Monte-vivi-deo Carlos Meijueiro janeiro 2014
13-04-2015 Quando decidi sair do país pela primeira vez, em janeiro do ano passado, fui ao Uruguai. 23 horas de viagem de busão. Lá, além de descobrir que não tenho vocação para outra língua nenhuma, percebi que de fato só viajei para estar na cidade em que Galeano vivia, e com tanto carinho falava. Tanto que não quis nem conhecer as famosas praias, e fiquei todos os dez dias de viagem em montevideu, andando de lá para cá, conhecendo suas ruas e seus velhos. Durante todos esses dias escrevi e guardei algumas coisas da cidade. Fui a Malvin, bairro onde Galeano morava, para conhecer sua casa. Numa rua só de casas, a dele é a mais bonita, de cores mais escuras do que claras, que quase desaparece entre as plantas e com um desenho que lembra as ilustrações de seus livros. A casa é a única da rua coberta
por sombras, trabalho de altas árvores na entrada. Uma triste grade separa a calçada da porta. Sentei no meio fio do outro lado da rua, e até imaginei Galeano tomando café diante daquela porta, regando aquelas plantas. Imaginei se alguma daquelas janelas era seu escritório de trabalho, de onde saíram as viagens mais fantásticas que já fiz, sem sair do Rio. Quis muito que ele abrisse a porta em algum momento, apesar de evidentemente não parecer ter alguém em casa. Queria só vê-lo, sentir a energia da presença, e quem sabe, agradecer por tudo. Depois andei pelas ruas desertas de Malvin, e tive certeza das ruas que ele gostava de passar. Elegi o banco da praça que ele devia se sentar, e o lugar da praia que devia ficar. Imaginei o velho triste, vendo os arranha-céus subindo em seu bairro baixo. Fui ao café com o nome do meu país, que ele adorava ir. Com certeza ficava na mesa dos cantos, com a cadeira virada para o salão e as costas encostadas nas paredes, ou nas mesas das janelas, olhando a rua. Pedi o café que carrega seu nome, o que ele gostava de beber. Não fiz nada por tietismo, acho que não saberia fazer isso bem, mas por admiração mesmo. Quando leio os textos dele imagino os lugares que conheceu e inventou nos confins da nossa América Latina estuprada. As guerras que viveu, as histórias que escutou, as pessoas que conheceu e as garrafas que bebeu. Galeano mais do que um escritor é um grande escutador. Uma pessoa que ouve as outras, e faz da história - do comentário, do sorriso, da dança, do gesto, da palavra, da lágrima, do abraço, do palhaço, do casal, do beijo - mais insignificante, a coisa mais bonita que já li. Poderia listar os livros e os pequenos textos. Livro dos Abraços pra mim, tem o mesmo valor do minuto de sabedoria que gostava de abrir quando era pequeno. Abro pra trazer um pequeno novo sentido para o meu dia. Meu livro sagrado. Quando ele veio ao Rio, Fui ao tribunal ver uma homenagem, e escutei as pessoas da mesa falarem mais do que ele. Fiquei puto. Odeio filas, mas fui a Gávea ver o Galeano falar na Puc. Esperei fila e demoradas negociações para que todos pudessem vê-lo. Durante todo esse tempo de espera eu lia seus livros, e o tempo passava como água de rio. Cheguei cedo para poder escutar. No final das contas todos escutaram bem. Tirei uma foto dele com o celular a distância: ele distorcido parecia estar em chamas de luz. Uma grande luz com os cotovelos sobre uma mesa. É assim que o vejo: como uma grande luz. Um farol que ilumina o mar no breu da noite. No último dia de viagem, fiquei correndo nas ruas do Bairro Sur atrás de uma gráfica que pudesse scanear meus papéis e transformar num livro. O cara da gráfica me ajudou muito e cobrou pouco. Tinha meu primeiro livro em mãos, e fui direto entregar 3 cópias que pudessem chegar as mãos de Galeano. Não era um livro, era um agradecimento. Deixei pra ele o meu olhar sobre a sua cidade. Deixei um no café
(onde tem um lugar só para receber as coisas que deixam pra ele), um com o dono de um sebo (que dizia que ele volta e meia passava por lá) e um com um casal de coroas que conheci na viagem (que diziam ter um amigo muito amigo de Galeano). Naquele dia o meu único sonho era que ele pudesse ler o livro que chamei de Monte-vivi-deo - Apesar de em nenhum segundo ter acreditado nessa possibilidade. É estranho ler que Galeano Morreu. Ele está nas minha senhas de internet e no meu imaginário. Quando entristeço abro seus livros, vejo seus vídeos – me acalma o jeito calmo com que ele fala. Talvez, eu só tenha começado a escrever depois de ler Galeano, por ter certeza de que é possível falar e ser entendido pela simplicidade que se escreve. Ele sabe fazer isso como ninguém. Eu vou continuar a conversar com ele do jeito que sempre conversei, abrindo as páginas de seus pequenos livros, escutando-o falar e viajando por um mundo que não piso, mas sinto. Sinto muito Galeano. ----------------------------------------------vou anexar um texto ao texto. (por engano li o do dia 13 de maio ao invés do 13 de abril, então aí vai). do livro os filhos dos dias: MAIO 13 PARA QUE VOCÊ CANTE, PARA QUE VOCÊ VEJA Para ver os mundos do mundo, mude seus olhos. Para que os pássaros escutem o seu canto, mude a sua garganta. Isso dizem, isso sabem, os antigos sábios nascidos nas fontes do rio Orinoco.
Os traços em preto separam aqui as páginas que foram escritas à mão no livreto, mas fiz algumas alterações de acordo com a cronologia da viagem e do que me lembrava. Espero ter ajudado pra melhor compreensão. Na verdade, aqui, o que mais importa não é a ordem dos fatos, mas o olhar do Carlos pra vida, seja pr’aonde ele vá, leva consigo seus olhos curiosos e admirados por gente e lugares e costumes e rotinas e ‘fora da rotina’ e rua. Com todo meu carinho de quem acompanhou e acompanha esse modo de ver o mundo transcrevi essas anotações dele da terra natal de vocês que muito me encantou, queridos amigos que levaremos pra essa vida. Que mais encontros como esse aconteçam. Desejo a vocês dois muito amor. Que caminhem juntos e que a vida seja grata e bondosa com pessoas tão queridas como vocês são. Com amor y cariño, Karen
caminho
Nas paredes do Canto da Lagoa: Juízo não traz regozijo.
As paredes do Campeche dizem: a gente pode escolher ver.
A logomarca da prefeitura de Palhoça é moderna e colorida em verde e vermelho, como as de supermercados e farmácias. A cidade tem radar eletrônico e casas com cercas elétricas. Boa parte dos pontos de ônibus estão destruídos, corroídos pela ferrugem do tempo. O slogan da prefeitura é: Palhoça, a cidade que mais cresce.
Na rodoviária de Floripa um cara vem em minha direção falando alguma língua que não a minha. É desses guias de porta de portos. Entediado perguntei se ele sabia onde tinha um japonês barato. Ah! Vocês são brasileiros. Ele disse em tom
de lamento. Mas sorrindo de forma estranha, me indicou um japonês do outro lado da ponte, onde era 8 reais com um pedaço de carne e 9 reais com dois pedaços. Entendi o desentendido. O famoso sem balança. Isso, sem balança, é barato mas é bom. Sempre. Obrigado, bom dia. Um casal passou. Ela com cara amarrada e ele cheio de si. Ele oferecia duas notas de 10 reais à ela, como quem paga o que deve. E ela sem olhar pra cara dele, fez que não iria aceitar. Ele jogou o dinheiro no chão e acelerou o passo. Ela balançando a cabeça negativamente, agachou, pegou as notas, e andou na direção contrária do provável atual ex. No banheiro masculino, um velhinho anotava o fluxo de pessoas ou jogava jogo da velha sozinho. Do lado dele um prato de plástico branco, desses de churrasco, guardava um monte de moedas ao lado da roleta. Perguntei se esse era o banheiro de graça, e ele sem pronunciar uma palavra, como quem te manda a putaquepariu, me mandou entrar no banheiro. Na saída vi que ele jogava jogo da velha.
As 22h, em frente a iluminada fábrica da Mercedes Benz em Araranguá, dois pares de burros de carga descansam, enquanto enchem suas caçambas, para seguir viagem. -------E a primeira luz amarela invade o ônibus. O céu de 1/3 laranja e de todo resto azul, sem uma nuvem, vence a escuridão. O reflexo das primeiras luzes do dia num lago em Pelotas é bonito, e merece uma foto que não será tirada. Depois do lago as luzes se perdem nas sombras das fábricas da Volvo, da Mercedes e de outras. O relógio interno do ônibus ignora as ordens do tempo e me diz que são 21h48. Se não fossem as luzes da manhã, eu acreditaria. Ônibus é metáfora. Passo a mão na janela embaçada para ver melhor. Fico com a palma da mão gelada e molhada. Em cada gota um pequeno sol. Já são 17 horas de viagem que só valem no relógio externo do mundo. Olhando pro sol lembrei dos mais de 20 anos em que dividi quarto com meu irmão e meu pai. Dos roncos do meu pai que tremiam as paredes e a paciência, e das conversas insones, sonhos compartilhados e ideias incríveis, que só poderiam existir inspiradas nas luzes do breu de um quarto pequeno, e trocadas com o meu irmão. Uma mulher
acorda falando um espanhol que não entendo uma palavra. Continuei lembrando que até certa idade não conhecia uma casa em que os irmãos não dormiam no mesmo quarto. Para ver melhor a paisagem, e não atrapalhar com a luz o imenso lago do amor que dorme ao meu lado, desci até o banheiro. De lá se vê pela porta do ônibus uma extensa área verde sendo acarinhada pelo sol, e de dentro do banheiro, por uma janelinha retangular, uma extensa área verde coberta pela sombra do ônibus. Lembrei das manhãs em que assistia Bom dia, caminhoneiro fazendo hora pra não chegar cedo na escola. Pensava em milhares de caminhoneiros de camisa xadrez, chapéu e cigarro, tomando café nas estradas do Brasil assistindo aquela chatice. Tudo que eu queria é que fosse Chaves ou Chapolin. Ontem, no ônibus, passou um filme do Bruce Willis, outro desses que ele dirige carro como ninguém, com legenda em espanhol. Foi logo no começo da viagem. Também tocou o fenômeno Chorando se foi. E o microfone da aeromoça de busão não funcionou na hora dos avisos. No ônibus a maioria fala espanhol. Logo mais estarei num país que a língua não é a minha, e pela primeira vez na vida estarei na condição de estrangeiro que precisa se comunicar de qualquer forma, para comer e se perder. Estou indo para o Uruguai mais pelas histórias que Galeano, Trilce e Rafa me contaram do que qualquer outra coisa. Se não bastasse a estrada em si, que sempre é companheira, estou com a companhia do amor, e com ela tanto faz ir pra Montevidéu ou pra Santa Rita de Jacutinga. Não pelo estilo arquitetônico europeu ou pelos suspiros políticos que Mujica vem causando. Nada de romantismos, sonhos e de desejos de partida. Pelo contrário, caminhar como em qualquer outro lugar e voltar para o lugar de onde eu vim. A única coisa que saí de casa querendo fazer lá é entregar um livro a Galeano, em retribuição à todas as histórias que me contou ao pé do ouvido como um avô faz ao neto. Agradecer por me fazer conhecer o passado para entender o presente. Agradecer pelas viagens por toda América Latina de graça e sem tirar os pés da Tijuca. E agradecer por me fazer acreditar que é possível escrever e ser sentido e entendido. Vou entregar um livro de coisas que visíveis e invisíveis que vi e vivi nas ruas da sua cidade. Das conversas que não entendi e de tudo mais que Montevidéu quiser. São 23h27 no ônibus, vou tentar dormir. Avisem a Galeano que vou chegar com um presente.
-----------Nosso ônibus da EGA recebeu uma pedrada do destino no meio da estrada, tendo uma janela quebrada e nenhum ferido, aumentando a viagem de 18h para quase um dia. Depois da fronteira, se vê um Uruguai de vastos campos verdes, muitas vacas e casas pequenas feitas de diferentes formas e tipos de pedra. Apesar de ser à beira de uma estrada, a maioria delas não tinha cercas, sendo que uma das que eram cercadas, tinha o menor muro que já vi, mais ou menos a um palmo do chão. Não vi nenhuma placa anunciando “BIEN VENIDO A MONTEVIDEO”, mas vi bandeiras do Peñarol e do Nacional sendo expostas e vendidas no mesmo varal, ironicamente, dançando juntas a música do vento. Foi nesse momento que senti que chegava a Montevidéu. Assim que chegamos na Rodoviária de Tres Cruces pudemos ver a supremacia do euro e do dólar sobre as moedas latinas. Veias abertas, ainda. Até quando? Na rambla Fernandez, enquanto eu e Karen olhávamos o mapa de Montevideu, um senhor parou a caminhada para nos oferecer informações. Era alto e muito simpático, com jeito de bom professor, nos indicou onde era o candombe e seguiu, pois sua mulher, companheira de caminhada já ia longe. Nos despedimos e agradecemos muito. Não é todo dia que a doçura humana te afeta. Assistimos ao ensaio de uma comparsa de candombe: Que ritmo diferente! Eu e Karen em alguns momentos sentíamos o samba chegando, mas ele nunca vinha. Candombe é candombe. Não parece nada. O jeito peculiar de dançar. As bandeiras com cores da Costa do Marfim faziam bater o coração da África no Uruguai. No final da comparsa esbarramos novamente com o senhor, que também contemplava o candombe. Estava com sua mulher dessa vez, chamam-se Julio y Silvia. São realmente doces e deram-nos muitas dicas sobre tradições populares
uruguaias. Escreveram no nosso caderno e deixaram telefone para qualquer coisa. Conversamos sobre tudo. Uma viagem pelas nossas historias e a dos lugares. Falaram-nos de outras praias como Pocitos e Buceo, e também dos mercados artesanais. Sobretudo da história da llamada de Reyes que acontecerá amanhã na isla das Flores com a participação de comparsas de diferentes bairros. Ficamos com vontade de reencontra-los ao longo da semana para saber mais historias sobre Montevideu. Como é bom encontrar pessoas legais que você se sente a vontade mesmo sem nunca ter visto na vida. É como os encontros com cachorros de rua que parecem que são amigos seus de muito tempo.
Eu e Karen também deixamos um cadeado na rua Yi. Só que o nosso por ironia do destino não fechou. Melhor assim, né? Juntos, mas sempre livres e sem dominação e posse sobre o outro. Melhor assim! O tempo que vai decidir sobre a história e o destino daquele cadeado. Assim que chegamos, no domingo, sentíamos fome, e fomos à rua procurar um lugar para comer. Montevidéu parecia estar fechada, pelo menos no bairro Sul. Paramos no primeiro restaurante de preço modesto que encontramos, as mesas eram na calçada, e pedimos um frango a parmegiana, o napolitan para 2 pessoas. O nome do restaurante de esquina é San Rafael, entre as Ruas San José e outra que não sei o nome. O garçon era gente boa, e nas outras duas mesas do lado de fora tinham uma família de brasileiros do interior de São Paulo e um senhor bêbado uruguaio. Aquela esquina tem sua magia. O senhor tomando seu uísque, e gritando a todos os seus vizinhos que passavam na esquina, estava brincando com a família de brasileiros, ele fazia as piadas e ria sozinho, enquanto os brasileiros riam fingindo entender. Disse ter
morado no Brasil uns anos, e mostrou o talento de 80 anos de paquera para a brasileira. Depois das piadas gritava sozinho: “Madre matita, porra!” Antes de ir embora me viu com a camisa do Flamengo e saudou o Brasil. Disse que caso gostássemos, a prova que queria, é que voltássemos a Montevidéu.
Naquela noite a Karen chorou, e não foi de alegria. Se culpava pelas coisas que poderia ter feito antes, para evitar o assalto. Chorava, sobretudo, pelas fotos das comparsas coloridas que tanto lhe encantaram e fizeram dançar. As fotos que nunca mais vai ter. Nós dois conversamos muito pelo celular quando estamos separados. O sinal de mensagem é sempre uma esperança. Essas vão ficar na lembrança.
Nada que apagasse o brilho do dia. O casal de velhinhos que assistiu ao assalto tomando mate na porta de casa, nos pediu perdão em nome do Uruguai. Não precisava, pois isto acontece em todos os lugares. Questão de sorte ou azar. Mas com o vento do mar vinham alguns desejos de retorno de quem se sente violado. Mas ainda assim, os últimos culpados são aqueles jovens. O dia amanheceu chuvoso. No meio da noite acordei para fechar as janelas por conta da chuva e do vento. Karen ainda dorme, se recuperando do cansaço das llamadas de Reis e do assalto. Ninguém gosta de acordar para ir à delegacia. Esqueci de tirar as roupas do varal. Temos que ir à policia e ao consulado brasileiro por conta da imigração. Parece que ainda vem mais chuva. E hoje é o 1o dia com o comércio aberto. Abri meu celular, e recebi a notícia que um grande amigo vai ser pai de uma menina. O nome dela é Sarah. Karen que dorme como um bebê, vai ficar feliz com a notícia. O jovem que me apontou a arma, que parecia de brinquedo, era rubio. Na delegacia o policial colocou na ficha trigueño. Ele tinha o olho esquerdo com uma grande cicatriz na vertical. Por pouco não deve ter ficado cego. Foi uma das primeiras pessoas que pedimos informação em Montevideu, na Carlos Gardel, no mesmo lugar onde fomos assaltados.
Ojo isquierdo é um personagem que levarei comigo para o Brasil.
Defender la alegría como una trincheira defenderla del escándalo y la rutina de las ausencias transitórias y las definitivas M. Benedetti Está escrito na deliciosa sala da casa de Trilce e Cris onde ficamos calorosamente hospedados e inspirados ao longo de 9 dias. No Parque Prado vimos pequenas favelas e grandes mansões. Poucas pessoas nas ruas de um sábado a tarde. Vimos as homenagens à Republica de Blaimel e os simples registros de Figari, as tradições culturais afrouruguaias. Me lembrou as pinturas de Heitor dos Prazeres, que pintava as festas nos terreiros e gafieiras e sinucas dos negros cariocas. Fomos depois ao “Los Yuyos” tomar grapas e canas. Na esquina da Hypolito Ludoyen con Av. Halia, um homem bêbado anda nas ruas desertas carregando uma bandeirinha vermelha, como as que ficam nos corners dos campos de futebol. É domingo de sol forte, e Montevideo parece um deserto moderno de lojas fechadas e silêncio. Da alta janela do ônibus podese ver um casal pegando sol na varanda, tal como se pega sol nas lajes das favelas do Rio de Janeiro. No teto do ponto de ônibus, garrafas de vinho e alguns pares de sapato, na esquina da Av. Comercio. Nas paredes de Montevidéu: -
Desde que nascemos temos direito à educação
-
Quel consumo no te consuma
-
Muere un hijo da puta, nace una flor...
-
Somos la generación que usa las palavras no balas!!!
Seria possível sinalizar os caminhos percorridos pintando as garrafas de vinho, deixadas cuidadosamente de pé, nas calçadas. Na esquina da Rua Minas, um casal discute sentado no meio-fio, debaixo da placa de “NÃO ESTACIONE”. Na rambla da Praia Fernandez, um casal está sentado no muro que dá para o mar. Ela está de costas para o mar, confiando na força do abraço que dá em seu parceiro. No sinal perto do Hotel Ibis, o Michael Jackson uruguaio ganha mais moedas por dançar do que por limpar o vidro dos carros. Ele é saudado constantemente por buzinas e gritos.
-
Caetano Veloso não combina com Montevidéu.
-
No consulado brasileiro, na Rua Convencion, ao lado de uma mega sex shop, no sexto andar de um prédio de elevadores com portas com grades de correr manuais, e travas, um homem e uma mulher loira, parecem discutir em espanhol. Alguns avisos são em português, a maioria das pessoas fala espanhol, e o filme também é em espanhol. Uma camisa branca, com estampa de futebol, emoldurada e exposta na parede, tem uma frase escrita em francês: Le football brésilien joue, prie et travaille pour la paix en Haiti.
Se eu pudesse te mostrar a vista da casa da Cris, no barrio Sur: vejo algumas construções abandonadas do Porto, os carros e as pessoas passando na rambla. Homens jogam num campo de futebol de terra e senhores fazem ginástica. Vejo prédios como o que estou de tijolos e 15 andares. Vejo os navios entrando e saindo entre as pedras do Porto. A noite se vê o sinal verde e vermelho na água. Quando a maré está forte a água bate com força nas pedras. É lindo. O sol e a lua se põem todos os dias no mesmo lugar. Até as fotos são lindas.
A cada 50 metros, de poste de luz em poste de luz, se vê uma placa de campanha política para presidência em 2014. Os pontos de ônibus tem pinturas reivindicando uma assembleia popular. Uma das paredes da Avenida Giannattio diz: Donde comenza la corrupcion, muere la ezquerda. Vi cartazes de Larrañaga e Lacalle Pou. Nenhum de Mujica. Julio até os 20 anos jogou pelo Nacional, e largou por conta do movimento estudantil. Ficou 12 anos preso. Uma vida, Silvia disse à Karen. Eu admiro casais como eles que nao perderam as esperanças que o mundo pode mudar. Falamos sobre a popularidade de Mujica fora do Uruguai, e sobre as manifestações de rua no Rio de Janeiro.
Com carinho, nos contaram sobre as histórias dos bairros que passavam pela janela.
Reencontramos Julio y Silvia, por acaso. Karen, que sem óculos não enxerga nem um palmo a frente dos olhos, os avistou de longe. Nós gritamos e sinalizamos, e eles que caminhavam rápido na rambla, nos viram e pararam. Thamyra, uma amiga do Rio estava conosco. Foi muito legal o reencontro, e combinamos de ir ao candombe as 19h30 no Mercado Agrícola. Ficamos muito felizes. Chegando em casa vimos que o candombe já tinha acontecido, e Julio tinha que trabalhar no outro dia. Ficamos tristes. Mas em seguida Julio sugeriu um passeio de carro por lugares que não conhecíamos. Ficamos muito felizes. Eu e Julio na frente, Silvia, Thamyra e Karen atrás. Passamos por Punta Gorda, Carrasco,
Punta
Carretas,
Parque
Battle
e
muitos
outros
lugares.
Vimos o presídio que virou shopping em Punta Carretas. Eles lembraram da fuga de Mujica e mais 111 dali, e eu lembrei do seu texto sobre o casal que se conheceu pela janela de lá. Julio e Silvia foram como familiares ou amigos que conhecíamos mas não víamos há muito tempo. Foi um domingo especial por conta desse domingo casual. Ainda esbarramos com duas comparsas de candombe nas ruas. Foi especial. Agradeci com muita sinceridade por tudo aos dois. Os uruguaios têm a doçura de seus doces de leite.
As paredes de Montevidéu gritam e anunciam a rivalidade entre Peñarol e Nacional. Diferentes regiões são demarcadas como Zonas Manya ou Zona Bolso. São mais de 100 anos desde o primeiro jogo. Difícil passar em uma rua que não tenham saudações ou xingamentos das partes de Carboneros e Tricolores. As camisas estão em homens e mulheres, crianças e velhos. Vi mais de 10 pessoas com os escudos tatuados no corpo. Hoje, no vazio verão montevideano, a cidade silenciosamente diz: é dia de clássico no Centenário! Quando passei pela biblioteca e vi a estátua de Sócrates com um gorro do Peñarol na cabeça, parei para tirar foto com o celular. Uma moça bonita, com piercings no alto da boca deu gargalhadas e falou algo que não entendi, mas
respondi com sorrisos. Logo adiante ela entrou num caminhão que fez sinal pra ela. Ali perto nas paredes da faculdade de direito, estava escrito: “M U J I C A M I E N T E” Será que algum presidente não foi chamado de mentiroso? Silvia nos presenteou com lembranças da Colonia Suiça. Eu fiquei com o marcador de texto para usar no seu livro de reportagens que comprei na Tristán Narvaja.
Fui à Malvin, e à rua Dalmiro Costa um dia. Vi uma casa, na sombra de 3 grandes árvores que você gostaria. Imaginei nós 2 conversando, sentado na calçada daquela rua longa e tranquila.
A caminho de Montevideu, muitos ferros-velhos na estrada. Um deles ostenta a carcaça de um avião, soberana, sobre as ferrugens de carros. Lavando as tampas de cerveja para tentar colocar nesse livro, senti o cheiro da infância, quando procurávamos as tampas de garrafa para brincar de corridas de chapinha. Fazíamos circuitos na terra, com curvas e obstáculos, e aos petelecos movimentávamos as tampinhas. Cheguei a sentir o peso da chapinha no meio da unha, e a ternura da terra na mão. Você ia gostar de conhecer a Karen. Ela é uma girafinha de 2 pernas e bailarina. Gosta das palavras e chora nos ápices de felicidade. Tem cabelos e olhos grandes. Cheiro de fruta boa. Ela ia fazer uma capa linda como ela, mas não teve tempo.
Quando passamos pela livraria- no Rio se chamam sebos- de Jorge, Julio e Silvia nos levaram lá, e disseram gostar muito dele e do lugar. Jorge nos deu uma aula rápida sobre Torres García, e ainda falou de Barradas, Blaines e Figaro. Quando fomos embora conversamos sobre o imenso conhecimento que guardam essas pessoas. Eram 22h da noite, e ele estava lá com a luz amarela ligada, mergulhado naquele oceano de livros. Caso ele se vá, morre com ele todas as historias daquele oceano. Na esquina da Rio Negro com 18 de julho, um morador de rua toma seu mate num copo de Mc Donald’s, usando canudos.
As cadeiras nas ruas e as crianças brincando. A llamada de reis é um carnaval de família. Vimos mais de 20 comparsas. Karen dançou con el viejo da comparsa Tribu Tambor e eu pude balançar uma das bandeiras. Fiz como fazia com as bandeiras do Flamengo quando mais novo. Foi muito lindo o dia. Na hora de ir embora, confiantes da tranquilidade das ruas vazias, fomos assaltados na Carlos Gardel, esquina com Zilmar M. Garotos novos, não teve agressão física e não nos levaram nem 100 pesos, só 1 celular e os documentos da Karen. Queria ter comprado livros seus, de Benedetti e de Onetti. Mas nao tive dinheiro. O Jorge, dono de um sebo na Constituyente, disse gosta muito de vocês três, e muito contou da importância histórica dos livros de Rodo. A primeira vez que o nome de Rodo me marcou foi quando abri o mapa de Montevideu. Na praia de Los Verdes en Colônia. Um rapaz compunha uma bela imagem, sentado na sombra de uma árvore, de frente para o mar, com uma bola de futebol ao lado, como namorados. E nas paredes do canal que leva à praia, alguém escreveu apaixonado: “ El tempo sin ti, Carina, passa muy rápido. Junto a ti se detiene, para contemplar el querer (...) eternias.” Eduardo, quais palavras o tempo apagou? Será que o sentimento se foi?
Gosto muito das ideias de Torres Garcia, apesar de conhecer muito pouco. Sobretudo no período em que retorna, já velho, à Montevideu. “ Toda américa debe levantarse para crear un arte poderoso y virgen.” Quero encontrar seus livros para presentear meu irmão, Pablo. Fui ao Mercado do Porto. Acho que é aquilo que querem fazer com a zona portuária do Rio. Já começaram expulsando todos os pobres e negros que viviam por lá. O nome do consórcio entre as empresas que financiam, lucram com as obras públicas é PORTO MARAVILHA. Acredita, Galeano?
Acho que a Sarandi é o querem fazer na Rio Branco. Só que sem artesanatos e sem ambulantes.
Não tivemos tanta vontade de ir a Punta Del Este, mas fomos à Colonia del Sacramento. É como as cidades de interior no Brasil. Foram 4 horas de pedalada por lá, conhecemos uma criança argentina, loira como um anjinho, com nome de Melian. Fechou a cara quando fomos embora. Mostrei pra ela as luzes do sol que fugiam das nuvens, mas ela não entendeu meu portunhol. Dei-lhe duas pedrinhas de regalo. Plaza Nós somos praças. Sempre abertas. Às vezes sozinhas, abandonadas, às vezes coloridas e movimentadas. Às vezes em dias de carnaval. Algumas pessoas só passam. Outras sentam um dia, mas não voltam no outro. Alguns voltam todos os dias. Alguns até moram. Outros jamais se esquecem. Silvia e Julio voltaram à nossa praça em Montevidéu, e nós, jamais nos esqueceremos da deles.
Na esquina da 18 de julio com Convencion, na calçada contrária a da livraria Papacito, de 10h as 19h, trabalham diariamente, abertos em horário comercial, uma das mesas de xadrez mais movimentadas de Montevidéu. Ocupam a parte da calçada ao lado da pista, e além dos dois jogadores sempre têm os que esperam pra jogar, e os que assistem. Na esquina seguinte em direção à Praça da Independência, um senhor de 80 anos, troca dinheiro pelo mesmo preço da casa de cambio, quando esta está fechada. Está lá nos domingos de 8h as 11h. Na nota de dollar está escrito In God We Trust, e no real Deus seja Louvado.
As paredes da Paysandu dizem: Sos Mujer o sos mujer de un hombre? Subindo uma das ruas que dão na rambla, a Ejido, num sobrado bem antigo, quatro jovens negros tocam tambor na varanda. O maior tinha uns 13 anos e o
menor ainda nem falava. Os batuques davam cor as sombras frias do fim de tarde.
Na Montevidéu de Mujica, pessoas moram nas ruas e pedem ajuda. O transporte público é velho e lento. A educação é ruim e a saúde apesar das críticas parece funcionar bem. Existe preconceito racial e segregação de classes. Acontecem assaltos, como no Rio de Janeiro e como em qualquer lugar do mundo. Como no Rio também, existem bairros ricos e bairros pobres, e em Montevidéu, diferente do Rio, em alguns casos as duas realidades não se atravessam. Queria eu que os pobres do Rio tivessem a condição de moradia dos pobres de Montevidéu, pelo menos no verão, pois o inverno deve ser infernal para aquelas famílias. O custo de vida é bem parecido, logo, muito caro. A passagem do ônibus é 50 centavos mais barata, e não existe metrô e trem. A comida é o mesmo preço, mas as carnes são de alta qualidade. Na disputa de podrões tem os carritos em cada esquina com seus panchos, chivitos e choripans x muitos McDonalds sempre cheios de fila. Coca-cola em toda parte. Na Montevidéu de Mujica, não existe polícia militar, parques e praças são abertos e bem conservados, e as construções antigas não são tidas como ultrapassadas. O Uruguai sabe lidar com a velhice. As paredes gritam sobre política e futebol. Placas não deixam a memória morrer, e relembram conquistas da resistência durante o período da ditadura militar. A vida de ambulantes e artesãos não é perseguida por nenhum choque de ordem, e artistas usam as praças de palco, e as comparsas de candombe todos os domingos marcham lentamente, como os escravos com algemas nos pés há séculos atrás, pelas ruas de Montevidéu, tocando seus tambores, com crianças correndo e os velhos sentados nas cadeiras de praia no meio das calçadas. As ideias e a figura de Mujica são importantes para o mundo. Em Montevidéu dizem que ele só ganha pela força que tem no interior. Nos departamentos fora da capital. Com as pessoas do campo, os humildes e os pobres. Mujica pensa um país melhor para eles também. A campanha de seus concorrentes ocupam cada 50m de espaço midiático na capital. Anunciam e prometem mão dura com a polícia, inglês em todas as escolas e afirmam que Montevidéu está abandonada. Mujica aparece pouco nos muros. Na parede da faculdade de direito tem um estêncil: Mujica miente. Que presidente não foi chamado de mentiroso? No Uruguai quase tudo é estatal. Há uma resistência às privatizações. O próprio povo reúne assinatura, convoca um plebiscito, e vota contra as tentativas estrangeiras. Dizem que em 2016 boa parte da energia será solar. No seu governo inicou-se as cotas para negros na universidade, legalizou-se o casamento gay, o aborto seguro e a maconha, apesar de poucos saberem o que isso
significa. Se não bastasse o wi-fi liberado em diferentes espaços públicos e privados, aprovou-se uma lei para avanços software livre. No Uruguai existem muitos velhos, alguns doces como Mujica e Galeano e outros mau encarados como são os velhos. No ônibus não tem catraca, e não se usa uniforme. Existe uma passagem Centrica que custa por volta de 1,50 real, caso não vá tão longe. Trocam-se garrafas por descontos no mercado e muitos boeiros são pintados. Há muitos graffitis na cidade velha e no porto. Pichações por toda ela. Os mais jovens compram cervejas litrão Patricia, Pilsen ou Zillertal e vão para as ruas, ramblas e praças beber. Quem sabe, se muitos outros pensassem como Mujica, em fortalecer o estado para ajudar os menos abastados, e ampliar o conhecimento do povo para descentralizar o poder, talvez vivêssemos momentos mais inspiradores. Mas sabemos que estes são raros. Acima de tudo, em Montevidéu é possível notar a distância entre o discurso e a prática, e que apesar de toda a fama com as classes médias de outros países, fazer política e governar um país é uma outra história. O mundo precisa de governantes mais simples e mais humanos, mas isso não quer dizer que mudará do dia pra noite a realidade dos mais simples e mais humildes.
No último dia, sem tempo e sem a Karen, corri para conseguir fechar os textos do livro e depois imprimir. O cara da gráfica, da minha idade, me ajudou ao ignorar as complicações do meu portunhol arrastado, e conseguiu construir um livreto dividido em duas metades de A4. Escaneou tudo que tinha pra escanear nas páginas, e acabou sendo o editor do livro. Não lembro seu nome. Corri de chinelo a 18 de julho de ponta a ponta. Deixei uma unidade no Café Brasileiro, duas com Julio y Silvia – na tentativa de alguma edição chegar até o Galeano -, uma guardada para a Karen e outra para a Trilce. Eu fiquei sem, porque esse livro tá escrito em mim. No aeroporto encontrei uma conhecida do Rio, e ela me perguntou por onde andava naquelas terras, e eu disse que tinha ficado 9 dias em Montevidéu, e só. Ela que voltava de Cabo Polonio, Punta del Leste, etcpraias… perguntou, achando absurdo, o que eu tinha feito lá todos esses dias. Eu podia ter descrito milhares de sensações e ideias, mas disse que amei e caminhei a vontade, como se estivesse nas ruas da Tijuca sozinho, ou com a Karen em qualquer lugar do mundo. E foi isso mesmo.
Eduardo, estas palavras confusas são memórias e presenças de Montevidéu. Os planos para o livro foram embora nas tantas caminhadas e no tempo que parece parar, apesar de todo o movimento. Um abraço de quem muito te admira. Carlos Meijueiro
Gracias- Karen, Galeano, Julio, Silvia, Cris, Montevidéu e, especialmente, <3 Rafa e Trilce. Para bo. Obrigado. A poesia veio dessa força.