Expedição Transoceânica

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2016 Expedição Transoceânica

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Carlos Beppler


Do Acre a Cuzco, na Rodovia Interoceânica da Amazônia aos Andes.

Uma viagem de bicicleta em que predominou a aventura. Que não pode ser confundida com cicloturismo. Um caminho que exigiu preparo físico e psicológico para encarar desafios imprevisíveis. Pedalar nesse percurso não foi a maior dificuldade. O calor da Floresta Amazônica e a subida dos Andes foram pequenos desafios comparados a falta de estrutura de hospedagem e as comidas peruanas. Estiveram comigo nessa viagem o Valden Rocha, do Acre e o Joci Gugelmin, de Joinvile. Reunimos-nos ao Valden em três de novembro de 2016, depois de uma longa viagem aérea que começou em Navegantes (SC) e fez conexões em São Paulo e Brasília. Saímos pela manha e chegamos à noite no Acre. No embarque em Navegantes surgiu a primeira despesa extra cobrada pela empresa aérea. Trinta reais por quilo que passar da franquia de 23 por passageiro. A dica é levar muito pouca bagagem. Ficamos dois dias em Rio Branco para conhecer a cidade e preparar as bicicletas. A cidade é muito bonita e bem cuidada. Com o apoio do Valden Rocha, conhecido ciclista local e fundador da ACAC (Associação de Ciclismo do Acre), tivemos muitas facilidades. Uma loja de bicicletas fez a montagem e revisão das bicicletas. Foram atenciosos e gentis, não nos cobraram pelo serviço e ainda nos brindaram com alguns acessórios para a viagem.


Cinco de Nov 2016 – Assis Brasil/Ibéria

No dia cinco de novembro, seguimos de carro de Rio Branco até Assis Brasil, cidade do Acre que fica na fronteira com o Peru. Optamos por ir de carro até lá devido à precariedade da rodovia entre as duas cidades. Apesar de ser obra da mesma Odebrecht que construiu a rodovia no Peru, as duas estradas são completamente diferentes em qualidade. No trecho Brasileiro o asfalto já deu lugar a buracos enormes, no Peru andamos quase 800 km sem encontrar um buraco. Piso perfeito, sinalização perfeita. Saímos cedo de Rio Branco, a viagem de 300 km mais os trâmites de fronteira nos tomaram a manhã. Pegamos a estrada no calor de meio dia. Isso foi uma temeridade, os 60 Km até a cidade de Ibéria, no calor sufocante da floresta fizeram sentir seu peso. Eu e o Joci, mais acostumados a essas longas jornadas, fomos nos ajeitando, nosso amigo Valden estava quase quebrado no meio da tarde. Sem pontos de apoio a água dele acabou logo. Paramos em uma casa para pedir mais água. O morador nos brindou com dois litros de " Chicha Morada”, um refresco tipicamente peruano que é feito com milho de cor roxa, o "maiz morado", fervido com especiarias e frutas. É servido sempre frio ou gelado. Uma delícia refrescante que levantou da cova raza em que estava nosso amigo Valden, segundo suas próprias palavras.

A viagem até Ibéria seguiu lenta em uma rodovia deserta, terminamos o percurso já à noite. A hospedagem em Iberia foi o primeiro contato com o que nos esperava nos próximos dias. Um quarto simples, banho frio. Inauguramos nossa dieta de frango assado com batatas fritas nessa noite.


Seis nov 2016 – Ibéria/Mavila Após um primeiro dia muito quente, resolvemos sair cedo de Iberia para evitar o calor. O dia começa a clarear antes das cinco da manhã, mas até providenciarmos comida, café e pão com ovos fritos, já eram quase oito. Pedalamos até a localidade de Alerta e, perto das onze, paramos em um pequeno restaurante a beira da estrada, local muito simples mas com um quiosque coberto de palhas onde fomos fugir do calor. Nos fundo do restaurante uma providencial ducha nos refrescou. Almoçamos arroz com frango e fizemos uma siesta até a temperatura cair um pouco. Pelas três da tarde voltamos para a estrada. Anoitecia quando chegamos ao povoado de Mavila. Lá apenas dois locais para dormir, um pior que o outro. Muito calor, descartamos o primeiro local, estava um forno e nem ventilador tinha. O segundo tinha ventilador. Hospedamos-nos, nada de toalhas, os quartos no primeiro andar e os banheiros no térreo. Tomei um banho improvisado, depois fomos jantar em um restarante bem precário. Nessa noite o banheiro foi improvisado em uma garrafa pet vazia.


Sete nov 2016 – Mavila/Porto Maldonado

A noite desconfortável em Mavila nos tirou da cama cedo. Pegamos a estrada sem comer nada. Antes das cinco e quinze da manhã começamos a viagem com destino a Puerto Maldonado. Uma hora depois paramos no povoado de Alegria onde providenciamos o já tradicional café acompanhado de pão e ovo frito. Para nossa surpresa, em Alegria encontramos uma pousada bem melhor, até apartamentos com ar condicionado, se tivéssemos andado mais uma hora teríamos tido uma noite bem mais confortável que a de Mavila. Seguimos passando um pedágio em Planchon, outro povoado com melhor estrutura para hospedagem com uma pousada recém construída e bons apartamentos. Ás 12:40 chegamos a Puerto Maldonado. Cidade bem maior e bem estruturada. Ao atravessarmos a ponte na entrada da cidade chegamos a praça principal onde duas brasileiras nos deram a dica de um restaurante que foi nosso point nos dois dias que se seguiram.

Almoçamos e depois procuramos um hotel para descansar. Encontramos no Hotel Rolmann um bom lugar com ar condicionado e banho quente


Oito de nov 2016 – Porto Maldonado Logo cedo saímos para procurar uma oficina onde consertar um raio da bicicleta do Valden que tinha quebrado. Depois de muito procurar, numa cidade cheia de ciclovias e poucas bicicletas, encontramos uma oficina mista de motos e bicicletas, a INKA Motos, que se propôs a consertar. Com muita dificuldade, por falta de ferramentas, demorou um pouco mas o conserto saiu. Eu consertei um furo no pneu trazeiro da minha bicicleta que vinha perdendo pressão a dois dias. Usamos o restante do dia para conhecer essa cidade bem cuidada no meio da floresta amzônica. Ficamos mais uma noite para recuperar as forças.


Nove de Nov Porto Maldonado/Union Progresso. Choveu boa parte da noite que passamos no hotel de Porto Maldonado, o dia amanheceu fechado. Preparamos o café na cozinha do hotel e antes das seis pegamos a estrada. O destino do dia era incerto, tínhamos muito pouca informação desse trecho até a cidade de Santa Rosa, que fica a 150 km de Porto Maldonado. Depois de uma hora de viagem o tempo piorou e caiu uma chuva torrencial, paramos em uma escola onde nos abrigamos. Muitas crianças aguardavam a chegada do professor para as aulas do dia. Ficamos mais de duas horas parados esperando o tempo melhorar. A chuva deu trégua e seguimos pedalando até a hora do almoço. Em um quiosque de aspecto precário almoçamos um peixe grelhado. Por sorte ninguém passou mal. Retomamos a viagem e uma hora depois a chuva voltou, paramos em um povoado chamado Union Progresso, meia dúzia de casas e entre elas uma pousada. Procuramos nos hospedar, a pousada estava lotada. Em frente à pousada uma precária pensão, quartos separados por meia parede de compensado, limpeza precária e banheiro frio do lado de fora. Não tínhamos alternativa, ou ficávamos ali ou seguíamos para o incerto com a noite se aproximando numa perigosa região de garimpos de ouro. Tivemos

uma

noite

muito

mal

dormida

com

campeonato

de

roncadores.


Dez de nov Union Progresso/Mazuko O dia em Union Progresso começou com o rotineiro pão com ovo frito. Chuvas isoladas retardaram nosso avanço. Ingressamos na região mais insegura da viagem passando pelo centro dos garimpos de ouro. Os Garimpeiros devastaram essa região causando um grande desastre ambiental. São centenas de quilômetros de selva, destruídos pelos garimpos que revolvem o leito dos rios e usam o mercúrio que se espalha pelos rios da região. Não demora muito para surgirem cidades de barracos construídos às margens da rodovia. Todo tipo de comercio em construções rudimentares que invadem o acostamento. O trânsito é caótico e montanhas de lixo se acumulam às margens da rodovia reunindo bandos de abutres num cenário de devastação inacreditável. A devastação é tão grande que pode ser vista nas imagens de satélite do Google Maps. Santa Rosa é um povoado que marca o inicio das montanhas. A topografia se altera e começamos a subir muito. A floresta ainda está presente. Paramos no povoado par almoçar, a comida foi boa e o atendimento gentil. Aproveitei para comprar uma nova mochila, a antiga não resistiu e rompeu. Santa rosa não dispõe de estrutura de hospedagem. Apenas um hotel e fechado. A saída de Santa rosa começa numa subida longa e forte até o topo onde existe uma igreja. Perto da 15:00 chegamos a cidade de Mazuko. Uma boa capacidade de hospedagem permitiu que escolhêssemos um hotel para descansar. Para comer já não foi aquela coisa. As comidas peruanas são muito precárias.


Onze de Nov Mazuco/ Quincemil Esse foi um dia cheio de surpresas, logo no inicio da manhã encontramos o Adrian, um veterano ciclista peruano e sua bicicleta. O Adrian é um conhecido dos ciclistas que passam por esse caminho entre as montanhas. Em setembro de 2011 o Fabio Fes já tinha citado um encontro com ele em sua viagem aventura por essas terras remotas. Seguiu conosco desde o vilarejo onde vive até cruzarmos a Ponte Inambari onde a rodovia se divide em dois destinos, um seguindo para Puno e outro, cruzando o rio em direção a Cusco. Pouco depois da ponte, ainda junto com o Adrian, outra surpresa, um ciclista Frances, vindo de Cusco, se aproxima. Paramos e conversamos longamente e por fim nos despedimos. O Adrian voltou com ele. Seguimos subindo e o calor também, os pés estavam fervendo e paramos para molhar em um pequeno curso de água. Que bom se tivéssemos uma cachoeira para mergulhar. Pouco depois nosso desejo foi atendido. Uma linda cachoeira e várias pessoas se refrescando nas águas cristalinas. Paramos e caímos na água. Junto a estrada uma senhora assava uns frangos enroladas em folhas semelhantes a bananeira. Ali foi nosso almoço regado com INKA COLA. Eram 16 h quando chegamos a Quincemil. Uma grande festa animava o povoado no aniversário da cidade. Andamos muito em busca de um hotel decente, acabou por escolhermos o menos ruim entre uns cinco que existem no lugar. Nessa noite arrisquei comer um Spagueti com molho, tive sorte e foi tudo bem.


12 Nov Quincemil/Limacpunko Nossa previsão inicial para essa etapa era Quincemil/Marcapata. A estrada seguiu pelo vale do rio em uma subida continua, a paisagem ao redor é de uma natureza exuberante, cachoeiras descem das alturas. Segue assim por horas a fio, o ritmo de pedalada tem que ser lento se não o corpo não aguenta . Onze da manhã e paramos num povoado em uma banca repleta de bananas de todos os tipos. Um reforço com frutas providencial. Na cabeceira da Puente Capiri , junto a uma cabana de um simpático senhor que colhia suas bananas, fizemos um almoço improvisado com ovos fritos e pão. Os ovos foram comprados em uma casa , nenhum comercio nesse povoado que nem nome tem. A tarde vem chegando e a estrada segue deserta. Quase cinco da tarde paramos num povoado chamado Chilechile, o primeiro local com alguma estrutura. Num restaurante chamado Quinta Gonsol. fomos muito bem recebidos e combinamos o jantar. Como não tinha pousada no lugar seguimos mais 5 km até Limacpunko. Lá conseguimos um hostal que prometia banho quente. Depois de hospedados vimos que não era bem assim, os chuveiros dos apartamentos não funcionavam e tivemos que usar um cubículo no térreo para um banho em que metade da água aquecia no chuveiro e a outra era fria de tanto que o chuveiro vazava. O pessoal da Quinta Gonsol veio nos buscar para o jantar, combinamos visitar a criação de trutas no dia seguinte. Esse pessoal da Quinta está iniciando uma estrutura que no futuro deve ficar muito boa como ponto de apoio. A pousada deles está em fase final de construção.


Treze nov – Limacpunko/Marcapata O dia começou com a visita a fazenda da Quinta Gonsol. Um vale onde criam patos, porcos e existem vários tanques com trutas. Um belo lugar que tem sido cultivado há muito tempo, desde os ancestrais de nosso anfitrião. Logo na chegada um ritual Quechua de saudação às divindades que habitam as montanhas ao redor. Ficamos nessa visita até a hora do almoço, pegamos a estrada depois das 13 horas o trecho até Marcapata parecia curto. Continuaram as subidas, íngremes com muitas curvas serpenteando as encostas. Avistamos o mesmo caminhão uma meia dúzia de vezes passando pelas curvas que se sucediam. No final da tarde finalmente surgiu Marcapata lá no topo da montanha. Pedalamos mais uns 5 km de subida até chegar à vila envolta em nuvens. Banho só frio, apesar de a cidade ter varias termas. Desistimos dos banhos quentes, pois teríamos que voltar um bom pedaço até as termas e estava muito frio.Logo chegou a noite e as nuvens nos cercaram, o vilarejo ficou com um ar fantasmagórico. Na praça principal apenas velha igreja colonial de São Francisco de Assis.


14 Nov Marcapata/ Ocongate As nuvens da noite anterior sumiram e acordamos com muito Sol. O dia seria o mais desafiador de toda a viagem. Pela frente o ponto culminante da viagem, a Abra Phirhuayani a 4725 m de altitude.

A topografia não deu trégua, logo de saída já começamos a longa escalada da serpente de asfalto que lentamente nos levou a avistar os picos cobertos de neve numa visão emocionante. Muito frio e o ar rarefeito, mas ninguém passou mal. Nosso organismo foi se aclimatando com a lenta subida.

Depois do pico algumas descidas e muito planalto seguindo o rio. Ainda com as montanhas nevadas no horizonte chegamos a Tinke no meio da tarde. Alguem tinha ns dito que depois da Abra Phirhuayani seria tudo plano, engano. Subimos muito ainda até chegar a Ocongate.


15 nov - Ocongate/ Huara Huara (CCAT CCA) Pelo planejado, a etapa seria Ocongate a Urcos, a topografia mais uma vez derrubou nosso planejamento. Saímos tarde de Ocongate e logo os Andes mostraram sua beleza na forma de montanhas nevadas no horizonte. A beleza da paisagem nos levou a inúmeras paradas para contemplação da grandiosidade de tudo que nos cercava naquele momento. Alem da paisagem, a natureza também nos cobrou o esforço na forma de subidas muito fortes, talvez as mais inclinadas do percurso. Fizemos uma parada para conversarmos com uma senhora que vendia seu artesanato à beira da estrada que rendeu belas fotos. O dia foi passando, paramos bastante tempo para almoçar e, quando percebemos, a tarde já avançava e nós muito pouco. No povoado de Huara Huara também chamado CCAT CCA, não sei até agora porque existem essas duas denominações, tomamos a decisão de pernoitar. O trecho que ainda faltava para Urcos era muito difícil e iríamos entrar pela noite em uma área de montanha com muito frio. A parada nos deu oportunidade de irmos até uma montanha próxima, num velho táxi em que o motorista nos ofereceu o passeio e disse que já avistaríamos a região de Cuzco e o Vale sagrado. Foi uma aventura à parte. A estrada de terra na montanha, os precipícios, o jeito meio doido do peruano dirigir. Foi um passeio com emoção. No final o visual do alto ficou apenas parcial, ninguém aguentou a escalada a pé. Enquanto o motorista e sua filhinha de uns cinco anos subiram a encosta correndo nós, simples mortais da planície fomos parados pela altitude.


16 Nov Huara Huara/Cusco Sob um Sol brilhante logo cedo, a estrada iniciou uma escalada que nos levou novamente a superar os 4000m de altitude. Chegar até lá foi mais um grande esforço. Finalmente a Abra Cuyuni, com seus 4150m chegou. O último grande desafio estava vencido. Um imenso vale se abriu a nossa frente, depois de uma descida de mais de 20 km a cidade de Urcos. O percurso mais rápido de toda nossa viagem. Praticamente sem usar freios despencamos pelas encostas de uma estrada vazia. Foi emocionante. Passamos por Urcos e nem entramos na cidade, nosso objetivo era chegar a Cuzco ainda nesse dia. Logo adiante a pequena cidade de Huaro chamou nossa atenção pela beleza da praça central florida e as construções coloniais espanholas. Paramos para lanchar e descansar um pouco. Ao retomarmos a estrada encontramos um animado trio de ciclistas, duas mulheres e um homem, argentinos de Córdoba, estavam já com mais de 3000 km de estrada rumo a Cuzco. O restante do dia estivemos juntos .


O terreno ficou mais fácil e surgiram muitas cidades no caminho. Avançamos rápido e, no finalzinho da tarde chegamos à periferia de Cusco. Ainda pedalamos mais uns 10 km em uma movimentadissima avenida que tinha uma ciclovia central. Ao redor o trânsito caótico de uma grande cidade peruana.

Passava 18h30min

das quando finalmente chegamos ao destino final de nossa jornada ciclística. Na Plaza de Armas de Cusco, em frente à catedral, fizemos a foto histórica para nosso grupo. Missão cumprida, ligamos através de nosso próprio esforço a Amazônia brasileira no Acre ao Peru em Cuzco. Sabor de vitória. Despedimos de nossos amigos argentinos e fomos procurar um Hotel.


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