O mundo funcionaria, então, como uma base física, imóvel, cuja essência seria expressa pela linguagem. No campo educacional, evitar o esvaziamento dos significados seria um apriori para a aprendizagem. No entanto, do século XVII para o XVIII ocorre um pequeno desencaixe: Para Ratke e Comenius a “arte de ensinar” deveria estar intrinsecamente vinculada a uma ordem similar à desenvolvida pelo curso da natureza, pela harmonia do universo. Assim, era preciso entender como o mundo estava estruturado, entender a ratio naturae para desenvolver, de forma eficaz, a arte de ensinar. No entanto, para Rosseau a perfeição da ratio naturae foi perturbada pelas próprias mãos do homem que, ao transformar-se em cidadão, perturbou o fluxo espontâneo da natureza. Assim, seria preciso “arrumar” aquilo que o homem “desarrumou”, ou seja, organizar os fatos da natureza. Ao preceptor caberia organizar, criar condições para que as experiências educativas ocorressem de forma alinhada ao desejo do aluno. Diferentemente da lógica (acompanhar a ratio naturae) que sustenta a premissa de que é importante trabalhar com a “realidade” do aluno, em meados do século XX instaura-se outro campo de dizibilidade a partir da obra de John Dewey que configurará um novo status às práticas sociais no âmbito da filosofia. O discurso deweyano destituiu a verdade de seu caráter representativo da “realidade” e apontou para esta como uma construção que se dá no âmbito das experiências partilhadas. Tal deslocamento acabou por configurar um novo terreno para as reflexões filosóficas: o terreno da imanência. É possível inferir que esse deslocamento que entendia a contingência e a aleatoriedade do mundo como condições ideais para a aventura humana do conhecer, aliado ao caráter instrumental conferido ao pensamento e que tem sua validação nas práticas cotidianas, conferem às atividades terrenas um novo status. No âmbito científico, o reconhecimento do progresso efetuado pela Ciência que, alicerçado no método científico, assegurava um lugar de destaque para a observação e a análise dos enfrentamentos cotidianos experienciados pelos

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indivíduos evidenciava um lugar privilegiado para as práticas sociais cotidianas. Assim, para que as práticas educativas também pudessem se beneficiar de tais progressos seria necessário considerar, também no âmbito educacional, o método experimental utilizado pelas ciências, que buscava, no empírico, dados para a resolução de seus problemas. No entanto, como em Rosseau, mas por motivos diferentes, há necessidade de que a escola atente para algumas especificidades antes de se apropriar das práticas cotidianas e incorporá-las a seu território. Tais especificidades, para Dewey (1959), referiam-se à simplificação da complexidade das práticas cotidianas; a extradição de elementos “impuros” pertencentes a tais práticas; e a necessidade da escola ultrapassar os limites de entendimento de tais práticas. A simplificação da complexidade das práticas cotidianas, segundo ele (Ibidem), está baseada na ideia de que a complexidade de nossa civilização não pode ser compreendida em sua totalidade pelo aluno. Dada essas condições, deve, então, a escola, para que sua função seja preservada, fragmentar, dividir essa totalidade em “pedaços” menores e ordená-los de modo gradativo para que a criança consiga apreendêlos. Dessa forma, há a necessidade de uma simplificação das práticas sociais, através da seleção de aspectos da mesma, que sejam fundamentais e que estejam de acordo com os objetivos e fins educacionais. Além disso, há um segundo procedimento a ser efetuado para que a apropriação das práticas extra-escolares ocorresse de modo integrado aos objetivos escolares: a extradição dos elementos “impuros”. Assim, a simplificação também compreende um movimento de purificação. A escola deve, segundo o filósofo, extrair todos os elementos que julgue “impuros”, indesejáveis na formação dos hábitos mentais dos alunos. E o que ocorre na contemporaneidade? Que lógica prevalece a fim de dar sustentabilidade a tal enunciado? O enunciado: “trabalhar com a realidade do aluno” na contemporaneidade e as dificuldades de tal empreitada. No século XX e XXI ocorrerá exatamente o contrário. Será necessário manter a complexidade do real, suas mazelas, pois, trabalhar com a realidade implicará justamente no desenvolvimento da criticidade dos alunos a fim de que ele

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possa transformar a realidade: Nós, educadores, temos a missão de trabalhar com esses jovens e adultos, numa concepção dentro de uma realidade na qual possamos desenvolver um espírito de mudança, transformação do real. Desse modo, o aluno terá ajuda necessária para que sua situação de oprimido possa ser transformada, abrindo daí novos horizontes para poder assimilar melhor os conteúdos de Matemática e projetar-se no caminho da aprendizagem. (CAMARGO, 2008, p.5) [Grifos meus].

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Aqui se pode vislumbrar, de modo mais explícito, a articulação entre o enunciado que diz da importância de trabalhar com a “realidade” com as enunciações do campo educacional mais amplo, advindas do paradigma educacional crítico. À escola caberia, então, a tarefa de trazer a “realidade” para, servindo-se do conhecimento escolar, escrutiná-la. Esse escrutínio, mediante a crítica, instrumentalizaria o aluno para transformá-la. Aqui, diferentemente do que foi apontado anteriormente quanto aos processos de purificação a que a “realidade” era submetida para que pudesse, então, adentrar o espaço escolar, a “realidade” a ser trazida para a escola não deveria passar por tais processos. Sua não-purificação possibilitaria a crítica, condição indispensável para a sua transformação e garantiria o sucesso da equação: apreensão da “realidade” + consciência crítica + conhecimentos escolares = possibilidade de transformação da “realidade”. A apreensão da “realidade” pelo aluno e seu empoderamento por intermédio dos conhecimentos escolares, associado a uma consciência crítica, criariam as condições ideais para que ele pudesse tornar a realidade mais digna e igualitária. Além disto, trabalhar com a “realidade” do estudante seria um meio de “dar significado” aos conteúdos desenvolvidos no currículo escolar, o que suscitaria seu interesse pela escola. Afirmar que o trabalho com a realidade do aluno permite dar significado aos conteúdos torna-se bastante recorrente neste período. Evidenciada essa continuidade, parece pertinente indagar: O que nela está implicado, do ponto de vista teórico? Que posições teóricas subsidiariam a afirmação de que trabalhar com a “realidade” do estudante “daria significado” aos conteúdos escolares?

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O pensamento de Wittgenstein, presente na obra Investigações Filosóficas, oferece ferramentas para ensaiar uma resposta para essas indagações. Primeiro, é preciso atentar que tal afirmação poderia me levar a pensar que os jogos de linguagem que conformam os conteúdos escolares seriam “vazios” de significado. Em contrapartida, a “realidade”, estaria encharcada e saturada de significados, aguardando, “lá fora”, para serem transferidas para a forma de vida escolar. Entraria em cena, então, uma “natural” operação de transferência: os significados presentes nos espaços não escolares seriam remetidos para a esfera escolar. No entanto, na perspectiva wittgensteiniana que assumo, entendo que não é possível haver um “esvaziamento/saturação” de significados. Todos os jogos de linguagem – sendo práticas sociais – possuem significados dentro da forma de vida que os abriga. Considerada como um conjunto de jogos de linguagem, os conteúdos escolares apresentam uma gramática específica, conformada por um conjunto de regras. Assim entendido, tais conteúdos não apresentam uma incompletude que é sanada mediante seu contato com a “realidade”, pois, segundo o filósofo: A realidade não é uma propriedade ainda ausente no que se espera e que tem acesso a ela quando nossa expectativa é cumprida. – Tampouco é a realidade como a luz do dia de que as coisas precisam para adquirir cor, quando estão, por assim dizer, sem cor, no escuro. (WITTGENSTEIN, 2003, p. 102).

Ademais, Wittgenstein considera que as regras da gramática não podem ser justificadas mostrando que sua aplicação faz uma representação concordar com a realidade, pois essa justificativa teria, ela própria, de descrever o que é representado. (WITTGENSTEIN, 2003, p. 141).

Mas, se capturada por uma “vontade de realidade”, eu fosse levada a insistir sobre a possibilidade de transferência de significados dos jogos praticados nas formas de vida não escolares para os jogos de linguagem escolares, tal insistência não seria bem-sucedida: a “passagem” de uma forma de vida a outra não garante a permanência do significado: sugere sua transformação, porque “do outro

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lado” quem “o recebe” é outra forma de vida (VEIGA-NETO, 2004). Dito de outro modo, o significado não possui uma essência que poderia ser abarcada por qualquer uso que se fizesse do enunciado. Nessa mesma perspectiva, Condé (2004) esclarece: Um jogo de linguagem que é plenamente satisfatório dentro de uma determinada situação pode não ser em outra, pois ao surgirem novos elementos as situações mudam, e os usos que então funcionavam podem não mais ser satisfatórios em uma nova situação (Ibidem, p. 89).

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Assim, os significados produzidos por um jogo de linguagem, que é plenamente satisfatório dentro de uma situação extra-escolar, poderiam não funcionar satisfatoriamente quando transferidos para uma situação escolar. Isso nos permite compreender porque, muitas vezes, nos deparamos com situações em que os alunos resolvem situações (que envolvem conhecimentos matemáticos, por exemplo) fora do espaço escolar e não conseguem resolver situações semelhantes dentro do espaço escolar. No entanto, ter ciência da dificuldade desta empreitada não inviabiliza nossas práticas pedagógicas alicerçadas na realidade do aluno, mas, aponta para as dificuldades aí presentes, pois, a realidade, fabricada de acordo com os objetivos educacionais é, segundo Larrosa (2008) transformada em um “clone de si” (Ibidem, p.188), algo como uma paródia da “realidade”. É nesta paródia que se encontra a possibilidade de criarmos conexões inimagináveis e a possibilidade de “engendrar [mos] novos espaços-tempos, mesmo que de superfície ou volume reduzidos” (DELEUZE apud GALLO 2003, p.111). A discussão acima apresentada, mesmo que de forma sucinta, me permite afirmar que “o grande espelho calmo, no fundo do qual as coisas se mirariam e remeteriam umas às outras suas imagens, é na realidade, todo o buliçoso de palavras. ” (FOUCAULT, 1999, p. 37) e acontecimentos. Identificar a engrenagem que sustenta enunciados naturalizados e dar visibilidade ao seu caráter contingente e arbitrário aponta que a aparente tranquilidade, serenidade, expressa inclusive pelas mesmas palavras, que poderiam parecer estar configurando a mesmidade do enunciado que afirma a importância de trabalharmos com a realidade

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do aluno, ao fim e ao cabo não são mais do que efeitos de superfície. E são exatamente estes efeitos que a tornam, muitas vezes, quase que inquestionáveis no discurso educacional. Referências BERTANI, Januária Araújo. A prática de ensino no curso de Matemática. In: Anais VII Encontro nacional de Educação Matemática. VII ENEM, Rio de Janeiro, 2001. BRAIDA, Celso R. A crítica do conhecimento em Nietzsche. In: TURCKE, Christoph (org). Nietzsche , uma provocação. Porto Alegre, Ed. da Universidade, 1994. CAMARGO, Marco Antonio de. Telecurso 2000: uma análise da articulação da matemática escolar e do cotidiano nas tele–aulas (educação de jovens e adultos). In: Anais Terceiro Congresso brasileiro de Etnomatemática. II CBEm, 2008, Rio de Janeiro. COMENIUS, Jan Amos. Didática Magna. São Paulo: Martins Fontes, 2006. CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. As teias da razão: Wittgenstein e a crise da racionalidade moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2004. CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. DEWEY, John. Democracia e educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959. DUARTE, Claudia Glavam. A realidade nas tramas discursivas da Educação Matemática. 2008. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do vale do Rio dos Sinos, Rio grande do Sul, 2008. FOUCAULT, Michel. Conversação com Michel Foucault. In: MOTTA, Manoel Barros da. (org). Michel Foucault – Estratégia,

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Pedagogia

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Belo

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PRÁTICAS AVALIATIVAS ~

~

INCLUSAO E AVALIAÇAO ~ EM EDUCAÇAO MATEMÁTICA Monica Pagel Eidelwein Universidade Aberta do Brasil (UAB) Polo Novo Hamburgo


Entre a Universidade e a Escola

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Este texto toma como base muitas das ideias exploradas e discutidas no trabalho de pesquisa desenvolvido entre os anos de 2007 e 2012 (Eidelwein, 2012) e que resultou na tese intitulada: O Jogo Discursivo da Inclusão: Práticas Avaliativas de In/Exclusão na Matemática Escolar. Entre um dos pressupostos com o qual discutimos as práticas avaliativas em Matemática está a ideia de que há saberes que são produzidos no que denominamos de “jogos discursivos da inclusão”, e que ao serem naturalizados e tomados como verdades operam na produção de formas de pensar e agir, e assim incidem sobre as práticas avaliativas dos professores que ensinam Matemática. Cabe, certamente, uma explicação anterior no que se refere ao entendimento dos processos inclusivos como “jogos discursivos”. Esse conceito é cunhado, partindo da noção de jogos de linguagem, da perspectiva wittgensteiniana e da noção de discurso da perspectiva foucaultiana. Nessa explicação nos deteremos com mais cuidado na seção seguinte. Por enquanto, é importante salientar que entre os saberes constituintes dos jogos discursivos da inclusão está aquele que diz que, para que todo aluno possa estar na escola, conhecimentos outros, que não aqueles da matemática disciplinar, que habitualmente são vistos nesse espaço, devem ser considerados, levando a flexibilização, tanto do currículo como da avaliação escolar em matemática. Entretanto, temos constatado que em algumas práticas avaliativas escolares em matemática, em nome dessa flexibilização, o caráter epistemológico dessa área de conhecimento é desconsiderado, levando-nos a produzir paradoxalmente uma inclusão excludente. Em uma forma dita tradicional de avaliação escolar em matemática, nota-se um excesso de disciplinarização, entretanto, com a curricularização de alguns saberes cotidianos, é necessário cuidado e estudo de outras práticas sociais para que se possa pensar no que consiste o saber matemático escolar hoje e suas formas de avaliação escolar. Com efeito, ao se realizarem práticas avaliavas escolares na matemática hoje, pressupõe-se olhar para o trânsito do aluno na escola e para o que esta acrescentou ao que o aluno já sabia.

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Neste texto, apresentamos algumas práticas avaliativas escolares de professores que ensinam matemática, e que seguem as regras produzidas nos saberes dos jogos discursivos da inclusão, possibilitandonos ver a curricularização de saberes cotidianos, e, a partir disso a flexibilização da avaliação que vem ocorrendo na matemática ensinada na escola. Realizamos, então, questionamentos que nos ajudam a pensar sobre alguns cuidados necessários para se realizarem práticas avaliativas escolares em matemática, na escola hoje. Por que entender os processos inclusivos como “Jogos Discursivos”? Para entendermos os jogos discursivos utilizamonos, inicialmente, de alguns estudos da perspectiva wittgensteiniana, entre eles, o entendimento de linguagem, vista como atributiva, sendo através dela que as coisas ganham sentido (Veiga-Neto, 2005 b). Nessa mesma linha, considera-se a variedade de usos, funções e papéis da linguagem, e por isso Wittgenstein passa a utilizar não mais “linguagem”, mas “linguagens” ou “jogos de linguagem”. O uso, nesse caso, é pensado para além das proposições, considerando-se a dimensão pragmática da linguagem, isto é, esse uso não se refere meramente ao uso de palavras, mas a gestos, contextos, expressões dos mais diversos tipos (CONDÉ, 1998, p. 90). Levam-se em conta acima de tudo, as diferentes situações em que as significações são possíveis. Wittgenstein refere-se ao jogo de linguagem como o conjunto da linguagem e também das atividades com as quais ela está interligada (Wittgenstein, 1999). Ele mostra que falar uma língua faz parte de uma atividade que é guiada por regras. Ainda, para o autor, os usos que fazemos da linguagem não são aleatórios, eles seguem determinadas “regras de uso” e para que haja a compreensão desse uso, é preciso que seus critérios sejam públicos, só por isso que elas fazem sentido constituindo-se não apenas em padrões de comunicação, mas de correção quanto ao sentido da significação possível. Os processos inclusivos são entendidos como jogos discursivos. Jogos porque segue regras, que são saberes que se tornam verdades por incidência do poder. Em Wittgenstein,

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a noção de regra dá “sentido e condições de significação e de uso a palavras, expressões, operando como um padrão de correção, indicando direções e conduzindo os modos de proceder” (Aurich e Pinho, 2012, p.3), já em Foucault, o discurso impõe determinadas regras, evidenciando o seu caráter estratégico, ...e acabando por significar modos de ser e de agir, os esquemas de comportamento dos indivíduos (Aurich e Pinho, 2012). representando a possibilidade de produção de práticas ou de estabelecimento de determinadas condutas. Nessa perspectiva, os jogos de linguagem só têm sentido pelas atividades que constituem, sendo que essas atividades são comunitárias. Desse modo, se para Wittgenstein os jogos são ligados às atividades, para entendêlos, não basta conhecer o que expressa um indivíduo ou grupo em determinado momento. É necessário conhecer o ambiente, o que se deu antes e depois, a situação, pois é dessa maneira que se torna possível entender o sentido desse jogo de linguagem. Entre os exemplos da variedade de jogos de linguagem, Wittgenstein (2005, § 23), entre outras possibilidades, refere-se a: “ordenar e agir segundo ordens, descrever um objeto pela aparência ou pelas medidas, produzir um objeto de acordo com uma descrição (desenho)”. Assim, diante da multiplicidade de jogos apontada por Wittgenstein é que resgatamos a ideia de os significados das palavras emergirem dos usos que fazemos delas em determinados contextos ou situações. (Bello, 2010, p.552) Tomando como exemplo o significado da palavra “pão” ou o sentido que ela produz nas expressões: “vou comprar pão”, “ele comeu o pão que o diabo amassou”, ou “vou visitar o Pão de Açúcar”, ele não pode ser visto olhando-se apenas para as proposições isoladamente. É nos usos que se faz da palavra em diferentes situações que ela se torna compreensível. Os significados das palavras emergem dos usos que fazemos delas, de acordo com as condições de produção. (Eidelwein, 2012, p. 28) Assim como a linguagem, nesse estudo o discurso também não é entendido a partir de uma visão tradicional, que o concebe como forma de representação ou expressão da realidade, como exterior a ela. Nessa perspectiva entende-se que a realidade é constituída pela linguagem,

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sendo que o significado dos objetos, não está presente nos objetos em si, e sim na construção lingüística que os define. Abdica-se, então, da possibilidade de existir “um sujeito como fundamento, como núcleo central de todo o conhecimento” (Foucault, 2003, p. 10), sugerindo-se “[...] a constituição histórica de um sujeito de conhecimento através de um discurso tomado como um conjunto de estratégias que fazem parte das práticas sociais” (Foucault, 2003, p. 1011). Nesse sentido, nada estaria do lado de fora do discurso, já que a realidade é discursivamente construída. Na noção foucaultiana de discurso estão contemplados outros aspectos e por isso, é bem mais abrangente do que a linguagem. São consideradas, além da produção de sentidos e significações, a produção de condutas e comportamentos, ou como diria Foucault, a própria produção de sujeitos; visto que é pela linguagem que mobilizamos e fabricamos verdades, mas é pelo poder, pelos processos estratégicos existentes na nossa sociedade que nos vinculamos a elas e por isso passamos a agir conforme essas verdades, produzindo as nossas condutas. É na Arqueologia do Saber, que o próprio Foucault propõe (...) não mais tratar os discursos como conjunto de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações) (FOUCAULT, 2002, p. 56), propondo entendê-los como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam, dizendo que, certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais do que utilizar esses signos para designar coisas. Para ele, é esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever”. (Foucault, 2002, p. 56) Ao não se entender os discursos somente como conjunto de signos carregado de determinados significados, não faz mais sentido procurar por tais significados, nem por aquilo que supostamente estaria oculto, por trás das aparências. Entende-se, então, que é pelos discursos que as verdades são inventadas (Veiga-Neto, 2005 a). E, para que algo seja tomado como verdade é preciso se considerar algumas questões, entre elas, quem fala e quem escuta, a posição que ocupa e suas relações na instituição. Nesse sentido, que é também importante destacar da noção foucaultiana de discurso, a produção de saberes e sua relação à constituição de práticas, isto porque, para


O discurso veicula e produz poder; reforça-o mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições; mas também afrouxam seus laços e dão margens a tolerâncias mais ou menos obscuras. (FOUCAULT, 1993, p.96).

Em educação, é comum ouvirmos que, para haver saber, as relações de poder precisam estar suspensas, o que seria, na perspectiva foucaultiana, impossível, pois para Foucault, onde há sociedade, há relações de poder. Na perspectiva foucaultiana, o poder vai se definindo à medida que saberes se posicionam como estatuto de verdade. Assim, há uma estreita relação entre poder - saber. Nesse sentido, os saberes são constituintes de práticas, e funcionam como possíveis regras de ação nos jogos linguísticos, incidindo no que se pensa, no que se crê, no que se diz. Quando os saberes são tomados como

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Foucault, ao mesmo tempo que os discursos estabelecem formas-objeto, formas-conceito, formas-técnica, têm constituído sempre formas-sujeito” (Bello, 2010, p. 561). Algo é particularmente interessante nas teorizações foucaultianas, sustentando os trabalhos do filósofo em termos discursivos, que é “o estudo do que as regras, ao mesmo tempo, autorizam e proíbem, isto é, as relações de poder que entre elas se estabelecem” (Bello, 2010, p. 560), controlando, selecionando, regulando, organizando e distribuindo tudo aquilo que pode ser dito, estabelecendo o que é verdadeiro e separando-o daquilo que é falso. Isso é assim porque os discursos definem regimes de verdade que balizam e separam o verdadeiro do seu contrário (Foucault, 1998). Entende-se, a partir disso, que os critérios que definem o que é tido como verdadeiro, os processos que estabelecem uma verdade não se dão arbitrariamente pela violência da exclusão, sugerindo-se a problematização de tais verdades. Os discursos ativam poderes e os colocam em circulação, sendo que, muitas vezes, a relação entre discurso e poder é analisada aligeiradamente, ao que Foucault sugere: “É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta”. (Foucault, 1993, p.96). Ainda sobre o discurso diz que

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verdades, vemos o poder em funcionamento, ou seja, além das regras dos jogos de linguagem, há outras regras, a partir da ação de determinadas forças. Daí o caráter governamental do discurso, produtor de condutas. “Dar sentido, valorar – conhecer – são atividades que exigem, implicam a aplicação de forças”. Concluindo, um discurso é tomado como verdadeiro a partir do poder que ele exerce. Foucault estabelece uma estreita relação entre poder e verdade ao dizer que “a verdade não existe fora do poder ou sem poder”; ela é “deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder” (1979, p.12). Para ele Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 1979, p. 12)

Ainda para Foucault (1979, p.14), “a verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem”. As ideias desenvolvidas por Wittgenstein e Foucault apresentam algumas aproximações, entre elas, o entendimento da instituição da realidade ora, seja pela linguagem ora pelo discurso. Outra aproximação entre esses autores seria que ambos apontam para o caráter regrado da linguagem e do discurso, respectivamente. Ambos convergem quanto ao entendimento da arbitrariedade no estabelecimento dessas regras, no sentido de serem inventadas e compartilhadas por seus jogadores, como ocorre em um jogo. Mas também esses autores apresentam formas de abordagem diferenciadas. Wittgenstein direciona a análise aos jogos de linguagem, procurando entender as regras a partir do uso das palavras e expressões e dos seus sentidos, não somente nas proposições, mas também nas diferentes situações de uso. Já Foucault vai acrescentar outros elementos na análise do discurso, entendendo as

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regras discursivas a partir do que elas autorizam e proíbem, inserindo o estudo das relações de poder que entre elas se estabelecem (Foucault, 2008 , p.9). Assim, desenvolvida a noção de jogo de linguagem e seu caráter regrado e de discurso como instituidor de práticas, consideramos ser preciso operar com a noção de jogos discursivos. Isso se faz necessário porque pretendemos discutir, a seguir, a avaliação na matemática escolar, entendendo-a como um ato pedagógico em que se situam saberes, aspectos institucionais em que ele [o ato pedagógico] acontece, exigências econômicas imediatas e as urgências políticas a que deve responder” (Bello, 2010, p.560). Desse modo, ao aproximar o conceito de jogos linguísticos de Wittgenstein ao conceito de discurso de Foucault, torna-se possível atualizá-los na forma nomeada de ‘jogo discursivo’, mantendo a ideia de atividade regrada contida no jogo linguístico de Wittgenstein, porém acrescentando a discussão sobre relações de força, de algumas discussões de Foucault. Tal empreendimento mostra que o que se apresenta direciona-se para além das questões de saber, mas também às questões de poder envolvidas nas práticas avaliativas dos professores que ensinam matemática, ao serem interpelados pelos jogos discursivos da inclusão. No estudo que ora apresentamos, as regras dos jogos discursivos da inclusão indicam como professores que ensinam matemática devem conduzir-se, através da seleção de determinados tipos de saberes e instituição de determinadas práticas avaliativas em educação matemática. Para se entender os jogos discursivos não é suficiente dizer que é um discurso, nem apenas olhar para suas regras enquanto jogo. Faz-se necessário perceber as práticas que as regras desses jogos produzem. A produção de saberes dos jogos discursivos da inclusão, produz formas de avaliar em matemática. Isso ocorre quando tais saberes são tomados como verdade, incidindo sobre suas práticas avaliativas na matemática escolar, através da flexibilização da avaliação, constituindo, assim, formas de ser professor. Entre esses saberes estão que “a avaliação é um processo constante” e que “deve ser diferenciada e individualizada de acordo com as necessidades de cada um”. Tal questão pode ser exemplificada a partir da fala de uma professora, ao ser questionada sobre não ter realizado

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o agendamento para observação de uma das práticas avaliativas realizadas em sua sala de aula, como havia combinado, como uma das atividades da pesquisa sobre avaliação que estava sendo desenvolvida em sua escola. Ela imediatamente argumentou: “avalio tudo e o tempo todo, então, poderias vir quando quisesses” (Eidelwein, p. 83, 2012). Inspirados nas teorizações wittgensteinianas, para entendermos as regras de significação dos jogos de linguagem, estudamos as expressões lingüísticas. Já, se pretendemos entender as regras estratégicas do jogo discursivo, aquelas “que efetivamente orientam, conduzem, governam, significam nossos modos de ser e agir” (Bello, 2010, p.561), na perspectiva foucaultiana, precisamos realizar o estudo das práticas sociais, ou o que o autor denominou posteriormente como práticas discursivas, sendo esse o jogo analítico discursivo proposto por Foucault. Assim como a percepção das regras dos jogos se dá na realização das práticas, é a partir das práticas que o indivíduo perceberá, além das próprias regras desses jogos, aquilo que elas interditam ou que elas possibilitam circular. Olhamos, então, para as práticas sociais ou discursivas, de alguns professores que ensinam matemática na escola. A educação inclusiva pressupõe a ideia de uma educação mais humana e democrática, que consiga abarcar a todos, ocorrendo, com isso, uma curricularização de saberes cotidianos, sendo inseridos na escola, saberes matemáticos de práticas sociais outras, que não aqueles saberes matemáticos disciplinares, habitualmente vistos nesse espaço. Com isso, as práticas avaliativas acabam também sendo flexibilizadas. Tais práticas compõem os jogos discursivos da inclusão. Nesses jogos vê-se que “O aluno é avaliado a todo o momento, devendo haver uma individualização e diferenciação da avaliação, contemplando, assim, as necessidades de cada um”. (Eidelwein, p.82, 2012) Chamamos os professores que seguem as regras dos jogos discursivos da inclusão nas suas práticas avaliativas em matemática de “professores inclusivos”, já que são capazes de realizar uma avaliação que nominamos como “avaliação inclusiva”, que além de diagnosticar, tem como objetivo incluir a todos e a cada um.


Práticas avaliativas escolares de professores que ensinam matemática e que seguem as regras produzidas nos saberes dos jogos discursivos da inclusão Várias são as práticas avaliativas nas quais a flexibilização da avaliação escolar na matemática pode ser vista. Entre elas, trazemos duas situações para discussão. A primeira situação é relatada em uma entrevista (Eidelwein, 2012, p. 83), por uma professora dos anos de 5º ano do ensino fundamental, em uma escola da Rede Pública Municipal, em uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre/ Rio Grande do Sul. A professora relata a prática avaliativa realizada com um aluno que apresenta dificuldades em realizar as atividades matemáticas exigidas pela escola: Tem alunos que só conseguem fazer oralmente, vamos valorizar isso... Como um aluno que vende algodão doce, concluiu o ensino fundamental com avaliação diferenciada, não conseguia registrar, formalizar, mas vende, compra, produz... Sabe fazer a conta de cabeça.

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Na entrevista a professora menciona que avaliou o aluno a partir dos saberes matemáticos de uma prática do seu dia-a-dia. Ela afirma que esses saberes devem ser considerados na escola, pois, neles o aluno mostra o que sabe como realizar os cálculos, fazer soma e subtração. Na sala de aula dessa professora observei que era exigido dos demais alunos que fizessem registros, formalizando o que sabiam em relação à soma e subtração, de acordo com uma certa orientação, seguindo as regras da matemática disciplinar, habitualmente utilizada na escola. Essa estratégia, de individualização e diferenciação da avaliação, na qual a professora considera o que o aluno trouxe de práticas sociais outras, está relacionada à questão do ensino e aprendizagem do que é tido pelos professores como “conhecimento matemático escolar” a ser ensinado (Eidelwein, p.84, 2012). Algumas questões que anteriormente não eram consideradas na e pela escola, e que faziam parte de práticas sociais outras, passam a fazer parte desse “conhecimento matemático escolar”, e da

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própria avaliação, que é flexibilizada, possibilitando abarcar a todos na escola. Nota-se uma curricularização de saberes cotidianos. Nesse sentido, preferimos nos referir ao “conhecimento matemático escolar”, como “saberes matemáticos” por entendermos que aquilo que é ensinado não se constitui como campo autônomo, disciplinar, como no caso do conhecimento, e sim constitui as práticas sociais e também é constituído por elas, sejam elas escolares ou não escolares. Esses saberes da prática cotidiana considerados pela professora, ao estarem na escola e serem aceitos, legitimados, institucionalizados, adquirem o estatuto de verdade. Ao serem validados, esses saberes possibilitam a aprovação do aluno tornando-se “condição importante para que o aluno siga o fluxo da educação básica, permanecendo e fluindo na escola”, (Eidelwein, p.85, 2012) ao mesmo tempo lhe permite a socialização. Na situação mencionada pela professora, o saber matemático escolar precisou ser repensado, a partir das regras dos jogos discursivos da inclusão, sendo necessária a flexibilização tanto do currículo como da avaliação, através de sua individualização e diferenciação, havendo o reconhecimento de um saber matemático de práticas sociais outras, que não aquelas tidas, habitualmente, como escolares. A segunda situação que trazemos para discussão, na qual também se nota a tentativa de individualização e diferenciação da avaliação, é uma situação que foi observada em um Conselho de Classe de um sexto ano, na qual uma das professoras fala sobre sua prática avaliativa (Eidelwein, p. p.84, 2012). Ela refere-se a um aluno que tem dificuldades em matemática, dizendo que trabalha com material, mas depois o aluno não lembra, afirmando ser difícil avaliar e dizendo não saber como fazê-lo. A professora menciona: É difícil avaliar. Realiza contagem até o 20, mas não tem noção de quantidade. Trabalho com bastante material concreto, mas, no dia seguinte, não lembra mais... Que avaliação a gente faz? Não dá para fazer um parecer escrito e não colocar nota? Fiz revisão de tabuada, todos trabalharam

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multiplicação e, com ele, fiz contagem de material concreto, está dentro do assunto. No parecer dele, vou colocar o que ele consegue para não ficar tão ruim.

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Uma situação difícil realmente, enfrentada no cotidiano de muitos professores, porém, pensamos que facilitar a atividade não significa resolver o problema, apenas adiá-lo. Uma solução nessa direção destoa grandemente do sentido de diferenciação e individualização do que se propõe, inclusive, como saber pedagógico na avaliação. Mesmo com a facilitação da atividade, ora discursivamente, essa professora acreditava num trabalho escolar em que o conhecimento, mesmo que uma simples contagem, fazia parte do assunto. Entendendo que diferente da primeira situação, neste segundo caso, “a professora opera com um entendimento de saber matemático fabricado a partir do jogo discursivo da inclusão, que não é um saber matemático escolar, e também não é um saber matemático de práticas sociais outras. A atividade avaliativa que propõe não desenvolve um saber matemático que possibilite o fluxo na escola, nem a socialização, como no exemplo anterior” (Eidelwein, p.86, 2012) Há de se ter cautela com as práticas avaliativas nas questões relacionadas aos saberes matemáticos, pois, algumas vezes, no jogo discursivo da inclusão, a flexibilização como regra constitutiva de uma prática avaliativa, para abarcar a totalidade de alunos, comporta um outro jogo O de vale tudo - pois, aquilo que é nomeado como saber matemático, não é nem saber matemático escolar e nem saber matemático de práticas sociais outras. Que saber matemático é esse de contar peças de material dourado? Ou tampinhas? Ou palitinhos? Ocorre, nesse caso, uma inclusão excludente. Ao serem propostos saberes, de práticas sociais outras na escola, que possibilitem a todos “estar ali”, socializar-se e participar, não é possível perder de vista os saberes disciplinares. Não deveria haver a sobreposição de um saber em relação ao outro.

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Cuidados para se realizarem práticas avaliativas escolares em matemática, na escola hoje Sugerimos alguns questionamentos, que nos ajudam a pensar sobre os cuidados necessários para a realização de práticas avaliativas na matemática escolar hoje, de modo a não se levar a uma inclusão excludente. Entendemos que tais questionamentos possam auxiliar aos professores que ensinam matemática, como ponto de partida para o direcionamento de suas práticas avaliativas, que sempre, a cada momento podem ser revistas e reinventadas, considerando os contextos e as práticas sociais escolares e não escolares dos alunos e professores. Desse modo, sugerimos alguns questionamentos, que podem se somar a muitos outros. Ao realizar as práticas avaliativas em matemática na escola... - ...entendendo que avaliar implica a seleção de práticas e a enunciação de questões, problematizo tais práticas e tais enunciações? Dizendo de outro modo, discuto diferentes contextos, entendendo que os modos de viver se modificam de um lugar para outro e em cada tempo histórico, não me restringindo ao caráter disciplinar para o qual a matemática escolar habitualmente se direciona? - ... é possível se evidenciar o que a matemática escolar acrescentou ao que o aluno já sabia? Dizendo de outro modo: O trânsito do aluno na escola possibilitou ao aluno novos saberes matemáticos? - .... foram considerados tanto o saber matemático disciplinar como o saber matemático de práticas sociais outras, sem a sobreposição de um sobre o outro? Dizendo de outro modo: com a curricularização de saberes matemáticos de práticas sociais outras, que não aqueles habitualmente encontrados na escola, trabalho efetivamente saberes matemáticos que possibilitem aprendizagem ao aluno e seu trânsito na escola e na vida? - ...quando flexibilizo a avaliação, a partir dos jogos discursivos da inclusão, considero o caráter epistemológico da matemática? – Dizendo de outro modo: com a flexibilização

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da avaliação – diferenciação ou individualização – tenho cuidado para não entrar em um “jogo do vale tudo”, excluindo o aluno dos saberes matemáticos? - ... a análise do desempenho escolar e as relações que estabeleço com os alunos são pautadas por um posicionamento ético-político de respeito ao aluno. Dizendo de outro Modo: quando avalio, estabeleço uma relação de respeito aos alunos, através da consideração de diferentes saberes matemáticas, sejam eles da matemática disciplinar ou de práticas sociais outras?

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Finalizando, tem se evidenciado que a avaliação escolar, em alguns casos, tem servido para avaliar os modos como os estudantes lidam com saberes matemáticos disciplinares, excluindo a muitos alunos desse espaço, por não darem conta desses saberes. Em outros casos, procurase diferenciar e individualizar a avaliação de acordo com as necessidades de cada um, flexibilizando-a e buscandose, com isso, que todos possam estar incluídos na escola, mas, algumas vezes, negligencia-se a questão dos saberes matemáticos, pois, entra-se em um “jogo do vale tudo”, entretanto, nem tudo que é trabalhado pode ser considerado saber matemático, disciplinar ou de práticas sociais outras. Para que se possa flexibilizar o currículo e também a avaliação na matemática, considerando na escola saberes matemáticos disciplinares e também aqueles de práticas sociais outras, é necessário que os professores estudem tais práticas, discutam e problematizem a questão dos saberes matemáticos hoje. Nos propusemos aqui a iniciar essa discussão, problematizando as práticas avaliativas em matemática escolar a partir dos saberes produzidos nos jogos discursivos da inclusão, mas, não temos a intenção de esgotar a discussão sobre a temática da avaliação na matemática escolar, mas, sim, de abrir possibilidades para pensá-la, para vislumbrar alguns modos de fazê-la de forma menos excludente e mais produtiva, tanto para os professores como para os alunos. Esperamos ter contribuído, a partir dos questionamentos que realizamos e dos dizeres que aqui apresentamos, para que alguns cuidados sejam tomados na realização da avaliação na matemática escolar, apontando algumas direções possíveis, não únicas e nem definitivas.

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Pensamos que muitos outros modos de dizer e fazer a avaliação são possíveis, a partir de outros questionamentos, de outras discussões e problematizações e de novos estudos que poderão levar a muitas outras direções, tantas quantas possamos inventar. Referências AURICH, Grace da Ré; PINHO, Patrícia Moura. O Bom Professor de Matemática: a autoconstituição de um sujeito professor através de jogos de verdade. In: ENDIPE – Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino, 16., 2012, Campinas. XIV Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino. Campinas: Junqueira e Marin Editores, 2012. p. 3996-4007. Disponível em: <http://www.infoteca.inf.br/endipe/smarty/ templates/arquivos_template/.../3584b.pdf>. Acesso em: 03 out. 2016 BELLO, S. E. L. Jogos de Linguagem, Práticas Discursivas e Produção de Verdade: contribuição para a educação (matemática) contemporânea. Zetetikê, Campinas, v.18, número temático, p. 545-587, 2010. CONDÉ, M. L. L. Wittgenstein: linguagem e mundo: uma trajetória filosófica. São Paulo: Annablume, 1998. EIDELWEIN, Monica Pagel. O Jogo Discursivo da Inclusão: práticas avaliativas de In/Exclusão na Matemática escolar. UFRGS: Porto Alegre, 2012. Tese de Doutorado. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Gerais, 1979. _________________. História da Sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1993. _________________. A Ordem do Discurso: aula inaugural do Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura F.A. Sampaio. Campinas: Loyola, 1998. _________________. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

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__________________. As Verdades e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2003. _________________. Segurança, Território e População. São Paulo: Martins Fontes, 2008. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores). VEIGA-NETO, Alfredo. Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005a. ____________________. Foucault e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2005b.

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O PORTADOR DE ALTAS HABILIDADES EM MATEMÁTICA SOB UMA PERSPECTIVA PRAGMÁTICA DA LINGUAGEM1 Karin Ritter Jelinek Universidade Federal do Rio Grande FURG – Brasil Samuel Edmundo Lopez Bello Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS – Brasil


Considerações Iniciais

1 Este texto foi originalmente publicado sob o título “Highly able mathematics learners from a pragmatic perspective of language” na RIPEM – Revista Internacional de Pesquisa em Educação Matemática, V.4, N.2, 2014, p. 139 – 154. 2 Entendemos por pós-estruturalismo um movimento de pensamento que se distancia do estruturalismo, que nos permite problematizar as produções discursivas. Esse movimento reformula não somente os entendimentos tradicionais em torno dos processos linguísticos e discursivos; mas, partindo da problematização sobre a rigidez, a fixidez, a essencialidade das significações, questiona os pressupostos do próprio estruturalismo, da fenomenologia, da dialética, da metafísica. 3 O processo de seleção dos portadores de altas habilidades realizado pela SIR/AH consistia no preenchimento da Ficha de Autonomeação e Nomeação por colegas – a ser realizado pelas discentes –, no preenchimento da Ficha de Itens para Observação em sala de aula – a ser preenchida pelos docentes – e em entrevistas realizadas pela professora da SIR.

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O que apresentamos neste artigo faz parte de uma pesquisa de viés pós-estruturalista2 que tem por objetivo analisar os jogos de linguagem em formas de vida de crianças ditas portadoras de altas habilidades em matemática, evidenciando aqueles valorizados pelos processos escolares de seleção e enriquecimento educativo. Para o desenvolvimento dessa pesquisa, fez-se uso das ferramentas teóricas wittgensteinianas – jogos de linguagem e formas de vida – com contribuições das ferramentas foucaultianas – discurso, relações de poder e governamentalidade – com as quais criou-se a noção de jogos de poder-linguagem, ferramenta teórica utilizada nas análises propostas deste artigo. Esse estudo teve como objetivo, a partir de um movimento analítico-descritivo com centralidade na linguagem, compreender a forma como os discursos das altas habilidades circulam hoje nas escolas da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (BRASIL) identificam, comparam e classificam os sujeitos portadores de altas habilidades. Para seu desenvolvimento, acompanhamos as atividades de seleção3 e de Enriquecimento Educativo propostas pela professora da Sala de Integração e Recursos para Alunos com Altas Habilidades/Superdotação (SIR/AH)4 e realizamos entrevistas com três alunos “ditos” como portadores de altas habilidades em matemática, bem como, com as professoras desses alunos no ensino regular. Cabe mencionar, que a pesquisa na qual este trabalho se insere, foi organizada em duas etapas complementares. A partir do entrelaçamento das mesmas

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se propôs a abordar as altas habilidades em matemática de um âmbito macro, relacionado ao modo de pensar da sociedade, para um âmbito micro, relacionado às questões de sala de aula e ao espaço escolar. Os movimentos analíticos empreendidos possibilitaram, num primeiro momento da pesquisa, verificar deslocamentos e reatualização em torno do significado de altas habilidades em matemática, passando de um âmbito científico-cognitivo, para um âmbito comportamental em relação ao social e econômico. Também foi possível verificar que o dito sujeito de altas habilidades não se constitui a partir de uma simples mudança de nomenclatura, mas se produz pela observação atenta e criteriosa dos agentes escolares, sendo tais observações também embasadas em critérios comparativos de desempenhos, onde ganham destaque aqueles valorizados pela escola (JELINEK, 2013a, 2013b)5 . No segundo momento da investigação, a qual detalhamos neste artigo, discutimos, a partir de um trabalho de campo, como os jogos de poder-linguagem, mobilizados pela escola, valorizam e põem em evidência certos tipos de conduta, dando visibilidades àquelas que – acreditamos – passarão a constituir o sujeito portador de altas habilidades em matemática na escola. Para o desenvolvimento desta segunda etapa, optamos pelos princípios metodológicos detalhados a seguir. 4 Segundo o Ministério da Educação do Brasil (MEC), essa sala de aula não difere das demais pelo aspecto físico, mas pelos recursos que a mesma disponibiliza, como: computador, gravador, projetor de slides e de filmes, aparelho de vídeo, laboratório de ciências, jogos etc. Trata-se de um local especial para o desenvolvimento de atividades específicas que enriqueçam o processo de ensino e de aprendizagem das habilidades. (BRASIL, MEC/SEE, 1995, p.55). O Decreto nº 6.571/2008 possibilita às redes de ensino o investimento na formação continuada de professores, na acessibilidade do espaço físico e do mobiliário escolar, na aquisição de novos recursos de tecnologia assistiva, entre outras ações previstas na manutenção e no desenvolvimento do ensino para a organização e oferta do Atendimento Educacional Especializado (AEE), nas salas de recursos multifuncionais. O município de Porto Alegre conta com uma SIR/AH. 5 Este trabalho de pesquisa pretendia discutir as altas habilidades em matemáticas a partir de uma lógica escolar em que haveria uma disciplina Matemática, onde as altas habilidades em matemática seriam condições necessárias para o sucesso da pessoa na vida e na escola. Conforme desenvolveram-se os estudos, foi possível entender que as questões das altas habilidades são discursivas e que este caráter disciplinar é meramente ilusório ou é apenas uma estratégia institucional do campo escolar. Situando as práticas de altas habilidades no que se refere à produção de condutas e, em último caso, de sujeitos, é que se compreendeu que não havia sentido utilizar a lente matemática para olhar para as práticas das altas habilidades; mas sim, olhar para as condutas de um modo geral e para o tipo de sujeito que se quer produzir. E isso extrapola o âmbito disciplinar. Esta discussão detalhada pode ser acompanhada em JELINEK (2013b).

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Os princípios teórico-metodológicos da investigação

o autor não se esconde para afirmar sua autoridade científica, mas se mostra para dispersar sua autoridade; não analisa, apenas sugere e provoca. Com isso, a concepção do leitor muda radicalmente: ele não é mais aquele que se informa, mas deve ser agora participante ativo na construção do sentido do texto, que apenas sugere conexões de sentido (1988, p. 142 – 143).

Assim, nosso estudo fundamentou-se neste viés pós-moderno da etnografia, pois, existe a possibilidade da pluralidade de sentidos obtidos pelas análises não sendo elas a verdade sobre a forma de vida dos sujeitos de altas

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Estudar formas de vida requeria um tratamento de caráter etnográfico de nossa investigação embora estivéssemos partindo de uma ótica pós-estrutural. Considerar que os sujeitos formam e são formados por práticas discursivas, passou a ser fundamental nos afastarmos das etnografias clássicas, pois seus princípios metodológicos sustentam uma crença na neutralidade do pesquisador, e podermos elaborar procedimentos metodológicos adequados. Assim, poder se distanciar da possibilidade de apenas narrar as experiências do outro, mas articular diferentes técnicas de pesquisa – como a observação, o relato autobiográfico e a elaboração de registros – se fez pertinente. Sarmento (2003, p.159) argumenta que uma investigação na contemporaneidade “não pode deixar de considerar a impossibilidade – e a indesejabilidade – das posturas assépticas e pretensamente inocentes do investigador no seu terreno de pesquisa”. Segundo Geertz (2001, p. 66) não se pode esquecer que “vemos a vida dos outros através das lentes que nós próprios polimos e que os outros nos veem através das deles” e, é a partir desta premissa, que acredita-se não ser possível ser um pesquisador neutro em campo. Caldeira ainda sustenta que um trabalho etnográfico de cunho pós-moderno modifica não só o papel do pesquisador, mas também de seus leitores, que são convidados a dar sentido às discussões juntamente com o autor. Uma pesquisa nesta perspectiva “pode evocar, sugerir, provocar, ironizar, mas não descrever culturas” e explica que, desta forma, nos afastamos da etnografia clássica, pois

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habilidades e/ou as relações poder-linguagem, mas apenas uma entre tantas possíveis. De acordo com Ferreira, não há mais um olhar universal e transcendental, mas um olhar pessoal, em que o etnógrafo assume a especificidade de sua autoria e “do lugar de onde fala”, abrindo espaço para que também as vozes dos sujeitos se façam presentes nas narrativas e estudos etnográficos pós-modernos, além das outras vozes sociais que atuam como mediadoras das vozes dos sujeitos e do pesquisador: a mídia, os contextos políticos e econômicos, os artefatos e as práticas culturais, os discursos, as linguagens, entre outras (2004, p. 49).

Com efeito, um estudo etnográfico é acima de tudo um estudo das formas de vida dos indivíduos, uma vez que é centrado nas regras de uma dada comunidade. Como coloca Sarmento (2003, p. 152), “Não é, portanto, uma questão de método o que distingue a etnografia de outros tipos investigativos, mas a perspectiva, enfoque ou orientação”. Consequentemente, é possível dizer que um estudo de viés etnográfico como o que propomos tem por principio uma orientação do olhar investigativo para os sentidos, para as regras, para os jogos de linguagem que integram uma comunidade. Neste estudo utilizamos esta técnica por ela permitir conhecer as práticas dos indivíduos em âmbitos espaçotemporais localizados e evidenciar as semelhanças de família entre os jogos de linguagem destas práticas e os das atividades de seleção dos portadores de altas habilidades. Com isto, neste trabalho de campo, nos propusemos a participar das rotinas da SIR/AH, estando lá, observando, conversando, percebendo os ditos e não ditos. Buscamos compreender os significados atribuídos aos processos de seleção e enriquecimento, bem como, as relações que poderiam existir entre os jogos de linguagem. Também tivemos a intenção de olhar para o entendimento que os diferentes participantes deste espaço tinham acerca do seu envolvimento com a SIR/AH, procurando trazer essa pluralidade de vozes para o Diário de Campo. Desta forma, dentre as técnicas que compõem um trabalho de inspiração etnográfica, além da observação, fizemos uso das entrevistas e do Diário de Campo, as quais sustentam as discussões propostas neste artigo.


Quando a linguagem se entrelaça com o poder

6 Em relação a essas práticas, temos que ter em mente que estamos nos referindo à noção foucaultiana, que entende as práticas discursivas como “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 1995, p. 133). Por entender que as práticas são constituídas pelos discursos vigentes em espaços sociais e históricos, optamos, neste estudo, por não adjetivar o conceito de prática. Assim sendo, sempre que estivermos nos referindo às práticas, subentende-se que elas são discursivas, são sociais. Miguel (2010, p. 39) destaca tal aspecto registrando que “o que Foucault sugere claramente [...] é que, para uma história que acredita serem as práticas unidades produtoras de novas formas de conhecimento e de subjetividade, é impossível estabelecer uma linha demarcatória nítida entre práticas discursivas e práticas sociais”.

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Para o embasamento teórico deste estudo, procuramos aproximar as ideias de Ludwig Wittgenstein e Michel Foucault, a fim de atingir o objetivo que nos propusemos para esta pesquisa, que é o de analisar os jogos de linguagem em formas de vida de crianças ditas portadoras de altas habilidades, evidenciando aqueles valorizados pelos processos escolares de seleção e enriquecimento educativo. Pensamos ser possível aproximar as ferramentas teóricas desses dois filósofos em função de ambos se deslocarem de uma perspectiva metafísica de linguagem e conhecimento. Em Wittgenstein a linguagem nunca alcança a ser uma representação ou expressão de um real, em Foucault as verdades não são descobertas pela razão, mas sim inventadas por ela. Assim, as ideias desses dois filósofos, nos auxiliam a discutir como, a partir de um dado momento histórico, práticas6 – ilusoriamente naturalizadas como universais - passam a ser vistas como combinações de jogos de linguagem e que pelo poder define-se sua verdade ou falsidade. Se, para Wittgenstein (2008, §7), os jogos de linguagem são “a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada”, pensar os jogos de linguagem das altas habilidades pressupõe pensar em um conjunto variado de signos que, articulados por regras de significação, constituem um jogo de sentidos, que nos leva a ver, perceber e entender aquele que estamos chamando de portador de altas habilidades e as situações pedagógicas que o envolvem. Foucault (1995, p. 55), por sua vez, deixou claro que

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não devemos encarar os discursos como “um puro e simples entrecruzamento de coisas e de palavras”, da mesma forma que “o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência”. O que esse filósofo registrou e que nos permite dizer que suas ideias de certa forma vão para além da noção de linguagem para Wittgenstein, é de que, “analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva”. Ao mencionar que os discursos vão além de fatos linguísticos, mas que também possuem um nível estratégico, Foucault comenta que devemos considerar os fatos do discurso “não mais simplesmente sob seu aspecto linguístico, mas, de certa forma [...] como jogos (games), jogos estratégicos, de ação e de reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, como também de luta” (2003, p. 9). Nesta pesquisa, os jogos de linguagem das altas habilidades são entendidos como produtores de condutas dos sujeitos, uma vez que o que se pensa e se diz desses sujeitos acaba por constituir uma forma específica de vida. Assim, as práticas são permeadas de saberes, bem como esses saberes sustentam as ações escolares que envolvem as ditas altas habilidades. Logo, entendemos a linguagem não mais como um instrumento de comunicação entre sujeitos, mas como um jogo constituinte da própria realidade. A linguagem passa a ter a função instituidora daquele que estamos entendendo como portador de altas habilidades, pois, ao ser composta de regras de significação, “através da maneira com que são utilizadas e dos modos pelos quais são seguidas, [a linguagem] institui modelos e padrões, fabricando sujeitos” (Aurich, 2011, p. 45 – grifo nosso). Atrelado a isso, temos que atentar para o fato de a linguagem não ser privada, pois é impossível seguir regras privadamente, uma vez que seguir regras é uma prática e é essa prática que gera a significação. Wittgenstein, ao explorar o caráter regrado dos jogos de linguagem, comenta a diferença entre a regra e a sua enunciação, de modo que se estabelece um paradoxo:


Nosso paradoxo era o seguinte: uma regra não poderia determinar um modo de agir, dado que todo modo de agir deve poder concordar com a regra. A resposta: se todo modo de agir deve poder concordar com a regra, então deve poder contradizê-la também. Por conseguinte, não haveria aqui nem concordância nem contradição. [...] Com isto mostramos, a saber, que há uma concepção de regra que não é uma interpretação; mas que se exprime, de caso para caso da aplicação, naquilo que denominamos “seguir a regra” e “transgredila” (WITTGENSTEIN, 2008, § 201).

Foucault, ao discutir as práticas discursivas e com elas a produção da legitimação das verdades, passa a operar com o conceito de jogos de verdade, que se entrelaça com a noção de jogo de linguagem de Wittgenstein, contudo não se restringe a essa noção. O conceito de jogos de verdade abarca a linguagem e as subjetivações [formas sujeitos] que advêm desse jogo. Enquanto Wittgenstein utiliza-se da expressão jogo para traçar uma analogia com a linguagem, entendendo que ambas são atividades guiadas por regras; Foucault vai além, acrescentando que a palavra jogo implica uma produção de verdade. Ele nos explica isso, dizendo que

Desta forma, podemos dizer que um encontro possível entre os jogos de linguagem e os jogos de verdade dá-se pela presença de uma regra, que coloca em funcionamento e funda o jogo em si. Segundo Birman, afirmar que se trata sempre de um jogo, seja de linguagem seja da verdade, implica sublinhar a presença de uma regra que preside e que seria constitutiva do jogo enquanto tal. Porém, enunciar a existência de uma regra é indicar a existência de algo que é da ordem da invenção e do arbitrário, que seria constitutivo de toda e qualquer regra (2002, p. 307) [grifo do autor].

Cremos que as regras que constituem as práticas das

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quando digo “jogo”, me refiro a um conjunto de regras de produção da verdade. Não um jogo no sentido de imitar ou de representar...; é um conjunto de procedimentos que conduzem a um certo resultado, que pode ser considerado, em função dos seus princípios e das suas regras de procedimento [...] (2006, p. 282).

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altas habilidades são derivadas do uso que as antecedeu, pois como coloca Wittgenstein (2008), as regras não são feitas nos gabinetes – a partir do mundo das ideias – mas nas ruas. Partindo dessa ideia de que as regras se instituem e são instituídas pelo uso que os sujeitos fazem delas, podemos registrar que as regras procedem de um movimento social e histórico. As regras que envolvem os portadores de altas habilidades são públicas, elas advêm dos costumes e atitudes coletivas presentes nos processos escolares. E como não se segue uma regra uma única vez – assim como não se seleciona uma única criança dita portadora de altas habilidades em matemática – podemos dizer que ela resulta de uma prática constante, o que ocasiona uma regularidade. E é essa regularidade que nos interessa a este estudo. Esta noção de regra é fundamental na nossa analítica, pois sustenta e dá condições para a produção de sentido daquilo que denominamos de portador de altas habilidades. Soma-se a isso o caráter estratégico das regras que nos dão padrões de direção, daquilo que podemos dizer e fazer, conduzindo a maneira de como devemos proceder. Ademais, no âmago desses jogos regrados, podemos dizer que a linguagem seria uma condição necessária para a produção da verdade como jogo, mas não seria, no entanto, condição suficiente. No seu cerne, encontram-se regras de legitimação de discursos forjadas nas relações de poder mantidas entre os sujeitos no espaço histórico e social. Assim, os jogos de verdade de Foucault mantêm, com os jogos de linguagem de Wittgenstein, uma relação mediada pelos jogos de poder. E é na dinâmica das práticas cotidianas que se instituem as formas pelas quais as regras desses jogos de poder irão operar, normatizar, reproduzir, dominar e assujeitar indivíduos. Ponderando a importância da instância social na constituição dos jogos de poder, é que se estabelece o entendimento de que uma prática é um jogo, um jogo que combina linguagem e poder. Combina linguagem, por ser um jogo de significações, e combina poder, por ser um jogo que orienta condutas e institui verdades. Sendo assim, nas discussões travadas neste estudo, é permitido chamar esta combinação de diferentes jogos – jogos de linguagem, jogos de verdade e jogos de poder – de jogos de poder-linguagem.


As altas habilidades em matemática como uma invenção Partindo das noções de Foucault, as práticas discursivas em altas habilidades são constituídas de regras que proporcionam um modo de dar sentido à determinada materialidade, formando assim os elementos dos quais falam; produzindo verdades segundo determinado momento histórico. Nesse sentido, tratamos do sujeito das altas habilidades como produção discursiva. Lembremos que a noção de linguagem de Wittgenstein (2008, §24, §26, §27) já explora a existência de linguagens que significam as coisas das quais falam a partir dos usos que fazemos das palavras. Ou seja, as significações surgem de acordo com as regras de sentido em meio às práticas. Nos que poderíamos denominar de “jogos de linguagem das altas habilidades”, as palavras não

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Os jogos de poder-linguagem, que instituem as práticas das altas habilidades, são constituídos de regras que orientam a forma com que o sistema educacional deve proceder, apontando uma direção e não uma obrigação, e constituindo sujeitos. Partindo do princípio de que o contexto social não é apenas um cenário, mas sim um elemento constitutivo de nossa forma de pensar, é a partir dele que temos a constituição de práticas específicas. Assim, falar sobre educação é falar de prática e essa, por sua vez, leva-nos a falar do sujeito. As práticas tem estreita relação com as formas de ser sujeito, sujeito este que está no discurso, que é inevitavelmente produzido também pelo que se diz dele. Logo, se para Foucault o sujeito é produto das práticas; para Wittgenstein, o sujeito é produto de sua forma de vida, constituído através dos jogos de linguagem e de seus códigos de conduta. Assim, retomando as palavras de Wittgenstein de que as palavras só ganham significado na “corrente de pensamento e da vida” e agregando a isto o entendimento de que “o sentido está indissoluvelmente conectado a discursos que são partilhados por uma comunidade que os coloca em funcionamento” (VEIGA-NETO, 2007, p. 38), é possível que se problematize as práticas de seleção e enriquecimento educativo acerca dos portadores de altas habilidades em matemática.

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representam os portadores de altas habilidades, não são apenas nomes, elas fazem parte das ações humanas - a linguagem pode assim ser compreendida como uma ação. Ou seja, saímos dos significados substanciais das palavras e substituímo-los por suas concepções funcionais. O que tentamos explicar aqui, é que a linguagem faz algo, produz coisas e sujeitos, ela cria novas compreensões acerca deles. É o uso da palavra que dá vida e existência a estes indivíduos e que determina seu significado e entendimento por parte da comunidade escolar. No entrelaçamento com o poder, as práticas e os jogos de poder-linguagem produzem o portador de altas habilidades em matemática, embasados em necessidades de uso, de desejos e de valores, e mais do que isto, embasados em regras estabelecidas socialmente. Podemos dizer também, que tanto Wittgenstein quanto Foucault afirmam que os conceitos e discursos não são constituídos por uma estrutura racional engessada, bem pelo contrário, são subprodutos de práticas localizadas espaço-temporalmente. Frente a estas formulações é que acreditamos ser possível falar em altas habilidades na atualidade, pois é este ponto de vista que nos permite “ter em mente” e significar aquele sujeito (indivíduo) que nomeamos como portador de altas habilidades. Como argumenta Wittgenstein (2008, §37), é na relação entre o nome e o denominado que consiste o fato de que “a audição do nome nos traz à mente a imagem do denominado”. Assim, somente através dos discursos e da linguagem é que “posso ter em mente algo como algo” (2008, p. 35). Desta forma, o portador de altas habilidades não teria significado se nada lhe correspondesse. O que temos na contemporaneidade é um sujeito dito portador de altas habilidades produzido por jogos de poder-linguagem que o molda e lhe dá forma. Para compreendermos melhor como isso se dá, podemos olhar para o conjunto de falas dos sujeitos que constitui parte do material empírico desta pesquisa. Ratificamos que as falas nas quais nos apoiamos para esta discussão não são manifestações individuais dos sujeitos da pesquisa e sim coletivas, uma vez que tais falas são ressonâncias e obedecem a regras situadas espaçotemporalmente, afinadas com os jogos de poder-linguagem, regimes de verdade e relações de poder-saber que as fazem emergir.


7 A redação deste artigo mantém em sigilo, em todas as suas instâncias, a identidade dos sujeitos, optando pela utilização de nomes fictícios. 8 Os excertos do Diário de Campo sempre serão apresentados entre aspas e em itálico, a fim de destacá-los do restante do texto.

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Quando a professora da SIR/AH, com a intenção de sustentar e justificar a participação do aluno Daniel7 nas atividades da SIR, o descreve como sendo um aluno “tranquilo, fala baixo e pausadamente, carinhoso, educado, bastante apegado à mãe. Muito preocupado com a sua aparência, pois está sempre bem arrumado e penteado. Desenvolve as tarefas com capricho e atenção até concluílas e sempre que fica alguns instantes sem nova orientação, procura jogos de desafios para se entreter. Gosta de ter a atenção dos adultos voltada para ele.”8 ; ou ainda, quando nos argumenta que a seleção do Thomas deu-se por ele ser um aluno “agitado, impaciente, fala alto, brincalhão e afetivo com as pessoas. Envolve-se com as tarefas, mas não parece ter muito prazer quando estas envolvem produções artísticas. Não gosta de desafios e prefere agir a planejar. Sabe se virar sozinho e é corajoso. A mãe sempre leu para ele.”; a nosso ver, são estabelecidas as regras de seleção emaranhadas a um critério de conduta dos indivíduos. E não é apenas naquilo que é dito esta particularidade (a conduta) emerge. Se entendermos a ficha de observação a ser preenchida pelo professor como um jogo de poderlinguagem, fica evidente que grande parte dos itens também estão afinados a um regramento, a um modo de ser e de agir que se avalia segundo a conduta. Analisando as alíneas da Ficha de Observação do Professor, podemos encontrar expressões como “solitários, engraçados, arteiros, sensíveis aos outros, persistentes, compromissados, bondoso” entre outras. Cabe colocar que, de acordo com a professora da SIR/AH, para um estudante ser apontado como portador de altas habilidades em matemática ele deve ser mencionado em pelo menos três dos itens abaixo: ora 2, 9, 11, 18 e/ou 22.

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FICHA DE ITENS PARA OBSERVAÇÃO EM SALA DE AULA Data: _____ / _____ / _____ Escola: _________________________________________________________ Turma: ________ Professor: ______________________________________________________ Disciplina: ______________________________________________________ Telefone: _____________________ Email: ___________________________ Indique em cada item os dois alunos de sua turma, menino ou menina, que, na sua opinião, apresentam as seguintes características: 1) Os melhores da turma nas áreas de linguagem, comunicação e expressão: 2) Os melhores nas áreas de matemática e ciências: 3) Os melhores nas áreas de arte e educação artística: 4) Os melhores em atividades extracurriculares: 5) Mais verbais, falantes e conversadores: 6) Mais curiosos, interessados, perguntadores: 7) Mais participantes e presentes em tudo, dentro e fora da sala de aula: 8) Mais críticos com os outros e consigo próprios: 9) De melhor memória, aprendem e fixam com facilidade: 10) Mais persistentes, compromissados, chegam ao fim do que fazem: 11) Mais independentes, que iniciam o próprio trabalho e fazem sozinhos: 12) Mais entediados, desinteressados, mas não necessariamente atrasados: 13) Mais originais e criativos: 14) Mais sensíveis aos outros e bondosos para com os colegas: 15) Preocupados com o bem-estar dos outros: 16) Mais seguros e confiantes em si mesmos: 17) Mais ativos, perspicazes, observadores: 18) Mais capazes de pensar e tirar conclusões: 19) Mais simpáticos e queridos pelos colegas: 20) Mais solitários e ignorados: 21) Mais levados, engraçados, “arteiros”: 22) Que você considera mais inteligente 23) Com melhor desempenho em esportes e exercícios físicos 24) Que sobressaem em habilidades manuais e motoras: 25) Que produzem respostas inesperadas e pertinentes: 26) Capazes de liderar e passar energia própria para animar o grupo: 27) Existe em sua turma alguma criança com outros talentos especiais? Quais? Como manifestam seu talento estes dois últimos alunos? _____________________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________________ Comentários e observações que deseje fazer: _____________________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________________ Muito obrigada pela sua contribuição para esta pesquisa! Adaptada por Susana G. P. Barrera Pérez da ficha utilizada pelo Centro de Desenvolvimento de Talentos (CEDET) de Lavras (MG) e extraída do livro “Desenvolver capacidades e talentos: um conceito de inclusão” (GUENTHER, 2000, p.175-177). Fig. 1: Ficha de Itens para observação em sala de aula

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É interessante assinalar para o fato de que dentre os 27 itens que compõem a ficha acima, 20 deles estão baseados exclusivamente em condutas desejadas, enquanto os demais itens remetem a um comparativo entre os indivíduos da turma, o que podemos identificar pela expressão melhores em. “Os de melhor memória, que aprendem e fixam com mais facilidade, que são mais independentes, que iniciam o próprio trabalho e fazem sozinhos” estão entre os itens que identificam um possível portador de altas habilidades em matemática e que, muito embora estejamos tratando de uma área exata, também se referem à conduta dos indivíduos. Se alinhavarmos as características dos dois sujeitos, já apresentadas através de excertos, com as elencadas na ficha, veremos que as altas habilidades em matemática, de fato, não se dão mais através dos tradicionais aspectos cognitivos, mas se naturalizam por condutas expressas. E podemos dizer ainda mais: que as verdades que fundamentam estas práticas nada mais são do que jogos constituidores de uma objetividade para uma subjetividade daquele dito portador de altas habilidades em matemática. O que estamos procurando elucidar é que estas condutas, que podemos observar no âmbito das práticas escolares, são manifestações de seguir as regras dos jogos de poder-linguagem que constituem e são constituídos por estas práticas. Evidências disso também puderam ser identificadas a partir das entrevistas realizadas nas escolas ao longo do trabalho de campo. Quando visitamos as escolas com o objetivo de reconstruir os processos de seleção dos alunos D. e T., e de acompanhar um processo de seleção que estava em andamento – caso do M. – , buscávamos esclarecer junto às professoras sobre as razões pelos quais a escola intuía que estas crianças poderiam ser identificados como portadoras de altas habilidades em matemática. Em uma das escolas, a professora mencionou que “Em A20 [corresponde ao 2º ano do Ensino Fundamental de 9 anos] ele já tinha um excelente vocabulário para a sua idade e também, se destacava pela coesão de ideias na escrita, mas a apresentação (capricho) de suas tarefas sempre deixou a desejar” e complementou, dizendo que “ele sempre tem contribuições interessantes nas aulas [contudo

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não chegou a me relatar algo mais preciso] e se aborrece com as atividades repetitivas e as faz de qualquer jeito”. Ainda sobre este aluno, a supervisora da escola conseguiu lembrar aspectos que se relacionam com a matemática e contou que “em A20 ele já compreendia o Sistema de Numeração Decimal e explicava para os coleguinhas o que era o número 300: - É 3 vezes o 100, porque se 30 é 3 vezes o 10... 300 é 3 vezes o 100”. Afirmações semelhantes puderam ser observadas na escola de outro dos sujeitos, onde a sua professora do ano letivo anterior, acerca dos meus questionamentos, argumentou que “da matemática especificadamente eu não saberia te responder, eu percebia que ele tinha uma postura diferenciada em relação aos demais. Para todos os problemas que aconteciam com a turma ele tinha uma resposta diferente do senso comum e daqueles que a gente espera das crianças”; e complementando tal fala, a professora regente atual mencionou que “ele sempre teve umas tiradas interessantes, que surpreendem a gente em aula, que a gente não sabe da onde ele tira...”. Por fim, gostaríamos de registrar que o caso de uma terceira escola visitada não foi diferente, pois assim que a professora da SIR/AH solicitou as informações que constavam na pasta do aluno na escola, a supervisora respondeu apenas que “a pasta do aluno tem poucos registros, e os que existem apontam apenas para situações de conflito... isso tem muito e com um grau de violência grande...” A professora regente procurou justificar o pedido de avaliação do aluno pela SIR/ AH em função de que “ele não presta atenção nunca ou apenas quando quer. Ele não tem paciência para a maioria das coisas... quando quer faz rápido, mas sem detalhes e capricho”. Ponderando sobre estes excertos, arriscamo-nos a dizer que o discurso é explícito, pois não guarda significados ocultos e nem saberes sigilosos; pelo contrário, esclarece aquilo que deve ser percebido – neste caso, que as altas habilidades relacionam-se com certas condutas escolares e que são expressas pelos agentes escolares. Cabe destacas que essas condutas relacionam-se a aspectos fortemente negativos, como falta de interesse por parte do aluno; bem como extremamente positivas como desenvolvimento na escrita e na quantificação. E isto que deve ser tomado como dado, isto é, os regramentos que sustentam as práticas de


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seleção são aqueles que orientam comportamentais e servem de critérios para distinguir e procurar, por fora da média, o sujeito de altas habilidades segundo estados ou comportamentos adequados ou não. Não há como deixar de observar que, mesmo se tratando das ditas altas habilidades em matemática, características relacionadas a estas práticas não são exploradas com profundidade e valorizadas pelas professoras entrevistadas da mesma forma em que os outros tipos de condutas o são. Um exemplo disto é a valorização daqueles alunos que “produzem respostas inesperadas e pertinentes” (item 25 da Ficha de Observação) no ambiente escolar, não sendo necessariamente essas respostas vinculadas a um saber disciplinar e sim a uma prática qualquer. Considerando que o nosso campo de observação foram as práticas, é possível constatar que o sujeito das altas habilidades só se torna esse sujeito na sua conduta, uma vez que será esta que o definirá e o produzirá como tal. As condutas desses sujeitos operam a partir de regras, que também são constitutivas e constituintes dos jogos de poderlinguagem. Pensamos que estas condutas existentes no âmbito das práticas nada mais são do que a materialização de determinadas regras constituintes destes jogos de poderlinguagem. Dizendo de outra forma, são as condutas dão visibilidade às regras que operam no domínio das práticas. Pode-se apontar aqui, a descontinuidade das práticas discursivas das altas habilidades em matemática apontadas por Jelinek (2013). O discurso das altas habilidades nas práticas educacionais sofreram uma reatualização, que confere menor centralidade ao conhecimento disciplinar, ao quanto de matemática se sabe, e maior importância às condutas, ao quanto se faz. Pensamos que tal feito se justifica pela mudança no regramento dos jogos de poderlinguagem, influenciados pela (re)atualização dos regime de verdade do saber acerca da inteligência e das perspectivas educacionais contemporâneas em torno do saber-fazer. Cabe destacar que não estamos mais trabalhando com o quadro normativo de uma inteligência capaz de ser medida e sim qualificada. Se no século passado utilizavamse os testes de QI para “medir” o potencial cognitivo dos indivíduos, na contemporaneidade este não é mais um procedimento válido. As regras com as quais operamos na

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atualidade, afinada com a racionalidade neoliberal, fabrica os sujeitos de altas habilidades pelas suas características comportamentais desejáveis no mundo globalizado. A alteridade como um jogo de medida Desejamos retomar aqui ao critério comparativo para a seleção dos alunos de altas habilidades através da expressão “melhores em”, utilizada na Ficha de Observação do Professor (Fig. 1): “os melhores da turma nas áreas de linguagem, comunicação e expressão”, “os melhores nas áreas de matemática e ciências”, “os melhores nas áreas de arte e educação artística”, “os melhores em atividades extracurriculares”, “de melhor memória”, “com melhor desempenho em esportes”. Tais itens associados a ditos como “ele é um aluno diferenciado” ou “ele já chegou alfabetizado em A20, o que é uma raridade na Escola”, ou ainda, “ele sempre se destacou deste todo”, nos leva a ajuizar que a seleção dos portadores de altas habilidades dá-se, acima de tudo, baseada em uma regra que compara, que mede. Não é mais por um teste de QI, mede-se agora pela relevância ou discrepância da conduta em relação ao outro. Vale ponderar que características individualizantes são valorizadas e constituem de alguma forma a maior parte das questões que irão definir se um sujeito é ou não portador de altas habilidades. Contudo, dizer que um indivíduo é “solitário, perguntador, preocupado com os outros, confiantes em si”, entre outros itens da ficha, não garante por si só a identificação do mesmo como portador de altas habilidades e sua indicação para um trabalho de enriquecimento educativo. Como é na relação com o outro que se estabelece este comparativo temos, assim, uma relação de alteridade mediada pelos jogos de poder-linguagem imbricados às práticas de seleção, mobilizando regras de caráter meritocrático. Mesmo entendendo que os sujeitos das altas habilidades constituem-se a partir dessas práticas como sujeitos de uma suposta individualidade o mesmo irá se constituir numa comparação, numa relação consigo mesmo e com os outros. Muito embora o sistema educacional sustente uma valorização das diferenças e do múltiplo, o que temos


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de fato é uma constituição das diferenças, de nuances, em torno daquilo que se entende como portador de altas habilidades. Tal fato acentua-se quando compreendemos este viés meritocrático – condizente com o modo de pensar neoliberal contemporâneo e suas práticas de avaliação -, pois não existe nada além uma política de respeito às “diferenças”, muitas das quais supõem-se predadas, e de complementaridade e correspondências de competências entre os indivíduos. As regras destes jogos de poder-linguagem que movimentam as práticas das altas habilidades abarcam a questão da medida, logo, instauram como num método movimentos comparativos, de hierarquização, de ranqueamentos – conduzindo, inclusive, práticas no âmbito das instituições, auxiliando na produção e justificação de índices como o IDEB, PISA e outros. Desta forma, a prática de comparar é fundamental para perceber que o sujeito das altas habilidades não mais se constitui em relação ao teste de QI, pois as práticas contemporâneas não trabalham mais com testes padrão, mas sim como instrumentos como as Fichas, as quais passam a ter uma função diferenciada daqueles antigos testes. A comparação age como uma regra constitutiva dos jogos de poder-linguagem e das significações do possível sujeito das altas habilidades. Nas práticas escolares de identificação, a ficha operará como guia da observação, uma guia na comparação que vai ser estabelecida em relação ao outro e não mais em relação a uma norma de cunho unicamente teórico. A norma agora dá-se numa relação de uns indivíduos com os outros. E, como a comparação é útil ao governo das populações (FOUCAULT, 2008a) ela se mostra uma potente ferramenta para que possamos nos governar em relação a nós mesmos e aos outros, produzindo determinadas formas de conduta a partir destas comparações. O que faz a instituição escolar frente a isso? Procede aos regramentos estabelecidos nas práticas, isto é, busca em meio às múltiplas condutas a captura da singularidade, pois as regras das práticas das altas habilidades guiam, operando comparações. Nesse sentido, os jogos de poder-linguagem articulam discursividades que permitem inclusive que condutas nada semelhantes estejam associadas a uma mesma identidade.

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Dentre as alíneas da Ficha de Observação do Professor, é possível encontrar condutas como “mais simpáticos e queridos” e, logo abaixo, “mais solitários e ignorados”. Mas como sujeitos com características tão distintas podem estar incluídos dentro de uma mesma ficha que abarca características daquilo que se entende ser portador de altas habilidades? Como colocamos anteriormente, a ficha é um jogo de linguagem, é um jogo de poder, e ao analisar este jogo devemos atentar para as regras estabelecidas na configuração deste instrumento. Dentre estes regramentos coexistem não apenas o que se p[ode assemelhar ou comparar, mas também o que se pode contradizer – procedimentos estes que convergem e nos conduzem ao antigo método de busca de identidades e de captura das problemáticas diferenças como uma vez o enunciaram Platão e Aristóteles. Neste caso a identidade nomeada e produzida: portador de altas habilidades. De que serve esse sujeito de altas habilidades? A busca do governamento das condutas e as formas de vida contemporâneas Se considerarmos que os diferentes usos que fazemos das palavras são relevantes, compreendemos que os significados atribuídos à expressão portadores de altas habilidades, bem como os processos de identificação dos mesmos são produtos de reatualizações. Como temos visto em Jelinek (2013a, 2013b), essas reatualizações se deram a partir de diferentes racionalidades governamentais, isto é, a partir do que se compreendia ser a conduta necessária e justa do indivíduo para uma determinada sociedade, uma determinada época. O que temos na contemporaneidade é um processo inventivo das altas habilidades em torno de determinadas condutas, quais sejam: “mais independentes; mais persistentes e compromissados; críticos com os outros e consigo mesmos; mais originais e criativos; capazes de liderar” entre outras9 , isto é, condutas esperadas conforme um neoliberalismo contemporâneo que fomenta e sustenta que os indivíduos que detiverem tais características 9

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Itens que compõem a Ficha de Observação do Professor.


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maximizarão sua participação nos jogos do mercado. Como sustenta Foucault (2008b), a governamentalidade neoliberal – sobretudo aquela constituída a partir do neoliberalismo americano – investe na fabricação de sujeitos com o intuito de torná-los parceiros. Como as regras deste jogo atuam de forma a criar condições para que o maior número de pessoas se mantenha no jogo de mercado, é fundamental que os indivíduos atuem sobre si e sobre os outros para manter-se participantes e buscar soluções para as dificuldades que assolam a sociedade. Diríamos assim que a questão de governo está atrelada à questão do poder – em meio aos jogos de poderlinguagem – como forma de conduta. Se entendemos essa governamentalidade neoliberal como um conjunto de técnicas que nos levam a nos conduzir de uma determinada forma e não de outra, o que temos na contemporaneidade é que, a partir de algumas características dos sujeitos possíveis pensa-se quais os jogos serão os necessários, em meio às formas de vida atuais, a fim de se produzir os sujeitos que se deseja. Na contemporaneidade, se o que se deseja é tornar os indivíduos capazes de se autogovernarem, torna-se fundamental fomentar condutas de excepcional observação, de uma dita abstração mais desenvolvida, de análise de acontecimentos sob diferentes enfoques, da mesma forma que são desejáveis atitudes de questionamento, de originalidade e divergência no campo das ideias. Tais atitudes não devem ser desconsideradas nas práticas escolares, uma vez que esta forma-sujeito é um anseio da sociedade contemporânea. Logo, tais condutas serão valorizadas por este movimento e outro qualquer que se proponha a selecionar pessoas que mais se adequem ao que está posto pela governamentalidade contemporânea. Em se tratando das altas habilidades, as mesmas não deixam de ser vistas como (a)normalidades necessárias a serem identificadas por meio de comparativos que tornam a subjetividade calculável, que “[...] tornam as pessoas sujeitas a que se façam coisas com elas – e que façam coisas a elas próprias – em nome de suas capacidades subjetivas” (ROSE, 1998, p. 39). Em Jelinek (2013), mostramos um conjunto de práticas que funcionam como condições de possibilidade para a emergência daquele que chamamos de portador de

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altas habilidades. Também discutimos de que modo, neste cenário contemporâneo, captura-se este indivíduo. Com efeito, as práticas nas quais se localizam as intencionalidades – e isso sob determinadas racionalidades – estipulam as condutas que os sujeitos podem apresentar. Portanto, o sujeito das altas habilidades em matemática não é anterior às práticas, mas é sustentado por uma rede complexa de relações. E é nesta conjuntura que podemos dizer que se dá o surgimento do objeto destas práticas e ”[...] para que dele se possa ‘dizer alguma coisa’ e, ainda, para que dele diversas pessoas possam dizer coisas diferentes” (FOUCAULT, 1995, p. 51). Concluindo, é este o sujeito dos jogos de poderlinguagem que se constitui nas práticas e que entendemos ser o sujeito portador de altas habilidades. É este indivíduo, submetido à linguagem e ao poder, produzido pelas verdades pedagógicas, através das quais se relaciona consigo mesmo e movimenta-se por meio de técnicas que o subjetivam e incitam a possuir desejos e intenções. Assim, como em um jogo, os indivíduos são interpelados por um conjunto de verdades discursivas e conduzidos a produzirem falas e condutas determinadas por regras, constituindo-se como portador de altas habilidades em matemática. Cabe reiterar que ele se constitui historicamente e socialmente. Digo que se constitui historicamente porque é constituído nas formas de vida das quais faz parte; e socialmente, por ser apreendido no coletivo – dado que os sentidos são coletivos. Em suma, quando buscamos a relação entre os sujeitos e as práticas, temos que: podemos entendê-las como jogos de poder-linguagem, ou seja, como atividades regradas e que produzem comportamentos em formas pedagógicas, uma vez que possuem uma função reguladora e fabricam – nelas e a partir delas – modos de ação e de condução nos sujeitos alunos e professores, inventando o denominado portador de altas habilidades. Referências: AURICH, G. R. (2011). Jogos de verdade na constituição do bom professor de matemática. Dissertation, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brazil.

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Filosóficas.

(M.



LIVRO DIDÁTICO DE MATEMÁTICA ~

E A PRODUÇAO DE SUJEITOS MASCULINOS Maria Aparecida Maia Hilzendeger Colégio João XXIII


Primeira Arithmetica para Meninos O livro didático Primeira Arithmetica para Meninos, de José Theodoro de Souza Lobo, editado pela Livraria Selbach, de J. R. da Fonseca & Cia (28ª edição), foi aprovado pelo Conselho de Instrução do Estado e por uma Comissão da Escola Militar do Rio Grande do Sul para ser adotado nas escolas públicas e particulares do Estado no século XIX. Não é mencionado na capa, ou mesmo no livro, o ano dessa edição.

Esse livro, de aproximadamente 13 cm x 18 cm, é numerado e assinado pela filha do autor, Marietta Lobo, e consta como número 3.532. Nele, há uma Carta-Parecer de Fernando Ferreira Gomes, datada de 8 de janeiro de 1874, e outra de Francisco Cabrita, datada de outubro de 1883. O livro apresenta um estudo sobre Tabuadas, contendo os algarismos segundo o Sistema Decimal indoarábico, a Tabela das Unidades e as Tabuadas de Somar, Diminuir, Multiplicar e Dividir. São representados os Números Romanos e suas respectivas regras, e a seguir são dados alguns exercícios de escrita e leitura sobre a numeração romana.

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Capa do Livro Didático Primeira Arithmetica para Meninos (28ª edição).

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Esse compêndio é composto por seis capítulos: Números Inteiros, Frações Decimais, Sistema Métrico Decimal, Divisores dos Números, Frações Ordinárias e Método de Redução à Unidade. Após cada capítulo, são oferecidos exercícios de “recapitulação” referentes às definições apresentadas. Depois do último capítulo, são apresentados 66 problemas como exercícios de “recapitulação geral”. Esse material também é composto por um apêndice sobre Metrologia, o qual apresenta uma tabela contendo o Sistema Métrico Francês, e finaliza com o índice. Um livro e uma mente inquietadora: a possibilidade de um novo olhar sob a lente da educação matemática Os objetos não se encontram no mundo à espera de alguém que venha estudá-los. Para um objeto ser pesquisado é preciso que uma mente inquietadora, munida de um aparato teórico fecundo, problematize algo de forma a constituí-lo em objeto de investigação. O olhar inventa o objeto e possibilita as interrogações sobre ele. Assim, parece que não existem velhos objetos, mas sim, olhares exaustivos (COSTA, 2002, p.152).

Ao observar o livro Primeira Arithmetica para meninos, várias foram as questões que surgiram e, com elas, o interesse por compreender: quais fatores contribuíram para que este livro fosse assim nomeado; se teria sido este material escrito de acordo com a legislação da época; qual a importância do estudo da aritmética para as meninas nesta sociedade... Assim, com uma mente inquieta, desenvolvi a dissertação com base na questão: de que maneira os discursos sobre masculinidade, presentes no livro didático Primeira Arithmetica para Meninos, fabricaram formas de masculinidade na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul no século XIX? Ao aproximar a temática da masculinidade e o livro didático de matemática, o estudo se propôs a identificar e analisar os discursos sobre masculinidade presentes no livro citado, considerando que, de alguma maneira, eles contribuíram para a constituição das masculinidades no contexto histórico-social na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul no século XIX. Para a leitura analítica desses

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1 O t ermo pós-est rut ural i sm o su rgi u n o s Estado s U n id o s , n a d éc ad a d e 1 96 0, para d esigna r u m co n ju n to de pen sad o r e s , e n t re eles, M ic hael Fouc ault , que co m parti l h avam a i n tenç ão d e tomar “d ist ânc ia d e um mov ime n to qu e ti vera seu au ge e m to r n o d e 1 96 6, ou sej a, o ‘ est rut uralismo ’” (NASC IMENTO, 2008, p. 109). 2 A opção pela leitura monumental se dá pelo fato de que, “em nossos dias, a história é o que transforma os documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos” (FOUCAULT, 2008, p. 8). 3 “Sejam textos verbais, sejam textos imagéticos, ou sejam quaisquer outros, é preciso estar alfabetizado na linguagem respectiva, é preciso decifrar seus símbolos, entrar na sua lógica, conhecer sua gramática, para aprender os significados que entre nós e eles circulam no momento em que lemos tais textos” (VEIGA-NETO, 2007, p.104).

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discursos, apoiei-me em autores que são nomeados como pós-estruturalistas1. Questionando como certas “verdades” foram construídas, fabricando modos de ser menino, utilizei alguns conceitos de inspiração foucaultiana, entre eles: sujeito, discurso, relações de poder e regimes de verdade. Compreendo que, nessa perspectiva, o sujeito é efeito do discurso e que por meio de relações de poder estes discursos produzem significados que são aceitos como verdadeiros pela sociedade em um determinado momento histórico. Metodologicamente, foi desenvolvido um movimento denominado analítico-descritivo-analítico por documentar e sistematizar um conjunto de informações, focadas inicialmente no livro didático Primeira Arithmetica para Meninos e ampliadas na Legislação estabelecida para a educação na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul no período Imperial, nas cartas-parecer presentes neste livro didático e no manual de civilidade Código do Bom-Tom (ROQUETTE, 1997), reunindo descrição, embasamento teórico e análise do material coletado. Estes materiais empíricos foram tomados como monumentos2 no sentido foucaultiano, considerando nesta leitura a importância em conhecer a gramática3 do texto analisado. Neste trabalho, foram utilizados como ferramenta teórica e analítica o conceito de masculinidade, apoiado em Kimmel (1998), e o conceito de gênero, segundo Louro (1997), entre outros.

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Relações de gênero e suas implicações constituição de verdades sobre modos de ser menino

na

É necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico. Para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos. O debate vai se constituir, então, através de uma nova linguagem, na qual o gênero será um conceito fundamental (LOURO, 1997, p. 21).

Joan Scott, feminista e historiadora social norte-americana, apresenta o conceito de gênero, enfatizando que o núcleo da definição repousa numa conexão integral entre duas proposições: (1) o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) gênero é uma primeira forma de dar significado às relações de poder (SCOTT, 1995, p. 86).

Para Louro (2008, p.18), “ser homem ou mulher constituem-se em processos que acontecem no âmbito da cultura”, mediante os discursos da escola, da igreja, da ciência, das leis, etc., sendo estes “diferentes de uma cultura para a outra, de uma época e de uma geração para a outra”. Esta construção é realizada “ao longo de toda a vida, continuamente, infindavelmente”. Neste trabalho, o conceito de gênero é tratado não por seu aspecto biológico ou naturalizante, mas pelo seu viés histórico-social. Considera-se que a construção dos gêneros é desenvolvida por meio de múltiplas aprendizagens e práticas, de acordo com cada cultura, momento histórico e ao longo da vida, indicando também as relações de poder existentes entre os sujeitos. Da mesma forma, o conceito de masculinidade não é abordado pelo seu viés essencialista, “natural”. Apoiada em Kimmel (1998, p. 106), considero que masculinidade deve

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ser abordada “como um conjunto de significados e comportamentos fluidos e em constante mudança”, plural, reconhecendo-se que “masculinidade significa diferentes coisas para diferentes grupos de homens em diferentes momentos” e que “nem todas as masculinidades são criadas igualmente”. Sendo assim, dada a importância do contexto histórico-social na constituição de meninos e meninas da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, no século XIX, compreende-se que currículos, leis, normas e materiais didáticos participam dessa construção, pois são constituídos por essas distinções de gênero, sendo, ao mesmo tempo, seus produtores. Por isso o livro didático de matemática é tomado como um artefato cultural, dado que sua construção, produção e veiculação estão diretamente relacionadas a práticas sociais situadas em um contexto histórico, o que faz com que essa construção, produção e veiculação tenham relação com a própria história da educação escolar. Para compreender as condições históricas em que o livro didático Primeira Arithmetica para meninos foi produzido, se faz necessário compreender como foi desenvolvida a escola elementar no Brasil e, nela, o ensino de matemática. Para isso, foi analisada a legislação brasileira, considerandose que é a legislação que direciona o ensino elementar brasileiro relativo ao currículo oficial, em cada período histórico. A primeira lei a tratar da instrução elementar no Brasil foi a Lei de Instrução Primária do Império, de 15 de outubro de 1827, promulgada por D. Pedro I, cujo título é “Manda crear escolas de primeiras letras em todas as cidades, villas e logares mais populosos do Império” (CURY, 2006, p.212). Esse decreto imperial propõe a criação de escolas de primeiras letras; com ele, oficializa-se o método mútuo, ou método de Lancaster, como método pedagógico a ser adotado no Brasil em todas as escolas. De acordo com esse decreto, em relação ao ensino de matemática, os conteúdos apresentados determinam, no art. 6º, que “os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações de arithmetica, pratica de quebrados, decimaes e proporções, as noções mais geraes de geometria pratica (...)” (CURY, 2006, p.212). Ao decretar que sejam criadas escolas para meninas nas cidades e “villas” mais populosas, em que os Presidentes em Conselho julgarem necessário, a lei determina que “as Mestras, além do declarado no art. 6º,

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com exclusão das noções de geometria e limitando a instrucção da arithmetica só ás suas quatro operações, ensinarão também as prendas que servem à economia domestica” (...) (CURY, 2006, p. 213, art. 12º). Assim, a primeira lei a tratar da instrução elementar no Brasil mostra a inclusão de meninos e meninas neste ensino e também uma distinção quanto aos conteúdos matemáticos a serem estudados. Para os meninos, há o estudo das quatro operações de aritmética, frações, decimais, proporções e noções gerais de geometria. Para as meninas, o estudo de Aritmética limitava-se às quatro operações. Esta Legislação, ao estruturar o ensino primário, estabelece em primeiro lugar o programa que será desenvolvido para os meninos, priorizando-os em relação às meninas. Em 1837, o presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Antônio Elzeario de Miranda e Britto, decretou e sancionou a Lei de Instrução Primária, que indicava, no artigo 1º, que as Escolas Públicas de instrução primária deveriam compreender a três classes de ensino: 1ª Leitura, e escripta, as quatro operaçoes de Arithmetica sobre números inteiros, fracçoes ordinárias, e decimaes, e proporções, Princípios de Moral Cristã, e da Religião do estado, e a Grammatica da Língua Nacional. 2ª Noçoes geraes de Geometria theorica, e pratica. 3ª Elementos de Geographia, Francez, e Desenho (ARRAIADA, TAMBARA, 2004, p.15).

Essa Lei apresenta um currículo diferenciado para as meninas, pois é estabelecido, segundo o artigo 17º, que “nas Escolas Publicas de Instrucção Primaria das meninas serão ensinadas as matérias comprehendidas nos números 1º e 3º, do Artigo 1º menos os Decimaes, e proporções, e a coser, bordar, e os mais misteres próprios da educação domestica” (ARRAIADA, TAMBARA, 2004, p. 18). Novamente, nota-se que a Lei aponta diferenças com relação ao ensino de matemática proposto aos meninos e às meninas, visto que esse ensino, para as meninas, se limita ao estudo das quatro operações e frações ordinárias, sendo excluído o ensino de números decimais, proporções e geometria teórica e prática. Se a educação feminina era desenvolvida na escola exclusivamente por mulheres, é pos-

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“As justificativas para as desigualdades precisam ser buscadas não nas diferenças biológicas (...), mas sim nos

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sível que essa distinção tenha sido mantida devido à falta de professoras com domínio desses conhecimentos matemáticos, visto que elas só tiveram uma professora pública quando Francisca Carolina do Prado Seixas foi empossada, em 1832 (FRANCO, 2000). Nesta Província, a legislação, mesmo com diferentes reformulações estabelecidas ao longo do século XIX, mostrou que o ensino primário determinado para as meninas esteve voltado à formação de uma mulher com habilidades para desenvolver funções relativas ao lar. Dando-se ênfase por várias décadas ao ensino de corte e costura e economia doméstica, as meninas tiveram como prioridade este conhecimento no lugar de conteúdos matemáticos, propostos e oportunizados somente aos meninos. Esta diferenciação atribuída ao currículo de matemática estava de acordo com as posições ocupadas por esses sujeitos na sociedade daquela época. Quanto às sanções atribuídas aos alunos e às alunas que apresentavam comportamento inadequado às normas da época, elas eram inicialmente direcionadas aos meninos. As sanções, quando mencionadas às meninas, eram escritas em parágrafos especiais, como um anexo em relação ao proposto aos meninos. Dessa forma, a legislação permite compreender que o processo de acompanhamento de alunos/as que não seguiam as regras estabelecidas buscou prioritariamente vigiar, controlar, regular e corrigir os garotos. Com relação aos livros didáticos adotados nas escolas públicas primárias na Província, no período Imperial, a legislação destaca que seriam admitidos nessas escolas somente os livros autorizados pelas autoridades competentes para esse fim. Compreendo, assim, que estes materiais foram vigiados e regulados por autoridades competentes, o que pode ser entendido como um mecanismo de controle sobre o desenvolvimento dessa educação escolar. Com relação às escolas particulares, também lhes cabia informar às autoridades sobre os compêndios adotados. Assim, meninos e meninas, por meio desses discursos diferenciados sobre gênero, foram conhecendo as suas posições sociais e formas de atuar na sociedade. Por isso, compreendo que

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arranjos sociais, na história, nas condições de acesso aos recursos da sociedade” (LOURO, 1997, p.22).

A Matemática no livro didático Após o estudo relativo à Legislação, tomo a introdução e os três primeiros capítulos do livro didático aqui considerado para descrever e analisar a forma como os conteúdos são apresentados, o que inclui analisar a teoria, os tipos de exercícios e a relação desse estudo com os métodos de ensino da época. Considero esta escolha suficiente para este estudo, já que esta sequência se mantém nos demais capítulos do livro. A introdução envolve o estudo dos algarismos indoarábicos; apresenta a tabela das unidades; as tabuadas, comuns na época para facilitar a memorização e o estudo dos Números Romanos. No capítulo I, destinado ao estudo dos Números Inteiros, entre os vários conceitos apresentados, são dados os conceitos de Matemática4 e de Arithmetica5. O capítulo II, das Frações Decimais, é dado como pré-requisito para o desenvolvimento do terceiro capítulo, Sistema Métrico Decimal, estudo que foi estabelecido em 1862, sendo permitido um período de 10 anos para uma substituição gradativa do sistema de pesos e medidas utilizado em todo o Império. Ao descrever e analisar estes capítulos, verifico que a ordem de desenvolvimento dos conteúdos neste livro é dada de acordo com a sequência: teoria, o que inclui definições e exemplos; exercícios do tipo questionários; exercícios orais; exercícios de fixação/cálculo e problemas de aplicação. Noto também que exercícios se aproximam dos desenvolvidos segundo o método mútuo, devido à valorização de tarefas caracterizadas como de memorização e/ou repetição/ fixação, comuns a este método. Ao abordar o estudo do Sistema Métrico Decimal, Souza Lobo apresenta várias ilustrações como recurso

4 “Mathematica é a sciencia que trata das grandezas que se pode medir” e “Grandeza é tudo que é capaz de augmento ou de diminuição; v. g. o comprimento, a superfície, etc.” (LOBO, s/d, p. 2). 5 Arithmetica é “a sciencia que trata das propriedades mais elementares dos números e das operações que directamente sobre elles se podem effectuar” (LOBO, s/d, p. 9).

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didático, recurso este estabelecido pela Legislação de 1883. Portanto, considero provável que essa atenção pedagógica possa estar relacionada à prática pedagógica desenvolvida segundo o método intuitivo, oficialmente estabelecido em 1881. Dessa forma, dadas estas considerações, acredito que este livro tenha sido produzido de acordo com discursos – de caráter legislativo – que sustentaram uma educação diferenciada em função do gênero. Destaco, também, que os conteúdos matemáticos que constam neste livro estão de acordo com o definido na legislação como sendo para o ensino dos meninos. Nome de autor

incansável numa época em que apenas escolas isoladas dispersas figuravam nos quadros da Diretoria de Instrução Pública, autor de livros que se tornaram clássicos no ensino primário do país, honrou sobremodo o magistério particular e público a que serviu (CORREIO DO POVO, 06/01/1946).

Com estes registros, percebo a valorização dada à pessoa, ao trabalho e à obra de Souza Lobo pela sociedade gaúcha no século XX. Este reconhecimento já era destacado nas cartas-parecer anexadas ao livro, após a folha de rosto.

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José Theodoro de Souza Lobo (1846-1913), portoalegrense, iniciou sua carreira como educador em Minas Gerais, enquanto seminarista. Formou-se engenheiro geógrafo pela Escola Central do Rio de Janeiro e, em Porto Alegre, desenvolveu sua carreira como professor de Matemática (elementar e superior). Ministrou aulas de Português, Francês e Latim. Foi professor e diretor de seu próprio colégio, lecionou Matemática na Escola Normal, local onde também exerceu o cargo de diretor. Foi diretor geral da Instrução Pública na Província, Inspetor de Ensino e, entre as obras didáticas que escreveu, publicou Primeira Arithmetica para Meninos, Segunda Arithmetica para Meninos e Segunda Arithmetica. O Correio do Povo, na década de 1940, destacou o homem, o professor, o inspetor, o autor, como: inteligente, generoso, admirável, notável e dedicado mestre, sendo ele

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Essa prática, comum nos livros da época, possibilitava maior legitimidade à obra. A primeira carta-parecer, de Fernando Ferreira Gomes, datada de 8 de janeiro de 1874, destaca a importância do livro Primeira Arithmetica para Meninos por prestar um grande auxílio ao ensino primário. Fernando Gomes, porto-alegrense - de acordo com Celia Ribeiro6 (2007) sua bisneta - estudou por dois anos Engenharia na Real Academia Militar do Rio de Janeiro. Com dificuldades financeiras, mas apresentando sólido conhecimento em matemática, tornou-se professor inicialmente no Rio de Janeiro e, posteriormente, em Porto Alegre. Em 1860, inaugurou o Colégio Gomes, escola particular para meninos que, em poucos anos, se tornou reconhecida pela qualidade de seu ensino e por possuir excelentes professores. Além de professor e administrador de seu colégio, Gomes lecionava em outras escolas, entre elas, escolas femininas. Participava de bancas examinadoras de final de ano e era também solicitado a dar pareceres sobre livros didáticos. Em 1876, Fernando Gomes, ao pensar na possibilidade de fechar a escola para dedicar-se somente às aulas, soube, em conversa com seu amigo e professor da sua escola, Souza Lobo, que abrir uma escola era o seu grande desejo. Assim, Fernando Gomes planejou, em dezembro de 1876, o fechamento de seu estabelecimento de instrução primária e secundária. Na mesma ocasião, foi divulgada matéria editorial no jornal A Reforma sobre o novo Colégio Souza Lobo, que estaria instalado em Porto Alegre em 15 de janeiro de 1877. O novo colégio contou com o apoio de Fernando Gomes, já que este daria continuidade ao trabalho de qualidade desenvolvido por Gomes na Província em relação à educação de meninos e o teria como um de seus professores. Francisco Cabrita, em sua carta-parecer, também manifesta a importância do livro Primeira Arithmetica para meninos no ensino primário, salientando que esta obra, em menos de nove anos, já teria atingido a 8ª edição. Sendo esta carta assinada em 1883, dado o fato de ser comum à época uma edição por ano, penso que a 1ª edição deste livro tenha ocorrido entre 1875 e 1876, período este muito próximo do fechamento do Colégio Gomes e da inauguração do 6

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Jornalista e colunista do jornal Zero Hora.


“o facto de se poder dizer “isto foi escrito por fulano” ou “tal indivíduo é o autor”, indica que esse discurso não é um discurso quotidiano, indiferente, um discurso flutuante e passageiro, imediatamente consumível, mas que se trata de um discurso que deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura, receber um certo estatuto” (FOUCAULT, 2001, p.45).

A invisibilidade feminina Para compreender as relações estabelecidas entre os gêneros, lanço um primeiro olhar aos discursos que

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Colégio Souza Lobo. A carta de Cabrita também apresenta sugestões para as edições posteriores do livro, como: ampliar o estudo sobre Divisibilidade dos Números, eliminar os quatro últimos capítulos do livro, desenvolver o capítulo que tem por título “Methodo de reducção á unidade” e finalizar o estudo com variadas questões. Por ter analisado o livro cuja edição é posterior ao parecer dado, posso afirmar somente que é amplo o estudo sobre Divisibilidade e Método de Redução à Unidade, devido à apresentação da teoria, complementada por exercícios e problemas de aplicação. Finalizando o estudo, Souza Lobo propõe 66 problemas de Recapitulação Geral, envolvendo os conteúdos abordados no livro, o que pode significar que alterações foram feitas após a sua 8ª edição. Nesta análise, suponho que Primeira Arithmetica para Meninos tenha sido desenvolvido para orientar o ensino de crianças do gênero masculino, dado o interesse do autor em utilizá-lo no Colégio Souza Lobo, uma escola para meninos. Novamente, observo que alguns conteúdos presentes neste livro não coincidiam com os possibilitados às meninas, segundo a legislação sobre o ensino primário na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul naquele período. Ao considerar que a obra tenha sido escrita para a educação/instrução de meninos, permito-me analisar os discursos sobre masculinidade presentes neste manual, compreendendo que estes discursos não são criados pelo seu autor, pois ele é somente um sujeito capturado por discursos que circulam na sociedade, de acordo com certas verdades, devido a relações de poder. Porém,

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circulam neste livro sobre a constituição de feminilidades. Verifico que, entre os 374 exercícios analisados, apenas oito mencionam uma identidade feminina, referindo-se: a uma dona-de-casa; a trabalhos manuais; à remuneração salarial, que, no exercício dado, é inferior quando comparada ao ganho masculino. Ao desenvolver problemas relacionando mulheres às atividades manuais, o livro demonstra estar condizente com o proposto pela Legislação da Província, de acordo com a prática de trabalhos manuais desenvolvida nas escolas femininas. Na Escola Normal, as futuras professoras também aprendiam estas tarefas no lugar de Aritmética Avançada e Álgebra (conteúdos “masculinos”). Aproximo o livro didático e a Legislação ao Código do bom-tom7 ou regras da civilidade e de bem viver no século XIX, de Roquette (1997). Este manual defendia uma educação diferenciada em função do gênero, determinando regras distintas para meninos e meninas. Nele, para apresentar um comportamento adequado, as meninas deveriam ser modestas, recatadas, silenciosas, frágeis, suaves e amáveis e valorizar atividades como jardinagem e “obras de mão”. Foram mencionadas no livro as seguintes atividades profissionais: costureira, modista e tecelã, atividades que podem ser desenvolvidas no espaço doméstico, não necessitando maior desenvolvimento intelectual. Dada a baixa qualificação para o trabalho, oportunidades profissionais também são restritas e, consequentemente, há uma menor remuneração salarial. Desta forma, estes discursos posicionam as mulheres no lugar privado – o doméstico. Ao mencionar a identidade feminina em apenas oito exercícios, compreendo que este material tenha colaborado com a produção de um feminino integrante de uma “cultura negada”, utilizando-se de mecanismos/estratégias de poder que valorizaram o silenciamento sobre as mulheres a fim de garantir uma determinada invisibilidade feminina, mantendo a visibilidade, o poder e a ordem social masculina. Assim, foram estes os saberes produzidos e veiculados em um livro didático destinado ao estudo de Aritmética para meninos.

7 Este manual era conhecido no Colégio Gomes pelos alunos que faziam a sua leitura.

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Os meninos da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul Considerando que as masculinidades são socialmente construídas, variam de cultura para cultura e em um determinado momento histórico e que esta é uma construção imersa em relações de poder, identifico e analiso discursos que foram produzidos, estabelecidos e veiculados no livro didático Primeira Arithmetica para meninos, de acordo com quatro aspectos:

2º - Personalidades Históricas Souza Lobo cita, em seu livro, somente nomes próprios masculinos; entre eles, nomes de personalidades históricas: Luiz XIV, Felippe I, Luiz IX, Benjamim Franklin, Christovão Colombo, Napoleão Bonaparte e Carlos Magno. Ao referir-se a estes nomes, Souza Lobo, em seus problemas, aponta homens que tiveram êxito, poder e liderança na Europa e EUA. Em Chassot (2006), constato que, entre os sete nomes citados, três estão na lista das 100 pessoas que mais influenciaram a humanidade: Christovão Colombo (9º), Napoleão (34º) e Carlos Magno (97º). Assim, compreendo que estes enunciados contribuíram para reforçar o poder político masculino, já exercido exclusivamente pelos homens na sociedade brasileira do século XIX. Da mesma forma, o conhecimento científico, com Benjamin Franklin, é anunciado. Esta área é

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1º - Atividades Profissionais Souza Lobo propõe, em seu livro, predominantemente, problemas relacionados a um ofício ou atividade profissional. Estas atividades são caracterizadas como sendo de força física, ação, agilidade, poder, cultura e razão, entre outras. Cito como exemplo as profissões: agricultor, obreiro, padeiro, viajante, professor, banqueiro. Para Nolasco (1995), a atividade profissional está relacionada a uma das principais referências para a constituição da masculinidade, pois é ela que estabelece a fronteira entre a vida pública (“universo masculino”) e a vida privada (“universo feminino”). Ao fixar-se o homem no espaço público, este passa a ocupar um lugar caracterizado como local de poder, política, cultura e razão. Portanto, a fusão homem-trabalho tornou-se uma importante referência na constituição dessa masculinidade.

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predominantemente masculina, dada a baixíssima presença feminina na história da Ciência, já que algumas mulheres publicaram, ainda no século XIX, seus trabalhos matemáticos com pseudônimos masculinos. Isso demonstra o quanto a Matemática foi valorizada como um campo de saber masculino devido à invisibilidade feminina nessa área de conhecimento. 3º - Vinho Curiosamente, Souza Lobo também apresenta em seu livro questões/exercícios que mencionam o consumo do vinho. Na época, o vinho não era considerado uma bebida alcoólica, mas um alimento, um tônico para os músculos, estimulante para o espírito, pois com ele a pessoa teria alegria, força, mocidade e saúde! O manual de civilidade Código do bom-tom, ao recomendar uma alimentação diferenciada para homens e mulheres, também destacava que para eles esta bebida era permitida, mas recomendava às mulheres que não bebessem vinho até a idade de 40 anos, a não ser com recomendação médica. Sendo valorizado pela sociedade como um alimento masculino que possibilita desenvolver característica tão marcante para os homens – a força –, compreendo que Souza Lobo tenha incluído este elemento nos seus exercícios para trabalhar com os seus alunos, meninos, possibilitando a circulação deste discurso. 4º - Generosidade Souza Lobo também possibilitou que circulasse pelo seu livro didático discurso sobre generosidade. Nele, questões trataram de exemplificar ações relacionadas à doação, em dinheiro, para os pobres. Segundo Sampaio (1939), há a orientação para que este seja o primeiro hábito que o “professor deve incutir no caráter de seus alunos”, considerando que a melhor maneira de corrigir os “maus instintos” é favorecendo os bons. Para Pauchet (1934), a bondade é a mais bela das qualidades humanas, pois constitui a parte essencial da felicidade. Assim, com base nestes quatro focos, percebo que este livro didático contribuiu para fortalecer uma educação diferenciada para meninos, proporcionando significações sobre masculinidades. O distanciamento dado ao mundo feminino,

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permitindo a sua invisibilidade, em combinação com características masculinas (força, agilidade, ação, coragem, virilidade, conhecimento, razão...), remete à intenção de vigilância, controle, regulação dos meninos do Colégio Souza Lobo. Estes discursos, articulados às relações de poder, determinaram no meio escolar, por meio do livro, da legislação, dos manuais de civilidade, saberes que constituíram verdades sobre modos de ser menino nesta Província, no século XIX. Considerações Finais

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Mediante o exercício analítico-descritivo-analítico desenvolvido ao aproximar-se o livro didático das demais fontes de análise, constatei que o material analisado foi produzido intencionalmente para o ensino de Matemática de meninos, nesta Província, no século XIX. Este estudo possibilitou repensar minha prática pedagógica, reconhecendo, entre outros aspectos, que um livro didático de Matemática não é caracterizado apenas como um material neutro, previsível, fechado, composto unicamente por um discurso científico matemático. Hoje, noto que este material didático é regulado por uma diversidade de discursos (legislativo, gênero, raça, etnia, classe social, religioso) que permitem fixar diferenças e que, com elas, produzem desigualdades. Os discursos, ao privilegiarem, hierarquizarem e fixarem uma identidade masculina dada como normal, correta, natural, única, têm como objetivo garantir aos meninos uma masculinidade denominada hegemônica. Dando visibilidade aos discursos que circularam no livro didático, destaco a regularidade destes naquela sociedade, pois ganharam legitimidade de acordo com o proposto na legislação, além da orientação estabelecida no manual de civilidade. Sendo assim, se masculinidades e feminilidades são construções histórico-sociais e se o livro didático de matemática não é neutro, pois nele discursos são produzidos e veiculados, acredito na importância do desenvolvimento de novas pesquisas sobre essas temáticas, considerando os livros didáticos atuais.

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SUJEITOS DOCENTES IDENTIDADES E DISPOSITIVOS

Suelen Assunção Santos Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS – Brasil


Terrenos firmes? Entre tema e problema

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Este artigo tem por objetivo mostrar alguns percursos teóricos e metodológicos que perpassaram a construção de minha pesquisa de mestrado em Educação, desenvolvida no contexto do curso de Pedagogia, Licenciatura, modalidade a distância (PEAD), da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, quando de minha atuação como tutora. A questão investigativa proposta era: como o Portfólio de Aprendizagens, em relação ao jogo de verdade proposto pelo PEAD, produz maneiras de se pensar e ser professora que ensina matemática na Educação Infantil e nas Séries Iniciais? Essa questão foi motivada pelas minhas experiências no PEAD (UFRGS), mais especificamente, por atividades vinculadas à interdisciplina intitulada Representações do Mundo pela Matemática. Para realizar essa tarefa investigativa, tomaramse como material de análise as narrativas das alunasprofessoras do PEAD/UFRGS produzidas nos seus Portfólios de Aprendizagens, especialmente aquelas presentes na interdisciplina de matemática Representações do Mundo pela Matemática, constituindo-se, assim, significados sobre o saber pedagógico em educação matemática. A partir das relações de poder-saber estabelecidas no PEAD, foi possível perceber que as alunas são subjetivadas pelas práticas discursivas que ali (per)passam e que, desse modo, se constituem e constroem “novas” posições discursivas docentes. O curso de Pedagogia a distância, dessa forma, produz identidades e constitui sujeitas professoras que ensinam matemática a partir de mecanismos diversos, alguns dos quais se afirmam pelo caráter de “tecnologias do eu”, que, por sua vez, mobilizam modos de pensar ser professora a partir da escrita e narrativa de si. O Portfólio de Aprendizagens foi visto como um dispositivo pedagógico que possibilita a transformação do sujeito docente por meio da escrita e narrativa de si, isto é, como um dispositivo que opera tecnologias do eu. A escolha da temática de pesquisa delineou-se por minha própria história. Assim, garante-se a impossibilidade de “separar” a história de minha vida da história de minha pesquisa. Ambas se misturam, se formam e se transformam uma na outra; elas constituem uma à outra. Enquanto escrevo, dou sentido ao que sou e ao que me acontece.

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Não tomo as palavras como vazias de sentido, mas repletas de certa intencionalidade. Isto porque, simplesmente, […] não existe uma visão ou entendimento a partir de “lugar nenhum”, isto é, não é possível qualquer (tipo de) pensamento e conhecimento que não esteja sempre comprometido com a posição daquele que pensa, conhece e fala; é impossível pensar, conhecer e falar independentemente de agenciamentos, interesses, valores e forças sociais (VEIGA-NETO; LOPES, 2007, p.4).

Assim, assumo o papel não-neutro de pesquisadora. A partir de minhas experiências, a seção escrita tenta justificar e dar sentido à escolha do meu tema – como se isso fosse possível. Tenta situar, portanto, o instante identitário no qual penso que estou posicionada. Quando trato do instante identitário, é porque assumo não poder fixar minha identidade a partir de uma suposta linearidade e continuidade cronológica de experiências. Trata-se de mostrar o que penso que sou enquanto escrevo. Mostrar minha relação com a educação matemática em várias instâncias de mim mesma e de minhas (trans)(de)formações. Mostrar como me tornei o que penso que sou, o que me aconteceu e quais os efeitos destes acontecimentos. É importante destacar que sempre busquei cursos de formação porque procurava por aperfeiçoamentos, com a esperança de encontrar terrenos firmes em assuntos e práticas relacionadas à educação matemática. A ludicidade no ensino da matemática, por exemplo, foi uma temática amplamente difundida em minha formação acadêmica e, portanto, enraizada em minha ociosa mente. Esse discurso de cunho construtivista era a “chave” para tornar o ensino da matemática prazeroso e efetivo, juntamente com o discurso crítico de “dar voz ao aluno” e respeitar e valorizar “seus saberes matemáticos não-formais”. Diante dessas verdades, eu estava segura, pois conhecia as regras do jogo. Os terrenos firmes, portanto, acabaram por transformar-se em areia movediça quando iniciei, junto a disciplinas PEC-UFRGS, estudos na perspectiva pósestruturalista. Não se tratava mais de conhecer a verdade sobre a educação matemática, mas de colocar todas em suspenso, tentando perceber as condições que possibilitaram o estabelecimento destas verdades e não de outras


(conhecer os regimes de verdade, como diria Foucault). Foucault, como dizem, foi perverso comigo também. Sua perspectiva perversa fez desmoronar meu chão, pois destruiu conceitos e verdades. Não, na verdade, não foi isso que me aconteceu. A perspectiva pós-estruturalista não destrói, ela desconstrói a estrutura, criando fissuras para possibilitar ressignificar a verdade em sua multiplicidade. A verdade não é única, atemporal, a-histórica; é múltipla, é histórica, é do tempo. Há, portanto, em minhas vivências, um fazer-se de novo constante, com muitas posições de sujeito. Admitindo nossa racionalidade histórica, ou seja, que estamos inapelavelmente imersos em culturas cujos discursos e práticas nos instituem como sujeitos históricos que somos, interessa-nos procurar compreender os processos que nos constituem e nos quais nos constituímos (COSTA, 2005, p.206).

Areia movediça: desconstrução e mobilidade Precisamos demarcar que a lente teórica que sustentou esta pesquisa é a pós-estruturalista. Por isso, o que se entende por sujeito, mundo e linguagem esteve interpelado por essa perspectiva. À luz da perspectiva pós-estruturalista, o sujeito não é anterior ao discurso, e sim efeito dele. Se falo ou escrevo sobre o sujeito, é porque existe um discurso anterior a ele que me possibilita identificá-lo. Dessa forma, “[...] o sujeito não é o dono de uma intenção comunicativa, como se fosse capaz de se posicionar de fora desse discurso para sobre ele falar” (VEIGA-NETO, 2005, p.110). Quando afirmo que somos produto do discurso – e não autores –, que nosso pensamento é constituído por

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

As alunas-professoras do PEAD, em relação às formas de se pensar e ser professoras que ensinam matemática, também assumem determinadas posições, e, para analisar tais constituições, vale percorrer os caminhos ou práticas discursivas que as produziram e posicionaram em determinadas formas. Assim, a pesquisa objetivava perceber como o Portfólio de Aprendizagens, em relação ao jogo de verdade proposto pelo PEAD, produz maneiras de se pensar e ser professora que ensina matemática na Educação Infantil e Séries Iniciais.

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palavras, é porque os jogos de linguagem são o que tornam possível o nosso pensamento. Nós já nascemos num mundo em que as palavras e a linguagem estão circulando. “Isso significa que estamos sozinhos com nós mesmos, dependentes daquilo que produzimos social-cultural-lingüisticamente” (VEIGA-NETO, LOPES, 2007, p.4). Desse modo, a perspectiva pós-estruturalista renuncia à ambição à transcendência e deseja ser bem mais modesta (e pragmática) que as filosofias da representação. O sujeito é efeito do discurso e do poder. Tornar-se sujeito significa, portanto, ser produzido ou fabricado por redes discursivas, por jogos de verdade. Tornar-se sujeito de determinadas ideias e ideais significa ser fabricado em meio a relações de poder ao ser seduzido sutilmente. O mundo pós-moderno, fragmentado e globalizado, dá ao sujeito múltiplas possibilidades de (trans)formações. Podemos assumir múltiplas identidades dentre tantas disponíveis no mundo e divulgadas pela mídia. Reconheço a ambivalência do termo identidade e, mais ainda, da composição linguística múltiplas identidades. Aqui, identidade está sendo entendida como um quebracabeça. [...] há um monte de pecinhas na mesa que você espera poder juntar formando um todo significativo – mas a imagem que deverá aparecer ao fim do seu trabalho não é dada antecipadamente, de modo que você não pode ter certeza de ter todas as peças necessárias para montá-la, de haver selecionado as peças certas, de as ter colocado no lugar adequado ou de que elas realmente se encaixam para formar a figura final (BAUMAN, 2005, p.55).

O sujeito da pós-modernidade é marcado por uma identidade fluida e cambiante, é marcado por múltiplas identidades, fragmentado e descentrado, constituído de dobras fabricadas também por uma sociedade fragmentada, descentralizada e em contínua evolução tecnológica. A princípio, parece haver uma autonomia do sujeito em escolher suas peças, porém, suas escolhas estão imbricadas pelo tempo histórico que constitui seu espaço de possibilidades. O tempo histórico em que vivemos, a pósmodernidade, implica a compreensão de uma nova lógica – também articulada às possibilidades do ciberespaço. A pós-

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Seu cristo é judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é italiana. Sua democracia, grega. Seu café, brasileiro. Seu feriado, turco. Seus algarismos, arábicos. Suas letras, latinas. Só o seu vizinho é estrangeiro (BAUMAN, 2005, p.33).

O PEAD produz cultura, modos de ser professora e

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modernidade contraria as normas da modernidade, que tem as ideias de “[...] razão, ciência, racionalidade e progresso [...]” (SILVA, 2000a, p.111) no centro de seu pensamento. A busca de uma razão universal, idealizada pela modernidade e objetivada pela ciência, possui “[...] como base a crença de que problemas humanos e sociais podem ser equacionados quase que matematicamente, ou seja, a solução depende tão somente de determinação racional, individual e social” (MONTEIRO, SPELLES, 1999, p.212). A pós-modernidade, em contraposição, “[...] vê o mundo como contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível, um conjunto de culturas ou interpretações desunificadas [...]” (EAGLETON, 1998, p.7), desconfiando da objetividade da verdade, da história, das normas e da coerência das identidades. Entre as novas “maneiras de pensar” que a pós-modernidade suscita, entendo que a ressignificação do espaço e do tempo tem um papel destacado, principalmente pelo advento do ciberespaço na contemporaneidade. Segundo Saraiva (2006, p.64), “na imaterialidade do ciberespaço, os sujeitos estão vivendo novas experiências que não seriam possíveis num mundo material [...], a internet está sendo utilizada como um laboratório para realizar experiências com a subjetividade e a identidade”. Subjetividades estão se constituindo continuamente no sujeito extraterritorial. Por isso, “a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2006, p.13). Por consequência, possivelmente, da globalização e do advento das tecnologias, as identidades são contraditórias por conta também da fragilidade e curta duração das comunidades culturais. “No admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das seguranças frágeis, as identidades ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis, simplesmente não funcionam” (BAUMAN, 2005, p.33). São, inevitavelmente, muitas as possibilidades de “estar” no mundo hoje, e muitas as possibilidades de identificação que podemos vivenciar.

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modos de estar no ciberespaço e no mundo. A partir das relações de poder-saber estabelecidas no PEAD, as alunas são subjetivadas pelas práticas discursivas que ali (per)passam e que, desse modo, se constituem e constroem “novas” posições discursivas e identidades docentes. O Portfólio de Aprendizagens foi visto como um mecanismo que possibilita a transformação do sujeito por meio da escrita e da narrativa de si, portanto, como um dispositivo que opera tecnologias do eu. O sujeito, quando fala ou escreve, o faz de um lugar e, portanto, não é dono livre dos seus atos discursivos. Por isso, é necessário mostrar as redes discursivas do PEAD e seus mecanismos de produção de sujeitas. O curso de Pedagogia a distância da UFRGS foi especialmente criado para graduar 400 professores em exercício que já atuavam nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental e na Educação Infantil. O curso, desenvolvido em oito eixos temáticos, teve um grande tema norteador, e as atividades desdobraram-se em interdisciplinas. Para fortalecer o caráter interdisciplinar da proposta do PEAD, aconteceu, no interior de cada eixo temático, uma interdisciplina, denominada Seminário Integrador, visando a articular todas as interdisciplinas correntes. O caráter curricular interdisciplinar do PEAD não deve ser minimizado como uma mera formalização-sistematização do programa, e sim visto como constituidor de modos de se pensar e de ser professora. Segundo Silva (2000a, p.15), geralmente em discussões centradas nas teorias do currículo, pensamos apenas em conhecimento, esquecendo-nos de que ali está uma questão de identidade ou de subjetividade, “[...] esquecendo-nos de que o conhecimento que constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa subjetividade”. Da perspectiva pós-estruturalista, podemos dizer que o currículo e as teorias do currículo são uma questão de poder, visto que selecionam, classificam, estruturam e privilegiam determinados conhecimentos. Dessa forma, também sugerem uma forma ideal de “ser professor” entre múltiplas possibilidades de identidades e subjetividades (SILVA, 2000a). O curso de Pedagogia conta com o Portfólio de Aprendizagens como um mecanismo de autoavaliação


Que permitem aos indivíduos efetuar, por conta própria ou com a ajuda de outros, certo número de operações sobre seu corpo e sua alma, pensamentos, conduta, ou qualquer forma de ser, obtendo assim uma transformação de si mesmos com a finalidade de alcançar certo estado de felicidade, pureza, sabedoria ou imortalidade.

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

proposto pela “interdisciplina” denominada Seminário Integrado. O Portfólio constitui-se por um blog, que deve ser construído por meio do acúmulo de descrições das aprendizagens “significativas” das alunas-professoras em todas as interdisciplinas de cada eixo temático. Esse Portfólio constituiu-se no lócus do material empírico de minha pesquisa. Para “ver” o Portfólio de Aprendizagens e analisar as narrativas das alunas-professoras produzidas nesse ambiente, no que tange à interdisciplina Representações do Mundo pela Matemática, colocou-se a lente teórica pós-estruturalista, que permite considerá-lo como uma máquina produtiva, ou ainda, como um dispositivo pedagógico de produção de condutas. Por dispositivo pedagógico, entendem-se as práticas pedagógicas que “constroem e medeiam a relação do sujeito consigo mesmo” (LARROSA, 1994, p.36). Larrosa (1994), em seus estudos sobre tecnologias do eu, analisou práticas pedagógicas em que os indivíduos são “convidados” a elaborar uma relação “reflexiva” consigo mesmos. Considera que tais práticas garantem produzir e transformar a experiências que as pessoas têm de si mesmas – permitem uma autoformação. O conjunto das práticas pedagógicas escolhidas por Larrosa assume um fator comum: “[...] o importante não é que se aprenda algo ‘exterior’, um corpo de conhecimentos, mas que se elabore ou reelabore alguma forma de relação reflexiva do educando consigo mesmo” (LARROSA, 1994, p.36). Cabe antecipar um fato bastante interessante percebido no material empírico, ou seja, nas narrativas das alunas-professoras nos Portfólios de Aprendizagens: elas não relatam sobre um corpo de conhecimento exterior, por exemplo, o conhecimento matemático, seus conceitos e relações aritméticas e geométricas – assemelhando-se, dessa forma, às práticas escolhidas por Larrosa. Foucault (1991, p.48) define as tecnologias do eu como aquelas práticas

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Ou, ainda, tecnologias como [...] Procedimentos que são propostos ou prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de um certo número de fins, e graças a relações de autodomínio ou de autoconhecimento (FOUCAULT 1989 apud LARROSA, 1994, p.56).

Os Portfólios de Aprendizagens foram tomados como uma prática pedagógica que constrói e medeia a relação do sujeito consigo mesmo, ou seja, como um dispositivo pedagógico que opera tecnologias do eu: que incita ao narrar-se, julgar-se, dominar-se, decifrar-se, observar-se, na medida em que solicita “dedicação no auto-esclarecimento e na comunicação desse esclarecimento no Portfólio”1. A constituição do professor que ensina matemática, nesse sentido, seria inseparável da tecnologia do eu que o produz. Segundo Larrosa (1994, p.40), “[...] o sujeito constituise no que é por meio das práticas pedagógicas”. O Portfólio de Aprendizagens, dessa forma, não foi considerado como um mero espaço de possibilidades, como um simples espaço mediador onde as pessoas encontram os recursos para o pleno desenvolvimento de sua autoconsciência e sua autodeterminação. O Portfólio foi considerado como um mecanismo de produção da experiência que os docentes têm de si mesmos, “lugar” onde se “[...] estabelecem, se regulam e se modificam as relações do sujeito consigo mesmo e nas quais se constitui a experiência de si” (LARROSA, 1994, p.44). Conforme Aragón, Carvalho e Menezes (2007, p.31), o portfólio é [...] um instrumento de auto-avaliação e de avaliação coletiva. Dessa forma, a avaliação incorpora-se ao processo de construção do conhecimento, abandonando o seu caráter controlador, punitivo ou mesmo reforçador e passa a ser um elemento favorecedor das tomadas de consciência.

Para Larrosa, trata-se de um potente mecanismo de produção e regulação das posições identitárias dos sujeitos. Bello e Traversini (2008, p.51), no mesmo sentido, dizem que [...] atividades como atender às palavras, criticar as

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palavras, escolher as palavras, cuidar as palavras, inventar palavras, impor palavras, proibir palavras, etc., não são atividades neutras, ocas ou vazias, elas nos fazem pensar, perceber e sentir.

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O Portfólio, ao incitar relatos de aprendizagens, também produz pensamentos, percepções e sensações que, longe de serem autoconscientes, são produzidos por tal mecanismo de escrita de si. As alunas-professoras não poderiam falar qualquer coisa, de qualquer aprendizagem, pois há um regime de verdade que está aí, “[...] visões de verdade, usadas de formas que controlam e regulam” (GORE, 1994, p.10) Mediante a escrita, “desvelamo-nos, mostramos um pouco do que somos ou de quem pensamos momentaneamente que somos” (LOPONTE, 2005, p.115). O portfólio de aprendizagens possibilita essa escrita de si, essa prática de produção do “eu”, de identidades e de verdades. Um jogo de verdade pode ser entendido como uma rede que se apresenta ligada a sistemas de poder que a produzem e a apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. O poder, segundo Gore (1994, p.11), “[...] não é necessariamente repressivo, uma vez que incita, induz, seduz”. Segundo Veiga-Neto (2005), só há relações de poder entre sujeitos “livres”; livres para conduzirem a conduta dos outros e para serem seduzidos e conduzidos sutilmente. Por isso a ênfase na relação como processo bilateral de afetação. Não há poder sem relação, e só há relação na medida em que se pode convencer e negociar com o outro. O convencimento ou sedução, nesse sentido, está intimamente relacionado com o saber. Para seduzir ou, ainda, para controlar, precisa-se conhecer. O poder tem sempre uma vontade de verdade, uma vontade de legitimar um discurso. “Não existe relação de poder sem a constituição de um campo correlato de saber, assim como não existe saber que não pressuponha e constitua relações de poder” (SILVA, 2000c, p.91). O saber pedagógico em relação à matemática e à educação matemática também se revela como regimes de verdade na prática discursiva constituída no PEAD. O Portfólio de Aprendizagens, como um dispositivo pedagógico, funciona como uma tecnologia que produz modos de “ser” professor no interior desse regime, por meio de narrativas. As alunas-professoras, em suas descrições de

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aprendizagens significativas, aprendem a jogar o jogo da verdade do PEAD? Como elas estabelecem (ou não) uma linguagem que configura modos de se pensar e ser professoras que ensinam matemática? De que modo a “reflexão” constante, a partir da escrita de si constituída no Portfólio de Aprendizagens, produz determinadas posições identitárias docentes em relação à sua aula, aos seus alunos, à matemática e a si mesmas? Maquinaria Considerei como contexto de pesquisa o Portfólio de Aprendizagens, a partir do qual se deu a seleção do material empírico, que se constituiu por 38 Portfólios. Escolhi esse número porque forma o conjunto de alunas-professoras que foram acompanhadas por mim, como tutora, desde o início do curso. Iniciei, em ordem alfabética, a leitura dos Portfólios. Garimpei todas as postagens que possuíssem “matemática” no seu texto. Abaixo, uma sistematização: 1 – abri o primeiro Portfólio de Aprendizagens (começando da segunda metade do total de alunas), por meio do site: http://peadsaoleopoldo.pbworks.com/Portfólio-deAprendizagens; 2 – cliquei no ano de 2008; 3 – cliquei em março (início do semestre, eixo IV) [Símbolo] Assim o fiz para abril, maio, junho e julho de 2008. 4 – apareceram todas as postagens, de todas as “interdisciplinas”/marcadores; 5 – realizei o procedimento: CTRL+F; 6 – apareceu a janela “localizar” no canto superior da tela; 7 – digitei: “matem”; 8 – copiei, para um documento de texto, as postagens (CTRL+C) que contivessem a referida expressão; 9 – nesse documento de texto, destaquei (com o marcador de texto do próprio editor de texto) a ideia central de cada postagem; 10 – em uma planilha de texto, destaquei as ideias centrais numa coluna, e a quantidade de repetições de ideias em uma segunda coluna; 11 – assim, fabriquei categorias de recorrências nas narrativas das alunas-professoras (SANTOS, 2009, p.73).

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Torna-se necessário enunciar que esse passo a passo


metodológico serviu não para prescrever um método de pesquisa, mas para partilhar o não-partilhado por todos, romper com o senso comum metodológico e, portanto, romper com a construção e análise vigentes de um objeto científico. Ser descritiva, nesse caso, me foi necessário, mas não para incentivar os mesmos passos – muito pelo contrário, para justificar os recortes e dar sentido às conclusões. Meu método gerou uma forma de conceber meu tema, uma lógica própria que só tem sentido dentro desse conjunto de regras metodológicas, ainda passíveis de diferentes significações. Essa forma constituiu-se, primeiramente, em diversas categorias de recorrências nas narrativas das alunasprofessoras em seus Portfólios que se mostravam enlaçadas com as práticas e modos de se pensar e ser professoras que ensinam matemática. Essas recorrências discursivas são históricas, visto que os discursos o são e estes investem em práticas, em instituições, em técnicas e procedimentos que agem nos sujeitos. O discurso forma os objetos de que fala e, portanto, forma os sujeitos (FISCHER, 2002a, p.55).

[...] não passar do discurso para o seu núcleo interior e escondido, para o âmago de um pensamento ou de uma significação que se manifestariam nele; mas, a partir do próprio discurso, de sua aparição e de sua regularidade, passar às suas condições externas de possibilidade, àquilo que dá lugar à série aleatória desses acontecimentos e fixa suas fronteiras.

Contando suas histórias de aprendizagens, o que de fato as alunas-professoras fizeram foi posicionar-se no interior de uma rede discursiva que dá sentido ao “ser”

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

A regularidade de alguns discursos mostrou-se suficiente para dar sentido às narrativas das alunas por meio de categorias de análise, quais sejam: Eu crítico-construtivista, Eu reflexivo, Eu interdisciplinar. Durante toda a análise, no interior dos eixos, estiveram permeadas questões relacionadas à constituição do sujeito pedagógico que ensina matemática e vinculadas ao jogo de verdade do PEAD. O que se fez com esses ditos e escritos não foi uma análise interna ao discurso, como se este pudesse ser desvendado em seu fundamento maior. A ideia de exterioridade, segundo Foucault (2006d, p.53), é

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professora que ensina matemática. As narrativas das alunasprofessoras mostram textos de identidades. Não mostram sua subjetividade, até porque o Portfólio de Aprendizagens não é condição de constituição de subjetividades, e sim possibilidade de constituição. Assim, o que posso afirmar é que algumas posições de sujeitos docentes que ensinam matemática têm sido produzidas pelo PEAD, pela “interdisciplina” de matemática e pelo Portfólio de Aprendizagens. O Eu reflexivo O principal objetivo do Portfólio é estimular a “reflexão” sobre si mesmo, pontuada inclusive em seus documentos norteadores. Na medida em que a alunaprofessora é convidada a escrever, ela estaria comunicando suas aprendizagens, a fim de não esquecê-las, para poder retomá-las, reavaliá-las e autoavaliar-se a partir de uma prática reflexiva de (re)leitura.

A escrita, como é articulada ao discurso da necessidade de constante “reflexão” proposto pelo PEAD – no interior do dispositivo pedagógico do Portfólio – , funciona como uma “tecnologia do eu”, uma vez que orienta e conduz as sujeitas professoras que ensinam matemática, suas maneiras de pensar e de ser. Nesse trabalho de escolha de palavras, as alunas dão sentido à sua identidade de “ser” professora, constituindo-se mutuamente.

As professoras, nessa operação de autorreflexão, de repensar os escritos e os ditos, aprendem “[...] toda

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uma linguagem para falar de suas práticas e de si mesm[a] s em suas práticas matemáticas” (LARROSA, 2002, p.51), aprendem o vocabulário operado pelo PEAD e objetivado pelo Portfólio. Acabam constituindo um Eu reflexivo que repete os clichês ou reproduz as verdades vigentes em educação matemática. Deve haver um cuidado, uma exposição cuidadosa de nossos textos de identidades. Uma reflexão no sentido de uma relação de forças consigo mesmo, um dobrar-se. Afinal, é muito difícil pensar sobre o próprio pensamento, sobretudo em relação ao que ouvimos e lemos, àquilo que as pedagogias críticas nos levam a acreditar. O Eu crítico-construtivista

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Este eixo de análise procurou fazer articulações entre as narrativas das alunas-professoras, seus modos de se pensar e de ser professoras que ensinam matemática, com algumas unidades que tentam dar um sentido extralinguístico para a educação matemática e que, dessa forma, produzem posições identitárias de “ser” professor no interior dessa rede discursiva; por exemplo: • a ludicidade, que visa a um ensino prazeroso da matemática, ao prazer que, nesse caso, dá um sentido para a matemática; • a matemática para/da vida, que mostra que a matemática tem sentido pois “está em tudo”, no quotidiano, no mundo do trabalho, formando cidadãos participativos; • e o próprio construtivismo pedagógico, que materializa a matemática, dando-lhe um sentido por meio de materiais concretos e interação do sujeito com esses objetos. Sobre a “ludicidade”, os jogos para o ensino da matemática em sala de aula, em detrimento de conteúdos meramente formais ditos como “tradicionais”, mobilizam todo um vocabulário crítico-construtivista nos textos de identidades das alunas-professoras, constituindo seus modos de “ser” professoras que ensinam matemática.

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As alunas estão implicadas em um conjunto de regras. O Portfólio de Aprendizagens, na medida em que carrega um discurso pedagógico crítico e construtivista anterior à sua própria produção, também esclarece o que é passível de ser dito-pensado. A escrita de si funciona, nesse caso, como um exercício para que as sujeitas professoras “olhem” para si próprias com a finalidade de transformar-se em outro “eu” professor, no caso de minha analítica, para assumir a posição identitária docente crítico-construtivista. A vontade de concretização da matemática destaca-se dentre os ditos, assim como em materiais manipulativos agregados a softwares matemáticos. Nada é problematizado, e tudo parece naturalmente lógico. Sobre a “matemática para/da vida”, “partir do contexto do aluno” torna-se outro recorrente posicionamento; no entanto, essa questão pode ser problematizada a partir da perspectiva wittgensteiniana, já que o significado não possui essência, o que inviabiliza sua transferência para outros jogos de linguagem.

A possibilidade de formação ética do sujeito professor que ensina matemática depende das práticas que o produzem. Essas práticas, assim como o Portfólio de Aprendizagens, estão permeadas por regimes de verdade que conduzem os modos de se pensar e ser professoras que ensinam matemática. Um recheio interessante para essa prática seria a

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problematização dessa matemática etapista e progressiva que o discurso crítico-construtivista tanto propõe e, talvez, a formação de outros “eus”. Sobre o “Construtivismo pedagógico”, o raciocínio lógico-matemático, nessas narrativas, é considerado como o objetivo a ser atingido. O construtivismo, ao conferir ao raciocínio ‘abstrato” o status de único e universal, também está considerando que o desenvolvimento “total’ do sujeito está na aquisição do raciocínio (que se estabelece de forma sequencial e linear). No entanto, é preciso lembrar que o “raciocínio lógico-matemático é um produto histórico que segue um determinado modelo de pensamento, o qual passa a ser tomado como norma para a hierarquização de outros modos de produzir matemática” (KNIJNIK, WANDERER, 2007, p.13). Como um modelo de pensamento, padroniza e desclassifica outros modelos, tomando-os como diferentes e inferiores. Porém, segundo a perspectiva da virada linguística, nada é natural e tudo é constituído pela linguagem, sendo nada “naturalmente lógico”.

O Eu interdisciplinar A “interdisciplinaridade” é a proposta central do PEAD. A organização dos semestres, denominados eixos temáticos, e as disciplinas desmembrando-se em “‘interdisciplinas” são provas discursivas dessa proposta. O Portfólio, como um mecanismo central na avaliação das alunas-professoras, também funciona como um

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Na medida em que o professor pensa e age em relação ao ensino da matemática de modo a significá-la a partir de uma realidade matemática extralinguística, esse mesmo professor está sendo produzido para essa finalidade, guiado por um jogo de verdade instituído no interior de um dispositivo pedagógico.

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dispositivo “interdisciplinar”, fabricando modos de pensar “interdisciplinares” e transformando o “ser” professor em um “eu” interdisciplinar.

“Realmente existe uma interdisciplinaridade” pareceu ser um chavão entre as narrativas das alunas-professoras. Esse discurso desdobra-se, duplica-se e capilariza-se nos textos de identidades. Deve-se perceber que as alunas-professoras conseguem “ver” relações interdisciplinares entre conteúdos disciplinares, formando um novo corpo de “conhecimento mais totalizável”, assim como também conseguem perceber uma relação “profunda” entre as diferentes disciplinas. A paisagem escolar moderna é baseada em disciplinas, pois foi construída dentro da lógica da Ciência, abarcando, entre outros, o modelo de aluno autônomo – tão conhecido das pedagogias críticas. Esse modelo de sujeito é objetivado pela instituição escolar por meio de seu dispositivo disciplinar de formação do homem moderno. Para isso, alguns mecanismos são colocados em prática a fim de que cada sujeito passe a relacionar-se consigo mesmo e a desenvolver uma habilidade para reconhecer-se a si como um sujeito autônomo de pensamento. Ao longo do século XX, a disciplina passou a ser um eficiente dispositivo para objetificar o sujeito enquanto sujeitável ao poder disciplinar. A visão disciplinar da escola atualiza velhos mecanismos da direção e da confissão para saber a verdade mais íntima dos alunos. Estes, por sua vez, são seduzidos pela mecânica do governo disciplinar: inspiram-se a lembrar, a falar, a escrever, a reconhecer-se como determinados tipos de sujeitos. A escola, nesse sentido, os produz – produz, por meio do dispositivo disciplinar, esse sujeito autônomo e autocontrolado. O paradoxo diz respeito à vontade da não-disciplinarização, sendo que esta produz o sujeito mais caro da sociedade moderna e da pedagogia crítica: o sujeito autônomo e autocontrolado. Aprendem-se as regras do jogo, e a lógica se estabelece.


Discursos mudos e invisíveis Alguns discursos fizeram-se mudos e invisíveis nos Portfólios, haja vista sua incapacidade de recorrências. Alguns desses discursos dizem respeito à aprendizagem de um conteúdo matemático específico. Num curso de formação de professores que ensinam matemática, não deveriam constituir-se numa raridade as aprendizagens conteudistas. Esta categoria, a meu ver, deveria ser explorada e intencionalizada pelo Portfólio, como um espaço de produção de sujeitos que refletem sobre suas aprendizagens e elaboram uma relação reflexiva consigo mesmos em relação aos saberes matemáticos. A constituição do sujeito ético não se trata de um sujeito “educado para ver” o mundo, a si mesmo e a educação. Muito pelo contrário. O sujeito ético é aquele que considera sua própria experiência passível de problematização. (A)moral da história

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

O PEAD e o Portfólio de Aprendizagem, como prática social institucionalizada, estabelecem que tipos de histórias podem ser contados e produzem, por meio de tecnologias do eu, determinados tipos de sujeitos. Por isso, as narrativas das alunas-professoras seguiram as mesmas ideias epistemológico-metodológicas do jogo de verdade do PEAD e da “interdisciplina” de matemática: elas foram capturadas pela prática pedagógica do PEAD e por seus agregados mecanismos de assujeitamento. O ser humano, na medida em que mantém uma relação reflexiva consigo mesmo, não é senão o resultado dos mecanismos no quais essa relação se produz e se medeia (LARROSA, 1994). O que as alunasprofessoras fizeram ali “[...] foi aprender a ver-se e a dizer-se em função dos critérios normativos próprios da pedagogia em cuja lógica estavam se introduzindo” (LARROSA, 1994, p.78). As alunas-professoras aprenderam o que significa o jogo de linguagem do PEAD, sua lógica e regras de significações e como jogar legitimamente. O que se pôde perceber é que os saberes sobre a educação matemática estão articulados com os saberes do PEAD, funcionando como políticas de verdade na constituição da docente que ensina matemática. Essa constituição se dá

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por meio de textos de identidades que narram as práticas docentes, julgam sentidos ao ensino da matemática, transformam fazeres e dizeres, interdisciplinarizam saberes, práticas e professoralidades. A produção do sujeito docente, dessa forma, não escapa aos discursos subjetivantes da educação matemática e do PEAD. No entanto, não sejamos pessimistas. A partir da forma-sujeito instituída nas alunas-professoras, existe possibilidade de pensar e “ser” de outro modo, por meio de “outras” verdades, talvez não tão absolutas e pretensiosas? Há como questionar as inércias teóricas em relação à educação matemática e constituir-se como um sujeito ético que considera sua própria experiência passível de problematização? Haveria a possibilidade de intencionar o Portfólio de Aprendizagens como um dispositivo de produção de um “eu professor do ensino”, privilegiando, dessa forma, a reflexão sobre a maneira de regular a conduta, de fixar para si mesmo os fins e os meios? Deveria o PEAD, como modalidade de ensino a distância, promover a formação do professor por meio de um diferencial baseado na nova lógica pós-moderna, em que as identidades são fluidas, múltiplas e cambiantes? A escrita, considerada como constituição ética, pode constituir-se como modo de resistência. “Com Foucault, acredito que é possível pensar na escrita de si como uma forma de resistência ou de subversão aos poderes subjetivantes na constituição de um modo docente artista” (LOPONTE, 2006, p.297). Mas como podemos jogar este jogo PEADiano ou esse jogo relacionado à educação matemática com o menor assujeitamento possível e com mais ética? Por meio de uma escrita de si que possibilite a autoria do escrito. Nietzsche, em alguns de seus aforismos, [...] aponta para a necessidade de sermos poetasautores de nossas vidas e não perdermos a capacidade de criar, e sobretudo, de criar-se. Para Nietzsche, ‘chegar a ser o que se é’ não é buscar um ‘eu’ mais verdadeiro. O ‘eu’ é uma criação, uma invenção, uma obra de arte (LOPONTE, 2007, p.2).

Vergar, torcer, dominar o poder é possível por meio de práticas (exercícios) de liberdade (ou ética), tais como algumas atualizadas nos gregos e trazidas por Foucault:

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memória, meditação, exercício da morte, exame de consciência, escrita de si, etc. Considero que, conhecendo as teias de saber-poder nas quais estamos imersos, teremos mais oportunidades de fugir quando quisermos, de ocuparmo-nos de discursos de senso comum quando nos convier, de assujeitarmo-nos quando necessário ou, ainda, de jogarmos o jogo da verdade e de lhe resistirmos quando ele nos satisfizer, mas sempre regulados por essas mesmas práticas que nos posicionam em diferentes lugares. Referências ARAGÓN DE NEVADO, Rosane; CARVALHO, Marie Jane de Carvalho; MENEZES, Crediné Silva de. Educação a Distância Mediada Pela Internet: uma abordagem interdisciplinar na formação de professores em serviço. In: ARAGÓN DE NEVADO, Rosane; CARVALHO, Marie Jane de Carvalho; MENEZES, Crediné Silva de. Aprendizagem em Rede na Educação a Distância: estudos e recursos para formação de professores. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2007. p. 17-33. BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

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SUJEITOS DISCENTES DOCENTES ENTRE DIZIBILIDADES E VISIBILIDADES Fernando Ripe Rede Municipal de Ensino de Pelotas


Introdução

1 Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no ano de 2011, sob orientação do Prof. Dr. Samuel Edmundo Lopez Bello. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/98636/000922742.pdf?sequence=1 2 Chamarei o principal processo de avaliação do Curso de Formação de Professores como jogos avaliativos. Decorre esta adequação da noção de jogos de verdade de Michel Foucault (2007). Contudo, enfatizo que nesta análise jogos avaliativos é considerado como sendo o conjunto de procedimentos disciplinadores que conduzem o indivíduo a um determinado resultado. A partir de regras e procedimentos definidos numa permanente relação de poder e saber, e que acontecem em contextos (tempo e espaço) específicos e institucionais.

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Este texto traz algumas discussões que foram realizadas em minha dissertação de Mestrado1, intitulada “Modos de dizer e ver Educação (e) Matemática: a incitação à reflexão como dispositivo em um curso de formação continuada”, a qual tomou como principal material empírico as produções avaliativas de alunos que participaram, entre os anos de 2009 e 2010, do primeiro Curso de Especialização para Professores de Matemática a Distância – MATEMÁTICA – MÍDIAS DIGITAIS – DIDÁTICA: Tripé para Formação do Professor de Matemática, oferecido pelo Programa de PósGraduação em Ensino de Matemática, da Universidade Federal do Rio Grande do sul (UFRGS), em parceria com a Universidade Aberta do Brasil (UAB). No decorrer do presente estudo apresento alguns resultados da investigação que foi concebida com o objetivo de caracterizar a incitação à reflexão – presente no jogo avaliativo2 desse Curso de Especialização – como sendo um dispositivo disciplinar que, supõe-se, “constrói significados e atua decisivamente na constituição/subjetivação dos sujeitos que estão em formação continuada, através da constituição e da regulação/controle das suas práticas pedagógicas” (RIPE; BELLO, 2011, p. 2). Na intenção de melhor desenvolver esta argumentação organizei este texto em três momentos. No primeiro momento, apresento o lócus da pesquisa e uma descrição do principal processo avaliativo que foi empregado no Curso de Especialização a partir da elaboração de engenharias didáticas, que foram postadas na plataforma virtual Moodle. No segundo momento, realizo algumas

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discussões teóricas acerca do conceito de dispositivo, tanto na perspectiva de Michel Foucault, como na concebida por Gilles Deleuze. Essa condução teórica permitiu que se fizesse uma analogia entre o dispositivo histórico da confissão religiosa e o dispositivo disciplinador que incitou a reflexão dos sujeitos participantes do Curso. No terceiro momento, discuto que os recorrentes enunciáveis que emergiram das produções escritas dos alunos-professores, constituemse como regras de verdade que, com efeito, implicam em determinados modos de se dizer e se ver docente de matemática. Por fim discuto, como principal resultado, o tipo de subjetividade que a incitação à reflexão aspira produzir e fabricar, quando conduzem os sujeitos de acordo com determinados aconselhamentos e prescrições salvacionistas. Apresentando o locus da pesquisa O foco da pesquisa se originou de constantes inquietações e observações que tive durante a experiência como Tutor a Distância3 do referido Curso de Especialização. Durante as minhas vivências com um grupo de alunosprofessores da cidade de Rosário do Sul/RS pude perceber que algumas “queixas” em termos didático-pedagógicas se faziam sentir. Meu interesse na investigação dos modos de se dizer e se ver professor intensificou-se na medida em que analisava e realizava as correções das Engenharias Didáticas – principal instrumento de avaliação do curso – produzidas pelos alunos professores. Todas as aulas, os materiais e os recursos foram disponibilizados na plataforma Moodle4 , que serviu como ambiente virtual de aprendizagem5 . O processo avaliativo das disciplinas de Prática Docente envolvia a produção e 3 Durante o ano de 2009 desenvolvi a tutoria no Pólo de Rosário do Sul-RS, que continha inicialmente, 31 alunos-professores matriculados. 4 O Moodle é uma plataforma de aprendizagem a distância baseada em software livre. O Moodle inclui ferramentas que apóiam o compartilhamento de papéis dos participantes (nos quais eles podem ser tantos formadores quanto aprendizes) e a geração colaborativa de conhecimento, como wikis, e-books, assim como ambientes de diálogo, como diários, fóruns, batepapos, etc. Para maiores detalhes ver: SABBATINI, Renato M. E. Ambiente de Ensino e Aprendizagem via Internet: a Plataforma Moodle. Disponível em: http://www. ead.edumed.org.br/file.php/1/PlataformaMoodle.pdf Acessado em: 05 de janeiro de 2011. 5 A proposta pedagógica do Curso está disponível no site: http://www6.ufrgs. br/espmat/

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organização de três Engenharias Didáticas6 . De acordo com Douady, a Engenharia Didática caracteriza-se por ser: (...) uma sequência de aula(s) concebida(s), organizada(s) no tempo, de forma coerente, por um professorengenheiro para realizar um projeto de aprendizagem para uma certa população de alunos. No decurso das trocas entre professor e alunos, o projeto evolui sob as reações dos alunos e em função das escolhas e decisões do professor. (DOUADY apud MACHADO, 2002, p. 198).

Sobre a noção de dispositivo e uma possível analogia Foucault utilizou como ferramenta analítica a noção de dispositivo, denominando por dispositivo a um determinado agrupamento de práticas, que constituem o sujeito em meio a uma trama de saberes e em um feixe de forças que lhes são indissociáveis. Nas palavras do autor 6 Termo emprestado da metodologia de pesquisa, criada pelos autores franceses da área de Educação Matemática – em especial Michele ARTIGUE, Guy BROUSSEAU e Régine DOUADY. A “engenharia” desenvolvida no Curso se organiza em três etapas: a primeira consistia em uma reflexão pessoal a respeito das abordagens usuais de ensino de um determinado conteúdo ou habilidade matemática. A segunda considerava o planejamento de uma prática pedagógica. A terceira etapa é a descrição da prática docente, na qual o alunoprofessor compara os resultados efetivos com as hipóteses que foram formuladas. Dentre os itens que compõem a avaliação das Engenharias Didáticas destaca-se aquele que verifica a qualidade e a profundidade da reflexão do aluno-professor.

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Nessa perspectiva a Engenharia Didática, enquanto metodologia de pesquisa, passa a ser vista como uma ferramenta que auxilia a sistematizar uma prática de investigação das experiências desenvolvidas em sala de aula, possibilitando uma prática reflexiva dos docentes em torno das próprias práticas pedagógicas que aplica, com ênfase nas questões metodológicas. Nesse sentido, é interessante considerar as Engenharias Didáticas como sendo avaliações “autorreflexivas”, pois, dentro do jogo avaliativo instituído pelo Curso de Especialização, foi valorizada a qualidade e a profundidade da reflexão do aluno professor em relação à prática desenvolvida, constituindo-se, portanto, em objeto empírico privilegiado para análise dos modos de dizer e ver a Educação (e) Matemática.

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dispositivo é Um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discurso, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos. (FOUCAULT, 1990, p. 244).

Foi do entendimento desta noção que Dreyfus e Rabinow (1995, p. 135) sugeriram que o dispositivo diz respeito às práticas que atuam “como um aparelho, uma ferramenta, constituindo sujeitos e os organizando”. Todavia é interessante analisar a associação que Deleuze (1990) fez acerca de dispositivo. Para o autor, dispositivo seria um conceito operatório multilinear, alicerçado em três grandes eixos que, na verdade, se referem às três dimensões que Foucault distinguiu sucessivamente: saber, poder e (produção de modos de) subjetivação. Nessa perspectiva Deleuze questionou: Mas o que é um dispositivo? Em primeiro lugar, é uma espécie de novelo ou meada, um conjunto multilinear. É composto por linhas de natureza diferente e essas linhas do dispositivo não abarcam nem delimitam sistemas homogêneos por sua própria conta (o objeto, o sujeito, a linguagem), mas seguem direções diferentes, formam processos sempre em desequilíbrio, e essas linhas tanto se aproximam como se afastam uma das outras. Cada uma está quebrada e submetida a variações de direção (bifurcada, enforquilhada), submetida a derivações. Os objetos visíveis, as enunciações formuláveis, as forças em exercício, os sujeitos numa determinada posição, são como que vetores ou tensores. (DELEUZE, 1990)

Segundo Veyne (2011, p. 169) o dispositivo é menos o determinismo que nos produz do que o obstáculo contra o qual reagem ou não reagem nosso pensamento e nossa liberdade. Nessa perspectiva, o dispositivo é tratado como um instrumento “que tem sua eficácia, seus resultados, que produz algo na sociedade, que está destinado a ter um efeito”. Todavia pretende-se destacar a incorporação do dispositivo na ordem discursiva, ou seja, tratar-se-ia

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A confissão é um ritual de discurso em que o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado; e é também um ritual que se desdobra em uma relação de poder, porque não se confessa sem a presença, ao menos virtual, de um partner que não é simplesmente um interlocutor, mas a instância que requer a confissão, a impõe, a avalia e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar e reconciliar; um ritual em que a verdade se autentica pelo

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de perceber a emergência de mecanismos reguladores, que, através destes, procuraria, de maneira crescente, incitar certas condições de verdade, certas enunciações salvacionistas da educação, assim, se deflagrando uma grande discursividade sobre “boas aulas” de matemática. Por consequência há a disseminação e implantação de práticas pedagógicas originadas destas condições de verdade. Neste estudo, interessa-nos, em particular, caracterizar as formas pelas quais a prática histórica do dispositivo da confissão cristã-cotólica ocidental, amplamente reforçada desde o século XVI, pode ser associada, e portanto, percebida como uma analogia, ao dispositivo disciplinador que incitou o sujeito aluno-professor a refletir sua prática pedagógica. O último dispositivo foi operacionalizado no Curso de Especialização através das Engenharias Didáticas. Nesse sentido que se identificou o movimento da autorreflexão como sendo um dispositivo que organizava e produzia modos de se dizer e se ver professor de Matemática. De acordo com Prado Filho (2006) existem práticas modernas de sujeição do indivíduo que visam a produção de “corpos dóceis”, obedientes e submissos. Contudo destacamos que muitas destas práticas vêm revestidas de discursos contemporâneos e objetivantes que promovem a autonomia do pensamento livre e responsável, do pensamento reflexivo e de liberdade. Pode-se dizer que são nas práticas de confissão, demasiadamente difundida pelo Cristianismo, e hoje podendo ser tomada enquanto prática social, que encontramos eco na possibilidade de assujeitamento do indivíduo. No processo confessional o sujeito é conduzido “a operar em si mesmo para constituir-se como figura temperante e solidária na relação consigo e com o próximo” (RAGO, 2006, p. 11). De acordo com Foucault:

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obstáculo e as resistências que teve que vencer para formular-se; um ritual, enfim, onde apenas a enunciação, independentemente de suas conseqüências externas, produz em quem articula modificações intrínsecas [...]. (FOUCAULT, 2001, p. 82-83).

Desse modo, a confissão funciona como um dispositivo que, em determinados períodos, teve como principal função responder a uma urgência. No caso dos movimentos avaliativos do Curso de Especialização a urgência se dá pela necessidade de controlar as práticas pedagógicas dos alunos-professores. O processo de dizer a verdade, isto é, fazer coincidir o sujeito que fala com o sujeito do enunciado, atua como um dispositivo disciplinador. O aluno-professor descreve sua prática pedagógica na intenção de ocupar lugar central nos discursos vigentes da Educação (e) Matemática, bem como nos discursos difundidos pelo Curso de Especialização. Tal incitação está, em grande parte, no interior da proposta de avaliação do Curso de Especialização ao considerar a profundidade da reflexão que o aluno-professor deveria fazer ao escrever sua Engenharia Didática. Assim, foi possível inferir que ao identificar, nos escritos presentes nas avaliações das práticas pedagógicas – certas regularidades, verdades, linhas de saber –, de alguma maneira conduzem, direcionam os professores para uma forma de dizer e ver do próprio pensamento (RIPE; BELLO, 2011, p.7). De acordo com Larrosa (2008) a mediação pedagógica da experiência da pessoa consigo nas práticas de formação do professorado pretende que os participantes problematizem, modifiquem a forma pela qual construíram sua identidade pessoal em relação ao trabalho profissional. De tal maneira que se pretende definir, formar e transformar um professor reflexivo, sendo este profissional capaz de examinar e reexaminar, regular e modificar constantemente tanto sua prática pedagógica quanto, sobretudo, a si mesmo. De outro modo, podemos perceber que o formar e o transformar não é apenas o que o docente faz ou o que ele sabe, mas fundamentalmente, sua própria maneira de ser em relação ao seu trabalho (p. 49-50). É citação literal? Neste caso, onde seriam as aspas? Contemporaneamente identificamos na discursividade pedagógica a discussão acerca da pertinência do profissional reflexivo. De tal discursividade emerge a


promessa de que a prática da reflexão, no exame da consciência e no exercício do autoconhecimento, produziria sujeitos esclarecidos, conscientes e engajados. Nesse sentido, é importante considerarmos que esta preocupação com a autotransformação, disparada pela reflexão, pode atuar como modeladora/formadora/conformadora das práticas pedagógicas desenvolvidas pelos investigados (RIPE, 2011, p. 7). De acordo com Bujes (2002) as técnicas de si contribuem para constituir as práticas que incidem os sujeitos, tanto de modo a decifrar-se como de transformarse. Quando Foucault apresentou em suas investigações os modos como o sujeito se constitui, ele identificou que este processo, do qual “o sujeito estabelece uma relação consigo”, está diretamente associado às tecnologias do eu (BUJES, 2002, p. 184). Tais tecnologias do eu são percebidas por Foucault como sendo as práticas (...) que permitem aos indivíduos efetuar por conta própria ou com ajuda de outros, certo número de operações sobre seu corpo e sua alma, pensamentos, conduta, ou qualquer outra forma de ser, obtendo assim uma transformação de si mesmo com o fim de alcançar certo estado de felicidade, pureza, sabedoria ou imortalidade. (FOUCAULT, 1995, p. 48).

7 Foucault aborda a questão da visibilidade em diferentes escritos. Sua intenção é perceber como se constituem historicamente os dispositivos e as máquinas de fazer ver. Destacam-se a recorrência em As Palavras e as Coisas, História da Loucura, O Nascimento da Clínica, Vigiar e Punir, História da Sexualidade (BUJES, 2002, p. 187).

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Segundo Bujes (2002) “as práticas em que cada um de nós se decifra possuem também uma dimensão discursiva”. Assim, a dimensão da experiência de si presente no dispositivo disciplinador foi constituída por atividades em que os alunos professores deveriam ao investigar suas práticas pedagógicas. Na dimensão discursiva, se estabelece e se constitui aquilo que o sujeito pode e deve dizer acerca de si mesmo (LARROSA, 1994). A questão da visibilidade e dos modos de ver foi um tema recorrente7 nos escritos de Michel Foucault, que nos mostrou que um regime de visibilidade se dá “por um conjunto específico de máquinas óticas abre o objeto ao

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olhar e abre, ao mesmo tempo, o olho que observa”. Por isso, segundo Larrosa (1994, p. 61), “o sujeito é uma função da visibilidade, dos dispositivos que o fazem ver e orientam o seu olhar”. A partir da questão da dizibilidade e visibilidade que verificamos a existência de específicos modos de dizer e ver destes sujeitos que analisávamos. Desse modo, nossa intenção foi verificar como o Curso de Formação Continuada de Professores estava comprometido com certas políticas de verdade, que de certa forma, atuavam como “fabricantes” de determinados tipos de professores de matemática. Sendo assim, gostaria de avançar minhas investigações, neste momento, e apontar a possibilidade de tal incitação à reflexão ser um dispositivo pedagógico capaz de operar o seu modo de ser professor através do autojulgamento de suas ações. Sobre modos de dizer e ver: a verdade das “realidades vividas pelos educandos” Através da perspectiva foucaultiana que podemos pensar a regularidade de certos ditos e escritos (enunciáveis) dos alunos-professores do curso de especialização em estudo. Estes ditos e escritos foram constituídos a partir de regras que, no jogo avaliativo, tornaram-se verdades dos modos de se dizer e se ver. Percebemos também, como as produções embasadas pela metodologia das Engenharias Didáticas impuseram à prática pedagógica de matemática a contextualização com o cotidiano, bem como solicitaram a incorporação do uso das ferramentas tecnológicas nos processos de ensino e aprendizagem. Da mesma forma, também foi possível identificar recorrências e capilarizações dessas verdades provenientes das discursividades (linhas do poder-saber) do campo da Educação Matemática. Tais discursividades foram organizadas no interior das práticas avaliativas do curso de formação continuada, através de dispositivos que se configuraram e delineiaram políticas de verdade e subjetivação dos modos de se dizer e se ver professor de Matemática. Na discursividade mobilizada pelos alunos-professores ficou evidente a existência de enunciáveis que circularam e se disseminaram, sejam eles a necessidade de articular

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diferentes saberes, ou a de incorporar o uso de ferramentas tecnológicas nas práticas escolares. Assim, seguindo o nosso entendimento de dispositivo, trata-se de dar visibilidade a objetos, sujeitos e práticas. Destacamos que o campo empírico refere-se ao estudo de 52 Engenharias Didáticas8 . Dois enunciáveis se destacaram nestas produções. O primeiro indicava que o ensino de matemática deveria estar articulado com saberes mobilizados no cotidiano do educando, isto é, deveria incorporar as atividades que são realizadas “fora da sala de aula”, como princípio para o ensino e aprendizagem de matemática escolar. No segundo, a indicação da utilização de ferramentas tecnológicas como potencializadoras do processo de ensino e aprendizagem de matemática. Tais recorrências podem ser percebidas nos seguintes excertos: A escolha deste vídeo foi em virtude dele mostrar visualmente o uso de frações em várias situações do dia a dia, situações estas que estão relacionados com a realidade do educando e com isso instigar eles a querer aprender mais sobre o assunto. L.M.ED3c

A geometria esta presente no nosso dia-a-dia nas mais diversas áreas do conhecimento. (...) Portanto, este trabalho visa apresentar o ensino da Geometria através da aplicação do Teorema de Tales no nosso cotidiano, para tornar o ensino da geometria plana mais atraente e que estimule os alunos a desenvolver sua criatividade em atividades concretas [...]. F. M.S. ED3a

No desenvolvimento desse trabalho pode se observar o benefício favorável para a aprendizagem dos educandos com a utilização das mídias digitais e os recursos de tecnologia no trabalho em sala de aula, o uso desses recursos auxiliam muito o professor na transposição didática da teoria para prática, e pode sim ser bom aliado no trabalho do professor. D. M. ED2b

8 Adoto como critério de citação: Iniciais do autor. Número da Engenharia Didática. Letra indicando a posição do excerto ao longo do texto do autor

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Foi possível durante a prática verificar que a maioria dos educandos conseguia relacionar o conteúdo com alguma coisa de seu dia a dia. E se um dos colegas não entendia, tinha um que citava alguma coisa que fosse do cotidiano para explicar ao colega. D.M. ED3d

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Através destes escritos, podemos perceber a recorrência que indicou o ensino de matemática baseado na “realidade” vivida pelo educando. Esse dizer dos alunos-professores apontou para a produção de um saber sobre o ensino. Tal saber considerava as experiências pessoais e coletivas de forma dinâmica e contextualizada, que fosse necessário à aprendizagem de um mundo matemático em que a conexão com os nossos problemas e finalidades precisa ser reestabelecida. Essa materialidade repetível responde a um discurso que localiza objetos e sujeitos numa perspectiva filosófica em que a reflexão e autorreflexão são práticas constituintes de todo esse processo. Também foi recorrente a atribuição de certezas para a facilitação da aprendizagem dos alunos, demonstrando a força que o discurso imprime ao saber sobre as novas tecnologias para o ensino: E a busca de melhores resultados na aprendizagem dos mesmos fez a escolha desse recurso porque com certeza o uso de novas tecnologias na apresentação do conteúdo dando a ele uma ferramenta nova para realizar as atividades que envolva o conteúdo facilitará a compreensão, onde ele fará uso da ferramenta homotetia do software GeoGebra.D. M. ED2c

O excerto abaixo demonstra que o professor deveria propiciar alegrias e satisfações aos seus alunos. Neste caso, o trabalho docente se afasta de questões do saber, porque o discurso pedagógico se preocupou com os efeitos em termos de conduta (subjetivações) mais do que com as linhas de saber: Mesmo assim penso que não foi um trabalho em vão, pois os alunos ao saírem da sala de aula tradicional manifestaram grande alegria e vontade em realizar as atividades propostas. L.M.ED3c

Percebe-se então, através desses enunciáveis, a ocorrência de certa propagação discursiva que incorporava a utilização de tecnologias nas práticas de matemáticas escolares, bem como atribuia o uso de softwares dinâmicos como possibilidade de despertar interesse e motivar os alunos a desenvolverem, compreenderem e construírem significados matemáticos através da interação dos mesmos com os objetos virtuais. Todavia, podemos inferir que tais discursos, neste

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caso o da pluralidade cultural e das novas tecnologias, são muito genéricos e abrangentes, da mesma forma que são carregados de vontades de verdade. Tais discursos são amplamente produzidos e divulgados pela Educação Matemática e “funciona[m] como um conjunto de dispositivos e estratégias capazes de fabricar sujeitos” (VEIGA-NETO, 2005). Sendo assim, as verdades discursivas presentes no Curso de Formação Continuada se constituem enquanto práticas, como tecnologias, mistas de poder-saber e de técnicas que, por consequência, têm efeitos produtivos e práticos sobre os modos de atuar dos professores. Nesta perspectiva os discursos sobre formação continuada são “como complexos de relações discursivas e meios nãodiscursivos, como ‘regimes de verdade’, focos de podersaber, discursos de disciplina, nos termos utilizados por Deleuze, são “regimes de visibilidade e linguagem, de luz e enunciados. Eles têm efeitos disciplinares sobre os indivíduos, incluindo-se ativamente ou na fabricação de sua própria experiência de mundo” (GARCIA, p. 23-24). Considerações Finais

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Na pesquisa que foi realizada conseguimos identificar que as práticas de escritas reflexivas sobre o fazer pedagógico dos alunos-professores, derivadas do agenciamento instaurado pela maquinaria metodológica das Engenharias Didáticas, potencializaram a constituição de modos de subjetivação. Acredita-se assim, que a reflexão dos alunosprofessores, naturalizada pelo processo metodológico de Engenharias Didáticas, se deu através de um exercício metódico e, de certa forma, objetivo, onde se percebe certa sujeição a formas particulares de nomear e agir no mundo que foram validadas pelos regimes de verdades postos pelo Curso de Formação de Professores. Com efeito, a produção escrita é o disciplinamento do olhar pela linguagem, é o aprender a ver-se e narrar-se a si próprio respeitando determinados imperativos educacionais. É o aprender a explicar a matemática e suas próprias práticas pedagógicas através de determinadas verdades discursivas. É o disciplinamento do olhar e da conduta dos docentes, buscando, assim, normalizar e sujeitar o docente a um

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Educação Matemática

estatuto de verdade previsível. Traço, ainda, nestas considerações, a possibilidade de se pensar a formação de professores, mais especificamente, explorar nas produções escritas docentes o ensaio de “devir”. Tal como colocou Deleuze enquanto processo criativo. A ideia de ensaiar devires enquanto uma possível ‘linha de fuga’ pode permitir ao docente experimentar e, talvez, explorar outros modos de ver e dizer Educação (e) Matemática. Reconhecer esta vontade de criação pode ajudar a ampliar o debate acerca das possibilidades do ensino e da formação docente. Seria, então, a antítese do que discuti até o momento, uma vez que nesta investigação ficou claro que o tipo de subjetividade que a incitação à reflexão aspira produzir e fabricar, quando conduzem os docentes de acordo com determinados aconselhamentos e prescrições, são as de sujeitos dóceis, autovigilantes e conformados com as discursividades vigentes. Referências BUJES, M. I. E. Infância e maquinarias. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. DELEUZE, G. O que é um dispositivo? 1990. Disponível em: http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/art14.html Acessado em: 09 de outubro de 2010. ______. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. ______. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. FOUCAULT, M. O retorno da moral. In. FOUCAULT. Michel. Ética, Sexualidade, política. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. _______. Verdade e Poder. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1990.

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Linguagens, Práticas, e Sujeitos

_______. Os paradoxos da autoconsciência. In: ______. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

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Educação Matemática 152

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APÊNDICE


O ENSINOAPRENDIZAGEM DE MATEMÁTICA POR PROJETOS PROBLEMATIZANDO PRÁTICAS Karliúza Fonseca Bitencourt Sistema Dohms de Ensino


Repensar a própria prática: em busca de outras perspectivas

uma sistematização e um planejamento contínuo das diferentes atividades a serem desenvolvidas por crianças, adolescentes e jovens, ao considerar diversos contextos sócio-culturais, que se compreenda e se dê espaço para os modos diferenciados de construção/apropriação de conhecimentos por parte daqueles que freqüentam a escola (BELLO, 2003, p. 30).

Para Bello (2003), em referência à educação matemática, podem-se encontrar, na ampliação das ideias e dos esquemas da modelagem matemática, muitos dos princípios para a organização e realização do que hoje é entendido como uma pedagogia de projetos interdisciplinar. Para este autor (idem, p. 33), o desenvolvimento de um trabalho de ensino de matemática fazendo uso da modelagem implica ver a matemática como uma estratégia de ação, em que as estruturas matemáticas são um recurso a mais para a organização de ideias e conceitos a serem

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

A finalidade de repensar a própria prática está em discutir, problematizar os nossos saberes, buscar compreender o processo didático-pedagógico, bem como provocar outras discussões que nos instiguem a pensar constantemente na nossa própria ação docente. Acreditamos que isso tudo pode nos possibilitar qualificar o ensino e a aprendizagem de matemática, englobando a nossa responsabilidade docente na própria qualificação da prática pedagógica. Ao mesmo tempo, permitem-nos procurar outros aprofundamentos teóricos que sejam relevantes às relações estabelecidas em sala de aula, numa sensibilização à necessidade de sermos professores críticos da própria prática. É necessário salientar a importância do educador matemático com consciência da sua responsabilidade social na aplicabilidade da matemática como construção social, com implicações diretas na formação profissional. Relevante, ainda, é que esse educador possa levar os alunos a ter contato com procedimentos científicos, vinculando, além do interesse em resolver um problema específico de determinada cultura, a apropriação de uma postura científica, ou seja, possibilitando aos alunos uma maior sistematização entre o interesse pelo problema e a aprendizagem matemática. A realidade educacional escolar atual torna necessária

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explorados e investigados, e essa organização pode ser formalizada mediante um processo de modelagem. Há várias diferenciações que abrangem a concepção de aprendizagem por projetos, desde ser considerada ou não como metodologia, ampliando assim o seu significado a uma prática de projeto de trabalho. Segundo Hernández (1998, p. 80), [...] para chegar a essa tomada de consciência individual, são de importância capital o processo interativo que tem lugar no grupo-classe e o papel mediador e facilitador do docente. Dado que esse processo baseado no intercâmbio e na interpretação da atitude de cada aluno seja singular, não pode ser reduzido a uma fórmula, a um método ou a uma didática específica.

Conforme Bello (2003), a realização de um projeto de ensino-aprendizagem implica considerar aspectos importantes, que vão desde a escolha das temáticas abordadas e da própria problematização dos temas até a escolha de fontes de informação, a organização das informações e, principalmente – no caso da matemática, a limitação do conteúdo específico, restrito muitas vezes a questões elementares. Nesse sentido, pensar na ação pedagógica por projetos desenvolvida em sala de aula no ensino da matemática e levantar questionamentos sobre a eficácia da prática pedagógica atual dos docentes, discutindo hipóteses sobre a construção das estruturas cognitivas nas relações lógico-matemáticas, é um primeiro passo. Educação Matemática por projetos: a experiência empírica Relataremos a experiência realizada na perspectiva da Educação Matemática por projetos, procurando ilustrar os pressupostos apresentados anteriormente. Ela foi desenvolvida em uma escola particular de Porto Alegre, numa turma de 8ª série do ensino fundamental, com 40 alunos, com idades entre 13 e 15 anos. Nessa experiência, a educação matemática por projetos foi abordada a partir de um eixo temático que tinha como intencionalidade docente inicial o trabalho com matemática financeira1 . A experiência partiu de um planejamento interdisciplinar inicial entre a professora de História2 e a professora de

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Temática escolhida: criar uma empresa ideal. O projeto da empresa ideal já tinha sido realizado na sala de aula em história, mas sem a abordagem da matemática. 3 Priorizam-se, no relato da experiência empírica, os procedimentos no desenvolvimento do projeto, omitindo-se suas falas e enfatizando-se, posteriormente, suas reflexões sobre sua ação docente. 1

2

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

matemática3 . A parceria de trabalho entre as professoras concretizou-se a partir de concepções comuns sobre a necessidade de oportunizar ao aluno a ação no processo de ensino e aprendizagem, desafiando-o na interação entre ele, o professor, o conhecimento que traz e o contexto social em que vive. Tem-se, ainda, como concepção comum, a necessidade de ação do professor na abordagem do componente curricular de forma integrada a outros componentes curriculares, enfatizando-se constantes trocas entre os professores e os integrantes da equipe de trabalho (alunos, equipe pedagógica, comunidade, proposta pedagógica da escola). Na experiência realizada, os alunos deveriam criar uma empresa a partir de um grupo de quatro amigos (eles podiam escolher com quem trabalhar). O grupo poderia criar qualquer tipo de indústria ou empresa, desde que fosse uma atividade viável (com obtenção de lucro em médio prazo) e legal (implicações sociais – leis trabalhistas, implicações financeiras – pagamento de impostos, investimentos, custos). Foram considerados satisfatórios os projetos que envolveram todos os tópicos abordados na problematização, sendo que todo integrante de cada grupo deveria participar da construção do projeto; caso contrário, seria desligado do grupo e trabalharia individualmente. Durante o desenvolvimento do trabalho, alguns grupos já discutiam questões de organização do projeto, enquanto que em outros grupos eram discutidas, com mais ênfase, questões de ordem psicológica ou comportamental. Depois de buscar alternativa, em cada grupo, ao problema que surgia, a professora trouxe ao foco de discussão a temática do trabalho a ser desenvolvida. A professora solicitou aos alunos que explicassem primeiro a ela e depois escrevessem o porquê da escolha do tipo de atividade a ser construída, quais eram os objetivos e as justificativas e que metodologia eles pretendiam utilizar na construção da empresa. Foi necessário discutir os procedimentos necessários à realização de uma pesquisa quantitativa: como se fazia uma coleta de dados, o que eles pretendiam com esses

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dados, como organizá-los, separá-los e quantificá-los, ou seja, a professora de matemática trabalhou formalmente, no quadro, as noções de estatística. Depois disso, os alunos começaram a pesquisar todos os itens citados acima, separando, classificando e quantificando, conforme a necessidade que cada empresa teria, para posterior análise. Todas as pesquisas necessitaram da orientação da professora, trabalhando-se simultaneamente o desenvolvimento do projeto com aplicação dos conceitos de estatística na sala de informática. Os alunos foram classificando e seriando naturalmente, utilizando a matemática para constituir um primeiro momento de organização cognitiva. Inspirados num problema real, os alunos exercitam as operações aritméticas de maneira prazerosa. Eles trabalharam conceitos matemáticos, como operações com números decimais, transformações cambiais na organização de dados e a inserção desses custos para posterior análise. Também utilizaram a informática e a biblioteca, incluindo a leitura de jornais, como instrumentos para o desenvolvimento da pesquisa. Durante essas aulas, a professora discutia os conceitos de custo de uma empresa, capital de giro, capital para investimento, custos de manutenção, estoque e outros que seriam aprofundados no decorrer do trabalho. Houve necessidade de formalização, por meio de exercícios aplicados, discussão teórica e quadro negro. É necessário salientar que os grupos estavam desenvolvendo o trabalho e a matemática na proporção que lhes convinha. Na primeira parte do projeto, os alunos apresentam uma clara dificuldade entre o fazer e o compreender, pois ainda não possuem conhecimento suficiente que dê conta de solucionar o que foi problematizado. Embora haja a busca da solução, eles não conseguem compreender sua ação como um todo. Os alunos estão centrados na sua própria ação, na objetivação na coleta de dados, sem saber ao certo como irão utilizar as informações. Os tópicos para elaboração dos projetos fornecidos pelas professoras não foram seguidos de maneira linear; cada grupo pesquisou e desenvolveu seu projeto à medida que se organizava cognitivamente. Depois que coletaram os dados, discutindo com a professora, sentiram necessidade de buscar outros dados que pudessem ser integrados ao projeto para dar forma ao que tinham pensado anteriormente, ou seja, há uma volta à coleta de dados, mas com outro olhar. Os alunos


buscam um acréscimo de dados ao projeto para conformar um pensamento representativo, sem ainda ter uma ideia de totalidade, procurando completar o que está faltando para dar-lhes condições a uma posterior análise. Cada grupo dá mais ênfase ao que lhe parece mais significativo, trabalhando a mesma temática com abordagens diferenciadas. Os grupos começam, então, a estabelecer relações entre o faturamento mensal (projetado), os encargos (custos) e a possibilidade de lucro, projetando, ainda, a possibilidade de aplicação financeira com o capital restante. Eles passam a formalizar essas relações a partir dos seus próprios projetos; os projetos acabaram por dar uma relevância a questões que no início não eram pretendidas. O aprofundamento econômico e financeiro surgiu a partir das interações construídas em sala de aula e fora dela entre o aluno, o objeto de estudo, o professor, os familiares, a escola e a sociedade. Como avaliação final dos projetos, na aula de matemática, foi gerada a discussão a partir da análise do projeto realizado e sobre como as implicações financeiras, legais e econômicas estavam diretamente ligadas ao desenvolvimento social e ao crescimento do estado.

O que segue a continuação tem como objetivo constituir alguns entendimentos das ações do professor de matemática no exercício da prática em educação matemática por projetos contribuem e as possíveis (re) significações das mesmas A preocupação em propiciar o desenvolvimento cognitivo do aluno e do professor por meio de uma prática em que os conceitos matemáticos fossem contextualizados e de que a matemática pudesse ser utilizável na perspectiva de qualidade de vida levou-me a optar pelo exercício da educação matemática por projetos no contexto escolar. Algumas (re)significações na ação docente a partir do exercício da educação matemática por projetos, construídas na análise do trabalho desenvolvido4 , possibilitaram a formalização de algumas conclusões, que serão apresentadas ao leitor. 4

C.F. Bittenkurt (2005)

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Pensando na ação pedagógica no exercício da prática por projetos: algumas aproximações

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A busca da qualificação pela professora por meio da análise de sua ação docente, em função de a prática não ser correspondente à sua concepção da matemática e à sua concepção de ensino da matemática, parte de situações anteriores ao desenvolvimento da educação matemática por projetos. Segundo Perrenoud (2001), a reflexão não se limita a uma evocação da ação singular, mas passa por uma crítica, por uma relação com teorias ou outras ações concebidas ou praticadas. A intencionalidade docente permite à professora desnudar-se profissionalmente, provocando o desenvolvimento de um pensamento crítico em relação ao sistema educacional. O inconformismo anterior e a intencionalidade em atingir como objetivo docente o que tinha como concepções levaram a professora, mediante a pesquisa, a buscar a compreensão da incoerência de sua prática. Nessa busca, as relações que foram estabelecidas permitiram vincular a prática a uma formação institucionalmente constituída. Segundo Bordas (1997), são poucos os egressos nas licenciaturas em matemática, muito em função da formação deficiente que receberam durante sua escolaridade básica. Isso remete às relações que a professora fez quando aluna do ensino médio e fundamental e que a fazem relacionar as diferenças que vivenciou quanto ao comportamento pedagógico do professor da educação básica e o comportamento pedagógico do professor do ensino superior. Essas diferenças eram pouco perceptíveis enquanto aluna, mas, mesmo sem ter consciência de que estava “assimilando” aquele comportamento pedagógico, buscava na licenciatura uma formação que lhe possibilitasse vislumbrar outra prática. O professor no seu exercício recebe formação, e esta é formatada segundo diretrizes gerais. Tais diretrizes estão presentes no processo de formação da professora como licenciada em matemática e na formação continuada, gerando dicotomia entre a matemática acadêmica e a matemática escolar presentes no sistema educacional. A professora aprofundou estudos à procura de alternativas metodológicas que referenciassem a convergência entre a teoria (processo de formação) e a prática (ação docente). Para isso, foi necessário descentrar-se como professora e, como pesquisadora, identificar “vícios” arraigados à sua prática que eram passíveis de transformações. “(...)


Linguagens, Práticas, e Sujeitos

A proposta de Schulman sobre os saberes pedagógicodisciplinares do professor nos faz entender como os docentes agem de forma diversa em contextos similares e nos leva a refletir sobre a concepção de um curso de formação inicial desse profissional de ensino” (PAIVA, 2002, p. 103). A busca da formação continuada autônoma e a flexibilização curricular como consequência do repensar a prática. No sentido dado para “autônoma”, expressa-se liberdade intelectual em buscar teoricamente o que não se consegue identificar como professora de matemática na prática docente. A troca de ideias com os professores de diferentes áreas de conhecimento possibilita ampliar a visão educacional e, consequentemente, empurra a uma mobilização profissional. Isso significa arriscar-se a desenvolver outra prática que traga mais interações entre todos os componentes de um sistema educacional e a verificar se realmente essa mudança será qualitativa. A modelagem matemática requer aprofundamento teórico específico do professor para usá-la na educação matemática por projetos como instrumento na interdisciplinaridade. No exercício dessa educação, o conhecimento específico é fundamental à construção de novos significados, tanto pelo professor quanto pelo aluno. O aprofundamento teórico exigido do professor ocorre em função de este querer oportunizar aos seus alunos uma concepção de ensino-aprendizagem em que seja possível, na educação matemática por projetos, usar a matemática (processo de modelagem matemática) como instrumento metodológico para impulsionar a interdisciplinaridade. “O fator mais importante para a efetivação de inovações na área de elaboração e implementação de currículos é o envolvimento real de todos aqueles diretamente responsáveis pela organização e desenvolvimento do ensino” (BORDAS, 1976, p. 224). O estranhamento docente em relação à prática em educação matemática por projetos possibilita ao professor criar outros mecanismos de ação em relação à diversidade de situações “surgidas” nessa prática no contexto de sala de aula. A diversidade em sala de aula é mais perceptível nessa prática, cabendo ao professor estar preparado para enfrentá-la. No desenvolvimento da educação matemática por projetos, o saber da experiência é veículo à sensibilização

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do professor para uma análise qualitativa entre seus saberes, identificando durante essa prática a integração entre os saberes docentes. O saber da experiência, que muitas vezes é “acionado” de maneira instintiva e intuitiva, aliado a uma reflexão contínua sobre a ação docente, possibilita uma análise mais aprofundada sobre o comportamento pedagógico, sobre os saberes disciplinares. Para Paiva (2002), esses saberes são construídos culturalmente nos diversos campos do conhecimento, sendo necessário considerar ao longo da formação os saberes da experiência para que o professor possa assumir com competência a complexidade da sua tarefa educativa. O professor, no desenvolvimento da educação matemática por projetos, possibilita ao aluno o uso da fala, concede-lhe poder. Poder de argumentação, de interação entre o seu objeto de estudo e ele, entre os seus colegas e ele, entre seu professor e ele. O aluno tem poder para criar. Nessa prática, o professor é tão sujeito quanto o aluno, desde que aprenda a descentrar-se da ideia de que é o único detentor do saber. Há saberes diferentes a serem compartilhados, mas, para isso, “é preciso aprender a olhar e escutar sem medo de deixar de ser, sem medo de deixar o outro ser” (MATURANA, 2002, p. 34). O desenvolvimento do ensino-aprendizagem de matemática na educação matemática por projetos é verificado, por meio dos projetos e do trabalho em sala de aula, na análise do processo de construção dos projetos pelos alunos. A avaliação do processo de construção dos projetos como professora de matemática, o envolvimento e a participação ativa dos alunos, bem como os projetos já concluídos, permitem verificar a evolução do conhecimento matemático dos alunos. No decorrer do processo, foi necessário o uso do quadro-negro, das listas de problemas, de avaliações, enfim, da matemática formal para possibilitar o desenvolvimento conceitual. A matemática exige formalização para sistematizar, estruturar um pensamento hipotético, mas isso não implica formatar esse conhecimento, pois se verificou que os alunos usaram diferentes estruturações de seus raciocínios lógicos, mas todos necessitaram de uma linguagem formal, científica, matemática, como parâmetro à construção de relações entre o concreto e o abstrato. A autoavaliação do professor e dos alunos, por meio da análise dos fatos, permite identificar o erro (tanto


Linguagens, Práticas, e Sujeitos

do aluno quanto do professor) como um instrumento para a reconstrução de significados. A avaliação se faz necessária ao avaliado em qualquer processo formativo, pois proporciona orientação ao estudo e identificação de aspectos relevantes a possíveis (re)significações. Também é importante a quem é avaliador, porque lhe dá condições de intervir eficazmente na regulação da aprendizagem de quem é avaliado, ou seja, identificando o conhecimento que já foi construído e orientando o que resta construir para concluir determinado objetivo. Essas conclusões serviram de parâmetro à verificação do desenvolvimento profissional do professor de matemática na prática em educação por projetos. Além disso, conforme a proposta de Beatriz D’Ambrósio (2005), também as visões que um profissional deve ter para atingir a qualificação foram contempladas. No entanto, há de esclarecer que, embora a prática em educação matemática por projetos tenha possibilitado o desenvolvimento profissional da professora de matemática em relação à sua prática anterior, a metodologia não foi fator determinante para tal desenvolvimento. O papel da escola frente ao educador provoca outras inquietações: será que essa metodologia poderia ser aplicada em qualquer escola? E nas instituições públicas? E no ensino superior? Quais as possíveis convergências entre a transformação da prática docente e a instituição escolar? A educação matemática por projetos pode ser veículo para a aprendizagem qualitativa de matemática em qualquer currículo? Quais as implicações da educação matemática por projetos no processo de formação das licenciaturas? Relaciona-se à qualificação profissional como professora de matemática um conjunto de saberes integrados à ação reflexiva docente. No desenvolvimento da educação matemática por projetos, ampliam-se os saberes em uma formação continuada orientada teoricamente, mas com autonomia intelectual para transformá-los e, com isso, transformar também a prática pedagógica. Durante todo o processo de investigação e no decorrer da análise dos dados, foi muito significativa a temática da formação do professor de matemática. Constata-se que, na formação do licenciado em matemática, deve ser oportunizada a produção de saberes e de experiências significativas de aprendizagem, cabendo à Universidade essa responsabilidade.

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Educação Matemática

Há um reducionismo da matemática acadêmica adaptada à matemática escolar. Se há a intencionalidade do sistema educacional de formar profissionais reflexivos para que estes formem cidadãos reflexivos, por que a dicotomia entre a formação acadêmica e a prática pedagógica é fato? Para qualificar um sistema educacional, há de se qualificarem os formadores dos formadores. E como são qualificados esses formadores – pela Universidade, retornando ao mesmo círculo vicioso? Que relações de poder mantêm um sistema que é, em parte, falho? Que relações de poder se mantêm na sala de aula para que seja possível um ambiente adequado à aprendizagem? Que relações de poder se mantêm entre professores e instituições que não incitam à reflexão docente? O que nos faz calar diante de tantas possibilidades de aperfeiçoamento? Sob que perspectiva educacional, social, psicológica, enfim, epistemológica, há qualificação profissional docente? Estamos em um sistema educacional sistêmico em que a exigência profissional de exercício de uma prática docente reflexiva é cada vez mais complexa, pois requer de seus formadores uma postura formadora crítica. Mas é interessante mudar? Finaliza-se este trabalho com outros tantos questionamentos, mas cabe salientar que toda transformação possível não é vinculada a um único aspecto, seja ele biológico, psicológico, epistemológico, pedagógico, institucional, dentre outros, mas a uma intersecção de fatores relacionados a partir de uma ação interiorizada que intencione mudanças. Referências BELLO, S. E. L.; A Pedagogia de Projetos para o Ensino Interdisciplinar de Matemática em Cursos de Formação Continuada de Professores. In: Educação Matemática em Revista. N.15, Ano 10, 2003 (A). P. 29 – 38. _______. ETNOMATEMÁTICA: Dimensões sociais e Políticas na Pedagogia da Matemática. In: I Jornada Científica da UNIOESTE, 2001, Cascavel - PR. 1ª Jornada Científica da UNIOESTE, 2001. BITTENCOURT, Karliuza. Educação Matemática por Projetos: Perspectivas e Prática Pedagógica no Contexto Escolar.

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e

mudança

na

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Linguagens, Práticas, e Sujeitos

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Educação Matemática


POSFÁCIO


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FOUCAULT EM MOVIMENTO

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Um dos mais efetivos e reconhecíveis pensamento da contemporaneidade é o do pensador Michel Foucault, que com sua caixa de ferramentas foi capaz de instrumentalizar o uso de diferentes perspectivas analíticas que cabem e se acomodam no escopo teórico produzido durante suas inúmeras entrevistas, aulas e livros. Não raro encontramos os conceitos de Foucault se aproximando de pensadores sócio-críticos, modernos tardios e, algumas vezes, inclusive a pensadores da Fenomenologia, como ao próprio Heidegger. Tais aproximações precisam ser cuidadosamente analisadas - pois ainda que, como diria o próprio Foucault em uma de suas entrevistas, não exista um único Foucault, e que seus livros são para fazer fendas e rachaduras e não para construir fronteiras intransponíveis - e ser tomadas como uma renovação de conceitos constante e, sobretudo, fundamentada é analiticamente constituídas. Nesse conjunto de textos elaborado pelo grupo de pesquisa Praktiké, há um cuidado e um respeito as elaborações e aproximações dos conceitos de Foucault com Wittgenstein e com o campo Matemática que cria uma mudança de referência essencial para a compreensão da matemática como construção de grupos sociais que têm as suas práticas e atividades específicas de linguagem e que as utilizam para organizar as suas experiências no mundo, como bem o diz Samuel Bello e Jean-Claude Régnier no primeiro capítulo desse livro, abrindo caminho para uma nova perspectiva, no sentido nietzscheano, de falar sobre ciências e linguagens ditas exatas, mas também dos conceitos de Michel Foucault. Uma das mais interessantes formas de perceber os usos de Foucault vem de seus comentadores, pois se pode citar uma lista de nomeações diferentes de suas obras, como, por exemplo, em um texto de 1961, onde Roland Barthes define a Foucault como um estruturalista; para Jean Piaget, um estruturalista sem estrutura; por sua vez, alguns autores o colocam junto a fenomenologia, como Umberto Eco que o posiciona como um destruidor de Heidegger; para Jacques Chevallier, um historiografista fenomenológico; para Domenicque Lecour, um mecanicista; ou ainda, a marcação de uma forma de metodologia, como em William Dreyfuss; um revolucionador da história, como em Paul Veyne; em John Rajchman, uma constelação temática de articulação difícil; para Richard Rorty, um liberal, enfim, Gilles Deleuze, Antony Giddens e tantos outros também colaboram a sua maneira com algumas definições sempre contingentes de Foucault.

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A proliferação tem a ver com a inconclusiva maneira de escrever seus livros, pois já indica que pode mudar de ideia em outros estudos. Ademais, suas entrevistas modificam os próprios livros pois nelas Foucault sistematicamente os repensa e os analisa, modificando a forma de lê-los, fazendo justamente essa abertura. Foucault é isso, uma oportunidade de pensar e pensar-se, por isso não existe um certo (em) Foucault, existe essa potência, essa força argumentativa, esse ensinamento. Ao longo dos cursos do College de France, particularmente no curso Em Defesa da Sociedade, Foucault diz que seus trabalhos se tratam de instrumentos, façam com eles o que queiram. Ademais tenta não impor ao texto uma lei, tratando os textos como condições de se pensar outras coisas, mais uma vez nas entrevista ensaia várias interpretações, escapando da verdade da obra. O estilo de Foucault pode ter a ver com a ideia de que “se escreve para perder o rosto”, uma autopoiése. Escrever sobre si mesmo como uma transformação, tentando fugir da identidade que pode ser aproximada a ideia de experimento. O conceito de experiência é distante da fenomenologia, certamente teve uma proximidade com a mesma, pois nos anos 50 essa era a norma, mas se a fenomenologia tenta captar o significado da experiência cotidiana, em Foucault seria ao contrário, deveria arrancar o sujeito de si mesmo, fazendo com que deixe de ser o que é e passe a ser outro diferente de si, ou seja a experiência em Foucault é uma auto-dessubjetivação, na esteira de Maurice Blanchot, O nome do autor opera como mais uma função sobre os discursos que garante uma forma de ordená-los e, portanto, serve para excluir outros discursos e também sua confrontação. Assim deixa de ser uma palavra efêmera e se converte em uma propriedades, todo discurso tem uma propriedade, marca uma identidade, torna ndo-a pesada, sólida. O autor enfim é uma autoridade ao texto. A autoria e a obra são formas de classificar, ou seja, o autor não deixa de existir mas se transforma em uma função, como funciona o nome do autor na função do discurso. Há uma função do autor, que se poderia chamar um dispositivo de identidade. Aqui neste livro, a função Foucault se expande, se avoluma, alarga os horizontes dos autores e de seus campos de atuação, punctua o entendimento


“É preciso dar forma a nossa impaciência da liberdade.”

Profª. Drª. Rochele de Quadros Loguercio Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde - UFRGS

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

de realidade, inflexiona as práticas avaliativas, matiza os sujeitos docentes e, sobretudo, tensiona o estatuto de saber produzido no campo das ciências e matemática. O livro nos ensina a ler Foucault, Wittgenstein e estudos docentes em matemática, do mesmo modo como, segundo Rodrigo Castro, temos que ler Foucault, com um sismógrafo, pois ele é um movimento tectônico. Pensar em Foucault de forma evolutiva é um no sense. Para entender Foucault é necessário valorizar seus movimentos. Particularmente nesse livro, o que mais me interessou foi a incrível potência do trabalho de Foucault constituída em cada um dos textos dos autores, que o aproximam de Wittgenstein, constituindo uma perspectiva sobre a linguagem e, sobretudo, a linguagem matemática que adentra e manifesta as ações identitárias, constitutivas e subjetivadas do ensinar e aprender nos espaços intra e extramuros da escola . Nos jogos de linguagem há uma produtividade, e os autores marcam a cada trecho que isso não é nada ordinário, mas tampouco extraordinário, isso é um jogo que marca nossos modos de ser e viver no mundo, nossas liberdades e nossas sujeições. Em Cuidado de Si, como pratica da liberdade, Foucault indica não gostar da tese da liberação, quando essa parece dizer que há uma forma de nos libertarmos dentro de nós ou através do outro, na verdade, o que temos é liberdade como algo a formar, ela não existe, temos que formar.

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Educação Matemática

Currículos Claudia Glavam Duarte Licenciada em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1990), Mestre em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2003) e Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2009). Atualmente é professora do Departamento Interdisciplinar, curso de Licenciatura em Educação do Campo, da Universidade Federal do Rio grande do Sul, Campus Litoral Norte. Também é professora do PPG em Educação em Ensino de Ciências: Química da Vida e Saúde pela UFRGS e Colaboradora do PPGECT – Educação Científica e Tecnológica da UFSC. É pesquisadora no Grupo GEEmCO: Grupo de Estudos em Educação Matemática e Contemporaneidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. Fernando Ripe Licenciado em Matemática pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004), Especialista em Educação Matemática pela Universidade Luterana do Brasil (2006) e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2011). Atualmente é professor da Rede Municipal de Ensino de Pelotas (RS). Jean-Claude Régnier Graduado em Matemática pela Université de Bourgogne Dijon (FR) (1973), Mestre em Matemática e em Didática da Matemática - Université Nancy1 Nancy (FR) (1980), e Doutor

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em Matemática e Didática da Matemática - Université Louis Pasteur Strasbourg (FR) (1983). Também é Mestre em Ciências da Educação - Université Lumiére Lyon 2 (FR) (1986) e Doutor dEtat-HDR em Ciências e Teorias das formas da Educação Université Marc Bloch Strasbourg (FR) (2000). Atualmente é professor titular-pesquisador da Université de Lyon 2 (FR). Karin Ritter Jelinek Licenciada em Matemática pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2000), Mestre em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2005) e Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Atualmente é professora do Instituto de Matemática, Estatística e Física e Coordenadora do curso de Licenciatura em Ciências Exatas da Universidade Federal do Rio Grande - FURG, Campus de Santo Antônio da Patrulha. Também é professora do PPG em Educação em Ciências pela FURG.

Maria Aparecida Maia Hilzendeger Licenciada em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1988), Especialista em Informática na Educação pela mesma universidade (1993), e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2009). Atualmente é professora e Coordenadora da 2ª série do Ensino Médio do Colégio João XXIII. Atua ainda como Professora Convidada no curso de Especialização em Educação Matemática da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Monica Pagel Eidelwein Licenciada em Pedagogia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1989), Especialista em Metodologia do Ensino de Primeiro Grau na Área Sócio-Humanística (1991) e Especialista em Psicopedagogia (1999), pela Universidade Feevale. Também é Especialista em Gestão de Polos (2012)

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

Karliúza Fonseca Bitencourt Licenciada em Plena em Matemática pela Universidade Federal de Pelotas (1997) e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2007). Atualmente é professora e coordenadora da Área de Matemática do Sistema Dohms de Ensino - Unidade Higienópolis.

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Educação Matemática

pela Universidade Federal de Pelotas, Mestre em Educação (2006) e Doutora em educação (2012) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente atua como Coordenadora do Polo da Universidade Aberta do Brasil (UAB) em Novo Hamburgo. Samuel Edmundo Lopez Bello Licenciado em Matemática pela Universidad Inca Garcilaso de La Vega (PE) (1990), Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (1995) e Doutor em Educação Matemática pela Universidade Estadual de Campinas (2000). Pós-doutor no UMR 5191 ICAR - CNRS Université Lyon 2 - LyonFrança. Atualmente é professor do Departamento de Ensino e Currículo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Também é professor do PPG em Educação e do PPG em Educação em Ciências pela UFRGS. Suelen Assunção Santos Licenciada em Matemática (2005), Especialista em Tutoria em EaD (2010), Mestre em Educação (2009) e Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2015). Atualmente é Professora do Departamento Interdisciplinar da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Campus Litoral Norte. Também é professora do PPG em Educação em Ensino de Ciências pela UFRGS. É pesquisadora no Grupo de Pesquisa PRAKTIKÉ: Educação e Currículo em Ciências e Matemática e do GEEmCO: Grupo de Estudos em Educação Matemática e Contemporaneidade, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq.

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Editora:

Projeto Editorial:

Organizadores: Karin Ritter Jelinek Samuel Edmundo Lopez Bello Suelen Assunção Santos Editoras: CANTO - Cultura e Arte Edição: 1(2017) Série: PRAKTIKÉ - Vol. 1 ISBN: 978-85-69802-09-9 Formato: A5 (14 x 21 cm); Acabamento Brochura com orelhas; Miolo em preto e branco; Papel Couche 90g; Capa Colorida; Nº de páginas 176.

Linguagens, Práticas, e Sujeitos

EDUCAÇÃO MATEMÁTICA: Linguagens, práticas e sujeitos

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Educação Matemática: Linguagens, Práticas e Sujeitos ― notas para uma Apresentação ―*

No campo da Educação Matemática, este livro destaca-se por vários motivos. Sem nenhuma preocupação em ordenar tais motivos ou me aprofundar sobre eles, a seguir faço um rápido comentário sobre cada um deles. Em primeiro lugar, este Educação Matemática: Linguagens, Práticas e Sujeitos traz resultados de pesquisas levadas a cabo por especialistas e professores de Matemática que estão familiarizados tanto com o próprio campo quanto com as discussões que vêm sendo travadas sobre a virada linguística e seus “efeitos” sobre nossos entendimentos acerca da Educação. Cada um a seu modo, todos eles traçam articulações interessantes e produtivas entre a Educação Matemática e os novos avanços nas Filosofias da Linguagem e nas investigações de cunho pós-estruturalista. Tais articulações lhes fornecem novas ferramentas teóricas, sem as quais eles não conseguiriam perceber nem, muito menos, tematizar certas questões que se mantêm “invisíveis” nas perspectivas tradicionais de análise. Em segundo lugar, seus autores e autoras, mesmo sem ter como preocupação maior prescrever o que e o como proceder em Educação Matemática, acabam enriquecendo o repertório ― sobre o ensinar e o aprender e sobre a condução da investigação ― daqueles que os leem. Em terceiro lugar, além de cada capítulo ser importante por si mesmo, a bibliografia citada e comentada em cada um deles ― e explicitada nas respectivas referências finais ― abre uma variada e interessante janela para outras produções no campo. Com isso, amplifica-se a utilidade desta obra. Em quarto lugar, boa parte do que está neste livro pode servir de exemplo de como, no plano teórico, se pode articular, entre si, pensamentos que se originaram, se alimentaram e se organizaram a partir de vertentes muitos distintas. Esse é o caso, por exemplo, dos Estudos Foucaultianos, do Neopragmatismo, das atuais Teorias da Aprendizagem etc. Por tudo isso, está de parabéns a bibliografia acadêmica brasileira, principalmente no campo da Educação Matemática! Prof. Dr. Alfredo Veiga-Neto Programa de Pós-Graduação em Educação - UFRGS

* Texto publicado nas orelhas do livro na versão impressa.


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