CIRCUITO N7

Page 1

REVISTA


Edição #07 Dezembro 2018

Capa Luiz Gustavo Alencar

Contra-Capa Ricardo Abussafy

Colaboradores desta Edição Cássia Peguim Andressa Bernardo de Oliveira Anne Caroline Teixeira Brito Éder Capobianco Fernando Del Mando Lucchesi Lívia Pellegrini / Bruna gomes Priscila Sales Rafael Malvar Ribas Julia Daltin Regginato Ariane Soares Gabriela Forti Maschietto Andressa Bernardo de Oliveira Fernando Zanetti Ricardo Naia Rother Ricardo Abussafy

Conselho Editorial Carlos H. Andreassa do Amaral Éder Dias Capobianco Fernando Zanetti Manoela Maria Valério Priscila Sales Ricardo Abussafy

Editores Responsáveis Carlos H. Andreassa do Amaral Priscila Sales Ricardo Abussafy

Projeto Gráfico Carlos H. Andreassa do Amaral

Assessoria Contábil e Fiscal Rosana Ambrosim

Revisor Éder Dias Capobianco

Site da Revista http://www.circus.org.br/circuito

Contato

revista.circuito@circus.org.br

APOIO

Para a criança, mover-se é pensar, disse Merleau-Ponty. Movimentar leva ao pensar... que se transforma em ações... que em sociedade traduzem-se em palavras e gestos. É o ciclo do verbo que reinventa a vida humana. Em momentos críticos algumas forças estancam e o verbo é condenado a calar. O tempo pára e amordaça a vida. Vida que sobra. E sobre vidas surge o autoritarismo apagando as cores da cidade, sufocando a voz da indignação para burlar a invenção de si. Mas, o que o autoritarismo não compreende é que a condição humana passa por uma espécie de peneira, onde o livre pensar entra no campo de batalha multiplicando ações, gestos e obras de arte independente das forças reacionárias. De outra forma traçamos nossa coragem, nossos medos, com gestos de desespero e alegria. Rasgamos o tempo que volta para re-voltar-nos. Nossa re-volta é herdeira da história e por ela criamos fissuras, que re-criam a história. Neste movimento singular e circular, de multidões ou coletivos, corpos são desenhados no limite entre vida e morte, entre fantasia e realidade, entre ordem e caos. E, à beira, corpos lançam pedras, criam sua própria dramaturgia gritando: à história pertencemos! O rumo é incerto e muitas vezes tortuoso. Uma pequena explosão pode arrancar os fios do poder, assim como a volta para si de todos estilhaços. Como vimos nas comemorações dos 50 anos do aclamado Maio de 1968, e as jornadas de julho de 2013, ambas produtoras de fissuras. O que é essa força motriz que levam os corpos a serem arma para o pensamento? Quantos movimentos uma revolta pode produzir? Estas Provocações, estes Pensar-se e Pensá-los transbordam por essas 28 páginas. São movimentos, pensamentos, ações e criações perante a vida indignada, que dirigimos a cada leitor e leitora, para que juntos possamos nos lançar na luta pela dignidade: pelo direito de ser, pelos direitos básicos, pelo direito a arte! E por coincidência nenhuma, nessa edição, a Revista CIRCUITO convida seus leitores e leitoras para a-rriscar-em-se, para que juntos Re-voltem-se, com corpos cheios de poesia, é claro! Agradecemos àqueles que conosco fizeram de sua arte uma pedra e da pedra uma poesia!


3

CALEIDOSCÓPIO EH ISTO BEM-VINDO À SELVA DE MEDOS E MUROS OUTUBRO / BARCO ELA MALDITOS DA MPB ERUPÇÃO IRACEMA MENÇÃO HONROSA AONZE RAPSÓDIA XV OU DA POLÍTICA O SILÊNCIO DOS HOMENS ENTREVISTA

04 05 06 09 10 11 12 16 17 18 19 20 21 22

Cássia Peguim Andressa B. de Oliveira / Anne C. T. Brito Éder Capobianco Fernando Del Mando Lucchesi Lívia Pellegrini / Bruna Gomes Priscila Sales Rafael Malvar Ribas Julia Daltin Regginato Ariane Soares Gabriela Forti Maschietto Andressa Bernardo de Oliveira Fernando Zanetti Ricardo Naia Rother Circuito


4


5


6




9


10


11


12

por Rafael Malvar Ribas

DA

MPB

No início dos anos 1970 os festivais da canção que tiverem grande importância nos anos 1960 continuam, mas perdem força, aparecendo neste momento uma série de artistas que inovam e rompem com os modelos estéticos até então predominantes. Muitas vezes vistos pela mídia como transgressores, esta acaba os denominando com o rótulo de “Malditos”. Termo este controverso, pois como foi imposto de fora, por vezes não agradou os próprios artistas. O termo “Malditos” foi cunhado pela indústria fonográfica e pela mídia


Tom Zé e Sérgio Sampaio - Fonte:Google

O termo “Malditos” foi cunhado pela indústria fonográfica e pela mídia ao se referir a cantores da década de 1970 que eram por princípio contestadores sociais, e não tinham como prioridade o lado comercial, mas sim o de originalidade e autenticidade musical, tanto nas melodias como nas letras. Eram artistas do qual não se encaixavam nos movimentos já existentes, e tampouco tinham essa pretensão. Como o termo foi imposto de fora, não agradava a todos pois alguns julgavam pejorativo. Em entrevista com Jard’s Macalé ao repórter Eduardo Tristão Girão para o site divirta-se, Macalé afirma: ‘Maldito’ é a mãe de quem inventou essa brincadeira. Na minha época, o maldito não se inseria no sistema formal. Eu me sentia Baudelaire, um Rimbaud. A partir de 1985, época careta, gerações vieram e não entenderam aquilo. Vá ao dicionário: maldito é barra-pesada. Comecei a rejeitar isso. Já me chamaram até de tropicalista, e não sou. Querem definir uma pessoa indefinível, e assim virei maldito, ex-maldito, ex-ex-maldito, maldito entre aspas. Outro dia, disseram: maldito bendito. (GIRÃO, Estado de Minas - 15/09/2013) Outro artista que passou renegando o termo foi Itamar Assumpção, que faleceu em 2003. No documentário Daquele Instante em Diante, que retrata a vida e obra do músico, percebe-se como o termo o acompanhou em sua trajetória de forma negativa. Já para outros taxados Malditos o termo não incomoda tanto, como percebemos na entrevista de Jorge Mautner publicada na revista Entrelugares: Macalé sofre muito por causa de maldito, né, e não tem nada. O Augusto dos Anjos seria maldito. Aí você vai tirar toda a litera-


Itamar Assumpção, Jorge Mautner e Luiz Melodia - Fonte: Google

tura profunda porque ela é maldita. Até Machado de Assis, se você quiser, é subversivo... A minha música é a mesma coisa que a minha literatura: tem as mesmas obsessões, dali eu não saio, isso é uma coisa monocórdia, eu sei os discursos de cor porque eles são entranhados. E nesse sentido eu sou maldito porque quero modificar, quero um Estado diferente. Isso aí já é maldito. E depois as áreas de comportamento estético e comportamento, digamos, do amor, de todas as relações humanas. (JORGE MAUTNER, 2011, p.18/19) Zuza Homem de Mello em A Era dos Festivais, também retira o caráter negativo do termo Maldito. Ao falar justamente do músico Sergio Sampaio, Mello coloca que “Sergio Sampaio foi se tornando um artista meio marginal até se incorporar ao time chamado de ‘maldito’, que, longe de ser um termo pejorativo, é sinônimo de cult na música popular”. Atualmente o termo parece ter se consolidado e ficado datado de décadas passadas. Quando nos referimos a quem são os músicos malditos da nossa MPB, vale lembrar que este termo não partiu de um determinado grupo de artistas, e como já explicitado foi até mesmo renegado por alguns. Não há muito material acadêmico que trata o tema diretamente, portanto os nomes normalmente são associados aos que a mídia na época os chamou assim, e que acabaram levando este rótulo informalmente até hoje. Portanto não há como definir, como no movimento tropicalista ao certo quem foram os integrantes deste rótulo, entretanto podemos perceber nos livros, na mídia e na internet que alguns são muito associados ao termo. São eles: Jard’s Macalé, Luiz Melodia, Jorge Mautner, Tom Zé, Walter Franco, Sergio Sampaio e Itamar Assumpção. Napolitano cita a influência que o VII Festival Internacional da Canção teve perante este grupo de artistas: O FIC de 1972 também expressou um certo clima de radicalidade que marcava os jovens criadores, com sua alardeada aversão às fórmulas de sucesso, incluindo aquelas do "bom gosto", o que acabou crian-

do uma nova tendência na MPB: a dos "malditos". Luis Melodia, Jards Macalé, Walter Franco, Jorge Mautner, serão grandes campeões de encalhe de discos, ao mesmo tempo que prestigiados pelos críticos e pelo público jovem mais ligados à contracultura, retomando um espírito que estava sem seguidores desde o colapso do Tropicalismo, em 1969. (NAPOLITANO, 2008, p.8) Outros dois festivais deram destaque a estes artistas, o Phono73 e o Festival Abertura em 1974 que junto ao VII FIC, manteve um público interessado na nova contracultura que surgia. Como cita Napolitano: Nesse FIC e na outra tentativa da Rede Globo de reeditar o gênero (festival “abertura”, 1974), se consolidou outra tendência da MPB dos anos 1970: Os chamados “Malditos”. Famosos por praticar certas ousadias musicais, happenings e posturas provocativas em relação ao gosto do público, nomes como Jorge Mautner, Jard’s Macalé, Luiz Melodia, Walter Franco, entre outros, desafiavam as fórmulas do mercado fonográfico com suas linguagens e performances. O nome “Malditos” consagrou-se como uma espécie de estigma que perseguia tais artistas: eram respeitados pela crítica e pelos músicos, mas não se enquadravam nas leis de mercado das gravadoras, nem se submetiam às suas demandas comerciais, vendendo muito pouco e sendo quase esquecidos pelas emissoras de rádio mais populares. (NAPOLITANO, 2008, p.89) Uma característica comum entre todos estes artistas era o de transitar entre os mais variados estilos musicais, muitas vezes com canções experimentais de até difícil definição de estilo. Como cita Pedro Só (2013) sobre o álbum de estreia de Luiz Melodia, Pérola Negra: poeta popular que trazia em cérebro e vísceras o melhor de dois mundos: o da


tradição nacional e o da modernidade global... nada mais sanguíneo, mais corporalmente integrado que o samba e o blues de suas composições, a ginga do intérprete de singularíssima e bela voz corcoveando entre rock, jazz, forró, samba-shoro e qualquer outro gênero. (SÓ, 2013, p.230) O caráter contracultural de todos estes artistas foi visível também na arte das capas dos discos. Quando normalmente se tinha a foto do cantor na capa, estes também inovaram, cada um a seu modo como vemos na figura a seguir. Tom Zé com a capa de todos os olhos que ficou famosa após a especulação de que seria a foto de um ânus com uma bola de gude. Jard’s Macalé, Luiz Melodia, Jorge Mautner e Sérgio Sampaio até aparecem em suas capas, porém de forma não convencionais, com colagens e sobreposições. Sergio Sampaio aparece ainda travestido, o que escandalizaria ainda mais aos olhos do grande público. E talvez a capa mais corajosa delas, a de Walter Franco contendo apenas uma mosca em tamanho real em seu centro. Apesar dos artistas citados neste item não serem os mais reconhecidos em termos de público ou até mesmo nas bibliografias acadêmicas, o reconhecimento dentre os críticos musicais e especialistas é profundo. Verificamos por exemplo que quatro dos cantores considerados “Malditos” figuram na lista dos cem maiores discos brasileiros de todos os tempos da revista Rolling Stone, são eles: 32° Luiz Melodia (Pérola Negra); 35° - Tom Zé (Estudando o Samba); 50° - Walter Franco (Revolver) e em 86° - Itamar Assumpção (Beleléu, Leléu, Eu).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE, Célio et all. 1973 – o ano que reinventou a MPB. Rio de Janeiro. Sonora Editora, 2013. GIRÃO, Eduardo Tristão. O cara da invenção. Estado de Minas, Minas Gerais, 15 set. 2013. MAUTNER, Jorge. Entrevista com Jorge Mautner. Ceará. Revista Entrelugares, 2015. MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: Uma parábola. São Paulo. Ed. 34, 2003. NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira – utopia e massificação. São Paulo: Contexto, 2008. SÓ, Pedro. Preciosidade única: Pérola Negra – Luiz Melodia. In ALBUQUERQUE, Célio. 1973 – o ano que reinventou a MPB. Rio de Janeiro. Sonora Editora, 2013. p.229-234. WISNIK, José Miguel et all. Anos 70: música popular. Rio de Janeiro: Europa, 2004.


16

por Julia Daltin


17

por Aariane Soares


18


19


20

Descemos a um estado que jĂĄ nĂŁo se basta chorar E chorar ainda seria um descaso por outros E outros teriam que ser vencidos Morte entre nĂłs haveria de ser Um jogo pequeno De verdades pequenas E um nada fazer LassidĂŁo inventada e vertida Cansados de malhas seguimos E nada hĂĄ de durar Pequenos pestejos

Essa terra que pisamos foi mofada E nada daqui serå vertido Apenas tristeza em malhas tidas e tubÊrculos de mågoa E um pequeno pesar Terra Desolada Em um júnio de lilases torpes Quando aqui chegamos tentaríamos verter um canto Entre escavos jocosos e um dia bonito Mas essa terra mofada E nada se poderå Esse dia não seria de sangue vertido Mas de sugar AtÊ o afloramento das malhas que nos juncam Não teremos guerreiros Ou a glória de um antigo Ou a selvageria anônima de uma revolução Nossa morte serå calada Mesquinha Febril como o silêncio desses dias Um sopro de mão nos enleva E nada poderia fazer A Banalidade Barbuda e professada se realiza E o que se pode apenas serå Como o informe desses dias de impossível cansaço e vagar E nem um corpo estarå aqui Apenas singrar.

Fernando Zanetti


21


22


23

Revista Circuito: Conte-nos um pouco sobre o clima

(sentimento) de efervescência cultural na década de 1960 e 1970 na cidade de Assis. Mário Fernando Bolognesi: Na década de 1970, a cidade de Assis vivia um clima cultural muito intenso, especialmente aquelas iniciativas que foram impulsionadas pela Faculdade então chamada Faculdade Filosofia de Assis (FAFIA). Ali havia um Clube de Cinema muito forte, grupos de teatro em atuação fundamentalmente. Mas para além das atividades culturais artísticas, havia também muitos grupos de estudo e temas sociais e históricos. O momento exigia isto. Era uma resposta para a resistência dos anos 70 que enfrentou a parte a mais enrijecida da Ditadura Militar. Em 1975 a Faculdade, por iniciativa do Centro de Artes, consegue um grande festival de artes que envolveu cinema, música, dança, teatro, enfim uma infinidade de culturas populares, circo e etc. Neste festival pudemos experimentar, estou dizendo pudemos porque eu participei também desse festival. O Grupo do Teatro da Faculdade estava em plena atividade e o Centro de Artes alugou uma lona de circo e a instalou no terreno da própria Faculdade, mais ou menos próximo onde hoje se localiza a portaria de entrada. Naquela época a portaria era em outro local. Este circo recebeu eventos de música, de teatro e diversas outras atividades. E uma delas que merece ser lembrada porque foi a primeira vez que a cidade recebeu o grupo até então importante da cena teatral brasileira que é o Asdrubal Trouxe o Trombone com a montagem do “Inspetor Geral”. Era a primeira vez que Asdrubal saía da sede do Rio de Janeiro e fazia uma turnê pelo país e Assis foi contemplada com isto. Além de muitas outras coisas, orquestras e grupos

sinfônicos, foi enfim uma atividade bastante interessante. Até hoje existe lá na Faculdade o buraco que foi feito para improvisar-se um anfiteatro ao ar livre, em que se recebeu Orquestra Sinfônica de Campinas, recebeu shows de diversos cantores como Tom Zé, por exemplo, e uma infinidade de atividades. Isso foi 1975. No ano seguinte, houve a troca de direção da Faculdade e a nova direção da Faculdade boicotou de todas as formas possíveis as atividades culturais na Faculdade, a ponto de, nós que fazíamos parte do Grupo de Teatro, capitaneado pelo Sérgio Nunes, deixarmos a Faculdade e nos transferirmos para o Teatro da Vila Operária, do Padre Luiz. Em resumo, este era o quadro e respondendo objetivamente, na década de 1970 a cidade viveu uma efervescência cultural bastante acentuada.

R C: Especificamente no contexto da ditadura civil-militar

no Brasil e do clima de maio de 1968 na Europa, qual a relação entre arte, política e produção cultural em Assis? M. F. B: O maio de 68, que seria o diferencial em relação à primeira questão, teve presença, no ambiente cultural da cidade, nos anos 1970, obviamente, em especial com temas da liberação de drogas e os hábitos e costumes que envolvia as mulheres e o aprisionamento delas dentro de uma estrutura familiar rígida. Também vinha nesse bojo o contexto da liberação sexual, ou seja, a liberdade da prática sexual, independentemente das relações de casamento. Tudo isso, evidentemente, permeava o clima do Festival de Artes, na cidade de Assis. Mas também, o maio de 68, continuou presente nas atividades corriqueiras da Faculdade, em especial as atividades estudantis capitaneadas pelo diretório acadêmico que na época tinha uma atuação bastante forte.

R. C: Como foi lidar com as práticas culturais em um território institucionalizado como a universidade? É possível ainda relembrar as articulações que envolviam apoios ou a falta deles nessas práticas culturais em território educacional? M. F. B.: É preciso lembrar que nos anos 70, o que vocês estão chamando de institucionalização, território institucionalizado, não era um conceito tão forte e presente. Havia, e isto deve ser esclarecido, uma grande boa vontade da direção de então e é preciso nomear o diretor, o Professor Belotto (Prof. Sr. Manoel Lello Bellotto), e a direção da época que deu total apoio às atividades culturais na universidade. O Professor Belotto, em primeiro lugar, deu cobertura a vários professores que estavam sendo procurados pela Ditadura e, ao lado desta atuação, ele também fortaleceu e fez tudo que esteve ao seu alcance para impulsionar as cidades artísticas, em especial no âmbito da Faculdade. Então, naquele momento, a direção apoiava. Quando houve a troca da direção, houve tam-


24

bém uma troca de mentalidade total em relação às atividades culturais. A chapa que venceu eleição, era uma chapa pouco progressista, para dizer o mínimo, e combateu duramente as atividades culturais na Universidade. Eu estou enfatizando as atividades na universidade, mas é bom deixar claro que, naquele momento, as atividades se espraiavam por toda a cidade. O Grupo de Teatro apresentava suas peças para além dos muros da Faculdade. O Cineclube estendia suas atividades também para além da cerca da Faculdade. Então a nova direção combateu duramente essas práticas, a ponto de abandonarmos o terreno da Faculdade como eu já afirmei. O cineclube também sofreu bastante com a nova Direção. Por outro lado, também no campo específico de análise daquele momento, o centro de artes e do grupo de teatro e também grupos mais radicais à esquerda criticavam as atividades culturais dizendo que elas eram uma forma de amenizar o processo de conscientização da ditadura, ou seja, de escamotear o processo histórico que estava evidente. Então as atividades culturais, do modo geral, elas sofreram esses dois ataques. Evidentemente o ataque mais forte veio por parte da Direção da Faculdade que assumiu, se não me falhe a memória, em 1976.

R. C.: Sabemos que o Clube de Cinema teve um im-

portante papel cultural, tanto dentro da universidade, quanto na cidade. Você participou desse grupo? Como eram essas atividades? Foram politizadas pelo clima do período? Se sim, a influência era mais pelos movimentos de resistências culturais (como no caso de maio de 68) ou por movimentos políticos partidários? M. F. B.: O clube de cinema teve um papel importantíssimo na formação política e cultural daquele momento. Ele de fato estendeu sua ação para a cidade, no começo ele era exclusivo às apresentações e discussões na Faculdade, mas no momento seguinte ele se estendeu para a cidade. As sessões aconteciam no sábado à noite, a partir da projeção do cinema da cidade que terminava por volta das 10:30. Na cidade, onde no momento chamava-se Cine Peduti, hoje é o cinema da FAC, tinham sessões do Cine Clube, com ciclos de cinema dos mais importantes da época, especialmente os europeus. E à cada exibição era acompanhada de um debate, quase sempre com convidados de fora, em especial da Escola de Comunicação e Artes da USP (ECA). Só para título de exemplo, os professores Ismail Xavier e Jean-Claude Bernardet eram convidados com frequência e várias vezes foram para Assis discutir filmes. Então o cineclube teve essa participação muito grande e de forma bastante politizada. Eu não participei diretamente do cineclube, eu era um frequentador assíduo do cineclube e participava dos debates. Mas da organização do cineclube propriamente dito, do seu ciclo e de sua programação, eu particularmente não participei. Eu participava do lado da plateia. Sobre a influência de Maio de 68 neste contexto, na minha visão, na atividade do Cineclube,

estava mais propensa, mais direcionada a discutir os movimentos políticos da época e o maio de 68 de certa forma tangenciou as atividades, estavam portanto presentes, mas não eram, na minha avaliação, o foco central da programação do Cine Clube.

R. C.: Entre as décadas de 1960 e 1970, a arte teve

que lidar com a censura de Estado. Nos últimos anos, a censura às artes se intensificaram, mas, desta vez, partindo de uma onda conservadora proveniente do próprio público que frequenta as cenas culturais. Como você analisa esses dois momentos? M. F. B.: Na década de 1970, a censura já era uma instituição de governo e todas as atividades estavam propensas a sua autorização. Nós no grupo de teatro, era um grupo de teatro universitário e também, portanto amador, tínhamos também de preparar uma apresentação prévia para os sensores que vinham da cidade de São Paulo, assistiam o ensaio geral e posteriormente emitiam um certificado de autorização ou não da apresentação da peça. Nós nunca tivemos assim problemas maiores com a censura - o que eu digo problemas maiores de proibição total das encenações. Tivermos cortes de partes específicas de espetáculos e também da dramaturgia. Também é preciso registrar que o repertório nosso gravitava em torno do Teatro Arena, do Opinião e do Oficina que eram os principais polos de resistência do teatro nos anos 1970 e também nos anos 1980. [Sobre a censura nos tempos atuais], são perspectivas diversas de um ato de censura uma é proposta e desencadeada a partir de aparelhos de Estado e a outra pelo próprio público. Esta última, presente nos últimos anos, está muito fortemente associada à política generalizada em torno do politicamente correto, o que traz às artes limites às vezes indesejáveis, mas eles ocorrem. É lamentável que o público tenha tomado para si o papel de sensor da atividade artística. Isto faz com que, no meu


25

entender, a necessidade de militar pela liberdade das artes se torne cada vez mais presente e será cada vez intensa a partir deste momento (2018 e 2019), dado o quadro político no qual o Brasil se encontra. Então o tema da liberdade das artes deverá ser posto em voga novamente, porque as conquistas a partir dos anos 80 todas as conquistas que tiveram nesse Campo, tanto do ponto de vista da liberdade de tratamento de assuntos e temas, como também de formas, como esses temas são abordados, perdeu-se. Boa parte se perdeu, boa parte ficou para trás. É preciso recuperar e conquistar essa liberdade de manifestação das artes. Esta é luta futura!

R. C.: Sobre sua longa e íntima relação com as artes circenses, como começou esta aproximação? M. F. B.: Eu tinha adiantado [em pergunta anterior] que no Festival de 1975 foi colocado no Campus da Faculdade uma lona circense e que foram executadas várias atividades ali: de circo, de teatro, de música, de dança, de poesias e etc. Eu considero aquilo como o primeiro momento para o despertar do potencial do circo e das artes circenses para uma postura crítica em relação à prática Cultural. De um modo geral, o lugar circo, sua forma, constitui um espaço muito mais democrático, se comparado ao teatro e ao cinema, espaços estes em que a plateia fica no escuro e pouco pode se manifestar. No espaço circense a manifestação do público é algo que é integrado ao espetáculo e que, portanto, requer dos artistas circenses uma postura de interação e comunicação direta com o público. Ou, dito de outra maneira, os espetáculos de circo não são na grande maioria espetáculos que colocam o público na posição passiva. Eles não são espetáculo que dão ao público uma expressão de um determinado tema ou de uma determinada realidade. Este tema da expressividade da arte circense é mais

recorrente na atualidade com os modelos chamados novo circo ou circo contemporâneo que trouxeram para as artes circenses a incidência de um enredo a ser narrado, de uma história a ser contada. Estou me referindo, portanto, às artes circenses no seu perfil de montagem de atrações e que se comunica com o público e, nessa comunicação, ela se dá essencialmente por uma relação sinestésica e não necessariamente de entendimento de um enredo, de uma história. A minha aproximação começou nos anos 1970, futuramente, após a minha graduação, eu fui para São Paulo e procurei o mestrado na área do teatro e dentro da área do teatro, com interfaces com circo e me debrucei sobre o Maiakovski e peças do Maiakovski que têm a presença do circo na sua composição. Depois com o mestrado montamos uma companhia de circo, de artes circenses, com lona, com tudo, com caminhão e etc. Perambulamos e depois, quando a companhia se desfez, dado fundamentalmente ao fracasso de um plano econômico de 1986, o Plano Funaro, se não me falha a memória. Momento em que muitas companhias de circo na cidade de São Paulo fecharam suas atividades e nós também pagamos com atividade, 1987 na realidade. De lá para cá, me dediquei à pesquisa, me dediquei a repassar o que sei, o pouco que sei de artes circenses para estudantes, prioritariamente estudantes da Faculdade, naquele momento em Marília e em Assis. E continua ainda com a lida circense dentro da Universidade. Consegui para o Instituto de Artes da UNESP, através do financiamento do CNPQ e também da Fapesp, uma lona de circo e lá desenvolvi projetos de extensão de graduação e de pós-graduação na área circense. E assim a vida continua entre equilíbrios e desequilíbrios.

R. C.: Por um bom período você teve uma trupe de circo que rodava o interior paulista. Como você descreve a movimentação artística e cultural naquela época fora das capitais e qual o papel do circo neste processo? M. F. B.: A nossa Trupe de Circo ficou um bom tempo na periferia na cidade de São Paulo e depois viajou por cidades do interior de São Paulo e de Mato Grosso. Até antes daquele plano Funaro, o qual me referi anteriormente, só a cidade de São Paulo em sua periferia contava com aproximadamente de 100 a 120 lonas de circo que atuavam em toda a Grande São Paulo. Pois bem, como o Plano Funaro, com o fracasso dele, não como Plano, mas com fracasso do Plano, dessas 120 lonas, acho que restaram algo em torno de 10 a 15 no máximo. Foi, portanto, um golpe muito duro para os circos, tanto na cidade de São Paulo, como no interior do Estado. Agora a segunda parte da pergunta, a respeito da movimentação artística da época fora das capitais e o papel do circo nesse processo, ora, o circo, historicamente no Brasil, tem um papel importantíssimo. É ele que no momento em que ele está numa cidade é o centro cultural daquela cidade. Vejamos o se-


26

guinte, hoje a realidade é um pouco diferente, mas até os anos 1980, pouquíssimas cidades do Brasil tinham um teatro e os cinemas quando em sua fase áurea, a maioria dos espaços destinados ao cinema estavam fechando. O circo então era o momento em que trazia para cidade essa revitalização do aspecto cultural. E, ao mesmo tempo, ele absorvia da cidade, porque o circo dá vez, ele dá voz a artistas da cidade também para ingressarem seus espetáculos, pelo menos dava no formato dos espetáculos de pequenos e médios circos da época. Então o circo, especialmente no interior teve esse papel de lugar ou de centro de cultura. Ora, se você quiser ter uma visão mais clara esse respeito, o livro do Magnani[*], o “Festa no pedaço”, aborda exatamente esta questão. Ele teve esse papel. Hoje esse papel está se perdendo. Os circos estão cada vez mais se fechando, acabando e não há políticas públicas no Brasil, quer dizer, há algumas que tentam fantasiar ou esconder o problema, e colocar um véu sobre o real problema de uma política cultural voltada para a área circense.

R. C.: A cultura e produção artística fora dos grandes

centros é diferente hoje em relação àquela época? Se sim, quais são estas diferenças? M. F. B.: Uma pergunta bastante instigante! Elas são diferentes efetivamente em termos de qualidade, quantidade e estruturas. Isto é, formas de financiamento das atividades. Nos anos 1970 e 1980, raríssimos eram os casos de iniciativas fora do grande centro que tinha qualquer aporte financeiro ou de política cultural que desse guarida às suas iniciativas. Na atualidade, apesar dos problemas atuais em termos do PROAC e das leis de fomento às diversas áreas, essas leis de incentivo à atividade artística se estenderam bastante para o interior também, além dos grandes centros. Se, até os anos 1980, o financiamento de uma produção artística e cultural, era resultado da relação direta dos artistas com o governante, na política do balcão, a partir dos anos 1990 em diante este modelo de financiamento da Cultura foi, paulatinamente, sendo

melhorado, aprimorado, e o circo também conseguiu alguma diferença. Por outro lado, nós também assistimos, do ponto de vista quantitativo, especialmente fora dos grandes centros, nas cidades do interior, uma explosão maior de grupos de teatro de dança teatro de rua e etc, que impulsionam as atividades diversas nas diversas cidades. Nos anos 1980, eles existiam mais em torno do teatro, por exemplo, você tinha o grupos teatrais nas cidades e eles eram capitaneados, organizados, pela Federação do Teatro Amador e pela Confederação do Teatro Amador que organizavam os seus festivais. As relações eram muito diversas, porque o sistema de produção daquele tempo levava muito em consideração as condições reais de possibilidade de produção. Isto é, trocando-se em miúdos, montava-se a peça e fazia-se uma peça de teatro com aquilo que se tinha disponível. Isto porque sabíamos de princípio, que não encontraríamos guarida de suporte financeiro, a não ser coisas muito mínimas e pontuais: a edição de um panfleto, da peça, de um apoio de uma loja, do restaurante para coisas muito pequenas e pontuais. De lá para cá, mudou bastante essa configuração, os grupos podem e hoje eles fazem isso, eles têm leis de fomento nos diversos âmbitos do município, do estado e da União, que bem no mal ainda dão algum suporte. Mas, por outro lado, isso é importante frisar, se antes você tinha um movimento forte do teatro amador, unificado em festivais de âmbitos local, regional, estadual e nacional, comparativamente aos tempos atuais, isso se modificou completamente. Perdeu-se, portanto, a tônica política desses encontros, desses festivais, e a estrutura do financiamento por leis de fomento, passou-se a ocorrer de forma individualizada com grupos específicos, atividades específicas e etc. Dito de outra maneira, até os anos 1980, havia, na produção teatral pelo menos, que essa que eu mais me aproximei, que mais eu posso falar com mais propriedade, o aspecto político que permeava todas as organizações de festivais. Hoje isto se perdeu, mas por outro lado, se ganhou em formas de financiamento das atividades.

R. C.: Quais experiências de vida você leva ao experimentar a convivência coletiva e nômade do circo?

M. F. B.: É uma pergunta que demandaria uma re-

sposta bastante longa, porque o convívio coletivo e errância circense me deram muitas lições. A primeira delas, fundamental, é a relativização de valores e conceitos. A segunda, o reconhecimento da voz do outro, o reconhecimento de valores e hábitos culturais de outras fontes, de outros agrupamentos e de outras necessidades. A experiência com o circo faz ver, dada a interação que o espetáculo deve ter como público, essa experiência faz ouvir aquilo que não é você. Porque há uma tendência bastante cômoda do artista querer dizer aos outros o que deve ser e o que não deve ser. A experiência do circo, não passa por nesse viés. Ela passa por um viés de diálogo com a cidade e com as pessoas no seu entorno e esse diálogo, por exemplo, entra no picadeiro, entra no espetáculo, em


27

especial, a partir da atuação do palhaço. E a minha experiência de vida está toda ligada a esse momento da vida circense, deste convívio coletivo e errantico do circo.

R. C.: No teatro, no circo e na academia a comédia foi uma de suas mais fortes aliadas. Qual a força desta linguagem artística no diálogo com a sociedade? M. F. B.: Quando a comédia está para reiterar os valores vigentes de uma determinada sociedade e de uma determinada época, ela é muito bem aceita. Mas nessa mesma época, nessa mesma sociedade, se ela se coloca como crítica de valores, de hábitos e de costumes, ela é bastante combatida. Exemplo da atualidade é o stand-up hoje, que reitera preconceitos, que repõem sobreposição de valores, que propõem a perpetuação de uma classe, de uma categoria de pessoas dotadas de conhecimento e de saber, para outra categoria que é desprovida, na visão deles de conhecimento e de saber, esse modo de comédia é bemvindo. Estou dizendo de um ponto de vista, obviamente, amplo da sociedade. A comédia que critica, a comédia que provoca a decisão, ela não tem a mesma receptividade, ela não tem a mesma frequência, no sentido de procura do público por ela. E ela de fato sofre com perseguições, especialmente com perseguições, na atualidade, diretamente do público. Já numa questão anterior foi feita referência ao politicamente correto. Em relação à comédia e ao riso, o politicamente correto é uma espécie de index librorum prohibitorum da atualidade para o corpo e para o riso. Esta é uma encruzilhada que os artistas precisam enfrentar, que a sociedade precisa enfrentar. Ela precisa deixar de se acomodar na comédia do riso fácil. R. C.: Por fim, o tema desta edição da Revista Cir-

cuito é a revolta. Quais relações você enxerga entre arte e revolta? M. F. B.: Toda arte, pelo menos aquelas mais significativas em seus respectivos períodos históricos, trouxeram a rebeldia como tema. Por rebeldia entenda-se questionamento de valores, questionamento de valores artísticos, questionamento de hábitos e costumes culturais, questionamento de pensamentos e verdades. Na atualidade, isso se faz cada vez presente. O tema da rebelião, o tema da resistência, o tema do inconformismo, se eles não estiverem alimentando o fazer artístico, não me parece que haja motivação alguma para enfrentar todas as dificuldades e continuar na ação cultural e artística. Fazer a arte ou a manifestação cultural pelo simples fato de preencher os espaços da diversão no capitalismo, não me parece uma atitude condizente com os tempos atuais. Se pensarmos um projeto ou uma atividade de cultura que tenha esses ingredientes, quero dizer, da diversão e do entretenimento, veja toco isso porque na presença do circo são evidentes esses dilemas, mas o circo não se propõe a revolta. Mas os agrupamentos atuais em

torno da arte circense, esses precisam retomar o tema da revolta, da rebeldia, da resistência ou para dizer numa pequena e significativa palavra: precisa-se repor o tema da liberdade da arte, dos artistas e da cultura. Os grupos artísticos, os movimentos culturais e as organizações culturais, que estão independentes e autônomas em relação ao poder público, necessitam urgentemente combater esse movimento conservador e moralista, que é fruto deste momento histórico atual. Movimentos estes que têm atacado violentamente as artes, a literatura, a própria academia, a própria educação de modo geral, as universidades inclusive. A onda moralista precisa ser combatida. O movimento cultural, as organizações culturais dos artistas e os agrupamentos devem ser parte desta resistência e desse combate.

[*] MAGNANI, José G. C. Festa no pedaço; cultura popular e lazer na cidade. São Paulo: Brasiliense, 1984.



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.