Segredos casamento saudavel 1cap

Page 1

Capítulo 1

O terreno

I. Sobre que terreno estamos edificando?: análise da sociedade Sempre nos espantou a pedagogia de Jesus ao ensinar sua Palavra; seu estilo narrativo cheio de metáforas e parábolas é uma excelente forma de gravar na nossa mente seus ensinamentos. No trabalho que temos com a associação De Família a Família, Salmo 127.1 foi escolhido como ver­ sículo lema: Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam1, dando a entender que toda casa deve ser construída e edificada sobre a base e o fundamento da Palavra de Deus. Deus é o arquiteto e o criador do nosso lar (casamento), mas todo lar, toda casa, deve ser cons­ truído sobre um terreno adequado, ter os alicerces sólidos e contar com materiais de qualidade. O texto de Mateus 7, sobre o qual baseamos a estrutura deste livro, também está ambientado no tema da construção e da edificação. Fala-nos sobre a importância de seguir os passos adequados para que a casa tenha alicerces e fundamentos convenientes e não venha a desmoronar quando chegarem os maus tempos. Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as põe em prática será comparado a um homem prudente, que edificou sua casa [casamento] sobre a rocha. E a chuva caiu, os rios se encheram, os ventos sopraram e bateram com força contra aquela casa [casamento]; contudo ela não caiu, porque estava alicerçada na rocha. 1

Em outras versões se diz “construtores, pedreiros”.


22 •  SEGREDOS DO CASAMENTO SAUDÁVEL

Mas todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as põe em prática será comparado a um homem insensato, que edificou sua casa sobre a areia. E a chuva caiu, os rios se encheram, os ventos sopraram e bateram com força contra aquela casa [casamento]; e ela caiu; e a sua queda foi grande (Mt 7.24-27).

Uma das primeiras coisas que nos interessa fazer é conhecer o terreno sobre o qual vamos edificar o nosso casamento, a nossa casa. Queremos ser como o homem prudente ou como o insensato? Se edificarmos sobre os valores desta sociedade, edificaremos sobre a areia, e isso não é bom. A estratégia principal nas táticas militares consiste em conhecer o inimigo para se defender melhor e evitar seus ataques, isto é, conhecer para evitar. Vejamos, então, qual é a ética, os costumes e a moralidade desta socieda­ de, para saber onde NÃO devemos edificar o nosso lar e casamento. A cidade em que nasci tinha uma formosa praia de uns 3 quilômetros de comprimento. No começo dos anos 1970, entrou na moda como lugar de veraneio e muitas pessoas decidiram construir sua casa nos terrenos que rodeavam toda a primeira linha da costa. O lugar era muito atrativo e com vistas incríveis, mas os alicerces haviam sido construídos em terreno arenoso e, com o passar do tempo, algumas delas começaram a rachar e tiveram que ser derrubadas. Sobre que terreno você está construindo a sua casa, o seu casamento? Mas todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as põe em prática será comparado a um homem insensato, que edificou sua casa sobre a areia. E a chuva caiu, os rios se encheram, os ventos sopraram e bateram com força contra aquela casa; e ela caiu; e a sua queda foi grande (Mt 7.26,27).

II. A desvalorização social do casamento: edificando sobre a areia Como família, gostamos de ver filmes juntos em certas ocasiões e comer pizza. O nosso filho Noel gosta de acompanhá-la com um bom refrige­ rante. Lembro-me de uma sexta-feira quando tínhamos decidido ter uma sessão familiar de cine-pizza, mas faltava seu refrigerante; assim, decidi ir ao bar da esquina e comprar algumas latinhas. Ao entrar no estabelecimento, dirigi-me à máquina de refrigerantes e comprei duas latas. Quando cheguei, assim que entrei, Mª del Mar me disse: “Você está cheirando a cigarro”, ao


O terreno •

que surpreso respondi: “Bom, a única coisa que fiz foi entrar no bar, pegar as bebidas e sair”. Logo, era certo, mesmo que eu não estivesse consciente, de que ao entrar no bar, independentemente de estar de acordo como o que ali havia (sexta-feira à noite, muito álcool, muito fumo...), eu não pude evitar ser contaminado com parte do ambiente que ali se respirava. Utilizamos esse acontecimento para ilustrar a ideia de que a cada segun­ da-feira, quando você abre a porta de casa para entrar “no ambiente desta sociedade” e passa nele 6, 8 ou 12 horas, ao regressar a sua casa, não pode evitar estar contaminado com parte desse ambiente; isto é, parte da ética, dos costumes e do estilo de vida desta sociedade vai grudar em você, quer você queira quer não. Essa ideia está muito bem definida no evangelho de João, quando diz: Não somos do mundo, mas vivemos no mundo. Como é a terra desta sociedade? Sobre que terreno vamos edificar o nosso casamento? Vivemos na época da ultramodernidade, que se caracteriza pelo desapa­ recimento de todos os ideais que mantiveram em pé a sociedade moderna até os finais do século 20. As grandes utopias, a fé no futuro e nas possibili­ dades do homem, foram desaparecendo como propulsor, dando lugar a um ceticismo generalizado e falta de motivação e esperança no futuro. Muitos jovens cujas regras de vida não estão claras ou que não as receberam dos pais, crescem em um contexto no qual aprendem a viver sob a lei do mínimo esforço e a não respeitar as regras do jogo, entre outras coisas porque simples­ mente rompemos todos os pactos de uma ética normativa e poucas coisas, do ponto de vista ético, têm caráter de lei e são assumidas e aceitas por todos. Vivemos sob o que em filosofia se denomina “ética dos mínimos e ética dos máximos”, isto é, uma ética de princípios relativos, não de absolutos; uma ética em que não há normas e tudo vale enquanto não prejudicar o vizinho (mínimos); uma ética pessoal, em que eu posso ter os meus valo­ res, crenças e princípios regentes (ética de máximos), mas que tais valores e crenças são de caráter pessoal e privado. Portanto, falamos de uma ética pessoal que exclui qualquer elemento normativo e generalizado. Isso que aparentemente é muito progressista, pois o mundo já é uma “aldeia global”, deriva de uma relativização de todas as coisas; cada pessoa é um mundo particular, e a frase é: “Quem é você para impor ou pretender ter a verdade absoluta?” Desse modo, tudo se foca no indivíduo e em sua realização pes­ soal: o importante é o indivíduo, e não o grupo. Portanto, o que primeiro

23


24 •  SEGREDOS DO CASAMENTO SAUDÁVEL

começa a se diluir e distorcer é o conceito de casamento e de família, pro­ duzindo sua banalização. Se era indissolúvel sob a ética normativa da Igreja Católica Romana, agora pode se dissolver, e quanto mais rápido, melhor. O hedonismo constituiu o valor supremo a ser consumido, e o relati­ vismo ético, aliado à crise global em que vivemos, faz que a maioria das pessoas viva uma existência instalada no presente e em sua realidade ime­ diata. A falta de valores absolutos traz como consequência a falta de ideais a perseguir, acarretando uma falta de fé no futuro, porque, quando o homem e a mulher não perseguem nem anseiam nada, tudo perde força e sentido. Na vida, necessitamos da busca por ideais, pois as metas e os objetivos nos desafiam e motivam a continuar em frente. Quando há ideais e sonhos a alcançar, estes se transformam no motor que provê energia e força para lutar. Isso é o que dá sentido à vida, pois o ideal da família se instala em dois dos papéis que mais nos realizam como seres humanos: ser marido e mulher, pai e mãe. Voltando ao conceito do hedonismo, devemos dizer que o princípio do prazer é um resultado legítimo da vida, mas visto como um benefício co­ lateral, nunca como um objetivo em si mesmo. O prazer é uma invenção de Deus, não do diabo. Vejamos o que afirma a respeito o escritor C. S. Lewis em seu livro Cartas de um diabo a seu aprendiz: Já sei que conquistamos muitas almas por meio do prazer. De qualquer forma, o prazer é uma invenção sua (de Deus), não nossa (dos demônios). Ele criou o prazer; todas as nossas pesquisas até agora não nos permitiram produzir nem um. Tudo o que pudemos fazer foi incitar os humanos a gozar os prazeres que o nosso inimigo inventou, em momentos, formas ou graus que ele [Deus] proibiu.2

O problema é quando essa ética de caráter hedonista, que apela para o império dos sentidos, se eleva ao caráter de valor supremo. Então, não apenas contamina o conceito e a prática da vida matrimonial e familiar, como também chega a impregnar a nossa percepção da vida eclesial. O cristianismo na cultura pós-moderna é vivido, em muitos casos, de uma perspectiva funcional, e, acomodada, surge a fé emocional promovida pela 2

Lewis, C. S., Cartas de um diabo a seu aprendiz. São Paulo: Martins Fontes, 2009 [tradução livre].


O terreno •

importância do sentimento como herança individualista, não solidária e superficial da nossa sociedade. Muitos cultos acontecem partindo de uma dimensão festiva irreal. Busca-se a experiência mística, estática; buscam-se cultos triunfalistas, mas livres de compromisso direto, em algumas ocasiões como autênticos espetáculos, nos quais apenas se busca estimular os sentidos e criar um ambiente de euforia que, em muitos casos, não corresponde à vida diária de seus membros, às vezes com mau testemunho pessoal e familiar.3

Há algumas décadas, o foco da sociedade era familiar, mas, desde que o conceito de pós-modernidade ou ultramodernidade entrou em cena, o foco social tornou-se laboral e de promoção pessoal. A homens e mulheres imersos no círculo de suas responsabilidades profissionais, que sacrificam 90% de seu tempo e energia no altar laboral, não lhes restam nada mais que as migalhas para as mais básicas responsabilida­ des de ser pais e esposos. Homens e mulheres que, ao chegar à própria casa, já consumiram não apenas a maior parte do tempo, como tam­ bém chegam cansados, estressados e sendo fortes candidatos a comer algo rápido e cochilar no sofá por puro esgotamento... Onde foi parar o tempo para as boas conversas, o jantar juntos, em casal ou em família, o tempo livre compartilhado e a aproximação afetiva? Com todo esse “caldo de cultura”, não estranhamos o índice de divórcios e de violên­ cia familiar, pois como diz a Palavra: Portanto, tudo o que o homem semear, isso também colherá (Gl 6.7).

III. Ausência de estruturas de autoridade Uma das consequências de Gênesis 3 é que provocou a necessidade de criar estruturas de autoridade, necessidade gerada pela falta de respon­ sabilidade que, entre outras coisas, causou o pecado. Quando o homem e a mulher comem do fruto proibido, a relação consigo mesmos, com Deus e entre eles se rompe e se desvirtua com a entrada dos frutos do pecado: morte, medo e dor.4 Quando Deus pede a Adão que preste conta 3

Varela, Juan. El culto cristiano. Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 2009. p. 131.

Deus já tinha advertido Adão de que morreria no dia em que comesse o fruto proibido (Gn 2.17). Ro­ manos 6.23 declara que o pagamento do pecado é a morte; em Gênesis 3.10, logo depois de pecar, Adão experimenta pela primeira vez o medo e a vergonha diante de Deus. Mais à frente, nos versículos 16 e 17, Deus declara que a mulher dará com dor à luz filhos e que o homem trabalhará a terra com sofrimento. 4

25


26 •  SEGREDOS DO CASAMENTO SAUDÁVEL

se comeu do fruto proibido, ele acusa Eva, e esta acusa a serpente. A psi­ cologia do pecado está presente, e ninguém quer assumir sua parcela de culpa e responsabilidade. A partir de então, foram necessárias as estruturas de autoridade que nos ajudam a assumir os nossos deveres e nos inserem em uma hierarquia sã que nos faça todos iguais perante Deus, mas com responsabilidades diferentes. No plano das relações de casal, Deus estabelece que o homem deve ser o cabeça, não como privilégio, mas sim como responsabilidade, e a mulher deve “se sujeitar” (o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará, v. 16)5 ao homem, nas mesmas condições (isso não soa muito popular hoje em dia, não é?). Entretanto, em sua correta interpretação, essa é a vontade de Deus, e nela se dignifica tanto o homem como a mu­ lher no plano da absoluta igualdade.6 As estruturas de autoridade se dão em todos os âmbitos da vida e ser­ vem para regular as relações e organizar as sociedades dentro de uma ordem. Nas estradas há estruturas de autoridade, que são os policiais, aos quais devemos nos sujeitar e obedecer para que o trânsito funcione. Nas cidades há estruturas de autoridade, que são as prefeituras, necessárias para regular, advertir, ajudar a sancionar e proteger a vida dos cidadãos. E nas famílias deve existir a estrutura de autoridade formada pelos côn­ juges, que devem um ao outro, respeito e apoio, cada um em seu dife­ rente papel, e também em seu papel de pais diante dos filhos. Estar “sob autoridade” e obedecer, atrelado a ser “responsável” e conduzir, são os polos opostos, mas complementares, que alicerçam a estrutura de uma personalidade estável. Há apenas trinta anos, na maioria das cidades e bairros havia ao menos três estruturas de autoridade que ninguém questionava e que cumpriam sua função: o lar, a escola e a igreja. No lar, desde cedo não se questionava a autoridade dos pais; simplesmente se assumia e obedecia. Na escola, o professor era “senhor Pedro ou senhora Rosa”, e ninguém punha em dú­ vida sua posição de liderança nem lhes faltava com o respeito. Na igreja, 5  Essa palavra soa um pouco negativa, pois pode ser associada ao servilismo e à vontade subjugada à do marido. Nada mais distante da realidade, embora infelizmente também tenha sido por séculos erronea­ mente interpretada nesse texto bíblico. 6

Dedicaremos um capítulo específico à correta interpretação desses termos.


O terreno •

o que o sacerdote dizia7, aplicando a frase tão popular, “era sagrado”. É certo que em muitos casos se tratava de uma autoridade mal exercida, sob a lei do “aqui se faz o que eu digo e ponto final”, e sob cuja premissa ver­ dadeiras atrocidades foram cometidas,8 mas isso não invalida o exercício legítimo de uma autoridade equilibrada.

IV. Os novos modelos familiares Toda essa convulsão quanto a estilos de vida e cosmovisão levaram à acele­ ração e a mudanças sociais vertiginosas, a tal ponto que hoje não podemos ter uma definição “fechada” de família tal como a entendíamos até a dé­ cada de 1980, isto é, pai, mãe, filhos e família estendida (avós, tios, primos etc.). A nova realidade social abre a porta a numerosas formas de entender o conceito de família, e isso, ao mesmo tempo, lança novos desafios no que se refere à função educativa de cada um de seus membros. Até a década de 1980, o modelo familiar normativo era o constituído pela família tradicional, ou mais especificamente pela família natural,9 composta pelos pais, pelos filhos e, em certas ocasiões, pela família expan­ dida. Com a revolução sexual dos anos 1970 e a chegada da pós-moderni­ dade nos anos 1980, se produziram mudanças estruturais no conceito do que é família. A mudança mais drástica não é a mudança de continente (número de membros que a formam), mas sim de conteúdo (quem pode fazer parte dela). Não se trata de variar o número dos membros do entorno familiar, mas sim de ampliar a opções distintas à do casal heterossexual a própria concepção natural do conceito de casal. Isto é, os novos modelos familiares caracterizam-se pela pluralidade de formas de convivência não sujeitas a nenhuma restrição moral ou ética. Essa nova realidade abre a porta a um amplo leque de formas de convivência familiar que já têm cunho legal; portanto, devemos conhecer e respeitar, ainda que não este­ jamos de acordo. 7

Há trinta anos, na Espanha, a religião predominante por imposição do Estado era a católica.

A ética militar que o ditador Francisco Franco normatizou em nível social e familiar tinha como eixo central o princípio de autoritarismo e intolerância, que continua causando dor meio século depois daquela obscura etapa da Espanha. 8

9  Resistimos em utilizar o termo “tradicional”, pois entendemos que a família chamada “tradicional” não o é por imposição da cultura (tradição), mas sim pela própria vontade de Deus. Por isso, preferimos usar “família natural”.

27


28 •  SEGREDOS DO CASAMENTO SAUDÁVEL

Historicamente, a família se dividiu em três grandes grupos: Família extensa ou polinuclear: formada pelo clã familiar incluindo várias gerações. Própria da época patriarcal e da cultura oriental, na qual o pai de família ostentava a autoridade mantendo a unidade familiar. Foi sendo reduzida em seu conteúdo até se normatizar em sua concepção de família nuclear. Família nuclear: mais reduzida a pais, filhos e, talvez, aos avós. Chegou com a revolução sexual dos anos 1970, que provocou a emancipação da mulher e sua incorporação ao mundo do trabalho, reduzindo-se, dessa forma, o número de filhos por família e passando a existir instituições da terceira idade e lares de idosos. Família pós-nuclear: é o novo conceito de família, produto da socieda­ de pós-moderna, na qual já não falamos de uma mudança de continente (maior ou menor número de membros), e sim de uma mudança de con­ teúdo, pois se altera a própria concepção do conceito de casal, abrindo a porta para outras formas de convivência. Segundo esse conceito, passamos a enumerar os novos modelos de fa­ mília de hoje: Famílias monoparentais: formadas por apenas um dos progenitores e pe­ los filhos. Não nos referimos tanto a pessoas que tenham enviuvado e, por não se casarem novamente, não tenham outra opção que não viver a “uni­ parentalidade”, mas sim a pessoas (em sua maioria, mulheres) que decidem viver a maternidade ou a adoção, sem estabelecer nenhum tipo de união es­ tável com seu parceiro, preferindo como família o modelo monoparental. Famílias reconstituídas: casais que se formam depois de divórcios ou separações anteriores e incluem no novo casamento os filhos de suas re­ lações passadas. Famílias formadas por casais de fato: casais que convivem “de fato”, mas que não legalizaram sua situação como casal “de direito”, ou seja, que ainda não tenham constituído um casamento civil ou canonicamente legalizado. Famílias homoparentais: famílias compostas por casais do mesmo sexo e que em muitos países já contam com a possibilidade de adotar filhos. Famílias comunitárias: trata-se de “famílias” formadas por jovens desar­ raigados do lar ou família de origem que se emancipam e vivem agrupa­ dos, formando o que se conhece por tribos urbanas.


O terreno •

Famílias genéticas: famílias formadas por manipulação genética. Se a ciência nesse campo continua seu avanço sem uma clara regulação éti­ ca,10 poderiam num futuro próximo existir famílias à la carte, nas quais os progenitores elejam as características de seus futuros filhos e se abra a porta ao mercado das crianças de proveta e das barrigas de aluguel etc. Todos esses novos modelos familiares se distanciam do modelo natural e normativo que prevaleceu ao longo da história e desde o princípio da criação. Por tudo isso, os crentes devem defender o modelo de casamento baseado em três premissas que devemos considerar invioláveis. O casa­ mento em sua condição, composição e duração é um pacto heterossexual, monogâmico e permanente. Ainda transcendendo a ética bíblica e do plano puramente antropológico, observamos que o modelo de convivên­ cia normativo para todas as civilizações e culturas em qualquer época da história é o de uma união com essas três características. Apenas em épocas recentes, esse padrão deixou de ser o normativo, ainda que continue sen­ do o modelo maioritário.11 Quanto à condição: a ideia de pacto não é a de um contrato que regule os direitos das partes; é a de um acordo, uma aliança que vincule ambas as partes a um compromisso de livre aceitação, baseado em princípios de lealdade, entrega e fidelidade. O pacto matrimonial é incondicional e sancionado por Deus, normalmente em uma cerimônia pública que ce­ lebra o novo estado civil, comprometendo as partes diante de Deus e dos homens. Essa é sua garantia e “denominação de origem”. Quanto à composição: sobre a heterossexualidade, a Palavra é clara desde o princípio: Portanto, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher (Gn 2.24). O casamento, conforme estabelecido por Deus, é destinado ao homem e à mulher, mas antes do casamento e na própria criação do ser humano a Palavra também é clara e excludente: Homem e mulher os criou (Gn 1.27; 5.2). De forma que a criação do homem e da mulher exclui a possibilidade de outro gênero biológico; a aceitação de 10

Para mais informações sobre o assunto, consulte Ciencia con conciencia, de Antonio Cruz.

O modelo heterossexual e monogâmico continua sendo o mais praticado, ainda que em muitos casos não se aplique; no entanto, devemos levar em conta que, mesmo em casos de divórcio, todo casamento começa na tentativa de ser estável e permanente; portanto, continua existindo como ideal de vida em comum. 11

29


30 •  SEGREDOS DO CASAMENTO SAUDÁVEL

um terceiro gênero apenas se pode admitir partindo de uma consciência separada dos princípios bíblicos e, portanto, alheia a seu marco ético e a suas regras de vida. Sobre a monogamia, diz-se que em princípio e sob o desenho original de Deus apenas se contempla a união entre um só homem e uma só mulher. É verdade que a poligamia também começa a ser praticada no início da história da humanidade. Em Gênesis 4 se detalha o começo da primeira cidade fundada por Caim, a quem Deus amaldiçoa e expulsa do paraíso. Nesse contexto, fora da obediência e da cobertura divina, temos a primeira menção de poligamia em um descendente de Caim, Lameque, que tomou para si duas mulheres (Gn 4.19). A partir daqui se produzirá uma distinção entre a linha depravada (descentes de Caim) e a linha esco­ lhida, os descendentes de Sete, outro dos filhos de Adão e Eva (Gn 4.26): Foi nesse tempo que os homens começaram a invocar o nome do Senhor. Portanto, a aparição da poligamia se produz num contexto de desobe­ diência a Deus e como consequência da separação de sua vontade perfeita. A poligamia se estendeu apenas de maneira territorial, e nunca foi pra­ ticada por mais que uma pequena minoria. Inclusive nos lugares em que foi aceita por costume ou por direto civil, a imensa maioria da população era monogâmica. As razões são óbvias: não há mulheres suficientes para que cada homem tenha várias esposas, nem a maioria dos homens tem a capacidade de manter mais de uma. Por isso, os casamentos poligâmi­ cos se dão em sua maioria entre reis, chefes, poderosos e ricos de uma comunidade; no entanto, parece que normalmente se dava sob a forma de bigamia.12

Quanto à duração: o casamento tem vocação de permanência, é um compromisso até o fim, até que “a morte os separe”. Quando existe o conceito de entrega total, gera-se confiança e segurança, o que produz descanso e tranquilidade para a alma. Recordemos o versículo 14 do men­ cionado Salmo 48: Porque este Deus é o nosso Deus para todo o sempre; ele será nosso guia até a morte. 12  Ryan, John A. Historia del matrimonio. Enciclopédia católica. Disponível em: <http://ec.aciprensa. com/wiki/Historia_del_Matrimonio>. Acesso em: 19 mai. 2015.


O terreno •

Encerramos, portanto, esta seção reivindicando o único modelo que Deus estabeleceu para o casamento. É uma tese comumente aceita que a poligamia, o divórcio e a homossexualidade não são fenômenos originá­ rios, mas sim originados; que aparecem no tempo não como causa de um processo criador, e sim como consequência do princípio da depravação no ser humano. De forma que o significado heterossexual, monogâmico e permanente da união matrimonial não é algo que cada nova geração possa definir livremente, baseando-se em suas inclinações pessoais ou nas políticas vigentes. O significado exclusivo do casamento está definido por Deus e pela natureza única e complementar que ele deu ao homem e à mulher. O que Deus estabeleceu no marco da criação deve ser normativo para todos os tempos. Não pode variar nem ser destruído por nenhuma civilização, pois é um tema criacional, não cultural.

V. Consequências e efeitos colaterais Vimos as características do terreno no qual devemos construir a nossa re­ lação conjugal. Se nos deixarmos arrastar pela ética normativa e o estilo de vida atual, provavelmente o nosso casamento não terá muitas possibi­ lidades de êxito. A força em qualquer relação conjugal é determinada por seu nível de compromisso e entrega e também de sacrifício... Por isso, quando os casais assumem a filosofia de vida egoísta desta sociedade, a consequência principal são casamentos ou relações conjugais instáveis e de curta duração, sujeitos a sentimentos e hormônios mais que a com­ promissos e desejo de levar adiante sua relação, fundar uma família e dei­ xar um legado. Isso produz graves consequências, às quais chamamos de “efeitos colaterais”, pois não afetam apenas o próprio casal, mas também sua descendência e a própria sociedade, lançando modelos negativos de convivência. Vejamos quais são os efeitos colaterais.

1. As primeiras vítimas involuntárias: os filhos Não nos cansaremos de mencionar que o valor social da família é inegá­ vel; não podemos dissociar família de sociedade. A família é e tem sido sempre a célula básica de qualquer civilização e é o primeiro sistema no qual os filhos recebem os elementos precursores do que depois serão seu caráter e sua personalidade. O problema é que os casais que educam

31


32 •  SEGREDOS DO CASAMENTO SAUDÁVEL

seus filhos segundo os códigos permissivos da sociedade ultramoderna estão contribuindo com uma educação deficiente, baseada na cultura do laissez-faire,13 e se arriscam a que seus filhos não apenas padeçam as consequências, como também perpetuem nas futuras gerações as mes­ mas regras equivocadas. Sob essa cultura permissiva e relativista do “vale-tudo”, estamos crian­ do filhos que não aprendem em casa que nesta vida tudo custa e que se deve pagar um preço pelas coisas. Crianças que não ouviram falar da palavra “sacrifício” nem aprenderam os valores da perseverança e da cons­ tância. Crianças com “tolerância zero” diante da frustração e que, se não podem conseguir algo, não são capazes de aceitar isso, optando por qual­ quer tipo de violência. Isso também sucede quando, sob o falso conceito de “pais protetores e amigos de seus filhos”, não lhes ensinaram a respeitar os limites, tampouco transitar pelo processo frustrante, mas necessário, das fronteiras e das normas. Chegará um momento em que desejarão pro­ var de tudo, e suas ações serão impulsivas e descontroladas. Essa falta de domínio e controle é o que leva a atitudes dependentes e a crianças mima­ das, inseguras e malcriadas. Remetendo-nos à seção anterior e sem pretender menosprezar os no­ vos modelos familiares, que merecem todo o nosso respeito, devemos di­ zer, entretanto, que não estamos de acordo com nenhum deles. Estamos convencidos de que o desenvolvimento psicoafetivo que uma criança necessita de seus pais passa, em primeiro lugar, pela contribuição tanto do masculino quanto do feminino, pois é uma questão de alternância de gêneros. A mãe é a segurança do lar e contribui com ternura, cuida­ do, proteção e sensibilidade afetiva, constituindo o filho nos primeiros anos em um prolongamento de si mesma, enquanto o pai é a ponte que “desmama” o filho do contexto do lar protetor e o põe em contato com o desafio do mundo exterior, contribuindo com valores tais como força, integridade e espírito de luta. Observemos o seguinte esquema adaptado do psicólogo Daniel Gassó:14 13

Do francês, “deixar fazer”.

14

Gassó, Daniel. Manual de recursos para orientación y asesoría, p. 61. Disponível em: <www.eimpresion.com>.


O terreno •

As principais fontes maternas e paternas de fornecimento afetivo Figura paterna • • • • • •

Aceitação Consolo Ternura Companhia Segurança Modelo feminino de identi­ dade sexual • Percepção de identidade de emoções próprias • Percepção e identificação de emoções de terceiros

Figura materna • • • • • •

Aprovação Ajuda Compreensão Jogo e competitividade Motivação Modelo masculino de identi­ dade sexual • Modelo de análise e resolução de problemas • Planejamento e consecução de metas específicas

Portanto, temos certeza de que a ausência de um equilíbrio na alter­ nância dos papéis de gênero,15 atrelada à concepção hedonista e superfi­ cial do casamento, provoca confusão e apresenta modelos equivocados, podendo condenar os filhos a repetir os mesmos padrões equivocados. Outro dos “efeitos colaterais” que sofrem as crianças sob a cultura per­ missiva quanto ao casamento e à família é o divórcio dos pais. Quando um casamento se rompe, os filhos adquirem diversos significados para os pais, podendo ser convertidos em uma carga que lhes produz sentimento de culpa, ou na única esperança e significado à vida de algum deles, trans­ formando-os em seus mais leais confidentes, manipulando sua lealdade e afeto. As pesquisas sobre esses casos demonstram que muitas crianças que sofreram a experiência do divórcio, quando adultos, têm problemas na hora de enfrentar as próprias relações em razão de experiência de fracas­ so dos pais. Assim, são mais propensos a apresentar quadros depressivos, maior dificuldade no processo de aprendizagem e, em geral, sofrem mais problemas que as crianças de famílias não divorciadas. 15  Isso pode ocorrer por vários motivos: ausência do papel paterno em razão da crise da masculinidade, ca­ sais homossexuais em que falta a contribuição de um dos gêneros, ou imposição e domínio de um gênero sobre o outro, anulando assim sua personalidade.

33


34 •  SEGREDOS DO CASAMENTO SAUDÁVEL

Um dos muitos mitos da cultura do divórcio é que ele resgata auto­ maticamente as crianças de um casamento infeliz. Na realidade, muitos pais se apegam a essa crença como forma de se sentirem menos culpados. Ninguém quer ferir os filhos, e isso ajuda a pensar que o divórcio é uma solução para a dor de todos. Por outro lado, é verdade que a separação libera a criança de um casamento cruel e violento. Entretanto, quando observamos os milhares de crianças que meus colegas e eu entrevistamos no nosso centro desde 1980, em sua maioria provenientes de casamentos moderadamente infelizes que terminaram em divórcio, há uma mensa­ gem muito clara: as crianças não manifestam que são mais felizes. Em vez disso, afirmam de forma categórica: “O dia em que os meus pais se divorciaram foi o dia em que a minha infância acabou”.16

Por tudo isso, é bom que nos conscientizemos da tremenda importân­ cia que tem o nosso papel de pais em meio ao vazio moral da sociedade. Temos que educar e formar os nossos filhos para que aprendam a viver em comunidade, em sociedade. Devemos colaborar com a bagagem de habilidades sociais para solucionar problemas interpessoais e capacitá-los, assim, para a vida. Precisam aprender a aceitar e reconduzir a frustração que venham a experimentar quando lhes é negado algo, têm que apren­ der a aceitar que nem tudo o que querem é “alcançável”. Assim, nossos filhos deverão saber e diferenciar o fato de que seus atos sempre têm consequências de aprovação ou de correção, prevenindo e antecipando, dessa forma, para que não ajam sempre por impulso. Devem-se reforçar neles as características próprias de seu gênero para que cresçam com uma identidade clara e com a autoestima adequada. A partir dessas páginas fazemos um apelo aos casais com filhos ou com o desejo de tê-los. O período da infância passa tão rápido que é prioritá­ rio saber aproveitar nosso tempo com eles, pois, o que não se faz hoje, talvez não se faça nunca mais. Temos que saber aproveitar os momentos impressionantes da infância para infundir nos nossos filhos os elementos precursores de um caráter maduro e estável. Por tudo isso, uma das nossas prioridades na educação dos filhos é que a sociedade presente não vença a partida influenciando relações de casais instáveis nas quais o divórcio 16  Wallersytein, Judith; Lewis, J.; Blakeslee, Sandra. El inesperado legado del divorcio. Buenos Aires: Atlantida, 2001.


O terreno •

seja mais uma opção, que, aliado à educação liberal de uma sociedade relativista e à falta de estabilidade entre a contribuição paterna e materna, incite nossos filhos a serem as primeiras vítimas involuntárias desse cami­ nho equivocado.

2. A violência de gênero e/ou familiar Um dos “efeitos colaterais” derivados da atenção deficiente e da formação no âmbito do casamento e da família é a violência de gênero ou a violên­ cia familiar. Conquanto seja verdade que a violência dentro do núcleo familiar (violência, em sua maioria, do homem contra a mulher,17 maus­ -tratos dos pais contra os filhos,18 inclusive maus-tratos dos filhos contra os pais) não constitui um problema moderno,19 também é certo que nos últimos anos o problema se descontrolou a tal ponto que já transcende o âmbito do privado para existir como problema social de primeira ordem, que prejudica a saúde emocional da população e o conjunto social. Também devemos ressaltar que a violência de gênero e a violência familiar não apenas se limitam aos atos mais espetaculares ou agressivos — golpes, gritos, insultos próprios do agressor com alguma patologia es­ pecífica —, como também abordam determinados comportamentos mais sutis e menos agressivos, que também devem ser considerados violência. A classificação dos tipos de violência seria a seguinte: Violência física: demonstrações de força, lesões físicas, agressões se­ xuais e outras. Violência psicológica: desqualificação verbal, rejeição ou ignorância da pessoa, medo e intimidação, omissão de responsabilidades básicas e outras. Quanto à violência de gênero, o número de mulheres que morrem como vítimas das agressões de seu companheiro cresceu de forma alar­ mante em todo o mundo. Há diversos fatores que contribuíram para essa realidade e são consequências diretas da falta de impedimentos morais e éticos da nossa sociedade. A respeito da própria pessoa do agressor, 17

Tecnicamente “violência de gênero”.

18

Tecnicamente “violência familiar”.

Ainda que os maus-tratos dos filhos contra os pais sejam um problema atual, que está se generalizando de forma alarmante. 19

35


36 •  SEGREDOS DO CASAMENTO SAUDÁVEL

poderia haver um histórico de maus-tratos em sua infância ou poderiam existir os ciúmes patológicos como consequência de sua insegurança pes­ soal, mas acreditamos que é no nível da herança cultural recebida que estão os maiores fatores potenciais dessa conduta. Por um lado, o homem confunde autoritarismo com autoridade, reforçado pelo vergonhoso aval da História em que a mulher esteve degradada e sua vontade esteve sujeita à do marido. Por outro lado, e em muitos casos, a aparente “força do ma­ cho” esconde uma autêntica crise da masculinidade, homens passivos e desorientados, pois a passividade, ao extremo, acaba sempre gerando vio­ lência. Citamos o pastor Marcos Zapata em seu trabalho Guia de acción pastoral contra la violencia de género:20 “A violência é, em muitos casos, uma intenção desesperada de recuperar a supremacia perdida no único âmbito em que se pode exercer o poder com impunidade”. Mencionamos as mortes causadas pela violência de gênero, mas não queremos nos esquecer daquelas que anonimamente sofrem as consequên­ cias psicológicas de conviver com um agressor: sentimentos de baixa au­ toestima, insegurança e medo, que provoca, em muitos casos, a anulação da personalidade da mulher ou submissão irrestrita à vontade do marido. Isso produz sentimentos de culpa na mulher, pois esta acaba acreditando que, de fato, dá motivos ao homem para maltratá-la. Tal situação leva mui­ tas mulheres a autênticas depressões e crises de ansiedade, que em determi­ nadas ocasiões resultam em negligência e passividade, o que as impede de reagir, produzindo até mesmo dependência do agressor e condenando-as a uma vida infeliz. Quanto à violência familiar, devemos mencionar que os filhos que veem os pais brigando, gritando e exercendo qualquer tipo de violência entre eles, sofrem de maneira especial, pois sentem como se seu mundo e sua estabi­ lidade rasgassem e rompessem, surgindo então a dúvida e o medo sobre a possível ruptura e separação de seus pais. Caso se produza a separação, na imensa maioria dos casos é como se partíssemos a criança pela metade, uma vez que seu afeto e lealdade ficam divididos. Na realidade, é como ela Documento apresentado pela comissão de família da Alianza Evangélica Española. Recomendamos en­ carecidamente seu uso como o primeiro guia pastoral sobre a violência de gênero em língua espanhola. Au­ torização para baixar arquivo da página da web. Disponível em: <http://www.aeesp.net/html/publicaciones/ publicaciones_cuadernos_listado.php>. Acesso em: 19 mai. 2015. 20


O terreno •

mesma sofresse a agressão, pois é fruto da união de seus pais, não da agressão deles. A esse respeito, a psicóloga clínica Ester Martínez assegura: Eu gostaria de ressaltar, sublinhar e pôr em letras maiúsculas que os filhos morrem pouco a pouco quando são testemunhas silenciosas, ou em meio ao próprio pranto, da violência em casa.21

Pelo contrário, quando um filho vê os pais demonstrando afeto (beijos, carícias, palavras de afirmação), sente-se amado, completo, e seu mun­ do se estabiliza.22 Outro aspecto importante a ser destacado quando uma criança testemunha um ato de violência (por exemplo, do pai contra a mãe) é que ela recebe a mensagem de que esse é o modo de tratar as mulheres; no futuro, então quando adulto, seu filho pode vir a reproduzir essa mesma semente de violência em sua futura família. Nesse sentido, alguém disse muito bem: “O melhor que você pode fazer por seu filho é amar a mãe/o pai dele” — esse, sim, seria o modelo adequado a ser reproduzido.

3. A popularização do divórcio, “de estigma social a sinal de modernidade” Na Espanha, quando o divórcio foi legalizado há mais ou menos trinta anos, grande parte da sociedade espanhola respirava aliviada. Parecia que as mudanças para uma sociedade mais democrática e plural traziam novos ares de renovação e frescor que ajudavam a superar o obscurantismo de épocas passadas. A revolução sexual, o início da liberação da mulher e o auge do feminismo popularizaram, entre outras coisas, o divórcio, que passou a ser visto como uma conquista social e um sinal de modernidade. Por outro lado, o conceito de casamento para toda a vida passou a ser visto como algo antiquado, associado ao regime vigente que continuava escravizando a liberdade, principalmente da mulher. Por isso, quando re­ corremos ao tema do divórcio, devemos fazê-lo superando três prejuízos:

21  Vera Martínez, Ester. ¡Papás, ayudadme!: transtornos que se pueden evitar desde la educación emo­ cional. Barcelona: Andamio, 2007. p. 136. 22  Lembramo-nos de uma ocasião em que nos abraçávamos, e o nosso filho correu ao nosso encontro para nos abraçar também e participar assim da segurança e calidez de seu mundo familiar.

37


38 •  SEGREDOS DO CASAMENTO SAUDÁVEL

• Nossa história. Não podemos evitar a herança do catolicismo nacio­ nal na Espanha que impregnou a mente de gerações, propondo a ideia de que o casamento é “sacramento sagrado” e, portanto, o di­ vórcio é um pecado horrível que deve ser condenado e um estigma social para quem o sofre. Na Espanha do pós-guerra, vivia-se uma moral dupla e se devia manter as aparências; o orgulho do regime franquista que autodenominou a Espanha como “a reserva espiri­ tual do Ocidente” não podia consentir a possibilidade do divórcio como norma do ponto de vista social, muito menos como algo lega­ lizado do ponto de vista jurídico ou canônico. • O legalismo evangélico. Mesmo nos segmentos evangélicos e em alguns setores, ainda não conseguimos superar a condenação do divórcio, antepondo ao amor e à misericórdia o espírito de juízo e condenação. O livro de Provérbios diz: Pela misericórdia e pela verdade se faz expiação pelo pecado (16.6). O certo é que a correção deve ser motivada por um espírito de restauração, que é o princípio regente quando aplicamos a ética bíblica. O divórcio não é o peca­ do imperdoável, mas é pecado como o é a mentira e o orgulho e, precisamente porque é pecado, é perdoável e superável.23 • Uma influência contemporânea. Os extremos nunca foram bons, e do outro lado da balança assistimos a uma autêntica banalização do divórcio e, portanto, do próprio casamento. Desse modo, tudo se foca no indivíduo e em sua realização pessoal, e, assim, o que pri­ meiro começa a diluir e distorcer é o conceito de união permanente que deve acompanhar o casamento. O divórcio é vivido não apenas como opção, mas sim como troféu social a ser comemorado: “enfim, 23  O divórcio não é um problema moderno. Séculos antes de Jesus Cristo, Moisés teve que legislar sobre ele. Os próprios judeus estabeleceram leis para o divórcio que permitiam que o homem pudesse dar à mu­ lher “carta de divórcio” praticamente por qualquer motivo. Na família de Jesus, quase houve um divórcio quando José se inteirou de que Maria estava grávida: por ser um homem justo e não querer difamar Maria, havia decidido separar-se dela em segredo (Mt 1.19), isto é, dar-lhe carta de divórcio. Jesus mesmo enfren­ tou situações delicadas, como o caso da mulher samaritana que havia tido cinco maridos e, o homem com o qual vivia naquele momento não era seu marido. Precisamente por isso, podemos afirmar que o divórcio é bíblico, no sentido de que a Bíblia, para pre­ venir todos os excessos que ocorriam, o regulou e o contempla, limitando-o apenas em caso de adultério por alguma das partes. O princípio de uma “união permanente” nos leva a ser idealistas; devemos ter “o ideal”, isto é, a norma bíblica, mas o princípio de ruptura (pecado) nos leva a ser realistas; vivemos em um mundo caído, e o divórcio ocorrerá como outra das muitas consequências do pecado, e temos que saber lhe dar uma resposta bíblica, equilibrada e pastoral.


O terreno •

o indivíduo livre pode se despojar das garras de uma união perma­ nente”. Em muitas discotecas e espetáculos noturnos se oferecem “comemorações de divórcio”, o que é um dos mitos da cultura do di­ vórcio: pensar que se resgata o casal liberando-o de uma vida infeliz. Portanto, afastamos os prejuízos do legalismo bíblico evangélico, do catolicismo dogmático e da influência contemporânea. Isso tudo limpa o terreno para abordar com objetividade o fato de que em muitos casos o divórcio é uma válvula de escape, uma saída rápida pela porta traseira que evita a capacidade e a possibilidade de transitar pelo processo difícil, mas necessário, que leve à superação dos problemas, criando um sentimento de fracasso pela ruptura, assim como a desconfiança e a falta de fé em futuras relações estáveis. A sociedade se empenha em vender o divórcio como opção de liberação, sobretudo da mulher, mas, como na cultura do aborto, ninguém fala “do dia seguinte” nem das consequências posteriores. Muitas das mulheres que decidem se divorciar, mesmo aquelas com profissão e vida laboral exitosas, vão se sentir sozinhas e frustradas quando enfrentarem as novas responsabilidades e tiverem que tomar decisões sem o conselho e o apoio de um par estável. Muitos homens também se de­ primem e transitam de relação em relação, manifestando um sentimento de fracasso e resultando-lhes mais difícil estabelecer um novo lar. Defini­ tivamente, o divórcio é outro dos efeitos colaterais de uma sociedade per­ missiva, que em outras situações sempre certifica o fracasso do casamento.

4. A crise da masculinidade e o auge do feminismo radical Quase nos atrevemos a dizer que o tema da crise da masculinidade não deveria figurar como mais um dos efeitos colaterais derivados de uma so­ ciedade que menosprezou os alicerces do casamento e da família, mas sim que sua importância é tal que deveria ser tratado como o principal dos danos que, se não for reparado, causará, como já está ocorrendo, graves problemas de identidade no homem em seu papel de líder e, como con­ sequência, em sua companheira e filhos. Falamos de uma profunda desorientação, de uma grave crise da mas­ culinidade, de um ataque sem precedentes ao coração do homem. A frase “O homem tem medo de ser homem, e a mulher já não se contenta em

39


40 •  SEGREDOS DO CASAMENTO SAUDÁVEL

ser mulher” resume de forma certeira a inversão de papéis e como o ho­ mem, segundo alguns, já é o novo sexo frágil. A esse respeito, o psicólogo Sergio Sinay analisa o que chama de os três “pês” da masculinidade (pro­ tetor, provedor e procriador), defendendo que o homem está inválido ao ter perdido esses três pontos de apoio.24 Satanás é o inimigo do plano divino. Seu empenho é destruir a obra de Deus através da igreja e dos crentes. Como bom estrategista, sabe muito bem que para destruir a igreja tem que começar pela família; para destruir a família, tem que começar pela cabeça, isto é, pelo homem. Portanto, se nos aprofundarmos nas causas da crise da masculinidade, devemos re­ montar ao princípio para observar que, desde Gênesis 3 e em desenvolvi­ mento posterior da civilização até os nossos dias, houve ao menos quatro causas históricas que favoreceram e abriram a porta para a atual crise da masculinidade: o silêncio de Adão,25 a revolução industrial, a cultura “do macho ibérico” e o auge do feminismo radical.

VI. O silêncio de Adão e o vírus da passividade Situemo-nos no contexto da criação, concretamente em Gênesis 3. Onde estava Adão quando Eva comeu o fruto proibido? Quem pecou primei­ ro? Tradicionalmente, sempre se entendeu que a mulher é quem peca primeiro ao tomar a iniciativa de comer o fruto proibido; entretanto, não devemos perder de vista que a advertência de não comê-lo foi feita a Adão em Gênesis 2.16,17, quando nem sequer a mulher tinha sido criada, cain­ do assim sobre o homem a primeira responsabilidade de advertir a mulher de que não comesse do fruto proibido. Segundo o relato, a mulher tomou do seu fruto, comeu e deu dele a seu marido, que também comeu (3.6b); por­ tanto, Adão em vez de assumir sua responsabilidade, opta por não impedir e, além disso, concorda em comer com ela. Na verdade, talvez a mulher tenha sido apenas um instrumento para anu­ lar o homem. Larry Crabb, em seu livro O silêncio de Adão, desenvolve a teo­ ria de que o germe da falta de envolvimento e de assumir a responsabilidade Sinay, Sergio. Esta noche NO, querida: el fin de la guerra de sexos y la aceptación de los valores masculinos. Barcelona: Integral, 1997.

24

25  De fato, esse é o título de um dos livros de Larry Crabb, no qual o autor desenvolve a tese sobre o germe da passividade no homem. [Publicado em língua portuguesa por Edições Vida Nova.]


O terreno •

já passou pelo coração de todo homem, que desde então luta com uma tendência natural ao silêncio, ao isolamento e a não se envolver no lar. A passividade de Adão em Gênesis 3 é o começo do fracasso de todo homem, que luta com um silêncio profundo, ancestral, que funde suas raízes na es­ tratégia do inimigo para anular sua autoridade como cabeça do lar. Que outras causas continuaram favorecendo a crise da masculinidade?

VII. A revolução industrial Na cultura judaica, era a mãe que educava o menino até 6 ou 7 anos de idade, quando então passava à tutela do pai, de quem aprendia o ofício familiar (Jesus mesmo aprendeu de seu pai o ofício da carpintaria). Os meninos passavam muito tempo com os pais. Em muitos casos, o ato de ir trabalhar era simplesmente mudar de cômodo para trabalhar no ofício fa­ miliar (ferreiro, artífice, carpinteiro, sapateiro, curtidor etc.). Por gerações, era assim que viviam as famílias, apesar da pobreza e das carências; havia certa estabilidade; não havia crise de identidade, pois os jovens cresciam com um modelo familiar, em que estavam claros os papéis e as responsa­ bilidades de cada membro.26 Essa sólida estrutura familiar, que havia permanecido por gerações dan­ do sentido de continuidade às famílias, se rompe com a chegada da revolu­ ção industrial, no século 18. A revolução industrial muda o padrão familiar da manufatura artesanal pelas fábricas especializadas e pela produção em série. Têm início as grandes indústrias e a necessidade de trabalhadores, que começam a se ausentar de casa cada vez por mais tempo. Como nas cidades havia muita mão de obra e grandes estações de trem para o transporte terres­ tre, ou portos para o transporte marítimo, as fábricas começaram a se estabe­ lecer nos subúrbios, criando ao redor os bairros ou zonas industriais: quanto maior a produção, maior a demanda, mais tempo fora de casa, maior a ausência do papel paterno... O homem começou a estar mais ausente que presente. Duzentos anos depois, começaríamos a conhecer termos como: “crise de identidade”, “desestruturação familiar”, “estresse” etc. Passemos à causa seguinte da crise da masculinidade. Os problemas a enfrentar estavam mais relacionados a sobrevivência, enfermidades, falta de recur­ sos e pobreza.

26

41


42 •  SEGREDOS DO CASAMENTO SAUDÁVEL

VIII. A cultura machista O franquismo e seu catolicismo nacional cunharam um conceito de mas­ culinidade baseado na ética castrense, militar: “O homem não se queixa; os homens não choram”. Esse fato favoreceu a que várias gerações de homens chegassem a acreditar que precisar de alguém e mostrar neces­ sidade era visto como sinal de covardia e demonstração de fragilidade; portanto, escolhiam o silêncio e a repressão de sentimentos. A guerra civil continuou marcando essa falta de expressão emocional, pois os soldados na frente de batalha, levados por um mecanismo psicológico de defesa para poder suportar os horrores da guerra, tinham que desconectar-se das emoções e do plano sentimental. O problema é que esses homens quando voltavam da frente de batalha para casa continuavam desconectados emo­ cionalmente, reforçando ainda mais a ausência do plano afetivo. Ao mesmo tempo, a aparição do fenômeno midiático da televisão e seu uso regular em cada casa contribuiu para que o conceito de masculi­ nidade continuasse vendendo a imagem de “homem duro”, em razão do fato de termos sido educados pela cultura desse protótipo de personagens. Homens que têm em comum a rudeza, as poucas palavras, a ação violenta e todos unidos pelo lema: Eu sozinho me basto; não preciso de ninguém. A ausência do papel de esposo e pai continuou a se assinalar, privando o ho­ mem do afeto e da ternura que devia dar à mulher e aos filhos, que por fim recebem os mesmos códigos negativos sobre o que implica ser homem.

IX. O feminismo radical O feminismo radical surge nos anos 1980 com a revolução sexual e a eman­ cipação da mulher. Começou sendo algo positivo e com reinvindicações legítimas, que buscava liberar a mulher de uma opressão histórica. Um setor se radicalizou, e a ira por terem permanecido oprimidas por séculos degenerou-se em um enfrentamento com o gênero masculino e numa luta por se impor como o novo sexo forte, promovendo a rivalidade de gênero e considerando o homem um oponente a ser superado. Tudo isso fez que a mulher rejeitasse determinados aspectos de si mesma, próprios de sua personalidade e natureza feminina, para desenvolver aspectos mais pró­ prios dos homens, na intenção de se equiparar ou parecer com eles, sem


O terreno •

entender que a igualdade se refere ao tratamento e à consideração, não à condição de gênero e, sem dúvidas, não à adoção dos mesmos modelos errôneos, próprios de um machismo histórico a ser superado, não imitado. É certo que historicamente o papel da mulher esteve sempre subme­ tido à vontade arbitrária do homem e seus direitos sociais claramente re­ cortados. Mesmo sob a tradição judaico-cristã e por causa de uma leitura legalista e manipuladora do texto bíblico, a mulher foi menosprezada em sua dignidade como ser humano e em seu valor como pessoa,27 o que con­ tribuiu para uma maior radicalização de grupos feministas, o que embora se explique não se justifica. O nosso objetivo até aqui foi analisar as características do terreno em que vivemos, da sociedade da qual fazemos parte e como seus postulados levam à desvalorização social do casamento, à popularização do divórcio e às uniões livres ou de fato, bem como aos efeitos colaterais que isso gera. Esse é o terreno arenoso que acabou minando os alicerces da casa, “e a sua queda foi grande”. Finalizamos este primeiro capítulo, no qual analisamos as bases desta so­ ciedade e suas consequências, com a leitura do seguinte poema,28 que reflete, por parte de uma sociedade secularizada e vazia, a falta de esperança e fé no casamento: NÃO TE AMO MAIS Mentiria dizendo que ainda te quero como sempre quis. Tenho certeza de que nada foi em vão. Sinto dentro de mim que não significas nada. Não poderia dizer jamais que nutro um grande amor. Sinto cada vez mais que já te esqueci! E jamais usarei a frase EU TE AMO! Sinto muito, mas tenho que dizer a verdade. É muito tarde...

27  A oração de um judeu ortodoxo era a seguinte: “Senhor, te agradeço porque não me fizeste cachorro, nem gentio, nem mulher”. 28

Anônimo.

43


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.